Søren Aabye Kierkegaard – Diário de um Sedutor Sua passion predominante é la giovin principiante. (Sua paixão predominante é a jovem debutante.) Don Giovanni Nº 4 Aria 1 Agora que, no meu pessoal interesse, me decido a passar a limpo a cópia exata de outra que, com o coração em sobressalto, consegui em tempos adquirir, rabiscando-a a pressa, não posso libertar-me da sensação de ser oprimido por uma angústia difícil de dominar. Como outrora, a situação apresenta-se-me ao espírito cheia de inquietação e como que eivada de censuras. Contràriamente aos seus hábitos, ele não tinha fechado a secretária e assim tudo o que ela continha se encontrava à minha mercê; mas de nada serviria tentar desculpar a minha atitude pela recordação de que não abri qualquer gaveta. Uma delas estava já aberta, e nela havia uma quantidade de folhas soltas e, sobre elas, um grande in-quarto, belamente encadernado. Na capa estava colada uma vinheta branca onde, com a sua própria letra, ele escrevera: Commentarius perpetuus Nº 4. Contudo, foi em vão que tentei convencer-me a mim próprio de que, se este lado do livro não estivesse voltado para cima, e se não tivesse sido tentado por aquele título extravagante, não teria sucumbido à tentação ou que, pelo menos, lhe teria resistido. O próprio título era estranho, não tanto em si próprio mas pelo que o rodeava. Lançando um olhar rápido pelas folhas soltas, verifiquei que continham estudos de situações eróticas, alguns conselhos sobre este ou aquele assunto, rascunhos de cartas de um gênero muito particular, de que pude, mais tarde, apreciar o estilo negligente, mas intencional, e artisticamente rigoroso. Hoje, depois de ter penetrado a consciência artificiosa desse homem perverso, quando evoco a situação, quando, com os olhos bem abertos a qualquer astúcia, avanço, na minha imaginação, para aquela gaveta, a minha impressão é a mesma, que deve dominar um comissário de polícia quando entra no quarto de um falsário, abre os seus esconderijos e encontra numa gaveta um monte de folhas soltas que serviram para ensaios de escrita e desenho: numa descobre um esboço de folhagem, noutra um parágrafo, numa terceira uma linha escrita às avessas. Tudo isto lhe prova, sem dificuldade, que a pista é boa, e ao seu contentamento vem juntar-se certa admiração por tudo o que aquilo implica, sem margem de dúvida, de estudo e diligência. Penso que, no seu lugar, as minhas sensações seriam outras pois não estou habituado a investigar atos criminosos e não uso insígnia de polícia. Num tal caso, o sentimento de me ter embrenhado em terreno proibido viria sobrecarregar pesadamente a minha consciência. Como é hábito acontecer, não fiquei, nessa ocasião, menos privado de ideias que de palavras. Uma impressão domina-nos até que a reflexão se liberta de novo e, complexa e ágil nos seus movimentos, seduz o estranho desconhecido, insinuando-se no seu espírito. Quanto mais se vai desenvolvendo a reflexão, tanto mais apta fica a dominar-se e, como um funcionário de alfândega no serviço dos passaportes, de tal modo se familiariza com o aspecto dos mais estranhos tipos que já não é tarefa fácil desconcertá-la. Ora, embora a minha, conforme creio, esteja sobremaneira desenvolvida, a primeira surpresa foi enorme; lembro-me perfeitamente de ter empalidecido, de ter estado prestes a cair por terra, de tê-lo temido. Suponham que ele regressava nesse momento e me encontrava ali, desmaiado, a gaveta na mão - ah! Uma má consciência pode trazer interesse à vida. Em si, o título do livro não me feria a imaginação, pensei tratar-se de uma coletânea de excertos, o que se me afigurava perfeitamente natural pois sabia que ele sempre se aplicara aos seus estudos com o maior zelo. Mas muito diferente era o conteúdo. Tratava-se afinal de um diário, nem mais nem menos, e mantido com um cuidado extremo. E embora, segundo o que dele eu antes conhecia, não pareça muito indicado um comentário da sua vida, devo confessar ter compreendido, após a primeira vista de olhos lançada ao diário, que o título foi escolhido com grande soma de gosto e compreensão, testemunhando, sobre ele próprio e sobre a situação, uma real superioridade estética e objetiva. Este título está em perfeita harmonia com todo o conteúdo. A sua vida foi uma tentativa constante para realizar a tarefa de viver poeticamente. Dotado de uma capacidade extremamente evoluída para descobrir o que de interessante existe na vida, soube encontrá-lo e, tendo-o encontrado, soube sempre exprimir o que vivera com uma veia quase poética. Por consequência, o seu diário não é de uma precisão histórica nem uma simples narrativa, não foi redigido no modo indicativo, mas sim no conjuntivo. Muito embora tenham os pormenores, naturalmente, sido anotados após terem sido vividos, por vezes talvez mesmo bastante tempo depois, a narrativa dá, bastas vezes, a sensação de que tudo acontece naquele próprio instante, sendo a vida dramática de tal modo intensa que, por vezes, se diria que tudo decorre perante os nossos olhos. É sobremodo inverossímil que ele tenha escrito este diário com uma finalidade particular; salta à vista que, no sentido mais estrito, apenas se revestia para ele de uma importância pessoal, e o conjunto bem como os pormenores inibem-nos de pensar que temos perante nós uma obra literária, e muito menos destinada a ser impressa. É certo que ele nada teria a temer pessoalmente se a publicasse pois que, na sua maior parte, os nomes são de tal modo extravagantes que não é provável sequer a sua realidade; apenas suponho serem reais os nomes próprios, de modo que ele próprio podia reconhecer com segurança o verdadeiro personagem, enquanto um terceiro seria induzido em erro pelo apelido. Quanto mais mão seja, é esse o caso da jovem Cordélia, que conheci e que representa todo o fulcro de interesse do diário; chamava-se ela, na realidade, Cordélia, mas não Wahl. Mas como explicar então que o diário tenha tomado uma feição de tal modo poética? A resposta não apresenta dificuldades, resultando de possuir ele, na sua pessoa, uma natureza poética que não era, se o quiserem, nem suficientemente rica nem suficientemente pobre para distinguir entre a poesia e a realidade. O tom poético era o excedente fornecido por ele próprio. Esse excedente era a poesia cujo gozo ele ia colher na situação poética da realidade, e que retomava sob a forma de reflexão poética. Era este o seu segundo prazer e o prazer constituía a finalidade de toda a sua vida. Primeiro gozava pessoalmente a estética, após o que gozava esteticamente a sua personalidade. Gozava pois egoisticamente, ele próprio, o que a realidade lhe oferecia, bem como aquilo com que fecundava essa realidade; no segundo caso, a sua personalidade deixava de agir, e gozava a situação, e ela própria na situação. Tinha a constante necessidade, no primeiro caso, da realidade como ocasião, como elemento; no segundo caso a realidade ficava imersa na poesia. O resultado da primeira fase era pois o estado de espírito, de onde surgiu o diário como resultado da segunda fase, tendo esta palavra um sentido algum tanto diferente nos dois casos. Graças à ambiguidade em que decorria a sua vida, sempre ele esteve sob o império de uma influência poética. Por detrás do mundo em que vivemos, muito lá atrás, em último plano, existe outro mundo; a sua relação recíproca assemelha-se à que existe entre as duas cenas que acontece vermos no teatro, uma por detrás da outra. Através de uma leve cortina, distinguimos como que um mundo de gaze, mais leve, mais etéreo, de outra qualidade que a do mundo real. Muitos daqueles que deambulam em carne e osso pelo mundo real, não lhe pertencem, mas sim ao outro. Perder-se assim a pouco e pouco, sim, quase desaparecer da realidade, pode ser saudável ou mórbido. O caso desse homem, tal como eu o conheci outrora sem o conhecer, era mórbido. Ele não pertencia à realidade e, no entanto, tinha muito a ver com ela. Passava sempre acima da realidade, e mesmo quando mais se lhe entregava, estava longe dela. Mas não era o bem que dela o afastava e, no fundo, também não o mal- mesmo hoje não seria capaz de lho imputar. Tinha ele um pouco de exacerbatio cerebri (exaltação da mente), em relação ao qual não dispunha a realidade de estímulo suficientemente forte, a não ser de um modo fugidio, Ele não sucumbia ao peso da realidade, não era demasiado fraco para suportá-la, não, era antes demasiado forte; mas tal força era uma doença. Logo que a realidade perdia a sua importância como estimulante, ficava desarmado, e nisso consistia o mal que o habitava. Tinha consciência disso, mesmo no momento do estímulo, e o mal estava nessa consciência. Conheci a jovem cuja história preenche a maior parte do diário. Não sei se ele terá seduzido outras mas, segundo os seus papéis, é o mais provável. Parece ter sido ainda versado num outro tipo de experiências que o caracterizam bem; pois ele era, em extremo, intelectualmente determinado, para ser um sedutor vulgar. O diário demonstra também que, por vezes, era algo de totalmente arbitrário o que ele desejava, uma saudação por exemplo, e por preço algum quereria obter mais, por ser a saudação aquilo que a pessoa em questão possuía de mais belo. Com o auxílio dos seus dotes espirituais, sabia tentar uma jovem, sabia atraí-la a si, sem se preocupar com possuí-la, no sentido literal do termo... Posso imaginar como ele saberia conduzi-la ao ponto culminante em que tinha a certeza de ser ela capaz de tudo lhe sacrificar. Mas, tendo as coisas sido conduzidas até esse ponto, tudo rompia sem que, pelo seu lado, tivesse havido a menor constância, sem que uma só palavra de amor houvesse sido pronunciada e, muito menos, uma declaração de amor, uma promessa. No entanto, algo ficara impresso nela, como uma marca. E duplamente lhe sentia a infeliz o travo amargo, porque nada tinha em que o basear, e porque estados de espírito, de natureza muito diferente, a continuavam certamente a sacudir, num terrível e demoníaco sabá, sempre que exprimia as suas queixas, ora dela própria, perdoando-o, ora dele. E decerto perguntaria então a si próprio se não seria afinal tudo aquilo uma ficção, pois que apenas em sentido figurado se podia falar em realidade, no que àquelas relações dizia respeito. Não tinha ninguém a quem se pudesse confiar; porque, no fundo, ela nada tinha a dizer. Podemos contar um sonho aos outros, mas o que ela tinha para contar não era sonho, e sim realidade. Porém, logo que pretendia descrevê-la a alguém e sossegar o seu espírito inquieto, nada encontrava para dizer. E ela própria bem o sentia. Ninguém mais podia compreender de que se tratava, e tudo aquilo agia sobre ela com o seu peso inquietante. Estas vítimas eram pois de um tipo muito especial. Não era o caso de jovens que, desprezadas ou julgando-se desprezadas pela sociedade, se entregassem alta e saudàvelmente ao seu desgosto ou, levando as coisas demasiado a peito, extravazassem o ódio ou o perdão. Nelas, nenhuma transformação visível se operara; eram respeitadas como sempre, as suas vidas decorriam semelhantes às de quaisquer outras e, contudo, haviam-se modificado, sem que quase conseguissem exprimir essa modificação, e sem que os outros a pudessem notar. A sua vida não fora quebrada nem desviada, como é o caso daquelas, antes se curvara dentro delas próprias; perdidas para os outros, em vão procuravam reencontrar-se. Tal como podemos dizer que era impossível descobrir a pista desse homem (os seus pés conservavam as pegadas que faziam - é assim, com efeito, que melhor posso representar a sua infinita intelectualidade), também podemos afirmar que não foi ativamente responsável por qualquer das vítimas. A sua vida era demasiado intelectual para que ele pudesse ser um sedutor, no sentido vulgar do termo, embora por vezes se revestisse de um corpo paras tático e fosse então, todo ele, sensualidade pura. Mesmo na sua aventura com Cordélia, tudo é de tal modo confuso que lhe era possível afirmar ter sido ele o seduzido. Sim, e a própria jovem pode ter tido por vezes dúvidas a tal respeito. Também neste caso, os traços que deixou da sua passagem são tão vagos que não é possível descortinar qualquer prova. Para ele, os indivíduos nunca foram senão estímulos, e lançava-os para longe de si do mesmo modo que as árvores deixam tombar as folhas - ele rejuvenescia, enquanto morria a folhagem. Mas que poderá passar-se no seu cérebro? Penso que, tal como desviou os outros do bom caminho, ele próprio se acabará por perder. Desviou os outros do bom caminho, não sob o aspecto de uma relação exterior, mas sim de uma relação interior, relativa a eles próprios. É revoltante que um homem indique mal a estrada a um viajante que ignora o caminho a percorrer, e o abandone em seguida, sozinho no engano. Mas não será mais revoltante ainda levar alguém a perder-se em si próprio? O viajante tem, apesar de tudo, a consolação da paisagem, cujo aspecto se vai constantemente modificando aos seus olhos, e o fato de que, em cada uma dessas modificações, pode ter a esperança de encontrar uma saída: mas aquele que se perde em si próprio não tem um tão vasto terreno por onde encaminhar os seus passos: em breve se dá conta de estar fechado num círculo, de onde lhe é impossível escapar. Penso que assim se virão a passar as coisas no caso dele, mas numa bem mais terrível medida. Nada consigo imaginar de mais penoso que um intrigante cujo fio de intrigas se quebra, e volta então, contra si próprio, toda a sua sagacidade, porque nesse momento a sua consciência acorda e logo ele tenta libertar-se das confusas malhas em que se enredou. De nada lhe servem as muitas aberturas que existem na sua toca de raposa: no momento em que já a sua alma inquieta julga descortinar a luz do dia penetrando no covil é, afinal, uma nova entrada que se lhe depara e, perseguido pelo desespero como o animal selvagem pelos cães, constantemente busca uma saída e sempre encontra uma entrada por onde, uma vez mais, penetra em si próprio. Tal homem não é, em todos os casos, o que se pode chamar um criminoso: ele é, muitas vezes, iludido pelas suas próprias intrigas. E no entanto sobre ele recai um castigo mais terrível que o do criminoso; porque, se a compararmos com esta loucura consciente, o que pode valer mesmo a dor do arrependimento? A sua punição é de caráter puramente estético; pois até o dizer que a consciência desperta é, para ele, uma expressão demasiado ética: a consciência apresenta-se-lhe apenas como um conhecimento superior tomando a forma de uma inquietação que, num sentido mais profundo, nem sequer o acusa, mas o mantém desperto, e lhe não permite qualquer repouso na sua estéril agitação. Também não é ele um insensato: pois a infinita variedade de pensamentos finitos não se petrificou na eternidade da demência. Também para a pobre Cordélia difícil será reencontrar a paz. Ela perdoa-lhe, do mais fundo do seu coração, mas não encontra repouso porque a dúvida regressa; foi ela quem acabou o noivado, foi da a culpada da desgraça, foi o seu orgulho que aspirou ao que foge ao banal. Ela arrependeu-se, mas não encontra repouso, porque os pensamentos acusadores a desculpam; foi ele quem, pela sua astúcia, lhe introduziu na alma tal projeto. E então o odeia, o seu coração alivia-se em maldições, mas, uma vez mais, não encontra repouso; censura-se por tê-lo odiado, ela, que é afinal uma pecadora: censura-se porque, apesar de todas as perfídias por ele praticadas, sempre será culpada. Ele agiu cruelmente para com ela, enganando-a e - quase seríamos tentados a dizê-lo - mais cruelmente ainda por ter despertado nela a reflexão versátil, porque lhe provocou uma evolução suficientemente estética para que ela não escute já, com simplicidade, uma só voz, e seja capaz de nessa voz descortinar, ao mesmo tempo, múltiplos sentidos. Desperta então na sua alma a recordação; esquece a sua falta e culpa, para apenas recordar os momentos de beleza, aturdindo-se numa exaltação mórbida. Em tais momentos, não somente o recorda, como ainda o compreende com uma clarividência que prova quão profundamente ela evoluiu. E já não vê nele nem o criminoso, nem o homem nobre; nesses momentos a lembrança que dele tem é puramente estética. Escreveu-me uma vez um bilhete onde exprimia as suas impressões a respeito dele: «Era, por vezes, de tal modo intelectual que eu me sentia reduzida a nada como mulher, e noutras tão selvagem e apaixonado, cheio de tantos desejos, que quase me fazia estremecer. Umas vezes eu era para ele como uma estranha, outras abandonava-se inteiramente; mas se, num destes últimos momentos, lhe lançasse os braços ao pescoço, tudo podia mudar num só instante e o que eu abraçava era apenas uma nuvem. Antes de o encontrar conhecia já esta expressão, mas foi com ele que lhe apreendi o verdadeiro sentido; penso sempre nele cada vez que a utilizo, e é também a ele que devo cada um dos meus pensamentos. Sempre gostei de música. Ele era um incomparável instrumento, sempre vibrante e com uma amplitude que nenhum outro poderá alcançar; ele era a soma de todos os sentimentos, de todos os estados de espírito; para ele nenhum pensamento era demasiado elevado, ou desesperado; podia rugir como uma tempestade de outono, ou sussurrar como uma brisa estival. Não perdia uma só palavra que eu dissesse e, no entanto, nunca podia estar certa de que as minhas palavras alcançavam o efeito pretendido, pois sempre desconhecia qual seria esse efeito. Escutava aquela música que eu própria fazia acontecer. E era com uma inexprimível angústia, mas misteriosa, feliz e inefável, que eu escutava essa música que eu própria provocava e, ao mesmo tempo, não provocava, mas era sempre harmoniosa. E ele continuava a enredar-me nas malhas do encanto.» Tudo isto é horrível para ela, mas ainda mais o virá a ser no que a ele se refere; assim concluo baseando-me no fato de eu próprio mal dominar a angústia que se apodera de mim, cada vez que penso nestas coisas. Também eu fui arrastado para aquele mundo nebuloso, para esse mundo de sonhos onde, a cada instante, somos assustados pela nossa própria sombra. É em vão que, muitas e muitas vezes, lhe tenho tentado escapar; estou ainda incluído na galeria dos seus personagens como um espectro ameaçador, como uma acusação muda. Que estranho tudo isto! Ele envolveu tudo no maior mistério e, apesar disso, existe outro mistério mais profundo ainda: sou confidente e bem ilegítima foi a maneira como cheguei a sê-lo. Nunca conseguirei esquecer todo este assunto. Algumas vezes tenho pensado em falar-lhe dele. Mas para quê? - ou negaria tudo, sustentando que o diário não passa de uma tentativa poética, ou obrigar-me-ia ao silêncio o que, dada a forma como me tornei confidente, lhe não poderia recusar. Ai de mim, nada existe no mundo tão totalmente impregnado de sedução e tão maldito, como um segredo. Recebi de Cordélia u conjunto de cartas. Não sei se estará completo, mas reio recordar ter-me ela dado um dia a entender que, de moto próprio, havia suprimido algumas. Das que recebi fiz uma cópia que inserirei nas páginas do diário, passadas a limpo. É certo que estas cartas não têm data mas, ainda que a tivessem, isso não me seria de grande ajuda dado que no diário, à medida que prossegue, as datas vão rareando cada vez mais; sim, à exceção de um único caso, abandona toda e qualquer precisão nesse aspecto como se a história, embora representando uma realidade histórica, se fosse tornando qualitativamente tão importante na sua evolução, se fosse idealizando de tal modo que, por essa mesma razão, qualquer tipo de cronologia podia ser negligenciado. O que, por outro lado, me auxiliou muito foi o fato de existirem, em vários pontos do diário, algumas frases cuja importância, logo de início, não notei. Mas, considerando-as em função das cartas, compreendi que estas se baseiam nelas. Ser-me-á pois fácil incluir as cartas no lugar devido, dado que inserirei sempre uma carta no ponto em que se esboçou a sua razão de ser. A não me ter apercebido destes indícios, teria sido o causador de um mal-entendido, pois nunca me teria vindo à ideia que, em diferentes épocas, segundo probabilidades que fundamento no diário, as cartas sucederam-se tão próximas umas das outras que Cordélia parece ter chegado a receber várias no mesmo dia. Se eu tivesse seguido a minha primitiva ideia, sem dúvida que as teria distribuído de modo mais equitativo, nunca chegando assim a ter a menor noção do efeito por ele conseguido, graças à apaixonada energia com que se serviu deste meio para manter Cordélia no paroxismo da paixão. Além dos completos esclarecimentos sobre as suas relações com Cordélia, o diário contém ainda algumas pequenas descrições, intercaladas no resto. Tais descrições foram sempre assinaladas por ele com uma nota à margem. Não têm qualquer relação com a história de Cordélia, mas deram-me uma viva ideia do sentido de uma expressão muitas vezes por ele usada e que, anteriormente, eu não compreendia na sua totalidade: «é preciso ter sempre uma linha preparada para apanhar peixe». Se me tivesse chegado às mãos um volume precedente deste diário, teria provàvelmente encontrado várias outras de tais descrições a que, à margem, ele chama, em determinado ponto: actiones in distans; é ele próprio quem afirma que Cordélia lhe ocupava demasiado o espírito para ter o tempo necessário de pensar noutra coisa. Pouco depois de ter abandonado Cordélia, recebeu desta algumas cartas que devolveu sem abrir. Encontravam-se elas entre as que Cordélia me confiou, e dado que ela própria lhes quebrou o lacre, creio poder permitir-me copiá-las também. Nunca me falou do seu conteúdo mas, ao referir-se às suas relações com Johannes, costumava citar alguns versos de Goethe segundo creio, que, de acordo com a diversidade dos seus estados de espírito e os diferentes tons de voz por eles condicionados, pareciam significar várias coisas: Gehe, Verschmähe Die Treue, Die Reue Kommt nach. (Vai / desdenha / a fidelidade, / o remorso / virá depois). Eis as cartas: Johannes! Não te chamarei «meu» Johannes, pois sei bem que nunca o foste; bem punida estou por ter permitido à minha alma que se deleitasse nesse pensamento; e contudo, chamo-te meu; meu sedutor, meu enganador, meu inimigo, meu assassino, autor do meu infortúnio, túmulo da minha alegria, abismo da minha infelicidade. Chamo-te meu e a mim chamo tua, e tal como outrora te lisonjeava ouvi-la, a ti que orgulhosamente te inclinaste para me adorar, deve agora soar como uma maldição lançada sobre ti, uma maldição para toda a eternidade. Não te regozije com o pensamento de ter eu a intenção de te perseguir, de me armar com um punhal para excitar a tua troça! mas, para onde quer que fujas, ainda assim sou tua; vai até ao fim do mundo, ainda assim serei tua; dá o teu amor a centenas de outras, ainda assim sou tua; sim, mesmo à hora da morte serei ainda tua. A própria linguagem de que me sirvo contra ti deverá provar-te que sou tua. Tiveste a audácia de iludir um ser tão completamente que tudo te tornaste para esse ser, para mim, e que terei o mais infinito prazer em me tornar tua escrava pertenço-te, sou tua, tua maldição. Tua Cordélia Johannes! Havia um homem rico que possuía ovelhas e gado em grande quantidade; havia uma pobre rapariga que apenas possuía uma ovelha, uma ovelha que comia do seu pão e bebia da sua água. Tu eras o homem rico, rico de tudo o que de esplêndido existe sobre a terra; eu era a pobre rapariga que apenas possuía o seu amor. Tomaste-o e regozijaste-te com ele; depois o desejo acenou-te e sacrificaste o pouco que eu possuía; mas das tuas próprias riquezas nada pudeste sacrificar. Havia um homem que tinha animais em grande quantidade, grandes e pequenos; havia uma pobre rapariga que apenas possuía o seu amor. Tua Cordélia Johannes! Não haverá pois esperança alguma? Não despertará pois de novo o teu amor, nunca mais? Porque eu bem sei que me tiveste amor, muito embora não saiba o que me dá tal certeza. Esperarei, ainda que o tempo me pareça longo, esperarei até que estejas saciado do amor das outras, e então o teu amor por mim ressurgirá do túmulo, amar-te-ei então como sempre te amei, como outrora, oh! Johannes! Como outrora! Johannes! Representará essa insensível frieza contra mim a tua verdadeira natureza; o teu amor, as riquezas do teu coração seriam apenas mentira, fingimento; terás voltado agora a ser tal como és? Tem paciência para com o meu amor, perdoa-me por te amar ainda. Bem o sei, o meu amor é para ti um fardo; mas o tempo virá em que regressarás para junto da tua Cordélia. Tua Cordélia! Escuta esta palavra de súplica! Tua Cordélia! Tua Cordélia. Tua Cordélia Ainda que Cordélia não tenha estado à altura do que nela provoca a admiração pelo seu Johannes, claramente ressalta no entanto de tudo isto que não era desprovida de modulação. O seu estado de espírito manifesta-se claramente em cada uma das suas cartas, embora lhe tenha faltado certa clareza de expressão. Este é, principalmente, o caso da segunda carta, onde se adivinha, mais do que se compreende, o seu pensamento. Mas, quanto a mim, tal imperfeição só vem torná-la mais comovente ainda. 4 de Abril Prudência, bela desconhecida! Prudência! Não é coisa fácil descer de uma carruagem e, por vezes, equivale mesmo a um passo decisivo. Poderia emprestar-vos uma novela de Tieck onde veríeis que uma dama, ao desmontar do cavalo, se comprometeu de tal modo que esse fato veio a decidir toda a sua vida futura. Sucede também que os estribos das carruagens são, de ordinário, tão desajeitadamente feitos que se torna quase necessário renunciar a qualquer graciosidade e, em desespero de causa, arriscar um salto que vos lança nos braços do cocheiro ou de um criado. Sim, essa gente é invejável; quer-me parecer que vou tentar arranjar um lugar de criado numa casa onde haja jovens raparigas; é tão-fácil a um criado tornar-se confidente dos segredos de uma donzelinha. - Mas, rogo-vos, pelo amor de Deus, não salteis; sim, está já escuro; não vos incomodarei, limitar-me-ei a ficar debaixo deste reverbero, ser-vos-á impossível ver-me e, não é assim? Apenas se é tímido na medida em que se é visto, mas só se é visto na medida em que se vê; - assim, por solicitude para com o criado, que talvez não fosse capaz de resistir a um salto como o vosso, por solicitude para com o vestido de seda, idem por solicitude para com os folhos de renda, por solicitude para comigo, permiti a esse pé gentil cuja elegância admirei já, que tateie o mundo, correi o risco de confiardes nele, de saberá equilibrar-se, e se estremeceis um instante ao pensamento de ele não conseguir encontrar sítio onde pousar, se estremeceis ainda depois que o encontrou, então adiantai depressa o outro pé, pois quem poderia ser tão cruel que vos deixasse pairar nessa atitude, quem seria tão desairoso, tão indolente que se não apressasse perante a revelação do belo? Ou temeis talvez uma terceira pessoa, - o criado certamente não, e muito menos eu, pois que já admirei o pequenino pé, como sou naturalista, aprendi com Cuvier a tirar daí as mais seguras conclusões. Apressai-vos pois! Ah, como essa angústia aumenta a vossa beleza. Mas a angústia em si não é bela, só o é no instante em que nos apercebemos da energia que a ela se sobreleva. Perfeito! Que bem se firmou agora o pequenino pé. Já reparei que as jovens com pés pequenos sabem geralmente manter melhor o equilíbrio que aquelas cujos pés são maiores, largos como os do andarilho. Quem o poderia pensar? O fato vai contra tudo o que a experiência estabeleceu; ao saltar da carruagem são maiores as possibilidades de o vestido ficar preso que quando se desce tranquilamente. Mas na verdade é sempre um pouco grave para as jovens passear de carruagem; acabarão ainda por não poder sair. Perdem-se as rendas e os folhos, e é tudo! Ninguém viu coisa alguma; apenas se avista o perfil sombrio de um homem envolto até aos olhos numa capa; é impossível ver de onde vem ele, pois vos encandeia a luz do reverbero; passa por vós no momento em que vos preparais para dar entrada na casa. Precisamente no momento decisivo um olhar oblíquo é lançado sobre um objeto. Corais, o vosso peito enche-se demasiado para poder lançar fora o ar de uma só vez; há irritação no vosso olhar; um altivo desprezo; os vossos olhos, onde brilha uma lágrima, suplicam; lágrima e súplica são igualmente belas e aceito-as com igual direito, pois nada há que eu não possa representar. No entanto, escolho a crueldade - qual será o número da casa? Mas que vejo eu? A montra de uma casa de quinquilharia! Bela desconhecida, será talvez uma ação revoltante da minha parte, mas seguirei o caminho que se me abre ... Ela esqueceu já o que se passou, ah, sim! Quando se tem dezessete anos, quando, nessa idade feliz, se sai a fazer compras, quando se encontra um indizível prazer em cada um dos objetos, grandes ou pequenos, que a mão encontra, nessa idade o esquecimento é fácil. Ainda me não viu; estou na outra ponta do balcão, muito longe, à parte. Na parede oposta está suspenso um espelho; ela não repara, mas o espelho sim. Com que fidelidade soube ele captar a sua imagem; é como um escravo humilde que prova a sua dedicação pela fidelidade, um escravo para quem ela tem importância mas que nenhuma importância possui para ela, que pode ousar compreendê-la, mas não tomá-la. Este infortunado espelho, que tão bem sabe captar a sua imagem, mas não captá-la, este infortunado espelho que não pode guardar a sua imagem no segredo dos seus esconderijos furtando-a ao olhar do mundo inteiro, mas antes apenas sabe revelá-la à outros como, neste momento, a mim! Que suplício não seria para um homem se fosse assim a sua natureza. E contudo, não é certo que há muitas pessoas que assim são, que nada possuem a não ser no momento em que mostram aos outros a sua posse, que apenas captam a aparência das coisas e não a sua essência, que tudo perdem no momento em que esta se pretende mostrar, tal como este espelho perderia a sua imagem ao primeiro sopro com que ela pretendesse abrir-lhe o coração? Se um homem fosse incapaz de manter na memória uma imagem da beleza, nem sequer no instante da sua presença, ver-se-ia obrigado a desejar estar sempre afastado dela, nunca demasiado próximo para assim poder ver a beleza do que aperta nos braços, e que já não vê, mas poderia rever se se afastasse, e que afinal, no momento em que lhe é impossível ver esse objeto por estar próximo dele, no momento em que os seus lábios se unem num beijo, será mesmo assim visível para os olhos da sua alma... Ah! Como ela é bela! Pobre espelho, que suplício para ti, mas também que sorte por não saberes o que é o ciúme. A sua cabeça, perfeitamente oval, inclina-se um pouco para frente, o que lhe realça a fronte; esta se ergue, altiva e pura, sem de modo algum refletir as suas faculdades intelectuais. Os seus cabelos escuros emolduram terna e docemente a fronte. O seu rosto é como um fruto, arredondado e túmido; a pele é transparente e os meus olhos dizem-me que será, sob os dedos, de um macio de veludo. Os seus olhos - sim, ainda os não vi, escondem-se atrás de pálpebras cujas armas, pestanas onduladas e sedosas, representam um perigo para quem lhe procure o olhar. A sua cabeça é como a de uma madona, impregnada de pureza e inocência; inclina-se como a da Madona, mas sem se perder na contemplação do Único, há mobilidade na expressão do seu rosto. O que da contempla é a variedade, as múltiplas coisas sobre as quais lançam um reflexo as esplêndidas suntuosidades da terra. Tira uma luva para mostrar, ao espelho e a mim, a mão direita branca e bem esculpida, como uma obra de arte antiga, e sem qualquer ornamento, nem sequer uma simples aliança de ouro no anular - bravo! - Ergue os olhos e tudo se modifica, sem se modificar; a fronte é um pouco menos elevada, o rosto um pouco menos regularmente oval, mas mais vivo. Fala com o vendedor, está alegre, feliz e exuberante. Escolheu já um, dois, três objetos, pega num quarto, o segura na mão, os seus olhos baixam-se de novo, pergunta o preço, põe o objeto de lado sob a luva, trata-se certamente de um segredo, destinado a um - a um noivo?- mas ela não está noiva! Ah, bem sei, há muitas que não estão noivas e no entanto têm um namoro, muitas que estão noivas e no entanto não conhecem o amor... Deverei esquecê-la? Deverei deixá-la na paz da sua alegria? ... Vai para pagar, mas perdeu ou esqueceu a bolsa... Dá provàvelmente a sua direção, o que não quero ouvir, pois não desejo privar-me da surpresa; estou certo de voltá-la a encontrar na vida, e sei que a reconhecerei; talvez também ela me reconheça pois não é tão depressa que se esquece o meu olhar oblíquo. Então, quando, por um acaso, a voltar a encontrar onde menos o espere, a sua vez chegará. Se me reconhecer, se o seu olhar mo não assegurar imediatamente, decerto terei ocasião para olhá-la de lado, e prometo-vos que recordará a situação. Nada de impaciência, nada de avidez; o prazer deve ser bebido em lentos tragos; ela está predestinada, encontrá-la-ei de novo. 5 de Abril Assim é que eu gosto: sozinha, ao anoitecer, em Oestergade. Sim, bem vejo o criado que vos segue, e podeis ter a certeza de não julgar eu tão mal de vós a ponto de pensar que passeáveis só; acreditai-me, a minha experiência não podia deixar de, logo ao primeiro golpe de vista lançado à situação, me mostrar aquele rosto severo. Mas por que tanta pressa? Estamos apesar de tudo um pouco ansiosos, sentimos certo bater de coração que não resulta de um desejo impaciente de voltar a casa, mas de um impaciente temor que penetra todo o corpo com a sua doce inquietação e provoca o ritmo acelerado dos passos. - Mas que sensação deliciosa, sem preço, passear assim, sozinha - com o criado a pouca distância de vós... Temos dezesseis anos, já lemos muito, muitos romances entenda-se e, ao atravessarmos por acaso o quarto dos irmãos, surpreendemos uma frase no meio de uma conversa, entre eles e os seus amigos, uma frase acerca de Oestergade. Depois começamos a adejar por várias vezes ao redor deles no intuito de, se possível, obtermos mais completas informações. Mas em vão. De qualquer modo é necessário, como convém a uma rapariga já crescida, conhecer um pouco o mundo. Ah, se de improviso pudéssemos sair, na companhia do criado. Céus!- há o paizinho e a mãezinha, lembra-te da cara que eles fariam; e, além disso, que desculpa dar? Se se trata de uma recepção a ocasião não é boa, realiza-se um pouco cedo demais, pois ouvi August falar de nove, dez horas; o regresso fica para demasiado tarde e o mais certo é ser perseguida por qualquer galanteador. Quinta à tarde, ao voltar do teatro, seria na verdade uma excelente ocasião. Simplesmente, nesse caso, é sempre preciso ir de carruagem, e além disso temos de transportar também a Senhora Thomsen e as suas amáveis primas; ainda se fosse sozinha poderia abrir um pouco a janela e assim espreitar para o exterior. Contudo: o imprevisto acontece muitas vezes. Hoje, dizia-me a mãezinha: estou com medo que não consigas acabar a tempo o bordado para o dia de anos do paizinho, de modo que, para poderes trabalhar com toda a tranquilidade, vai para casa da tua tia Jette e fica lá até à hora do chá; depois o Jens te irá buscar. No fundo, a ideia não era de modo algum agradável, porque em casa da tia Jette uma pessoa aborrece-se de morte; mas depois volto sozinha, às nove horas, com o criado. E quando Jens chegar pode muito bem esperar até às dez menos um quarto e então, a caminho! Oh! E se eu encontrasse o Senhor meu irmão ou o Senhor August - não, antes não, talvez não seja tão desejável como me parece, porque então seria acompanhada até casa - não, obrigada! A liberdade acima de tudo - mas se os pudesse ver sem que eles me notassem... E então, minha jovenzinha, que vedes afinal, e que vos parece que vejo eu? Primeiro, a pequena touca que vos fica maravilhosamente e está em perfeita harmonia com a precipitação do vosso andar. Não é um chapéu, nem uma boina, antes uma espécie de touca. Mas, estou certo, não a trazíeis esta manhã, ao sair de casa. Foi o criado que vo-la trouxe ou tê-la-íeis pedido emprestada à tia Jette? - Passeais talvez incógnita. - Mas, quando queremos observar o que se passa à nossa volta, também não é conveniente deixar que o véu cubra todo o rosto. Ou talvez não se trate de um véu mas antes de uma renda larga. O escuro não me permite distingui-lo. Mas, seja o que for, esconde-vos a parte superior do rosto. O queixo é bastante belo, embora um tudo nada pontiagudo; a boca é pequena e entreabre-se; decerto porque ides demasiado depressa. Os dentes brancos de neve. E ainda bem que assim é. Os dentes têm uma importância capital, são como que um guarda do corpo que se esconde por detrás da sedutora doçura dos lábios. As faces brilham de saúde. - Se inclinásseis um pouco a cabeça para o lado seria talvez possível insinuar-me sob esse véu ou renda. Mas cuidado, um olhar assim, de baixo para cima, é mais perigoso que um olhar direto. É como na esgrima; e que arma haverá tão afiada, tão aguda, tão brilhante no seu movimento e, graças a tudo isto, tão perigosa como um olhar? Marca-se uma quarta alta, como diz o esgrimista, apara-se em segunda; quanto mais prestes a chegar está o ataque, tanto melhor. Quem poderá descrever tal instante? O adversário quase sente o golpe, é tocado, sim, é assim, mas tocado num ponto muito diferente do que esperava... Ela avança valorosamente, sem medo e sem mácula. Tende cuidado; aí vem alguém, baixai o véu, não deixeis que vos manche o seu olhar profano; não podeis calcular o que isso é; ser-vos-ia impossível, durante muito tempo, olvidar a abominável angústia com que ele vos atingiria - não destes por isso, mas eu bem vejo que ele abarcou a situação. O criado foi escolhido como primeiro alvo - sim, começais agora a ver as consequências de passear sozinha com um criado. O vosso perseguidor fê-lo cair. No fundo é ridículo, mas que ides agora fazer? Voltar atrás para ajudá-lo a levantar-se não é possível, passear com um criado todo sujo é desagradável, e passear completamente só é grave. Atenção, o monstro aproxima-se... Não me respondeis, mas olhai-me ao menos, será que o meu aspecto vos dá alguma razão de temor? Não causo impressão alguma, pareço um benévolo homenzinho, vindo de outro mundo. Nada nas minhas palavras vos pode incomodar, nada vos recorda a situação, não esboço um único movimento que vos possa ofender no mais íntimo aspecto. Estais ainda um pouco assustada, ainda não esquecestes o impulso com que se lançava para vós essa figura inquietante. Sentis um pouco de simpatia por mim, a minha timidez, a impedir-me de vos olhar de frente, dá-vos superioridade; isso vos regozija e empresta-vos segurança, estaríeis quase tentada a troçar-me. Seria quase capaz de apostar que, neste momento, teríeis a coragem de me passar o braço por cima dos ombros, se tal pensamento vos passasse pela cabeça... Viveis então em Stormgade. Cumprimentais-me fria e ràpidamente. Será apenas isto que mereci, eu que ajudei a libertar-vos de todo este problema? Arrependeis-vos, voltais atrás para agradecer a minha delicadeza, e estendeis-me a mão. - Por que empalidecer? Não é a minha voz a mesma, e a minha atitude, o meu olhar, não se mantêm ainda calmos e tranquilos? Este aperto de mão? Mas poderá acaso um aperto de mão significar alguma coisa? Sim, muito, minha donzelinha, muito, - antes de quinze dias ter-vos-ei explicado tudo, mas até lá manter-vos-eis na contradição: eu sou um homem benévolo que, como um cavalheiro, presta auxílio a uma jovem, e posso pois apertar-vos a mão como homem inofensivamente benévolo. 7 de Abril «Seja então segunda-feira, à uma hora, na Exposição». Muito bem, terei a honra de lá estar à uma hora menos um quarto. Um pequeno encontro marcado. No sábado tomei enfim uma resolução e decidi-me a ir visitar o meu amigo Adolph Bruun, quase sempre em viagem. Com esse fim em vista, dirijo-me, por volta das sete horas da tarde, a Vestergade onde, segundo me tinham dito, ele devia morar. Mas, no terceiro andar, onde cheguei quase sem fôlego, não o consegui encontrar. Prestes a descer a escada, os meus ouvidos são aflorados por uma melodiosa voz de mulher que diz, quase num murmúrio: «Seja então segunda-feira, à uma hora, na Exposição, - a essa hora as outras não estão, mas bem sabes que me não atrevo a receber-te em casa». O convite não me era dirigido mas sim a um mancebo que, zás, ei-lo que sai da porta tão depressa que os meus olhos, e muito menos as minhas pernas, o não conseguem alcançar. Ah! Porque não haverá gás nas escadas? Assim poderia talvez ter visto se valia a pena ser tão pontual. Porém, talvez eu nada tivesse ouvido se houvesse gás. O que existe, existe sempre pelo melhor dos motivos; sou e serei sempre um otimista... Mas qual será ela? Para falarmos como Dona Anna, a Exposição fervilha de raparigas. É exatamente uma hora menos um quarto. Bela desconhecida! Possa o vosso futuro ser, em todos os sentidos, tão pontual como eu; ou preferis talvez que nunca ele chegue com um quarto de hora de avanço? - como quiserdes; em tudo estou ao vosso serviço... «Feiticeira sedutora, fada ou bruxa, faz desaparecer a névoa em que te ocultas», manifesta-te, por certo te encontras já aqui, embora invisível aos meus olhos, revela-te, ou então ousarei talvez esperar uma manifestação. Haverá aqui várias pelo mesmo motivo que ela? É muito possível. Quem poderá penetrar os desígnios do homem, mesmo quando ele vai simplesmente a uma Exposição? - Eis uma jovem na primeira sala, e como ela se precipita, mais rápida que a má consciência perseguindo o pecador. Esquece-se de mostrar o seu bilhete de entrada, o porteiro vestido de vermelho fá-la parar. Mas, Deus do céu, que pressa! Deve ser ela. Por que este ardor intempestivo? Não é ainda uma hora e lembrai-vos que ides ao encontro do bem amado; será pois completamente desprovido de importância o modo como a pessoa se apresenta em tais ocasiões, ou será nelas que, como se costuma dizer, é preciso dar às pernas? Quando é alguém de sangue jovem e inocente como o dela que tem um encontro, lança-se a ele como um desesperado. Está completamente fora de si. Eu, pelo contrário, confortàvelmente sentado na minha poltrona, tenho diante dos olhos o panorama encantador de uma paisagem agreste... Que jovem diabólica! Voa através de todas as salas. Mas vejamos, é necessário ocultar um pouco os vossos desejos, recordai o que se diz à Menina Lisbeth: «Ai! Ai! Não é bonito para uma rapariga deixar ver assim os seus sentimentos». Enfim, claro, a entrevista com o mancebo é o que há de mais inocente. - Em geral, os apaixonados consideram um encontro como o mais belo dos instantes. Eu próprio me lembro ainda hoje, como se tivesse sido ontem, da primeira vez em que voei para o sítio combinado, com o coração a transbordar das desconhecidas alegrias que me esperavam, recordo a primeira vez em que fiz o sinal convencionado, a primeira vez em que uma janela se abriu, a primeira vez em que a portinha do jardim foi aberta pela mão invisível de uma jovem que se escondia ao abri-la, a primeira vez em que, numa clara noite de verão, ocultei uma donzela debaixo da minha capa. Contudo, esta opinião comporta muitas ilusões. A terceira pessoa, que se mantém calma, nem sempre considera que os apaixonados tenham grande encanto em tais instantes. Fui testemunha de várias entrevistas em que, embora a rapariga fosse encantadora e o mancebo belo, a impressão de conjunto era quase repulsiva, e a própria entrevista muito longe de ter beleza; é certo que os apaixonados devem, sem dúvida, ter pensado o contrário. Em determinado sentido, se ganha com a experiência; pois se é certo que perdemos a doce inquietação provocada pelo desejo impaciente, adquire-se a atitude que contribui para tornar o instante verdadeiramente belo. Sinto-me por vezes vexado ao ver um homem, em semelhante circunstância, de tal modo perturbado que, por puro amor, é tomado de delirium tremens. Mas, cada um contenta-se com o que pode. Em vez de ter suficiente ponderação para gozar da inquietude da beldade, para deixar essa inquietude inflamar a sua beleza e levar a jovem ao rubro da paixão, ele apenas produz uma confusão sem graciosidade, o que o não impede de voltar feliz para casa, imaginando que viveu algo de maravilhoso. - Mas que diabo aconteceu a esse homem, já são quase duas horas. Ah, sim, que magnífica gente estes apaixonados, não há dúvida! Um valdevinos destes que faz esperar uma rapariga! Não, assim nunca. Creio poder-me gabar de ser um homem muito mais digno de confiança! Melhor será sem dúvida abordá-la agora que, pela quinta vez, ela passa à minha frente. «Perdoai a minha audácia, bela Menina, sem dúvida procurais aqui a vossa família, já por várias vezes passastes por mim ràpidamente e, ao seguir-vos com os olhos, notei que paráveis sempre na penúltima sala. Não sabeis talvez que para lá dessa há outra, onde é possível que se encontre quem procurais». Ela faz-me uma reverência que valoriza a sua elegância. A ocasião é favorável, sinto-me feliz por o mancebo não vir, pois que se pesca sempre melhor em águas turvas; quando uma jovem é presa da emoção podemos arriscar com proveito muitas coisas que, de outro modo, resultariam vãs. Pus na reverência que lhe dirigi a medida exata que se pode esperar de um estranho, estou de novo instalado na minha poltrona, encaro a paisagem agreste e observo-a. Segui-la imediatamente seria demasiado arriscado, poderia parecer indiscreto e ela ficaria desde logo de sobreaviso. Neste momento ela pensa que foi por compaixão que a abordei, estou pois nas suas boas graças. - Não há quem quer que seja na última sala, bem o sei. A solidão terá sobre ela uma boa influência; enquanto houver gente ao redor, estará inquieta; sozinha, acalmar-se-á, Tinha razão, ficou lá. Dentro em pouco entrarei na sala, de passagem; tenho ainda todo o direito a uma réplica, sim, ela quase me deve uma saudação. - Está sentada. Pobre pequena, que ar melancólico tem; chorou ou, pelo menos, chegaram-lhe as lágrimas aos olhos. É revoltante - provocar as lágrimas a uma jovem como esta! Mas tranquiliza-te, serás vingada, eu te vingarei, e ele aprenderá o que esperar significa. Como é bela, agora que se acalmaram as várias tempestades e ela repousa num estado de espírito. A sua natureza é melancolia e harmonia na dor. Como ela é gentil. Enverga um vestido de viagem e, no entanto, não estava de modo algum para partir; vestiu-o para ir em busca da alegria, e agora o vestido simboliza a sua dor, pois ela é como aquele de quem a alegria se despede. Parece ela dizer adeus para sempre ao bem amado. Que ele desapareça pois! - A situação é favorável, o instante chama-me. O que importa agora é exprimir-me de modo a dar a ideia de pensar que ela procurava a família ou pessoas amigas, mas fazendo-o com o calor necessário para que cada palavra se harmonize com os seus sentimentos, e terei então uma boa possibilidade de me insinuar nos seus pensamentos. - Diabos levem o tratante - esse tipo que se aproxima é sem dúvida ele. Vejam-me este desmancha-prazeres, agora que eu acabava de preparar tudo como queria. Bom, bom, ainda conseguirei obter alguma coisa de tudo isto. É apenas necessário que me mantenha no quadro, que encontre o meu lugar na situação. Assim que ela me aviste será levada a rir-se de mim por ter eu pensado que ela tentava encontrar a família, quando ela procurava uma coisa muito diferente. Tal sorriso torna-me um confidente, sempre é alguma coisa. - Mil agradecimentos, minha filha, esse sorriso tem para mim mais valor do que tu pensas, é um começo, e começar é sempre o mais difícil. Agora conhecemo-nos e o nosso conhecimento tem por base uma situação picante; isso me basta até nova ordem. Não ficareis aqui mais de uma hora, creio; dentro de duas horas saberei quem sois, pois para que outro fim julgais que a polícia mantém fichas de recenseamento? 9 de Abril Estarei cego? Terá a minha alma perdido o seu poder visual? Vi-a, mas é como se tivesse sido uma revelação celeste, pois a sua imagem de novo desapareceu completamente para mim, e é em vão que dispenso todas as energias da minha alma para evocar. Se alguma vez a voltasse a ver, reconhecê-la-ia imediatamente, ainda que fosse entre centenas de outras. Agora ela desapareceu e, com todo o seu desejo, a minha alma procura em vão alcançá-la. - Passeava eu em Langelinie, aparentemente desatento e sem dar conta de quem me rodeava, quando de súbito a avistei. O meu olhar fixou-se inabalavelmente sobre ela, não obedecendo já à vontade do seu dono; não conseguia imprimir-lhe qualquer movimento a fim de abarcar o objeto que desejava ver; os olhos fixos em frente, não via. Como um esgrimista que apara um golpe, o meu olhar imobilizava-se, como hipnotizado, na direção tornada. Impossível baixá-lo, impossível erguê-lo, impossível desviá-lo por mim próprio, impossível ver, porque via demasiado. A única coisa que recordo é que ela trazia uma capa verde, e é tudo; eis o que se pode chamar tomar a nuvem por Juno; ela escapou-me; tal como José à mulher de Putífar, deixando-me apenas a sua capa. Estava com uma senhora já de idade que parecia ser sua mãe. Essa, posso-a descrever dos pés à cabeça, e isto muito embora, no fundo, quase a não tenha olhado e, quando muito, apenas lhe tenha dado atenção de passagem. Assim acontecem as coisas. A jovem impressionou-me, esqueci-a; a outra não me causou qualquer impressão, e é a que melhor consigo lembrar. 11 de Abril Continuo ainda embaraçado na mesma contradição. Sei que a vi, mas sei também que a esqueci de novo, mas de um modo a que não traz conforto a breve recordação que me resta. Como se se encontrasse em jogo o meu bem-estar, chamo essa imagem com inquietação e ardor, e contudo ela não se mostra, e seria quase capaz de arrancar os olhos a fim de os punir pela sua falta de memória. Após ter-me enraivecido de impaciência, e tendo-se restabelecido em mim a calma, é então como se um pressentimento e uma recordação tecessem uma imagem que, contudo, não chega a tomar forma para mim, porque a não consigo imobilizar num conjunto; ela é como desenho num tecido leve, desenho mais claro que fundo, e que não conseguimos ver por ser demasiado diáfano. - Trata-se de uma disposição estranha mas que no entanto não deixa de, em si própria, ter algo de agradável, pois me convence de que sou ainda jovem. Outra consideração me pode também revelar a mesma coisa: é sempre entre as donzelas que procuro a minha presa, e não entre as mulheres jovens. Uma mulher tem menos natural, mais coquetterie, as relações com ela não são belas, nem interessantes, mas sim picantes; e o picante vem sempre em último lugar. - Nunca esperei ser capaz de voltar a saborear estas primícias de uma paixão. Sucumbi ao amor, obtive aquilo a que os nadadores chamam uma passagem, não é pois de espantar que me sinta um pouco perplexo. Tanto melhor, vejo nisto a promessa de um prazer maior. 14 de Abril Já não me reconheço. Frente às tempestades da paixão o meu espírito é como um mar enraivecido. Se alguém pudesse surpreender a minha alma em tal situação, julgaria ver uma barca mergulhando a pique no mar, como se, na sua terrível precipitação, a sua rota marcasse o fundo do abismo. Não veria que, no cimo do mastro, vigia um marinheiro. Forças frenéticas, erguei-vos, ponde-vos em movimento; ó potências da paixão, ainda que o choque das vossas vagas conseguisse lançar a espuma até às nuvens, mesmo assim não seríeis capazes de vos erguer acima da minha cabeça; mantenho-me tranquilo como o Rei das falésias. Quase não consigo firmar os pés; como ave marinha tento em vão mergulhar no mar tempestuoso do meu espírito. E no entanto, tal tempestade é o meu elemento, nela edifico como Alcedo ispida constrói o seu ninho sobre o mar. Os perus incham de raiva perante a cor vermelha, e o mesmo sucede comigo quando vejo verde, de cada vez que vejo uma capa verde; e porque muitas vezes os meus olhos me enganam, acontece mesmo malograrem-se todas as minhas esperanças à vista de um maqueiro do hospital Frederico. 20 de Abril Refrear-se é uma condição capital em qualquer prazer. Não espero vir a ter tão depressa informações acerca da jovem que de tal modo preenche a minha alma e todos os pensamentos que alimentam o meu pesar. Porém, manter-me-ei tranquilo; porque há também doçura neste estado de emoção sombrio e misterioso, se bem que forte. Sempre me agradou, nas noites de luar, passear de barco num ou outro dos nossos deliciosos lagos. Recolho então vela e remos, desmonto o leme, deito-me ao comprido e olho a abóbada celeste. E quando as vagas embalam o barco no seu seio, quando as nuvens voam ao sabor do vento e escondem um instante a lua para logo de novo a revelarem, é quando, apesar de todo este movimento, eu encontro o repouso; o balançar das vagas acalma-me, o ruído que produzem embatendo contra o barco soa como uma monótona canção de embalar; o rápido perpassar das nuvens, o mudar constante de luz e sombra embriagam-me, e, de olhos abertos, sonho. É deste modo que também agora me reclino, recolho as velas, desmonto o leme; nos seus braços me embalam o desejo e uma esperança impaciente; desejo e esperança que se vão acalmando cada vez mais, que, cada vez mais, me levam a transportes de alegria; cuidam-me como a uma criança, sobre mim ergue-se em abóbada o céu da esperança, a imagem da jovem paira ràpidamente diante dos meus olhos como a lua indecisa, deslumbrando-me agora com a sua luz, logo, com a sua sombra. Que prazer ser assim sacudido sobre um mar agitado, - que prazer ser sacudido em si próprio. 21 de Abril Os dias passam e nada de novo me trazem. Mais do que nunca me dão prazer as jovens e, no entanto, não tenho o desejo do prazer. É ela quem, por toda a parte, busco. E isso me torna, muitas vezes, pouco imparcial, perturba-me a vista, enerva o meu prazer. Está agora prestes a chegar o tempo ameno em que, ao percorrer as ruas e as praças, se acumulam pequenas dívidas que no inverno, na vida mundana, é muitas vezes necessário pagar por bom preço; porque uma jovem pode esquecer muitas coisas, mas nunca uma situação. É certo que a vida mundana nos relaciona com o belo sexo, mas não reside aí o necessário para iniciar a aventura. Na vida mundana toda a jovem está preparada, a situação é desprovida de recursos e, porque já muitas vezes se criou a mesma situação, a jovem não recebe dela qualquer emoção voluptuosa. Na rua ela sente-se à vontade, e eis porque tudo produz um efeito mais forte, tudo é como que mais enigmático. Darei 100 rixdales pelo sorriso de uma jovem numa situação de rua, mas nem sequer 10 por um aperto de mão em sociedade; trata-se de valores de espécies em tudo diferentes. Iniciada a aventura, procuramos na sociedade a jovem em causa. Temos com ela entendimentos secretos e tentadores; é esse o mais eficaz dos estimulantes que conheço. Ela não ousa falar de tais entendimentos, mas pensa neles; não sabe se foi ou não esquecida; e, em breve, a poderemos conduzir a uma mais íntima perturbação. Temo não conseguir acumular muitas de tais dívidas este amo; esta jovem ocupa demasiado o meu espírito. Em certo sentido, os meus lucros serão magros, mas tenho, em contrapartida, uma oportunidade de ganhar o prêmio grande. 5 de Maio Demoníaco acaso! Nunca te amaldiçoei por teres surgido, amaldiçoo-te porque, em absoluto, te não mostras. Ou será uma nova invenção Tua, ser inconcebível, estéril mãe de tudo, única coisa que resta dessa época em que a necessidade deu à luz a liberdade, e em que a liberdade Se deixou iludir para regressar ao seio da mãe? Demoníaco acaso! Tu, meu único confidente, único ser que julgo digno de ser meu aliado e meu inimigo, sempre idêntico malgrado as tuas diferenças, sempre inconcebível, sempre um enigma! Tu, a quem amo com toda a minha alma simpatizante, tu, a cuja imagem e semelhança me criei a mim próprio, porque não apareces? Não mendigo, não te suplico humildemente que te mostres deste ou daquele modo, porque tal culto seria uma idolatria, e pouco agradável para ti. Desafio-te ao combate; porque te não mostras? Ou será que parou o pêndulo do universo: será que foi resolvido o teu enigma e te lançaste, tu também, nas águas do eterno? Terrível pensamento! O mundo, de fastio, ficaria parado! Demoníaco acaso! Eu te espero. Não pretendo vencer-te com princípios, nem com isso a que os imbecis chamam caráter; não, eu quero sonhar-te! Não quero ser um poeta para os outros; mostra-te, pois em sonhos te crio, e devorarei o meu próprio poema, será esse meu único alimento. Ou considerar-me-ás indigno? Como a baiadeira que dança para glória do seu deus, me consagrei ao teu serviço; leve no corpo e no vestir, ágil, desarmado, renuncio a tudo; nada possuo, nada desejo possuir; nada amo, nada tenho a perder mas, graças a isto, não me terei tornado mais digno de ti, de ti que, sem dúvida, já de há muito te cansaste de arrancar aos homens o que eles amam, enfadado com os seus suspiros cobardes e as suas cobardes preces? Surpreende-me, estou pronto, lutemos, não por um prêmio, apenas pela honra. Deixa que a veja, apresenta-me uma oportunidade que pareça impossível, mostra-me entre as sombras do reino dos mortos, e eu a trarei de novo à vida; que ela me odeie, que me despreze, que use para comigo da maior indiferença, que ame outro, nada temo; mas faz mover estas águas paradas, interrompe o silêncio. Matar-me assim de fome é uma vergonha para ti, pois imaginas ser mais forte do que eu. 6 de Maio A primavera chega; tudo se prepara para desabrochar, e as jovens também. As capas são postas de lado, e a minha capa verde estará também talvez já arrumada. Eis o que resulta de travar conhecimento com uma jovem na rua, e não em sociedade, onde logo se fica a saber o seu nome e a que família pertence, onde mora e se está noiva. Este último ponto tem uma enorme importância, como informação, para todos os pretendentes sérios e ponderados, que nunca poderiam ter a ideia de se apaixonarem por uma jovem já prometida. No meu lugar, um animal como este se sentiria em mortais embaraços, e ficaria completamente aniquilado se os seus esforços na procura de informações fossem coroados de êxito e se, além disso, viesse a saber que ela estava noiva. A mim, porem, tudo isto me traz poucos cuidados. A questão dos esponsais apenas constitui uma dificuldade cômica. E eu não temo nem as dificuldades cômicas, nem mesmo as que são trágicas; de entre elas, as únicas que receio são as dificuldades enfadonhas. Até agora não fui capaz de conseguir uma única informação, embora esteja certo de nada ter negligenciado e me ter visto por várias vezes obrigado a reconhecer a verdade das palavras do poeta: Nox et hiems longaeque viae, saevique dolores Dolores his castris, et labor omnis inest. (Noite e inverno e longa caminhada e ingentes sofrimentos, / Sofrimentos e toda espécie de fadiga há nestes acampamentos.) Provàvelmente ela não é sequer de Copenhague, mas do campo talvez, talvez, é de se ficar doido de raiva com todos estes talvez, e quantos mais talvez aparecem, mais o vou ficando. Tenho sempre o dinheiro a postos para fazer a viagem. Em vão a busco no teatro, nos concertos, nos bailes, pelas alamedas. Em determinado sentido isso me causa prazer; em geral, uma jovem que passa muito do seu tempo em tais divertimentos não merece ser conquistada; falta-lhe, na maior parte dos casos, o caráter primitivo que, para mim, constitui sempre uma condição sine qua non. É mais provável encontrar uma Preciosa entre os Ciganos, que nesses jardins zoológicos onde as donzelas são postas em leilão - isto dito com a maior inocência, compreenda-se! 12 de Maio Vamos, minha filha, porque não te deixaste ficar tranquilamente abrigada na porta-cocheira? Não há absolutamente nada a apontar a uma jovem que aí procura abrigo contra a chuva. Eu próprio o faço quando não trago chapéu de chuva, e mesmo às vezes quando tenho um comigo, como, por exemplo, agora. Posso aliás nomear muitas respeitáveis senhoras que não hesitaram em fazê-la. Fica-se tranquilamente, de costas voltadas para a rua para que as pessoas que passam não possam sequer saber se nos abrigamos ou se nos preparamos para entrar na casa. Em contra partida, é imprudente esconder-se atrás de uma porta entreaberta, sobretudo por causa das consequências; quanto mais uma pessoa se esconde, tanto mais se torna desagradável ser surpreendida. Mas, se nos escondemos. o melhor é ficar-se quieto, entregue à guarda do gênio bom e de todos os anjos; é sobretudo muito importante não espreitar para fora - a fim de ver se a chuva parou. Quando se pretende sabê-lo dá-se com firmeza um passo em frente e olha-se o céu com ar sério. Mas quando alguém espreita com um pouco de curiosidade, timidamente, com ansiedade e sem convicção, e logo se recolhe rapidamente - até uma criança compreenderia esse movimento, chamam-lhe o jogo das escondidas. E eu, que participo em todos os jogos, poderia abster-me? Iria calar-me quando me interpelam?... Não julgueis que alimento a vosso respeito qualquer pensamento ofensivo; bem sei que não tínheis qualquer ideia preconcebida ao espreitar, o movimento foi feito da maneira mais inocente. Mas nem sequer no terreno da imaginação se deve desafiar-me; nem o meu nome nem a minha boa reputação o consentiriam. Além disso fostes vós quem começou. Aconselho-vos a nunca falardes a ninguém deste incidente; o dano seria vosso. E que poderia eu fazer senão o que faria qualquer cavalheiro no meu lugar? - oferecer-vos o meu guarda-chuva? Mas onde se meteu ela? Magnífico! Escondeu-se na entrada da casa do porteiro - é uma jovem, a mais encantadora, jovial e alegre que se pode imaginar. - «Talvez me pudésseis dizer onde se encontra a jovem senhora que, há apenas um instante, espreitava por esta porta e que aparentemente precisava de um chapéu de chuva. É a ela que procuramos, o meu guarda-chuva e eu». E vós rides - permitis talvez que vos envie amanhã o meu criado para que lho entregueis, ou preferis que vos arranje uma carruagem? - ora essa, não há de quê, é a mais natural das delicadezas. - Já há muito tempo que não via uma rapariga tão alegre como esta; o seu olhar é tão infantil e, no entanto, tão decidido, a sua maneira de ser tão encantadora, tão casta e, contudo, é curiosa. - Vai em paz, minha filha, se não existisse uma capa verde teria eu talvez o desejo de travar um conhecimento mais íntimo. - Vejo-a passar pela Store Köbmagergade. Como é inocente e confiante, sem a menor afetação. Vejam como ela caminha no seu passo ligeiro, como agita a cabeça - mas a capa verde exige abnegação. 15 de Maio Feliz acaso! Como te agradeço! Vi-a, direita e orgulhosa, misteriosa e pensativa como um abeto que, de um só jato, como um pensamento solitário, brota do mais profundo da terra, e se eleva para o céu, enigmático também para si próprio, um todo indivisível. A faia ornamenta-se com uma coroa cujas folhas podem contar o que abaixo delas se passa; o abeto não tem coroa, não tem história, mantém-se enigmático para si próprio - e assim estava ela. Escondia-se em si própria, brotava do fundo de si própria, e havia nela um orgulho repousante semelhante ao voa usado do abeto, embora este esteja preso ao solo. Espalhava-se sobre ela uma melancolia, semelhante ao arrulhar do pombo, um profundo desejo sem objeto. Ela era um enigma que enigmàticamente possuía a sua própria solução, um segredo, e que podem valer todos os segredos dos diplomatas perante este? Perante este enigma? E que palavra poderá ser tão bela como a que o resolve? Como a linguagem é cheia de significado, como é concisa: resolver - quanta ambiguidade nesta palavra! Que beleza e força ela possui em todas as combinações em que intervém! Tal como a riqueza da alma é um enigma, também, enquanto a língua se não solta e assim o enigma se resolve, é a jovem um enigma. - Feliz acaso! - como te agradeço! Se a tivesse visto no inverno, ela estaria talvez envolta na sua capa verde, estaria talvez transida pelo frio, e as intempéries da natureza teriam tomado menor a sua beleza. Mas agora, que felicidade! Avistei-a enfim no início do verão, na mais bela época do ano e à luz de um entardecer. O inverno tem também as suas vantagens. Um salão de dança, brilhantemente iluminado, é um quadro que pode favorecer uma jovem em vestido de baile; mas é raro que ela aí apareça no ponto mais perfeito do seu encanto, precisamente porque tudo lho parece exigir, exigência que, quer ela lhe ceda quer não, cria um efeito desagradável; por outro lado, tudo contribui para dar a impressão do caráter efêmero da situação, da sua vacuidade, e provoca uma impaciência que torna o prazer menos agradável. Há dias em que não seria capaz de passar sem um salão de baile, pois me compraz o seu luxo, a sua inapreciável superabundância de juventude e beleza, e o seu entrechocar de forças de todas as naturezas; mas o que experimento então não é tanto o prazer, antes mergulho no campo das possibilidades. Não é uma única beldade que nos mantém presos ao seu encanto, mas um conjunto; paira diante dos nossos olhos uma visão em que todas aquelas figuras femininas se confundem, e em que todos os movimentos buscam qualquer coisa, o repouso numa única imagem que se não vê. Era no caminho que vai de Nörreport a OEsterport; aproximavam-se as seis e meia. O sol perdera já a sua força, dela apenas restava a recordação numa claridade doce que banhava a paisagem. A natureza respirava com maior liberdade. O lago estava calmo, brilhante como um espelho. As calmas moradias de Blegdammen refletiam-se na água que, até grande distância da margem, se apresentava sombria como metal. O caminho e os edifícios do outro lado eram fracamente iluminados pelos raios de sol. No céu, claro e puro, apenas uma nuvem tênue deslizava furtivamente, perceptível sobretudo quando se fixavam os olhos no lago, em cujo espelho desaparecia pouco a pouco. Nem uma folha mexia. - Era ela. Os meus olhos não me enganaram, se bem que a capa verde o tenha feito. Embora já há tanto tempo o esperasse, foi-me impossível dominar uma certa emoção cujo subir e tombar eram como os da cotovia quando, rasando os terrenos vizinhos, se elevava e logo se deixava tombar, cantando. Estava só. Esqueci já como estava vestida, mas agora possuo uma imagem dela. Estava só, aparentemente mergulhada não em si própria, mas nos seus próprios pensamentos. Não pensava, mas o trabalho silencioso dos pensamentos tecia para ela uma imagem de desejos e de pressentimentos, imagem inexplicável como o são os múltiplos suspiros de uma donzela. Estava na flor da sua idade. Neste sentido, uma jovem não se desenvolve como um rapaz, ela não cresce, nasce. Um rapaz começa imediatamente a desenvolver-se, o que demora muito tempo; uma donzela nasce durante muito tempo e nasce mulher feita, mas o instante desse nascimento chega tarde. É por isso que ela nasce duas vezes, e a segunda é quando se casa, ou melhor, é nesse instante que ela cessa de nascer, é apenas nesse momento que ela nasceu. Não foi apenas Minerva que brotou, acabada e perfeita, do cérebro de Júpiter; não foi apenas Venus que, em todo o seu encanto, saiu das ondas do mar; toda a donzela, cuja feminilidade não foi ainda - corrompida por aquilo a que se chama desenvolvimento, é também assim. Ela não desperta por gradações sucessivas, mas de uma só vez; e assim, tanto mais sonhará, desde que as pessoas não sejam tão estúpidas que a acordem demasiado cedo. Esse sonhar é uma prodigiosa riqueza. - Estava pois ocupada, não consigo própria, mas em si própria, e essa ocupação era, também ela, repousante e calma. É assim que uma jovem é rica, e basta aflorar essa riqueza para nos tomarmos ricos também. Ela é rica ignorando que possui seja o que for; mas é rica, pois ela é, em si própria, um tesouro. Uma doce paz reinava sobre ela, e um pouco de melancolia também. Era fácil sopesá-la com o olhar, leve como uma Psique transportada por gênios, sim, mais leve ainda, pois ela própria se transportava. Podem os doutrinários discutir a Assunção, não me parece ela inconcebível porque a Madona não era já deste mundo; mas a leveza de uma jovem, essa sim é ininteligível, desafia as leis da gravidade. - Ela não reparava em coisa alguma e, por essa mesma razão, ignorava que alguém reparava nela. Eu, mantinha-me a grande distância e bebia a sua imagem com os olhos. Caminhava lentamente, nenhuma pressa perturbava a sua calma ou a paz das coisas em seu redor. Um moço pescava, sentado à beira do lago; e ela parou, olhando a superfície da água e a pequena boia. Não havia caminhado depressa, mas procurou refrescar-se um pouco; desfez o nó de um pequeno lenço que, sob o xaile, trazia à volta do pescoço; um colo branco de neve, e no entanto quente e cheio, foi acariciado por uma brisa leve vinda do lago. O moço não parecia contente por ser observado no seu trabalho de pescador e, tendo-se voltado, olhava-a com um ar assaz fleumático. A sua figura era na verdade ridícula e não posso censurá-la por ter acabado por se rir dele. E que juventude no seu riso; estou certo de que se estivesse sozinha com o moço, não temeria bater-se com ele. Os seus olhos eram grandes e radiosos; observando-os com mais atenção, notava-se neles um brilho sombrio a deixar adivinhar profundezas insondáveis porque era impossível penetrar neles; eram puros e inocentes, doces e calmos, cheios de alegria quando sorriam. O nariz era finamente arqueado e, quando a olhava de perfil, como que se recolhia na fronte, tornando-se assim menor e um tudo nada mais arrebitado. Recomeçou a caminhar, e seguia-a. Felizmente que havia várias outros passeantes naquele caminho; trocando algumas palavras com um ou outro de entre eles, deixava-a tomar algum avanço, voltando a alcançá-la pouco depois, mas evitando assim a necessidade de caminhar, a distância, tão lentamente como ela. Dirigia-se para OEsterport. Desejava vê-la de mais perto sem eu próprio ser visto. Na curva do caminho há uma casa onde poderia ter a oportunidade de consegui-lo. Conhecia os donos e bastou-me pois fazer-lhes uma visita. Passei por ela a passos largos, não tendo de modo algum o ar de me interessar por ela. Adiantei-me um bom troço de estrada, dirigi uma saudação geral à família e apoderei-me da janela que dá para o caminho. Ela aproximava-se e eu olhava-a, olhava-a, enquanto continuava a tagarelar com os convidados que tomavam chá na sala. O seu modo de andar em breve me convenceu que ela não frequentara os cursos de uma escola de dança de uma importância por aí além e, no entanto, tal andar era impregnado de certo orgulho e de uma nobreza simples, mas também de certa inconsciência de si própria. Voltei a vê-la ainda uma vez, sem que de modo algum o tivesse esperado. Da janela, a vista não alcançava muito longe, na estrada, mas podia ver uma pequena ponte sobre o lago e, com grande espanto meu, ali a descubro de novo. Vem-me à ideia que ela habita talvez nas redondezas, que a sua família pode ter alugado por aqui algum pequeno apartamento durante o verão. Começava já a lamentar a minha visita temendo que ela voltasse atrás e a perdesse de vista, porque o fato de ela ter aparecido na outra extremidade da ponte era como um sinal de que ela ia desaparecer da minha vida, - eis senão quando ela volta a aparecer outra vez, e bem perto. Acabava de passar diante da casa; rápido, agarro no chapéu e na bengala para tentar ultrapassá-la ainda várias vezes voltando em seguida atrás, para segui-la até descobrir onde ela mora. - Mas na minha pressa, tenho a pouca sorte de tropeçar com uma senhora que servia o chá à companhia. Ergue-se um grito terrível, - e ali fico eu com o chapéu e a bengala nas mãos, pensando apenas em me escapar. E, para dar novo aspecto às coisas e arranjar um motivo para a minha retirada, exclamo pateticamente: quero, como Caim, exilar-me destes lugares que viram derramar este chá. Mas tudo parecia conspirar contra mim; o dono da casa tem a infeliz ideia de querer completar a minha observação e jura pelos seus deuses que me não será permitido partir antes de ter tomado uma chávena de chá, sem eu próprio ter oferecido às senhoras o chá derramado, e assim tudo reparar. Completamente convencido como estava de que, naquelas circunstâncias, o meu anfitrião consideraria uma delicadeza chegar mesmo a vias de fato, não havia outra coisa a fazer senão ficar. - Entretanto, ela desaparecera. 16 de Maio Como é belo estar apaixonado e como é interessante saber que se está. Eis a diferença. Poderá irritar-me pensar que, pela segunda vez, ela desapareceu diante dos meus olhos. Mas, em determinado sentido, isso me dá prazer. A imagem que dela possuo, parece ser uma imagem ora real, ora ideal, da sua figura. Evoco agora essa imagem perante os meus olhos; mas é justamente porque representa a realidade, ou porque a realidade lhe foi causa, que ela possui certo encanto. Não sinto qualquer impaciência pois ela é certamente de Copenhague e, de momento, isso me basta. Esta possibilidade constitui a condição para que a sua imagem possa realmente aparecer - e é necessário beber o prazer a lentos tragos. E como não estaria tranquilo, eu que ouso considerar-me o filho dileto dos deuses, a quem coube a rara fortuna de se apaixonar uma vez mais? É no entanto algo que nenhuma arte, nenhum estudo, pode fazer desabrochar; é uma dádiva. Mas se consegui fazer nascer um novo amor, quero também ver durante quanto tempo conseguirei mantê-lo. Tratá-lo-ei com maior carinho que aquele que dei ao meu primeiro amor. A sorte não nos bafeja muitas vezes, devemos pois aproveitá-la o mais possível quando se apresenta; o mal está em que não é de modo algum difícil seduzir uma jovem, mas sim encontrar uma que valha a pena ser seduzida. - O amor possui muitos mistérios e, no primeiro, também os há, embora de importância secundária - a maior parte das pessoas lança-se para a frente de olhos fechados, comprometendo-se num noivado ou fazendo qualquer outra parvoíce, e pronto, em menos de um nada tudo está acabado, e ficam sem saber nem o que ganharam, nem o que perderam. Já por duas vezes que ela me apareceu e desapareceu; significa isto que, em breve, aparecerá, com mais frequência. José, tendo explicado o sonho do Faraó, acrescenta: se ele se repetiu por duas vezes é porque o fato estás prestes a cumprir-se. Deveria ser interessante podermos ver, com alguma antecedência, as forças cujo aparecimento condiciona o conteúdo da existência. Agora a sua vida decorre tranquilamente; não tem ainda a menor suspeita da minha existência, muito menos do que se passa em mim, e menos ainda da segurança com que os meus pensamentos penetram o seu futuro; porque a minha alma anseia cada vez mais pela realidade e assim se vai, cada vez mais, fortalecendo. Quando, à primeira vista, uma jovem me causa uma emoção suficientemente profunda para provocar a imagem do ideal, a realidade não é, na maior parte dos casos, particularmente desejável; mas se ela o faz, por muito experimentados que sejamos, quase sempre nos domina a nossa boa fortuna. Àquele que não tem então uma grande segurança e não ousa confiar nos seus olhos e na sua vitória, aconselharei sempre que arrisque o ataque logo nesse primeiro estado em que, precisamente porque se sente dominado, possui forças sobrenaturais; pois tal domínio é uma estranha mistura de simpatia e egoísmo. Mas perderá assim um prazer; porque não poderá gozar a situação, dado que ele próprio se encontra englobado, escondido nela. É difícil dizer o que é mais belo, fácil dizer o que é mais interessante. Mas é sempre bom manter a linha tão tensa quanto possível. No fundo, é esse o verdadeiro prazer e, quanto ao dos outros, por certo que o ignoro. A simples posse pouca importância tem, e os meios de que essa espécie de amantes se serve são, no geral, bastante medíocres; não desdenham utilizar o dinheiro, o poder, a influência de outrem, os soporíferos, etc. Mas poderá o amor ser um prazer quando não comporta o mais absoluto dos abandonos, quero dizer, de um dos dois lados? Mas para isso é geralmente necessário ser dotado de espírito, o que, na maior parte dos casos, falta a tais amantes. 19 de Maio Cordélia! Chama-se então Cordélia! Um belo nome, o que não deixa de ter a sua importância, pois pode, muitas vezes, ser assaz desagradável pronunciar um nome feio acompanhado pelas mais ternas expressões. Logo de longe a reconheci; ao seu lado esquerdo acompanhavam-na duas outras jovens. Pelo seu modo de andar dir-se-ia que iam parar em breve. Eu encontrava-me à esquina da rua onde, sem deixar de observar a minha desconhecida, fingia ler um cartaz. As jovens despediram-se. As duas outras se tinham, sem dúvida, desviado do seu caminho para a acompanharem, pois voltaram para trás. Ela encaminhou-se na minha direção. Tendo dado alguns passos, uma das jovens correu atrás dela e gritou, em voz suficientemente alta para eu poder ouvir: Cordélia! Cordélia! Depois se aproximou a terceira; cochichando, mantiveram um conciliábulo íntimo, e foi em vão que, com o meu ouvido mais apurado, tentei surpreender o seu segredo; depois se riram todas três e, num passo um pouco mais rápido, apressaram-se pelo caminho anteriormente seguido pelas duas companheiras. Seguindo-as, vi-as entrar numa casa de Ved Stranden. Esperei durante muito tempo, convencido que Cordélia iria em breve voltar, sozinha. Mas foi em vão. Cordélia! Um nome verdadeiramente maravilhoso! Era também assim que se chamava a terceira filha do rei Lear, aquela excelente jovem que não tinha o coração ao pé da boca, cujos lábios se mantinham mudos quando o seu coração estava repleto. Assim será também a minha Cordélia, Estou certo que se lhe assemelha. Mas, num outro sentido, ela tem contudo o coração nos lábios, não sob a forma de palavras, mas, de maneira mais acolhedora, sob a forma de um beijo. Que saudáveis são os seus lábios! Nunca vi outros mais belos. O mistério de que quase rodeio este assunto, mesmo aos meus próprios olhos, é uma prova entre outras de que estou realmente apaixonado. Todo o amor tem o seu mistério, e também o amor pérfido desde que nele exista o necessário elemento estético. Nunca me veio à cabeça a ideia de pretender confiar-me a outros, ou gabar-me das minhas aventuras. Acontece pois que estou quase contente por não conhecer ainda a sua direção, mas apenas um sítio onde ela vem muitas vezes. É até possível que, graças a isto, me tenha aproximado da minha finalidade. Posso fazer as minhas observações sem despertar a sua atenção e, a partir desse ponto seguro, não me será difícil encontrar acesso junto da sua família. E a dar-se o caso de esta circunstância se revelar um obstáculo - pois bem! Aceitá-la-ei; tudo que fizer, o farei con amore; e é assim que amo, con amore. 20 de Maio Hoje consegui algumas informações acerca da casa onde a vi entrar. Habita ali uma viúva com as suas três queridas filhas. Estas não se coibem de dar superabundantes informações desde que, bem entendido, as possuam. A única dificuldade reside em compreender tais informações, elevadas à terceira potência, pois falam as três ao mesmo tempo. Soube que ela se chama Cordélia Wahl e é filha de um capitão da marinha. Este morreu há já alguns anos, bem como a mãe. Era um homem muito duro e severo. Cordélia vive presentemente com a sua tia paterna que, segundo dizem, deve ter o caráter do irmão mas é, por outro lado, uma senhora muito respeitável. Até aqui tudo muito bem, mas as três irmãs nada mais sabem; nunca põem os pés em casa de Cordélia, se bem que esta as venha muitas vezes visitar. Segue, com as outras duas, cursos nas cozinhas do Rei. Consequentemente vem aqui, em geral, pouco depois do meio-dia, algumas vezes de manhã, mas nunca à noite. Leva uma vida muito recatada. A história termina aqui e não encontro nela qualquer ponte por onde me seja possível chegar até à morada de Cordélia. Ela tem pois uma ideia do que são os desgostos da vida, as suas misérias. Vendo-a, quem o poderia adivinhar? Contudo, tais recordações vêm de quando era mais jovem, constituem um horizonte sob o qual ela viveu sem bem se aperceber dele. Ainda bem que assim é, isso salvou a sua feminilidade, e ela não foi corrompida. Por outro lado, isto ajudará a educá-la se soubermos evocar bem tal passado. Todas estas coisas produzem geralmente orgulho, quando não têm um efeito destrutivo, e ela encontra-se muito longe de ter sofrido tal destruição. 21 de Maio Mora em frente das muralhas o que não é um sítio muito favorável para mim, dado que não há vizinhos defronte com quem se possa travar conhecimento, nem lugares públicos de onde seria possível observar sem ser notado. As próprias muralhas constituem um mau posto de observação, pois sobre elas fica-se demasiado exposto. Quanto a passear na rua, será melhor não escolher o lado que ladeia as muralhas porque nunca aí passa ninguém e, sendo demasiado insólito, atrairia as atenções sobre mim; seria pois necessário ir pelo lado das casas de onde nada se vê. Trata-se de um prédio de esquina. Da rua avistam-se também as janelas que dão para o pátio, pois ao lado não há qualquer prédio. Penso que uma dessas janelas seja a do seu quarto. 22 de Maio Encontrei-a hoje, pela primeira vez, em casa da senhora Jansen. Fui-lhe apresentado. O fato pareceu ser-lhe quase indiferente, ou não atrair a sua atenção. Tornei-me o mais insignificante possível para melhor poder observá-la. Ficou apenas um instante, pois apenas viera buscar as suas amigas com quem ia às cozinhas do Rei. Ficamos os dois sós na sala, enquanto as meninas Jansen se vestiam para sair e, com calma frieza, quase negligentemente, disse algumas frases sem importância que, polidamente, ela honrou com uma resposta que nem sequer mereciam. E partiram. Teria podido oferecer-me para acompanhá-las, mas tal atitude teria sido suficiente para revelar o galanteador, e não creio ser esse o modo propício para conquistá-la. - Não, preferi sair também alguns instantes depois e, por um caminho diferente e andando muito mais depressa que elas, dirigir-me para as cozinhas do Rei de modo que, ao chegar à esquina da Store Kongensgade pude, para seu grande espanto, passar por elas quase a correr, sem as cumprimentar, sem parecer sequer dar por elas. 23 de Maio É para mim uma necessidade absoluta conseguir acesso à casa; para tal tenho as armas prontas, como dizem os militares. No entanto, o assunto parece tornar-se assaz complicado e difícil. Nunca conheci uma família que vivesse de modo tão recatado. É apenas ela e a tia. Nenhum irmão, nenhum primo, nem sequer um vago parente afastado a quem deitar a mão, enfim, nem uma palha a que me agarre. Passeio sempre com um dos braços livres e, nesta altura, por nada do mundo seria capaz de sair de braço dado a duas pessoas; o meu braço é como um arpão que é necessário ter sempre a postos, o meu braço está destinado aos acontecimentos fortuitos, - pode acontecer que, num futuro longínquo, apareça um vago parente ou amigo a quem ela me veja, de longe tomar por um momento o braço - será o primeiro movimento para iniciar a escalada. Aliás não está bem que uma família viva assim tão isolada; priva-se a pobre rapariga da sua possibilidade de travar conhecimento com o mundo, para já não mencionar as outras consequências perigosas que do fato podem advir. Isto paga-se sempre. O mesmo sucede quando se trata de arranjar um casamento. Através de tal isolamento fica-se perfeitamente seguro contra os pequenos furtos. Numa casa onde se recebe muito, a ocasião faz o ladrão. Mas isso não tem grande importância; com tais raparigas não há grande coisa a roubar; apenas com dezesseis anos o seu coração é já um autêntico livro de autógrafos, e nunca tive o desejo de acrescentar o meu nome onde muitos outros tenham escrito já os seus. Nunca me passa pela cabeça a ideia de pôr o meu nome numa vidraça ou numa parede, nem de gravá-lo numa árvore ou num. banco do parque de Frederiksberg. 27 de Maio Quanto mais a olho mais me convenço de que ela é uma figura isolada. Eis o que um homem não deve ser, nem mesmo quando mancebo; porque, dado que o seu desenvolvimento repousa essencialmente na reflexão, são-lhe necessárias as relações com os outros. Essa é também a razão pela qual uma jovem não deve ser interessante, pois no interessante há sempre uma reflexão relativa ao próprio, tal como, na arte, o interessante é sempre representativo do artista. Uma jovem que, para agradar, se faz interessante, agradará principalmente a si própria. É isto que há a objetar, de um ponto de vista estético, a qualquer espécie de coquetismo. Muito diferente é tudo aquilo a que, impropriamente, se chama também coquetismo e que provém da própria natureza; por exemplo o pudor feminino, sempre o mais belo dos coquetismos. Assim, uma jovem interessante poderá talvez agradar mas, tal como ela própria abandonou a sua feminilidade, os homens a quem agradará são geralmente, por seu lado, pouco viris. Tal jovem não é afinal interessante senão pelas suas afinidades com os homens. A mulher é do sexo fraco e, no entanto, cabe-lhe mais essencialmente que ao homem encontrar-se só durante a juventude; deve bastar-se a si própria, mas é por uma ilusão e dentro dessa ilusão que ela se basta a si própria; foi com esse dote de princesa que a natureza a presenteou. E é precisamente esse abandonar-se à ilusão que a isola. Muitas vezes perguntei a mim próprio porque não haverá nada mais funesto para uma rapariga que conviver muito com outras raparigas. Manifestamente, isso advém de esse convívio não ser carne nem peixe; limita-se ele a perturbar a ilusão sem a explicar. O destino mais profundo da mulher é ser companheira do homem, mas o convívio com o seu próprio sexo fàcilmente provocará a este respeito uma reflexão que faz dela uma dama de companhia em vez de uma companheira. A própria linguagem é, a tal respeito, bem significativa, pois chama ao homem senhor e à mulher, não serva ou algo de semelhante, não, mas antes emprega uma determinação de essencialidade, e assim ela é companheira, não dama de companhia. Quisesse eu imaginar a jovem ideal, vê-la-ia sempre só no mundo e, por consequência, entregue a si própria, e sobretudo sem amigas. É certo que as Graças eram três, mas ninguém, segundo creio, teve jamais a ideia de representá-las conversando entre si; na sua taciturna trindade, formam elas uma bela unidade feminina. A tal respeito quase estaria tentado a recomendar o uso de gaiolas para guardar as moças, caso tal procedimento não tivesse efeitos perniciosos. Seria perfeitamente desejável que uma rapariga mantivesse sempre a sua liberdade, mas sem que lhe fosse dada a ocasião de ser livre. Então ela seria bela e evitaria tornar-se interessante. De nada serve dar um véu de virgem ou de jovem desposada a uma rapariga que se dá muito com outras raparigas; mas o homem dotado de suficiente instinto estético considerará sempre que a jovem inocente, no sentido mais eminente e profundo da palavra, é conduzida até ele velada, mesmo quando não é de regra o véu nupcial. Rendo homenagem ao pai e à mãe nos seus túmulos pela severa educação que ela recebeu, e ela vive tão retirada que, de gratidão, seria capaz de me lançar ao pescoço da tia. Ela desconhece os prazeres do mundo, é-lhe estranha a saciedade pueril. É orgulhosa, resiste àquilo que constitui o prazer das outras jovens, e é isso que importa. Saberei aproveitar-me desta espécie de mentira. Luxo e vestidos não têm para ela a atração que exercem sobre outras jovens; agrada-lhe algum tanto travar polemicas, mas isso é necessário a uma jovem que possui uma imaginação exaltada como a sua. Ela vive no mundo do imaginário. E se viesse a tombar em mãos incipientes, daí poderia resultar algo de bem pouco feminino, precisamente porque existe nela tanta feminilidade. 30 de Maio Os nossos caminhos cruzam-se por todo o lado. Hoje, encontrei-a três vezes. Estou a par das suas menores saídas, dos sítios e dos momentos em que a irei encontrar; mas tal não me serve para preparar encontros a sós com ela; pelo contrário, a minha dissipação a tal respeito é enorme. Posso desperdiçar como simples bagatela encontros que, muitas vezes, me custaram várias horas de espera; não me encontro com ela, limito-me a aflorar a periferia da sua existência. Quando sei que ela está para ir à casa da senhora Jansen não faço grande esforço para ali a encontrar, a menos que tenha um profundo interesse em observar algum pormenor: prefiro ir um pouco mais cedo à casa da senhora Jansen e, se possível, encontrá-la à porta no momento em que ela chega e eu me preparo para sair, ou na escada, caso em que, à pressa, passo por ela sem quase lhe dar atenção. São estas as primeiras malhas a apertar ao seu redor. Não a faço parar na rua, onde a saúdo sem nunca me aproximar dela, mas, de longe, estou sempre a visá-la com os olhos. Os nossos contínuos encontros causam-lhe espanto, ela sente sem dúvida que no seu horizonte apareceu um novo astro que, na sua marcha estranhamente regular, exerce sobre a sua uma influência perturbadora; mas não tem a menor ideia da lei que regula esse movimento, é antes tentada a olhar à direita e à esquerda no intuito de descobrir, se possível, o ponto para onde ele se dirige; ignora, tanto como os seus antípodas, que ela própria é esse ponto. Acontece-lhe o mesmo que à generalidade dos que me rodeiam: pensam que me disperso por um grande número de aventuras, porque estou em perpétuo movimento e, como Fígaro, digo: uma, duas, três, quatro intrigas ao mesmo tempo, eis o meu prazer. Ê necessário que a conheça em toda a sua vida espiritual, antes de iniciar o meu ataque. A maior parte das pessoas apreciam uma donzela como uma taça de champanhe, isto é, na espuma de um instante, ah! Sim, tem a sua beleza, e no caso de algumas jovens é sem dúvida tudo o que Se pode alcançar; mas neste caso, há mais. Se a individualidade é demasiado fraca para suportar a claridade e a transparência, pois bem! Saboreemos o que é obscuro; aparentemente, Cordélia é capaz de suportá-las. Quanto maior é o abandono que se traz ao amor, mais o interesse aumenta. Este gozo do instante é uma violação num sentido espiritual, se não em aparência, e numa violação o gozo é apenas imaginário, de representa, como um beijo roubado, algo que nada vale. Não, se nos é possível conseguir de uma jovem que ela só veja uma única finalidade para a sua liberdade, a de se entregar, que ela reconheça nessa entrega a sua suprema felicidade, e que a obtenha quase à força de insistência, mantendo-se livre. É só então que se poderá falar de prazer e, para chegar a tal ponto, a influência espiritual é sempre necessária. Cordélia! Que nome magnífico! - Fico em casa e, como um papagaio, exercito-me a tagarelar, digo: Cordélia, Cordélia, minha Cordélia. Tu, minha Cordélia! Não posso deixar de sorrir ao lembrar-me da prática com que um dia, num instante decisivo, pronunciarei estas palavras. Ê sempre necessário fazer estudos prévios, tudo deve estar sempre bem ensaiado. Não é de espantar que os poetas descrevam sempre esse primeiro instante do tratamento por tu, esse belo momento em que os amorosos se despojam e, não por aspersão (embora haja muitos que não chegam mais longe), mas pela descida às águas do amor, e apenas então, ao saírem desse batismo, - se compreendem bem como velhos conhecidos, embora apenas se conheçam há um instante. Não há instante mais belo para uma jovem e, para o desfrutar completamente, é necessário colocarmo-nos sempre numa posição de superioridade, de modo a sermos, não apenas o catecúmeno, mas também o sacerdote. Com o auxílio de um pouco de ironia, o segundo instante desse momento torna-se um dos mais interessantes,e equivale a um desnudamento espiritual. É necessário ter poesia bastante para não trair o encanto do momento, e o ator deve ter sempre o seu papel de cor. 2 de Junho Ela é orgulhosa, de há muito que o sei. Quando está com as suas amigas Jansen, fala muito pouco, e é evidente que a sua tagarelice a aborrece, há um sorriso em volta dos seus lábios que parece levar a crê-lo. Conto com este sorriso. - Noutros momentos, e com grande espanto das Jansen, pode quase animar-se como um rapaz. Mas, recordando a sua vida de criança, compreendo-o bem. Tinha apenas um irmão, mais velho que ela um ano. Apenas conheceu pai e irmão, foi testemunha de episódios tristes, tudo coisas susceptíveis de provocar o enjoo pela tagarelice comum. O pai e a mãe não foram felizes juntos; o que, de maneira mais ou menos precisa ou obscura, atrai geralmente uma jovem, não a atrai a ela. É possível até que desconheça qual o verdadeiro papel de uma rapariga. É possível que, em certos instantes, ela não deseje ser uma rapariga, mas um homem. É dotada de imaginação, de alma, de paixão, numa palavra, de tudo o que é de natureza essencial, mas não subjetivamente refletido. Hoje, um caso especifico veio confirmar esta opinião, Sei, pelas irmãs Jansen, que ela não toca piano por ser contra os princípios de sua tia. Sempre o lamentei pois que, através da música, se encontra sempre um cômodo meio de comunicação com uma jovem desde que, como é óbvio, não se tenha a imprudência de tomar atitudes de entendido. Hoje fui à casa da Senhora Jansen; havia entreaberto a porta sem bater, impudência que me é muitas vezes útil e que, sempre que necessário, remedeio pelo ridículo, isto é, batendo à porta já aberta - ali estava ela, sozinha, ao piano - parecia tocar às escondidas - era uma áriazinha sueca - a sua destreza não era grande e impacientava-se, mas logo se faziam ouvir sons mais melodiosos. Voltei a fechar a porta e fiquei cá fora, escutando as tonalidades dos seus estados de alma; havia por vezes na sua interpretação um fervor que me fazia lembrar Mettelil, a que tocava a sua harpa de ouro de modo a fazer brotar o leite dos seus seios. - Na sua dicção havia algo de melancólico, mas também de dionisíaco. - Teria podido aparecer então, teria podido aproveitar esse instante - mas seria um erro. - A recordação não é exclusivamente um meio de conservar, mas também um meio de aumentar, pois o que está embebido em recordação tem um duplo efeito. - Muitas vezes se encontra nos livros, sobretudo nos livros de cânticos, uma florinha seca. - a razão para ali ser colocada deve ter sido um belo instante, outrora, mas, mesmo assim, a recordação é ainda mais bela. Evidentemente, ela esconde que toca piano, ou talvez só saiba tocar aquela áriazinha sueca! - Terá acaso para ela um interesse particular? - Nada sei de tudo isto, mas é por isso que o incidente tem para mim tanta importância. Um destes dias, quando tiver ocasião de falar mais intimamente com ela, conduzi-la-ei inocentemente para este assunto e fá-la-ei cair nesta armadilha. 3 de Junho Não posso decidir ainda como deverá ela ser compreendida; assim, conservo-me perfeitamente quieto, apagado - sim, como a sentinela na trincheira que se lança por terra a fim de escutar o menor eco do inimigo que avança. Porque, para ela, eu não existo; não se trata de uma relação negativa, mas de uma relação inexistente: Até aqui não ousei qualquer experiência. - Vê-la e amá-la, é assim que se exprimem nos romances - sim, é assaz verdadeiro desde que o amor não tenha dialética; mas, ao fim e ao cabo, que podem os romances ensinar-nos acerca do amor? Apenas mentiras que ajudam a passar o tempo. Segundo as informações que presentemente possuo, e quando penso na emoção que me causou o primeiro encontro, verifico que a concepção que tinha acerca dela se modificou bastante, tanto a seu como a meu favor, É certo que nem todos os dias acontece encontrar-se uma jovem completamente só, nem que ela esteja mergulhada assim em si própria. Segundo a prova da minha severa crítica ela era: encantadora. Mas o encanto é um elemento muito fugaz que passa como o dia de ontem, que já acabou. Não a tinha imaginado no quadro em que vive, nem, sobretudo, tão imediatamente familiarizada com as tormentas da vida. Quem me dera conhecer os seus verdadeiros sentimentos. Não creio que alguma vez se tenha sentido apaixonada, pois o seu espírito é muito desordenado para tal; acima de tudo, não pertence à classe das virgens teoricamente experientes, para as quais, muito antes do tempo, é tão fácil imaginarem-se nos braços de um marido. As figuras da vida real, vindas ao seu encontro, não foram capazes de confundir o seu espírito quanto à relação entre o sonho e a realidade. A sua alma alimenta-se ainda com a divina ambrósia dos ideais. Mas o ideal que flutua diante dos seus olhos, não é decerto uma pastora ou uma heroína de romance, nem uma amorosa, mas uma Joana d'Arc, ou algo de muito semelhante. Falta ainda saber se a sua feminilidade é suficientemente forte para a deixar refletir-se, ou se ela deseja apenas que a colham como se colhe a beleza e o encanto; resta saber se poderemos ousar esticar a corda ainda mais. É muito já encontrar uma imediata feminilidade, mas se nos arriscarmos a provocar a mudança, encontraremos o interessante. Neste caso, o melhor será atirar-lhe, muito simplesmente, com um pretendente para os braços. Acreditar que isto possa ser nocivo a uma jovem é, por parte das pessoas, uma superstição. - É assim, se ela for uma planta muito fina e delicada que na sua vida tem apenas um único fausto: o encanto; será então melhor para da nunca ter ouvido falar de amor; mas no caso contrário há tudo a ganhar e, no caso de não existir já um, nunca eu hesitaria em arranjar-lhe pretendente. Mal tal pretendente não deverá também ser uma caricatura que de nada serviria; deve ser um mancebo verdadeiramente respeitável, e até amável se possível for, mas no entanto nunca o bastante para a paixão da jovem. Ela tratará com altivez um homem assim, perderá o gosto pelo amor, perderá quase a confiança na sua própria realidade logo que se dê conta do seu destino e veja o que a realidade lhe oferece; dirá então: se amar é apenas isto, não é grande coisa. Ela torna-se orgulhosa no seu amor, e esse orgulho torna-a interessante, enriquecendo a sua natureza com um matiz superior; mas, por outro lado, fica mais próxima da sua perca, e tudo isto a torna continuamente cada vez mais interessante. Entretanto, o mais judicioso será observar primeiro o círculo dos seus amigos para ver se, entre eles, existirá tal pretendente. Em casa dela não se depara qualquer oportunidade, pois quase ninguém a visita. Mas, por vezes, ela frequenta outras famílias onde seria talvez possível encontrá-lo. É sempre perigoso arranjar um pretendente antes de ter colhido informações a este respeito; dois pretendentes de idêntica insignificância poderiam ser nocivos pela sua relatividade. Enfim, hei de ver se não se esconde em qualquer parte tal apaixonado, um apaixonado que não tem a coragem de atacar a casa, um ladrão de galinhas que não vê qualquer possibilidade numa casa de tal modo claustral, O princípio estratégico, a lei que deve regular todos os movimentos nesta campanha, será pois apenas entrar em contato com ela quando uma situação oferecer interesse. O «interessante» constitui assim o terreno sobre o qual se deve travar a luta, e o potencial do interessante deve ser esgotado. A menos que me tenha iludido bastante, toda a sua natureza está predisposta nesse sentido, de modo que o que peço é precisamente o que ela dá, sim, o que ela própria pede. O essencial é adivinhar o que cada uma pode oferecer e, consequentemente, o que ela pretende. É por isso que todas as minhas aventuras de amor têm sempre uma realidade para mim próprio, constituem um elemento da vida, um período de formação de que estou bem seguro, e muitas vezes a ele se liga um talento especial adquirido: aprendi a dançar por causa da primeira jovem que amei, aprendi a falar francês por causa de uma bailarina. Nesses tempos o meu domínio era a praça pública, tal como o é para todos os papalvos, e muitas vezes fui enganado. Hoje, procuro primeiro regatear o preço. Mas, como a sua vida fechada o parece indicar, terá ela talvez esgotado um aspecto do interessante. Trata-se pois de encontrar um outro aspecto que, à primeira vista, lhe não parece sê-lo, mas que - justamente por causa desse obstáculo - se lhe torne interessante. Para tal fim não escolho o poético, mas o prosaico. Comecemos pois por aí. A sua feminilidade começará por ser neutralizada pelo bom senso e o gracejo prosaicos, não diretamente, mas sim indiretamente, bem como por aquilo que é absolutamente neutro: o espírito. Ela quase perderá a sua feminilidade para si própria mas, em tal situação, ser-lhe-á impossível isolar-se, e lançar-se-á nos meus braços, não como se eu fosse um amante, mas de modo totalmente neutro; acordará então a sua feminilidade que arrancaremos do esconderijo para a elevar à sua elasticidade extrema; se a fizer embater contra qualquer obstáculo real, passará além; a sua feminilidade atingirá um apogeu quase sobrenatural, e ela pertencer-me-á com uma paixão soberana. 5 de Junho Não precisava de rir muito longe. Ela frequenta a casa do senhor Baxter, o negociante. Ali a encontrei, bem como a um homem à medida exata dos meus projetos. Eduardo, o filho mais velho, está perdidamente apaixonado por ela, o que, até com um olho fechado, se vê olhando os seus. Trabalha na casa comercial de seu pai. É um mancebo bonito, bastante simpático, um pouco tímido, o que, a seus olhos, segundo se me afigura, o favorece. Pobre Eduardo! Não sabe de todo como se conduzir quanto aos seus sentimentos. Quando sabe que ela lá está à tarde, prepara-se exclusivamente por sua causa, põe o seu fato preto novo exclusivamente por sua causa, punhos brancos exclusivamente por sua causa, e acaba assim por fazer uma figura quase ridícula, ao aparecer na sala entre as outras pessoas com os seus fatos habituais. O seu embaraço é tão grande que parece milagre e, se fosse um disfarce, Eduardo não seria um concorrente perigoso. É muito difícil fazer uso do embaraço, mas pode-se ganhar muito com ele. Já por várias vezes o tenho utilizado na conquista de alguma jovenzinha. As raparigas falam geralmente com muito desdém dos homens embaraçados mas, secretamente, gostam bastante deles. Um toque de embaraço lisonjeia a vaidade de uma jovem, fá-la sentir a sua superioridade, é como um brinde que se lhe concede. Adormecidas as desconfianças, escolhe-se uma ocasião em que elas teriam precisamente razões para pensar que se morre de embaraço para lhes mostrar que, muito pelo contrário, se é perfeitamente capaz de andar sem auxílio. O embaraço priva os homens do seu caráter masculino, e é por isso que serve relativamente bem para equilibrar os sexos, e, por consequência, as mulheres sentem-se humilhadas ao compreenderem que se tratava apenas de um disfarce, coram de si próprias, e compreendem então muito bem que, de certo modo, ultrapassaram os seus limites; é como quando continuam, durante muito tempo, a tratar um rapaz como se ele fosse ainda uma criança. 7 de Junho Eis-nos pois amigos, Eduardo e eu; uma verdadeira amizade, as melhores relações existem entre nós, tais como não foram vistas desde a mais bela época da Grécia. Depressa nos tornamos íntimos logo que o levei a confiar-me o seu segredo, mas apenas depois de lhe ter arrancado numerosos comentários a propósito de Cordélia. Escusado será dizer que, depois de todos estes segredos reunidos, não havia qualquer razão para deixar de me confiar aquele. Pobre rapaz! Já há muito tempo que ele suspira. Arranja-se com extremos de cuidado cada vez que ela vem, depois a acompanha quando, ao anoitecer, ela volta a casa, o coração vibra-lhe ao pensar que o braço dela repousa no seu, durante o caminho observam as estrelas, ele puxa a sineta da casa, ela desaparece, ele desespera - mas mantém a esperança para a próxima vez. Ele, que tem tido tão soberbas ocasiões, não teve ainda a coragem de pôr os pés na soleira da sua porta. Embora, no fundo de mim próprio, não me possa impedir de troçar de Eduardo, acho mesmo assim que, na sua candura, algo de belo existe. Embora eu pense conhecer pràticamente tudo que constitui o erotismo, nunca observei em mim próprio um estado semelhante, esta angústia e este tremer do amor, ou seja, nunca o constatei em tal grau que me tenha feito perder o autodomínio pois, de outro modo, conheço-o bem, embora, em mim, tenha como efeito tornar-me mais forte. Poderá talvez alguém dizer que, nesse caso, não devo ter estado nunca verdadeiramente apaixonado; é possível. Censurei Eduardo, encorajei-o a confiar na nossa amizade. Amanhã terá ele de dar um passo decisivo, deve ir pessoalmente a sua casa, para convidá-la. Tive a ideia atroz de levá-lo a pedir-me que o acompanhasse. Toma-a por uma excepcional prova de amizade. A ocasião apresenta-se exatamente como eu a desejara, isto é, aparecerei como uma rajada de vento. E se ela tinha a menor dúvida sobre o significado da minha conduta, esta vai decerto conseguir embrulhar tudo de novo. Nunca tive o hábito de me preparar para uma conversa, mas sou agora obrigado a isso a fim de poder falar com a tia, pois assumi o respeitável encargo de conversar com ela e encobrir assim as tentativas amorosas de Eduardo para com Cordélia. Em tempos, a tia viveu por alguns anos no campo, e graças aos meus próprios estudos, assaz aprofundados, de obras de economia rural, bem como às informações, baseadas na sua experiência pessoal, que a tia me vá dando, faço progressos nos meus conhecimentos e nas minhas aptidões. É completo o meu sucesso junto da tia; considera-me como um homem judicioso e sério, com o qual se pode ter prazer em conversar, e que é muito diferente dos nossos ridículos elegantes. Não pareço porém ter caído particularmente nas boas graças de Cordélia. É verdade que ela possui uma feminilidade demasiado pura, demasiado inocente, para exigir que todos os homens lhe façam a corte; mas tem, em muito alto grau, a intuição do que há de rebelde na minha existência. Quando me vejo assim instalado na sala, tão acolhedora, quando, como um anjo, ela espalha em redor o seu encanto sobre aqueles que entram em contato com ela, sobre bons e maus, sinto-me por vezes impaciente, sou tentado a lançar-me para fora do meu esconderijo; porque, embora aos olhos de toda a gente esteja simplesmente sentado na sala, a verdade é que estou de emboscada; sinto-me tentado a agarrar-lhe a mão, a beijar a jovem, a escondê-la em mim no termo de a ver ser-me roubada por outro. Assim, quando, ao entardecer, Eduardo e eu a deixamos, e ela me estende a mão para se despedir, quando a seguro na minha, é-me por vezes difícil deixar a pequena ave escapar-se-me da mão. Paciência! - quod antea fuit impetus, nunc ratio est (O que antes era impulso agora é razão) - ela deverá estar envolta de modo bem diferente nas minhas redes, antes que eu liberte todo o irresistível poder do amor. Tal instante não terá sido por nós destruído com meras guloseimas, com antecipações intempestivas, e bem mo deverás agradecer, minha Cordélia. Laboro no desenvolvimento dos contrastes, estendo o arco do amor a fim de produzir ferida mais funda. Como um arqueiro, vou estendendo e distendendo alternadamente a corda do meu arco, ouço a sua melodia, e é um cântico guerreiro; mas não viso ainda, ainda não pouso a flecha na corda. Quando um pequeno número de pessoas se reúnem muitas vezes na mesma sala, cria-se fàcilmente uma tradição segundo a qual cada um terá o seu lugar próprio, o seu posto, e o todo se torna num quadro, como que uma carta do terreno que, em qualquer instante, podemos abrir à nossa frente. Presentemente, em casa das Wahl, formamos juntos um quadro assim. À tarde, serve-se o chá. A tia, que até aí estivera sentada no sofá, toma então geralmente o seu lugar diante da pequena mesa de trabalho, de onde Cordélia se retira para se aproximar da mesa de chá; em frente do sofá; Eduardo segue-a e eu sigo a tia. Eduardo arma em misterioso, tenta segredar e, regra geral, consegue-o tão bem que fica completamente mudo; mas eu não faço tanto mistério das minhas efusões para com a tia, falo dos preços do mercado, do número de bilhas de leite necessário para fazer uma libra de manteiga, sirvo-me da nata como intermediário e da batedeira como dialética, - eis aí coisas que uma donzela pode não só escutar sem perigo mas que, por outro lado, o que é muito mais raro, constituem uma conversação sólida, substancial e edificante, tão enobrecedora para o espírito como para o coração. Em geral, viro as costas à mesa do chá e aos sonhos de Eduardo e Cordélia, para sonhar em uníssono com a tia, E não é a natureza grande e sábia no que às suas produções se refere? Que dom precioso constitui a manteiga, que magnífico resultado de natureza e arte! Estou quase certo de que a tia nunca seria capaz de ouvir o que se diz entre Eduardo e Cordélia, isto desde que algo fosse realmente dito; foi essa a promessa que fiz a Eduardo e eu cumpro sempre a minha palavra. Em contrapartida, ouço perfeitamente qualquer palavra por eles trocada, e mesmo cada movimento, por menor que seja. Isto é importante para mim, porque nunca se sabe o que um homem, no seu desespero, é capaz de arriscar. Os homens mais prudentes e os mais tímidos atrevem-se por vezes aos atos mais loucos. Embora eu de modo algum me pareça interessar pelo que se passa entre os dois jovens solitários, é perfeitamente claro que Cordélia sente constantemente a minha presença invisível entre ela e Eduardo. Não deixa de ser singular o quadro que nós quatro formamos. Se me fosse necessário procurar entre os quadros conhecidos por certo que encontraria fàcilmente uma analogia, tanto mais que, no meu foro interior, penso em Mefistófeles; a única dificuldade reside no fato de Eduardo não ser um Fausto. E, se eu próprio me metamorfoseio em Fausto, a dificuldade mantém-se porque Eduardo não é de modo algum um Mefistófeles. E também eu o não sou, sobretudo aos olhos de Eduardo. Este me toma pelo gênio bom do seu amor, e faz bem; pode pelo menos ter a certeza de que ninguém poderia velar pelo seu amor com um cuidado maior que o meu. Prometi-lhe conversar com a tia e cumpro com toda a seriedade essa respeitável tarefa. A tia quase se desfaz, perante os nossos olhos, em pura e simples economia rural; visitamos a cozinha, a cave, o sótão, falamos das galinhas, dos perus, dos patos, etc., e tudo isto choca Cordélia. Naturalmente, ela não se pode dar conta das minhas verdadeiras intenções. Continuo a ser um enigma para ela, mas um enigma que não tem desejos de resolver e que a irrita, sim, que a indigna mesmo. Sente muito bem que a tia se torna quase ridícula, e que a tia é, no entanto, uma senhora tão digna de veneração que por certo não merece que tal lhe suceda. Por outro lado, represento tão bem o meu papel, que ela sente perfeitamente a inutilidade de tentar desmascarar-me. Por vezes conduzo a representação um pouco mais longe até levar Cordélia a sorrir da tia, às escondidas. Mantenho invariàvelmente uma seriedade extrema, mas ela não consegue deixar de sorrir. Eis a primeira falsa lição, é necessário ensiná-la a sorrir ironicamente; mas este sorriso atingir-me-á quase tanto como à própria tia, pois ela não sabe em absoluto o que pensar de mim. É no entanto possível que eu seja simplesmente um desses mancebos precocemente envelhecidos, - é sempre possível; outras coisas são também possíveis. Após ter sorrido da tia indigna-se contra si própria; volto-me então e, continuando a conversar com a tia, olho-a com muita gravidade; então ela sorri de mim, da situação. As nossas relações não são as dos carinhos ternos e fiéis da compreensão, nem as da sedução, mas as dos impulsos contrários entre si, do desentendimento. Na verdade, as minhas relações com ela não se assemelham a coisa alguma; são de natureza espiritual, o que naturalmente é, para uma jovem, coisa alguma. Contudo o meu método atual apresenta excepcionais vantagens. Quando se arma ao galanteador, se desperta uma suspeita e suscita-se uma resistência contra si próprio; estou a salvo de tudo isto. Não sou vigiado, muito pelo contrário, mais depressa estariam inclinados a encarar-me como um homem de confiança, apto a vigiar uma donzela. O método tem apenas um defeito. Leva tempo, pelo que apenas pode ser empregue com vantagem no caso de indivíduos para quem é o interessante que tem valor. Que força rejuvenescedora a de uma rapariga; nem a frescura do ar matinal ou a maresia, nem o sopro do vento, nem o perfume do vinho ou o seu sabor - nada, em todo o mundo, possui tal força rejuvenescente. Tenho esperança de consegui-la levar em breve a odiar-me. Tomei já completamente o aspecto de um solteirão. Só falo no prazer de me instalar confortàvelmente numa boa poltrona, de me deitar numa cama bem fofa, em ter um criado honesto e um amigo dedicado em quem possa confiar em quaisquer circunstâncias. Agora, se conseguir levar a tia a abandonar as suas reflexões sobre a economia rural, será de tais coisas que conversarei a fim de encontrar uma ocasião mais propícia para ironizar. É possível rir de um solteirão e chegar mesmo a ter pena dele; mas tal conduta num mancebo, que possui no entanto algum espírito, revolta qualquer donzela, porque aniquila tudo o que o seu sexo significa, toda a sua beleza e poesia. Assim decorrem os dias. Vejo-a mas não lhe falo, falo com a tia na sua presença, Mas por vezes, durante a noite, acontece-me dar livre curso ao meu amor. Passeio então defronte das suas janelas, envolto na minha capa e de chapéu derrubado para os olhos. O seu quarto de cama dá para o pátio mas, porque a casa é de esquina, é possível avistá-lo da rua. Algumas vezes ela deixa-se ficar por um instante junto da janela ou abre-a para olhar as estrelas, e ninguém a vê, salvo aquele que é, sem dúvida, a última pessoa por quem ela se julgaria observada. A estas horas mortas rondo então como um espírito, como um espírito assombro o lugar onde se encontra a sua morada. E então esqueço tudo, não tenho projetos, não faço cálculo algum, lanço a razão pela borda fora, dilato e fortifico o meu coração com profundos suspiros, exercício que me é necessário para não ser constrangido pelo que, na minha conduta, existe de sistemático. Outros serão virtuosos durante o dia e pecadores à noite; eu sou pura dissimulação de dia, e à noite, apenas desejos. Ah! Se ela pudesse penetrar na minha alma - se! Se esta jovem pretende ver claro em si própria, tem de confessar que sou eu o homem que lhe convém. É demasiado apaixonada, as suas emoções são demasiado profundas para ser feliz no casamento; nem de longe seria o bastante deixá-la perder-se nos braços de um puro e simples sedutor; porém, se ela se perder graças a mim, salvará de tal naufrágio o que é interessante. Em relação a mim ela deve, segundo um jogo de palavras dos filósofos: zu Grunde gehen (ir ao fundo). No fundo, está farta de ouvir Eduardo. Como sempre sucede quando se fixam limites apertados ao que é interessante, tanto maior o número de motivos de interesse que se vão descobrindo. Por vezes, ela escuta a minha conversa com a tia. Quando tal sucede, um indício, breve despontar no horizonte, chega como de outro mundo, causando tanta admiração à tia como à própria Cordélia. A tia vê o relâmpago mas nada ouve, Cordélia ouve a voz mas nada vê. Mas, no mesmo instante, tudo volta a entrar na ordem estabelecida, e a conversa com a tia prossegue o seu caminho monótono como os cavalos de posta no silêncio da noite; acompanha-a o ronronar melancólico do samovar, Em tais momentos a atmosfera do salão torna-se por vezes lúgubre, principalmente para Cordélia. Não tem ninguém a quem falar, ninguém a quem escutar. Se se volta para Eduardo corre o risco de que este, no seu embaraço, faça qualquer disparate; se se volta para o outro lado, para a tia e para mim, a segurança que aí reina, o ritmo monótono da conversa bem cadenciada, face à falta de segurança de Eduardo, criam o mais desagradável dos contrastes. Compreendo perfeitamente que, para Cordélia, a tia deve ter o aspecto de estar enfeitiçada, dado que se move inteiramente segundo o ritmo marcado por mim. Além disso, não lhe é possível tomar parte na nossa conversa; isto porque um dos meios de que me permiti servir-me para revoltá-la, tem sido tratá-la como a uma autêntica criança. Não que, para tal, me permita tomar liberdades com ela, nem nada que se assemelhe! Bem sei que perturbação daí pode resultar, e o que importa sobretudo é que a sua feminilidade possa vir a erguer-se em toda a sua pureza e encanto. Em vista das minhas relações de intimidade com a tia, é-me fácil tratá-la como a uma criança que não conhece as coisas deste mundo. De tal modo, não melindro a sua feminilidade, apenas a neutralizo; pois que a sua feminilidade não pode ser melindrada por um conhecimento das subidas e descidas de preços no mercado; o que a pode revoltar, é que tal coisa represente o supremo interesse da vida. A este respeito, e graças à minha enérgica ajuda, a tia ultrapassa-a a si própria. Tomou-se quase fanática, o que me poderá agradecer. A única coisa em mim que ela não pode admitir é que eu não tenha qualquer ofício. Agora tomei o hábito de dizer de cada vez que se fala de um emprego vago: ai está o que me convém, e depois falar gravemente do assunto com ela. Cordélia continua a ver a ironia, mas é tudo que desejo. Pobre Eduardo! E que pena ele não se chamar Fritz. De cada vez que, nas minhas meditações, penso nas relações que tenho com ele, sou sempre levado a lembrar-me do Fritz, personagem d'«A Noiva». Como o seu modelo, Eduardo é, além do mais, cabo na guarda nacional. E, escusado será dizê-lo, é também tão enfadonho como ele. É terrivelmente desajeitado, e chega sempre muito bem posto e engomado. Por amizade para com de, mas unter uns gesagt (Entre nós), eu apareço tão pouco cuidado quanto possível. Pobre Eduardo! A única coisa que quase me faz pena, é que ele me está infinitamente obrigado, e a tal ponto que quase nem sabe como agradecer-me. Realmente, aceitar agradecimentos por isto, é demasiado. Então? Não podereis manter-vos tranquilos? Durante toda a manhã não tendes feito outra coisa senão sacudir a minha persiana, abanar o meu espelho refletor e o cordão que pende ao lado, brincar com a sineta do terceiro andar, bater nos vidros, numa palavra, anunciar a vossa presença de todos os modos possíveis como se me fizésseis sinal para ir juntar-me a vós. Sim, faz um belo tempo, mas não me apetece sair, deixe-me aqui... Ó zéfiros jocosos e ladinos! Vós, alegres crianças, podeis ir muito bem sem mim; vá, como sempre, brincar com as raparigas. Sim, bem sei, ninguém é capaz de beijar uma jovem de modo tão sedutor como vós; é inútil que ela tente escapar-vos, não conseguirá desvencilhar-se dos vossos tentáculos - e nem mesmo o quer; porque vós refrescais e acalmais, não produzis excitação... Segui o vosso caminho, deixai-me para trás... Então? O prazer não é o mesmo sem mim, pensais, não é no vosso interesse que o fazeis.,; Pois bem, sigo-vos; mas com duas condições. Primeiro! Vive em Kongens Nytorv uma jovem deliciosa que, além disso, tem a impudência de me não querer amar, sim, pior ainda, ama outro, e chegaram já ao ponto de passearem de braço dado. Sei que ele irá buscá-la à uma hora. Quero pois que me prometam que aqueles de entre vós que melhor sabem soprar se escondam em qualquer lado, mas pertinho, até ao momento de ele sair a porta com ela. No instante preciso em que ele irá para penetrar na Store Kongensgade, este destacamento atacará e, do modo mais delicado, tirar-lhe-á o chapéu da cabeça pondo-o a dançar diante dele, aproximadamente à distância de uma vara e com moderada velocidade; não muito depressa, pois poderia ele voltar para casa. É necessário que ele esteja constantemente sob a impressão de conseguir agarrar o chapéu no momento seguinte; não deverá sequer abandonar o braço da jovem, Assim os conduzireis ao longo da Store Kongensgade, e pelas muralhas até Nörreport, em Hojbroplads... Quanto tempo será necessário? Aproximadamente uma meia hora, creio. Vindo de Ostergade, estarei aí exatamente à uma e meia. Tendo o citado destacamento conduzido os apaixonados até ao meio da praça, desencadeará contra eles um violento ataque, durante o qual fará coar o chapéu da jovem, lhe porá os caracóis em desalinho, erguerá o seu xaile, enquanto, ao mesmo tempo, o chapéu do mancebo se porá a subir alegremente pelo ar fora; numa palavra, criareis uma confusão destinada a provocar as gargalhadas, não só da minha parte, mais também do excelentíssimo público. Os cães põem-se a ladrar, o guarda da torre a tocar a rebate, e tereis o cuidado de fazer voar até mim o chapéu da donzela, de modo a ser eu o afortunado que lho devolverá. - E agora, segunda condição! O destacamento que me seguir deverá obedecer ao menor dos meus sinais, nunca ultrapassará os limites do decoro, não ofenderá qualquer donzela, e não tomará liberdades que, durante toda esta farsa, poderiam nublar a sua alegria, privar os seus lábios do sorriso ou os seus olhos de paz, e angustiar o seu coração. Se qualquer um de entre vós se comportar de outro modo, sereis todos malditos. - E agora a caminho da vida e da alegria, da juventude e da beleza; mostrai-me o que já tantas vezes vi e nunca me fatigarei de admirar, mostrai-me uma jovem bela, fazei-a desabrochar em toda a sua beleza de modo a que se torne mais bela ainda; observai-a de modo a que ela sinta prazer nesse exame! - Decidi passar por Bredgaden mas, como sabeis, só estarei livre à uma hora e meia. Eis uma jovem que se aproxima, elegante e empertigada; mas a verdade é que hoje é domingo... Temperai-a um pouco, animai-a com um leque de frescura, deslizai docemente por sobre a sua cabeça, enlaçai-a aflorando-a inocentemente! Oh! Que eu adivinhe o tom finamente rosado das suas faces; os lábios adquirem um colorido mais vivo, o seio ergue-se... Não é verdade? Não será de uma beatitude inexprimível, minha pequena, aspirar este sopro tão cheio de frescura? A volta do seu vestido ondula como uma folha no vento. Como é saudável e forte o modo como respira. O seu andar toma-se mais lento, ela é quase levada pela doce brisa, como uma nuvem, como um sonho... Soprai um pouco mais, a haustos mais longos! ... Ela recolhe-se; as mãos erguem-se para o pescoço cobrindo-o com a maior precaução, não vá alguma rajada ser suficientemente indiscreta para se introduzir, lesta e fresca, sob o tecido leve... E ela enrubesce mais saudàvelmente, as faces ficam mais cheias, os olhos mais transparentes, o andar mais ritmado. A menor atribulação embeleza os seres. Todas as jovens se deveriam enamorar pelos zéfiros; porque não existe nenhum homem que, como eles, seja capaz de lhes realçar a beleza lutando contra elas... Ei-la que se inclina um pouco, a cabeça baixa-se para a ponta dos pés... Parai um pouco! É demasiado, a cintura dilata-se, ela perde um pouco da sua esbelta figura... Refrescai-a um pouco!... Não é verdade, minha filha? Quando se está afogueado, é agradável sentir estes leves frêmitos de frescura; é-se quase tentado a abrir os braços de gratidão, de alegria de viver... Ela volta-se de lado... Vamos, depressa, um sopro vigoroso para que eu possa adivinhar a beleza das formas!... Mais vigor! Para que o tecido se case melhor com os contornos... Não, foi demasiado! A sua atitude já não é bela, e perturbais o seu passo lesto... Ei-la que se volta de novo... Agora, soprai com mais força, que ela se revele!... Basta, é demais: um dos seus caracóis desmanchou-se... Por favor, dominai-vos! - E eis que se aproxima um regimento em peso: Die eine ist verliebt gar sehr; Die andre wäre es gerne. (Uma está muito apaixonada./ A outra gostaria também de estar.) Sim, não se pode negar que é uma forma infeliz de passar a vida, passear com o futuro cunhado de braço dado. Para uma jovem isto representa pouco mais ou menos o mesmo que significa para um homem o lugar de ajudante de escritório... Mas, pelo menos, o ajudante de escritório pode avançar; tem o seu lugar seguro na empresa, está presente nas ocasiões excepcionais, - mas o que cabe a uma cunhada?... Soprai agora, soprai um pouco mais rápido! Quando se dispõe de um apoio firme, não é difícil resistir... O centro adianta-se energicamente, as asas não conseguem prosseguir... O cunhado tem os pés bem assentes no chão, o vento não o faz sequer estremecer, tem demasiado peso - mas também demasiado peso para que as asas o possam erguer do solo. Ele avança cheio de energia a fim de provar, o quê? - que é um corpo pesado; e quanto mais inamovível é o homem, mais a jovem perde... Ó encantadoras damas, por favor, permiti que vos dê um bom conselho: abandonai o vosso futuro marido, ou o vosso futuro cunhado, avançai sozinhas e vereis o prazer que daí é possível tirar... Agora, soprai um pouco mais docemente!... Como elas se debatem nas ondas do vento; vede como se encontram frente a frente, voando dos dois lados da rua - haverá acaso uma música de dança que consiga proporcionar alegria mais jovial? E no entanto o vento não fatiga, fortifica... Agora se lançam num turbilhão de tempestade pela rua fora - haverá acaso uma valsa que possa inebriar uma jovem de modo mais sedutor? E no entanto o vento não fatiga, transporta... É agradável encontrar um pouco de resistência, quem haverá que se não bata de boa vontade para obter a posse daquilo que ama? E decerto que se alcança o que se ama pois há uma Providência que auxilia o amor e é por isso que o homem tem o vento por detrás... Não preparei bem as coisas? Quando o vento é de popa é fácil que aconteça ultrapassar-se o bem-amado, mas com o vento de proa torna-se agradável procurar refúgio junto dele; o sopro do vento torna-vos mais sã, mais atraente, mais sedutora, ele refresca o que os lábios hão de dar e que deve, de preferência, ser saboreado frio por ser tão escaldante, tal como o champanhe que, quase gelando, aquece... Como elas riem, como conversam, - e o vento leva consigo as palavras - mas também, falar de quê? - e de novo riem, inclinam-se diante do vento, seguram os chapéus, tomam atenção aos passos... Parai agora, não se vão elas impacientar e zangar conosco, ou mesmo tomar-nos medo! - Perfeito; resoluta e dominadora, a perna direita que avança... que ousado e soberano o olhar que lança em volta... Se me não engano, dá o braço a alguém, está portanto noiva. Vejamos, minha filha, a oferta que te coube na árvore de Natal da vida... Ah! Sim, tem todo o ar de ser um noivo de confiança. Ela está pois nos primeiros tempos do noivado, ama-o - é muito possível, mas o seu amor esvoaça livremente ao redor dele, em círculos vastos e espaçosos; ela possui ainda essa capa do amor que pode envolver muitos outros... Um pouco mais de fôlego, meus amigos!... Sim, quando se caminha tão depressa não é de espantar que as fitas do chapéu se apertem para resistir ao vento, que as suas pontas flutuem como asas segundo os caprichos do vento, tal como esta leve silhueta - e o seu amor -, como uma revoada de elfos. Sim, quando se encara assim o amor, parece ele ser assaz extensivo; mas quando chega o momento de envergá-lo, quando o véu deve ser transformado no vestido que se usa sempre - então já não é possível o luxo de muitos folhos... Oh, meu Deus! Quando se tem a coragem de arriscar um passo decisivo para toda a vida, não se terá também a coragem de avançar diretamente contra o vento? Quem o duvida? Eu não; mas calma, minha donzelinha, calma. As intempéries castigam duramente, e o vento pode ser duro também... Arreliai-a um pouco!... Onde para o lenço?... Ah, bom! Sempre o conseguistes encontrar... E agora é uma das fitas do chapéu que se desata... Que coisa desagradável em presença do vosso futuro esposo... Ah, chega uma amiga que é preciso cumprimentar. É a primeira vez que ela vos vê desde que estais noiva, e é exatamente para vos mostrardes como tal que passeais aqui, na Bredgade, e com a intenção de vos dirigirdes depois a Langelinie. Tanto quanto sei, as recém-casadas têm o hábito de ir à igreja no primeiro domingo após o casamento, enquanto que as noivas vão a Langelinie. Sim, é por isso que os noivados têm geralmente muito em comum com Langelinie... Agora atenção, o vento quase vos leva o chapéu, segurai-o melhor, inclinai a cabeça. Que fatalidade! Não pudestes saudar a vossa amiga, faltava-vos a calma que permite a uma jovem noiva, com a altiva expressão requerida, cumprimentar as que o não estão... Soprai agora um pouco mais docemente!... Os dias melhores aproximam-se... Como ela se agarra ao bem-amado, tão à frente dele que pode voltar a cabeça, erguer os olhos para o seu rosto e sorrir-lhe, a ele que é o seu tesoiro, a sua felicidade, a sua esperança, o seu futuro... Oh! Minha filha, exageras... Pois não é graças ao vento e a mim que ele está com tão soberbo aspecto? E não é também graças a mim e à doce brisa, que agora te cuida e faz esquecer a tua dor, que tu própria pareces tão sã de corpo e de espírito, tão cheia de esperanças e pressentimentos? Og jeg vil ikke have en Student, Som ligger og laeser om Natten, Men jeg vil have en Officer, Som gaar bed Fjer udi Hatten. (E não quero um universitário, / que passa a noite lendo, / mas quero um militar, / que anda com pluma no chapéu.) Adivinha-se logo ao olhar-te, minha pequena, existe qualquer coisa no teu olhar... Não, um estudante não é de modo algum o que te convém... Mas por que precisamente um oficial? Um licenciado, tendo já acabado os seus anos de estudo, não seria também perfeito?... Contudo, de momento, não te posso oferecer nem um oficial nem um licenciado. Em contrapartida, posso enviar-te algumas lufadas amenas e refrescantes. Soprai um pouco mais!... Muito bem, lança o xale de seda por sobre o ombro; caminha lentamente, e assim as faces poderão empalidecer um pouco, um pouco menor será o brilho dos olhos!... Assim. Um pouco de exercício, sobretudo com um tempo tão delicioso como o de hoje, e, enfim, um pouco de paciência, desse modo por certo conseguíreis o vosso belo oficial. - Esses dois que se aproximam agora estão perfeitos um para o outro. Que retenção nos movimentos, que segurança no porte, testemunho de uma recíproca confiança, que harmonia praestabilita em todos os movimentos, que encantadora suficiência! Às suas atitudes faltam ligeireza e graça, não dançam um com o outro, não, neles existe permanência, franqueza, fontes de uma esperança infalível, e inspiradoras da estima recíproca. Aposto que a sua concepção da vida se resume nisto: a vida é um caminho. Assim, parecem eles destinados a passear de braço dado através das alegrias e dos desgostos da vida. Conjugam-se tão bem que a dama renunciou mesmo ao seu privilégio de seguir pelo lado de dentro do passeio... Mas, queridos zéfiros, porque vos ocupais de tal modo com este par que me não parece merecer a vossa atenção? Haverá alguma coisa interessante a notar? Porém é já uma hora e meia, a caminho de Höjbroplads! Não se julgaria possível prever com acuidade e nos seus mínimos detalhes, a história da evolução íntima de um ser. Isso demonstra quanto Cordélia é sã de corpo e de espírito. Sim, não há dúvida, é uma excelente jovem. Embora calma, modesta e simples, tem inconscientemente, em si própria, uma enorme exigência. - Tudo isto me impressionou hoje, ao vê-la entrar pela porta exterior da casa. A leve resistência que um sopro de vento pode provocar, parece acordar nela todas as faculdades sem que, no entanto, se produza uma luta interior. Ela não é uma rapariguinha insignificante que se desfaça entre os dedos, nem tão frágil que quase se tenha medo de vê-la quebrar-se se a olhamos; mas não é também uma flor de estufa cheia de pretensões. Eis porque, como um médico, eu me posso entregar ao prazer de observar todos os sintomas desta história clínica de uma ótima saúde. Pouco a pouco, os meus ataques começam a aproximar-se dela, a tornarem-se mais diretos. Se eu quisesse indicar esta mudança de táctica nas minhas relações com a família, diria que voltei a minha cadeira de modo a poder vê-la de lado. Interesso-me um pouco mais por ela, dirijo-lhe a palavra, arranco-lhe respostas. A sua alma é apaixonada, violenta e, sem que reflexões insensatas e vãs a tenham despertado para as coisas estranhas, ela sente uma necessidade do que é excepcional. A minha ironia a propósito da maldade dos homens, o meu troçar da sua cobardia e morna indolência, interessam-na. Ela gosta, segundo creio, de conduzir o carro do Sol através da abóbada celeste, de se aproximar demasiado da terra e queimar um pouco os homens. Mas não tem confiança em mim e, até agora, sempre opus obstáculos a qualquer tentativa de aproximação, ainda que espiritual. É necessário primeiro que, em si própria, ela adquira mais força, antes que eu lhe permita apoiar-se em mim. A intervalos, poder-se-ia ter a impressão de ser dela que eu gostaria de fazer uma confidente na minha franca maçonaria, mas isso apenas a intervalos. A sua evolução deve processar-se nela própria; ela deve dar-se conta da energia da sua alma, deve tentar tomar sozinha o peso ao mundo. Quantas coisas ela tem a dizer e como os seus olhos me mostram fàcilmente os progressos que tem feito; uma única vez descortinei neles um clarão de raiva impotente. É necessário que ela me não seja devedora de nada; pois ela deve sentir-se livre, o amor apenas se encontra na liberdade, apenas nela pode existir a recreação e o divertimento eternos. Porque embora a minha intenção seja fazê-la cair nos meus braços pela força das circunstâncias, por assim dizer, e me esforce por fazê-la gravitar na minha direção, é contudo também necessário que ela não tombe pesadamente, mas como um espírito que gravita para outro espírito. Embora ela deva pertencer-me, tal não deverá poder identificar-se com a fealdade de um fardo pesando sobre mim. Ela nunca deverá constituir para mim uma prisão física, nem uma obrigação moral. Entre nós dois, apenas deve reinar o efeito próprio da liberdade. Ela deve ser suficientemente leve para que eu a possa erguer com o braço estendido. Cordélia ocupa quase demasiadamente o meu espírito. De novo perco o meu equilíbrio, não perante ela quando está presente, mas, no sentido mais estrito, quando estou só com ela. Sucede-me suspirar por ela, não para lhe falar mas apenas para deixar a sua imagem adejar em frente dos meus olhos; poderei segui-la quando sei que saiu, não para ser visto mas para a ver. A noite passada saímos juntos de casa dos Baxter; Eduardo acompanhava-a. Separei-me deles a toda a pressa e escapei-me para uma outra rua onde me esperava o meu criado. Num ápice, mudei de fato, e pude encontrá-la uma segunda vez sem que ela desse por isso. Eduardo, como sempre, estava mudo. É verdade que estou apaixonado, não há dúvida, mas não no sentido próprio, e a este respeito é também necessário ser muito prudente, pois as consequências são sempre perigosas; e só se está apaixonado uma vez, não é assim? Mas o deus do amor é cego e, sendo-se suficientemente astuto, é possível enganá-lo. No que se refere às impressões colhidas, a arte consiste em ser tão receptivo quanto possível, e em saber aquela que se produz sobre as jovens, bem como a que estas nos provocam. Assim, pode-se estar apaixonado de muitas ao mesmo tempo; porque as amamos de diferentes maneiras. Amar apenas uma é demasiado pouco; amar todas é uma leviandade de caráter superficial; porém, conhecer-se a si próprio e amar um número tão grande quanto possível, encerrar na sua alma todas as energias do amor de modo que cada uma receba o alimento que lhe é próprio, ao mesmo tempo em que a consciência engloba o todo - eis o prazer, eis o que é a vida. 3 de Julho No fundo, Eduardo não pode queixar-se de mim. É realmente verdade eu pretender que Cordélia se apaixone por ele, que, graças a ele, se desgoste do amor puro e simples e, por esse caminho, ultrapasse os seus próprios limites; mas, para assim suceder, é precisamente necessário que Eduardo não seja uma caricatura; caso contrário, torna-se inútil, Eduardo não só constitui, na opinião geral, um bom partido, - aos olhos de Cordélia isto nada significa, porque uma donzela de dezessete anos não considera tais coisas - mas é ainda pessoalmente dotado de várias qualidades agradáveis, e eu faço o possível para lhe permitir tirar delas o maior partido. Como uma costureira, como um decorador, ornamento-o o melhor possível de acordo com os seus meios, - sim, por vezes enfeito-o mesmo com algum luxo tomado de empréstimo. E então, ao encaminharmo-nos ambos para casa de Cordélia, torna-se-me extremamente divertido caminhar a seu lado. É como se fosse meu irmão, meu filho e, no entanto, é um amigo, um jovem da minha idade, é um rival. Mas nunca poderá vir a ser perigoso para mim. Por consequência, quanto mais o elevo, a ele que afinal deverá tombar, mais e melhor desperta em Cordélia a consciência daquilo que despreza, com maior ardor vai adivinhando o que deseja. Ajudo-o a resolver as dificuldades, recomendo-o, enfim, faço tudo o que um amigo pode fazer pelo seu amigo. Para pôr bem em evidência a minha frieza, chego quase a declamar contra Eduardo. Descrevo-o como um sonhador. Dado que Eduardo é absolutamente incapaz de caminhar sozinho, é necessário que eu me encarregue de o pôr em evidência. Cordélia odeia-me e teme-me. Que pode uma donzela temer? O espírito. Por quê? Porque o espírito constitui a negação de toda a sua existência feminina. A beleza masculina, uma natureza dominadora, etc., são bons meios e também servem para alcançar conquistas, mas nunca conseguem obter uma vitória completa, Por quê? Porque se guerreia contra a jovem no seu próprio terreno e, aí, ela é sempre a mais forte. Tais meios podem servir para fazer corar uma donzela, para obrigá-la a baixar os olhos, mas nunca para provocar essa angústia indescritível e capciosa que torna a sua beleza interessante. Non formosus erat, sed erat facundus Ulixes, Et tamen aequoreas torsit amore Deas. (Ulisses não era formoso, mas eloquente, / E todavia fez por ele se apaixonarem as Sereias.) Enfim, deve cada um conhecer as suas próprias forças, Mas muitas vezes me revoltei ao ver que mesmo aqueles que são dotados se comportam tão desastradamente. No fundo, no caso de qualquer jovem, vítima de um amor de outro ou, melhor, do seu próprio, deveria ser possível discernir imediatamente, bastando para isso apenas olhá-la, em que sentido foi ela iludida. Um assassino experimentado vibra os seus golpes sempre do mesmo modo e, ao olhar a ferida, um polícia inteligente reconhece à primeira vista o autor do crime. Mas onde encontraremos tais sedutores sistemáticos ou tais psicólogos? Seduzir uma jovem significa para a maior parte das pessoas: seduzir uma jovem, e está tudo dito; e, no entanto, toda uma linguagem se oculta neste pensamento. Como mulher - odeia-me; como mulher dotada - teme-me; como inteligência desperta - ama-me. Foi esta a primeira luta que provoquei na sua alma. O meu orgulho, a minha obstinação, a minha fria troça, a minha ironia sem coração tentam-na; não como se ela estivesse inclinada a amar-me; não, decerto não existe o menor traço de tais sentimentos nela, sobretudo no que a mim se refere. Ela quer, sim, rivalizar comigo. Tentam-na a orgulhosa independência perante os homens, uma liberdade como a dos Árabes no deserto. O meu riso e a excentricidade neutralizam qualquer manifestação erótica. Ela é bastante livre comigo e, quanto a reserva, é mais intelectual que feminina. Está tão longe de ver em mim um possível amante, que as nossas relações não passam das existentes entre duas grandes inteligências. Me pega na mão e aperta-a, ri e tem por mim um interesse no sentido puramente grego. Tendo-a pois mistificado durante tanto tempo com a ironia e a troça, sigo as diretivas da velha canção: o cavaleiro desdobra o seu capote de um tão vivo vermelho e pede à bela jovem que sobre ele se sente. Mas eu não abro o meu capote para ficar sentado junto dela, sobre o relvado, antes sim para desaparecer com ela pelos ares fora, nas asas do pensamento. Ou, sem a levar comigo, cavalgo um pensamento, envio-lhe um beijo com a mão, aceno-lhe um adeus, torno-me invisível para ela e audível somente pelo sussurro das aladas palavras. Não me vou tornando, como Jeová, cada vez mais visível graças à voz, mas sim cada vez menos, pois quanto mais falo mais me elevo. E então ela pretende seguir-me, pôr-se a caminho para o voo ousado dos pensamentos. Mas isto apenas um instante. No instante seguinte volto a ser frio e seco. Há várias espécies de rubor feminino. Há a vermelhidão grosseira, cor de tijolo. Desta se servem, com grande frequência, os autores de romances quando fazem corar as suas heroínas über und über (Cada vez mais). E depois há o rubor delicado; este é a aurora matinal do espírito que, numa jovem, adquire inapreciável valor. A vermelhidão furtiva, resultante de uma ideia feliz, é bela no homem, mais bela ainda no adolescente, encantadora na mulher. É o clarão de tempestade, o relâmpago do calor do espírito. É o mais belo no adolescente, encantador na donzela porque se mostra na sua virgindade, e por isso tem também o pudor da surpresa. Quanto mais se envelhece, tanto mais desaparece tal rubor. Por vezes leio em voz alta para Cordélia; trata-se, em geral, de trechos bem pouco emocionantes. Como de costume, é Eduardo quem me serve de intermediário; apontei-lhe que um meio muito útil para estreitar relações com uma jovem consiste em emprestar-lhe livros. Assim, sempre ganhou alguma coisa, pois ela fica-lhe bastante grata. Mas sou eu afinal quem mais lucra, porque decido a escolha dos livros, embora me mantendo de parte. Tenho ai um vasto campo livre para as minhas observações. Posso dar a Eduardo qualquer livro que me agrade, dado que ele nada entende de literatura. Posso ser tão ousado quanto pretendo, chegar não importa a que extremos. Então, quando à tarde me encontro com ela, pego como por acaso num livro, folheio-o displicentemente, leio a meia voz e elogio a atenção de Eduardo. Ontem à tarde quis, através de uma experiência, dar-me conta da elasticidade espiritual de Cordélia. Não sabia se devia pedir a Eduardo que lhe emprestasse os poemas de Schiller para abri-los acidentalmente no canto de Tecla que leria em voz alta, ou os poemas de Bürger. Acabei por optar por estes últimos, principalmente porque a sua «Leonor», apesar de toda a sua beleza, tem um pouco de exaltação. Abri pois o livro e li este poema com todo o patético possível. Cordélia estava emocionada, cosia rapidamente como se fosse ela quem Vilhelm vinha raptar. Cheguei ao fim. A tia escutara sem prestar muita atenção; ela não teme os Vilhelm, vivos ou mortos, e além disso não compreende muito bem o alemão; mas ficou perfeitamente à vontade logo que lhe mostrei a bela encadernação do livro e comecei a dissertar sobre a arte do encadernador. A minha intenção era destruir em Cordélia o efeito do patético, no preciso instante em que ele se produzia. Estava um pouco ansiosa mas era manifesto que tal ansiedade a não tentava, antes criava nela um efeito unheimlich (Inquietante). Hoje os meus olhos repousaram pela primeira vez sobre ela. Diz-se que o sono pode tornar as pálpebras pesadas até as fechar; este olhar teria talvez um poder semelhante. Os olhos cerram-se, e contudo agitam-se nela forças obscuras. Não vê que a olho, sente-o, todo o seu corpo o sente. Os olhos cerram-se e é a noite; mas nela, é dia claro. É necessário que Eduardo desapareça. Chegou já aos últimos limites; temo a cada instante, que ele lhe vá fazer uma declaração de amor. Ninguém o pode saber melhor que eu, seu confidente, que propositadamente o mantenho nesta exaltação a fim de que ele possa influenciar melhor Cordélia. Seria porém arriscar demasiado permitir-lhe jure fizesse a confissão do seu amor. Bem sei que receberia uma recusa, mas isso não poria fim à situação. A recusa iria decerto afetá-lo muito, o que poderia talvez emocionar e enternecer Cordélia, Embora num tal caso eu não deva temer o pior, ou seja, que ela volte atrás com a recusa, é possível que o seu orgulho de alma venha a sofrer com este simples confronto. E se tal fosse o caso, eu teria falhado completamente objetivo para o qual me servira de Eduardo. As minhas relações com Cordélia começam a tomar um aspecto dramático. Aconteça o que acontecer, não poderei manter-me durante muito tempo como simples espectador, sob pena de deixar escapar-se o instante decisivo. É indispensável que ela seja tomada de surpresa, mas, se quiser surpreendê-la, é indispensável ocupar a posição certa. O que geralmente poderia surpreender outras não teria talvez o mesmo efeito sobre ela. No fundo, ela deveria ser surpreendida de tal modo que, nesse preciso instante, a razão dessa surpresa seja algo de quase totalmente banal. Apenas pouco a pouco e implicitamente deverá algo de extraordinário fazer a sua aparição. É também sempre esta a lei que rege o interessante e, por seu lado, a lei que conduz todos os meus movimentos no que diz respeito a Cordélia. Desde que se saiba surpreender, a partida está sempre ganha; suspendemos por um instante a força interior daquela de quem se trata, pomo-la assim na impossibilidade de agir, seja aliás qual for o meio empregado, o meio extraordinário ou o meio comum. Recordo ainda com certa vaidade uma temerária tentativa praticada contra uma dama da alta sociedade. Já de há algum tempo que eu rondava secretamente, e sempre em vão, ao redor dela, em busca de um contato interessante, quando, uma tarde, a avisto na rua. Ia só. Estava certo de que ela me não conhecia ou, pelo menos, ignorava o fato de eu habitar em Copenhague. Adiantei-me, para me encontrar com ela de frente. Chegado perto, afastei-me a fim de lhe dar o lado de dentro do passeio. Nesse instante, lancei-lhe um olhar melancólico e julgo que quase me chegaram as lágrimas aos olhos. Tirei o chapéu. Ela parou. Com voz comovida e olhar sonhador, disse-lhe: «Não vos enfadeis, Menina. Entre as vossas feições e as de alguém que amo com todo o coração, mas vive longe de mim, existe uma semelhança tão grande que decerto me perdoareis esta estranha conduta». Julgava ela estar perante um sonhador, e qualquer jovem gosta de um pouco de sonho, principalmente quando, ao mesmo tempo, tem o sentimento da sua superioridade e ousa sorrir de nós. Não me enganara, ela sorria, e com um sorriso encantador. Saudou-me com uma digna condescendência e voltou a sorrir. Retomou o seu caminho e eu dei, quando muito, dois passos a seu lado. Alguns dias mais tarde voltei a encontrá-la e permiti-me dirigir-lhe um cumprimento. Riu-se-me na cara. Mas a paciência é uma preciosa virtude e o último a rir é quem ri melhor. Haveria vários meios para surpreender Cordélia, Poderia tentar desencadear uma tempestade erótica, capaz de arrancar árvores pela raiz. Graças a ela, conseguiria talvez fazê-la perder o equilíbrio, arrancá-la à relação de dependência; e, em tal agitação, poderia tentar, por meio de encontros secretos, provocar a sua paixão. Tal não é inimaginável. É fora de dúvida que uma rapariga, tão apaixonada como ela, pode ser conduzida a não importa o quê. Contudo, esteticamente pensando, isto não seria correto. Não gosto da vertigem, e tal estado só é recomendável quando nos achamos perante jovens que, de outro modo, não poderiam alcançar um reflexo poético. Por outro lado, seria fácil perder-se o verdadeiro prazer, dado que a emoção demasiada é também nociva. Em relação a ela, tal medida revelar-se-ia inteiramente errada. Em poucas remadas eu abordaria talvez aquilo de que poderia, de outro modo, fruir durante muito tempo, sim, pior ainda, aquilo de que, usando de todo o meu sangue-frio, poderia obter o prazer mais completo e rico. Não convém fruir Cordélia ria exaltação. No primeiro instante, ela ficaria talvez surpreendida se eu assim me conduzisse, mas em breve estaria saciada, precisamente porque tal surpresa estaria demasiado próxima da sua alma ousada. De todos os meios, os esponsais puros e simples seriam os melhores, os mais a propósito. Para ela será talvez tão impossível acreditar nos seus próprios sentidos quando me ouvir fazer uma prosaica confissão de amor e pedi-la em casamento, como seria se escutasse a minha inflamada eloquência, bebesse o meu vinho inebriante e envenenado, ou ouvisse o bater do seu coração perante a ideia de um rapto. Quanto aos esponsais, o diabo é haver neles sempre tanta ética, o que é tão enfadonho quando se trata de ciência como quando se trata da vida. Que espantosa diferença! Sob o céu da estética tudo é leve, belo, fugitivo, mas assim que a ética se mete no assunto tudo se torna duro, anguloso, infinitamente fatigante. Contudo, os esponsais não têm, em sentido estrito, a realidade ética de um casamento, apenas devem a sua validade a ex consensu gentium (ao consenso dos povos). Esse equívoco pode-me ser assaz útil. Existe aqui a precisa quantidade de ética para que Cordélia, chegado o momento, tenha a impressão de ultrapassar os limites do comum e, por outro lado, essa ética não é suficientemente grave para que eu deva temer um choque mais inquietante, Sempre tive certo respeito pela ética. Nunca fiz qualquer promessa de casamento a uma jovem, nem sequer por descuido; e se, desta vez, der a ideia de fazer uma, é necessário recordar que se trata de uma conduta simulada. Arranjarei as coisas de modo a ser ela própria quem quebre o compromisso. O meu orgulho cavalheiresco despreza as promessas. Desprezo o juiz que arranca a confissão a um delinquente com uma promessa de liberdade. Tal juiz renuncia à sua força e ao seu talento. À minha prática acrescenta-se ainda o fato de eu nada desejar que, no mais estrito sentido, não seja dado livremente. Que se sirvam de tais meios os sedutores de pacotilha! Que ganham eles afinal com isso? Aquele que não sabe fazer o cerco a uma donzela até que ela perca tudo o mais de vista, aquele que não sabe, à medida do seu desejo, fazer acreditar a essa donzela que ela é quem toma todas as iniciativas, esse homem é e será sempre um desajeitado; não invejo o seu prazer. Tal homem é e será sempre um inábil, um sedutor, termos que de modo algum se podem aplicar a mim. Eu sou um esteta, um erótico, que apreendeu a natureza do amor, a sua essência, que crê no amor e o conhece a fundo, e apenas me reservo a opinião muito pessoal de que uma aventura galante só dura, quando muito, seis meses, e que tudo chegou ao fim quando se alcançam os últimos favores. Sei tudo isto, mas sei também que o supremo prazer imaginável é ser amado, ser amado acima de tudo. Introduzir-se como um sonho na imaginação de uma jovem é uma arte, sair dela, uma obra-prima. Mas esta depende essencialmente daquela. Seria possível outro meio. Poderia arranjar tudo para que ela ficasse noiva de Eduardo. Eu seria então o amigo da casa. Eduardo teria em mim uma inteira confiança, pois a mim teria ficado a dever a sua felicidade. E teria então algo a ganhar mantendo-me mais escondido. Não, isto de nada vale. Ela não pode ser noiva de Eduardo sem que, de um ou de outro modo, se rebaixe. Mais ainda, as minhas relações com ela tornar-se-iam assim mais picantes que interessantes. O infinito prosaísmo inerente aos esponsais é justamente a pedra de toque do que é interessante. Em casa das Wahl, tudo se torna cada vez mais significativo. Sente-se claramente que uma vida oculta se agita sob as formas de todos os dias, e que essa vida se deve brevemente manifestar numa revelação conexa. A casa das Wahl prepara-se para uns esponsais. Um observador estranho pensaria talvez numa união entre mim e a tia. Ah, e que não poderia tal casamento produzir, na próxima geração, a favor do propagar dos conhecimentos de economia rural! Eu seria então tio de Cordélia. Sou a favor da liberdade de pensamento e não há ideia, por mais absurda, que eu não tenha a coragem de encarar. Cordélia teme uma declaração de amor de Eduardo, mas este espera que tal declaração venha a decidir tudo. E a verdade é que pode estar certo disso. Porém, a fim de poupá-lo às desagradáveis consequências de tal passo, tratarei de me adiantar a ele. Espero em breve dar-lhe baixa, pois a verdade é que me impede o caminho. Ainda hoje o senti perfeitamente. Com aquele ar de sonhador, embriagado de paixão, podemos temer que ele se erga subitamente como um sonâmbulo e, perante toda a comunidade, confesse o seu amor. Mantém-se numa contemplação tão objetiva que nem sequer se aproxima de Cordélia. Lancei-lhe hoje um olhar severo. Como um elefante que agarra num objeto com a tromba, estendi-o ao comprido sobre os meus olhares e fi-lo cair de costas. Embora não se tenha movido da cadeira, creio que sentiu em todo o corpo o choque dessa queda. Cordélia já não está tão segura de si, na minha presença, como outrora. Aproximava-se sempre de mim com uma segurança feminina, agora hesita um pouco. Contudo, isto não tem grande importância e, ser-me-ia fácil fazer voltar tudo à forma primitiva. Porém, não pretendo tal. Ainda uma última sondagem e logo, os esponsais. Estes não podem apresentar qualquer dificuldade. Cordélia, na sua surpresa, dirá: sim, e a tia: um amem cordial. Ficará louca de alegria por ter um genro tão agronômico. Genro! Como tudo fica unido como os dedos da mão quando nos arriscamos sobre este terreno. No fundo não serei seu genro, mas apenas seu sobrinho, ou antes, volente Deo (se Deus quiser), nem uma coisa nem outra. 23 de julho Colhi hoje o fruto de um boato que pus a correr, segundo o qual estaria apaixonado por uma jovem. Graças a Eduardo, esse boato chegou também aos ouvidos de Cordélia. Está cheia de curiosidade, observa-me, mas não ousa qualquer pergunta; e no entanto, não deixa de ser importante para ela adquirir uma certeza, por um lado porque o fato ultrapassa toda a credibilidade e, por outro, porque veria nele quase um antecedente para si própria; porque se um trocista tão frio como eu se pode apaixonar, também ela o poderia fazer sem ter que corar por isso. Hoje fiz alusão ao caso. Creio saber contar uma história de modo a não se perder o fio à meada e sem que o desenlace chegue demasiado cedo. E o meu prazer é manter in suspenso os que me escutam, verificar através de pequenas reações episódicas o final que preferem para a minha narrativa, e enganá-las durante o seu curso. A minha arte reside em utilizar anfibologias para que me compreendam num sentido e se apercebam subitamente de que as minhas palavras podem ser entendidas também de outro modo. Quando se pretende ter uma boa ocasião para observações especiais, é sempre necessário fazer um discurso. Numa conversa, os outros escapam-nos mais fàcilmente e, através de um jogo de perguntas e respostas, podem ocultar melhor a impressão produzida pelas palavras. Comecei com solene gravidade o meu discurso à tia: «Deverei atribuí-lo à benevolência dos meus amigos ou à maldade dos meus inimigos? E quem não terá ambos, em excesso?» Neste ponto fez a tia uma observação a que respondi o mais longamente possível a fim de manter em suspenso Cordélia, que escutava e não podia interpor-se, dado que era com a tia que eu falava, e com tanta solenidade. Continuei: «ou devo atribuí-la a um acaso, ao generatio aequivoca de um boato...» - Aparentemente Cordélia não compreendia esta expressão, que apenas tornava a frase confusa, e isto tanto mais quanto eu lhe dava uma falsa importância, pronunciando-a com um ar matreiro, como se fosse o essencial no que eu tinha a dizer - «um acaso, que me tornou objeto de comentários, a mim que tenho por hábito viver escondido do mundo; estes comentários pretendendo que estou noivo»; Cordélia continuava evidentemente à espera das minhas explicações, e continuei: «foram talvez os meus amigos que os lançaram a correr, dado que se deve considerar sempre uma grande felicidade estar apaixonado (ficou interdita), ou os meus inimigos, pois que toda a gente considerará sempre assaz ridículo que me caiba essa felicidade (movimento em sentido inverso), ou foi um puro acaso, dado que não existe a menor razão de base; ou será ainda a generatio aequivoca pois o boato deve ter nascido graças às irrefletidas obsessões de qualquer cabeça de vento.» Com uma curiosidade bem feminina, a tia estava impaciente por conhecer o nome da dama que me teria agradado desposar. Mas a este respeito, furtei-me a responder a qualquer pergunta. Toda a história causou uma impressão em Cordélia, e quase estou tentado a crer que as ações de Eduardo subiram alguns pontos. Aproxima-se o instante decisivo. Poderia dirigir-me à tia e pedir, por escrito, a mão de Cordélia. Por certo que é esse o processo habitual nos assuntos do coração, como se fosse mais natural para o coração exprimir-se por escrito que de viva voz. Mas o que me levaria a escolher este processo é precisamente o que nele existe de pretensioso. Se o escolher, ver-me-ei privado da surpresa propriamente dita e não quero renunciar a ela. - Se eu tivesse um amigo, talvez ele me dissesse: já pensaste bem no grave passo que vais dar, um passo que decidirá de toda a tua vida futura e da felicidade de outrem? É precisamente essa a vantagem que se possui tendo um amigo. Não tenho amigos; não vou decidir se isso é uma vantagem, mas estar dispensado dos seus conselhos é, segundo o meu modo de ver, uma vantagem absoluta. Aliás, e no sentido mais estrito, meditei maduramente todo o assunto. No que me diz respeito, já nada se opõe aos esponsais. Sou pois um candidato a esposo, - mas quem será capaz de o imaginar ao ver-me? Em breve será a minha pobre pessoa olhada de um ponto de vista superior. Uma pessoa é precisamente o que deixo de ser, para me tornar - um partido; sim, um bom partido, dirá a tia. É ela quem me causa maior dó; porque ela ama-me com um amor agronômico tão puro e sincero, a ponto de quase me adorar como seu ideal. Já fiz, na minha vida, muitas declarações de amor e, no entanto, toda a minha experiência me é absolutamente inútil neste caso; é que esta declaração deve ser feita de um modo particularíssimo. O que sobretudo devo inculcar no meu espírito é que se trata apenas de uma simulação. Não foram poucos os estudos de maneiras de andar que fiz, para encontrar a melhor maneira de me apresentar. Seria imprudente pôr no meu passo demasiado erotismo, pois tal arriscar-se-ia a ser uma antecipação daquilo que deve seguir-se mais tarde, e desenvolver-se gradualmente; demasiada gravidade seria perigosa; tal momento tem tanta importância para uma rapariga, que toda a sua alma se pode fixar a ele, como a de um moribundo à sua última vontade; adotar o passo cordial ou o de uma humildade cômica, estaria em desacordo com a máscara até agora apresentada por mim, e também com a nova que tenho a intenção de pôr e usar; torná-lo espiritual e irônico seria arriscar demasiado. Se o essencial para mim, como, em tal ocasião, para as pessoas em geral, fosse obter o pequeno «sim», seria muito fácil. É verdade que isto é importante, mas não de uma importância absoluta; porque, embora eu tenha lançado os olhos sobre esta jovem de uma vez para sempre, embora lhe tenha devotado muita atenção, sim: todo o meu interesse, há no entanto condições que me não permitiriam aceitar-lhe o sim. De modo algum me interessa possuí-la no sentido grosseiro, o que me importa é fruí-la no sentido artístico. É por isso que é necessário pôr tanta arte quanto possível neste início. Deve este ter uma forma o mais possível vaga e abrir caminho a todo o tipo de possibilidades. Ela compreender-me-á mal se vir logo em mim um sedutor, pois, em sentido vulgar, não o sou; mas se me tomar por um amante fiel, também se enganará a meu respeito. O que importa pois é que, neste episódio, a sua alma fique tão pouco determinada quanto possível. Num tal momento a alma de uma jovem é profética como a de um moribundo. É isso que é necessário impedir. Minha encantadora Cordélia! Privo-te de algo de belo, mas contra isto nada há a fazer e dar-te-ei todas as compensações que estejam em meu poder. Todo o episódio se deve manter numa perfeita insignificância para que, após ter-me dado o seu sim, ela não seja de modo algum capaz de dar conta do que se pode ocultar nas nossas relações. É precisamente essa possibilidade infinita que constitui o que é interessante. Se ela fosse capaz de prever alguma coisa, eu ter-me-ia enganado no caminho e as nossas relações perderiam o seu sentido. Não é imaginável que ela me diga sim por me ter amor, pois não existe nela qualquer amor por mim. O melhor seria que eu conseguisse transformar os esponsais de modo que eles se tornassem um acontecimento em vez de serem um ato, que se tomassem algo que lhe acontece em vez de serem qualquer coisa que ela faz; o melhor seria que ela pudesse vir a dizer: «Deus sabe como aconteceu tudo isto.» 31 de Julho Hoje escrevi, por outrem, uma carta de amor, o que me dá sempre grande prazer. Começa porque é sempre assaz interessante aprofundar tal situação, e isto com pouco dispêndio. O cachimbo bem cheio, ouço a história, e são-me postas em frente dos olhos as cartas da donzela em questão. Interesso-me sempre vivamente pelo modo como uma jovem se exprime por escrito. Ei-lo pois ali, apaixonado como um pombinho, lê-me as cartas e é interrompido por lacônicos comentários, deste jaez: «ela escreve bem, tem sentimento, gosto, prudência, não é decerto a primeira vez que ama, etc.». Em segundo lugar faço uma boa ação, Ajudo jovens a unirem-se; depois tomo o que me cabe. Por cada par feliz lanço as vistas sobre uma nova vítima; torno duas pessoas felizes e, quando muito, apenas uma infeliz. Sou honesto, pode-se confiar em mim, nunca enganei ninguém que me tenha aberto o coração. Da minha parte, há sempre um pouco de comédia - mas enfim, isso apenas representa os legítimos emolumentos. E porque têm tanta confiança em mim? Porque sei as línguas clássicas, sou assíduo nos meus estudos e guardo sempre para mim próprio as minhas pequenas histórias. E por certo que mereço esta confiança, não é assim? Pois se nunca abuso dela. 2 de Agosto O momento chegara. Tinha entrevisto a tia na rua e, portanto, sabia que não estava em casa. Eduardo fora à alfândega. Consequentemente, todas as possibilidades eram a favor de Cordélia se encontrar sozinha em casa. E assim era, trabalhava diante do seu bastidor. É muito raro que eu as visite de manhã pelo que, ao ver-me, ficou um pouco emocionada. O fato quase fez perigar a situação. Isto não teria aliás sido falta sua, pois logo se recompôs, mas sim minha, porque, apesar da minha couraça, ela me causou uma emoção excepcionalmente forte. Como estava graciosa no seu vestido muito simples, de algodão, às riscas azuis, com uma rosa acabada de colher, tão fresca e viçosa como se tivesse desabrochado naquele mesmo instante. Quem poderá dizer-me onde uma jovem passa a noite? - certamente no reino dos sonhos de onde volta, em cada manhã, cheia de uma juvenil frescura. Parecia tão jovem e, no entanto, tão perfeita, como se a natureza, semelhante a uma mãe terna e generosa, apenas naquele instante a houvesse deixado escapar das suas mãos. Tinha a impressão de ser testemunha dessa despedida, via como essa terna mãe a beijava uma última vez antes de se separar dela, e ouvia-se dizer: «Vai por montes e vales, minha filha, tudo o que fiz foi para ti; toma este beijo como um selo sobre os teus lábios; um selo que guardará o santuário e que ninguém poderá quebrar sem que tu própria o queiras; mas quando chegar aquele que deve vir, saberás compreendê-lo.» E depõe um beijo sobre os seus lábios, um beijo que de nada se apodera como o faz um beijo humano, mas um beijo divino que tudo dá, que dá à jovem o poder do beijo, Oh! Natureza maravilhosa, profunda e enigmática, é certo que dás a palavra aos homens, mas às jovens ofereces a eloquência do beijo! Era esse beijo que eu via pousado nos seus lábios, esse adeus que eu descortinava na sua fronte, essa saudação jovial que transparecia no seu olhar, e por isso ela me aparecia ao mesmo tempo tão familiar, pois ela é sem dúvida a jovem da casa, e tão estrangeira, porque não conhecia o mundo, mas apenas a terna mãe que invisível, velava por ela. Estava verdadeiramente encantadora, jovem como uma criança e, contudo, impregnada da nobre dignidade virginal que obriga ao respeito. - Mas em breve voltei a ficar de novo frio. E solenemente estúpido, como convém quando se pretende fazer algo importante sem que esse algo tenha, na realidade, qualquer sentido. Após algumas considerações de ordem geral, aproximei-me um pouco dela e larguei o meu pedido. É extremamente enfadonho escutar alguém que fala como um livro aberto. Sobriamente, limitei-me a algumas fórmulas consagradas. Tal como eu esperava, ficou incontestàvelmente surpreendida. É-me difícil analisar a sua expressão, nesse momento, Era complexa, sim, pouco mais ou menos como o comentário, ainda não editado mas já anunciado, ao meu livro, comentário que admitirá todas as possibilidades de interpretação. Uma palavra, e ela ter-se-ia rido de mim, uma palavra, e teria ficado comovida, uma palavra, e ter-me-ia evitado: mas nenhuma palavra se soltava dos meus lábios: mantinha-me solenemente estúpido, e seguia estritamente o ritual. «Havia tão pouco tempo que ela me conhecia», que querem, é apenas no caminho estreito dos esponsais que se encontram tais dificuldades, não nas floridas veredas do amor. Coisa curiosa! Quando nos dias precedentes, eu refletia em toda a questão, tinha a certeza de que, no primeiro momento de surpresa, ela diria sim. Mas, aí está; para que servem afinal todos os preparativos? Não foi assim que o assunto terminou, pois ela não disse nem sim nem não, e respondeu que eu me deveria dirigir à tia, Devia tê-lo previsto. Não há dúvida de que tenho sorte, pois este resultado é ainda melhor, A tia dará o seu consentimento, do que aliás nunca duvidei. Cordélia seguirá os seus conselhos, Quanto ao meu noivado, não me poderei orgulhar da sua poesia; é, a todos os títulos, cheio de integridade, eivado de espírito comercial. A rapariga não sabe se deve dizer sim ou não; a tia dirá sim, ela dirá sim também, eu fico com ela, ela comigo - e a história poderá começar. 3 de Agosto Eis-me pois noivo, Cordélia também, e isto é, pouco mais ou menos, tudo que ela sabe sobre este assunto. Se ela tivesse uma amiga a quem falar com sinceridade, provàvelmente diria: Que sentido atribuir a tudo isto? Na verdade não o entendo. Há qualquer coisa nele que me aerai, mas ré em vão que tento encontrar o quê. É certo que tem um estranho poder sobre mim, mas amá-lo? Não, e creio que tal nunca sucederá; no entanto julgo que suportarei bem viver com ele e, portanto, poderei também chegar a ser feliz com ele; estou quase certa de que não exigirá muito de mim, desde que eu tenha a paciência de suportá-lo. Minha pobre Cordélia! Ele exigirá talvez mais e, em contrapartida, menos tolerância. - De entre todas as coisas ridículas, é o noivado que tem o primeiro lugar. O casamento tem, pelo menos, um sentido, embora seja um sentido pouco cômodo para mim. O noivado é uma invenção puramente humana e não traz honra a quem o inventou. Não é nem carne nem peixe, e assemelha-se tão pouco ao amor como a faixa nas costas do bedel à toga de um professor. Sou, presentemente, membro dessa honrada confraria. Isto tem a sua importância porque, como diz Trop, apenas aquele que é artista adquire o direito de julgar os outros artistas. E um noivo, não será ele também um comediante como os de Dyrehavsbakken? Eduardo está fora de si, exasperado. Deixa crescer a barba e, o que não deixa de ter bastante importância, pendurou no armário o seu fato preto. Pretende ver Cordélia e descrever-lhe a minha perfídia. Devia ser uma cena pungente: Eduardo por barbear, negligentemente vestido e falando a Cordélia em altos brados, Só espero que ele se não sobreponha a mim no espírito da jovem, com a sua barba comprida. Entrego-me a vãos esforços para levá-lo à razão, explico-lhe que foi a tia quem arranjou o noivado, que Cordélia alimenta talvez ainda bons sentimentos em relação a ele, e que estou pronto a retirar-me se ele conseguir conquistá-la. Por momentos hesita, pensa em cortar a barba, em comprar um novo fato preto e, no momento seguinte, volta a tratar-me com aspereza. Faço todo o possível para me manter em bons termos de relação com ele. Por muito furioso que esteja contra mim, estou certo de que não dará um passo sem me consultar; ainda não esqueceu o que pôde obter de mim, na qualidade de seu mentor. Aliás, porque havia eu de lhe roubar a última esperança, ou mesmo romper com ele? É um homem de bem, e ninguém sabe o que o futuro nos reserva! Agora, o que tenho a fazer é, primeiramente, acomodar as coisas para acabar o noivado e garantir mais belas e importantes relações com Cordélia; depois, tirar o maior proveito possível do tempo para me comprazer em todo o encanto, tudo o que nela é digno de ser amado, todas as graças com que a natureza tão abundantemente a dotou; comprazer-me, com toda a reserva e circunspecção que impedem o anteciparmo-nos aos acontecimentos. Quando eu conseguir chegar a fazê-la compreender o que é o amor, o amor por mim, então o noivado desmoronar-se-á naturalmente como representando um estado imperfeito, e ela será minha. Há outros que ficam noivos quando chegam a este ponto, e terão assim boas possibilidades de obter um enfadonho casamento, para toda a eternidade. Tanto pior para eles. Tudo se mantém ainda no status quo; mas duvido que exista noivo mais feliz que eu, ou avarento possuído de maior beatitude ao descobrir uma moeda de ouro. Embriago-me com o pensamento de ter na minha posse essa feminilidade pura e inocente, transparente como o mar e, no entanto, profunda como ele, ignorante do amor! É agora que ela deve aprender o poder que no amor se oculta. É agora que ela deve ser instalada nesse reino onde lhe pertence estar, como uma princesa que, do pó, é elevada ao trono de seus pais. E essa deve ser a minha obra; aprendendo a amar, ela aprenderá a amar-me; à medida que ela aprende a regra, desenvolver-se-á o paradigma, e esse paradigma sou eu. Ao sentir no amor toda a sua própria importância, aplicá-la-á para me amar, e quando compreender que foi comigo que o aprendeu, amar-me-á duplamente. O pensamento da minha alegria futura sufoca-me de tal modo que quase perco o domínio sobre mim próprio. A sua alma não se evaporou, não afrouxou nas emoções indecisas do amor, o que faz com que muitas jovens nunca consigam amar, quer dizer, amar com um amor decidido, enérgico, total. Trazem na sua consciência uma indecisa fantasmagoria que deve constituir um ideal, segundo o qual deverá ser posto à prova o objeto real do amor. De tais meias medidas, resulta algo com que podem caminhar cristãmente, através da existência. - Enquanto nela desperta o amor, vou-o desvendando e escuto-o, fora dela, em todas as vozes do amor. Dou-me conta da forma que nela tomou e a de me adapto; e, tal como fui imediatamente incorporado na história que o amor percorre no seu coração, venho de novo ao seu encontro do exterior, e de um modo tão falacioso quanto possível. Porque uma jovem ama apenas uma vez. Eis-me pois na legítima posse de Cordélia, tenho o consentimento e a bênção da tia, as felicitações dos amigos e parentes; logo veremos se este estado de coisas persiste. São pois história passada as canseiras da guerra, e os benefícios da paz irão começar. Que imbecilidades! Como se as bênçãos da tia e as felicitações dos amigos fossem capazes de, no sentido mais profundo, me dar a posse de Cordélia: como se o amor exprimisse um tal contraste entre o tempo de guerra e o tempo de paz! Não será antes que, enquanto dura, ele se proclama em luta, ainda que as armas sejam outras? No fundo, a diferença reside no fato de a luta ter lugar cominus ou eminus (lutar corpo a corpo ou à distância). Nos negócios do coração, quanto mais à luta tem lugar eminus tanto mais triste é, tanto mais insignificante se torna o combate. O combate inclui apertos de mão, toques de pé, que Ovídio, como se sabe, recomenda e desaconselha ao mesmo tempo com um, profundo ciúme, isto para já não falar de beijos e abraços. Aquele que combate eminus apenas tem como armas, em geral, os seus olhos e, no entanto, se se souber servir deles artisticamente, o seu virtuosismo permitir-lhe-à chegar quase ao mesmo resultado. Poderá erguer os seus olhos para uma jovem com uma enganadora ternura, a qual age como se ele acidentalmente a tocasse; será capaz de apertá-la tão firmemente com os olhos como se a tivesse segurado nos braços. Mas será sempre um erro, ou uma infelicidade, lutar demasiado tempo eminus; pois tal luta é apenas uma indicação e não um prazer. É apenas ao combater cominus que tudo adquirirá o seu real significado. O amor cessa se não há combate. Quase não combati eminus, e eis porque me não encontro no final mas sim no início, e desembainho as armas. Possuo-a, é certo, mas no sentido jurídico e austero, - e daí não tiro qualquer vantagem, as minhas intenções são muito mais puras. Ela está noiva, noiva de mim, é certo; mas se eu daí concluísse que ela me tem amor, seria uma decepção, pois ela, pura e simplesmente, não ama. Possuo-a legitimamente, e contudo não estou de posse dela, tal como se pode muito bem estar de posse de uma jovem, sem a possuir legitimamente. Auf heimlich errötender Wange, Leuchtet des Herzens Glühen. (Nas faces familiarmente ruborizadas, brilham as chamas do coração). Está sentada no sofá, diante da mesa do chá, e eu, numa cadeira, ao lado dela. Esta posição, embora íntima, é de uma dignidade que mantém a distância. Um sem fim de coisas depende da posição, isto é, para aquele que compreende. O amor possui muitas, mas é esta a primeira. Como a natureza dotou principescamente esta jovem! As suas castas formas, tão doces, a sua profunda candura feminina, os seus olhos claros - tudo me inebria. - Cumprimentei-a. Ela veio ao meu encontro com a sua alegria habitual, mas um pouco confusa, um pouco desorientada. O noivado deve certamente modificar um pouco as nossas relações, mas como? Não o sabe; tomou-me a mão, mas sem sorrir como é seu costume. Correspondi ao seu cumprimento com um aperto de mão leve, quase imperceptível; mostrei-me afetuoso, amável, mas sem manifestar qualquer erotismo. - Está sentada no sofá, diante da mesa do chá, e eu, numa cadeira, ao lado dela. Paira sobre a situação uma solenidade radiosa, uma doce luz matinal. Cordélia mantém-se silenciosa, nada interrompe a calma. Os meus olhos deslizam docemente sobre ela, sem avidez, o que seria impudente. Um rubor leve e fugidio, como uma nuvem sobre os campos, passa por ela e esvai-se lentamente. Que significa esse rubor? Será amor, desejo, esperança, temor? Porque a cor do coração é o vermelho. Não, nenhuma de todas estas coias. Ela admira-se, está surpresa - não por minha causa, isso seria ver nela demasiado pouco; ela surpreende-se, não de si própria mas em si própria, e em si própria se transforma. Este instante exige silêncio, e por isso nenhuma reflexão deve vir perturbá-lo, nenhum ruído de paixão quebrá-lo. É como se eu estivesse ausente e, contudo, é precisamente a minha presença que se encontra na base da sua surpresa contemplativa. As nossas naturezas estão em harmonia; é em tal situação que uma jovem, tal como certas divindades, é adorada no silêncio. Que sorte habitar em casa de meu tio. Para fazer perder a um mancebo o gosto pelo tabaco, levá-lo-ia a qualquer sala de fumo de Regensen; se quiser que uma rapariga perca o gosto pelos noivados, basta-me trazê-la aqui. Do mesmo modo que só os alfaiates vão à sede da corporação dos alfaiates, aqui só vêm noivos. É assustador ver-se caído em tal companhia, e não posso censurar Cordélia por se impacientar. Quando nos reunimos en masse (em globo) penso que somos bem dez pares, sem contar com os batalhões anexos que, por ocasião das grandes festas, chegam da província. Apresento-me com Cordélia no centro do alvoroço a fim de desgostá-la destas apaixonadas banalidades, destas imperícias de operários do amor. Sem um momento de repouso, durante todo o serão, ouve-se um ruído como se alguém andasse por ali a passear com um mata-moscas - são os beijos dos apaixonados. Toda a gente se comporta nesta casa com um extraordinário à vontade; nem sequer se procuram os cantos, não! Fica-se sentado à volta de uma grande mesa redonda. E eu também finjo tratar Cordélia do mesmo modo. Para tal fim, é-me necessário fazer um esforço sobre mim próprio. Seria na verdade revoltante que eu me permitisse ferir desta maneira a sua profunda feminilidade. Censurar-me-ia mais se lhe fizesse isto que se a enganasse. Na verdade, todas as jovens que aceitam confiar-se a mim podem estar certas de um tratamento perfeitamente estético; apenas no fim, bem entendido, serão enganadas; mas esta é também uma cláusula da minha estética porque, ou bem que a jovem engana o homem, ou bem que o homem engana a jovem. Seria assaz interessante conseguir de qualquer rato de biblioteca que ele contasse nas fábulas, nas lendas, nas canções populares, nas mitologias, se uma jovem é mais vezes infiel que um homem. Não lamento o tempo que perco com Cordélia, se bem que seja bastante. Qualquer encontro requer, a maior parte das vezes, longos preparativos. Vivo com ela o nascer do seu amor. A minha presença é quase invisível, embora eu esteja visivelmente sentado junto dela. Uma dança que deveria realmente ser dançada por dois mas afinal o é apenas por um, eis a imagem que representa bem a minha relação com ela. Porque eu sou o segundo dançarino, mas invisível. Ela comporta-se como se sonhasse e, no entanto, dança com outro, sendo esse outro eu, invisível embora visivelmente presente, e visível embora invisível. Os movimentos exigem um segundo dançarino; ela inclina-se para ele, estende-lhe a mão, afasta-se numa volta rápida, aproxima-se de novo. Tomo-lhe a mão, completo o seu pensamento que está, contudo, perfeito e acabado nela própria. Os seus movimentos seguem a melodia da sua própria alma, e eu apenas sou o pretexto de tais movimentos. Não sou erótico, o que apenas serviria para despertá-la; sou leve, maleável, impessoal, quase represento um estado de alma. De que falam geralmente os noivos? Tanto quanto sei aplicam-se muito em se enredarem, um ao outro, nas enfadonhas relações de parentesco das suas famílias. Será pois de espantar que o erotismo não encontre lugar entre eles? Quem não sabe fazer do amor esse absoluto ao pé do qual qualquer outra história se reduz a nada, nunca deveria arriscar-se a amar, mesmo se se casasse dez veres. Se tenho uma tia que se chama Mariana, um tio que dá pelo nome de Cristóvão, um pai que é comandante de batalhão, etc., todas estas questões de notoriedade pública nada tem a ver com os mistérios do amor. Sim, até o nosso próprio passado é destituído de qualquer importância. Uma jovem nada tem geralmente a contar a este respeito; em caso contrário, poder-se-ia talvez escutá-la, mas não, durante a maior parte do tempo, amá-la. Pessoalmente não procuro histórias, - verdade se diga, não encontrei poucas -, procuro o imediato. O eterno fundamento do amor, é o fato de os indivíduos apenas nascerem um para o outro no seu instante supremo. É necessário despertar em Cordélia um pouco de confiança ou, melhor, afastar uma dúvida. Não pertenço exatamente ao número desses amantes que se amam por estima, casam por estima e, por estima, têm filhos; mas eu sei bem que o amor, principalmente enquanto a paixão não foi desencadeada, exige, daquele que é dele objeto, que não ofenda esteticamente a moral. A este respeito, tem o amor a sua própria dialética. Por exemplo, embora sob o ponto de vista da moral as minhas relações com Eduardo sejam muito mais censuráveis que a minha conduta para com a tia, ser-me-á bastante mais fácil justificar, junto de Cordélia, aquelas que esta. É certo que nada me disse, mas, de qualquer modo, achei que mais valia explicar-lhe por que me vira obrigado a conduzir-me assim. A minha precaução lisonjeou o seu orgulho, e o mistério de que eu rodeava o fato, cativou a sua atenção. É possível ter eu nisto traído já demasiada formação erótica, cair mais tarde em contradição comigo próprio, quando me vir forçado a insinuar que nunca estive apaixonado antes; mas isso não tem importância. Não terno contradizer-me, desde que ela não dê por tal e eu atinja o meu fim. Deixemos os sábios questionadores ter o maior dos orgulhos em evitar qualquer contradição; a vida de uma jovem é demasiado rica para ser isenta delas, e torna pois necessária a contradição. Cordélia é orgulhosa e, além disso, não faz qualquer ideia do erotismo. É certo que, no campo espiritual, me rende certa homenagem, mas quando o erotismo começar a adquirir importância é muito possível que ela seja suficientemente audaz para voltar contra mim o seu orgulho. Segundo tudo o que me foi possível observar, ela não sabe que pensar da importância real da mulher. Por isso foi fácil erguer contra Eduardo o seu orgulho. Mas tal orgulho era totalmente periférico, pois ela não tinha ideia alguma do amor. Assim que possuir uma, poderá nascer o seu verdadeiro orgulho; porém, poder-se-ia juntar a ele um resto desse orgulho periférico, e então é sempre possível que ela se volte contra mim. Não se arrependerá de ter consentido no noivado, mas ser-lhe-á fácil verificar que eu me libertei dele por baixo preço e que, no que lhe diz respeito, a história a deixa em má situação. A dar-se conta disso, ousará defrontar-me. Precisamente o que é necessário. Saberei então até que ponto a emoção a penetrou. É certo! De longe, na rua, vi já esta bela cabecinha encaracolada que se inclina o mais possível para fora da janela. Há já três dias que a noto... Decerto que não é sem razão que uma jovem espreita pela janela, tem sem dúvida os seus motivos... Mas, peço-vos, pelo amor de Deus, não vos inclineis assim tanto, aposto que tendes os pés na travessa da cadeira, adivinho-o pela posição. Lembrai-vos bem do horror que seria se caísseis sobre uma cabeça, não a minha pois, até nova ordem, me mantenho fora do assunto, mas a dele; porque, enfim, tem forçosamente de haver um ele qualquer... Mas, que vejo eu ali adiante, no meio da rua? - ah! É o meu amigo, o licenciado Hansen. A sua apresentação é singular, envergou um traje de circunstância e, a julgar pelas aparências, vem trazido nas asas do desejo. Será visita desta casa? E eu que o não sabia... Minha bela jovem, haveis desaparecido; oh, compreendo, fostes abrir a porta para o receber... Mas voltai, voltai, ele não vai de modo algum entrar nessa casa... Como sabei-lo melhor do que eu? Mas se vo-lo asseguro, foi ele próprio quem me disse. E se a carruagem que acaba de passar não tivesse feito tanto barulho, vós própria o teríeis podido ouvir. Dizia-lhe eu, oh! O mais acidentalmente possível: «Vens a esta casa?» E, sem hesitar, respondeu-me: «Não»... Bem lhe podeis dizer adeus, pois agora vamos dar um passeio, o licenciado e eu. Está embaraçado, e as pessoas embaraçadas gostam de tagarelar. Falar-lhe-ei agora da paróquia que ele pretende... Adeus, minha bela jovem, iremos até à alfândega. Ali chegando, dir-lhe-ei: maldição! O que tu me desviaste do caminho, e eu que tinha de ir a Vestergade. - Enfim, eis-nos aqui de novo... Que fidelidade - ainda à janela. Tal rapariga deve tornar um homem feliz... Mas, perguntais, porque faço eu tudo isto? Será porque sou um crápula cujo prazer consiste em arreliar os outros? De modo algum. É por solicitude para convosco, amável donzela, que o faço. Primeiro. Tereis esperado o licenciado tereis suspirado por ele e, quando chegar, parecerá duplamente belo aos vossos olhos. Segundo. Agora, quando o licenciado entrar, dirá: «Safa! Quase fomos apanhados. Então o diabo do homem não havia de estar em frente da tua porta, e logo quando eu te vinha visitar, Ah! Mas eu fui esperto, travei com ele uma grande conversa ta sobre a paróquia que procuro, e mais isto, e mais aquilo, arrastei-o até à alfândega; prometo-te que não deu por nada.» Bom, e depois? Pois bem, amareis mais que nunca o licenciado, porque sempre acreditastes que ele tinha excelentes qualidades de espírito, mas que ele fosse esperto... Vós própria o acabais de ver. E é a mim que deveis ficar agradecida. - Mas, pensemos melhor. Os vossos esponsais não foram evidentemente anunciados ainda, de outro modo já o teria sabido. A jovem é deliciosa e dá prazer aos olhos; mas é nova ainda e os seus conhecimentos não estarão talvez amadurecidos. Não será possível que ela vá dar um passo extremamente grave, irrefletidamente? É preciso impedi-la, é preciso que lhe fale. Devo-lho, pois não há dúvida de se tratar de uma jovem encantadora. E devo-o ao licenciado, pois é meu amigo, - e assim também a ela, dado que é a futura esposa do meu amigo. Devo-o à família que, sem a menor dúvida, é muito respeitável. Devo-o ao gênero humano, porque se trata de uma boa ação. A todo o gênero humano! Que alto pensamento, que desporto edificante, agir em nome de todo o gênero humano, e ter na sua posse um tão geral poder. - Mas voltemos a Cordélia. Posso sempre empregar estados de alma, e a bela languidez desta jovem emocionou-me realmente. É pois agora que começa a primeira guerra com Cordélia, guerra em que bato em retirada e a ensino assim a vencer, perseguindo-me. Continuarei a recusar e, nesse movimento de retirada, ensiná-la-ei a reconhecer, agindo sobre mim, todas as potencialidades do amor, os seus pensamentos inquietos, a sua paixão, e o que são o desejo, a esperança e a espera impaciente. Representando-os assim para ela, nela faço nascer e desenvolverem-se todos esses estados. Conduzo-a numa marcha triunfal, e sou aquele que canta os ditirâmbicos elogios da sua vitória, enquanto lhe guio os passos. Despertará nela a coragem de acreditar no amor e, ao ver o domínio que ele tem sobre mim, ao ver os meus reflexos, compreenderá enfim o seu poder eterno. Perante a minha confiança na minha arte, perante a verdade que está na base de tudo que faço, acreditar-me-á; porque, de outro modo, não me acreditaria. A cada um dos meus movimentos se torna ela mais e mais forte; nela nasce o amor, e é investida na dignidade de mulher. - No sentido banal não pedi ainda a sua mão, mas fá-lo-ei agora, libertá-la-ei, pois apenas assim a quero amar. É indispensável que ela não suspeite dever-me a liberdade, pois perderia a confiança em si própria. Então, quando se sentir livre, tão livre que chegará quase à tentação de romper comigo, começará a segunda guerra. Nesse momento terá força e paixão, e a luta será importante para mim; quanto às consequências imediatas, aconteça o que tiver de acontecer. Digamos que, no seu orgulho, é presa de vantagem e rompe comigo, enfim! Terá a sua liberdade; mas, de qualquer modo, virá a ser minha. É uma estupidez pensar que o noivado a aprisiona, pois só quero possuí-la na sua liberdade. Ainda que me abandone, a segunda guerra travar-se-á; e nessa luta vencerei, tão certo como a sua vitória ter sido, na primeira, uma ilusão, segundo o meu ponto de vista. Quanto mais alta for a plenitude das suas forças, tanto mais interessante tudo se tomará para mim. A primeira é uma guerra de libertação e um jogo; a segunda é a guerra da conquista, e é de vida ou de morte. Amo Cordélia? Sim! Sinceramente? Sim! Felizmente? Sim! - no sentido estético, e também isso tem um importante significado. De que serviria a esta jovem cair nas mãos de um desajeitado marido fiel? Que teria feito dela tal marido? Nada. Diz-se que, para triunfar na vida, é necessário algo mais que a honestidade; e eu diria que é necessário algo mais que a honestidade para amar uma jovem como esta. E eu possuo esse algo mais - é a falsidade. E no entanto, amo-a fielmente. É com a maior firmeza e continência que eu próprio velo para que se possa desenvolver tudo que nela existe, toda a riqueza da sua natureza divina. Sou um de entre os raros que o podem fazer, ela é uma de entre as poucas que têm as condições necessárias; não fomos pois feitos um para o outro? Farei mal em fixar os olhos no belo lenço bordado que tendes na mão, em vez de olhar o pastor? Fareis mal em segurá-lo assim?... Há um nome bordado no canto... Chamais-vos Charlotte Hahn. É bem sedutor ficar a saber o nome de uma dama desta maneira acidental. É como se existisse um espírito complacente que, em segredo, vos apresentasse a mim... Ou não será por acaso que o lenço está dobrado de modo a eu poder ver o vosso nome?... Estais emocionada, limpais uma lágrima... O lenço flutua de novo... Surpreendeis-vos por eu vos olhar e não ao pastor. Olhais o lenço e compreendeis que ele traiu o vosso nome... Mas trata-se de um assunto muito inocente, é tão fácil descobrir o nome de uma jovem... Porque vos voltais pois contra o lenço, porquê amachucá-lo e ficardes zangada com ele? Por que ficardes zangada comigo? Escutai o que diz o pastor: «Que ninguém faça cair outrem em tentação; também aquele que o faz na ignorância, também esse tem uma responsabilidade, também ele tem uma dívida para comesse outrem, dívida que só poderá pagar por uma maior benevolência...» E agora ele diz «Amem». - Passada a porta da igreja, decerto ousareis deixar que o lenço flutue livremente ao vento... Ou tereis medo de mim? Mas que fiz eu afinal?... Terei feito algo que não pudésseis perdoar; mais que o que ousareis recordar - a fim de perdoá-lo? Nas minhas relações com Cordélia, será necessária uma dupla manobra. Se me limito a fugir frente à sua supremacia, haverá grandes probabilidades de o seu erotismo se tornar demasiado débil, demasiado inconsistente para permitir à feminilidade mais profunda que se manifeste visivelmente. Ela seria então incapaz de oferecer resistência quando começar a segunda luta. É certo que a vitória a bafeja enquanto dorme, mas é exatamente o que pretendo; em contrapartida, é necessário que ela seja continuamente despertada. Assim, quando num determinado instante tiver a impressão que lhe foi de novo negada a vitória, deverá aprender a não renunciar a ela. É esse o conflito em que amadurecerá a sua feminilidade. A conversação poderia servir para inflamá-la, as cartas para moderá-la, ou inversamente, o que seria, a todos os títulos, preferível. Posso então fruir dos seus mais intensos instantes. Recebida uma carta, e diluído no seu sangue o doce veneno, uma só frase bastará para libertar o amor. No instante seguinte, a ironia e o gelo lançarão a dúvida no seu espírito, o que no entanto a não impedirá de continuar a crer na sua vitória e que, ao receber ela uma segunda carta, fará com que a julgue ainda maior. Acontece ainda que a ironia não é tão bem cabida numa carta, pois se corre o risco de não ser entendida como tal. Os devaneios só como aparecimentos momentâneos se adaptam a uma conversa. A minha presença pessoal impedirá o êxtase. Se eu apenas estiver presente numa carta, ela poder-se-á adaptar melhor, confundir-me-á até certo ponto com um ser, mais universal, que habita o seu amor. Além disso, numa carta posso muito melhor adaptar atitudes extremas, poderei mesmo, com a maior facilidade, lançar-me a seus pés, etc., o que fàcilmente daria azo a confusões se o fizesse pessoalmente, perdendo-se assim a ilusão. A contradição destas manobras provocaria e desenvolveria nela o amor, justificá-la-ia e consolidá-la-ia, numa palavra tentá-lo-ia. Contudo, estas cartas não devem adquirir prematuramente um forte tom erótico, Melhor será que, de início, apresentem um cunho mais universal, que contenham apenas uma ou duas indicações, por meias palavras, e afastem qualquer possível dúvida: Ocasionalmente, indicarão também a vantagem dos esponsais, no sentido em que estes, mistificando as pessoas, as podem afastar. Aliás, não lhe faltará ocasião de se dar conta dos defeitos de um noivado. E, a par com o que escrevo, tenho a casa de meu tio que pode sempre servir como caricatura. Sem o meu auxílio, Cordélia não seria capaz de engendrar o erotismo profundo. E se eu lho recuso e permito que esta comédia a atormente, ela perderá em breve o gosto pelo noivado, sem poder, no entanto, dizer que a culpa é, no mínimo ponto, minha. Cordélia receberá hoje uma breve carta que, descrevendo o meu estado de alma, lhe indicará muito ao de leve aquele em que ela própria se encontra. É este o bom método, e método não me falta; isto graças a vós, queridas crianças que amei outrora. A vós devo estas disposições da minha alma que me tornam capaz de ser, para Cordélia, o que pretendo. Dirijo-vos um pensamento de gratidão, pois todo o mérito vos cabe. Sempre confessarei que uma donzela é um professor nato e que sempre será possível aprender com ela, se não outra coisa, pelo menos, a arte de iludi-la - pois em tal matéria ninguém iguala as jovens, quando se trata de ensiná-la; por muito que viva, nunca no entanto esquecerei que um homem só está acabado quando atinge a idade em que nada pode aprender com uma donzela. Minha Cordélia! Dizes que me não tinhas imaginado assim, mas também eu nunca pensei que assim me poderia tornar. Serás pois tu quem mudou? Porque, no fundo, é muito possível não ter sido eu a modificar-me, mas sim os olhos, com que me vês; ou terei sido eu? Sim, fui eu, porque te amo, e foste tu, porque é a ti que amo. À luz fria e tranquila da razão, orgulhosa e impassível, eu tudo olhava, nada me causava temor, nada me surpreendia; sim, ainda que o espectro tivesse batido à minha porta, teria agarrado tranquilamente no archote para ir abrir. Mas, vês tu, não foram fantasmas a quem abri, não a seres pálidos e sem força, foi a ti, minha Cordélia, foi à vida, à juventude, à saúde e à beleza que vinham ao meu encontro. O meu braço treme, não consigo manter o archote imóvel, recuo perante ti sem conseguir impedir-me de em ti fixar os olhos e de desejar manter o archote imóvel. Modifiquei-me, mas por que esta mudança, como se efetuou ela e em que consiste? Ignoro-o, e não conheço termo mais preciso, predicado algum, mais rico que aquele que emprego quando, de modo infinitamente enigmático, digo de mim próprio: fui transformado. Teu Johannes Minha Cordélia! O amor ama o segredo - o noivado revela; ama o silêncio - o noivado é pregoeiro; ama o murmúrio - o noivado proclama ruidosamente; e no entanto, graças precisamente à arte de Cordélia, o noivado será um meio excelente para iludir os adversários. Numa noite sombria, nada há de mais perigoso para os outros barcos que acender as luzes de bordo, pois enganam mais que a escuridão. Teu Johannes Está sentada no sofá, diante da mesa do chá, e eu ao lado dela; tem o braço passado pelo meu, a sua fronte, atormentada por numerosos pensamentos, apoia-se no meu ombro. Está tão perto de mim e, no entanto, tão longe ainda; abandona-se e, no entanto, não me pertence. Há resistência ainda, mas esta não é subjetivamente refletida, é a resistência natural da feminilidade; pois a natureza feminina é um abandono sob a forma de resistência. - Está sentada no sofá, diante da mesa do chá, estou sentado ao lado dela. O seu coração bate, mas sem paixão, o seu peito ergue-se e baixa-se, mas sem agitação, por vezes a sua cor muda, mas por transições suaves. Será amor? De modo algum. Ela escuta, ela compreende. Ouve a palavra alada e compreende-a, ouve falar outro e compreende-o como se fosse ela própria a falar; escuta a voz que se faz eco nela, e compreende este eco como se fora a sua própria voz a abrir perspectivas para ela e para outro. Que faço? Será que a seduzo? De modo algum, também isso me não conviria. Será que lhe roubo o coração? De modo algum; prefiro também que a jovem a quem devo amar mantenha o seu coração. Então, que faço? Formo, em mim, um coração à imagem do seu. Um artista pinta a sua bem amada, e aí encontra o seu prazer; um escultor modela-a, e é o que também eu faço, mas no sentido espiritual. Ela não sabe que eu possuo este retrato e, no fundo, é nisso que consiste o meu crime. Consegui obtê-lo clandestinamente, e é nesse sentido que lhe roubei o coração, tal como se diz de Raquel que roubou o coração de Labão, ao furtar-lhe perfidamente os ídolos do lar. Grande é a influência que têm sobre nós o meio e o quadro em que estamos. É de coisas como estas que mais sólida e profundamente se impregna a memória, ou antes, toda a nossa alma, e que, por consequência, nunca serão esquecidas. Seja qual for a minha idade, sempre me será impossível imaginar Cordélia num outro ambiente que o desta salinha. Quando a venho ver, a criada abre-me a porta da sala, Cordélia sai do seu quarto, e abrimos ao mesmo tempo as duas portas para entrarmos nesta divisão que nos é já familiar, de modo que os nossos olhares se encontram desde logo. A divisão é pequena e de uma encantadora intimidade, dir-se-ia quase um escritório. Embora já a tenha admirado de muitos pontos de vista, é ainda do sofá que prefiro olhá-la. Está ali sentada, ao meu lado, e diante de nós encontra-se uma mesa de chá redonda, com uma cobertura de amplas pregas. Em cima da mesa, um candeeiro em forma de flor que, robusto e repleto, se ergue para suportar o seu remate, de onde pende um quebra-luz de papel, elegantemente recortado, e tão leve que constantemente oscila. A forma do candeeiro faz pensar no Oriente, e os movimentos do quebra-luz recordam as leves brisas desses países longínquos. O sobrado desaparece sob um tapete de vime entretecido, de um tipo particular que trai a sua origem estrangeira. Por momentos o candeeiro será, para mim, a ideia mestra da minha paisagem. Ficamos então estendidos por terra, sob a flor do candeeiro. Noutros momentos, o tapete de vime faz-me pensar num navio, num camarote de oficial - vogamos então no meio de um grande oceano. Como estamos sentados longe da janela, o nosso olhar mergulha imediatamente na imensidade do céu, o que aumenta a ilusão. Estando assim sentado a seu lado, evoco estas coisas como uma imagem que passa furtivamente sobre a realidade, tão depressa como a morte sobre o nosso túmulo, O ambiente tem sempre uma grande importância, sobretudo por causa das recordações. Qualquer relação erótica deve ser vivida de modo a ser-nos fácil evocar-lhe a imagem, com tudo o que nela existe de belo. Para consegui-lo é necessário, acima de tudo, dar atenção ao ambiente. Se este não está à altura dos nossos desejos, só há que produzir outro. Aqui, ele convém a Cordélia e ao seu amor. Mas quão diferente é a imagem que se apresenta ao meu espírito, quando penso na minha pequena Emília e, no entanto, o seu ambiente também lhe convém perfeitamente. Não a consigo imaginar, ou antes, não o quero, a não ser na saleta que dá para o jardim. As portas estavam abertas, o jardinzinho diante da casa limitava a vista e obrigava o olhar a fixar-se nele, a parar um pouco antes de prosseguir ousadamente pela estrada que se perdia ao longe. Emília era encantadora, mas mais insignificante que Cordélia, Por isso o quadro se lhe adaptava. O olhar conhecia os seus limites, não se lançava em frente com coragem e impaciência, repousava no primeiro plano: a própria estrada, embora se perdesse romanticamente ao longe, tinha no entanto como efeito que os olhos a seguissem para logo voltarem pelo mesmo trajeto. Nessa divisão tudo era terra à terra. O ambiente que rodeia Cordélia não deve ter qualquer primeiro plano mas a ousadia do horizonte infinito. Ela não deve viver perto da terra, mas planar, - não deve andar, mas voar, e não para um e para outro lado, mas sempre em frente. Quando nós próprios estamos noivos, somos prazenteiramente iniciados nas ridículas maneiras dos noivos. Há alguns dias, apareceu-me o licenciado Hansen, acompanhado pela adorável jovem com quem está para casar. Confiou-me que ela era encantadora, o que eu já sabia, confiou-me que era muito nova, o que eu também não ignorava, e por fim confiou-me que era precisamente pela sua juventude que a escolhera, para a formar segundo o ideal de que sempre tivera a íntima noção. Santo Deus! Este alarve deste licenciado - e uma jovem sã, florescente e jovial. Embora eu seja um praticante de velha data, nunca me aproximo de uma jovem senão como das Venerabile da natureza e é ela quem me dá as primeiras lições. E se tenho qualquer influência na sua formação, é ensinando-lhe, sempre- e sempre, o que com ela aprendi. É indispensável emocionar a sua alma, agitá-la em todos os sentidos possíveis, mas não por partes e em rajadas, e sim inteiramente. É necessário que ela descubra o infinito, que ela o conheça como o que mais próximo se encontra do homem. Que ela o aprenda, não pelo raciocínio, que é para ela um caminho errado, mas na imaginação, que é o verdadeiro meio de comunicação entre nós. Pois o que constitui uma das faculdades do homem é, para a mulher, tudo. Não é pelas laboriosas vias do raciocínio que ela se deve esforçar por atingir o infinito, pois a mulher não nasceu para o trabalho: mas é pelas vias fáceis da imaginação e do sentimento que ela o deve apreender. Para uma jovem o infinito é tão natural como a ideia de que todo o amor deve ser feliz. Onde quer que uma jovem se encontre, ela encontra o infinito ao seu redor, e para ele passa num salto, mas, bem entendido, num salto feminino e não masculino: A falar verdade, como os homens são, geralmente, desajeitados! Para saltar tomam balanço, precisam de longos preparativos, calculam a distância com os olhos, iniciam várias vezes o movimento, atemorizam-se e voltam para trás. Finalmente, saltam e caem a meio. Uma jovem saltará de outro modo. Nas nossas montanhas existem duas rochas salientes, separadas por um abismo profundo, terrível de olhar, Nenhum homem ousaria saltá-lo. Mas, contam os habitantes da região, uma jovem atreveu-se a fazê-lo e por isso lhe chamam o «Salto da Donzela», Não posso deixar de crer nisto, tal como creio em tudo o que de bom e maravilhoso se contar acerca de qualquer jovem, e reconforta-me o coração ouvir essa boa gente narrar o fato. Tudo creio, mesmo o miraculoso, e apenas me surpreendo por acreditar; e tal como a primeira, a única coisa que neste mundo me surpreendeu foi uma jovem, uma jovem será também a última que me surpreenda. E no entanto, um tal salto não passa para ela de um pulinho, enquanto o salto do homem se torna sempre ridículo porque, seja qual for o comprimento da sua passada, o seu esforço nada tem a ver com a distância entre as rochas, embora dê uma espécie de medida. Mas quem seria suficientemente tolo para imaginar uma jovem a tomar balanço? É possível imaginá-la correndo, mas mesmo essa corrida é um jogo, um prazer, uma festa de graciosidade, enquanto que a ideia do tomar balanço separa o que, na mulher, tão estreitamente se liga. Porque no balanço se encontra a dialética, que repugna à sua natureza. E enfim, o salto, ainda aí, quem ousaria ser suficientemente inestético para separar o que está estreitamente ligado? O seu salto é um voa planado. E, ao alcançar o outro lado, ei-la, não esgotada pelo esforço, mas de novo bela, mais bela que nunca, mais cheia de alma, e lançando-nos um beijo, a nós que ficamos do lado de cá. Jovem, recém-nascida, como uma flor a brotar das raízes da montanha, ela balança-se sobre o abismo até quase nos causar vertigens. - O que ela deve aprender é a prática de todos os movimentos do infinito, a balançar-se, a embalar-se a si própria nos estados de alma, a confundir poesia e realidade, verdade e ficção, a recrear-se no infinito. Quando estiver familiarizada com tal bulício, associar-lhe-ei o erotismo, e ela será o que pretendo, o que desejo. Terei então acabado o meu serviço, a minha tarefa, poderei recolher todas as minhas velas, estarei sentado a seu lado, e é servindo-nos das suas velas que avançaremos. E, não exagero, assim que esta jovem esteja inebriada pelo erotismo, decerto estarei completamente ocupado a segurar o leme e moderar o andamento, para que nada de prematuro ou inestético se produza. De tempos a tempos, far-se-á um pequeno rasgão na vela e, em seguida, progrediremos de novo. Cordélia indigna-se cada vez mais em casa de meu tio. Já por várias vezes me pediu que nunca mais lá voltássemos, mas em vão, - sou sempre capaz de arranjar pretextos. Ontem, ao anoitecer, e quando de lá saíamos, apertou-me a mão com uma paixão extraordinária. Sem dúvida que se sentira ali muito torturada, o que de modo algum me espanta. Se me não continuasse a divertir com a observação das monstruosidades dessa aglomeração factícia, seria incapaz de continuar a interessar-me por ela. Esta manhã recebi uma carta em que Cordélia troça os esponsais em geral, com mais espírito do que a teria julgado capaz. Beijei a carta, a mais querida de todas as que recebi. Muito bem, minha Cordélia! É tudo o que eu queria. É bastante curioso; quis a sorte que, em Ostergade, haja dois pasteleiros um em frente do outro. No primeiro andar esquerdo mora uma jovenzinha. Habitualmente esconde-se por detrás de uma gelosia que encobre a vidraça a que ela se senta. A gelosia é de um material muito leve, e quem conhece a jovem, ou já a viu muitas vezes, se tiver bons olhos, poderá reconhecer fàcilmente todos os seus traços, enquanto que, para quem a não conhece e não tem boa vista, ela não passa de uma silhueta indistinta. É este o meu caso, ao contrário de um jovem oficial que, todos os dias, precisamente ao meio-dia, aparece por estas paragens e olha a citada gelosia. Na realidade, foi esta que primeiro atraiu a minha atenção para tão bela comunicação telegráfica. As outras vidraças não têm gelosias, e esta que, completamente solitária, esconde apenas uma vidraça, indicava sem margem de dúvida haver alguém por detrás. Aconteceu que uma manhã eu estava à janela do pasteleiro defronte. Em exatamente meio-dia. Sem dar atenção a quem passava na rua, fixava eu os olhos na tal gelosia quando, subitamente, por detrás dela, a figura indistinta começou a mover-se. Uma cabeça de mulher apareceu, de perfil, atrás do vidro do lado, voltando-se estranhamente no sentido da gelosia. Depois, saudou muito amigàvelmente com um pequeno acenar de cabeça e de novo se escondeu por trás da gelosia. Concluí que a saudação era dirigida a um homem, pois o gesto fora por demais apaixonado para ser devido ao avistar de uma amiga; mas concluí também que aquele a quem a saudação se dirigia devia vir geralmente do lado oposto. Ela colocam-se pois de modo a poder vê-lo assim que aparecesse, e a cumprimenta-lo escondida pela gelosia. - Perfeitamente! Ao meio-dia em ponto chega o herói desta cenazinha de amor, o nosso caro tenente. E eu estou já dentro da pastelaria, no rés do chão da casa onde a jovem mora. O tenente avistou-a já. Atenção! Meu caro amigo, não é nada cômodo dirigir um belo cumprimento para um primeiro andar. Aliás, não se pode dizer que seja desajeitado; é bastante alto, elegante, tem um belo rosto, com um nariz aquilino, cabelos pretos e um tricórnio que lhe fica bem. Mas agora está embaraçado, as pernas começam, pouco a pouco, a fraquejar, como que se tornam demasiado compridas. À vista, o efeito é comparável à sensação provocada por uma dor de dentes, quando estes nos parecem crescer na boca. Ao concentrarmos todo o nosso poder no olhar, e dirigindo-o para um primeiro andar, arriscamo-nos a retirar demasiada força às pernas. Perdoai-me, Senhor tenente, se faço parar esse olhar a meio do seu voo para o céu. Sim, sem dúvida que é uma impertinência. Pretender que é um olhar cheio de significado seria falso, pois quase não conta, embora cheio de promessas. Mas todas essas promessas lhe sobem, aparentemente, à cabeça; ei-io que vacila ou, para falar como o poeta a propósito de Agnete, titubeia, cai. Não o merece. Ê bastante aborrecido, pois quando se quer, como homem galante, emocionar as damas, nunca se deve cair. É necessário dar atenção a essas coisas quando pretendemos ser homens mundanos, mas são indiferentes se nos apresentamos simplesmente como uma figura intelectual; porque então mergulhamos em nós próprios, desmoronamo-nos e, ainda que chegássemos a cair realmente, ninguém se admiraria. - Que terá a minha jovenzinha pensado deste incidente? É pena que eu não possa estar, ao mesmo tempo, dos dois lados destes Dardanelos, Ê certo que poderia postar um conhecido meu do outro lado, mas prefiro sempre ser eu próprio a fazer as minhas observações e, além disso, nunca se pode saber o que; para mim, virá a resultar deste assunto e, em tais casos, é sempre mau ter um confidente, pois perdemos tempo a arrancar-lhe o que sabe e a desconcertá-lo, - Este bom tenente começa já a enfadar-me. Dia após dia, ali o vejo desfilar em grande uniforme. Que terrível constância! Será digna de um soldado? Mas, meu caro Senhor, não trazeis uma espada? Não será vosso dever tomar a casa de assalto e a jovem à força? Ah, se fosseis um simples bacharel, um licenciado ou um vigário vivendo de esperanças, o caso seria outro. Mas sempre vos perdoo porque, quanto mais admiro a jovem, mais ela me agrada. É bela, os seus olhos castanhos são cheios de malícia. Enquanto espera a vossa chegada, o seu rosto irradia uma superior beleza que palavras algumas poderão exprimir. Daí concluo que ela deve ter muita imaginação, e a imaginação é a pintura natural do belo sexo. Minha Cordélia! O que é o desejo? A língua e os poetas fazem rimar desejo e prisão. Que absurdo! Como se aquele que está na prisão pudesse arder em desejo! Se eu fosse livre, como arderia! E, por outro lado, sou livre como um pássaro e, acredita-me, ardo em desejo, - sinto-o ao ir para tua casa e quando te deixo, e, ainda quando estou sentado a teu lado, ardo em desejo por ti. Mas poder-se-á então desejar aquilo que se possui? Sim, quando pensamos que, no instante seguinte, o não possuímos já. O meu desejo é uma impaciência eterna. Se eu tivesse vivido todas as eternidades e ganho a certeza de que me pertences em todos os seus instantes, só então estaria junto de ti e viveria contigo todas as eternidades; - certamente não teria paciência bastante para estar um só momento separado de ti sem arder em desejo, mas possuiria a confiança suficiente para me manter calmo a teu lado. Teu Johannes Minha Cordélia! À porta espera um pequeno cabriolé, maior para mim que o mundo inteiro, pois há nele lugar para dois; tem atrelado um par de cavalos selvagens e rebeldes, impacientes como as minhas paixões, fogosos como os meus pensamentos. Se o quiseres, minha Cordélia, arrebatar-te-ei comigo! Uma palavra tua será para mim a ordem que soltará as rédeas e o desejo de fuga. Arrebatar-te-ei, não de entre alguns homens para o meio de outros, mas sim para fora do mundo; - os cavalos empinam-se e a carruagem inclina-se para trás; com os cavalos na vertical, quase acima das nossas cabeças, penetramos no céu através das nuvens; os ouvidos vibram-nos; seremos nós que ficamos imóveis e o mundo que gira, ou é o nosso aventuroso impulso? Sentes-te tomada de vertigem, minha Cordélia, apoia-te fortemente em mim que a não terei. Nunca poderá sentir vertigem espiritual aquele que apenas pensa numa coisa, e eu penso em ti - nunca poderá sentir vertigem física aquele que fixa o olhar numa só coisa, e eu só tenho olhos para ti. Mantém-te firme; mesmo que o mundo perecesse, mesmo que o nosso leve cabriolé desaparecesse debaixo de nós, mesmo assim, apertados nos braços um do outro, planaríamos na harmonia das esferas. Teu Johannes Chega quase a ser demasiado. O meu criado esperou seis horas, e eu próprio quase duas, à chuva e ao vento, apenas para espiar a gentil Charlotte Hahn. Todas as quartas-feiras, entre as duas e as cinco, vai habitualmente ver uma velha tia, e logo hoje, quando tanto desejava encontrá-la, não apareceu. E porquê este desejo? Porque ela sabe imprimir em mim um estado de alma em tudo singular. Cumprimento-a e ela faz a sua reverência de um modo ao mesmo tempo indescritivelmente terreno e, no entanto, tão sublime; fica quase imóvel, como se estivesse prestes a desaparecer debaixo da terra e, no entanto, o seu olhar parece dizer que num momento irá subir ao céu. Ao vê-la, a minha alma adquire uma feição solene, ao mesmo tempo que se enche de desejo. Aliás, a jovem não ocupa o meu pensamento e, além desta saudação, nada pretendo, ainda que ela mo quisesse dar. A sua saudação provoca em mim um bom humor de que, em seguida, sou pródigo para com Cordélia. - Entretanto, aposto que, de uma maneira ou doutra, ela se nos escapou em frente do nariz, Não é só nas comédias, mas também na vida real, que é difícil vigiar uma jovem; é necessário ter tantos olhos como dedos. Houve em tempos uma ninfa, Cardea, que passava o tempo a iludir os homens. Mantinha-se nos sítios arborizados, atraía os que por ela se apaixonavam para o mais denso dos bosques, e desaparecia. Quis iludir também Janus, mas este pôde pagar-lhe na mesma moeda, graças aos olhos que tinha na parte de trás da cabeça. As minhas cartas acertam no alvo. Desenvolvem a sua alma, se não mesmo o seu erotismo. Para tal, aliás, as cartas não servem, mas sim os bilhetes. Quanto maior é o caminho já percorrido pelo erotismo, tanto mais curtas as cartas se tomam; mas vão tocar com maior certeza no ponto erótico. A fim de a não tomar sentimental ou indolente, a ironia irá, por seu lado, retesar os sentimentos, ao mesmo tempo em que a torna ávida do alimento que prefere. Os bilhetes fazem, de longe e vagamente, adivinhar o supremo bem. As nossas relações quebrar-se-ão no instante em que esse pressentimento começar a despontar na sua alma. Perante a minha resistência, tomará forma nela, como se do seu próprio pensamento se tratasse, um impulso do seu próprio coração. E é isso que eu quero. Minha Cordélia! Existe aqui, em Copenhague, uma pequena família composta por uma viúva e as suas três filhas. Duas destas têm lições nas Cozinhas do Rei. Numa tarde do princípio do verão, por volta das cinco horas, a porta abre-se suavemente e um olhar perscrutador dá volta à sala. Ninguém, a não ser uma jovem sentada ao piano. Alguém entreabre a porta para ver sem ser visto. Não é uma artista quem toca - se o fosse esse alguém decerto teria voltado a fechar a porta. A jovem toca uma melodia sueca cujos versos falam da juventude e da beleza, demasiado breves; troçam a juventude e a beleza da jovem e esta troça os versos. Quem tem razão? A jovem ou os versos? A música é tão doce, tão triste como se a melancolia fosse o juiz encarregado de decidir o conflito. - Mas tal melodia não tem razão. Que há de comum entre a juventude e estas reflexões? Entre o amanhecer e o morrer do dia? As teclas vibram e fremem, os espíritos sonoros do piano surgem desordenadamente e não se compreendem entre si - minha Cordélia, por que essa veemência, com que fim tal paixão? A que distância, no tempo, deve um acontecimento estar afastado para que o recordemos, e a que distância para que o desejo nostálgico da recordação o não possa já atingir? A este respeito, a maior parte das pessoas são limitadas; não conseguem recordar o que está demasiado próximo delas no tempo, nem o que está demasiado longe. Para mim os limites não existem. Recuo de milhares de anos o que foi vivido ontem, e recordo-o como se fora ontem. Teu Johannes Minha Cordélia! Tenho um segredo a confiar-te, a ti, minha amiga íntima. A quem poderia confiá-la? Ao eco? Trai-lo-ia. Às estrelas? São glaciais. Aos homens? Não o compreendem. Apenas a ti ouso confiá-lo, pois tu sabes esquecer. Existe uma jovem mais bela que o sonho da minha alma, mais pura que a luz do sol, mais profunda que o leito dos mares, mais orgulhosa que o voa da águia - existe uma jovem - oh! Inclina a cabeça para a minha boca e para a minha voz a fim de que o segredo se não perca - amo essa jovem mais que à minha vida, pois ela é a minha vida; amo-a mais que a todos os meus desejos, pois ela é o meu único desejo; mais do que a todos os meus pensamentos, pois ela é o meu único pensamento; mais ardentemente que o sol ama as flores, mais intimamente que o desgosto ama o segredo da alma dolorida; mais impacientemente que a areia ardente do deserto ama a chuva - estou ligado a ela com mais ternura que o olhar da mãe á criança, com mais confiança que uma alma em oração; ela é mais inseparável de mim que a planta da sua raiz. A tua cabeça entorpece, torna-se pensativa, tomba sobre o teu peito, a garganta soergue-se para socorrê-la - minha Cordélia! Compreendeste-me! Exatamente, literalmente, sem perderes uma palavra! Deverei tornar tensas as cordas do meu ouvido para permitir à tua voz que de tal me assegure? Uma dúvida, seria possível? Guardarás este segredo? Ousarei contar contigo? Fala-se de pessoas que, por crimes horríveis, prometiam silêncio umas às outras. A ti confiei um segredo que é a minha vida e a essência da minha vida; não terás, tu nada a confiar-me de tão importante, tão belo, tão casto, que, se o segredo for traído, se agitem forças sobrenaturais? Teu Johannes Minha Cordélia! O céu cobre-se - nuvens sombrias carregadas de chuva, como negras sobrancelhas, sulcam o seu rosto apaixonado, e agitam-se as árvores na floresta, sacudidas por sonhos inquietantes. Para mim, estás perdida na floresta. Por trás de cada árvore vejo um ser feminino que a ti se assemelha mas, quando me aproximo, esconde-se atrás de outra árvore. Não quererás mostrar-te a mim, condensar-te no teu próprio ser? Tudo se confunde para mim; cada elemento isolado da floresta perde o seu contorno, tudo se transforma num mar de névoas onde seres femininos, que se te assemelham, aparecem e desaparecem. Não é a ti que vejo, tu perdes-te sempre nos pontos vagos da visão, e no entanto cada imagem, em que julgo ver-te, me torna já feliz. Isto, a que se deve? - Será à rica unidade da tua natureza, ou à pobre complexidade da minha? - Amar-te, não será amar um mundo? Teu Johannes Na verdade, interessar-me-ia muito reproduzir exatamente as minhas conversas com Cordélia. Mas bem vejo que é impossível porque, ainda que eu conseguisse recordar cada uma das palavras trocadas entre nós, é naturalmente impossível reproduzir o ambiente que é, no fundo, o nervo da conversa, as surpresas refletidas pelas exclamações, a paixão, enfim, o princípio vital da conversação. Naturalmente, não me preparo para estes diálogos, o que seria contrário ao caráter próprio de uma conversa, sobretudo quando esta é erótica. Simplesmente, tenho sempre in mente o conteúdo das minhas cartas, tal como o estado de alma nela criado por essas cartas está sempre presente no meu espírito. Claro que nunca pensarei sequer em lhe perguntar se as leu. Aliás, é-me fácil verificá-lo. Não lhe falo do assunto diretamente mas, no que digo, mantenho uma secreta comunicação com elas, tanto para reforçar na sua alma uma determinada impressão, como para lhe arrancar e assim a perturbar. Ela poderá então voltar a ler a canta e receber dela uma impressão diferente, e assim de seguida. Ela mudou e continua a mudar. Para definir o estado da sua alma diria que, atualmente, é o da audácia panteísta. Isto nota-se imediatamente no seu olhar. As esperanças que nele se refletem são audaciosas, quase temerárias, como se aquele olhar exigisse e pressentisse. a todo o momento, o extraordinário. Como um olhar que vê para além de si, este vê para lá do que lhe é mostrado imediatamente, e vê o maravilhoso. Audacioso, quase temerário, mas não por confiança em si próprio, é pois um olhar de sonho e oração, e não altivo e imperioso. Ela procura o maravilhoso fora de si própria, pedir-lhe-á que se mostre, como se não estivesse em seu poder fazê-lo sugerir. É necessário impedir que isto suceda, pois de outro modo eu alcançaria demasiada preponderância sobre ela. Ainda ontem me dizia que existe algo de régio na minha natureza. Chegará talvez a curvar-se perante mim, mas isso por preço algum deverá acontecer. Sem dúvida que há algo de régio na minha natureza, minha cara Cordélia, mas não soubeste adivinhar qual o reino por onde se estende o meu poder. É o das tempestades dos estados de alma. Como Éolo, deus dos ventos, mantenho-as fechadas no antro da minha personalidade, desencadeando agora uma, logo outra. A lisonja dar-lhe-á o sentimento da sua dignidade, a diferença entre o meu e o teu será mantida, e tudo lhe será atribuído. Porém, quando queremos lisonjear, é necessária uma grande prudência. É preciso por vezes colocarmo-nos num pedestal altíssimo, mas de modo a que exista outro mais alto ainda, outras vezes é necessário dar muito pouca importância a nós próprios. Com vista a uma finalidade espiritual o melhor caminho é o primeiro, para uma finalidade erótica, o segundo. - Deve-me ela alguma coisa? Não, nada. Poderia eu desejar que assim fosse? De modo algum. Tenho demasiada prática, demasiado conhecimento do que é o erotismo, para cometer tal inépcia. Mas se ela tivesse realmente uma dívida para comigo, faria todo o passível para que o esquecesse, e para adormecer os meus próprios pensamentos a tal respeito. Toda a rapariga é, em relação ao labirinto do seu coração, uma Ariana, segurando o fio graças ao qual é possível sair dele, mas de que ela própria se não sabe servir. Minha Cordélia! Fala - obedecer-te-ei, o teu desejo é uma ordem, teu pedido uma conjuração toda poderosa, e o mais leve dos teus desejos é para mim uma bondade; pois não te obedeço como um espírito escravo que te fosse exterior. Ordena e a tua vontade será feita e eu próprio com ela; pois eu sou uma desordem moral que apenas espera uma palavra tua. Teu Johannes Minha Cordélia! Bem sabes como gosto de falar comigo próprio. Encontrei em mim o ser mais interessante que conheço. Poderei ter algumas vezes temido a ausência de assunto para estes diálogos, mas isso acabou agora que te tenho. É pois de ti que atualmente falo, de ti que eternamente falarei, de ti, o mais interessante dos assuntos, com o mais interessante dos homens. - Ai de mim! Pois eu não passo de um homem interessante, enquanto tu és o mais interessante dos assuntos. Teu Johannes Minha Cordélia! Achas que há tão pouco tempo que te amo, quase pareces temer que eu tenha amado antes. Existem manuscritos onde o olhar perspicaz imediatamente descobre um texto antigo que foi, pouco a pouco, suplantado por absurdos, que sobre nada repousam. Tendo estes sido apagados por meio de líquidos corrosivos, o texto amigo aparece, nítido e preciso. Foi assim que os meus olhos me ensinaram a reencontrar-me em mim próprio, deixo o esquecimento apagar tudo aquilo que contigo se não relaciona, e descubro então um texto primitivo de muito velha data, divinamente jovem, descubro que o meu amor por li é tão velho como eu próprio. Teu Johannes Minha Cordélia! Como poderá subsistir um reino dividido contra si próprio? Como poderia eu subsistir, pois que estou em luta comigo próprio? A propósito de quê? De ti, para encontrar alguma paz, se for possível, pensando que estou apaixonado por ti. Mas como poderei encontrar essa paz? Uma das potências em luta constantemente pretende convencer a outra de que é ela quem realmente possui o amor mais profundo e mais sincero; e, no instante seguinte, é a outra que o pretende. Não me sentiria em muitos cuidados se a luta se travasse exteriormente a mim, se, por exemplo, alguém ousasse estar apaixonado por ti ou ousasse não o estar, pois o crime seria o mesmo; mas destroça-me esta luta interior, esta única paixão na sua dualidade. Teu Johannes Pequena pescadora, podes perfeitamente eclipsar-te. Esconde-te, se queres, por entre as árvores; apanha as tuas coisas, fica-te tão bem o curvar do corpo, mesmo nesse instante é com uma graça natural que te inclinas sobre os raminhos que reuniste - tal criatura carregar fardos semelhantes! Trais, como uma bailarina, a beleza: das tuas formas - a cintura delgada, o peito largo, uma estatura florescente, eis o que apontaria qualquer encarregado de recrutamento. Pensas talvez que isso nada vale e as grandes senhoras são muito mais belas; ai de nós, criança! Não conheces toda a falsidade do mundo. Põe-te tranquilamente a caminho com a tua carga, penetra na enorme floresta que sem dúvida se estende durante muitas léguas, até aos limites das azuladas montanhas. Não serás talvez uma verdadeira pescadora, mas uma princesa encantada; serves de criada a um gnomo, e ele é suficientemente cruel para te obrigar a apanhar madeira na floresta. Assim se passam as coisas nos contos de fadas. Se não, porque penetrarias tu mais profundamente na floresta? Se fosses na verdade filha de pescador, passarias diante de mim, do outro lado da estrada, para levares a tua lenha à aldeia dos marinheiros. - Segue tranquilamente o agradável carreiro que serpenteia entre as árvores, o meu olhar te encontrará; procura-me tranquilamente, o meu olhar te seguirá; não conseguirás emocionar-me, não serei arrastado pelo desejo, estou calmamente sentado na balaustrada da ponte e fumo o meu charuto. - Outra vez - talvez - sim, o teu olhar é vivo quando voltas assim um pouco a cabeça; o teu leve passo quase chama - sim, eu sei, bem compreendo onde conduz esse caminho - à solidão da floresta, ao murmúrio das árvores, ao tão variado silêncio. Repara, o próprio céu te favorece, esconde-se por trás das nuvens, enche de sombras o espaço para lá da floresta, é como se fechasse as cortinas diante de nós. - Adeus minha bela pescadora, adeus, obrigado pelo teu favor, foi um belo instante, um estado de alma não suficientemente forte para me fazer abandonar o meu estável posto sobre a balaustrada, mas rico no entanto de emoção interior. Quando Jacob discutiu com Labão a paga dos seus serviços, e foi combinado que Jacob deveria levar ao pasto as ovelhas brancas e, como paga do seu trabalho, receber todo o animal marcado e malhado que nascesse no rebanho, pôs varas verdes sob o olhar das ovelhas, nos regatos, nos bebedouros. - É assim que, por toda a parte, me coloco diante dos olhos de Cordélia que continuamente me veem. Tal se lhe afigura uma pura atenção da minha parte; mas eu sei que, por causa disto, a sua alma perde o interesse por qualquer outra coisa, que Se desenvolve nela uma concupiscência espiritual, e me vê por todo o lado. Minha Cordélia! Eu, esquecer-te! Será pois o meu amor uma obra de memória? Ainda que o tempo apagasse tudo das suas ardósias, mesmo a própria memória, as nossas relações manter-se-iam tão vivas como sempre, não te esqueceria. Eu, esquecer-te! De quê lembrar-me então? Pois se me esqueci de mim próprio para me lembrar de ti; se te esquecesse, logo seria obrigado a recordar-me de mim próprio e, ao fazê-lo, a recordar-me instantaneamente de ti. Eu, esquecer-te! Que sucederia então? Uma pintura antiga mostra Ariana que salta do seu leito e busca ansiosamente, com os olhos, uma barca que se afasta de velas pandas. Ao lado dela está, sem corda no seu arco, um Cupido que enxuga as lágrimas e, por detrás dela, uma mulher alada e com um elmo que representa, segundo geralmente se crê, Nemésis. Imagina este fresco, mas um pouco modificado. O Cupido sorri e arma o seu arco, e Nemésis, ao teu lado, não fica inativa, arma o seu arco também. No dito fresco vê-se também um homem na barca, ocupado em governá-la. Supõe-se que seja Teseu. Mas o meu quadro é diferente. Nele, ele está à popa, cheio de arrependimento, ou antes, abandonou-o a sua loucura, mas a barca leva-o consigo. Cupido e Nemésis visam ambos, partem uma flecha de cada arco, e vemos que atingem bem o alvo, compreendemos que ambos, ferem o mesmo ponto do seu coração, sinal de que foi a Nemésis quem vingou o seu amor. Teu Johannes Minha Cordélia! Diz-se de mim que estou apaixonado por mim próprio. Isto não me surpreende, pois como poderiam reconhecer a minha disposição para o amor visto que só a ti amo, como a adivinhariam, visto que só a ti amo. Estou apaixonado por mim próprio, - por quê? Porque estou apaixonado por ti; porque é a ti que amo, apenas a ti e tudo o que em verdade é teu, e é assim que me amo a mim próprio, porque o meu eu te pertence; se, por consequência, já te não amasse, deixaria também de estar apaixonado por mim próprio. O que aos olhares profanos do mundo é a expressão do maior egoísmo, é pois aos teus olhos iniciados a expressão da mais pura simpatia; o que aos olhares profanos do mundo é a expressão da mais prosaica consideração pessoal, é aos teus olhos santificados a expressão do mais entusiástico aniquilamento de si próprio. Teu Johannes O meu maior temor era que toda a evolução levasse demasiado tempo. Mas vejo que Cordélia faz grandes progressos, que será necessário pôr tudo em jogo para lhe manter o fôlego. É sobretudo necessário que ela não enfraqueça demasiado cedo, isto é, antes da hora, senão a hora, o momento exato, terá passado para ela. Quando se ama não se segue pelas estradas largas. Apenas o casamento se encontra no meio da estrada real. Quando se ama e se vem de Nddebo, não se costeia o lago de Esrom, embora não passe afinal de um caminho de caça; mas está bem aplanado e o amor prefere preparar os seus próprios caminhos. Metemo-nos pelos bosques de Gribs-skov. E ao passearmos assim, pelo braço um do outro, compreendemo-nos, e o que antes fora alegria e dor confundidas, toma-se nítido. Não desconfiamos da presença de outrem. - Esta bela faia foi pois testemunha do vosso amor; sob a sua copa foi feita a primeira confissão, a primeira promessa. Tudo estava presente na vossa memória; o primeiro encontro, a primeira vez em que, no baile, estendestes a mão um para o outro, as despedidas quando nada ousáveis ainda confessar a vós próprios e, muito menos, declarar um ao outro. - Como é belo escutar estes repertórios de recordações do amor. - Ajoelharam debaixo da árvore, juraram fidelidade eterna e selaram o pacto com um primeiro beijo. - Eis aqui emoções fecundas para usar em Cordélia. - A faia foi pois testemunha. Ah! Sim, uma árvore é exatamente a testemunha que convém, mas é demasiado pouco. Pensais, é certo, que o céu fui também testemunha mas o céu, sem mais nada, é uma ideia muito abstrata. E por isso havia outra testemunha. - Deverei levantar-me e divulgar-lhes a minha presença? Não, pois talvez me conheçam, e então estaria o jogo perdido. Deverei levantar-me quando se afastarem e dar-lhes a entender que estava alguém presente? Não, é mal apropriado. Nada deverá romper o silêncio sobre o seu segredo - enquanto eu assim o quiser. Estão no meu poder posso desuni-los quando me apeteça. Conheço o seu segredo; - só dele ou dela o pude saber - dela própria? É impossível – dele, então? - É horrível - bravo! E no entanto isto quase se aproxima da malevolência. Enfim, havemos de ver. Se posso assim obter dela uma impressão que não obteria de outro modo, normalmente, como me agrada, tanto pior, é tudo o que me resta fazer. Minha Cordélia! Sou pobre - és a minha riqueza; sombrio - és a minha luz; nada possuo, nada necessito. E também, como poderia eu possuir alguma coisa? Pois não será uma contradição pretender que aquele que nem a si próprio se possui, possua alguma coisa? Sou feliz como uma criança, que nada pode nem deve possuir. Nada possuo, pois só a ti pertenço; não existo, cessei de existir a fim de ser teu. Teu Johannes Minha Cordélia! «Minha» Cordélia, - que significado atribuir a esta palavra: «Minha»? Ela não designa o que me pertence, mas aquilo a que pertenço, o que engloba toda a minha natureza tanto quanto é minha, tanto quanto lhe pertenço. Meu Deus não é também o Deus que me pertence, mas antes o Deus a quem pertenço, e é também assim quando falo de: minha pátria, meu lar, minha vocação, meu desejo, minha esperança. Se já antes não existisse a imortalidade, este pensamento de ser teu seria capaz, por si só, de quebrar o curso habitual da natureza. Teu Johannes Minha Cordélia! O que eu sou? O modesto narrador que segue os teus triunfos; o bailarino que se curva sob os teus passos quando te ergues na leveza da tua graciosidade; o ramo sobre o qual te repousas um instante quando estás cansada de voar; a voz de baixo que se submete ao devaneio do soprano, para o deixar subir ainda mais alto - o que sou? Sou o peso terrestre que te prende à terra. Então, que sou eu? Corpo, massa, terra, pó e cinzas - tu, minha Cordélia, tu és alma, e espírito. Teu Johannes Minha Cordélia! O Amor é tudo, - e por isso todas as coisas deixaram no fundo de ter importância para aquele que ama, salvo pela interpretação que o amor lhes dá. Se, por exemplo, um noivo fosse culpado de tomar interesse por outra jovem que não a sua noiva, seria sem dúvida encarado como criminoso, e a noiva revoltar-se-ia. Mas sei que tu, pelo contrário, verias em tal confissão uma homenagem; pois bem sabes como seria impossível para mim amar uma outra, é o amor que por ti tenho que lança o seu reflexo sobre tudo o que existe. Assim, se tenho interesse por outra, não é para ser culpado de amá-la, - o que seria uma sem vergonha - a culpa é apenas tua, - porque tu enches toda a minha alma, a vida toma outro aspecto para mim, torna-se um mito em teu redor. Teu Johannes Minha Cordélia! O meu amor devora-me e apenas deixa a minha voz, esta voz que, enamorada de ti, por toda a parte te sussurra ao ouvido que te amo. Oh! Estarás tu fatigada de escutar esta voz? Por todo o lado ela te rodeia e cerca; com a minha alma rica, mutável e habitada pela reflexão, envolvo o teu ser puro e profundo. Teu Johannes Minha Cordélia! Lê-se nos velhos contos que um rio se enamorou de uma jovem. A minha alma é também um rio enamorado de ti. Tão depressa está calmo e deixa a tua imagem refletir-se nele, profunda e tranquila, como logo imagina que captou a tua Imagem, e as suas ondas erguem-se para te impedirem de escapar, para em seguida enrugar a sua superfície e brincar com a tua imagem; mas por vezes perde-a, e então as suas ondas escurecem e desesperam. É assim a minha alma: um rio enamorado de ti. Teu Johannes Francamente! - Mesmo sem possuir uma imaginação excepcionalmente viva, é possível imaginar sem dificuldade uma carruagem mais cômoda, mais confortável e, principalmente, mais alçada; ir passear numa carroça de carvoeiro só tem valor em sentido figurado. - Mas, à falta de melhor, arrisca-se. Passeia-se na estrada, sobe-se para a carrocinha, anda-se uma légua, e nada acontece; duas léguas, tudo vai bem e se ganha confiança; deste ponto de vista o aspecto do campo é até melhor do que o habitual; e já se atingiram quase as três léguas - mas quem teria podido pensar que, a tal distância e em plena estrada, se iria encontrar alguém de Copenhague? E bem sentis que este alguém é de Copenhague, e não um camponês qualquer; o seu modo de olhar é muito especial, tão decidido, nada lhe escapa, avalia-vos e há nesse olhar um leve brilho de troça. Sim, minha pequena, a tua situação não é de modo algum cômoda, sentada, como num estrado, sobre esse veículo de tal modo raso que nem sequer tem onde meter os pés. - Mas a verdade é que não sois obrigada a ir assim, a minha carruagem está à vossa inteira disposição, ouso oferecer-vos um lugar muito menos incomodativo, isto se vos não incomoda ir sentada ao meu lado. Mas, se assim for, cedo-vos toda a carruagem e eu próprio irei ao lado do cocheiro, feliz por ousar levar-vos ao vosso destino. - O chapéu de palha não é suficiente para impedir um olhar de lado; é inútil baixardes a cabeça, posso mesmo assim admirar o belo perfil. Não achais humilhante que o camponês me saúde? Mas não há nada mais natural do que um camponês cumprimentar um cavalheiro. - E tomai atenção, ainda não é tudo, porque ali nos aparece agora um albergue, sim, uma estação de muda da mala-posta, e um carvoeiro é demasiado devoto, à sua maneira, para passar por uma destas capelinhas sem trincar alguma coisa. Encarregar-me-ei agora dele. Tenho dons excepcionais para enfeitiçar os carvoeiros. Oh! Assim me seja permitido agradar-vos também! Não poderá resistir à minha oferta, e certamente que a aceitará. Mas o meu criado pode fazê-lo tão bem como eu. - Agora ele entra na locanda e vós ficais sozinha, no vosso pouso, em cima da carroça. - Sabe Deus quem ela será! Tratar-se-á de uma burguesinha, a filha de um bedel, talvez? Mas, para filha de bedel, é na verdade excepcionalmente bela e veste com raro gosto. Este bedel deve ter uma vida desafogada. Mas, pensando melhor, é possível que seja uma donzelinha de sangue nobre que, cansada de passear de carruagem, resolveu ir a pé até à sua casa de campo e, ao mesmo tempo, tentar uma pequena aventura. É muito possível, essas coisas sucedem. - O carvoeiro não é capaz de me dar qualquer informação, é um imbecil que só sabe beber. Mas está bem, bebe tranquilamente, tiozinho, ninguém te impede. - Mas que vejo eu? Afinal é a Menina Jespersen, nem mais nem menos, Hansine Jespersen, filha do negociante de Copenhague. Oh! Meu Deus! Já nos conhecemos. Foi ela quem uma vez encontrei na Bredgade, Passava de carruagem, sentada de costas para os cavalos, e não conseguia abrir a janela; peguei nos binóculos e tive o prazer de segui-la com os olhos. A sua posição incomodava-a bastante, havia gente demais na carruagem, não se conseguia mexer e, provàvelmente, não se atrevia a chamar a atenção dos outros para esse fato. A sua posição atual é, pelo menos, tão incomodativa como a dessa vez. Não há dúvida de que nós os dois estamos predestinados um para o outro. Dizem que é uma jovem romântica; certamente saiu por sua alta recreação. - Mas eis que volta o meu criado com o carvoeiro, e este vem completamente bêbedo. É horrível, que gente corrupta estes carvoeiros. Ah, sim, sem dúvida! E no entanto ainda há quem seja pior que eles. - Enfim, eis-vos numa bela aflição, sereis vós própria obrigada a conduzir, não pode haver nada mais romântico. - Recusais a minha oferta, afirmando que estais muito bem assim, mas não me estareis a tentar enganar? Bem sinto como sois dissimulada. Assim que tiverdes andado um pouco, saltareis da carroça - não são poucos os esconderijos que se encontram na floresta. - Que me selem o meu cavalo, seguir-vos-ei. - Enfim, aqui estou, não tereis a temer qualquer agressão. - Vamos, não vos assusteis tanto, ou voltarei imediatamente para trás. Pretendi apenas inquietar-vos um pouco e dar assim realce à vossa beleza natural. Pois não duvidais de que fui eu quem embriagou o camponês, e no entanto não me permiti sequer pronunciar uma palavra que pudesse ofender-vos. Tudo se pode ainda arranjar pelo melhor; serei bem capaz de dar uma volta a toda esta história de modo a fazer-vos rir dela. De vós apenas pretendo um pequeno lucro, - e não vos passe sequer pelo pensamento que eu seja capaz de atentar contra uma rapa viga de surpresa. Sou um amigo da liberdade, e em nada me interessa o que não obtenho livremente. - «Compreendeis bem que não é possível continuar desse modo a vossa viagem. Eu, por mim, vou à caça, e é por isso que estou a cavalo. Mas, no albergue, tenho a carruagem atrelada. Se assim quiserdes, ela estará aqui num instante para vos conduzir onde vos parecer. Infelizmente não posso ter o prazer da vossa companhia, pois estou obrigado por uma promessa, e uma promessa de caça é sagrada.» - Aceitais? - eis o problema solucionado num abrir e fechar de olhos. - Vedes? Já não tereis necessidade de vos sentirdes embaraça da se um dia nos voltarmos a encontrar ou, pelo menos, não mais que aquele pouco que tão bem vos fica. Podeis divertir-vos com toda esta história, ride um pouco e pensai um bocadinho em mim. Nada mais peço. Acharão que é pouco, mas este pouco me basta. É um início, e eu sou forte sobretudo nas noções preliminares. Ontem à noite havia uma pequena reunião em casa da tia. Sabia que Cordélia pegaria na sua malha, onde eu tinha escondido um pequeno bilhete. Deixou-o cair, emocionou-se, impacientou-se. Eis como devemos servir-nos da situação. Não se pode imaginar quantas vantagens é possível obter assim. Um bilhete, no fundo insignificante, lido nestas circunstâncias, toma para ela uma importância extrema. Não conseguiu falar comigo; eu tinha arranjado as coisas de maneira a. acompanhar uma senhora que voltava sozinha para casa. Viu-se pois obrigada à esperar até hoje. Isto é sempre bom para mamar, ainda mais profundamente, a impressão na sua alma. Aparentemente, sou sempre eu quem parece ter uma gentileza para com ela; a minha vantagem é estar instalado em todos os lados, nos seus pensamentos, e de todos os lados a surpreender, Não há dúvida de que o amor possui a sua dialética própria. Em tempos, houve uma jovem por quem me apaixonei. No verão passado vi, no teatro de Dresde, uma atriz que se lhe assemelhava extraordinàriamente. Por esta razão desejei conhecê-la e consegui-o, mas convenci-me então de que a dessemelhança era bastante grande. Hoje, encontrei na rua uma senhora que me fez lembrar a tal atriz. Esta história pode continuar até ao infinito. Os meus pensamentos envolvem Cordélia por todo o lado, faço-os voar como anjos ao redor dela. Como Venus, na sua carruagem puxada por pombas, ela senta-se no seu carro de triunfo e a ele atrelo, como seres alados, os meus pensamentos. Ela é feliz e rica como uma criança, toda poderosa como uma deusa, e eu caminho junto dela. Na verdade, uma jovem é e será sempre o venerabile da natureza e de toda a existência. Ninguém melhor do que eu o sei. Só é pena que tal esplendor tenha tão breve duração. Ela sorri-me, cumprimenta-me, acena-me, como se fosse minha irmã. Um só olhar lhe recorda que é a minha bem-amada. O amor tem muitas posições. Cordélia faz bons progressos. Sentada nos meus joelhos, o braço macio e quente ao redor do meu pescoço, repousa sobre o meu peito sem que eu sinta qualquer peso; as suas formas suaves mal me tocam; o seu corpo encantador enlaça-me, como um suave nó. Os seus olhos ocultam-se sob as pálpebras, o seu pescoço é de um branco deslumbrante como o da neve, e tão liso que os meus olhos quase não conseguem repousar nele, e deslizariam se o pescoço não palpitasse. Por que esse palpitar? Será amor? Talvez. Um pressentimento, um sonho do amor, mas falia-lhe ainda a energia. Beija-me com prolixidade, como a nuvem da Transfiguração, livre como uma brisa, tão suavemente como quando se pega numa flor; os seus beijos são fugazes como os que o céu dá ao mar, suaves e tranquilos como os que o orvalho dá às flores, solenes como quando o mar acaricia a imagem da lua. Chamarei à sua paixão presente uma paixão ingênua. Mas, efetuada a mudança de rumo, quando eu começar seriamente a retirar-me, ela fará todo o possível para me encantar realmente. Como meio apenas lhe restará o próprio erotismo, com a diferença de que este aparecerá então numa escala muito mais vasta. Será uma arma que ela brandirá contra mim. E aí se anunciará a paixão refletida. Lutará por causa de si própria, porque sabe que eu possuo o erotismo; lutará por causa de si própria a fim de me vencer. Terá mesmo necessidade de uma forma de erotismo superior. O que, graças aos meus estímulos, lhe ensinei a suspeitar, far-lho-á compreender então a minha frieza, mas de modo a que ela pense que o descobriu por si própria. Deste modo, pretenderá apanhar-me desprevenido, julgará ser-me superior em audácia e, assim, ter-me conquistado. A sua paixão tornar-se-á então decidida, enérgica, concludente, dialética, o seu beijo total, o seu abraço de um irresistível entusiasmo. - Procurará em mim a liberdade e encontrá-la-á tanto melhor quanto mais fortemente eu a enlaçar. O noivado será desfeito. e então necessitará um pouco de repouso, para que nenhuma fealdade se produza nesse tumulto selvagem. A sua paixão recolher-se-á ainda uma vez, e ela será minha. Como indiretamente, o fazia já no tempo do falecido Eduardo, dirijo agora, diretamente, as suas leituras. O que lhe dou a ler é, em minha opinião, o melhor alimento: a mitologia e os contos. Mas também aqui, como em tudo o resto, ela é livre; espreito todos os seus desejos e, quando estes não existem, eu próprio os crio primeiro. Quando, durante o verão, as criadinhas se preparam para ir a Dyrehaven, é, geralmente, um prazer bem pobre. Como só lá vão uma vez por ano, querem tirar o máximo proveito do que gastam. Têm forçosamente de pôr chapéu e xale, e desfeiam-se de todas as maneiras possíveis. A gaiatice é selvagem, feia e lasciva. Não, prefiro o parque de Frederiksberg. Vêm aqui aos domingos à tarde. e eu também. Tudo é próprio e decente, e a própria jovialidade é menos ruidosa e mais nobre. Aliás, os homens que não apreciam as criadinhas perdem com isso mais que elas. Os seus bandos, tão variados, constituem realmente a mais bela milícia que temos na Dinamarca. Se eu fosse rei - bem sabia o que havia de fazer - não seria com tropas de infantaria que faria as minhas paradas. Se eu fosse um dos nossos 32 vereadores, pediria imediatamente a instituição de uma junta de saúde pública que, pelos seus conhecimentos na matéria, pelos seus conselhos e exortações, e graças a recompensas apropriadas, procuraria de todos os modos encorajar as criadinhas a adotar vestuários de bom gosto e bem cuidados. Por que desperdiçar tanta beleza, fazendo-a passar despercebida através da vida? Que ela se apresente uma vez por semana, pelo menos, sob a luz que a põe em relevo! Mas, antes de tudo: bom gosto, moderação. Uma criada não deve ter o ar de uma dama, como muito bem o diz O amigo da Polícia, mas as razões desse estimável jornal são inteiramente errôneas. Se ousássemos assim considerar um desejável desenvolvimento na classe das criadinhas, não seria ele, em troca, útil às nossas jovens? Ou será demasiadamente arriscado da minha parte entrever, por este caminho, um futuro para a Dinamarca, um futuro verdadeiramente único no mundo? E, desde que me seja permitido ser contemporâneo desse ano santo, poder-se-ia, em boa consciência, empregar o dia inteiro a passear por ruas e ruelas, no deleite desse encanto. Como o meu pensamento se apaixona e voa para longe, com tal ousadia e tal patriotismo! Mas, ao mesmo tempo, encontro-me em Frederiksberg onde as criadinhas vêm aos domingos à tarde, e eu também. - Chegam primeiro as do campo, de mãos dadas com os seus namorados, ou, seguindo outra disposição, todas as raparigas à cabeça, de mãos dadas, e todos os rapazes atrás, ou seguindo ainda outra fórmula, duas raparigas e um rapaz. Este grupo constitui o quadro; ficam geralmente de pé ou sentam-se ao longo das árvores que envolvem o grande espaço quadrado, em frente do pavilhão. Grupo saudável e fresco, apenas com contrastes de cor, um pouco acentuados demais, na pele e nos fatos. Depois, juntam-se ao quadro as raparigas da Jutlândia e da Fiónia. São altas, direitas, talvez um pouco demasiado fortes, e de vestidos um tudo nada garridos. A junta teria aqui muito trabalho. Não faltam também alguns representantes da divisão de Bornholm: ótimas cozinheiras de quem não é bom aproximarmo-nos, nem na cozinha, nem em Frederiksberg, - há nelas algo de orgulhoso e rebarbativo. Esta a razão porque a sua presença, pelo contraste, não deixa de ter o seu efeito; não quereria que aqui faltassem, mas é raro que eu me aventure com elas. - E eis os grupos destruidores dos corações: as raparigas de Nyboder. Menos altas, mais arredondadas de talhe, rechonchudas, finas de pele, alegres, felizes, lestas, faladoras, muito coquetes e, acima de tudo, de cabeça ao léu. - Ah, bom dia. Maria; então por aqui? Já há muito que a não via. E então, continua em casa do Conselheiro? - «Sim» - não há dúvida de que é um belo lugar, não? - «Sim» - mas então vem aqui sozinha, sem ninguém para acompanhá-la... Sem um namorado? Foi ele que não teve tempo hoje, ou está à espera dele? - como, não está noiva? Não é possível. A rapariga mais bonita de Copenhague, - com um lugar em casa do Senhor Conselheiro, uma rapariga que é uma glória e um modelo para todas as suas colegas, uma rapariga que se sabe vestir tão bem e... Tão magnificamente. Que lindo que é o seu lenço, - e da mais fina cambraia... Ena, e com bordados em volta, tenho a certeza de que custou, pelo menos, 10 marcos... Há muita senhora distinta que não tem um igual - luvas francesas - e um guarda-chuva em seda... Como é possível não estar noiva uma rapariga assim? Ora, é absurdo. Aliás, se não estou em erro, havia o Jens que se interessava muito por si. Ora, bem sabe quem é Jens, do negociante que mora no segundo andar... Ora aí está, bem me queria parecer - mas porque é que não ficaram noivos? O Jens era um belo rapaz, tinha um bom lugar e talvez, mais tarde, com a influência do Senhor negociante, pudesse ter vindo a ser agente de polícia ou fogueiro nas locomotivas, não era de modo algum um mau partido... A culpa foi sua, com certeza; foi talvez muito dura com ele... - «Não. Mas soube que o Jens já tinha estado noivo de uma rapariga, e não se tinha portado nada bem com ela.» - ... Que me diz? Mas quem havia de dizer que o Jens fosse assim... Ah sim! Estes rapazes da Guarda... É preciso ter muito cuidado com eles... Pois fez muito bem. Uma rapariga como você é demasiado preciosa para servir de brinquedo ao primeiro que apareça... Há-de arranjar um partido ainda melhor, sou eu que lho digo. - Como vai a Menina Juliana? Há já muito tempo que a não vejo. A minha gentil Maria é que talvez me pudesse dar notícias dela, ficava-lhe tão agradecido... Só porque se foi infeliz nos amores, não há razão para se ser indiferente para com os dos outros... Mas há aqui tanta gente... Não ouso falar do assunto, tenho medo que alguém me ouça. - Escute-me apenas um momento, minha bela Maria... Eis o sítio ideal. Nesta álea cheia de sombra, onde as árvores se entrelaçam para nos esconder, aqui onde não vemos ninguém e onde não ouvimos qualquer voz humana, apenas um longínquo eco de música... Aqui ousarei falar do meu segredo... Se Jens não tivesse sido tão má pessoa, não é assim, terias aqui passeado com ele, de braço dado, terias escutado a linda música, e experimentado o prazer de outra ainda mais bela... Mas por que essa perturbação? - esquece Jens vejo que queres ser injusta para comigo... Foi para te encontrar que aqui vim... Era para te ver que frequentava a casa do Conselheiro... Não reparaste?... Sempre que o podia fazer, ia até à porta da copa... Tens de ser minha... Os banhos de casamento serão publicados... Amanhã à noite te explicarei tudo... Subirei pela escada de serviço, a porta à esquerda, mesmo em frente à porta da cozinha... Até à vista, minha bela Maria... Não deixes ninguém suspeitar que nos encontramos, que te falei e sabes o meu segredo. - É na verdade deliciosa, talvez haja alguma coisa a aproveitar. - Uma vez dentro do seu quarto, publicarei eu próprio os banhos de casamento. Tenho, desde sempre, tentado aperfeiçoar a bela autarquia dos gregos e, principalmente, dispensar um pastor. Se tal fosse possível, gostaria de estar por trás de Cordélia quando recebe uma carta minha. Ser-me-ia então fácil verificar até que ponto ela consegue compreender, do ponto de vista estritamente erótico. As cartas, afinal, são e serão sempre um meio inapreciável para causar determinada impressão numa jovem; as palavras escritas têm, bastas vezes, uma influência muito maior que a palavra viva. Uma carta é uma comunicação cheia de mistério; comanda-se a situação, não se sente o constrangimento de outra presença, e creio que uma jovem prefere estar completamente só com o seu ideal, pelo menos em certos momentos, precisamente aqueles em que o ideal tem sobre ela um maior domínio. Ainda que o seu ideal tenha encontrado expressão, aproximadamente completa, num objeto preciso e amado, há no entanto momentos em que o ideal lhe causa o efeito de algo excessivo, algo que a realidade não conhece. E ela tem direito a estas grandes cerimônias de expiação; é simplesmente necessário vigiar para que delas se sirva corretamente, a fim de que, no seu regresso à realidade, ela não volte esgotada, mas plena de força. Para isso ajudam as cartas que, embora invisíveis, nos fazem espiritualmente presentes nesses sagrados instantes da iniciação, enquanto que a ideia de ser o personagem real também o autor da carta, oferece uma fácil e natural transição para a realidade. Poderia eu ter ciúmes de Cordélia? Morte e danação sim! Embora, em outro sentido, não! Pois que - mesmo vencedor na minha luta contra outro - se verificasse ter havido perturbação na sua natureza, não ser ela já o que desejo - renunciar-lhe-ia. Disse um velho filósofo que se anotarmos exatamente aquilo que sucede na nossa vida, nos tornaremos, sem darmos por isso, filósofos. Já de há muito frequento a comunidade dos noivos, e é inevitável que tal fato conduza a qualquer coisa. Tive pois a ideia de acumular materiais para uma obra intitulada: Contribuição para uma teoria do beijo, dedicada a todos os eternos amorosos. Aliás, afigura-se-me curioso que nada exista escrito sobre este assunto. E, se conseguir ultimar este trabalho, terei consequentemente preenchido uma lacuna que de há muito se faz sentir. Será tal lacuna literária devida ao fato de os filósofos não pensarem nessas coisas, ou porque não são entendidos no assunto? - Estou já no caso de poder dar algumas informações. Um beijo completo requer que sejam uma jovem e um homem a agir. Um beijo entre homens é de mau gosto ou, o que é pior, Item um sabor desagradável. - Penso também que um beijo está mais próximo da sua ideia quando é o homem a dá-lo à jovem, do que inversamente. Nos casos em que, com o decorrer dos anos, se produziu uma indiferença a seu respeito, o beijo perdeu todo o sentido. É o caso do beijo conjugal de interior, com o qual os esposos, à falta de guardanapo, se limpam reciprocamente as bocas, dizendo: muito bom proveito! Se a diferença de idades é muito grande, nenhuma ideia poderá justificar o beijo. Recordo uma escola feminina de província, onde as raparigas da última classe tinham, na sua terminologia, a expressão: «Beijar o Senhor Conselheiro», expressão que, nos seus espíritos, se ligava a uma ideia mais que desagradável. A sua origem era a seguinte: vivia em casa da diretora da escola um seu cunhado, antigo Conselheiro, que, graças à sua idade avançada, se permitia a liberdade de beijar as jovenzinhas. - O beijo deve exprimir uma paixão determinada. Quando um irmão beija a sua irmã, o beijo não é um verdadeiro beijo, tal como o não é um beijo de acaso no jogo das prendas, ou um beijo roubado. Um beijo é um ato simbólico, que nada significa se não existe o sentimento que o deve originar, e este sentimento apenas existe em circunstâncias determinadas. - Se queremos tentar uma classificação dos beijos, são vários os princípios que para ela se nos deparam. Podemos, por exemplo, classificá-los de acordo com o ruído que produzem. Infelizmente, as palavras não chegam para cobrir o vasto terreno das minhas observações a este respeito, Creio que nem o conjunto de todas as línguas do mundo possui onomatopeias suficientes para ilustrar as diferenças que, e isto apenas na casa de meu tio, me foi dado aprender e distinguir. O beijo é umas vezes ruidoso como um estalido, outras vezes sibilante; há beijos que estalam e beijos que ribombam; ora é cavo, ora maciço, ora roçagante como tecido, etc. - podemos classificar o beijo segundo o contato havido; o beijo tangente, o beijo aflorante e o beijo aderente. - Podemos classificá-la segundo a sua breve ou longa duração. Mas o tempo pode ainda originar outra classificação, no fundo a única que me agrada. Distinguimos então entre o primeiro beijo e todos os outros. A qualidade aqui visada não sofre comparação com o que advém das outras classificações, nada tem a ver com o som, ou o contato, ou o tempo em geral. No entanto, o primeiro beijo é qualitativamente diferente de todos os outros. Há muito poucas pessoas que tenham refletido sobre este assunto, e seria pois forte pena que não houvesse pelo menos uma para pensar em tal. Minha Cordélia! A boa resposta é como o suave beijo, disse Salomão. Conheces bem a minha curiosidade; chegam mesmo a apontar-ma como um defeito. É porque não compreendem o assunto sobre o qual faço as minhas perguntas; porque tu e só tu o compreendes, tu e só tu sabes a boa resposta; porque a boa resposta é como o suave beijo, disse Salomão. Teu Johannes O erotismo espiritual é muito diferente do erotismo físico. Até ao presente foi, acima de tudo, o erotismo espiritual que tentei desenvolver em Cordélia, A minha presença pessoal deve agora transformar-se, deixando de ser apenas um estado de alma acompanhante, devendo tornar-se uma tentação. Durante os últimos dias, continuarei a preparar-me lendo a bem conhecida passagem do Fedro que trata do amor. Eletrizou todo o meu ser e é um soberbo prelúdio. Quão grande era realmente o saber de Platão sobre o erotismo! Minha Cordélia! Um latinista diz de um discípulo atento que ele está suspenso dos lábios do seu mestre. Para o amor tudo é imagem e, em contrapartida, a imagem é realidade. Não soa eu um discípulo assíduo e atento? Mas tu não dizes uma única palavra. Teu Johannes Se outro que não fosse eu estivesse encarregado de dirigir esta evolução, certamente seria demasiado astuto para se deixar manobrar. Se eu pedisse conselho, de entre os noivos, a um dos muito iniciados, suponho que me diria, considerando-o um belo rasgo de audácia erótica: É em vão que busco, nas posições do amor, a configuração nodal em que os amantes falam, juntos, do seu afeto. A isto, responderia eu: Tanto melhor se a buscas em vão, pois tal configuração de modo algum pertence à extensão real do erotismo, ainda que nele se introduza o que é interessante. O amor é demasiado substancial para se alimentar de conversas, e as situações eróticas demasiado graves para com elas se sobrecarregarem. São silenciosas, calmas, têm contornos nitidamente definidos e, contudo, são eloquentes como a música do colosso de Mémnon. Eros gesticula, não fala; ou, se o faz, é apenas através de misteriosas alusões, de uma harmonia repleta de imagens. As situações eróticas são sempre plásticas ou pictóricas; mas se dois amantes falam, juntos do seu afeto, isto não é plástico nem pictórico. No entanto, os noivos sérios começam sempre por determinadas palavras que, mais tarde, constituirão também o elo de ligação no seu lar tagarela. Mas elas serão igualmente a causa inicial e a promessa do fato de, ao seu casamento, não vir a faltar o dote de que fala Ovidio: dos est uxoria lites (O dote é uma questão relativa à esposa). - Basta, pois, a tornar-se necessário falar, que apenas um o faça. É o homem quem deve falar e, consequentemente, possuir algumas das virtudes do cinto de que Venus se servia para enfeitiçar: a conversação e a doce lisonja ou, para melhor dizer, a insinuante lisonja. - De modo algum se deve concluir que Eros seja mudo, nem que seja incorreta, de um ponto de vista erótico, a prática da conversação, mas que esta deve ser, ela própria, erótica e não se perder em considerações edificantes sobre perspectivas de futuro, etc., e também que, no fundo, deve ser considerada como um repouso da ação erótica, como um passatempo, e não como o bem supremo. Tal conversação, tal confabulatio é, na sua essência, perfeitamente divina, e nunca me cansarei de conversar com uma jovem. Compreendamo-nos; posso muito bem cansar-me de uma jovem em particular, mas nunca de conversar com uma jovem. Seria para mim uma impossibilidade tão grande como deixar de respirar. O que, no fundo, é próprio de tal conversa, é o florescer vegetativo da conversação. Esta se mantém pouco elevada, sem verdadeiro objetivo, dirigida pelo acaso - mas o seu nome e o nome das suas flores é: maravilhas, ou margaridas. Minha Cordélia! «Minha» Cordélia - «teu» Johannes, estas palavras encerram o pobre conteúdo dos minhas cartas como um parêntesis. Terás já reparado em como se encurta a distância entre os dois sinais deste parêntesis? Oh! Minha Cordélia! É belo porém que quanto mais o conteúdo diminui, tanto mais o parêntesis ganha em significado. Teu Johannes Minha Cordélia! Será o abraço uma luta? Teu Johannes Cordélia mantém-se geralmente em silêncio, e isto sempre me sensibilizou. Tem ela uma natureza feminina demasiado profunda para nos fatigar com hiatos, essa figura de retórica característica sobretudo das mulheres, e que :se torna inevitável quando o homem, que deve fornecer a consoante de apoio precedente ou seguinte, é também de natureza feminina. Por vezes, contudo, um breve comentário trai tudo o que ela tem na alma. Presto-lhe então o meu auxílio. É como se, atrás de alguém que, com mão pouco segura, esboça alguns traços de um desenho, se encontrasse outra pessoa que não cessa de transformar esses traços em algo de audacioso e perfeito. Ela própria se surpreende com o fato, mas dir-se-ia que tudo brota afinal dela. Eis porque velo por ela, por todas as suas observações fortuitas, por qualquer palavra lançada ao acaso e, ao restituir-lhas, tenho-as sempre transformado em algo de mais significativo, de que ela, não o conhecendo, sabe mesmo assim o sentido. Estávamos hoje num jantar. Não havíamos trocado uma só palavra. Ao levantarmo-nos da mesa, o criado entrou para comunicar a Cordélia que um mensageiro lhe pretendia falar. Fora eu quem o tinha enviado, portador de uma carta contendo alusões a um assunto sobre que, à mesa, eu havia falado. Tinha sido capaz de imiscuí-lo na conversa geral de modo a que Cordélia não pudesse deixar de ouvi-lo, embora estivesse sentada longe de mim, e de se enganar quanto ao seu sentido. A minha carta fora baseada nestes fatos. Se não tivesse conseguido dar à conversa a direção requerida, teria arranjado forma de estar presente no momento exato em que a carta chegasse, para confiscá-la. Quando Cordélia voltou à sala de jantar, viu-se obrigada a inventar uma desculpa para o resto dos comensais. São coisas como esta que cimentam o mistério erótico, sem o qual Cordélia não seria capaz de seguir o caminho para ela traçado. Minha Cordélia! Acreditas que aquele que, em sonhos, repousa a fronte sobre a Colina dos Elfos, vê a imagem da Sílfide? Não o sei, mas sei que ao repousar a fronte sobre o teu peito, sem fechar as pálpebras, e lançando um olhar para cima, vejo o rosto de um anjo. Acreditas que aquele que repousa a fronte sobre a Colina dos Elfos poderá manter a sua tranquilidade? Não o creio, mas sei que, ao inclinar a fronte sobre o teu seio, este se agita demasiado para permitir ao sono que desça sobre os meus olhos. Teu Johannes Alea jacta est (A sorte foi lançada). É agora, ou nunca, O momento de fazê-lo. Estava hoje em casa dela, absolutamente encantado com uma ideia que me absorvia. Não tinha olhos nem ouvidos para Cordélia. A ideia, em si própria, era interessante e cativou-a. Teria pois sido um erro iniciar a nova operação, dando provas de frieza na sua presença. Após a minha partida, e quando a tal ideia a não ocupar já, descobrirá sem dificuldade que eu deixei de ser para ela o mesmo de outrora. O fato de ser quando se encontra só que ela descobre a modificação, tornar-lhe-á a descoberta ainda mais penosa, e o efeito, sendo mais lento, será também tanto mais penetrante. Não poderá exaltar-se contra mim imediatamente e, mais tarde, quando com a minha presença chegar a ocasião de fazê-lo, terá já imaginado tantas coisas que as não poderá exprimir todas de uma só vez, e continuará a manter um resíduo de dúvida. A inquietação irá aumentando, as cartas deixarão de chegar, o alimento erótico será cerceado, o amor troçado como ridículo. Resistirá talvez ainda durante algum tempo mas, com a continuação, deixará de o poder suportar. Pretenderá então seduzir-me pelos mesmos meios de que contra ela me servi, isto é, pelo erotismo. Sobre o rompimento de esponsais, todas as rapariguinhas são grandes casuístas e, embora nas escolas não exista um curso para esta matéria, sabem todas perfeitamente, quando a questão se põe, em que casos esse rompimento se deve efetuar. Em suma, esta matéria devia ser, por regulamento, proposta nos exames do último ano; e embora as dissertações que saem das escolas de raparigas sejam, regra geral, muito monótonas, estou certo de que com este tema a variedade não faltaria, dado que o próprio problema oferece um vasto campo à sagacidade de qualquer jovem. Sendo assim, porque não dar a uma rapariga ocasião de fazer brilhar a sua? Ou de demonstrar precisamente que ela está apta para o noivado? Estive em tempos envolvido numa situação que muito me interessou. Um dia, em casa de uma família aonde eu às vezes ia, tendo as pessoas mais velhas saído, as duas jovens da casa reuniram, durante a manhã, várias amigas para tomar café. Eram ao todo oito, e todas tinham entre dezesseis e vinte anos. Provàvelmente não esperavam qualquer outra visita, e penso que a criada teria mesmo recebido ordem para não deixar entrar ninguém. Entrei, mesmo assim, e tive a sensação de ser acolhido com certa surpresa. Sabe Deus o que, em geral, serve de fulcro a uma discussão entre oito raparigas, numa destas solenes reuniões do sínodo. Nelas se encontram, por vezes, mulheres casadas; estas expõem então teologia pastoral e ocupam-se sobretudo de assuntos importantes: quando deixar a criada ir sozinha ao mercado, será melhor ter conta no talho ou pagar à vista, será provável que a cozinheira tenha um namorico e, no caso afirmativo, como acabar com essa combinação galante que atrasa a confecção dos petiscos? - Deram-me lugar neste belo grupo. Era no princípio da primavera, e o sol enviava já um ou outro raio a anunciar a sua breve chegada. Na própria sala tudo era invernal, e precisamente por isso representavam esses raros raios de sol o papel de arautos. Sobre a mesa, o café exalava um doce perfume - e, finalmente, as próprias raparigas eram alegres, saudáveis, florescentes e amigas de brincar, pois em breve se acalmara a inquietação inicial; e, no fim de contas, que tinham elas a temer, seguras como estavam pela superioridade numérica? - consegui conduzir-lhes a atenção e a conversa para o assunto dos rompimentos de noivado. Enquanto os meus olhos se alegravam esvoaçando de uma para outra flor, repousando ora numa beleza ora noutra, os meus ouvidos entregavam-se ao prazer de escutar a música das suas vozes, e a seguir atentamente, do mais fundo da minha alma, o que se dizia. Por vezes, uma só palavra era o bastante para me abrir uma perspectiva sobre o coração de determinada jovem, sobre a história desse coração. Como são sedutores os caminhos do amor, e como é interessante descobrir até onde se atreve a chegar uma determinada jovem! Continuei a atear o fogo; o espírito, os ditos graciosos, a objetividade estética, contribuíam para tornar o contato mais livre e, no entanto, nunca foi ultrapassada a mais estrita decência. Enquanto assim nos divertíamos nas leves regiões da conversação, um perigo se mantinha adormecido e uma só palavra teria bastado para lançar aquelas gentis raparigas num terrível embaraço. Essa palavra estava em meu poder dizê-la. Mas elas não compreendiam esse perigo, não o suspeitavam sequer. Graças ao jogo fácil da conversação, manteve-se sempre reprimido, exatamente como quando Xeerazade protela a sentença de morte, continuando a contar as suas histórias. - Tão depressa conduzia a conversação até aos limites da melancolia, como logo dava livre curso à jocosidade como ainda as desafiava para um torneio dialético. E qual será o assunto que é cada vez mais rico, à medida que o vamos encarando sobre os seus diferentes aspectos? Continuamente, ia apresentando novos temas de conversa. - Contei o caso de uma jovem, forçada pela crueldade dos pais a acabar o seu noivado; este infeliz conflito chegou quase a provocar-lhes as lágrimas. - Relatei a história de um homem que tinha acabado o seu noivado, e dado, para tal, duas razões: a jovem era demasiado alta e, ao confessar-lhe o seu amor, ele não se lançara de joelhos diante dela. Quando lhe objetei que estas razões de modo algum me poderiam parecer suficientes, respondeu que chegavam perfeitamente para obter aquilo que pretendia; porque ninguém lhes pode opor um argumento sensato. - Submeti à deliberação da assembleia um caso assaz difícil: uma jovem rompera o noivado por se ter convencido de que ela e o noivo não tinham sido feitos um para o outro. O bem-amado pretendeu levá-la à razão, assegurando-lhe a verdade e força do seu amor, mas ela respondeu: ou bem que somos feitos um para o outro, e existe uma simpatia real, e então deverás reconhecer que nos convimos um ao outro; ou então não nos convimos, e hás de reconhecer que não fomos feitos um para o outro. Era um verdadeiro prazer observar como as jovens se esforçavam por compreender estas misteriosas palavras, e no entanto reparei perfeitamente que uma ou duas as compreendiam às mil maravilhas: porque, quando se trata de rompimento de noivados, todas as jovens são casuístas natas. - Sim, a propósito dos casos de rompimento de esponsais, creio na verdade que me seria mais fácil discutir com o próprio Diabo, que com uma jovem. Hoje, estava em casa dela. Imediatamente, tão rápido como o pensamento, desviei a conversa para o assunto sobre que havíamos falado ontem, tentando criar de novo nela a exultação. «Há uma observação que já ontem devia ter feito; mas só me lembrei dela depois de ter saído!» Tive êxito. Enquanto estou com ela, Cordélia tem prazer em ouvir-me; depois de eu sair, ela nota sem dúvida que se iludiu, que eu estou mudado. É assim que se deve proceder. É um método hipócrita, mas muito apropriado, como todos os métodos indiretos. Ela compreende perfeitamente que as coisas de que lhe falo me possam ocupar o espírito, interessam-na também, de momento, e no entanto eu privo-a do verdadeiro erotismo. Oderint, dum metuant (Que me odeiem, contanto que me temam), como se o temor e o ódio fossem conexos, e o temor e o amor estranhos um ao outro, como se não fosse o temor que torna o amor interessante. Que é afinal o nosso amor pela natureza? Não existirá nele um misterioso fundo de angústia e horror, porque por trás da Sua bela harmonia se encontram a anarquia e uma desenfreada desordem, por trás da sua segurança, a perfídia? Mas é precisamente essa angústia que mais encanta, e o mesmo sucede ao amor, quando se pretende que este seja interessante. Por trás dele deve incubar a noite profunda, cheia de angústia, de onde desabrocham as suas flores. É assim que a nymphea alba, com a sua carola em forma de taça, repousa à superfície das águas, enquanto a angústia se apodera do pensamento que pretende mergulhar nas trevas profundas onde ela tem as suas raízes. Reparei que, ao escrever-me, ela me chama sempre: «Meu», mas que não tem a coragem de mo dizer. Pedi-lho hoje do modo mais insinuante e vivamente erótico possível. Cordélia tentou, mas um olhar irônico, mais breve e mais rápido que a palavra, bastou para impedi-la, a despeito dos meus lábios que, com todo o seu poder, a incitavam. É algo de perfeitamente normal. Cordélia é minha. Não vou, segundo o costume, confiá-lo às estrelas, e nem sequer vejo em que poderia esta novidade interessar essas esferas longínquas. Aliás, não a confio a ninguém, nem sequer a Cordélia. Reservo este segredo para mim próprio, e sussurro-o interiormente nos mais secretos diálogos comigo próprio. A sua tentativa de resistência era assaz moderada, mas o poder erótico que desenvolve é admirável. Como a torna interessante esta apaixonada obstinação, como a torna grande, de uma grandeza quase sobrenatural! E com que facilidade ela se sabe esquivar, com que perfeição aprendeu a insinuar-se onde quer que descubra um ponto fraco. Põe tudo em movimento; mas neste concerto dos elementos encontro-me eu, precisamente, no meu elemento. E contudo, mesmo no seio de tal agitação nada existe nela de feio, não a conseguem as emoções ou os móbeis dilacerar. Continua ainda a ser uma Anadiómene, com a única diferença de não surgir com uma graça ingênua ou uma calma desprevenida, mas sob o impulso forte do amor, continuando a ser harmonia e equilíbrio. Eroticamente, tem todas as armas necessárias à luta; usa as flechas dos olhos, o enrugar das sobrancelhas, a fronte cheia de mistério, a eloquência da garganta, as fatais seduções do seio, as súplicas dos lábios, o sorriso das faces, a doce aspiração de todo o seu ser. Há nela a força, a energia de uma Valquíria, mas essa plenitude de força erótica tempera-se, por sua vez, com certa languidez tema, como que exalada sobre ela. - Ela não deverá ser mantida por muito tempo nesta plenitude, onde apenas a angústia e a inquietação a podem manter de pé, impedi-la de se desmoronar. Em face de emoções tão intensas, depressa sentirá que o estado em que o noivado a coloca, é demasiado estreito, demasiado incomodativo. Será ela própria a exercer a tentação que me levará a franquear os limites do geral, e é assim que ela de tal tomará consciência, o que, para mim, constitui o essencial. Muitas das suas palavras indicam agora que ela já não pode suportar o nosso noivado. Tais palavras não me escapam, antes, nas minhas explorações da sua alma, ajudam-me a alcançar indicações úteis, são as pontas de fio que me servirão, nos meus projetos, para apertar as malhas ao redor dela. Minha Cordélia! Queixas-te do nosso noivado, és de opinião que o nosso amor não tem necessidade de um elo externo, que este não passa de um obstáculo. Nisto reconheço, toda inteira, a minha excelente Cordélia! Sinceramente, admiro-te. A nossa união exterior não passa, em realidade, de uma separação. Há ainda entre nós uma parede que nos separa, como Piramo e Thisbé: a incomodativa conivência dos outros. A liberdade apenas se encontra na contradição. O amor só adquire a sua real importância quando nenhum estranho o suspeita, e só então encontra o amor a sua felicidade, quando todos os estranhos pensam que os amantes se odeiam um ao outro. Teu Johannes O nosso noivado acabará em breve. Ela própria desatará este nó para, se possível, assim me encantar ainda mais, tal como os caracóis ao vento encantam mais que o cabelo preso. Se o rompimento partisse de mim, perderia o espetáculo, tão sedutor, deste perigoso salto erótico, critério seguro da ousadia da sua alma. É isto, para mim, o essencial. Por outro lado, tal acontecimento acarretar-me-ia, por parte de outros, muitas consequências desagradáveis. Embora sem razão, eu seria mal visto, odiado, aborrecido; sim, sem razão, pois, para muitos, que bom negócio não seria. Muita jovenzinha ficaria, mesmo assim, bastante contente por, à míngua de ter estado noiva, ter estado quase a sê-lo. Sempre é melhor que nada, embora, segundo a minha sincera opinião, muito pouco, Pois que, após se ter esforçado para chegar à frente e conseguir assim lugar na lista das esperançosas, a esperança precisamente se desvanecerá, e quanto mais se luta para alcançar os lugares dianteiros, tanto menores se tornam as possibilidades. Porque, em amor, o princípio da antiguidade não conta para aumentos e promoções. De mais a mais, essas rapariguinhas aborrecem-se de continuar no status quo, necessitam um acontecimento que lhes agite a existência. E nada pode então igualar um amor infeliz, principalmente se, ainda por cima, o assunto pode ser encarado com ligeireza. Fazem então crer a si próprias e aos seus próximos que são vítimas e, como não têm as condições necessárias para serem admitidas no refúgio de penitentes, encontram alojamento ao lado, entre os choramingas. Consideram-se então no direito de me odiar. A estes casos se junta ainda um batalhão daquelas que furam iludidas completamente, semi ou a três quartos. Sob este aspecto encontram-se vários graus, desde as que podem mostrar uma aliança no dedo, até às que apenas se apoiam num aperto de mão, dado durante uma contradança. Esta nova dor reabre-lhes as feridas. Aceito o seu ódio como uma gratificação suplementar. Mas todas estas criaturas cheias de ódio são, naturalmente, outras tantas pretendentes secretas ao meu pobre coração. Um rei sem reino é uma figura ridícula. Mas uma guerra entre pretendentes à sucessão num reino sem território leva a palma a todos os ridículos. O belo sexo deveria pois, na verdade, amar-me e tratar-me como a uma associação de socorros mútuos. Um noivo autêntico, esse, apenas se poderá ocupar de uma única mas, numa eventualidade tão complicada, podemo-nos muito bem encarregar, isto é, mais ou menos, de tantas quantas quisermos. Ficarei liberto de todas estas peremptórias inquietações e, além disso, auferirei a vantagem de poder representar abertamente um papel totalmente novo. As jovens lamentar-me-ão, terão piedade, soltarão suspiros por mim, eu adotarei precisamente a mesma tonalidade, e aí tenho uma nova forma de recrutar mais algumas. Como é curioso! Apercebo-me, ai de mim, que eu próprio trago o sinal denunciador que Horácio deseja para todas as donzelas infiéis: um dente negro e, para cúmulo, incisivo. Quão supersticioso se pode ser! Este dente perturba-me bastante, desagrada-me que aludam a. ele, é uma das minhas fraquezas. Enquanto, em qualquer outro sentido, as minhas armas são invioláveis, o maior dos imbecis pode, ao tocar-me neste dente, desferir-me golpes muito mais profundos do que ele próprio poderia imaginar. Faço, em vão, todo o possível para embranquecê-lo, e digo como Palnatoke: Jeg gnider den ved Dag, ved Nat, Men ei jeg sletter ud den sorte Skygge. (Esfrego de dia e de noite. / Mas nunca apagarei a sombra preta.) Ah, como a vida é cheia de mistérios. Uma coisinha de nada pode perturbar-me mais que o ataque mais perigoso, que a mais penosa das situações. Penso em mandá-lo arrancar, mas isso poderia alterar a minha voz e o seu poder. E no entanto fá-lo-ei, mandarei substituí-lo por um falso; porque esse poderá ser falso para o mundo, mas o dente negro é falso para mim. Cordélia sente-se limitada pelo noivado - o que é excelente! O casamento será sempre uma instituição respeitável, apesar do enfado de desfrutar, logo nos primeiros dias da juventude, uma parte da respeitabilidade que é apanágio da velhice. Pelo contrário, os noivados são uma invenção verdadeiramente humana e, consequentemente, de tal modo importante e ridícula que uma jovem, no turbilhonar da sua paixão, vai mais além, continuando a ter consciência dessa importância e sentindo a energia da sua alma circular por todo o seu ser como um sangue superior. O que importa agora é conduzir Cordélia de modo a que, no seu ousado voo, perca de vista o casamento e, de um modo geral, o chão firme da realidade, que a sua alma, tanto no seu orgulho como no temor de me perder, aniquile esta imperfeita forma humana e se apresse em direção a algo de superior ao que é comum no gênero humano. Aliás, nada tenho a temer a este respeito, pois ela paira já acima da vida com tal leveza que, em grande parte, perdeu por completo de vista a realidade. Por outro lado, continuo presente a bordo, com ela, e posso, a qualquer momento, erguer as velas. A mulher, eternamente rica de dons naturais, é uma fonte inesgotável para os meus pensamentos, para as minhas observações. Aquele que não sente a necessidade deste gênero de estudos poderá orgulhar-se de ser, neste mundo, tudo que quiser, à exceção de uma coisa: não é um esteta. O esplendor, o divino da estética reside precisamente em se ligar apenas ao que é belo; no seu âmago, ela apenas se ocupa das belas artes e do belo sexo. Posso deleitar-me e deleitar o meu coração, imaginando o sol da feminilidade dardejando os raios da sua infinita plenitude, disseminando-se numa verdadeira torre de Babel, onde cada uma em particular possui uma pequena parcela de toda a riqueza da feminilidade de modo a fazer dessa parcela o centro harmonioso do resto do seu ser. Neste sentido, a beleza feminina é infinitamente divisível. Porém, cada parcela de beleza deve ser harmonicamente incluída, pois caso contrário resultaria daí um efeito desagradável e chegaríamos à conclusão de que a natureza, ao ocupar-se de determinada jovem, não realizara tudo o que tinha em mente. Os meus olhos nunca se cansam de aflorar essas riquezas externas, essas emanações propagadas pela beleza feminina. Cada elemento particular possui dessa beleza uma pequena parcela, sendo, ao mesmo tempo, completo em si próprio, feliz, alegre, belo. Cada um tem o seu: o sorriso alegre; o olhar ladino; os olhos ardentes de desejo; a fronte altiva; o espírito galhofeiro; a doce melancolia; a intuição profunda; o humor sóbrio e fatídico: a nostalgia terrestre; as emoções não confessadas; as sobrancelhas eloquentes; os lábios interrogadores; a testa cheia de mistério; os caracóis sedutores: os cílios que escondem o olhar; o orgulho divino; a castidade terrena: a pureza angélica; o insondável rubor; os passos leves; o balançar gracioso; a pose langorosa; o devaneio cheio de impaciência; os suspiros inexplicados; a cintura esbelta; as formas suaves; o colo opulento; as ancas bem arqueadas; o pé pequeno; a mão gentil. - Cada uma tem o seu, e uma tem o que a outra não possui. E quando vi e revi, contemplei e voltei a contemplar as riquezas deste mundo, quando sorri, suspirei, lisonjeei, ameacei, desejei, tentei, ri, chorei, esperei, ganhei, perdi - fecho o leque, e o que era esparso reúne-se numa coisa só, as partes conjugam-se num todo. A minha alma alegra-se então, o meu coração bate mais rápido e a paixão incendeia-se. É precisamente aquela jovem, única no mundo inteiro, que deve ser minha e o será. Fique Deus com o céu, se eu puder ficarei com ela. Sei bem que o que escolho é tão grande que o próprio céu não ficará a lucrar nesta partilha, pois que, se eu a guardar para mim, que restará ao céu? Os crentes - esses bons muçulmanos - ficariam decepcionados quando, no seu Paraíso, abraçassem sombras pálidas e privadas de força, pois não encontrariam corações ardentes, dado que o ardor de todos os corações estaria concentrado nela; inconsoláveis, desesperariam ao encontrarem apenas lábios pálidos, olhos mortiços, colos insensíveis e apertos de mão sem convicção, pois todo o rubor dos lábios e o fogo do olhar e a inquietação do colo e a promessa das mãos e o pressentimento dos suspiros e a confirmação dos beijos e o estremecimento do contato e a paixão do amplexo - tudo - tudo estaria reunido nela, que me prodigalizaria tudo o que teria sido suficiente para este mundo e o outro. Tais são os pensamentos que muitas vezes tive a propósito deste assunto, mas de cada vez que assim neles penso, inflamo-me, porque imagino ardente essa mulher ideal. Embora o ardor passe, em geral, por ser um bom sinal, não se conclui contudo que se atribua à minha maneira de ver o honroso predicado da solidez. Assim, para criar uma diversão, quero agora, estando eu próprio frio, imaginá-la fria. Tentarei pensar a mulher sob uma categoria, mas qual? Sob a categoria da aparência. Porém não deverá ser entendida em mau sentido como se, por exemplo, destinada para mim, ela o fosse também para outro. Neste, como em qualquer raciocínio abstrato, é necessário não levar de modo algum em conta a experiência, pois esta, no caso presente, seria por ou contra mim de modo assaz curioso. Neste, como aliás em todos os casos, a experiência é um estranho personagem pois apresenta a particularidade de ser sempre por, sendo também contra. A mulher é pois aparência. Mas é mais uma vez necessário não me deixar, neste caso, perturbar pela lição da experiência, a qual pretende que só em casos muito raros se encontra uma mulher que seja verdadeiramente aparência, pois há geralmente um grande número que não é coisa alguma, nem para elas próprias, nem para os outros. Aliás, partilham este destino com toda a natureza e, em resumo, com tudo o que é feminino, Toda a natureza não passa pois de aparência, não no sentido teleológico em que um dos seus elementos particulares o seria para um outro elemento particular, mas toda a natureza é aparência - para o espírito. E o mesmo sucede no que se refere aos elementos particulares. A vida da planta, por exemplo, expõe com toda a ingenuidade das suas graças ocultas e é apenas aparência. Do mesmo modo, um enigma, uma charada, um segredo, uma vogal, etc. são apenas aparências. É o que explica também que Deus, ao criar Eva, tenha lançado sobre Adão um sono profundo; pois a mulher é o sonho do homem. Esta história ensina-nos também, de outro modo, que a mulher é aparência. Pois aí se diz que Jeová tirou ao homem uma das suas costelas. Tivesse ele, por exemplo, tirado uma parte do cérebro do homem, e a mulher teria continuado a ser aparência, mas a finalidade de Jeová não era fazer uma quimera. Ela tornou-se carne e sangue e precisamente por isto, veio a cair sob a determinação da natureza, que é essencialmente aparência. Ela apenas desperta ao contato do amor, e antes desse momento é apenas sonho. Mas, nessa existência de sonho, podemos distinguir dois tempos: primeiro o amor sonha com ela, depois ela sonha com o amor. Enquanto aparência, a mulher é marcada pela virgindade pura. Porque a virgindade é uma existência que, enquanto existência para si é no fundo uma abstração e apenas em aparência se revela. Abstração também, é a inocência feminina e por isso se pode dizer que a mulher, em estado de inocência, é invisível. Aliás, não havia, como se sabe, imagem de Vesta, a deusa que representa, note-se, a verdadeira virgindade. Pois tal existência é esteticamente ciumenta de si própria, tal como Jeová o era eticamente, e não quer que exista uma sua imagem, nem mesmo qualquer representação. Existe aqui uma contradição; o que é aparência não existe, e só se torna visível ao tornar-se aparente. Segundo a lógica, tal contradição é perfeitamente correta, e aquele que sabe pensar logicamente não será perturbado por ela, ante se regozijará. Pelo contrário, um espírito ilógico imaginará que o que é aparência existe no sentido finito, tal como se pode dizer de uma coisa particular que existe para mim. Esta existência da mulher (existência é já demasiado, pois ela não existe «ex» si própria) é corretamente expressa pela palavra: graça, que recorda a vida vegetativa; como os poetas gostam de o dizer, ela assemelha-se a uma flor, e a própria espiritualidade tem nela um caráter vegetativo. Encontra-se completamente sob a determinação da natureza e, consequentemente, só esteticamente é livre. Num sentido mais profundo, apenas se torna livre através do homem, e por isso o homem lhe pede a mão e se diz que ele a liberta. Se não há, por parte do homem, um erro de conduta, não se poderá falar de uma escolha. É certo que a mulher escolhe, mas se a sua escolha fosse o resultado de longas reflexões, não seria feminina. E é por isso que é desonroso não ser aceite, porque o homem em questão se superestimou, quis libertar uma mulher sem ser capaz de fazê-lo. - Revela-se aqui uma profunda ironia. A aparência toma o aspecto de ser o elemento predominante: o homem pede, a mulher escolhe. Segundo o conceito que deles se faz, a mulher é a vencida, o homem o vencedor e, contudo, o vencedor inclina-se diante do que foi vencido; aliás, nada mais natural, e apenas a grosseria, a estupidez e a insuficiência de sentido erótico, serão capazes de não apreciar o que assim resulta do contexto. Podemos também encontrar uma razão mais profunda para este fato. Porque a mulher é essência, o homem é reflexão. É por isto que ela não escolhe sem mais nem menos, mas o homem pede, e ela escolhe então. Mas o homem, ao pedir, limita-se a fazer uma pergunta, e a escolha que ela faz não passa de fato de uma resposta. Num sentido, o homem é mais que a mulher, num outro é infinitamente menos. Esta aparência é a pura virgindade. Se ela tenta, por si própria, pôr-se em relação com uma outra existência, que é existência para ela, o contraste aparecerá no recato absoluto, mas este contraste mostra também que a verdadeira existência da mulher é aparência. O contraste diametralmente oposto ao abandono absoluto de si próprio é o absoluto recato que, em sentido inverso, é invisível como a abstração, contra a qual tudo se quebra, sem que ela própria ganhe vida. A feminilidade assume então o caráter da crueldade abstrata, que é o cúmulo caricatural do verdadeiro recato virginal. Um homem nunca poderá ser tão cruel como uma mulher. Se os consultarmos, os mitos, os contos e as lendas, o confirmarão. Se for necessário dar um exemplo de um princípio natural que não conhece limites ao seu impiedoso rigor, encontrá-lo-emos num ser virginal. Estremecemos ao ler a história de uma jovem que, friamente, deixa os seus pretendentes arriscarem a vida, como tantas vezes é dito em todas as lendas populares. Um Barba-Azul mata, na própria noite de núpcias, todas as jovens que amou, mas não tem prazer em matá-las, pelo contrário, o prazer foi tido antes, o que constitui a manifestação material: não é uma crueldade pela crueldade. Um Don Juan sedu-las e abandona-as, mas todo o seu prazer reside em seduzi-las e não em abandoná-las; não se trata pois, de modo algum, dessa crueldade abstrata. Quanto mais penso nisso mais me apercebo da completa harmonia que existe entre a minha prática e a minha teoria. Pois na minha prática sempre tive a convicção de que, essencialmente, a mulher é apenas aparência. É por isso que, a este respeito, o instante tem sempre uma importância capital, pois o que lhe diz respeito é sempre uma aparência. Poderá decorrer um tempo mais ou menos longo antes de chegar o instante, mas, chegado ele, o que primitivamente era aparência adquire uma existência relativa e, na mesma ocasião, tudo acabou. Sei que os maridos dizem, por vezes, que, num outro sentido, a mulher é também aparência: é tudo para eles durante toda a vida. Enfim, devemos perdoá-lo a tais maridos, porque, no fundo, não será isto algo que eles pretendem fazer acreditar uns aos outros? Neste mundo, toda e qualquer profissão tem geralmente certos costumes convencionais e, principalmente, certas mentiras de convenção, entre as quais é necessário contar esta enorme patranha. O entendimento perfeito criado no instante não é coisa fácil, e aquele que o não alcança terá, naturalmente, de arrastar com ele, durante toda a vida, esse dissabor. O instante é tudo e, no instante, a mulher é tudo, - mas as consequências ultrapassam a minha inteligência. Entre outras, também a de ter filhos. Enfim, julgo-me um pensador assaz lógico mas, mesmo louco, não seria homem para pensar nessa consequência, de modo algum a entendo, para isso é necessário um marido. Ontem, Cordélia e eu fomos ao campo visitar uma família. Ficamos a maior parte do tempo no jardim, entregues a todo o gênero de exercícios físicos, entre outros, a jogar às argolas. Aproveitei a ocasião em que um parceiro de Cordélia parara de jogar, para substituí-lo. Que encantos ela ostentava, e como o esforço do jogo a tornava mais sedutora ainda! Que harmonia cheia de graça nos movimentos tão inconsequentes! Que leveza, - dir-se-ia que dançava sobre a relva! Mau grado a ausência de qualquer resistência - que vigor em falhar a jogada, até que o equilíbrio viesse explicar tudo, um ditirambo na atitude, e que provocação no seu olhar! O próprio jogo tinha para mim um interesse natural, mas Cordélia parecia não lhe prestar qualquer atenção. Uma alusão que fiz a uma das pessoas presentes sobre o belo costume de trocar anéis, atravessou a sua alma como um relâmpago. A partir desse momento, uma luz especial iluminou toda a situação, impregnando-a de um significado mais profundo e um acréscimo de energia se mostrou em Cordélia. Retive as duas argolas na minha varinha, parei por um instante e troquei algumas palavras com as pessoas que nos rodeavam. Cordélia compreendeu aquela pausa. Voltei a lançar-lhe as argolas. Pouco depois, conseguia juntar ambas na sua varinha. Como por inadvertência, lançou-as muito alto, na vertical, e foi-me naturalmente impossível apanhá-las. Cordélia acompanhou este lançamento com um olhar de uma audácia inaudita. Conta-se que a um soldado francês, que fazia a campanha da Rússia, amputaram uma perna gangrenada. No preciso instante em que acabou aquela penosa operação, agarrou a perna pelo ar e lançou-a ao ar, gritando: Viva o Imperador! Foi com um olhar idêntico que também Cordélia, mais bela que nunca, lançou ao ar as duas argolas, dizendo baixinho: Viva o amor! Julguei no entanto imprudente deixá-la entusiasmar-se naquela disposição, e permitir-lhe que ficasse só em presença dela, temendo a fadiga que tantas vezes resulta de uma situação extrema. Mantive-me pois perfeitamente calmo e, graças à presença dos outros, levei-a a continuar o jogo como se nada tivesse notado. Tal conduta só pode aumentar a sua elasticidade. Se, nos nossos dias, pudéssemos esperar um pouco de simpatia para este gênero de inquéritos, ofereceria um premio para a melhor resposta à seguinte pergunta: de um ponto de vista estético, qual é mais pudica, uma donzela ou uma mulher, aquela que não sabe ou a que sabe, e a qual das duas se pode conceder maior liberdade? Mas estas perguntas não preocupam esta nossa época de seriedade. Tal inquérito teria atraído a atenção geral na Grécia, todo o Estado teria sido por ele abalado, principalmente as donzelas e as mulheres jovens. Nos nossos dias não o acreditariam, mas também não acreditariam na história da bem conhecida querela entre duas jovens gregas, e do tão escrupuloso inquérito a que deu lugar; pois na Grécia estes problemas não eram tratados com ligeireza; e, no entanto, toda a gente sabe que Venus usa um cognome devido a essa querela, e a imagem de Venus que a imortalizou é universalmente admirada. A vida de uma mulher tem dois períodos interessantes; o início da sua juventude e, muito depois, quando envelheceu bastante. Mas tem também, sem a menor dúvida, um momento em que é mais encantadora ainda que uma jovenzinha, e em que merece ainda mais respeito, mas este é um momento que só muito raramente sucede na vida, é uma imagem visionária que não tem necessidade de ser vista, e que talvez nunca sequer o seja. Imagino-a então saudável, próspera, de formas desenvolvidas; segura uma criança nos braços, toda a sua atenção está presa a essa criança, e ela perde-se na sua contemplação. Eis uma visão de que, devemos confessá-lo, Se não encontrará paralelo em graciosidade, é um mito da natureza que apenas devemos contemplar sob o ponto de vista artístico, e não como uma realidade. Não deverão existir outras figuras ou enquadramento, que apenas viriam perturbar a visão. Se, por exemplo, vamos a uma igreja, temos muitas vezes ocasião de ver entrar uma mãe com o filho nos braços. Mas, ainda que não fosse senão pelo choro inquietante da criança e os pensamentos ansiosos dos pais sobre as perspectivas de futuro do pequeno, baseadas nesse choro, isso seria já bastante para nos perturbar de tal modo que o efeito estaria perdido, mesmo que tudo o resto fosse perfeito. Vemos o pai, o que é um grave erro porque isso suprime o mito, o encantamento, e vemos - horrenda refero (relato coisas horríveis) - o coro solene dos padrinhos, e vemos - ora, já não vemos nada. Como visão imaginária, nada há de mais encantador. Não me faltam a coragem, nem a ousadia, nem a temeridade para me atrever a um ataque - mas se, na realidade, uma tal visão aparecesse diante dos meus olhos, ficaria desarmado. Como Cordélia me preocupa! E contudo, o fim aproxima-se, a minha alma continua a pedir o seu filtro de juventude. Ouço já, ao longe, como que o canto do galo. Ela ouve-o talvez também, mas crê ser a alvorada que ele anuncia. - Porque será uma jovem tão bela, e a sua beleza de tão curta duração? Este pensamento poderia fazer-me cair na mais profunda melancolia e, contudo, no fundo, isso nada tem a ver comigo. Goza, não discutas. A maior parte das pessoas que fazem ofício de tais reflexões, nada gozam. No entanto, o fato de, a este respeito, se formar um pensamento, não pode ser nocivo; pois esta melancolia é livre de egoísmo e, aos olhos dos outros, vem geralmente aumentar um pouco a beleza masculina. Uma melancolia que se desenha como uma nuvem enganadora sobre a força viril faz parte do encanto masculino, e, na mulher, encontra paralelo num certo humor sombrio. - Quando uma jovem se entregou completamente, tudo está acabado. Continuo ainda a aproximar-me de uma donzela com certa angústia, e o meu coração bate mais depressa, porque sinto o poder eterno do seu ser. Perante uma mulher nunca sequer pensei em tal. A pouca resistência que, à custa de artifícios, tentam criar, nada é. É como se pretendêssemos afirmar que a coifa de uma mulher casada se impõe mais que a cabeça nua de uma donzela. É por isso que Diana foi sempre o meu ideal. Essa virgindade integral, esse recato absoluto, sempre me interessaram muito mas, ao mesmo tempo, sempre os considerei suspeitos. Porque tenho a impressão de que, no fundo, ela de modo algum mereceu todos os louvores recebidos pela sua perene virgindade. Ela sabia que o seu papel na vida dependia da sua virgindade e, consequentemente, manteve-se virgem. Aliás, em que perdido recanto da filologia terei eu ouvido dizer, por meias palavras, que ela mantinha uma recordação das pavorosas dores que sua mãe sofrera, ao dá-la à luz? Essa recordação assustou-a, pelo que não poderei censurar Diana, pois digo como Eurípides: preferiria fazer três guerras, a dar à luz uma só vez. A falar verdade, não poderia apaixonar-me por ela, mas, confesso, daria muito para com ela conversar, por aquilo a que eu chamaria uma conversação proba. Acho que ela se deveria poder prestar precisamente a todos os gêneros de comédia. A minha boa Diana, ao que parece, possui, de uma ou de outra maneira, certos conhecimentos que a tornam muito menos ingênua que a própria Venus. Não me interessaria surpreendê-la no banho, de modo algum, seria antes com as minhas perguntas que a espreitaria. Se, por meio de um subterfúgio, conseguir um encontro com uma jovem, duvidando do sucesso, conversarei primeiro com ela a fim de me preparar e armar, a fim de mobilizar todos os espíritos do erotismo. Uma questão que foi muitas vezes objeto das minhas reflexões, é saber qual a situação e qual o instante que podem ser considerados como os que maior sedução oferecem. A resposta depende naturalmente de que se deseja, do modo de desejar e da evolução de cada um. Inclino-me para o dia das núpcias e, neste, principalmente para um preciso momento. Quando ela se adianta no seu maravilhoso vestido de casamento e que, no entanto, todo aquele esplendor empalidece perante a sua beleza, quando ela própria fica, por sua vez, pálida, quando o seu sangue para momentaneamente de correr e o seu colo repousa, quando o seu olhar se torna incerto e lhe faltam as forças nas pernas, quando a virgem treme e o fruto amadurece; quando o céu a ergue e a gravidade da hora a fortifica, quando a promessa a transporta, a prece lhe dá a sua benção e a coroa de mirto cinge a sua fronte; quando o coração treme e o olhar se fixa no solo, quando ela se esconde em si própria e deixa de pertencer ao mundo para pertencer inteiramente ao bem-amado; quando a garganta se dilata e o seu peito se desfaz em suspiros, quando a voz quebra, quando as lágrimas brilham trem entes antes da explicação do enigma, quando as luzes se acendem e o esposo espera - eis chegado o instante! Em breve será já demasiado tarde. Já apenas resta um passo a dar, mas o tempo suficiente para dá-lo errado. Esse instante dá importância mesmo à mais apagada das donzelas, até uma pequena Zerlina se torna então um motivo de interesse. Tudo deve estar aí concentrado, e mesmo os maiores contrastes deverão ser reunidos naquele instante; se algo falta, sobretudo um dos contrastes principais, a situação perde imediatamente uma parte da sua força sedutora. Quem não conhece a gravura que representa uma penitente de rosto tão inocente e jovem que quase nos sentimos embaraçados, não só por causa dela mas também do confessor, sem sabermos o que ela poderá ter para confessar? A jovem ergue um pouco o véu e olha em seu redor como se procurasse algo que, talvez mais tarde, pudesse ter ocasião de confessar e, bem entendido, é o mínimo que ela poderia fazer - para o confessor. A situação apresenta bastantes aspectos sedutores e, como ela é a única figura no quadro, nada nos impede de imaginar a igreja em que a cena se passa, tão vasta que vários pregadores, mesmo muito diferentes, ali poderiam pregar ao mesmo tempo. Sim, a situação apresenta muitos aspectos sedutores e não objetaria a que me colocassem no segundo plano, principalmente se a pequena em tal consentisse. Mas esta situação não seria mesmo assim senão de segunda ordem, pois a rapariguinha tem todo o aspecto de não passar ainda de uma criança, e muita água correrá ainda debaixo das pontes antes que o instante chegue. Com Cordélia, terei sido constantemente fiel ao meu pato? Isto é, ao meu pato com a estética, pois é o fato de ter sempre a ideia do meu lado que me dá força. É este um segredo como o dos cabelos de Sansão, que nenhuma Dalila conseguirá arrancar-me. Para enganar simplesmente uma jovem, decerto me faltaria a perseverança; mas saber que a ideia faz parte do contexto, que é ao seu serviço que ajo, que a ela devoto as minhas forças, eis o que me torna austero para comigo próprio, o que faz com que me abstenha dos prazeres proibidos. Terei salvaguardado sempre o que é interessante? Sim, e ouso dizê-lo livre e abertamente, neste diálogo interior. Os próprios esponsais o constituíam, precisamente porque me não proporcionavam o que comummente se entende por interessante. Salvaguardavam-no precisamente porque o fato de serem públicos estava em contradição com a vida interior. Se a nossa ligação houvesse sido secreta, apenas teria sido interessante na primeira potência. Mas aqui se trata do que é interessante na segunda potência, e é isso que constitui, para ela, primordialmente, o interessante. O noivado vai acabar, mas é ela quem o acaba para se lançar numa esfera superior. E tem razão, porque o que mais a ocupará será a forma do que é interessante. 16 de Setembro O rompimento é um fato consumado; forte, ousada, divina, ela eleva-se nos ares como um pássaro a quem só hoje foi permitido mostrar a envergadura das suas asas. Voa, bela ave, voa! Confesso-o, se este voo real a afastasse de mim, isso me causaria uma dor extremamente profunda. Seria, para mim, como se a bem-amada de Pigmalião se tivesse de novo petrificado. Tomei-a leve, como um pensamento; será possível que esse pensamento agora me não pertença? Seria para desesperar. Um instante antes não lhe teria dado atenção, no instante seguinte já de modo algum me interessaria; mas agora - agora - este instante que, para mim, é uma eternidade. Mas ela não voa para longe de mim. Voa pois, bela ave, voa - ergue orgulhosamente o teu voo nas tuas asas, desliza através dos suaves reinos do ar, em breve te alcançarei, em breve me esconderei contigo no fundo da solidão. O acabar do noivado assustou algum tanto a tia. Mas ela tem um espírito demasiado livre para desejar constranger Cordélia, embora, a fim de melhor lhe adormecer as desconfianças, bem como para mistificar um pouco Cordélia, eu tenha feito algumas tentativas para interessá-la por mim. Aliás, dá-me bastantes mostras de simpatia, e não desconfia de todas as razões que tenho para poder pedir-lhe que se abstenha de qualquer simpatia. A tia permitiu-lhe passar algum tempo no campo, onde vai visitar uma família. É bom que ela se não possa abandonar à disposição sobre-excitada do seu espírito. Todas as resistências externas manterão assim, por algum tempo ainda, a sua emoção. Através das cartas, mantenho com ela uma fraca comunicação, e assim as nossas relações reverdecerão de novo. Agora, custe o que custar, é necessário torná-la forte, e o melhor seria levá-la a inclinar-se para o lado de um desprezo periférico pelas pessoas e pela moral. Então, quando chegar o dia da partida, apresentar-se-á como cocheiro um rapaz de confiança e, diante da sua porta, o meu criado, em quem ela confia totalmente, juntar-se-á a eles. Acompanhá-los-á até ao destino e ficará junto dela, ao seu serviço e, se necessário, para guiá-la. Depois de mim, não conheço ninguém melhor para representar esse papel que Johan. Eu próprio me encarreguei de toda a decoração, com o maior gosto possível. Ali nada falta para encantar a sua alma e a tranquilizar num bem-estar magnificente, Minha Cordélia! Os brados de alarme das diversas famílias não se reuniram ainda para criar uma confusão geral como ai que foi provocada pelos gritos dos gamos do Capitólio. Mas estou certo que tiveste já de suportar alguns solos. Tenta imaginar toda essa assembleia de efeminados e comadres, presidida por uma dama, digna parelha do inesquecível presidente Lars de que nos fala Claudius, e terás uma imagem, uma Meia, uma representação à escala do que perdeste e - diante de quem? Diante do tribunal das pessoas honestas. Junto a famosa gravura representando o presidente Lars. Não me foi possível comprá-la em separado, e assim adquiri as obras completas de Claudius, de onde a arranquei, lançando fora o resto; pois como ousaria eu sobrecarregar-te com um presente que, de momento, te não pode interessar, e, ao mesmo tempo, como poderia negligenciar a mínima coisa que, fosse apenas por um só momento, te poderia ser agradável? Como permitir-me sobrecarregar uma situação com coisas que lhe não dizem respeito? Tal prolixidade é própria da natureza, bem como do homem subjugado às coisas temporais, mas tu, minha Cordélia, na tua liberdade, odiá-la-ias. Teu Johannes A primavera é sem dúvida a mais bela época do ano para se ficar apaixonado - e o fim do verão a mais bela para alcançar a finalidade dos desejos. Há, no fim do verão, uma melancolia que responde inteiramente à emoção que nos penetra ao pensarmos na realização de um desejo. Hoje fui pessoalmente visitar a casa de campo onde Cordélia irá, dentro de alguns dias, encontrar um ambiente em harmonia com a sua alma. Não desejo ser eu próprio testemunha da sua surpresa e alegria, tais desvios eróticos apenas servirão para enfraquecer a sua alma. Estando só, abandonar-se-á como num sonho, e por toda a parte encontrará alusões, sinais, um mundo encantado; mas tudo perderia o seu significado se eu estivesse junto dela, e lhe fizesse esquecer que já passou a hora em que poderíamos fruir em comum de tais coisas. Esse ambiente não deve adormecer a sua alma como um narcótico, mas ajudá-la sem cessar a evadir-se, pois que ela o desdenhará como a um brinquedo sem interesse, face àquilo que está para acontecer. Tenho a intenção de visitar pessoalmente este lugar várias vezes, durante os dias que restam, e isto para manter vivo o meu ardor. Minha Cordélia! Agora, é forçoso dizê-la, chamo-te minha porque nenhum sinal exterior recorda a minha posse. - Em breve, ao chamar-te assim, será a pura verdade. E, apertada nos meus braços, quando me enlaçares nos teus, não precisaremos de nenhum anel para nos recordar que somos um do outro; pois não será esse abraço uma aliança mais real que um simples símbolo? E quanto mais estreitamente enlaçados nos mantiver, quanto mais indissoluvelmente nos ligar, maior será a nossa liberdade, pois a tua liberdade será seres minha, tal como a minha será ser teu. Teu Johannes Minha Cordélia! Quando andava à caça, Alfeu enamorou-se da ninfa Arethusa. Ela não quis dar-lhe ouvidos, e fugiu dele até que, ao chegar à ilha Ortígia, foi transformada em fonte. Foi talo desgosto de Alfeu que ele próprio se viu transformado num rio da Élida, no Peloponeso. Mas não esqueceu o seu amor e, sob o mar, uniu-se àquela fonte. Não será já o tempo das metamorfoses? Resposta: não será já o do amor? A que comparar a tua alma pura e profunda, sem ligação com o mundo, se não a uma fonte? Não te disse eu uma vez que sou como um rio enamorado? E, agora que estamos separados, não deverei lançar-me sob as ondas para ser unido a ti? Voltaremos ainda a encontrarmo-nos sob o mar, pois apenas nessas profundidades nos pertencemos. Teu Johannes Minha Cordélia! Em breve, em breve serás minha. À hora em que o sol fecha os seus olhos indiscretos, quando a História acaba e os mitos ganham vida, não é apenas na minha capa que me envolvo, mas também na noite, e voo para ti, e para te encontrar não são os teus passos que tento ouvir, mas o bater do teu coração. Teu Johannes Nestes dias em que não posso estar, quando quero pessoalmente junto dela, temo que se ponha a pensar no futuro. Até agora não foi esse o caso, pois soube perfeitamente aturdi-la graças à minha estética. Nada se pode imaginar de menos erótico que essas tagarelices sobre o futuro, que nascem principalmente quando não existe nada de melhor para de momento, nos preocupar. Junto dela também nada temo a este respeito, pois saberia fazer-lhe esquecer tão bem o presente como a eternidade. Se não sabemos pôr-nos em relação a tal ponto com a alma de uma jovem, melhor seria nunca termos sequer pensado em querer seduzir, pois haverá então estes dois escolhos, impossíveis de evitar: ser interrogado sobre o futuro e catequizado sobre a fé. É por isso perfeitamente natural que Margarida, no Fausto, submeta Fausto a tal exame, dado que ele teve a imprudência de se mostrar galante, e que uma jovem está sempre preparada contra tal ataque. Agora, creio que tudo está pronto para recebê-la; não lhe faltarão ocasiões para admirar a minha memória, ou antes, nem sequer terá tempo para isso. Nada do que para ela poderia ter importância foi esquecido, mas também nada aí foi posto que pudesse recordar-me diretamente e, no entanto, por todo o lado estou invisivelmente presente, O efeito dependerá muito do seu modo de olhar, pela primeira vez, todo o conjunto. Para tal recebeu o meu criado as mais precisas instruções, e ele é, a seu modo, um perfeito virtuoso. Se para tal recebeu ordem, sabe lançar um comentário como por acaso e com perfeita negligência, bem como fingir-se ignorante; numa palavra, é para mim um inapreciável auxiliar. O sítio é precisamente o que ela escolheria. Do meio da sala o olhar alcança dos dois lados, para lá do primeiro plano, o horizonte infinito, é como se se estivesse só no vasto oceano do espaço. Quem se aproxima de uma janela vê ao longe, no horizonte, uma floresta que se ergue em abóbada, como uma coroa que limita e encerra o lugar. E isto é perfeito, porque o amor ama - o quê? - um recinto fechado; não era o próprio paraíso um recinto fechado, um jardim para os lados do oriente? - Mas, ao nosso redor, aperta-se demasiado este círculo - avançamos para a janela, um lago tranquilo se esconde humildemente entre os elevados acessos - na margem, uma barca. Um suspiro do coração, um sopro do pensamento inquieto - a barca se solta das suas amarras e desliza por sobre o lago, docemente embalada pelo sopro suave de uma nostalgia sem nome; desaparecemos na solidão misteriosa da floresta, embalados pela superfície do lago que sonha com as profundas sombras das árvores - voltamo-nos para o outro lado e é o mar que se estende diante dos olhos que nada entrava, perseguidos pelos pensamentos que nada entrava. - Que ama o amor? O infinito. - Que teme o amor? Limites. - Por detrás da sala grande encontra-se uma divisão menor, ou antes, um gabinete, pois o que essa divisão quase era em casa das Wahl, é-o esta. A semelhança é evidente. Um tapete de vime cobre o sobrado, diante do sofá uma mesinha de chá com um candeeiro, semelhante ao outro. Aliás, tudo ali é semelhante, mas mais luxuoso. Penso poder permitir-me esse pequeno retoque à divisão. Na sala encontra-se um piano muito simples, mas que recorda o da casa das Jansen. Está aberto e, sobre a estante do piano, a mesma àriazinha sueca. A porta que dá para a entrada está entreaberta. Ela entrará por aquela porta ao fundo, pois para tal dei instruções a Johan, e assim, no momento exato em que ele abrir a porta, descortinará ela, ao mesmo tempo, o gabinete e o piano, - a ilusão é perfeita. Entra no gabinete e estou certo de que ficará contente. Ao lançar os olhos para a mesa encontrará um livro mas, nesse mesmo instante, Johan pegará nele para o arrumar, dizendo de modo casual: o Senhor deve tê-lo esquecido aqui esta manhã. Assim, Cordélia começará por saber que eu ali estive nesse mesmo dia, e depois quererá examinar o livro. É uma tradução alemã da famosa obra de Apuleio: Eras e Psiqué. Não é uma obra poética, porém isso também não é necessário, pois a oferta de uma obra verdadeiramente poética a uma jovem é sempre uma injúria, dado que isso implicaria que, num tal instante, ela própria o não seria bastante para beber a poesia imediatamente escondida na realidade, e que não foi previamente corroída pelo pensamento de outro. Em geral, não se pensa nisto e, contudo, é assim. - Ela desejará ler este livro e é isso que pretendo. - Ao abri-lo na última página lida, encontrará um raminho de mirto, que lhe dirá mais que um simples sinal. Minha Cordélia! Que temes? Amparando-nos um ao outro somos fortes, mais fortes que o mundo, mais fortes que os próprios deuses. Sabes que outrora existiu sobre a terra uma raça, humana é certo, mas de que cada elemento se bastava a si próprio, e não conhecia a união íntima do amor. Contudo o seu poder foi grande, tão grande que pretenderam tomar de assalto o céu. Júpiter temia essa raça e fez de cada um dos seus elementos um par, homem e mulher. Quando por vezes acontece reunir-se de novo no amor o que era outrora unido, tal união é mais forte que Júpiter; eles possuem então não só tanta força como o conjunto dos dois elementos, mas mais ainda, pois a união do amor é uma superior unidade. Teu Johannes 24 de Setembro A noite está calma - é meia-noite menos um quarto - o vigia noturno de Oesterport toca a sua bênção sobre a região, e a Blegdam reenvia-lhe o eco - ele volta para a casa da guarda, tocando de novo, e o eco chega de mais longe ainda. - Tudo dorme em paz, salvo o amor. Erguei-vos pois, misteriosas potências do amor, reuni-vos neste peito! A noite está silenciosa - apenas uma ave interrompe este silêncio com o seu grito e o seu voo que passa por sobre a erva do prado, úmida de orvalho; também ela se apressa sem dúvida para um encontro - accipio omen (aceito o agouro)! Quantos presságios em toda a natureza! Vejo-os no voo das aves, nos seus gritos, nos saltos dos peixes à superfície da água, nas suas fugas para as profundidades, num latido ao longe, no ruído longínquo de uma carruagem, no eco de passos que vêm de longe. Não vejo fantasmas a esta hora da noite, não vejo o que pertence ao passado; mas o seio do lago, o beijo úmido do orvalho, a névoa que se espalha sobre a terra, e esconde o seu fecundo amplexo, mostram-me o futuro. Tudo é imagem, sou o meu próprio mito. Pois não é como um mito que voo para este encontro? Mas que importa quem sou? Esqueci todas as coisas finitas e temporais, só o eterno me resta, o poder do amor, o seu desejo, a sua beatitude. - A minha alma está tensa como um arco e os meus pensamentos prontos para o voa como as flechas num carcaz, não envenenadas e, no entanto, capazes de se misturarem ao sangue. Quanta força, quanta saúde e alegria na minha alma, presente como um deus! - A natureza tinha-a feito bela. Eu to agradeço, ó natureza prodigiosa. Tal uma mãe, velaste por ela. Obrigado pela tua solicitude, Ela estava inalterada, e eu vo-lo agradeço, a todos vós a quem ela o deve. A sua evolução é obra minha - em breve colherei a recompensa. - Quanto não acumulei para este único instante que se anuncia? Morte e danação, se dele fosse privado! Não vejo ainda a minha carruagem. - Ouço o estalar de um chicote, é o meu cocheiro. - Ide depressa, para a vida e para a morte, rebentem os cavalos se necessário for, mas nunca um segundo antes da chegada. 25 de Setembro Porque não poderá tal noite durar mais tempo? Se Alectrion se pôde esquecer, porque não teve o sol piedade bastante para fazer como ele? Contudo, tudo está acabado, e não desejo voltar a vê-la jamais. Uma jovem é fraca quando deu tudo, - pois tudo perdeu; porque a inocência é, no homem, um elemento negativo, mas na mulher é a essência da sua natureza. Agora, qualquer resistência é impossível, e só enquanto ela dura é belo amar; quando acabou, não passa de fraqueza e hábito. Não desejo recordar-me das nossas relações; ela está desflorada e não estamos já no tempo em que o desgosto de uma jovem abandonada a transformava num heliotropo. Não quero fazer-lhe as minhas despedidas; nada me repugna mais que lágrimas e súplicas de mulher que tudo desfiguram e, contudo, a nada conduzem. Amei-a, mas de agora em diante não pode já interessar-me. Se eu fosse um deus faria aquilo que Netuno fez por uma ninfa, transformá-la-ia em homem. Como seria então picante saber se podemos evadir-nos dos devaneios de uma jovem, e torná-la suficientemente orgulhosa para fazê-la imaginar que foi ela quem se cansou da ligação. Que epílogo apaixonante que, no fundo, apresentaria um interesse psicológico e, por outro lado, nos poderia oferecer uma boa ocasião para muitas observações eróticas.