Karl Marx – As Lutas de Classes Sumário I - De fevereiro a junho de 1848 A derrota de junho de 1848 II - De junho de 1848 a 13 de junho de 1849 III - De 13 de junho de 1849 a 10 de março de 1850 I De fevereiro a junho de 1848 Com exceção de alguns poucos capítulos, cada divisão importante dos anais da revolução de 1848 a 1849 traz por título "Derrota da revolução!". Nessas derrotas, não foi a revolução quem sucumbiu. Foram os tradicionais apêndices pré-revolucionários, resultantes de relações sociais que não se tinham ainda aguçado até se transformarem em violentas contradições de classes: pessoas, ilusões, ideias, projetos que o partido revolucionário não havia desenvolvido antes da revolução de fevereiro e os quais ele não podia realizar com a vitória de fevereiro, mas apenas por uma série de derrotas. Em uma palavra: não foi por suas conquistas tragicômicas imediatas que o progresso revolucionário abriu o seu caminho; pelo contrário, foi somente fazendo surgir uma contrarrevolução forte, compacta, foi na criação de um adversário e no seu combate que o partido da subversão pôde enfim se tornar um partido realmente revolucionário. O objetivo das páginas que se seguem é demonstrar como isso se deu. A derrota de junho de 1848 Após a revolução de junho, quando o banqueiro liberal Laffitte conduziu em triunfo o seu compadre, o duque de Orleáns, à Prefeitura, ele deixou escapar estas palavras: "Agora é o começo do reinado dos banqueiros". Laffitte havia traído o segredo da revolução. A burguesia francesa não reinava sob Luís-Filipe, apenas fazia parte do reino: banqueiros, reis da Bolsa, reis das estradas de ferro, proprietários de minas de carvão e de ferro, proprietários de florestas e a parcela dos proprietários de terras ligados a eles, aos que compõem a chamada aristocracia financeira. Ela reinava, ela ditava as leis às Câmaras, distribuía os cargos públicos, desde os ministérios até as tabacarias. A burguesia industrial propriamente dita formava uma parcela da oposição oficial, o que equivale a dizer que era minoria nas Câmaras. Sua oposição se tornou cada vez mais decidida à medida que o desenvolvimento da hegemonia da aristocracia financeira se tornava mais evidente; depois dos tumultos de 1832, 1834 e 1839, que ela afogou em sangue, chegou a crer estar assegurado o seu domínio sobre a classe operária. Grandin, fabricante de Rouen, o órgão mais fanático da reação burguesa, tanto na Assembleia Nacional Constituinte quanto na Legislativa, era o adversário mais violento de Guizot na Câmara dos Deputados. Léon Faucher, conhecido mais tarde por seus esforços inúteis para se guindar ao papel de Guizot da contrarrevolução francesa, nos últimos dias de Luís-Filipe combateu a golpes de pena em favor da Indústria e contra a especulação e seus seguidores do governo. Bastiat, em nome de Bordeaux e de toda a França vinícola, fazia agitação contra o sistema dominante. A pequena burguesia em todas as suas nuances e a classe camponesa estavam completamente excluídas do poder político. Enfim, encontravam-se na oposição oficial, ou completamente fora do Estado legal, os representantes ideológicos e os porta-vozes das classes que acabamos de citar, seus eruditos, seus advogados, seus médicos, etc., aqueles que, afinal, eram considerados como as "capacidades". Desde o início, a penúria financeira pôs a monarquia de julho sob a dependência da alta burguesia. Esta dependência se tornou a fonte inesgotável de apuros financeiros crescentes. É impossível subordinar a gestão do Estado ao interesse da produção nacional sem estabelecer o equilíbrio do orçamento, ou seja, o equilíbrio entre as despesas e as receitas do Estado. E como estabelecer esse equilíbrio sem reduzir a marcha do Estado, ou seja, sem prejudicar interesses que eram como que sustentáculos do sistema dominante, e sem reorganizar a situação dos impostos, ou seja, sem atirar uma considerável parte do fardo fiscal sobre os ombros da grande burguesia? O endividamento do Estado era, muito pelo contrário, o interesse direto da fração da burguesia que governava e legislava com as Câmaras. O déficit do Estado era o próprio objeto de suas especulações e a fonte principal do seu enriquecimento. Ao fim de cada ano, novo déficit. Ao cabo de quatro ou cinco anos, novo empréstimo. Ora, cada novo empréstimo fornecia à aristocracia uma nova oportunidade para lesar o Estado, que, mantido artificialmente à beira da falência, era obrigado a tratar com os banqueiros dentro das condições as mais desfavoráveis. Cada novo empréstimo era uma nova oportunidade para fraudar o público que empregava seus capitais em juros sobre o Estado. E isto se dava com operações da Bolsa, em cujos segredos o Governo e a maioria da Câmara eram iniciados. Em geral, a instabilidade do crédito público e o conhecimento dos segredos de Estado permitiam aos banqueiros, assim como a seus confrades nas Câmaras e no trono, provocar flutuações extraordinárias e bruscas na circulação dos títulos públicos, cujo resultado constante não podia ser outro senão a ruína de inúmeros pequenos capitalistas e o enriquecimento fabulosamente rápido dos grandes especuladores. Se o déficit orçamentário era o interesse direto da fração da burguesia no poder, explica-se que o orçamento extraordinário, nos últimos anos do governo de Luís-Filipe, tenha excedido em muito o dobro do montante atingido nos tempos de Napoleão, ultrapassando os quatrocentos milhões de francos. Além disso, as somas enormes passando assim entre as mãos do Estado davam ocasião a contratos de remessa fraudulentos, de corrupções, de malversações e de trapaças de todas as espécies. A pilhagem do Estado, à grande, tal como se praticava com os empréstimos,• repetia-se em detalhes nas obras públicas. As relações entre a Câmara e o Governo se encontravam multiplicadas sob a forma de relações entre certas administrações e certos empreiteiros. Assim como as despesas públicas em geral e os empréstimos públicos, a classe dominante explorava também as construções de linhas ferroviárias. As Câmaras lançavam sobre o Estado os principais encargos e asseguravam à aristocracia financeira especuladora os frutos de ouro. Podemos lembrar os escândalos que explodiram na Câmara dos Deputados quando se descobriu, por acaso, que todos os membros da maioria, aí compreendida uma parte dos ministros, eram acionistas das mesmas empresas de vias férreas às quais eles confiavam depois, na condição de legisladores, a execução de linhas de estradas de ferro por conta do Estado. Por outro lado, a menor reforma financeira esbarrava na oposição dos banqueiros. Foi o caso, por exemplo, da reforma postal. Rothschild protestou, O Estado tinha o direito de diminuir as fontes de rendimento que lhe serviam para anular os juros de sua dívida sempre crescente? A monarquia de julho não passava de uma sociedade anônima fundada para explorar a riqueza nacional francesa, cujos dividendos eram partilhados entre os ministros, as Câmaras, duzentos e quarenta mil eleitores e sua clientela. Luís-Filipe era o diretor dessa sociedade com Robert Macaire sobre o trono. O comércio, a indústria, a agricultura, a navegação, os interesses da burguesia industrial eram ameaçados e lesados incessantemente por esse sistema. Por isso, essa mesma burguesia industrial havia escrito em sua bandeira, durante as jornadas de julho: Governo a preço baixo. Enquanto a aristocracia financeira ditava as leis, dirigia a gestão do Estado, dispunha de todos os poderes públicos constituídos, dominava a opinião pública pela força dos fatos e pela imprensa, em todas as esferas, da corte até as tabernas mais mal afamadas, via-se reproduzir a mesma prostituição, a mesma trapaça desavergonhada, a mesma sede de enriquecimento, não pela defesa, mas pela escamoteação da riqueza alheia já existente: era sobretudo na cúpula da sociedade burguesa que o satisfazer de ambições as mais malsãs e as mais desregradas se desencadeava e entrava a cada instante em conflito com as próprias leis burguesas; porque é lá, onde o desfrute se torna infame, onde o ouro, a lama e o sangue se misturam, que inevitavelmente a riqueza proveniente do jogo procura se realizar. A aristocracia financeira, tanto em sua forma econômica quanto em seus desfrutes, é apenas a ressurreição do proletário em farrapos nas cúpulas da sociedade burguesa. Quanto às parcelas da burguesia francesa que não estavam no poder, ela se insurgia contra a corrupção. O povo gritava: "Abaixo os grandes ladrões! Abaixo os assassinos!", quando, em 1847, nos teatros mais ilustres da sociedade burguesa, se representavam publicamente aquelas cenas que acompanhavam geralmente o proletariado em farrapos nos bordéis, nos hospitais e nas casas de loucos, diante dos juízes, nas prisões e no cadafalso. A burguesia industrial via os seus interesses ameaçados, a pequena burguesia estava moralmente indignada, a imaginação popular se revoltava. Paris estava inundada de panfletos: "A dinastia Rothschild", "Os judeus, reis da época", etc., onde se denunciava, se ofendia, com mais ou menos espírito, a dominação da aristocracia financeira. Nada pela glória! A paz em todos os cantos e para sempre! A guerra impõe o custo de três e quatro por cento. Eis o que havia escrito em sua bandeira a França dos judeus da Bolsa. Também sua política estrangeira naufragava em uma série de humilhações do sentimento nacional francês, que reagia mais vivamente do que quando a anexação da Cracóvia pela Áustria havia consumado a pilhagem da Polônia, do que quando Guizot, na guerra do Sonderbund helvético, se tinha posto ativamente ao lado da Santa-Aliança. A vitória dos liberais suíços nessa imitação de guerra restituiu a confiança à oposição burguesa na França, a rebelião sangrenta do povo em Palermo agiu como uma descarga elétrica sobre a massa popular paralisada e despertou suas grandes lembranças e suas paixões revolucionárias. Enfim, dois acontecimentos econômicos mundiais precipitaram a explosão do mal-estar geral e amadureceram o descontentamento até a revolta. A doença da batata e as péssimas colheitas de 1845 e 1846 acentuaram a efervescência geral no povo. O encarecimento do custo de vida em 1847 provocou na França, como em todo o resto do continente, conflitos sangrentos. Face às orgias escandalosas da aristocracia financeira, era a luta do povo pelos meios de existência os mais elementares! Em Buzançais, executavam-se os amotinados da fome; em Paris, escroques saciados escapavam aos tribunais graças à família real! O segundo grande acontecimento econômico que apressou a explosão da revolução foi uma crise geral do comércio e da indústria na Inglaterra. Anunciada já durante o outono de 1845 pela derrota maciça dos especuladores em ações de estradas de ferro, detida durante o ano de 1846 por uma série de medidas marginais, como a supressão iminente dos direitos de duana sobre o trigo, essa derrota foi finalmente acionada no outono de 1847 com a falência de grandes comissários coloniais de Londres, que foi seguida de perto pela quebra de bancos provinciais e o fechamento de fábricas nos distritos industriais ingleses. As repercussões da crise não se tinham ainda esgotado no continente quando eclodiu a revolução de fevereiro. Os prejuízos causados no comércio e na indústria pela crise econômica tornavam mais insuportável a onipotência da aristocracia financeira. A oposição burguesa provocou em toda a França a campanha dos banquetes em favor de uma reforma fiscal que devia conquistar para si a maioria nas Câmaras e derrubar o Ministério da Bolsa. Em Paris, a crise industrial tinha ainda por consequência particular lançar sobre o comércio interior uma massa de fabricantes e de grandes comerciantes que, nas condições do momento, não podiam mais fazer negócios sobre o mercado exterior. Eles criaram grandes estabelecimentos cuja concorrência causou a ruína de um sem-número de merceeiros e lojistas. Daí uma quantidade enorme de falências nesta fração da burguesia parisiense; daí sua ação revolucionária em fevereiro. Sabe-se como Guizot e as Câmaras contra-atacaram essas propostas de reforma com uma provocação ambígua; que Luís-Filipe se decidiu tarde demais a formar um ministério Barrot; que o povo e o exército chegaram à luta; que o exército foi desarmado em consequência da atitude passiva da guarda nacional e que a monarquia de julho teve que ceder o seu lugar. O Governo provisório nascido das barricadas de fevereiro refletia necessariamente em sua composição os diversos partidos que dividiam entre si a vitória. Não podia ser mais que um compromisso entre as diferentes classes que haviam derrubado juntas o trono de julho, mas cujos interesses se opunham. Era composto em sua maioria por representantes da burguesia. A pequena burguesia republicana era representada por Ledru-Rollin e Flocon; a burguesia republicana por gente do National, a oposição dinástica por Crémieux, Dupont de lEure, etc. A classe operária só tinha dois representantes, Louis Blanc e Albert. Lamartine, enfim, no Governo provisório, não representava qualquer interesse real, qualquer classe determinada; era a própria revolução de fevereiro, o levante comum com suas ilusões, sua poesia, seu conteúdo imaginário e seus di cursos. Mas, no fundo, o porta-voz da revolução de fevereiro, tanto por sua posição quanto por suas opiniões, pertencia à burguesia. Se Paris, em consequência da centralização política, domina a França, os operários dominam Paris nos momentos de abalos revolucionários. A primeira manifestação da existência do Governo provisório foi a tentativa de fugir a essa influência predominante lançando de uma Paris excitada um apelo ao sangue-frio da França. Lamartine contestou o direito dos combatentes das barricadas proclamarem a República, afirmando que somente a maioria dos franceses tinha poder de fazê-lo: que era preciso esperar pelo seu voto, que o proletariado parisiense não devia manchar sua vitória com uma usurpação. A burguesia não permite ao proletariado nada mais que uma usurpação: a da luta. Em 25 de fevereiro, por volta do meio-dia, a República ainda não tinha sido proclamada, no entanto todos os ministérios já estavam repartidos entre os elementos burgueses do Governo provisório e entre os generais, banqueiros e advogados do National. Mas, desta vez, os operários estavam resolvidos a não mais tolerar uma escamoteação semelhante àquela de julho de 1830. Estavam prontos para iniciar um novo combate e impor a República pela força das armas. Foi com esta missão que Raspail se dirigiu à Prefeitura. Em nome do proletariado parisiense, ele ordenou ao Governo provisório que proclamasse a República, declarando que se esta ordem do povo não fosse executada em duas horas retornaria à frente de duzentos mil homens. Os cadáveres dos combatentes mal haviam esfriado, as barricadas não tinham sido retiradas, os operários ainda estavam armados e a única força que se lhes podia opor era a guarda nacional. Em tais circunstâncias, as considerações políticas e os escrúpulos jurídicos do Governo provisório desapareceram bruscamente. O prazo de duas horas não fora ainda esgotado quando todos os muros de Paris exibiam em caracteres gigantescos: "República francesa! Liberdade, Igualdade, Fraternidade!" Com a proclamação da República com base no sufrágio universal, iam-se apagando até se tornarem simples lembranças os objetivos e os motivos estritos que tinham lançado a burguesia na revolução de fevereiro. Em vez de apenas algumas frações da burguesia, eram todas as classes da sociedade francesa que se achavam repentinamente projetadas na órbita do poder político, forçadas a abandonar os camarotes, a plateia e a galeria para representar pessoalmente no palco revolucionário! Com a realeza constitucional, sumiam igualmente uma aparência de poder público que se opunha arbitrariamente à sociedade burguesa e toda uma série de lutas subalternas que essa espécie de poder exige! Impondo a República ao Governo provisório e, através deste, a toda França, o proletariado se punha imediatamente no primeiro plano enquanto partido independente; mas, no mesmo lance, atirava um desafio à França burguesa. O que ele havia conquistado fora o terreno para a luta por sua emancipação revolucionária, mas não a própria emancipação. Era preciso, ao contrário, que a República de fevereiro pudesse aperfeiçoar antes de tudo a dominação da burguesia, fazendo entrar, ao lado da aristocracia financeira, todas as classes capitalistas na esfera do poder político. A maioria dos grandes proprietários de imóveis, os legitimistas, foram tirados da nulidade política à qual a monarquia de julho os tinha condenado. Não fora sem razão que a Gazette de France havia conduzido a agitação em acordo com os jornais de oposição; não fora sem razão que La Rochejaquelein, na Câmara, na sessão de 24 de fevereiro, havia adotado o partido da revolução. Pelo sufrágio universal, os proprietários nominais que formam a grande maioria dos franceses, os camponeses, foram instituídos os árbitros do destino da França. Enfim, a República de fevereiro fez surgir a dominação burguesa com toda evidência, derrubando a coroa atrás da qual se dissimulava o capital. Da mesma forma que, nas jornadas de julho, os operários tinham deposto pela luta a monarquia burguesa, nas jornadas de fevereiro foi a República burguesa. Da mesma forma que a monarquia de julho foi obrigada a se apresentar como uma monarquia cercada de instituições republicanas, a República de fevereiro teve que se declarar uma República cercada de instituições sociais. O proletário parisiense impôs também este compromisso. Foi um operário, Marche, quem ditou o decreto onde o Governo provisório, recém-formado, se comprometia a assegurar a existência de trabalhadores para o trabalho, a fornecer trabalho para todos os cidadãos, etc. E como alguns dias mais tarde ele esqueceu essas promessas e parecia ter perdido de vista o proletariado, vinte mil operários marcharam sobre a Prefeitura, aos gritos de: "Organização do trabalho! Constituição de um ministério especial do Trabalho!". Contra a sua vontade, e depois de longos debates, o Governo provisório nomeou uma comissão especial permanente encarregada de procurar os meios de melhorar as condições de vida das classes trabalhadoras! Essa comissão foi formada por delegados das corporações profissionais de Paris e presidida por Louís Blanc e Albert. Foi-lhe destinado o Luxemburgo como sala de sessões. Deste modo, os representantes da classe operária se viam banidos da sede do Governo provisório, do qual a facção burguesa conservava em suas mãos o poder do Estado real e as rédeas da administração; e ao lado dos ministérios das Finanças, do Comércio, dos Serviços Públicos, ao lado do Banco e da Bolsa, erguia-se uma sinagoga Socialista cujos grandes sacerdotes, Louis Blanc e Albert, tinham por missão descobrir a terra prometida, proclamar o novo evangelho e dar trabalho ao proletariado parisiense. Diferentemente de todo poder de Estado comum, eles não dispunham de qualquer orçamento, de qualquer poder executivo. Era com suas cabeças que eles deveriam derrubar as pilastras da sociedade burguesa. Enquanto o Luxemburgo procurava a pedra filosofal, cunhava-se na Prefeitura a moeda de valor legal. E no entanto as reivindicações do proletariado parisiense, na medida em que elas ultrapassavam os limites da República burguesa, não podiam adquirir outra existência senão aquela, nebulosa, do Luxemburgo. Fora com a burguesia que os operários tinham feito a Revolução de fevereiro; foi ao lado da burguesia que eles procuraram fazer prevalecer os seus interesses; assim como fora com a maioria burguesa que eles haviam instalado um operário no próprio Governo provisório. Organização do trabalho! Mas é o assalariado a atual organização burguesa existente do trabalho. Sem ele, nada de capital, nada de burguesia, nada de sociedade burguesa. Um ministério especial do Trabalho! Mas não são os ministérios das Finanças, do Comércio e dos Serviços Públicos os ministérios do Trabalho burguês? A seu lado, um ministério do Trabalho proletário só podia ser um ministério da Impotência, um ministério de Promessas Piedosas, uma comissão do Luxemburgo. Assim como os operários acreditavam se emancipar ao lado da burguesia, assim também eles pensavam realizar uma revolução proletária ao lado de outras nações burguesas e dentro das fronteiras nacionais da França. Mas as condições de produção da França são determinadas por seu comércio exterior, por sua posição no mercado mundial e pelas leis deste último. Como a França as romperia sem uma guerra revolucionária europeia aguardada, como compensação, pela Inglaterra, o déspota do mercado mundial? Uma classe que concentra em si os interesses revolucionários da sociedade, desde o instante em que se revoltou encontra imediatamente em sua própria situação o conteúdo e a matéria de sua atividade revolucionária: esmagar seus inimigos, tomar as medidas impostas pelas necessidades da luta; e são as consequências de seus próprios atos que a impulsionam para frente. Ela não se entrega a nenhuma pesquisa teórica sobre a sua própria missão. A classe operária francesa ainda não havia chegado a esse ponto; era incapaz ainda de consumar sua própria revolução. O desenvolvimento do proletariado industrial tem por condição geral o desenvolvimento da burguesia industrial. É somente sob a dominação desta que sua existência toma uma amplitude nacional permitindo-lhe elevar sua revolução ao nível de uma revolução nacional; é somente aí que ele, o proletariado industrial, cria ele mesmo os meios de produção modernos que se tornam também os meios de sua libertação revolucionária. Somente a dominação da burguesia industrial extirpa as raízes materiais da sociedade feudal e prepara o terreno sobre o qual uma revolução proletária é possível. A indústria francesa é mais evoluída e a burguesia francesa mais desenvolvida no ponto de vista revolucionário do que a do resto do continente. Mas a revolução de fevereiro não foi diretamente dirigida contra a aristocracia financeira? Tal fato provou que a burguesia industrial da França não reinava. A burguesia industrial não pode reinar senão onde a indústria moderna modelou à sua maneira todas as relações de propriedade; e a indústria não pode adquirir este poder senão onde ela conquistou o mercado mundial, pois as fronteiras nacionais não são suficientes ao seu desenvolvimento. Ora, a indústria francesa só continua em grande parte dona do mercado mundial graças a um sistema proibitivo sujeito a modificações mais ou menos importantes. Se, por consequência, o proletariado francês possui, no momento de uma revolução em Paris, um poder e uma influência reais que o incitam a combater além de suas forças, no resto da França ele está concentrado em alguns pontos espalhados, onde a indústria se centraliza, e desaparece quase que completamente sob o número superior de camponeses e de pequenos burgueses. A luta contra o capital, desenvolvida sob a forma moderna, em sua plenitude que é a luta do assalariado industrial contra a burguesia industrial, foi na França um fato parcial que, após as jornadas de fevereiro, podia alimentar o conteúdo nacional da revolução menos ainda, desde que a luta contra as formas de exploração inferiores do capital, a luta dos camponeses contra a usura da hipoteca, do pequeno burguês contra o grande comerciante, o banqueiro e o fabricante - resumindo, contra a bancarrota -, estava ainda naufragada na revolta geral contra a aristocracia financeira em geral. Também é facilmente explicável que o proletariado de Paris tenha procurado fazer triunfar seus interesses sobre os interesses da burguesia em lugar de reivindica-los como os interesses revolucionários da própria sociedade, e que tenha feito descer a bandeira vermelha diante da bandeira tricoloro Os operários franceses não podiam dar um único passo à frente, nem tocar em um único fio de cabelo do regime burguês, antes que as outras classes colocadas entre o proletariado e a burguesia - camponeses e pequenos burgueses revoltados contra aquele regime, contra a dominação do capital -, tivessem sido obrigadas pela marcha da revolução a se aliar aos proletários, sua vanguarda. Foi somente pela espantosa derrota de junho que os operários puderam conquistar esta vitória. A comissão de Luxemburgo, esta criação dos operários de Paris, tem o mérito de ter revelado, do alto de uma tribuna europeia, o segredo da revolução do século XIX: a emancipação do proletariado. O Moniteur explodiu, quando teve que oficialmente difundir as "exaltações desordenadas" que, até então, estavam enterradas nas obras apócrifas dos socialistas e que, tal como as lendas distantes meio aterradoras, meio ridículas, só vinham de tempos em tempos soar aos ouvidos da burguesia. A Europa despertou sobressaltada, na surpresa do seu entorpecimento burguês. Assim, no espírito dos proletários que confundiam sempre a aristocracia financeira com a burguesia, na imaginação de bravos republicanos que negavam mesmo a existência das classes ou admitiam-na, no máximo, como uma consequência da monarquia constitucional, nas palavras hipócritas das frações burguesas até então excluídas do poder, a dominação da burguesia se achava abolida com a instauração da República. Todos os monarquistas se transformaram então em republicanos e todos os milionários de Paris em operários. A palavra que correspondia a essa imaginária eliminação das relações de classe era fraternidade; a fraternização e a fraternidade universais. Negação inofensiva dos antagonistas de classes, equilíbrio sentimental entre interesses de classe contraditórios, exaltação entusiasta acima da luta de classes, a fraternidade foi realmente a divisa da revolução de fevereiro. Era um simples mal entendido que separava as classes e, em 24 de fevereiro, Lamartine batizou o Governo provisório: "Um governo que acaba com esse terrível mal entendido que existe entre as diferentes classes." O proletariado de Paris se deixou levar a esta generosa embriaguês de fraternidade. Por seu turno, o Governo provisório, uma vez obrigado a proclamar a República, tudo fez para tomá-la aceitável à burguesia e às províncias. Os horrores sangrentos da primeira República francesa foram condenados com a abolição da pena de morte por crime político; a imprensa foi liberada para qualquer tipo de opinião; o exército, os tribunais e a administração ficaram, com algumas poucas exceções, nas mãos de seus antigos dignitários; não foram exigidas explicações a nenhum dos grandes culpados da monarquia de julho. Os republicanos burgueses do National se divertiam trocando os nomes e as roupas da monarquia pelos da velha República. A seus olhos, a República não passava de um novo traje de baile para a velha sociedade burguesa. O mérito principal da jovem República foi o de não assustar ninguém, de, antes, se assustar ela própria continuamente e, por sua mansidão, sua vida passiva, o de conquistar o direito à vida e ao desarmamento das resistências. Para as classes privilegiadas do interior, para as potências despóticas do exterior, proclamou-se em bom som que a República era de natureza pacífica: viver e deixar viver era o seu lema. Além do mais, pouco depois da revolução de fevereiro, os alemães, os poloneses, os austríacos, os holandeses, os italianos se revoltaram, cada povo de acordo com a sua situação. A Rússia e a Inglaterra ainda não tinham chegado a tanto; a primeira era contida pelo terror, enquanto a segunda se encontrava em estado de ebulição. A República, então, não via uma única nação inimiga diante de si. Assim, nada de grandes complicações exteriores que pudessem reavivar as chamas, precipitar o processo revolucionário, empurrar para adiante o Governo provisório ou, se fosse o caso, lançá-lo ao mar. O proletariado parisiense, que via na República a sua própria criação, aclamava naturalmente cada ato do Governo provisório que lhe permitia tomar pé com maior facilidade na sociedade burguesa. Ele se deixou empregar docilmente por Caussidiêre nas funções de policial para proteger a propriedade em Paris, assim, como deixou se concluírem amigavelmente os conflitos salariais entre operários e patrões por Louis Blanc. Considerava como ponto essencial o manter imaculada a honra burguesa da República aos olhos da Europa. A República não encontrou qualquer resistência dentro ou fora de casa. Foi o que a desarmou. Sua missão não foi a de transformar revolucionariamente o mundo; consistiu apenas em adaptar-se às condições da sociedade burguesa. Nada testemunha mais eloquentemente o fanatismo com que o Governo provisório se entregou a tal missão do que as medidas financeiras que tomou. O crédito público e o crédito privado estavam naturalmente abalados. O crédito público baseia-se na crença de que o Estado se deixa explorar pelos judeus das Finanças. Mas o velho Estado havia desaparecido e a revolução era dirigida antes de tudo contra a aristocracia financeira. As oscilações da última crise comercial na Europa ainda não haviam terminado. As bancarrotas ainda se sucediam. O crédito privado estava então paralisado, a circulação frouxa, a produção estagnada, antes que explodisse a revolução de fevereiro. A crise revolucionária intensificou a crise comercial. Ora, o crédito privado baseia-se na crença segundo a qual a produção burguesa em toda a amplitude de suas relações, a ordem burguesa, é inviolada e inviolável. Qual não devia ser o efeito de uma revolução que punha em questão o fundamento da produção burguesa, a escravidão econômica do proletariado, e decifrava face a Bolsa a esfinge do Luxemburgo? A revolta do proletariado é a supressão do crédito burguês, porque é a supressão da produção burguesa e de seu regime. O crédito público e o crédito privado são o termômetro econômico que permite medir a intensidade de uma revolução. À medida que eles, os créditos, baixam, sobem o ardor febril e a força criadora da revolução. O Governo provisório queria despojar a República de sua aparência antiburguesa. Era-lhe necessário antes de tudo procurar assegurar o valor de troca dessa nova forma de Estado, seu preço na Bolsa. Com o preço corrente da República na Bolsa, o crédito privado tornou necessariamente a subir. Para afastar até mesmo a suspeita de que ele não queria ou não podia fazer frente às obrigações legadas pela monarquia, para restabelecer a confiança na moralidade burguesa, na solvabilidade da República, o Governo provisório recorreu a uma fanfarronada tão pueril quanto indigna. Antes do prazo de vencimento legal, pagou aos credores do Estado os juros de cinco, quatro e meio e quatro por cento. A arrogância burguesa, a segurança dos capitalistas foram despertadas bruscamente quando eles viram a pressa ansiosa com que se procurava comprar a sua confiança. O embaraço financeiro do Governo provisório não foi atenuado com este coup de théâtre que o privava dos poucos recursos disponíveis. Não era possível esconder por mais tempo a penúria financeira e coube aos pequenos burgueses, empregados e operários o pagamento pela agradável surpresa feita aos credores do Estado. As cadernetas de poupança cujo montante, ultrapassassem os cem francos foram declaradas não reembolsáveis em dinheiro. Os valores depositados em poupança foram confiscados e convertidos, por decreto, em dívida não reembolsável do Estado. O pequeno burguês, já bastante maltratado, irritou-se com a República. Recebendo bônus do Tesouro, em lugar de sua caderneta de poupança, ele foi obrigado a ir vendê-los na Bolsa e a se entregar nas mãos dos judeus da Bolsa, os mesmos contra os quais tinha feito a revolução de fevereiro. A aristocracia financeira, que reinava na monarquia de julho, tinha no Banco a sua catedral. Assim como a Bolsa administra o crédito público, o Banco governa o crédito comercial. Diretamente ameaçado pela revolução de fevereiro, não só em sua dominação, mas em toda a sua existência, o Banco aplicou-se, desde o início, a desacreditar a República generalizando a suspensão do crédito. Bruscamente ele suspendeu todo crédito aos banqueiros e aos comerciantes. Como esta manobra não provocou contrarrevolução imediata, o Banco dirigiu seu contragolpe contra si próprio. Os capitalistas retiraram o dinheiro que haviam depositado em seus porões. Os possuidores de notas de banco precipitaram-se a suas caixas para trocá-las por ouro e dinheiro. O Governo provisório podia, sem recorrer à violência, de maneira legal, levar o Banco à falência; bastava-lhe manter uma atitude passiva e abandonar o Banco a sua própria sorte. A bancarrota do Banco era o dilúvio varrendo em um piscar de olhos do solo francês a aristocracia financeira, o mais forte e o mais perigoso inimigo da República, o pedestal de ouro da monarquia de julho. Uma vez em falência o Banco, a burguesia seria obrigada a considerar como uma última tentativa desesperada de salvação a criação pelo governo de um banco nacional e a subordinação do crédito nacional ao controle da nação. O Governo provisório, ao contrário; deu curso forçado às notas de banco. Fez melhor ainda. Transformou todos os bancos de província em sucursais do Banco da França, permitindo-lhe lançar sua rede sobre o país inteiro. Mais tarde, comprometeu as florestas patrimoniais como garantia do empréstimo feito com o Banco. Foi assim que a revolução de fevereiro consolidou e expandiu diretamente a "bancocracia" que devia destruir. Nesse meio tempo, o Governo provisório arrastava-se ante o pesadelo de um déficit crescente. Era em vão que ele mendigava sacrifícios patrióticos. Apenas os operários atiravam-lhe sua esmola. Era preciso recorrer a uma medida heroica, a promulgação de um novo imposto. Mas sobre quem? Os lobos da Bolsa, os reis do Banco, os credores do Estado, os capitalistas, os industriais? Não era um modo de fazer a burguesia aceitar tranquilamente a República. Era, por um lado, pôr em perigo o crédito do Estado e o crédito do comércio, que se procurava, por outro lado, comprar ao preço de tão grandes sacrifícios, de tão grandes humilhações. Mas era preciso que alguém pagasse. E quem foi o sacrificado ao crédito burguês? O Jacques Bonhomme, o camponês. O Governo provisório estabeleceu um imposto adicional de quarenta e cinco cêntimos por franco sobre os quatro impostos diretos. A imprensa governamental tentou fazer crer ao proletariado de Paris que esse imposto afetaria de preferência a grande propriedade imóvel, os donos do bilhão outorgado pela Restauração. Mas, na realidade, o imposto atingiu antes de tudo a classe camponesa, o que equivale à grande maioria do povo francês. Foi ela quem teve que pagar as despesas da revolução de fevereiro, foi nela que a contrarrevolução encontrou o seu principal apoio. O imposto de quarenta e cinco cêntimos era uma questão de vida ou de morte para o camponês francês; ele tornou-o uma questão de vida ou de morte para a República. A República para o camponês da França foi, dali por diante, o imposto de quarenta e cinco cêntimos; e, no proletariado de Paris, ele via o esbanjador que se divertia às suas custas. Enquanto a revolução de 1789 havia começado por liberar os camponeses dos encargos feudais, a revolução de 1848 anunciava-se por um novo imposto sobre a população rural, a fim de não pôr em perigo o capital e de assegurar o funcionamento do mecanismo do Estado. O único meio pelo qual o Governo provisório podia descartar-se de todos esses inconvenientes e tirar o Estado do seu velho caminho era declarando a bancarrota do Estado. É lembrado como na Assembleia Nacional Ledru-Rollin foi tomado, tarde demais, de uma virtuosa indignação, declarando que recusava essa sugestão do judeu bolsista Fould, tornado Ministro das Finanças. Fould havia lhe estendido o fruto da árvore da sabedoria. Reconhecendo as dívidas que a velha sociedade burguesa havia atirado sobre o Estado, o Governo provisório recolheu-se à sua discrição. Ele se tornara o devedor envergonhado da sociedade burguesa, em vez de se impor como o credor que ameaçava e que tinha de recuperar os créditos revolucionários remontando a muitos anos. Era-lhe necessário consolidar as relações burguesas vacilantes para se liberar de obrigações que só podiam ser cumpridas no quadro dessas relações. O crédito se tornou uma condição de sua existência, e as concessões, as promessas feitas ao proletariado, cadeias que ele precisava romper. Até mesmo a simples expressão "emancipação dos trabalhadores" representava um perigo intolerável para a nova República, porque era um protesto permanente contra o restabelecimento da confiança que repousa no reconhecimento ininterrupto e inalterável das relações econômicas de classes existentes. Era preciso então romper com os operários. A revolução de fevereiro tinha jogado o exército para fora de Paris. A guarda nacional, ou seja, a burguesia em suas variadas nuances, constituía a única força. Todavia, ela se sentia intimamente inferior ao proletariado. Além disso, era obrigada, não sem opor-lhe a mais tenaz das resistências, não sem criar centenas de obstáculos, a abrir pouco a pouco suas fileiras para deixar entrar os proletários armados. Restava, então, uma única saída: jogar uma parcela do proletariado contra a outra. Com esse objetivo, o Governo provisório formou vinte e quatro batalhões de proteção do território com mil homens cada um, compostos de jovens de quinze a vinte anos. Eles pertenciam em sua maioria ao proletariado em farrapos que, em todas as grandes cidades, constitui multidão nitidamente distinta do proletariado industrial: celeiros de ladrões e criminosos, de todos os tipos, dejetos vivos da sociedade, indivíduos sem profissão legal, vadios, sem dignidade e sem teto, diferentes segundo o grau de cultura da região à qual pertencem, mas apresentando sempre o caráter de lazzaroni. Tendo se dado que o Governo provisório os recrutava muito jovens, eles eram absolutamente influenciáveis e capazes dos maiores atos de heroísmo e da mais exaltada abnegação, mas também dos atos do mais sórdido banditismo e da venalidade mais infame. O Governo provisório pagava-os à razão de um franco e cinquenta por dia, ou melhor, comprava-os. Dava-lhes uma farda especial, ou seja, diferenciava-os exteriormente dos operários em macacões. Como chefes foram-lhe dados oficiais retirados do exército permanente, ou então chefes eleitos por eles próprios, jovens filhos de burgueses cujas fanfarronices sobre a morte pela pátria e devotamento à República os seduziam. Era assim que ele tinha, face ao proletariado de Paris, um exército tirado do seu próprio meio, forte, de vinte e quatro mil homens jovens, robustos, de uma louca temeridade. O proletariado aclamou a garde mobile durante suas marchas por Paris. Reconhecia nela os seus combatentes de vanguarda sobre as barricadas. Considerava-a a guarda proletária, em oposição à guarda nacional burguesa. Seu engano era perdoável. Além da garde mobile, o governo decidiu ainda reunir em torno de si um exército de operários industriais. Centenas de milhares de operários, atirados na rua pela crise e pela revolução, foram recrutados pelo Ministro Maríe para as pretensas oficinas nacionais. Sob este nome pomposo dissimulava-se somente a ocupação de operários em trabalhos de aterro fastidiosos, monótonos e improdutivos em troca de um salário de vinte e três sous. Workhouses ingleses ao ar livre, eis o que eram essas oficinas nacionais. E nada mais. O Governo provisório acreditou ter formado com essas oficinas um segundo exército proletário contra os próprios operários. Mas desta vez a burguesia se enganou sobre essas oficinas nacionais, assim como os operários tinham se enganado sobre a garde mobile. A burguesia havia criado um exército para a rebelião. Contudo, um objetivo estava sendo atingido. Oficinas nacionais, assim se chamavam as oficinas populares preconizadas por Louis Blanc no Luxemburgo. As oficinas de Marie, concebidas em oposição direta ao Luxemburgo, por sua insígnia comum deram lugar a enredos cujos equívocos eram dignos dos valetes da comédia espanhola. O Governo provisório, o próprio, espalhou secretamente o boato de que essas oficinas nacionais eram uma invenção de Louis Blanc, o que parecia mais crível visto ser Louis Blanc, o profeta das oficinas nacionais, membro do Governo provisório. E na confusão armada, meio ingênua, meio intencionalmente, pela burguesia parisiense, na opinião em que eram artificialmente conservadas a França e a Europa, essas work-houses eram a primeira realização do socialismo que, com elas, era atado ao pelourinho. Não era pelo seu conteúdo, mas pelo seu título, que as oficinas nacionais davam consistência ao protesto do proletariado contra a indústria burguesa, contra o crédito burguês e contra a República burguesa. Foi então que sobre as oficinas nacionais caiu todo o ódio da burguesia. Ela havia encontrado ao mesmo tempo o ponto sobre o qual dirigir seu ataque, uma vez suficientemente fortalecida para romper às claras com as ilusões de fevereiro. Todo o mal-estar e todo o amargor dos pequenos burgueses se voltaram no mesmo momento contra as oficinas nacionais, este alvo comum. Era com verdadeiro furor que eles calculavam as somas absorvidas por aqueles proletários preguiçosos enquanto a sua própria sorte se tornava a cada dia mais intolerável. Uma mesada do Estado por um faz de conta de trabalho, eis o que era o socialismo!, rosnavam eles de si para si. As oficinas nacionais, os discursos do Luxemburgo, os desfiles dos operários por toda a Paris, eis onde procuravam a causa de sua miséria. E ninguém era mais fanatizado contra as pretensas maquinações dos comunistas do que o pequeno burguês, desesperadamente empurrado para a bancarrota. Assim, no corpo a corpo cada vez mais próximo entre a burguesia e o proletariado, a primeira tinha em mãos todas as vantagens, todos os postos decisivos, todas as camadas médias da sociedade, no momento exato em que as ondas da revolução de fevereiro rebentavam sobre todo o continente; em que cada mala do correio trazia um novo panfleto revolucionário, ora da Itália, ora da Alemanha, ora dos confins do sudeste da Europa e alimentava a embriagues geral do povo dando-lhe testemunhos contínuos de uma vitória que ele havia já consumado. Em 17 de março e 16 de abril tiveram lugar os primeiros combates dos postos avançados da grande-luta de classes escondida sob as asas da República burguesa. 17 de março revelou a situação equívoca do proletariado que não permitia qualquer ato decisivo. Sua manifestação, nas origens, tinha por objetivo reconduzir o Governo provisório ao caminho da revolução, conseguir, de acordo com as circunstâncias, a exclusão dos seus membros burgueses e exigir o adiamento da data das eleições para a Assembleia Nacional e para a guarda nacional. Mas em 16 de março a burguesia, representada pela guarda nacional, fez uma demonstração hostil ao Governo provisório. Aos gritos de "Abaixo Ledru-Rollín!", ela marchou sobre a Prefeitura. E em 17 de março o povo foi obrigado a gritar "Vila LedruRollin!", "Viva o Governo provisório!". Foi obrigado a tomar, contra a burguesia, o partido da República burguesa cuja existência lhe parecia posta em questão. O povo consolidou o governo em vez de derrotá-lo. O 17 de março levou ao melodrama, e quando o proletariado de Paris exibiu uma vez mais, naquele dia, o seu corpo gigantesco, a burguesia, a que fazia parte e a que não fazia parte do Governo provisório, estava mais que resolvida a esmagá-lo. Em 16 de abril o Governo provisório, em conivência com a burguesia, armou uma confusão. Os operários estavam reunidos em grande número no Champ-de-Mars e no hipódromo para preparar as eleições do estado maior da guarda nacional. De repente, de uma ponta a outra de Paris, com a rapidez de um raio, espalhou-se o boato de que os operários estavam reunidos com armas no Champ-de-Mars, sob o comando de Louis Blanc, Blanqui, Cabet e Raspail, para se dirigirem à Prefeitura, derrubar o Governo provisório e proclamar um governo comunista. Soou o alerta geral. Ledru-Rollin, Marrast, Lamartine disputaram mais tarde a honra desta iniciativa: em uma hora, cem mil homens estão às armas, a Prefeitura ocupada em todos os pontos por guardas nacionais; por toda a Paris ecoam os gritos de "Abaixo os comunistas! Abaixo Louis Blanc, Blanqui, Raspail, Cabet!". Um mundo de delegações vem trazer sua solidariedade ao Governo provisório, todos prontos para salvar a pátria e a sociedade. Quando os operários surgem enfim diante da Prefeitura para entregar ao Governo provisório uma coleta patriótica feita no Champ-de-Mars, ficam sabendo, atônitos, que a Paris burguesa, num simulacro de combate organizado com a maior seriedade, guerreou a própria sombra. O "terrível" atentado de 16 de abril forneceu o pretexto para a chamada do exército de volta a Paris - real objetivo da comédia grosseiramente montada -, assim como ensejou manifestações federalistas reacionárias na província. Em 4 de maio reuniu-se a Assembleia nacional saída das eleições gerais com sufrágio universal direto. O sufrágio universal não tinha mais a virtude mágica que lhe haviam atribuído os republicanos mais antigos. Em toda a França, ou pelo menos na maior parte da França, os franceses viam os cidadãos como tendo os mesmos interesses, o mesmo discernimento, etc. Assim era o seu culto do povo. Mas em vez do povo imaginário, as eleições têm por objetivo nítido o povo real, ou seja, os representantes das diferentes classes nas quais ele se subdivide. Vimos por que camponeses e pequenos burgueses tiveram que votar sob o comando da burguesia inteiramente no ardor da luta e dos grandes proprietários impacientes pela restauração. Mas se o sufrágio universal não era a miraculosa varinha mágica pela qual bravos republicanos o haviam tomado, tinha o mérito, infinitamente maior, de desencadear a luta de classes, de fazer com que as diferentes camadas médias da sociedade pequeno-burguesa perdessem rapidamente suas ilusões e suas decepções ante as provações da vida, de alçar em um só golpe todas as frações da classe dos exploradores à cúpula do poder e arrancar-lhes desta maneira as máscaras enganadoras, enquanto a monarquia, com seu sistema censitário, só deixava se comprometerem determinadas frações da burguesia e guardava as outras discretamente, nas coxias, cingindo-as com a auréola de uma oposição comum. Na Assembleia nacional constituinte que se reuniu em 4 de maio, os republicanos burgueses, os republicanos do Nacional, comandaram. Os legitimistas e os orleanistas não ousaram se mostrar primeiro senão sob a máscara do republicanismo burguês. Era apenas em nome da República que podia ser iniciada a luta contra o proletariado. É de 4 de maio, e não de 25 de fevereiro, que data a República, melhor dizendo, a República reconhecida pelo povo francês, e não a República imposta pelo proletariado parisiense ao Governo provisório, não a República das instituições sociais, não a imagem onírica que passava diante dos olhos dos combatentes das barricadas. A República proclamada pela Assembleia nacional, a única legítima, é a República que não é uma arma revolucionária contra a ordem burguesa, que é sobretudo a reconstituição política, a consolidação política da sociedade burguesa; resumindo, a República burguesa. É o que se afirma em alto e bom som na tribuna da Assembleia nacional. E toda a imprensa burguesa, tanto a republicana quanto a antirrepublicana, faz coro. E vimos como a República de fevereiro não era, na realidade, e nem poderia ser, nada mais do que uma República burguesa; como, por outro lado, o Governo provisório foi, por pressão direta do proletariado, obrigado a proclamá-la uma República dotada de instituições sociais; como o proletário parisiense já era capaz de ir além da República burguesa, de outras formas que não em ideia, em imaginação; como, por todos os lugares onde ele passava realmente à ação, era para prestar serviços a ela, à República; como as promessas que lhe tinham sido feitas se tornavam um perigo insuportável na nova República; e como toda a existência do Governo provisório se reduzia a uma luta contínua contra as reivindicações do proletariado. Na Assembleia nacional, era a França inteira que se fazia juiz do proletariado parisiense. Ela rompeu logo com as ilusões sociais da revolução de fevereiro, proclamou prontamente a República burguesa e apenas a República burguesa. Ela excluiu logo da comissão executiva que nomeou os representantes do proletariado: Louis Blanc e Albert. Ela rejeitou a proposta de um ministério especial do Trabalho. Ela recebeu com uma tempestade de aplausos a declaração do ministro Trelat: "Não se trata de outra coisa senão de fazer voltar o trabalho às suas antigas condições". Mas tudo isso não era suficiente. A República de fevereiro fora conquistada pelos operários com a ajuda passiva da burguesia. Os proletários se consideravam, com todo o direito, os vencedores de fevereiro e tinham as pretensões arrogantes dos vencedores. Era preciso que eles fossem vencidos nas ruas, era preciso mostrar-lhes que eles sucumbiriam no momento em que lutassem, não com a burguesia, mas contra ela. Assim como a República de fevereiro, com suas concessões socialistas, precisou de uma batalha do proletariado unido à burguesia, contra a monarquia, assim também uma segunda batalha se tornava necessária para liberar a República de suas concessões socialistas, para pôr em relevo a República burguesa, mostrá-la detendo oficialmente o poder. Era com armas na mão que a burguesia devia recusar as reivindicações do proletariado. E o verdadeiro local de nascimento da República burguesa não é a vitória de fevereiro, é a derrota de junho. O proletariado precipitou a decisão quando, em 15 de maio, invadiu a Assembleia nacional, tentando em vão reconquistar sua influência revolucionária, sem outro resultado senão o de levar seus decididos líderes aos cárceres da burguesia. "É preciso acabar com isso!" Com este grito a Assembleia nacional deu livre curso à sua resolução de forçar o proletariado ao combate decisivo. A Comissão executiva promulgou uma série de decretos provocativos, como a proibição de manifestações populares, etc. Do alto da tribuna da Assembleia nacional constituinte, os operários foram diretamente provocados, injuriados, hostilizados. Mas o ponto de ataque, como vimos, continuavam sendo as oficinas nacionais. Foi pensando nelas que a Assembleia constituinte indicou categoricamente à Comissão executiva que só esperasse o momento de ouvir seu próprio projeto transformado em ordem da Assembleia nacional. A Comissão executiva começou tornando mais difícil a admissão às oficinas nacionais, mudando o salário por dia em salário por produção, exilando em Sologne os operários que não fossem nascidos em Paris, sob o pretexto de fazer-lhes executar trabalhos de aterro. Esses trabalhos de aterro eram apenas, na realidade, uma fórmula de retórica com a qual era preparado o seu exílio, como operários já desiludidos ensinaram a seus camaradas. Enfim, em 21 de junho, surgiu um decreto no Moniteur ordenando a demissão brutal de todos os operários solteiros das oficinas nacionais ou seu alistamento no exército. Os operários não tinham mais escolha: ou morriam de fome ou começavam a luta. Eles responderam, em 22 de junho, com a formidável insurreição onde se deu a primeira grande batalha entre as duas classes que dividem a sociedade moderna. Foi uma luta pela manutenção ou o extermínio da ordem burguesa. Rasgava-se o véu que escondia a República. Sabe-se que os operários, com uma coragem e um talento inigualáveis, sem líderes, sem um plano comum, sem recursos, a maioria sem armas, fizeram frente durante cinco dias ao exército, à garde mobile, à guarda nacional que afluiu da província. Sabe-se que a burguesia se vingou de suas mortais angústias com uma brutalidade espantosa e massacrou mais de três mil prisioneiros. Os representantes oficiais da democracia francesa estavam de tal maneira presos à ideologia republicana que precisaram de várias semanas para começar a suspeitar qual era o sentido do combate de junho. Ficaram como que idiotizados com a nuvem de poeira na qual se esvaía a sua República imaginária. Quanto à impressão direta que a nova derrota de junho produziu em nós, o leitor nos permitirá descrevê-la nos termos da Norva Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung): "O último vestígio oficial da revolução de fevereiro, a Comissão executiva, dissipou-se como um fantasma ante a gravidade dos acontecimentos. Os foguetes luminosos de Lamartine se transformaram nos fogos incendiários de Cavaignac. A fraternidade das classes antagonistas em que uma explora a outra, essa fraternidade proclamada em fevereiro, inscrita em grandes letras na testa de Paris, em cada prisão, em cada caserna, sua verdadeira expressão, autêntica, prosaica, é a guerra civil, a guerra civil em sua forma mais terrível, a guerra entre o trabalho e o capital. Essa fraternidade resplandecia em todas as janelas de Paris, no anoitecer de 25 de junho, quando a Paris burguesa brilhava, enquanto a Paris proletária ardia, sangrava, agonizava. A fraternidade durou apenas o tempo em que os interesses da burguesia eram irmãos dos interesses do proletariado. Pedantes da velha tradição revolucionária de 1793, teóricos socialistas, mendigando pelo povo junto à burguesia, e aos quais se permitia pregar longas homilias e se comprometer por quanto tempo fosse necessário a manter adormecido o leão proletário; republicanos que reclamavam toda a antiga ordem burguesa, menos a cabeça coroada; gente da oposição dinástica para quem o acaso substituía a derrubada de uma dinastia pela troca de um ministério; legitimistas que desejavam não se livrar de seus uniformes, mas mudar-lhes o corte... Estes eram os aliados com os quais o povo fez o seu fevereiro. A revolução de fevereiro foi a bela revolução, a revolução da simpatia geral, porque os antagonismos que cintilaram, então, contra a realeza dormitavam, embrionários, lado a lado; porque a luta social que fazia o seu segundo plano só havia adquirido uma existência vaporosa, a existência da frase, do verbo. A revolução de junho é a revolução odiosa, a revolução repugnante, porque a realidade tomou o lugar do discurso, porque a República pôs a nu a cabeça do monstro, derrubando a coroa que a protegia e ocultava. Ordem! Este era o grito de guerra de Guizot. Ordem!, gritava Sebastiani, este Guizot em ponto menor, quando Varsóvia se tornou russa. Ordem!, gritou Cavaignac, eco brutal da Assembleia nacional francesa e da burguesia republicana. Ordem!, trovejavam os tiros de metralha, despedaçando o corpo do proletariado. Nenhuma das inúmeras revoluções da burguesia francesa depois de 1789 foi um atentado contra a ordem, porque cada uma delas deixava subsistir a dominação de classe, deixava subsistir a escravidão dos operários, deixava subsistir a ordem burguesa, todas as vezes que foi modificada a forma política dessa dominação e dessa escravidão. Junho veio causar danos a essa ordem. Maldito seja junho!” (Neue Rheinische Zeitung, 29 de junho de 1848). Maldito seja junho!, repete o eco da França. Foi a burguesia quem levou o proletariado à insurreição de junho. Daí a sua condenação. Suas reconhecidas necessidades imediatas não o impeliam ao desejo de obter pela violência a queda da burguesia, ele não possuía ainda capacidade para tal tarefa. O Moniteur precisou ensinar-lhe oficialmente que os tempos não eram mais aqueles que a República julgava, a propósito de prestar homenagens às suas ilusões; somente a derrota o persuadiu quanto a essa verdade de que a menor melhoria de sua situação continuava a ser uma utopia no seio da República burguesa, utopia que se transforma em crime no momento em que queira se tornar real. Suas reivindicações, excessivas pela forma, pueris pelo conteúdo - e por isso mesmo ainda burguesas -, com as quais ele queria arrancar a permissão para a revolução de fevereiro, foram substituídas pela audaciosa palavra de ordem da luta revolucionária: Derrubada da burguesia! Ditadura da classe operária! Fazendo de sua sepultura o berço da República burguesa, o proletariado forçou essa mesma República burguesa a aparecer imediatamente sob sua forma pura como o Estado cujo confessado objetivo é o de eternizar a denominação do capital, a escravidão do trabalho. Os olhos sempre fixos no inimigo coberto de cicatrizes, implacável e invencível - porque sua existência, para ele, é a condição de sua própria vida, para ela - a dominação burguesa, liberada de qualquer entrave, devia se transformar imediatamente em terrorismo burguês. Uma vez o proletariado afastado da cena, e a ditadura da burguesia oficialmente reconhecida, as camadas médias da sociedade burguesa, a pequena burguesia e a classe camponesa, à medida que sua situação se tornava mais insuportável e sua oposição à burguesia mais rude, se aliariam cada vez mais ao proletariado. A causa de sua miséria elas haviam encontrado no seu progresso; deviam encontrá-la agora na sua derrocada. Quando a insurreição de junho fortaleceu, em todo o continente, a segurança da burguesia e levou-a a se aliar abertamente à realeza feudal contra o povo, quem foi a primeira vítima dessa união? A própria burguesia continental. A derrota de junho impediu-a de assegurar sua dominação e de fazer o povo parar, meio satisfeito, meio descontente, no nível mais baixo da revolução burguesa. Enfim, a derrota de junho revelou às potências despóticas da Europa um segredo: a França tinha, custasse o que custasse, que manter a paz no exterior para poder levar ao interior a guerra civil. Assim os povos que tinham começado a luta por sua independência nacional foram entregues à supremacia da Rússia, da Áustria e da Prússia, mas, ao mesmo tempo, essas revoluções nacionais cujo destino foi subordinado ao da revolução proletária foram privadas de sua aparente autonomia, de sua independência face à grande subversão social. O húngaro não deve ser livre, nem o polonês, nem o italiano, enquanto o operário continuar escravo! Enfim, as vitórias da Santa Aliança deram à Europa uma forma tal que qualquer novo levante proletário na França será imediatamente o sinal de uma guerra mundial. A nova revolução francesa será obrigada a abandonar logo o terreno nacional e a conquistar o terreno europeu, o único onde poderá levá-lo a revolução social do século XIX. Então, foi apenas pela derrota de junho que foram criadas as condições que permitiram à França tomar a iniciativa da revolução europeia. Foi apenas banhada pelo sangue dos insurrectos de junho que a bandeira tricolor se tornou a bandeira da revolução europeia, a bandeira vermelha. E nós gritamos: A revolução está morta! Viva a revolução! II De junho de 1848 a 13 de junho de 1849 O 25 de fevereiro de 1848 deu a República à França, o 25 de junho impôs-lhe a revolução. Depois de junho, revolução queria dizer: derrubada da sociedade burguesa, quando, antes de fevereiro, a palavra significava: derrubada da forma de Estado. O combate de junho tinha sido dirigido pela fração republicana da burguesia; com a vitória, o poder do Estado voltou-lhe necessariamente às mãos. O estado de sítio colocava Paris a seus pés, sem resistência, e nas províncias reinava um estado de sítio moral, a arrogância da vitória cheia de ameaçadora brutalidade e o amor fanático da propriedade desencadeada entre os camponeses. Perigo à vista! Assim como o poder revolucionário dos operários, desmoronou-se a influência política dos republicanos democratas, melhor dizendo, dos republicanos no sentido pequeno-burguês, representados na Comissão executiva por Ledru-Rollin, na Assembleia nacional constituinte pelo partido de La Mantagne, na imprensa por La Réjorme. Em acordo com os republicanos burgueses, em 16 de abril eles haviam conspirado contra o proletariado; durante as jornadas de junho, tinham combatido juntos. Assim, eles próprios destruíam o plano de fundo no qual o seu partido se delineava como uma força, porque a pequena burguesia só pode manter uma posição revolucionária face à burguesia quando tem o proletariado atrás de si. Eles foram dispensados. O simulacro de aliança, feita com eles a contragosto, de forma dissimulada, na época do Governo provisório e da Comissão executiva, foi rompido publicamente pelos republicanos burgueses. Desprezados e repelidos enquanto aliados, eles desceram ao nível inferior de meros satélites dos republicanos tricolores dos quais não podiam extrair qualquer concessão, mas cuja dominação eram abrigados a apoiar todas as vezes que esta dominação, e com ela a própria República, parecia posta em questão pelas frações antirrepublicanas da burguesia. Essas frações, enfim, os orleanistas e os legitimistas, se achavam desde o início em minoria na Assembleia nacional constituinte. Antes das jornadas de junho, elas não ousavam reagir por si próprias a não ser sob a máscara do republicanismo burguês. A vitória de junho levou Cavaignac a ser saudado, por uns instantes, como o salvador de toda a França burguesa, e quando, logo após as jornadas de junho, o partido antirrepublicano recuperou sua independência, a ditadura militar e o estado de sítio em Paris não lhe permitiram pôr para fora suas antenas a não ser muito timidamente e com prudência. Desde 1830, a fração republicana da burguesia, seus - escritores, seus porta-vozes, suas "capacidades", seus deputados, generais, banqueiros e advogados, se haviam unido em torno de um jornal parisiense, o National, que tinha edições secundárias na província. O grupo do National era a dinastia da República tricolor. Ele se apoderou imediatamente de todas as funções públicas, dos ministérios, da Diretoria Geral de Polícia, dos cargos de prefeito, dos postos mais elevados tornados vagos no exército. A frente do poder executivo estava o seu general, Cavaignac. Seu redator-chefe, Marrast, se tornou o presidente permanente da Assembleia nacional constituinte. Ao mesmo tempo, em seus salões, mestre de cerimônia, ele fazia as honras da República legal. Até mesmo os escritores franceses revolucionários, por uma espécie de pudor, ante a tradição republicana, deram crédito ao erro de que os monarquistas tinham predominado na Assembleia nacional constituinte. Depois das jornadas de junho, ao contrário, a Assembleia constituinte ficou sendo a representação exclusiva do republicanismo burguês, e este aspecto se firma cada vez mais decididamente à medida que desmoronava a influência dos republicanos tricolores fora da Assembleia. Tratava-se de defender a forma da República burguesa, eles dispunham dos votos dos republicanos democratas; tratava-se de seu conteúdo, seu próprio modo de falar não os distinguia mais das frações burguesas monarquistas, porque são precisamente os interesses da burguesia, as condições materiais de sua dominação e de sua exploração de classe que formam o conteúdo da República burguesa. Não era pois a monarquia, mas o republicanismo que se realizava na vida e nos atos dessa Assembleia constituinte que acabou, não por morrer ou por ser morta, mas por começar a apodrecer. Durante todo o período de sua dominação, enquanto ela representava no palco o morceau de bravoure do galã, acontecia no segundo plano um holocausto ininterrupto: condenações em série, segundo a lei marcial, dos insurrectos de junho feitos prisioneiros ou sua deportação sem julgamento. A Assembleia constituinte teve o tato de reconhecer que nos insurrectos de junho não eram os criminosos que ela julgava, mas os inimigos que ela esmagava. O primeiro ato da Assembleia nacional constituinte foi a constituição de uma comissão de inquérito sobre os acontecimentos de junho e de 15 de maio e sobre a participação dos líderes dos partidos Socialista e Democrata naqueles dias. O inquérito era dirigido, diretamente, contra Louis Blanc, Ledru-Rollin e Caussidiére. Os republicanos burgueses ardiam de impaciência para se livrarem desses rivais. Eles não podiam confiar a execução de sua vingança a alguém mais qualificado que Monsieur Odilon Barrot, o antigo líder da oposição dinástica, o liberalismo em forma de homem, a "nulidade grave", a mediocridade inata; ele não tinha somente uma dinastia a vingar, mas contas a exigir dos revolucionários por uma presidência de ministério perdida, garantia certa de sua inflexibilidade. Foi então esse Barrot quem foi nomeado presidente da comissão de inquérito, e ele formou peça por peça, contra a revolução de fevereiro, um processo completo que pode ser resumido assim: 17 de março, manifestação; 16 de abril, complô; 15 de maio, atentado; 23 de junho, guerra civil! Por que não estendeu ele suas sábias pesquisas até 24 de fevereiro? O Journal de débats deu a resposta: 24 de fevereiro é a "fundação de Roma"! A origem dos Estados se perde em um mito no qual se deve crer sem discussão. Louis Blanc e Caussidière foram entregues aos tribunais. A Assembleia nacional consumava a sua própria purificação, por ela começada em 15 de maio. O projeto de imposto do capital, concebido pelo Governo provisório e retomado por Goudchaux - sob a forma de imposto hipotecário -, foi rejeitado pela Assembleia constituinte; a lei que limitava a dez horas o tempo de trabalho foi revogada, a prisão por dívidas foi restabelecida. A maior parte da população francesa, a que não sabia ler nem escrever, foi impedida de ser admitida no júri. Por que não também o direito de voto? A caução para os jornais foi restabelecida, o direito de associação restrito. Mas em sua pressa de restituir às antigas relações burguesas as antigas garantias, e de fazer desaparecerem todos os traços deixados pelas ondas revolucionárias, os republicanos burgueses foram de encontro a uma resistência cuja ameaça constituía um perigo inesperado. Ninguém, nas jornadas de junho, havia lutado mais fanaticamente pela salvaguarda da propriedade e pelo restabelecimento do crédito do que os pequenos burgueses parisienses, proprietários de cafés, donos de restaurantes, negociantes de vinho, pequenos comerciantes, lojistas, artesãos, etc. Juntando todas as suas forças, a loja havia marchado contra a barricada para restabelecer a circulação que leva da rua à loja. Mas, por trás da barricada, havia os clientes e os devedores; diante dela, os credores da loja. E quando as barricadas foram derrubadas e os operários esmagados, quando os guardiães dos magazines, na embriaguês da vitória, se precipitaram de novo para as suas lojas, encontraram as entradas impedidas por um salvador da propriedade, um agente oficial do crédito que lhes apresentava seus títulos cominatórios: letra vencida, prazo vencido, promissória vencida, loja em baixa, lojista em baixa. Salvaguarda da propriedade! Mas a casa em que eles moravam não era propriedade sua, a loja que eles guardavam não era propriedade sua, as mercadorias que eles vendiam não eram propriedade sua. Nem seu comércio, nem o prato em que eles comiam, nem a cama onde eles dormiam tampouco lhes pertenciam. Era justamente face a eles que se tratava de salvar essa propriedade, em proveito do proprietário que havia alugado a casa, do banqueiro que havia descontado a letra, do capitalista que havia feito os adiantamentos em dinheiro, do fabricante que havia confiado a esses lojistas as mercadorias para serem vendidas, do grande comerciante que havia dado a esses artesãos o crédito pelas matérias-primas. Restabelecimento do crédito! Mas, uma vez consolidado, o crédito se mostrou um deus ativo e cheio de zelo, precisamente atirando para fora de suas quatro paredes o devedor insolvente com sua mulher e seus filhos, entregando sua pretensa fortuna ao capital e levando à prisão por dívidas aquele que se tinha erguido de novo, ameaçador, sobre os cadáveres dos insurrectos de junho. Os pequenos burgueses se deram conta, apavorados, que se tinham entregado sem resistência nas mãos de seus credores ao esmagarem os operários. Sua bancarrota, crônica desde fevereiro e aparentemente ignorada, foi declarada pública depois de junho. Tinham-lhes deixado sua propriedade nominal apenas o tempo de serem atirados no campo de batalha em nome da propriedade. Agora que se tinha acertado o grande assunto do proletariado, podia-se acertar igualmente, por sua vez, a pequena conta do merceeiro. Em Paris, o total de títulos vencidos somava mais de vinte e um milhões de francos; nas províncias, mais de onze milhões. Os titulares de arrendamentos comerciais de mais de sete mil casas parisienses não haviam pago seu aluguel depois de fevereiro. Se a Assembleia nacional tinha feito um inquérito sobre a dívida política remontando a fevereiro, os pequenos burgueses pediam agora, por seu lado, um inquérito sobre as dívidas civis até 24 de fevereiro. Eles se uniram em massa no hall da Bolsa e, para cada comerciante capaz de provar que não tinha falido por outra razão que não fosse em consequência da interrupção dos negócios, provocada pela revolução de fevereiro, e que seus negócios iam bem em 24 de fevereiro, eles exigiam com ameaças uma prorrogação de seus prazos de vencimento por um julgamento do tribunal de comércio e a obrigação de liquidar seu crédito com um juro moderado. A Assembleia nacional discutiu essa questão e fez uma proposta de lei, sob a forma de concordata amigável. A Assembleia hesitou quando soube, de repente, que naquele mesmo instante, na porta Saint-Denis, milhares de mulheres e filhos dos insurrectos preparavam uma petição em favor da anistia. Ante o espectro ressuscitado de junho, os pequenos burgueses tremeram e a Assembleia se mostrou implacável. As concordatas amigáveis entre o credor e o devedor foram rejeitadas em seus pontos essenciais. Depois que os representantes republicanos da burguesia, no seio na Assembleia, repeliram os representantes democráticos dos pequenos burgueses, essa ruptura parlamentar tomou seu real sentido econômico burguês pelo fato de que os pequenos burgueses devedores foram entregues aos burgueses credores. Grande parte dos primeiros ficaram completamente arruinados; quanto aos outros, só foram autorizados a continuar seu comércio sob condições que os tornavam servos dependentes do capital. Em 22 de outubro de 1848, a Assembleia nacional rejeitava as concordatas amigáveis; em 19 de setembro de 1848, em pleno estado de sítio, o príncipe Luís Bonaparte e o detento de Vincennes, o comunista Raspail, eram eleitos representantes de Paris. Quanto à burguesia, ela elegeu o banqueiro judeu e orleanista Fould. Assim, de todos os lados e ao mesmo tempo, havia declaração de guerra pública à Assembleia nacional constituinte, ao republicanismo burguês, a Cavaignac. Não é necessário explicar longamente como a bancarrota em massa dos pequenos burgueses parisienses teve repercussões que se estenderam bastante para além do círculo daqueles que por ela foram atingidos diretamente, e como ela abalou forçosamente, mais uma vez, o comércio burguês. No entanto, o déficit público aumentava ainda mais com as despesas ocasionadas pela insurreição de junho e porque as receitas do Estado baixavam constantemente com a interrupção da produção, a redução do consumo e as restrições à importação. Cavaignac e a Assembleia nacional não podiam recorrer a outro meio que não fosse um novo empréstimo que os colocava mais ainda sob o jugo da aristocracia financeira. Se os pequenos burgueses tinham colhido como frutos da vitória de junho a bancarrota e a liquidação judiciária, por outro lado, os janízaros de Cavaignac, as gardes mobiles, tiveram sua recompensa nos doces braços das meretrizes, e os "jovens salvadores da sociedade" receberam homenagens de toda espécie nos salões de Marrast, o cavalheiro dos tricolores que representava o duplo papel de anfitrião e de trovador da República legal. No entanto, as preferências da sociedade pelos gardes mobiles e seu soldo incomparavelmente mais elevado exasperavam o exército, ao mesmo tempo que desabrochavam todas as ilusões nacionais pelas quais o republicanismo burguês, com seu jornal Le National tinha sabido captar sob Luís-Filipe uma parcela do exército e da classe camponesa. O papel de mediador que representavam Cavaignac e a Assembleia nacional na Itália do Norte para entregá-la à Áustria, em acordo com a Inglaterra - este único momento de poder anulou dezoito anos de oposição do National. Nenhum governo foi menos nacional que o do National, mais dependente da Inglaterra, enquanto que sob Luís-Filipe ele vivia da paráfrase diária da divisa de Catão: Carthaginem esse delendam; nenhum outro mais servil frente à Santa-Aliança, enquanto que para um Guizot ele tinha pedido que se rasgassem os tratados de Viena. A ironia da história fez de Bastide, o ex-redator de política estrangeira do National, o Ministro de Negócios Estrangeiros da França, a fim de que ele desmentisse cada um de seus artigos com cada um de seus despachos. Por um instante o exército e a classe camponesa tinham acreditado que a ditadura militar poria ao mesmo tempo na ordem do dia francesa a guerra com o estrangeiro e a "glória". Mas Cavaignac não era a ditadura do sabre sobre a sociedade burguesa, calou a ditadura da burguesia pelo sabre. E, em matéria de soldado, no momento bastava-lhe o gendarme. Cavaignac escondia sob os traços severos da resignação antirrepublicana o deprimido servilismo às condições humilhantes de seu cargo burguês. O dinheiro não tem dono! Como a Assembleia constituinte, ele idealizava esse velho refrão do terceiro estado transpondo-a para a linguagem política: a burguesia não tem rei, a verdadeira forma de sua dominação é a República. Elaborar essa forma, fazer uma Constituição republicana, eis em que consistiu a "grande obra orgânica" da Assembleia nacional constituinte. Mudar os nomes do calendário cristão para transformá-lo em um calendário republicano, trocar São Bartolomeu por São Robespierre muda tanto o tempo ou o vento quanto essa Constituição modificava ou deveria modificar a sociedade burguesa. Quando ela foi além da mera mudança de costumes, foi para legalizar fatos já existentes. Foi assim que ela registrou solenemente a existência da República, a existência do sufrágio universal, a existência de uma única Assembleia nacional soberana, em lugar de duas Câmaras constitucionais com poderes limitados. Foi assim que ela registrou e regularizou a ditadura de Cavaignac, substituindo a realeza hereditária estabelecida, irresponsável, por uma legalidade eletiva, móvel, responsável, uma presidência de quatro anos. Foi assim que ela chegou até a transformar em lei constitucional os poderes extraordinários com os quais a Assembleia nacional havia, por precaução, munido seu presidente, após os horrores de 15 de maio e de 25 de junho, no interesse de sua própria segurança. O resto da Constituição foi caso de terminologia. Arrancou-se das embalagens da antiga realeza as etiquetas monarquistas e colou-se etiquetas republicanas. Marrast, o antigo redator-chefe do National, transformado agora em redator-chefe da Constituição, desincumbiu-se, não sem talento, dessa tarefa acadêmica. A Assembleia constituinte parecia aquele funcionário chileno que queria terminar os relatórios da propriedade imóvel com a regulamentação do cadastro no exato momento em que os sons subterrâneos anunciavam a erupção vulcânica que projetaria ao longe o chão sob os seus pés. Enquanto, em teoria, ela marcava no compasso as formas nas quais se exprimia republicanamente a dominação da burguesia, na realidade só se mantinha pela abolição de todas as fórmulas, pela força sem palavras, pelo estado de sítio. Dois dias antes de iniciar sua obra constitucional, ela proclamou seu prolongamento. Até então, faziam-se e adotavam-se constituições desde que o processo de agitação social tivesse chegado a um ponto de estagnação, desde que as relações novamente formadas entre as classes se tivessem consolidado, desde que as frações rivais da classe no poder tivessem chegado a um acordo que lhes permitisse continuar a luta entre si ao mesmo tempo que dela excluíam a massa do povo enfraquecido. Essa Constituição, ao contrário, não sancionava qualquer revolução social, sancionava a vitória momentânea da velha sociedade sobre a revolução. No primeiro projeto de Constituição, redigido antes dos dias de junho, encontrava-se ainda o "direito ao trabalho", primeira fórmula desajeitada onde se resumem as exigências revolucionárias do proletariado. O direito foi transformado em assistência: qual o Estado moderno que não ampara, de uma maneira ou de outra, os seus indigentes? O direito ao trabalho é, no sentido burguês, um contrassenso, um desejo vão, digno de piedade; mas por trás do direito ao trabalho há o poder sobre o capital, a apropriação dos meios de produção, sua subordinação à classe operária associada, ou seja, a supressão do assalariado, do capital e de suas relações recíprocas, Por trás do "direito ao trabalho" havia a insurreição de junho. Essa Assembleia constituinte que, na verdade, colocava o proletário revolucionário à margem da lei, era forçada a rejeitar por princípio uma fórmula da Constituição, a lei das leis, de lançar seu anátema sobre o "direito ao trabalho". Ela não ficou nisso. Assim como Platão bania de sua República os poetas, ela baniu da sua, para sempre, o imposto progressivo. Ora, o imposto progressivo não é apenas uma medida burguesa realizável no seio das relações de produção existentes em uma escala mais ou menos ampla; é também o único modo de ligar as camadas médias da sociedade burguesa à República "legal", de reduzir a dívida pública e de levar ao fracasso a maioria antirrepublicana da burguesia. Por ocasião das concordatas amigáveis, os republicanos tricolores tinham sacrificado a pequena burguesia à vontade. Eles elevaram esse fato isolado à altura de um princípio interditando legalmente o imposto progressivo. Colocaram no mesmo plano a reforma burguesa e a revolução proletária. Mas que classe ficava como sustentáculo dessa República? A grande burguesia. Ora, ela era antirrepublicana, E, se explorava os republicanos do National para consolidar as antigas condições de vida econômica, ela pensava por outro lado explorar as condições sociais fortalecidas para restaurar as formas políticas que lhe eram adequadas. Desde o início de outubro, Cavaignac se viu obrigado a fazer de Dufaure e de Vivien, antigos ministros de Luís-Filipe, ministros da República, apesar dos rancores e do clamor dos puritanos sem cérebro de seu próprio partido. Enquanto que a Constituição tricolor rejeitava todo compromisso com a pequena burguesia e não sabia trazer qualquer novo elemento da sociedade à nova forma de Estado, ela se apressava, por outro lado, em levar sua inviolabilidade tradicional a um ponto em que o antigo Estado encontrava seus defensores mais ardorosos e mais fanáticos: ela elevou a inamovibilidade de seus juízes, posta em questão pelo Governo provisório, ao nível de lei constitucional. O rei que ela havia destronado ressuscitava às centenas nesses inquisidores inamovíveis da legalidade. A imprensa francesa discutiu muito sobre as contradições da Constituição de Monsieur Marrast; por exemplo, a justaposição de dois soberanos, a Assembleia nacional e o presidente, etc. etc. Então, a principal contradição dessa Constituição consiste no seguinte: as classes cuja escravidão social ela perpetuava - proletariado, camponeses, pequenos burgueses - receberam dela o poder político com o sufrágio universal; e à burguesia, cujo antigo poder social ela sancionou, retirou as garantias políticas de tal poder. Ela estreita sua dominação política em condições democráticas que ajudam a cada instante as classes inimigas a obter a vitória e que põem em questão os próprios fundamentos da sociedade burguesa. A umas, ela pede que não procurem sua emancipação política até a emancipação social; a outras, que não abandonem a restauração social pela restauração política. Essas contradições pouco importavam aos republicanos burgueses. À medida que eles deixam de ser indispensáveis (e eles apenas foram indispensáveis como campeões da velha sociedade contra o proletariado revolucionário), logo algumas semanas depois de sua vitória, eles caíam do nível de partido para o de "igrejinha". Quanto à Constituição, eles a tratavam como uma grande manobra. O que era preciso constituir nela era, antes de tudo, o domínio da "igrejinha". O presidente devia prolongar em sua pessoa os poderes de Cavaignac e a Assembleia legislativa prolongar os da Constituição. Eles esperavam reduzir o poder político das massas populares a uma imitação de poder e pensavam jogar o suficiente com essa aparência de poder para erguer continuamente por sobre a cabeça da maioria burguesa o dilema das jornadas de junho: ou o reinado do National ou o reinado da anarquia. A obra constitucional iniciada em 4 de setembro foi terminada em 23 de outubro. Em 2 de setembro, a Constituinte tinha decidido não se dissolver antes de haver promulgado as leis orgânicas que completavam a Constituição. Entretanto, decidiu pôr no mundo a sua própria criação, o presidente, logo em 10 de dezembro, bem antes de terminar o período de sua atividade. Assim estaria ela certa de saudar no homúnculo da Constituição o filho de sua mãe. Por precaução, dispôs-se que, se nenhum dos candidatos obtivesse dois milhões de votos, a eleição passaria da nação à Constituinte. Precauções inúteis. O primeiro dia da entrada em vigor da Constituição foi o último dia da Constituinte. Ela procurava o "filho de sua mãe" e encontrou o "sobrinho de seu tio". Saul Cavaignac fora derrotado seis vezes. 10 de dezembro de 1848 foi o dia da revolta camponesa. Apenas desse dia data o fevereiro dos camponeses franceses. O símbolo que exprimia sua entrada no movimento revolucionário, desajeitado e matreiro, vilão ingênuo, grosseiro e sublime, uma superstição calculada, o burlesco patético, um anacronismo genial e estúpido, o travesso da história mundial, hieróglifo indecifrável pela razão; ele simbolizava até a confusão a fisionomia da classe que representa a barbárie no seio da civilização. A República se tinha anunciado a essa classe pelo porteiro; ela se anunciou à República pelo Imperador. Napoleão era o único homem a representar realmente os interesses, e a imaginação da nova classe camponesa que 1789 tinha criado. Ao escrever seu nome na fachada da República, ela declarava guerra ao estrangeiro e reivindicava seus interesses de classe ao interior. Napoleão não era um homem para os camponeses, mas um programa. Foi com bandeiras e ao som da música que eles foram às urnas, aos gritos de "Chega de impostos, abaixo os ricos, abaixo a República, viva o imperador!" Por trás do imperador se escondia a jacquerie. A República que eles derrotavam com seus votos era a República dos ricos. 10 de dezembro foi o golpe de Estado dos camponeses que derrubava o governo existente. E a partir desse dia em que eles surpreenderam e deram um governo à França, seus olhos ficaram obstinadamente fixados sobre Paris. Por um momento heróis ativos do drama revolucionário, eles não podiam ser mais relegados ao papel passivo e servil de membros do coro. As outras classes contribuíram para completar a vitória eleitoral dos camponeses. A eleição de Napoleão era para o proletariado a destituição de Cavaignac, a queda da Constituinte, a demissão dos republicanos burgueses. Para a pequena burguesia, Napoleão era a supremacia do devedor sobre o credor. Para a maioria da grande burguesia a eleição de Napoleão era a ruptura aberta com a fração da qual fora preciso se servir por algum tempo, mas que se tornara insuportável desde que tentou fazer de sua posição momentânea uma posição constitucional. Napoleão no lugar de Cavaignac era a monarquia no lugar da República, o início da restauração monarquista, os dOrléans aos quais se faziam tímidas alusões, a flor-de-lis escondida sob a violeta. O exército, enfim, votou a favor de Napoleão contra a garde mobile, contra o idílio da paz, a favor da guerra. Foi assim que aconteceu, como dizia a Neue Rheinische Zeitung, de o homem mais simples da França adquirir a mais complexa importância. Precisamente por não ser nada ele podia sígnífícar tudo, menos ele próprio. Entretanto, por mais diferente que pudesse ser o sentido do nome de Napoleão na boca das diferentes classes, cada uma delas escreveu com seu nome em sua cédula: "Abaixo o partido do Nacional, abaixo Cavaignac, abaixo a Constituinte, abaixo a República, burguesa!" O ministro Dufaure declarou publicamente à Assembleia constituinte: "O 10 de dezembro é um segundo 24 de fevereiro." Pequena burguesia e proletariado tinham votado "em bloco" a favor de Napoleão, a fim de votar contra Cavaignac e arrancar da Constituinte a decisão final pela união de seus sufrágios. No entanto, a parcela mais avançada dessas duas classes apresentou seus próprios candidatos. Napoleão era o nome comum de tonos os partidos coligados contra a República burguesa. Ledru-Rollin e Raspail eram os nomes naturais, o primeiro da pequena burguesia democrática, o segundo do proletariado revolucionário. Os votos a favor de Raspail - os proletários e seus porta-vozes o declararam bem alto - deviam ser uma simples demonstração: tanto de protesto contra qualquer presidência, ou seja, contra a própria Constituição, quanto de votos contra Ledru-Rollin, o primeiro ato com o qual o proletariado se destacava, enquanto partido político independente, do Partido Democrático. Este partido, por outro lado, - a pequena burguesia democrática e sua representação parlamentar, La Montagne - tratava a candidatura de Ledru-Rollin com toda seriedade, toda solenidade que ele costumava empregar para enganar a si próprio. Esta foi, aliás, sua última tentativa de se impor diante do proletariado como partido independente. Não somente o partido burguês republicano, mas a pequena burguesia democrática e sua Montagne, foram derrotados em 10 de dezembro. A França possuía agora, ao lado de uma Montagne, um Napoleão. Prova que tanto um quanto outro não passavam de uma caricatura sem vida das grandes realidades cujos nomes eles portavam. Luís-Napoleão com o chapéu de imperador e a águia, parodiava tão miseravelmente o antigo Napoleão quanto La Montagne, com suas frases tomadas emprestadas de 1793 e suas posturas demagógicas, parodiava o antigo Montagne. Assim, a superstição tradicional com relação a 1793 foi destruída ao mesmo tempo que aquela com relação a Napoleão. A revolução só chegou a ter personalidade própria depois de ter conquistado um nome original; e ela só pôde fazê-lo após ter feito surgir, imperiosa, no primeiro plano, a classe revolucionário moderna, o proletariado industrial. Pode-se dizer que o 10 de dezembro já desconcertava La Montagne e o levava a duvidar de sua própria sanidade, porque ele rompia, rindo de uma medíocre farsa camponesa, a analogia clássica com a antiga revolução. Em 20 de dezembro, Cavaignac abandonou suas funções e a Assembleia constituinte proclamou Luís-Napoleão presidente da República. Em 19 de dezembro, último dia de sua onipotência, a Assembleia rejeitou a proposta de anistia em favor dos insurrectos de junho. Desaprovar o decreto de 27 de junho, com o qual ela havia condenado à deportação quinze mil insurrectos, escamoteando toda a sentença judiciária, não era desaprovar a própria batalha de junho? Odilon Barrot, o último ministro de Luís-Filipe, foi o primeiro ministro de Luís-Napoleão. Assim como Luís Napoleão não considerou o 10 de dezembro como o dia de seu poder, e sim o senatus consulte de 1806, ele encontrou um presidente do Conselho que não considerava o 20 de dezembro como a data do seu ministério, e sim o decreto real de 24 de fevereiro. Como herdeiro legítimo de Luís-Filipe, Luís-Napoleão atenuou a troca de governo conservando o antigo ministério que, de resto, não havia tido tempo de se desgastar, pois não havia tido tempo de nascer. Os líderes das frações burguesas monarquistas aconselharam Luís-Napoleão a tomar tal atitude. A liderança da antiga oposição dinástica, que tinha feito inconscientemente a transição rumo aos republicanos do National, estava ainda mais qualificada para formar, com plena consciência, a transição da República burguesa rumo à monarquia. Odilon Barrot era o líder do único partido antigo da oposição que não se havia ainda desgastado na luta sempre vã por um título ministerial. Em uma sucessão rápida, a revolução projetou todos os antigos partidos de oposição na cúpula do Estado, a fim de que eles fossem forçados a negar e a renegar, não somente em atos, mas até mesmo em palavras, suas antigas formulações e, reunidos todos em uma mistura repugnante, fossem finalmente atirados na lixeira da história. E nenhuma apostasia foi poupada por esse Barrot, essa personificação do liberalismo burguês que, durante dezoito anos, havia ocultado o vazio miserável de seu espírito por trás de atitudes de simulada gravidade. Se, em certos momentos, o contraste por demais chocante entre os espinhos do presente e os louros do passado o assustava, uma olhadela no espelho devolvia-lhe a postura ministerial e a admiração bem humana por sua própria pessoa. O que se refletia no espelho era Guizot, a quem tinha sempre invejado e que o tinha sempre dominado, o próprio Guizot, com a testa olímpica de Odilon. O que ele não via eram as orelhas de Midas. O Barrot de 24 de fevereiro somente se revelou no Barrot de 20 de dezembro. Ele, o orleanista, o voltaireano, escolheu como sacerdote do culto o legitimista jesuíta Falloux. Alguns dias mais tarde, o Ministério do Interior foi confiado a Léon Faucher, economista malthusiano. O direito, a religião, a economia política! O ministério Barrot continha tudo isso e era também uma união dos legitimistas e dos orleanistas. Só lhes faltavam os bonapartistas, Bonaparte continuou dissimulando seu desejo de ser Napoleão, pois Soulouque não interpretava ainda o papel de Les Toussaint Louverture. Tão logo se fez sair o partido do National de todos os postos elevados onde ele se tinha agarrado - Diretoria Geral de Policia, direção dos Correios, Procuradoria Geral, Prefeitura de Paris -, esses postos foram ocupados todos por antigas criaturas da monarquia. Changarnier, o legitimista, recebeu o comando superior da guarda nacional do departamento do Sena, da garde mobile e das tropas de linha da primeira divisão. Bugeaud, o orleanista, foi nomeado comandante-chefe do exército dos Alpes. Essas mudanças de funcionários prosseguiram de forma ininterrupta sob o governo de Barrot. O primeiro ato de seu ministério foi a restauração da antiga administração monarquista. Em um piscar de olhos, a cena oficial se transformou - bastidores, vestuário, linguagem, atores, figurantes, comparsas, "ponto", posição dos Partidos, tema do drama, conteúdo do conflito, toda a situação. Apenas a Assembleia constituinte pré-histórica continuava no mesmo lugar. Mas a partir do momento em que a Assembleia nacional tinha instalado Bonaparte, em que Bonaparte tinha instalado Barrot, em que Barrot tinha instalado Changarnier, a França saía do período da constituição da República para entrar no período da República constituída. E na República constituída o que tinha a fazer uma Assembleia constituinte? Uma vez criada a terra, só restava ao seu criador refugiar-se no céu, A Assembleia constituinte estava disposta a não seguir seu exemplo: a Assembleia nacional era o último refúgio do partido dos republicanos burgueses. Se todos os postos de comando do poder executivo lhe tinham escapado, não lhe restava a onipotência constituinte? Manter-se a qualquer preço no posto soberano que ela ocupava e de lá reconquistar o terreno perdido foi o seu primeiro pensamento. Uma vez o ministério Barrot substituído por um ministério do National, o pessoal da realeza seria obrigado a deixar imediatamente o palácio da administração e o pessoal tricolor lá entraria triunfalmente. A Assembleia nacional decidiu derrubar o ministério, e o próprio ministério forneceu um ensejo de ataque tal que nem mesmo a Constituinte poderia imaginar algo de mais oportuno. É lembrado que para os camponeses Bonaparte significava "Chega de impostos!". Ele já estava instalado em sua cadeira presidencial há seis dias quando, no sétimo dia, em 27 de dezembro, seu ministério propôs a manutenção do imposto sobre o sal, cuja supressão o Governo provisório tinha decretado. O imposto sobre o sal divide com o imposto sobre as bebidas o privilégio de ser o bode-expiatório do antigo sistema financeiro francês, sobretudo aos olhos da população do campo. O ministério Barrot não podia colocar na boca do eleito dos camponeses uma epigrama mais sarcástica para seus eleitores do que essas palavras: restabelecimento do imposto sobre o sal! Com o imposto sobre o sal, Bonaparte perdia o seu sal revolucionário, o Napoleão da insurreição camponesa se dissipava como uma nuvem, e só restava o grande desconhecido da intriga burguesa monarquista. E não foi sem intenção que o ministério Barrot fez desse ato de desilusão grosseira e brutal o primeiro ato governamental do presidente. Por seu lado, a Constituinte aproveitou avidamente a dupla ocasião de derrubar o ministério e de se impor ante o eleito dos camponeses como defensor dos interesses dos camponeses. Ela rejeitou a proposta do Ministro das Finanças, reduziu o imposto sobre o sal a um terço do seu montante anterior, aumentando assim em sessenta milhões um déficit público de quinhentos e sessenta milhões e esperou tranquilamente depois desse voto de desconfiança a retirada do ministério. Como ela compreendia pouco o mundo novo que a cercava e a mudança sobrevinda em sua própria posição! Por trás do ministério havia o presidente, e por trás do presidente havia seis milhões de cidadãos que tinham depositado na urna eleitoral igual número de votos de desconfiança contra a Constituinte. A Constituinte devolveria à nação seu voto de desconfiança. Troca ridícula! Ela esquecia que seus votos tinham perdido o valor. A rejeição do imposto sobre o sal só fez amadurecer a decisão de Bonaparte e de seu ministério "de acabar" com a Assembleia constituinte. O longo duelo que tomou toda uma metade da existência da Constituinte começou. 29 de janeiro, 21 de março e 3 de maio são os dias, os grandes dias dessa crise, verdadeiras preliminares do 13 de junho. Os franceses, Louis Blanc, por exemplo, viram o 29 de janeiro como o surgimento de uma contradição constitucional, da contradição entre uma Assembleia nacional soberana, indissolúvel, saída do sufrágio universal, e um presidente responsável por ela, segundo a lei, mas que, em realidade, havia sido não apenas sancionado igualmente pelo sufrágio universal e reunia por isso sobre sua pessoa todas as vozes se repartindo e se dispersando centenas de vezes sobre os diferentes membros da Assembleia nacional, mas estava também em plena posse de todo o poder executivo sobre o qual a Assembleia nacional só paira a título de força moral. Esta interpretação do 29 de junho confunde a linguagem da luta na tribuna, pela imprensa, nas associações políticas, com seu conteúdo real. Luis Bonaparte face à Assembleia nacional constituinte não era um lado do poder constitucional diante do outro, não era o poder executivo diante do poder legislativo; era a própria República burguesa constituída face às intrigas ambiciosas e às reivindicações ideológicas da fração burguesa revolucionária que a havia fundado e que, atônita, procurava agora fazer com que a república constituída se parecesse com uma monarquia restaurada e que queria manter pela violência o período constituinte com suas condições, suas ilusões, sua linguagem e seu pessoal, e impedir a República burguesa chegada à maturidade de aparecer em sua forma acabada e particular. Assim como a Assembleia nacional constituinte representava Cavaignac de volta a seu seio, Bonaparte representava a Assembleia nacional legislativa que não se tinha ainda separado dele, ou seja, a Assembleia nacional da República burguesa constituída. A eleição de Bonaparte não se podia explicar sem colocar no lugar de um único nome as suas múltiplas significações, sem ver a sua repetição na eleição da nova Assembleia nacional. O 10 de dezembro havia anulado o mandato da antiga Assembleia. Em 29 de janeiro, pois, não eram o presidente e a Assembleia nacional da mesma República que se confrontavam, mas a Assembleia nacional da República em potencial e o presidente da República de fato, duas forças que encarnavam dois períodos em tudo diferentes do processo de existência da República; era a pequena fração republicana da burguesia que somente podia proclamar a República, arrancá-la ao proletariado revolucionário, através dos combates de rua e pelo terror, e esboçar na constituição os traços fundamentais do seu ideal; e, de outro lado, toda a multidão monarquista da burguesia, que somente podia reinar nessa República burguesa constituída, levar à Constituição seus acessórios ideológicos, e realizar, com sua legislação e sua administração, as condições indispensáveis à escravidão do proletariado. A tempestade que caiu em 29 de janeiro se havia formado durante todo aquele mês. A Constituinte queria, com seu voto de desconfiança, levar o ministério Barrot a renunciar. O ministério Barrot, ao contrário, propôs à Constituinte que concedesse a si própria um voto de desconfiança definitivo, que decidisse o seu suicídio, que decretasse sua própria dissolução. Rateau, um dos deputados mais obscuros, fez a proposta à Constituinte sobre a ordem do ministério, em 6 de janeiro, a essa mesma Constituinte que, desde agosto, havia decidido não se dissolver antes de ter promulgado toda uma série de leis orgânicas completando a Constituição. O ministério Fould declarou-lhe francamente que a dissolução era necessária "para restabelecer seu crédito abalado". Não teria ela abalado esse crédito ao prolongar o estado provisório, ao pôr de novo em questão com Barrot, Bonaparte, e, com Bonaparte, a República constituída? Barrot, o olímpico, transformado em Orlando Furioso, ante a perspectiva de ver arrancada de si, outra vez, depois de tê-la desfrutado apenas quinze dias, essa presidência de gabinete enfim obtida; e que os republicanos já haviam prorrogado certa vez em um decênio de dez meses, Barrot triunfou em tirania sobre o tirano com relação a essa miserável Assembleia. As mais suaves de suas palavras foram: "Para ela, não há futuro possível." E, em realidade, ela não representava outra coisa que não fosse o passado. "Ela é incapaz de cercar a República das instituições necessárias à sua consolidação.", acrescentou ele, ironicamente. De fato! Ao mesmo tempo que, por sua oposição exclusiva ao proletariado, sua energia burguesa se vira comprometida, por sua oposição aos monarquistas sua exaltação republicana fora fortalecida. Ela era, então, duplamente incapaz de consolidar pelas instituições adequadas a República burguesa que ela não mais compreendia. Com a proposta de Rateau, o ministério provocou ao mesmo tempo uma tempestade de petições em todo o país e, diariamente, de todos os cantos da França, a Constituinte recebia em pleno rosto verdadeiros pacotes de "cartas de amor" onde se implorava, mais ou menos categoricamente, que ela se dissolvesse e fizesse o seu testamento. Por seu turno, a Constituinte provocava contra petições nas quais ela se fazia exortar a continuar vivendo. A luta eleitoral entre Bonaparte e Cavaignac se repetia sob a forma de luta de petições pró ou contra a dissolução da Assembleia nacional. As petições se tornariam os comentários do 10 de dezembro feitos mais tarde. Esta agitação persistiu durante todo o mês de janeiro. No conflito entre a Constituinte e o presidente, aquela não podia remontar às eleições gerais como à sua origem, porque alguém a lembraria o sufrágio universal. Não podia se apoiar sobre qualquer poder regular, porque se tratava da luta contra o poder legal. Não podia derrubar o ministério com os votos de desconfiança, como voltara a tentar em 6 e 26 de janeiro, porque o ministério não pedia a sua confiança. Só lhe restava uma possibilidade, a insurreição. As forças armadas da insurreição eram o partido republicano da guarda nacional, a garde mobile e os centros do proletariado revolucionário, as associações políticas. Os gardes mobites, esses heróis das jornadas de junho, constituíam em dezembro as forças armadas organizadas das frações republicanas da burguesia, assim como, antes de junho, as oficinas nacionais haviam formado as forças armadas organizadas do proletariado revolucionário. Da mesma maneira que a Comissão executiva da Constituinte concentrou sua brutalidade no ataque às oficinas nacionais, quando precisou pôr um fim nas exigências tornadas insuportáveis do proletariado, assim também o ministério de Bonaparte combateu a garde mobile, quando precisou pôr um fim nas exigências tornadas insuportáveis das frações republicanas da burguesia. E ordenou a dissolução da garde mobile. Desta, metade foi dispensada e atirada na rua, a outra metade recebeu, em lugar de sua organização democrática, uma organização monarquista, e seu soldo foi rebaixado ao nível do soldo comum das tropas de linha. A garde mobile se viu na situação dos insurrectos de junho, e todos os dias a imprensa divulgava confissões públicas, onde a guarda reconhecia seu erro de junho e implorava ao proletariado que a perdoasse. E as associações políticas? Desde o momento em que a Assembleia punha em questão, na pessoa de Barrot, o presidente; e, no presidente, a República burguesa constituída; e, na República burguesa em geral, todos os elementos constitutivos da República de fevereiro; desde esse momento, todos os partidos que desejavam derrubar a República existente, e que desejavam transformá-la por um processo de regressão violenta na República de seus interesses e de seus conceitos de classe, se perfilaram ao redor dela. Mas o que estava feito, estava outra vez por fazer, a cristalização do movimento revolucionário se fundamentava outra vez, a República pela qual se combatia era uma vez mais a República vaga das jornadas de fevereiro que cada partido se reservava definir. Os partidos retomaram por instantes suas velhas posições de fevereiro, mas sem partilhar as ilusões. Os republicanos tricolores do National se apoiaram de novo nos republicanos democratas do La Réforme e os puseram na vanguarda, no primeiro plano da luta parlamentar. Os republicanos democratas se apoiaram de novo nos republicanos socialistas - em 27 de janeiro, um manifesto público proclamou sua reconciliação e sua união - e eles preparam nas associações políticas seu segundo plano insurrecional. A imprensa ministerial tratou com razão os republicanos tricolores do National como insurrectos ressuscitados de junho. Para se manter à frente da República burguesa, eles puseram em questão essa mesma República. Em 26 de janeiro, o ministro Faucher propôs uma lei sobre o direito de associação cujo primeiro parágrafo era assim concebido: "As associações políticas estão proibidas". Ele propôs que esse projeto de lei fosse posto em discussão imediatamente, segundo o procedimento de urgência. A Constituinte rejeitou a proposta de urgência e, em 27 de janeiro, Ledru-Rollln apresentou uma proposta para que fosse posto em acusação o ministério por violação da Constituição, proposta essa que contava com duzentas e trinta assinaturas. A acusação do ministério no momento em que semelhante ato revelava a confissão inábil da impotência do juiz, ou seja, da maioria da Câmara, ou ainda o protesto impotente do acusador contra essa própria maioria, tal foi o grande trunfo revolucionário que La Montagne, irmã caçula, jogou imediatamente a cada auge da crise. Pobre Montagne, esmagada sob o peso do próprio nome! Blanqui, Barbês, Raspail, etc., em 15 de maio, haviam tentado dissolver pela força a Assembleia constituinte, penetrando, à frente do proletariado parisiense, na sala de sessões. Barrot preparou para essa Assembleia um 15 de maio moral, querendo ditar-lhe sua própria dissolução e fechar sua sala de sessões. A Assembleia havia encarregado Barrot do inquérito sobre os acusados de maio; e era no momento em que ele aparecia diante dela como um Blanqui monarquista, em que ela procurava diante dele os aliados nas associações políticas, junto aos proletariados revolucionários, no partido de Blanqui, era nesse momento que o inexorável Barrot a torturava com sua proposta de roubar ao júri os acusados de maio e de citá-los diante do tribunal supremo inventado pelo partido do National, diante da Alta Corte. Que coisa notável que o medo tenaz de perder um título ministerial tenha podido extrair da cabeça de um Barrot ironias dignas de um Beaumarchais! Depois de longas hesitações, a Assembleia nacional adotou sua proposta. Face aos acusados do atentado de maio, ela retomava seu caráter normal. Se a Constituinte, ante o presidente e os ministros, era obrigada à insurreição, o presidente e o ministério, ante a Constituinte, eram obrigados ao golpe de Estado, pois eles não dispunham de qualquer meio legal para dissolvê-la. Mas a Constituinte era a mãe da Constituição, e a Constituição era a mãe do presidente. Com o golpe de Estado, o presidente rasgava a Constituição e destruía seus títulos republicanos. Ele era então forçado a mostrar seus títulos imperiais, mas seus títulos imperiais evocavam os títulos orleanistas e ambos empalideciam diante dos títulos legitimistas. A derrubada da República legal somente poderia fazer surgir seu antípoda extremo, a monarquia legitimista, no momento em que o partido orleanista era apenas, ainda, o vencido de fevereiro, em que Bonaparte era apenas, ainda, o vencedor de 10 de dezembro, e em que nenhum dos dois podia ainda opor à usurpação republicana outra coisa que não os seus títulos monarquistas igualmente usurpados. Os legitimistas tinham consciência que o momento era favorável; conspiravam à luz do dia. Com o general Cavaignac, eles podiam esperar encontrar o seu Monk. O advento da monarquia branca era proclamado tão abertamente em suas associações políticas quanto o advento da república vermelha nas associações políticas proletárias. Por uma rebelião felizmente reprimida, o ministério teria se livrado de todas as dificuldades. "A legalidade nos mata" bradava Odilon Barrot. Uma rebelião teria permitido, sob pretexto de segurança pública, dissolver a Constituinte, violar a Constituição no interesse da própria Constituição. A brutal intervenção de Odilon Barrot na Assembleia nacional, a proposta de dissolução das associações políticas, a destituição rumorosa de cinquenta prefeitos tricolores e sua substituição por monarquistas, a dissolução da garde mobile, o modo brutal com que Changarnier tratou seus comandantes, a reintegração de Lherminier, esse professor já impossível sob Guizot, a tolerância para com as fanfarronices legitimistas, eram também incitações à rebelião. Mas a rebelião continuava surda. Ela esperava o sinal da Constituinte, não do ministério. Enfim, chegou o 29 de janeiro, o dia em que se daria o pronunciamento sobre a proposta de Mathieu (de la Drôme), visando a rejeição incondicional da proposta de Rateau. Legitimistas, orleanístas, bonapartistas, garde mobile, La Montagne, associações políticas, todo mundo conspirava, nesse dia, tanto contra o pretenso inimigo quanto contra o considerado aliado. Bonaparte, a cavalo, passava em revista uma parte das tropas na Praça da Concórdia; Changarnier se pavoneava em uma grande demonstração de manobras estratégicas. A Constituinte encontrou sua sala de sessões ocupada militarmente. Ela, o centro onde se cruzavam todas as esperanças, as crenças, as expectativas, as fermentações, as tensões, as conjurações, a Assembleia com coragem de leão não hesitou mais um instante quando chegou mais perto do que nunca ao momento de entregar a alma. Ela parecia aquele combatente que temia não somente usar suas próprias armas, mas se acreditava igualmente no dever se conservar intactas as armas do adversário. Desprezando a morte, ela assinou sua sentença de morte e rejeitou a rejeição incondicional da proposta Rateau. Ela própria em estado de sítio impôs à sua atividade constituinte limites cuja moldura necessária tinha sido o estado de sítio de Paris. Ela vingou-se de uma forma digna de si decidindo, no dia seguinte, um inquérito sobre o susto que o ministério lhe causara em 29 de janeiro. La Montagne deu provas de sua falta de energia revolucionária e de sentido político ao deixar o partido do National fazer dela o arauto das forças armadas naquela comédia de intrigas. Esse partido fizera uma última tentativa para manter uma vez mais, na República constituída, o monopólio do poder que ele havia possuído durante o período de formação da República burguesa. Tal tentativa fracassou. Se na crise de janeiro tratava-se da existência da Constituinte, na crise de 21 de março tratava-se da existência da Constituição. Não está mais em questão o pessoal do partido nacional, desta vez, mas o seu ideal. Não precisamos mencionar que os republicanos fizeram pagar menos caro o sentimento elevado que tinham de sua ideologia do que o gozo terreno do poder governamental. Em 21 de março, a ordem do dia da Assembleia nacional incluía o projeto de lei de Faucher contra o direito de associação: a proibição das associações políticas. O artigo oito da Constituição garantia a todos os franceses o direito de associação. A proibição das associações políticas era então um atentado absolutamente claro à Constituição; e a Constituinte devia ela própria canonizar a profanação de seus santos. Mas as associações políticas eram os pontos de agrupamento, os lugares de conspiração do proletariado revolucionário. A própria Assembleia nacional havia proibido a coligação dos operários contra os seus burgueses. E as associações políticas eram outra coisa senão a coligação de toda a classe operária contra toda a classe burguesa, a formação de um Estado operário contra o Estado burguês? Não eram eles tanto Assembleias constituintes do proletariado quanto destacamentos a postos do exército da revolta? O que a Constituinte devia constituir, antes de tudo, era a dominação da burguesia. A Constituição não podia, então, manifestamente, entender por direito de associação outra coisa que não as associações em acordo com a dominação da burguesia, ou seja, com ordem burguesa. Se, por conveniência teórica, ela se exprimia de maneira geral, o Governo não estava lá, assim como a Assembleia nacional, para interpretá-la e aplicá-la nos casos particulares? E se, na época antediluviana da República, as associações políticas foram proibidas de fato pelo estado de sitio, não era necessário proibi-las por lei na República regular, constituída? Os republicanos tricolores só tinham a opor a essa interpretação prosaica da Constituição uma fórmula redundante da Constituição. Uma parcela deles, Pagnerre, Duclerc, etc., votou pelo ministério, dando-lhe assim a maioria. A outra parcela, o arcanjo Cavaignac e o pai da Igreja Marrast à frente, se retirou quando o artigo sobre a proibição das associações políticas passou a uma comissão especial e, com Ledru-Rollin e La Montagne, "reuniu conselho". A Assembleia nacional estava paralisada, não tinha mais quorum. Monsieur Crémieux, no gabinete, se lembrou a tempo que esse gabinete dava direto para a rua e que não se estava mais em fevereiro de 1848, mas em março de 1849. De repente iluminado, o partido do National entrou de novo na sala de sessões da Assembleia nacional. Vinha seguido de La Montagne uma vez mais enganada, que, constantemente atormentada por anseios revolucionários, procurava também constantemente possibilidades constitucionais e se sentia sempre melhor em seu lugar atrás dos republicanos burgueses do que na frente do proletariado revolucionário. A comédia estava encenada. E fora a Constituinte, a própria, que havia decretado que a violação da letra da Constituição era a única realização de acordo com o seu espírito. Só restava um ponto a acertar: as relações da República constituída com a revolução europeia, sua política estrangeira. Em 8 de maio de 1849, uma agitação desusada reinava na Assembleia constituinte, cujo mandato deveria expirar dali a alguns dias. O ataque do exército francês a Roma, seu recuo diante dos romanos, sua infâmia política e sua vergonha militar, o assassinato da República romana pela República francesa, a primeira campanha da Itália do segundo Bonaparte, estavam na ordem do dia. La Montagne havia mais uma vez jogado o seu grande trunfo; Ledru-Rollin havia depositado sobre a mesa do presidente o inevitável ato de acusação contra o ministério por violação da Constituição, e dessa vez também contra Bonaparte. O cenário de 8 de maio se repetiu mais tarde, em 13 de junho. Expliquemo-nos sobre a expedição romana. Logo em meados de novembro de 1848, Cavaignac tinha enviado uma frota de guerra a Civita-Vecchia para proteger o papa, colocá-lo a bordo e conduzi-lo à França. O papa devia abençoar a República legal e assegurar a eleição de Cavaignac à presidência. Com o papa, Cavaignac queria atrair os padres, com os padres os camponeses e com os camponeses a presidência. Propaganda eleitoral em seu objetivo imediato, a expedição de Cavaignac era ao mesmo tempo um protesto e uma ameaça contra a revolução romana. Era o germe da intervenção da França em favor do papa. Essa intervenção em favor do papa, com a Áustria e Nápoles, contra a República romana, foi decidida na primeira sessão do Conselho dos ministros de Bonaparte, em 23 de dezembro. Falloux no ministério era o papa em Roma e na Roma do papa. Bonaparte não precisava mais do papa para ser presidente dos camponeses, mas precisava do papa para conservar os camponeses do presidente. Foi a credulidade dos camponeses que fez dele um presidente. Com a fé eles perdiam sua credulidade e, com o papa, a fé. E os orleanistas e legitimistas coligados que reinavam em nome de Bonaparte! Antes de restaurar o rei, era preciso restaurar o poder que consagra os reis. Abstração feita de seu monarquismo: sem a velha Roma submissa ao seu poder temporal, nada de papa; sem papa, nada de catolicismo, nada de religião francesa; e sem religião o que seria da velha sociedade francesa? A hipoteca que o camponês possui sobre os bens celestiais garante a hipoteca que o burguês possui sobre os bens do camponês. A revolução romana era, então, um atentado contra a propriedade, contra a ordem burguesa, tão terrível quanto a revolução de junho. A dominação burguesa restaurada na França exigia a restauração da dominação pontifical em Roma. Enfim, nos revolucionários romanos combatia-se os aliados dos revolucionários franceses. A aliança das classes contrarrevolucionárias na República francesa constituída tinha seu complemento necessário na aliança dessa República com a Santa-Aliança, com Nápoles e a Áustria. A decisão do conselho dos ministros de 23 de dezembro não era segredo para a Constituinte. Já em 8 de janeiro Ledru-Rollin havia interpelado o gabinete sobre este assunto. O ministério negou, a Assembleia nacional passou à ordem do dia. Confiava ela nas palavras do ministério? Sabemos que ela passou todo o mês de janeiro a lhe conceder votos de desconfiança. Mas se ele estava no seu papel de mentir, ela estava no seu papel de fingir acreditar em suas mentiras e de salvar, deste modo, as aparências republicanas. No entanto, Piemonte era derrotado. Charles-Albert abdicava. O exército austríaco batia às portas da França. Ledru-Rollin fez uma interpelação violenta. O ministério provou que só fez continuar na Itália do Norte a política de Cavaignac, e Cavaignac a política do Governo provisório, ou seja, de Ledru-Rollin. Além disso, desta vez, ele colheu um voto de confiança da Assembleia nacional e foi autorizado a ocupar temporariamente um lugar adequado na Alta Itália para auxiliar assim as negociações pacificas com a Áustria sobre a integridade do território sardo e sobre a questão romana. Como se sabe, o destino da Itália se decide nos campos de batalha da Itália do Norte. Eis por que Roma havia caído com a Lombardia e o Piemonte; ou então era preciso que a França declarasse guerra à Áustria e, em consequência. à contrarrevolução europeia. A Assembleia nacional constituinte tomava subitamente o ministério Barrot pelo Comitê de segurança pública, ou se tomava ela mesma pela Convenção? Por que então a ocupação militar de um ponto da Alta Itália? Escondia-se sob esse véu transparente a expedição contra Roma. Em 14 de abril, quatorze mil homens, sob o comando de Oudinot, navegaram em direção a Civita-Vecchia. Em 16 de abril, a Assembleia nacional concedeu ao ministério um crédito de um milhão e duzentos mil francos para a conservação, durante três meses, de uma frota de intervenção no Mediterrâneo. Ela dava assim ao ministério todos os meios para intervir contra Roma, enquanto fingia fazê-lo intervir contra a Áustria. Ela não via o que fazia o ministério, não ouvia o que ele dizia. Não se poderia encontrar tamanha fé em Israel: a Constituinte tinha chegado a não saber o que devia fazer a República constituinte. Enfim, em 8 de maio, representou-se a última cena da comédia. A Constituinte convidou o ministério a tomar medidas rápidas para reconduzir a expedição da Itália ao objetivo que lhe fora fixado. Bonaparte inseriu, na mesma tarde, uma carta no Moniteur em que endereçava a Oudinot suas mais vivas felicitações. Em 11 de maio, a Assembleia repelia o ato de acusação contra esse mesmo Bonaparte e seu ministério. E La Montagne que, em lugar de romper esse tecido de mentiras, levou a sério a comédia parlamentar para representar ela mesma, em seu seio, o papel de Fouquier-Tinville, não deixou transparecer sob a pele de leão emprestada da Convenção a pele de bezerro pequeno-burguês que lhe era natural! A segunda metade da existência da Constituinte se resume assim: ela reconhece, em 29 de janeiro, que as frações burguesas monarquistas são as líderes naturais da República constituída por ela; em 21 de março, que a violação da Constituição é sua realização; e, em 11 de maio, que a aliança passiva enfaticamente proclamada da República francesa com os povos em luta significa sua aliança ativa com a contrarrevolução europeia, Esta miserável Assembleia deixou a cena depois de se ter dado, dois dias antes do seu aniversário de nascimento, em 4 de maio, a satisfação de rejeitar a proposta de anistia em favor dos insurrectos de junho. Com seu poder despedaçado, odiada de morte pelo povo, repelida, maltratada, afastada com desdém pela burguesia da qual era instrumento, constrangida na segunda metade de sua existência a renegar a primeira, destituída de sua ilusão republicana, sem grandes realizações no passado, sem esperanças no futuro, corpo vivo se decompondo em pedaços, ela não sabia reanimar seu próprio cadáver a não ser lembrando constantemente a vitória de junho, revivendo-a em seguida; ela se sustentava amaldiçoando sempre outra vez os malditos. Vampiro que vivia do sangue dos insurrectos de junho. Ela deixava atrás de si o déficit público aumentado pelas despesas da insurreição de junho, pela supressão do imposto sobre o sal, pelas indenizações concedidas aos plantadores com a abolição da escravatura, pelos gastos com a expedição romana e pela supressão do imposto sobre as bebidas, cuja abolição ela decidiu já nos seus últimos estertores; velha dama com maligna alegria, feliz por colocar sobre os ombros do seu satisfeito herdeiro uma comprometedora dívida de honra. Desde o inicio de março a agitação eleitoral havia começado em favor da Assembleia nacional legislativa. Dois grupos principais se confrontavam: o partido da ordem e o partido democrata-socialista ou partido vermelho. Entre eles se encontravam os amigos da Constituição, em nome dos quais os republicanos tricolores do National tentavam representar um partido. O partido da ordem se formou imediatamente depois das jornadas de junho; foi apenas depois que o 10 de dezembro lhe permitiu afastar a "igrejinha" do National, dos republicanos burgueses, que se revelou o segredo de sua existência, a coalizão de orleanistas e legitimistas em um partido. A classe burguesa estava dividida em duas grandes frações que, uma de cada vez - a grande propriedade imóvel sob a Restauração, a aristocracia financeira, e a burguesia industrial sob a monarquia de julho -, tinham guardado o monopólio do poder. Bourbon era o nome real cobrindo a influência preponderante dos interesses de uma das frações. Orléans era o que cobria a influência preponderante dos interesses da outra fração: o reinado anônimo da República era o único jugo sob o qual as duas frações podiam manter com poder legal seus interesses comuns de classe sem renunciar à rivalidade recíproca. Se a República burguesa não podia ser outra coisa senão a dominação acabada, perfeitamente clara, de toda a classe burguesa, podia ela ser outra coisa senão a dominação dos orleanistas completados pelos legitimistas e dos legitimistas completados pelos orleanistas, a síntese de Restauração e da monarquia de julho? Os republicanos burgueses do National não representavam uma grande fração de sua classe sob o ponto de vista econômico. Eles tinham como única importância e como único título histórico o fato de, sob a monarquia, ante as duas frações burguesas que apenas compreendiam seu regime particular, terem feito valer o regime geral da classe burguesa, o regime anônimo da República que eles idealizavam e enfeitavam com arabescos antigos, mas onde saudavam antes de tudo a dominação do seu grupo. Se o partido do National duvidou da própria lucidez ao perceber na cúpula da República que ele havia criado os monarquistas coligados, estes não se enganaram menos, eles próprios, sobre sua dominação unificada. Eles não compreendiam que, se alguma de suas frações consideradas à parte era monarquista, o resultado de sua combinação química deveria ser necessariamente republicana, e que a monarquia branca e a monarquia azul deviam necessariamente se neutralizar na República tricolor. Obrigadas, por sua oposição ao proletariado revolucionário e às classes intermediárias que agrupavam cada vez mais ao seu redor, a recrutar suas forças conjugadas, cada uma das frações do partido da ordem, ante os desejos de restauração e de hegemonia da outra, era levada a fazer prevalecer a dominação comum, ou seja, a forma republicana da dominação burguesa. Assim, esses monarquistas que a princípio acreditavam em uma restauração imediata, e que mais tarde, conservando a forma republicana, espumavam mortais invectivas contra ela, eis que eles, finalmente, reconhecem não poder se pôr em acordo a não ser na República e adiam para uma data indeterminada a Restauração. A volúpia comum do poder fortificava cada uma das duas frações e a tornava ainda mais incapaz e menos disposta a se subordinar à outra, melhor dizendo, a restaurar a monarquia. O partido da ordem proclamou diretamente em seu programa eleitoral a dominação da classe burguesa, ou seja, a manutenção das condições de existência de sua dominação, da propriedade, da família, da religião, da ordem! Ele apresentava naturalmente sua dominação de classe e as condições de sua dominação de classe como as condições necessárias à produção material, assim como às relações sociais daí decorrentes. O partido da ordem dispunha de recursos enormes. Ele organizou suas sucursais em toda a França; teve a seu soldo todos os ideólogos da antiga sociedade, dispunha da influência do poder governamental existente; possuía um exército de vassalos espontâneos em toda a massa de pequenos burgueses e camponeses que, ainda afastados do movimento revolucionário, viam nos grandes dignitários da propriedade os representantes naturais de sua pequena propriedade e de seus pequenos preconceitos; representado que estava em todo o país por uma infinidade de reizinhos, ele podia punir o repúdio de seus candidatos como uma insurreição, demitir os operários rebeldes, os trabalhadores agrícolas, domésticos, pequenos funcionários, empregados das estradas de ferro, os burocratas recalcitrantes, todos os funcionários que lhe eram burguesamente subordinados. Ele podia, enfim, por isso e por aquilo, manter a ilusão de que a Constituinte republicana havia impedido o Bonaparte de 10 de dezembro de manifestar as suas forças miraculosas. No partido da ordem, não mencionamos os bonapartistas. Eles não eram uma fração séria da classe burguesa, mas um amontoado de velhos inválidos e supersticiosos, e de jovens e incrédulos cavalheiros da indústria. O partido da ordem triunfou nas eleições e mandou uma grande maioria para a Assembleia legislativa. Ante a classe burguesa contrarrevolucionária coligada, os partidos já revolucionários da pequena burguesia e da classe camponesa teria naturalmente que se ligar ao grande dignitário dos interesses revolucionários, ao proletariado revolucionário. Vimos que os porta vozes democratas da pequena burguesia no Parlamento, ou seja, La Montagne, tinham sido atirados pelas derrotas parlamentares em direção aos porta-vozes socialistas do proletariado, e que a verdadeira pequena burguesia fora do Parlamento tinha sido atirada em direção aos verdadeiros proletários pelas concordatas amigáveis, pela preponderância dos interesses burgueses, pela bancarrota. Em 27 de janeiro, La Montagne e os socialistas haviam festejado sua reconciliação; eles renovaram, no grande banquete de fevereiro de 1849, seu pacto de aliança. O partido social e o partido democrático, o partido dos operários e o partido da pequena burguesia, uniram-se no Partido Socialdemocrata, ou seja, no partido vermelho. Paralisada alguns instantes pela agonia que se seguiu às jornadas de junho, a República francesa, depois da suspensão do estado de sítio, depois de 14 de outubro, tinha atravessado uma série contínua de emoções febris. Antes de tudo, a luta pela presidência; depois; a luta do presidente contra a Constituinte; a luta pelas associações políticas; o processo de Bourges, que, diante das pequenas figuras do presidente, dos monarquistas coligados, dos republicanos legais, de La Montagne democrática, dos doutrinários socialistas do proletariado, fez surgirem os verdadeiros revolucionários deste mesmo proletariado como monstros antediluvianos deixados na superfície da sociedade por um dilúvio, ou ainda como se, sozinhos, eles pudessem preceder a um dilúvio social; a agitação eleitoral; a execução dos assassinos de Bréa, os ataques contínuos da imprensa, as invasões policiais violentas do Governo nos banquetes; as provocações monarquistas impudentes; a exposição das figuras de Louis Blanc e de Gaussidiêre à execração pública; a luta ininterrupta entre a República constituída e a Constituinte que fazia, a cada instante, a revolução voltar ao ponto de partida, que fazia, a cada instante, do vencedor o vencido, do vencido o vencedor, que, em um piscar de olhos, lançava por terra a posição dos partidos e das classes, suas separações e suas ligações; a marcha rápida da contrarrevolução europeia; a luta gloriosa da Hungria, o recrutamento das defesas alemãs, a expedição romana, a vergonhosa derrota do exército francês ante Roma: nesse turbilhão, nessa penosa desordem histórica, nesse dramático fluxo e refluxo de paixões, de esperanças, de desilusões revolucionárias, as diversas classes da sociedade francesa teriam necessariamente que contar em semanas os seus períodos de desenvolvimento, assim como em outros tempos elas os contavam por meios séculos. Uma parcela importante dos camponeses e das províncias estava em revolução. Não apenas Napoleão os tinha decepcionado, mas também o partido vermelho lhes tinha oferecido em lugar do nome o conteúdo, em lugar da dispensa ilusória dos impostos o reembolso do bilhão pago aos legitimistas, a regulamentação das hipotecas e a supressão da usura. O próprio exército estava contaminado pela febre revolucionária. Votando em Bonaparte, havia votado pela vitória e ele lhe dava a derrota; havia votado pelo cabo atrás do qual se esconde o grande capitão revolucionário, e ele lhe devolvia os grandes generais atrás dos quais se dissimula o cabo perito em botões de polainas. Não resta dúvida que o partido vermelho, ou seja, o Partido Democrático coligado, na falta de vitória, pensava festejar pelo menos o grande triunfo de que Paris, o exército, uma respeitável parcela das províncias votariam nele. Ledru-Rollín, o líder de La Montagne, foi eleito por cinco departamentos. Nenhum dos líderes do partido da ordem conseguiu semelhante vitória. Nenhum nome do partido proletário propriamente dito. Esta eleição nos revela o segredo do Partido Democrata-Socialista. Se La Montagne, vanguarda parlamentar da pequena burguesia democrata, era, por um lado, forçado a se unir aos doutrinários socialistas do proletariado, este, forçado pela formidável derrota material de junho a se reerguer através das vitórias intelectuais, não estando ainda em condições, visto o desenvolvimento das outras classes, de se apoderar da ditadura revolucionária, era obrigado a se lançar nos braços dos doutrinários de sua emancipação, dos fundadores de seitas socialistas; por outro lado, os camponeses revolucionários, o exército, as províncias se colocavam atrás de La Montagne que, assim, se tornava a líder do acampamento do exército revolucionário, e, por seu acordo com os socialistas, tinha afastado todo antagonismo no partido revolucionário. Na última metade da existência da Constituição, La Montagne, nela, representava o pathos republicano e tinha feito esquecer seus pecados do tempo do Governo provisório, da Comissão executiva e das jornadas de junho. A medida que o partido do National, conforme sua natureza indecisa, se deixava esmagar pelo ministério monarquista, o partido de La Montagne, afastado durante a onipotência do National, crescia e prevalecia enquanto representante parlamentar da Revolução. Com efeito, o partido do National nada tinha a opor às frações monarquistas a não ser personalidades ambiciosas e banalidades idealistas. O partido de La Montagne, ao contrário, representava uma massa flutuante entre a burguesia e o proletariado cujos interesses materiais exigiam instituições democráticas. Ante aos Cavaignacs e aos Marrasts, Ledru-Rollín e La Montagne se encontravam, por consequência, na verdade da revolução e tiravam da consciência dessa grave situação uma coragem ainda maior, visto que a manifestação da energia revolucionária se limitava a saídas parlamentares, à entrega de atos de acusação, às ameaças, às explosões de vozes, aos discursos tonitruantes e a extremismos que não ultrapassavam o nível das palavras. Os camponeses se achavam quase na mesma situação dos pequenos burgueses; tinham quase as mesmas reivindicações sociais a fazer. Todas as camadas médias da sociedade, à medida que eram exercitadas no movimento revolucionário, teriam que necessariamente encontrar o seu herói em Ledru-Rollin. Ele era o personagem da pequena burguesia democrática. Face ao partido da ordem, era precisamente os reformadores dessa ordem, meio conservadores, meio revolucionários e absolutamente utópicos, que deviam antes de tudo ser lançados na frente. O partido do National, os "amigos da própria Constituição", "os republicanos puros e simples", foram completamente derrotados nas eleições. Uma ínfima minoria entre eles foi mandada à Câmara legislativa. Seus líderes mais notórios desapareceram de cena, até mesmo Marrast, o redator-chefe, o Orfeu da República legal. Em 28 de maio, a Assembleia legislativa se reuniu; em 11 de junho, o choque de 8 de maio se repetiu. Ledru-Rollin colocou, em nome de La Montagne, um pedido de acusação contra o presidente e o ministério por violação da Constituição por causa do ataque a Roma. Em 12 de junho, a Assembleia legislativa rejeitou o pedido de acusação, assim como a Assembleia constituinte o havia rejeitado em 11 de maio; mas, desta vez, o proletariado mandou La Montagne para a rua, não, porém, para o combate de rua, mas para a manifestação de rua. Basta dizer que La Montagne estava à frente desse movimento para que se saiba que o movimento foi derrotado e que junho de 1849 foi uma caricatura, tão ridícula quanto indigna, de junho de 1848. A grande retirada de 13 de junho só não foi eclipsada pelo relato ainda maior da batalha feito por Changarnier, o grande homem que improvisou o partido da ordem. Cada momento social precisa de seus grandes homens; e se ela não os encontra, ela os inventa, como disse Helvetius. Em 20 de dezembro, existia apenas metade da República burguesa constituída, o presidente; em 29 de maio, ela foi completada pela outra metade, a Assembleia legislativa, Em junho de 1848, a República burguesa que se constituía havia gravado o seu nascimento nos anais da história com uma batalha inexprimível contra o proletariado; em junho de 1849, a República burguesa constituída fez o mesmo, mas com uma comédia inenarrável, representada com a burguesia. Junho de 1849 foi a Nêmesis de junho de 1848. Em junho de 1849, não foram os operários os vencidos, mas os pequenos burgueses colocados entre eles e a revolução foram os derrotados. Junho de 1849 não era a tragédia sangrenta entre o trabalho assalariado e o capital, mas o espetáculo rico em cenas de prisões, o espetáculo lamentável entre o devedor e o credor. O partido da ordem tinha vencido, era o todo-poderoso, precisava agora mostrar quem ele era. III De 13 de junho de 1849 a 10 de março de 1850 Em 20 de dezembro, a cabeça de Jano da República constitucional só havia mostrado uma de suas faces, a face executiva, sob os traços indecisos e inexpressivos de Luís Bonaparte: em 29 de maio de 1849, ela mostrou sua segunda face, a legislativa, vincada de rugas deixadas pelas orgias da Restauração e da monarquia de julho. Com a Assembleia nacional legislativa, a República constitucional aparecia, pronta, sob sua forma estática republicana em que a dominação da classe burguesa está constituída, a dominação comum das duas grandes frações monarquistas que formam a burguesia francesa, os legitimistas e os orleanistas coligados, o partido da ordem. Enquanto a República francesa se tornava assim propriedade da coalizão dos partidos monarquistas, a coalizão europeia das potências contrarrevolucionárias empreendia, no mesmo movimento, uma cruzada geral contra os últimos refúgios das revoluções de março. A Rússia invadia violentamente a Hungria, a Prússia marchava contra o exército constitucional do Império e Oudinot atacava Roma. A crise europeia aproximava-se manifestamente de uma reviravolta decisiva. Os olhos de toda a Europa estavam fixados sobre Paris, os olhos de toda Paris sobre a Assembleia legislativa. Em 11 de junho, Ledru-Rollin subiu à tribuna, não fez nenhum discurso, e formulou um requisitório contra os ministros, nu, sem aparatos, baseado nos fatos, concentrado, violento. O ataque contra Roma é um ataque contra a Constituição, o ataque contra a República romana, um ataque contra a República francesa. O artigo cinco da Constituição diz: "A República francesa não emprega jamais suas forças contra a liberdade de nenhum povo", e o presidente dirige o exército francês contra a liberdade romana. O artigo cinquenta e quatro da Constituição proíbe ao poder executivo declarar qualquer guerra sem o consentimento da Assembleia nacional. A decisão da Constituinte de 8 de maio ordena expressamente aos ministros que reconduzam o mais rapidamente possível a expedição romana à sua determinação original; proíbe então, também expressamente, a guerra contra Roma - e Oudinott ataca Roma. Assim Ledru-Rollin convocou a própria Constituição como testemunha de acusação contra Bonaparte e seus ministros. A medida monarquista da Assembleia nacional ele lançou em rosto, ele, o tribuno da Constituição, esta declaração ameaçadora: "Os republicanos saberão fazer respeitar a Constituição por todos os meios, até mesmo pela força das armas!" "Pela força das armas!", repetiu o eco de cem vozes de La Montagne. A maioria respondeu com um tumulto terrível. O presidente da Assembleia nacional chamou Ledru-Rollin à ordem. Ledru-Rollin repetiu sua declaração provocante e depôs finalmente sobre a mesa a proposta de acusação de Bonaparte e seus ministros. A Assembleia nacional, por trezentos e sessenta e um votos contra duzentos e três, decidiu, a propósito do ataque a Roma, pura e simplesmente passar à ordem do dia. Ledru-Rollin acreditava poder derrotar a Assembleia nacional com a Constituição e o presidente com a Assembleia nacional? A Constituição proibia, é verdade, qualquer ataque contra a liberdade de países estrangeiros, mas o que o exército francês atacava em Roma não era, segundo o ministério, a "liberdade", mas o "despotismo da anarquia". A despeito de todas as experiências na Assembleia constituinte, La Montagne ainda não havia compreendido que a interpretação da Constituição pertencia apenas àqueles que a tinham feito aceitar? Que era preciso que o seu texto fosse interpretado em seu sentido viável e que o sentido burguês era o seu único sentido viável? Que Bonaparte e a maioria monarquista da Assembleia nacional eram os intérpretes autênticos da Constituição, como o padre é o intérprete autêntico da Bíblia, e o juiz o intérprete autêntico da Lei? A Assembleia nacional recém saída das eleições gerais iria se deixar acorrentar pelas disposições testamentárias da Constituinte morta, cuja vontade um Odilon Barrot havia feito em pedaços em plena vida? Referindo-se à decisão da Constituinte de 8 de maio, Ledru-Rollín tinha esquecido que essa mesma Constituinte rejeitara em 11 de maio sua primeira proposta de acusação a Bonaparte e seus ministros, que ela absolvera o presidente e os ministros, que ela, assim, sancionara como "constitucional" o ataque contra Roma, que ele só fazia interpor recurso contra um julgamento já feito e que ele, enfim, chamava a Legislativa monarquista de Constituinte republicana? A própria Constituição recorria à insurreição conclamando, em um artigo especial, cada cidadão a defendê-la. Ledru-Rollin apoiou-se neste artigo. Mas os poderes públicos não são igualmente organizados para proteger a Constituição, e a violação da Constituição não começa somente a partir do momento em que um dos poderes públicos constitucionais se rebela contra o outro? E o presidente da República, os ministros da República, a Assembleia nacional da República estavam no acordo mais harmonioso. O que La Montagne procurava, em 11 de junho, era uma "insurreição nos limites da razão pura", ou seja, uma insurreição puramente parlamentar. Intimidada pela perspectiva de uma rebelião armada das massas populares, a maioria da Assembleia tinha que quebrar, em Bonaparte e seus ministros, o seu próprio poder e o significado de sua própria eleição. A Constituinte não havia procurado de modo análogo anular a eleição de Bonaparte, quando insistia com tanto ardor no afastamento do ministério Barrot-Falloux? Os exemplos de insurreições parlamentares nos tempos da Convenção não faltavam, quando tinham sido postas abaixo, de um só golpe, de alto a baixo, as relações de maioria a minoria - e por que a jovem Montagne não teria conseguido fazer o que havia conseguido a antiga? As condições do momento não pareciam desfavoráveis a tal empresa. A agitação social havia atingido em Paris um grau inquietante, o exército não parecia mais, segundo seus votos, muito inclinado ao Governo, a maioria legislativa era ainda recente, demais para se consolidar, e, além disso, se compunha de gente idosa. Se La Montagne conseguisse uma insurreição parlamentar, o leme do Estado ficaria Imediatamente entre suas mãos. Por seu lado, a pequena burguesia democrata, como sempre, não desejava nada mais impacientemente que ver começar a luta acima de sua cabeça, nas nuvens, entre os espíritos dos mortos do Parlamento. Enfim, ambos, a pequena burguesia democrata e seus representante, La Montagne, com uma insurreição parlamentar, realizavam seu grande objetivo: quebrar o poder da burguesia sem retirar as correntes do proletariado, ou sem fazê-lo de outra maneira que não em perspectiva; o proletariado seria usado sem que se tomasse perigoso. Depois do voto de 11 de junho da Assembleia nacional, uma entrevista entre alguns membros de La Montagne e delegados de sociedades secretas operárias teve lugar. Os delegados insistiram para que se iniciasse um movimento naquela mesma noite. La Montagne rejeitou resolutamente esse plano. Ela não queria, sob nenhum preço, deixar que se tirasse o leme de suas mãos; seus aliados lhe eram tão suspeitos quanto seus adversários, e com razão. A lembrança de junho de 1848 agitava mais vivamente do que nunca as fileiras do proletariado parisiense. Este, no entanto, estava preso à sua aliança com La Montagne. Ela representava o maior partido dos departamentos, abusava de sua influência no exército, dispunha da parcela democrática da guarda nacional, tinha atrás de si o poder moral do comércio. Começar a insurreição nesse momento, contra a sua vontade, era para o proletariado, dizimado aliás pela cólera, expulso em massa de Paris pelo desemprego, repetir inutilmente as jornadas de junho de 1848 sem as condições que haviam imposto àquele combate desesperado. Os delegados proletários fizeram a única coisa racional: conseguiram de La Montagne a promessa de realmente se expor, ou seja, de sair dos limites da luta parlamentar, no caso de seu ato de acusação ser rejeitado. Durante todo o 13 de junho o proletariado conservou essa atitude de observação cética e esperou um corpo-a-corpo inevitável, seriamente comprometedor e sem volta, entre a guarda nacional democrata e o exército, para se lançar então na batalha e levar rapidamente a revolução para além do objetivo pequeno burguês que lhe haviam determinado. Em caso de vitória, já se tinha constituído a Comuna proletária que deveria se pôr ao lado do Governo oficial. Os operários parisienses tinham aprendido a lição sangrenta de junho de 1848. Em 12 de junho, o ministro Lacrosse fez pessoalmente à Assembleia legislativa a proposta de ser passado logo à discussão o ato de acusação. Durante a noite, o Governo tinha tomado todas as providências para a defesa e o ataque; a maioria da Assembleia nacional estava resolvida a colocar na rua a minoria rebelde, a própria minoria não podia mais recuar, os dados estavam lançados, trezentos e setenta e sete votos contra oito rejeitaram o ato de acusação, La Montagne, que se abstivera de voto, precipitou-se resmungando no hall de propaganda e nos gabinetes da "Democracia pacífica". Uma vez afastada do prédio parlamentar, perdeu suas forças, assim como perdia as forças o gigante Anteu sempre que se afastava de sua mãe, a Terra. Sansões nos limites da Assembleia legislativa, eles foram apenas filisteus nos limites da "Democracia pacifica". Um debate desenrolou-se, longo, ruidoso, vazio. La Montagne estava resolvida a impor o respeito à Constituição por todos os meios, "menos pela força das armas". Ela foi apoiada em sua decisão por um manifesto e por uma delegação de "Amigos da Constituição". “Amigos da Constituição", assim se chamavam as ruínas da "igrejinha" no National, do partido burguês republicano. Enquanto, dos representantes parlamentares que lhe restavam, seis tinham votado contra a rejeição do ato de acusação e todos os outros a favor, enquanto Cavaignac punha o seu sabre à disposição do partido da ordem, a maior parte extraparlamentar da "igrejinha" aproveitava avidamente a ocasião de sair de sua posição de pária político e de entrar em massa nas fileiras do Partido Democrata. Não pareciam eles como arautos naturais desse Partido que se escondia por trás de seu escudo, debaixo de seu princípio, debaixo da Constituição? La Montagne ficou trabalhando até o amanhecer. Ela deu à luz uma "proclamação ao povo", que surgiu na manhã de 13 de junho em dois jornais socialistas, em um lugar mais ou menos humilhante. Ela declarava o presidente, os ministros, a maioria da Assembleia legislativa "à margem da constituição" e convidava a guarda nacional, o exército e por fim também o povo "a se revoltar". "Viva a Constituição!", era a palavra de ordem lançada, palavra de ordem que não significava outra coisa senão "Abaixo a revolução!" A essa proclamação constitucional de La Montagne correspondeu, em 13 de junho, ao que se pode chamar de uma demonstração pacífica dos pequenos burgueses, ou seja, uma passeata que saiu do Château-dEau e passou pelos boulevards: trinta mil homens, na maioria da guarda nacional, sem armas, misturados a membros de seções operárias secretas, desfilando aos gritos de "Viva a Constituição! ", lançados de maneira mecânica, glacial, pelos próprios participantes da passeata e que o eco do povo que se precipitava sobre as calçadas repetia ironicamente em lugar de engrossar, como se fosse um trovão. A esse canto de múltiplas vozes faltava a voz do coração. E quando o cortejo passou diante da sede dos "Amigos da Constituição" e surgiu no alto da casa um arauto a soldo da Constituição, o qual, rompendo o ar com um gesto decidido do seu chapéu alto, fez chover dos pulmões ciclópicos, como uma chuva de granizo sobre a cabeça dos peregrinos, a palavra de ordem: "Viva a Constituição!", esses mesmos peregrinos pareceram por um instante vencidos pelo cômico da situação. Sabe-se que o cortejo chegou aos bouleoarês, na entrada da Rue de Ia Paix foi recebido de uma forma muito pouco parlamentar pelos dragões e caçadores de Changarnier e se dispersou em todas as direções, lançando ainda atrás de si alguns raquíticos gritos de "As armas!", a fim de que se completasse a chamada parlamentar às armas de 11 de junho. A maioria de La Montagne, reunida na Rue du Hasard, desapareceu quando essa dispersão brutal do desfile pacifico, boatos confusos de assassinato de cidadãos desarmados nos boulevards, o tumulto crescente na rua, tudo parecia anunciar a proximidade de um motim. A frente de um pequeno grupo de deputados, Ledru-Rollin salvou a honra de La Montagme. Sob a proteção da artilharia de Paris, que se tinha unido no Palácio nacional, eles rumaram ao Conservatório de Artes e Ofícios, onde a quinta e a sexta legiões deveriam chegar. Mas foi em vão que os montagnards esperaram pelas quinta e sexta legiões: estes prudentes guardas nacionais deixaram na dúvida os seus representantes, a artilharia de Paris impediu, ela própria, o povo de reerguer barricadas, um caos confuso tornava qualquer decisão impossível, as tropas de linha avançaram, as baionetas cruzadas, uma parte dos representantes foi feita prisioneira, a outra parte escapou. Assim termina o 13 de junho. Se 23 de junho de 1848 foi a insurreição do proletariado revolucionário, 13 de junho de 1848 foi a insurreição dos pequenos burgueses democratas, cada uma dessas duas insurreições sendo a expressão pura, típica, da classe que a dirigia. Apenas em Lyon se chegou a um conflito encarniçado, sangrento. Naquela cidade onde a burguesia e o proletariado se acham diretamente face a face, onde o movimento operário não é, como em Paris, envolvido e determinado pelo movimento geral, o 13 de junho perdeu, por consequência, seu caráter primitivo. Nos lugares da província, porém, onde ele explodiu, não incendiou - foi um clarão de entusiasmo. 13 de junho fechou o primeiro período de existência da República constitucional que havia começado sua vida normal, em 29 de maio de 1849, com a reunião da Assembleia legislativa. Todo o tempo que durou esse prólogo é preenchido pela luta ruidosa entre o partido da ordem e La Montagne, entre a burguesia e a pequena burguesia que se irrita inutilmente contra o estabelecimento da República burguesa em favor da qual ela havia conspirado, ela própria, ininterruptamente, no Governo provisório e na Comissão executiva, e pela qual ela havia lutado fanaticamente contra o proletariado durante as jornadas de junho. O 13 de junho quebrou sua resistência e fez da ditadura legislativa dos monarquistas unificados um fato consumado. A partir desse momento, a Assembleia nacional é apenas o Comitê de segurança pública do partido da ordem. Paris tinha posto sob "acusação" o presidente, os ministros e a maioria da Assembleia nacional; estes viram Paris em "estado de sítio". La Montagne tinha declarado a maioria da Assembleia "à margem da Constituição", a maioria citou La Montagne ante a Alta Corte por violação da Constituição e tornou proscrito tudo o que havia ainda de vigoroso no seu seio. Enfraqueceram-na a ponto de reduzi-la a um tronco sem cabeça nem coração. A minoria tinha chegado até a tentar uma insurreição parlamentar; a maioria elevou seu despotismo parlamentar ao nível de uma lei. Ela decretou um novo regulamento que suprimia a liberdade da tribuna e dava poder ao presidente da Assembleia nacional para punir por perturbação da ordem os representantes através da censura, da multa, da suspensão da imunidade parlamentar, da expulsão temporária, da prisão. Por cima do tronco de La Montagne, a maioria suspendeu não a espada, mas a chibata. O que restava dos deputados de La Montagne deveria, por uma questão de honra, se retirar em massa. A dissolução do partido da ordem tinha sido acelerada por tal ato. Ele só podia se decompor em seus elementos originais, a partir do momento em que a aparência de uma oposição não os mantinha mais unidos. Ao mesmo tempo em que se os privava de sua força parlamentar, se despojava os pequenos burgueses democratas de sua força armada, dispensava-se a artilharia parisiense, assim como as oitava, nona e décima segunda legiões da guarda nacional. Em compensação, a legião da alta finança, que em 13 de junho havia assaltado as gráficas de Boulé e de Roux, quebrado as prensas, devastado os escritórios dos jornais republicanos, detido arbitrariamente redatores, compositores, impressores, expedidores, contínuos, essa legião recebeu do alto da tribuna uma aprovação encorajadora. Por toda a extensão da França se repetia a dissolução de todas as guardas nacionais suspeitas de republicanismo. Uma nova lei contra a imprensa, uma nova lei contra as associações, uma nova lei sobre o estado de sítio, as prisões de Paris superlotadas, os refugiados políticos perseguidos, todos os jornais fora das posições do National suspensos. Lyon e os cinco departamento limítrofes entregues à chicana brutal do despotismo militar, os substitutos presentes por todo lado, a multidão de funcionários já frequentemente tão selecionada, mais uma vez selecionada, tais como os lugares-comuns inevitáveis que repete sem cessar a reação vitoriosa e que, depois dos massacres e as deportações de junho, só merecem ser mencionadas porque, desta vez, foram dirigidos contra Paris, e também contra os departamentos, contra o proletariado e sobretudo as classes médias. As leis repressivas que remetiam à decisão do Governo a proclamação do estado de sítio, estrangulavam ainda mais fortemente a imprensa e suprimiam o direito de associação, absorveram toda a atividade legislativa da Assembleia nacional durante os meses de junho, julho e agosto. No entanto, essa época se caracteriza não pela exploração de fato, mas de principio, não pelas decisões da Assembleia nacional, mas pela exposição dos motivos dessas decisões, não pela realidade, mas pela palavra, não pela palavra, mas pela entonação e pelo gesto que animam a palavra. A expressão insolente, desrespeitosa, das opiniões monarquistas, os insultos de uma superioridade desdenhosa contra a República, a divulgação com afetação frívola dos projetos de restauração, em uma palavra, a violação fanfarrona das normas republicanas, dão a esse período sua tonalidade e sua cor particulares. "Viva a Constituição!", foi o grito de batalha dos vencidos de 13 de junho. Os vencedores estavam então desligados da hipocrisia da linguagem constitucional, ou seja, republicana. A contrarrevolução submetia a Hungria, a Itália, a Alemanha, e acreditava-se, já, estar a Restauração às portas da França. Teve início uma verdadeira concorrência para ver quem abria a dança entre os líderes das frações da ordem, alardeando seu monarquismo no Moniteur, se confessando a se arrependendo dos pecados que pudessem ter cometido pelo liberalismo sob a República e implorando perdão a Deus e aos homens. Não se passava um dia sem que na tribuna da Assembleia nacional a revolução fosse declarada uma desgraça publica, sem que um fidalguete legitimista qualquer de província constatasse solenemente que jamais havia reconhecido a República, sem que um dos desertores e traidores poltrões da monarquia de julho contasse, extemporaneamente, as proezas heroicas que somente a filantropia de Luís-Filipe ou de outros mal entendidos o haviam impedido de realizar. O que se devia admirar nas jornadas de fevereiro não era a generosidade do povo vencedor, mas a abnegação e a moderação dos monarquistas que lhe haviam permitido vencer. Um representante do povo propôs que uma parte dos recursos destinados aos feridos de fevereiro fosse atribuída aos guardas nacionais que, naquelas jornadas, tinham tão bem honrado a pátria. Outro queria que se decretasse fosse erguida uma estátua equestre ao duque de Orléans na Praça do Carrossel. Thiers tratou a Constituição de "pedaço de papel sujo". Uns após outros surgiam na tribuna orleanistas que lamentavam ter conspirado contra a monarquia legítima, legitimistas que se reprovavam por ter acelerado a queda da monarquia em geral com sua rebelião contra a monarquia ilegítima. Thiers que lamentava ter intrigado contra Molé, Molé contra Guizot, Barrot contra todos os três. O grito de "Viva a República socialdemocrata!" foi considerado inconstitucional. O grito de "Viva a República!" foi acusado de socialdemocrata. No dia do aniversário da batalha de Waterloo, um representante declarou: "Eu receio menos a invasão dos prussianos que a volta à França dos exilados revolucionários." As queixas contra o terrorismo organizado em Lyon e nos departamentos vizinhos, Baraguay dHilliers respondeu: "Prefiro o terror branco ao terror vermelho." E a Assembleia prorrompia em aplausos frenéticos cada vez que um epigrama contra a Revolução, contra a República, contra a Constituição, a favor da monarquia, a favor da Santa-Aliança, caía dos lábios de seus oradores. Cada violação das menores formalidades republicanas - não chamar, por exemplo, os representantes de "cidadãos" - entusiasmava os cavalheiros da ordem. As eleições complementares de 8 de julho em Paris, realizadas sob a influência do estado de sítio e com a abstenção de grande parte do proletariado, a ocupação de Roma pelo exército francês, a entrada em cortejo das Eminências vermelhas e, após elas, da Inquisição e do terrorismo dos monges em Roma, todos esses acontecimentos trouxeram novas vitórias à vitória de junho e aumentaram a embriaguês do partido da ordem. Enfim, em meados de agosto, metade com a intenção de assistir aos Conselhos gerais que vinha de se reunir, metade por cansaço das orgias ideológicas que duravam há muitos meses, os monarquistas decretaram um recesso de dois meses da Assembleia nacional. Com visível ironia, eles deixaram uma comissão de vinte e cinco representantes, a nata dos legitimistas e dos orleanistas, um Molé, um Changarnier, como representantes da Assembleia nacional e guardiães da República. A ironia era maior do que eles pensavam. Condenados pela história a ajudar a derrubada da monarquia que amavam, eles eram designados por ela para conservar a República que odiavam. Com o recesso da Assembleia legislativa, terminou o segundo período da existência da República constitucional, seu período de folia monarquista. O estado de sítio em Paris uma vez suspenso, a ação da imprensa foi retomada. Durante a suspensão dos jornais socialdemocratas, no período da legislação repressiva e das insanidades monarquistas, o Siècle, o velho representante literário dos pequenos burgueses monarquistas constitucionais, se republicanizou; La Presse, o velho representante literário dos reformadores burgueses, se democratizou; Le National, o velho órgão clássico dos burgueses republicanos, se socializou. As sociedades secretas cresciam em extensão e em intensidade, à medida que as associações políticas públicas se tornavam impossíveis. As associações industriais operárias, toleradas como sociedades puramente comerciais, sem qualquer valor econômico, tornavam-se, sob o ponto de vista político, também meios de unir o proletariado. O 13 de junho havia tirado dos diferentes partidos semi revolucionários os seus líderes oficiais; as massas que ficaram ganharam com isso a vantagem de agir por iniciativa própria. Os cavalheiros da ordem haviam intimidado profetizando os horrores da República vermelha; os excessos grosseiros, as atrocidades hiperbóreas da contrarrevolução vitoriosa na Hungria, em Bade, em Roma, desculparam a "República vermelha". Quanto às camadas intermediárias descontentes da sociedade francesa, elas começavam a preferir os sermões da República vermelha com suas atrocidades problemáticas às atrocidades da monarquia branca, com seu caráter de desespero real. Nenhum socialista na França fez mais propaganda revolucionária do que Haynau. A cada capacidade de acordo com as suas obras! No entanto, Luís Bonaparte tirava proveito das férias da Assembleia nacional para fazer viagens principescas pelas províncias; os legitimistas mais ardentes iam em peregrinação a Ems, junto ao descendente de São Luís, e a multidão de representantes do povo, amigos da ordem, faziam intrigas nos conselhos gerais que acabavam de se reunir. Tratava-se de fazê-los exprimir o que a maioria da Assembleia nacional ainda não ousava dizer, a declaração de urgência de uma revisão imediata da Constituição. Constitucionalmente, a Constituição não podia ser revisada senão em 1852 e por uma Assembleia nacional convocada especialmente para isso. Mas se a maioria dos conselhos departamentais se pronunciava neste sentido, a Assembleia nacional não devia, em nome da França, sacrificar a virgindade da Constituição? A Assembleia nacional nutria, com relação a essas Assembleias provinciais, as mesmas esperanças das freiras com relação aos Pandours na Henriade de Voltaire. Mas os Putiphars da Assembleia nacional só tinham a tratar, com algumas poucas exceções, com outros tantos Josephs provincianos. Uma maioria esmagadora não quis compreender a insinuação apressada. A revisão da constituição foi desgraçada pelos próprios instrumentos que deviam trazê-la à vida pelos votos dos Conselhos gerais. A voz da França, e, na verdade, a voz da França burguesa, tinha falado e se pronunciado contra a revisão. No início de outubro, a Assembleia nacional legislativa se reuniu outra vez - tantum mutatus ab illo. Sua fisionomia estava radicalmente modificada. A rejeição da revisão pelos conselhos gerais a tinha reconduzido aos limites da Constituição e lhe tinha mostrado os limites de sua duração. Os orleanistas tinham ficado desconfiados com as peregrinações dos legitimistas a Ems, os legitimistas suspeitando das conversações orleanistas com Londres, os jornais das duas frações atiçavam o fogo e pesavam as pretensões recíprocas de seus pretendentes; orleanistas e legitimistas, unidos, guardavam rancor aos bonapartistas por suas intrigas que revelavam as viagens principescas, as tentativas mais ou menos visíveis de emancipação do presidente, a linguagem cheia de pretensão dos jornais bonapartistas; Luís Bonaparte guardava rancor à Assembleia nacional que só achava legítima a conspiração legitimista orleanista, e a um ministério que o traía constantemente em favor da Assembleia nacional. Enfim, o próprio ministério estava dividido quanto à política romana e quanto ao imposto sobre o rendimento, proposto pelo ministro Passy e denunciado como socialista pelos conservadores. Uma das primeiras propostas do ministério Barrot à Assembleia legislativa novamente reunida foi um pedido de crédito de trezentos mil francos para constituir um dote para a duquesa de Orléans. A Assembleia nacional concordou, acrescentando assim ao registro de dívidas da nação francesa uma soma de sete milhões de francos. Deste modo, enquanto Luís-Filipe continuava a fazer, com sucesso, o papel do "pobre soberbo", o ministério não ousava propor um aumento de salário em favor de Bonaparte e a Assembleia não parecia disposta a concordar com isso. E Luís Bonaparte hesitava, como sempre, diante do dilema: Aut Caesar, aut Clichy. O segundo pedido ministerial de crédito de nove milhões de francos para pagar as despesas da expedição de Roma aumentou a tensão entre Bonaparte e os ministros da Assembleia nacional. Luís Bonaparte tinha feito aparecer, no Le Moniteur, uma carta ao seu oficial-ordenança, Edgar Ney, onde ele obrigava o governo pontifical às garantias constitucionais. O papa, por seu lado, havia lançado uma bula - motu proprio - em que ele rejeitava qualquer restrição ao seu poder restaurado. Com sua carta, Bonaparte levantava, por uma indiscrição deliberada, a cortina do seu gabinete, para posar ele próprio diante da galeria como um gênio repleto de boa vontade mas injustiçado, e prisioneiro dentro de sua própria casa. Não era a primeira vez que ele representava, cheio de afetação, com o "bater de asas furtivo de uma alma livre". Thiers, relator da comissão, ignorou completamente o bater de asas de Napoleão e se contentou em traduzir para o francês o texto pontifical. Não foi o ministério, mas Victor Hugo, quem tentou salvar o presidente com uma ordem do dia em que a Assembleia devia aprovar a carta de Napoleão. Vamos lá! Vamos lá! Foi com esta interjeição fria e desrespeitosa que a maioria enterrou a proposta de V. Hugo. A política do presidente? A carta do presidente? O próprio presidente? Vamos lá! Vamos lá! Quem diabos leva Monsieur Bonaparte a sério? O senhor acredita, Monsieur Victor Hugo, que nós acreditamos quando o senhor diz que acredita no presidente? Vamos lá! Vamos lá! Enfim, a ruptura entre Bonaparte e a Assembleia nacional foi precipitada pela discussão sobre a volta dos Orléans e dos Bourbons. Na falta do ministério, o primo do presidente, filho do ex-rei da Westfália, tinha colocado essa proposta cujo único objetivo era o de levar os pretendentes legitimistas e orleanistas ao mesmo nível, ou mais baixo, de preferência, que o do pretendente bonapartista, pois este, pelo menos, estava de fato na cúpula do poder. Napoleão Bonaparte foi bastante irreverente para fazer da volta das famílias reais exiladas, e da anistia dos insurrectos de junho, os artigos de uma única proposta. A indignação da maioria forçou-o imediatamente a pedir perdão por essa ligação criminosa do sagrado ao infame, das estirpes reais à ralé proletária, das estrelas fixas da sociedade aos fogos fátuos de seus pântanos, e dar a cada uma das duas propostas o valor que lhe era merecido. A Assembleia nacional rejeitou energicamente a volta da família real e Berryer, o Demóstenes dos legitimistas, não deixou qualquer dúvida sobre o significado desse voto. A degradação burguesa dos pretendentes, eis o objetivo almejado. Deseja-se roubar-lhes a auréola, a derradeira majestade que lhes resta, a majestade do exílio! O que se pensaria, gritava Berryer, desses pretendentes que, esquecidos de sua ilustre origem, voltassem para viver aqui como simples cidadãos! Não se podia dizer mais claramente a Luís Bonaparte que sua presença não lhe tinha feito ganhar coisa alguma e que, se os monarquistas coligados precisavam dele na França, como homem neutro sentado na cadeira presidencial, os pretendentes sérios à coroa deviam continuar ocultos aos olhares profanos pelas nuvens do exílio. Em 1º de novembro, Luís Bonaparte respondeu à Assembleia legislativa com uma mensagem que anunciava, em termos bastante bruscos, a demissão do ministério Barrot e a constituição de novo ministério. O ministério Barrot-Falloux era o ministério da coalizão monarquista, o ministério de Hautpoul foi o ministério de Bonaparte, o órgão do presidente, ante a Assembleia legislativa, o ministério dos empregados subalternos. Bonaparte não era mais o homem simplesmente neutro de 10 de dezembro de 1848. A posse do poder executivo havia agrupado em torno dele inúmeros interesses, a luta contra a anarquia obrigava o próprio partido da ordem a aumentar sua influência, e se Bonaparte não era mais popular, o partido da ordem era impopular. Face aos orleanistas e aos legitimistas, não podia ele esperar, graças a sua rivalidade e à necessidade de uma restauração monarquista qualquer, obriga-los ao reconhecimento do pretendente neutro? É de 1º de novembro de 1849 que data o terceiro período de existência da República constitucional, período que termina em 10 de março de 1850. Não é apenas pelo jogo regular das instituições constitucionais, tão admirado por Guizot, que começa a disputa entre o poder executivo e o poder legislativo. Ante os anseios de restauração dos orleanistas e dos legitimistas coligados, Bonaparte representa o titulo de seu poder real, a República; ante os anseias de restauração de Bonaparte, o partido da ordem representa o título de sua dominação comum, a República; ante os orleanistas, os legitimistas, ante os legitimistas, os orleanistas representam o status quo, a República. Todas essas frações do partido da ordem, onde cada uma tem, in petto, o seu próprio rei e sua própria restauração, fazem prevalecer alternativamente, face aos anseias de usurpação e de afastamento de seus rivais, a dominação comum da burguesia, a forma sob a qual as pretensões particulares ficam neutralizadas e postas de lado - a República. Assim como Kant fez da República, única forma racional de Estado, um postulado da razão prática, cuja realização jamais é atingida, mas que é preciso procurar constantemente como objetivo e ter sempre em mente, assim também esses monarquistas fazem da monarquia um postulado. Assim, a República constitucional, saída das mãos dos republicanos burgueses como uma fórmula ideológica vazia, tornou-se nas mãos dos monarquistas coligados uma forma viva e rica de conteúdo. E Thiers dizia uma verdade maior do que pensava ao declarar: "Somos nós, os monarquistas, os verdadeiros sustentáculos da República constitucional." A queda do ministério de coalizão, a posse do ministério dos empregados subalternos tem uma segunda significação. Seu ministro de finanças se chamava Fould. Fould, ministro de finanças, é a entrega oficial da riqueza nacional francesa à Bolsa, é a administração da fortuna política pela Bolsa e no interesse da Bolsa. Com a nomeação de Fould, a aristocracia financeira anunciava sua restauração no Le Moniteur. Esta restauração completava necessariamente as outras que constituem como que elos da corrente da República constitucional. Luís-Filipe jamais tinha ousado fazer de um verdadeiro lince um ministro das finanças. Mesmo que sua monarquia fosse o nome ideal para a dominação da alta burguesia, os interesses privilegiados deviam em seus ministérios trazer os nomes de uma ideologia desinteressada. A República burguesa por toda parte impelia ao primeiro plano o que as diversas monarquias, tanto legitimistas quanto orleanistas, traziam escondido nos bastidores. Ela fez descer à terra o que aquelas haviam divinizado. Ela colocou os nomes próprios burgueses dos interesses de classe dominantes no lugar dos nomes de seus santos. Toda a nossa exposição mostrou que a República, desde o primeiro dia de sua existência, não derrubou, mas, ao contrário, constituiu a aristocracia financeira. Mas as concessões que se lhe faziam eram um destino ao qual se submetia sem se querer fazê-lo nascer. Com Fould, a iniciativa governamental se tornou aristocracia financeira. Perguntar-se-á como a burguesia coligada podia suportar e tolerar a dominação das finanças que, sob Luís Filipe, repousava sobre a exclusão ou a subordinação das outras frações burguesas? A resposta é simples. Antes de tudo, a aristocracia financeira constitui ela mesma um grupo de uma importância preponderante na coalizão monarquista, cujo poder governamental comum se chama República. Os corifeus e os luminares dos orleanistas não são eles os antigos aliados e cúmplices da aristocracia financeira? Não é ela a falange dourada do orleanismo? No que concerne aos legitimistas, já sob Luís-Filipe eles haviam estado na prática de todas as orgias de especulação bolsistas, mineiras, ferroviárias. Enfim, a união da grande propriedade imóvel com a alta finança é um fato normal. Provam-no a Inglaterra, a própria Áustria. Em um país como a França, onde a importância da produção nacional é imensamente inferior à da dívida nacional, onde a renda do Estado constitui o objeto mais importante da especulação, e onde a Bolsa forma o principal mercado para o investimento do capital que se queira investir de maneira produtiva, em um país assim é preciso que uma multidão enorme de pessoas de todas as classes burguesas ou semiburguesas participem da dívida pública, do jogo da Bolsa, das finanças. Todos esses participantes subalternos não encontram seu apoio e seus líderes naturais na fração que representa esses interesses nas proporções mais maciças, e que os representa em sua totalidade? O que determina o fato de a fortuna pública cair nas mãos da alta finança? O endividamento sempre crescente do Estado. E o endividamento do Estado? O exceder contínuo das despesas sobre as receitas, desproporção que é, ao mesmo tempo, causa e efeito do sistema de em préstimos públicos. Para escapar a esse endividamento, é necessário que o Estado restrinja suas despesas, ou seja, simplifique, reduza a máquina governamental, que governe o menos possível, que se relacione o menos possível com a sociedade burguesa. Coisa impossível para o partido da ordem, cujos meios de repressão, cuja intromissão oficial em nome do Estado, cuja presença em todos os lugares por intermédio de organismos do Estado tinham necessariamente que aumentar à medida que sua dominação e as condições de existência de sua classe estavam ameaçadas por todos os lados. Não se pode reduzir a guarda quando se multiplicam os ataques contra as pessoas e a propriedade. Ou, então, é necessário que o Estado procure evitar as dívidas e chegue a um equilíbrio instantâneo, ainda que provisório, do orçamento, fazendo pesar sobre os ombros das classes mais ricas as contribuições extraordinárias. Para subtrair a riqueza nacional à exploração da Bolsa, o partido da ordem devia sacrificar a sua própria fortuna sobre o altar da pátria? Não sejamos ingênuos! Então, sem transformação completa do Estado francês, nada de transformação do orçamento francês. Com o orçamento atual, necessidade de endividamento do Estado, e, com o endividamento do Estado, necessidade da dominação do comércio, das dívidas públicas, dos credores do Estado, dos banqueiros, dos negociantes de dinheiro, dos linces. Apenas uma fração do partido da ordem tomava parte diretamente na derrubada da aristocracia financeira: os fabricantes. Não falamos dos industriais médios, nem dos pequenos, mas dos administradores dos interesses da fábrica que tinham, sob Luís-Filipe, formado a grande base da oposição dinástica. Seu interesse é, incontestavelmente, a diminuição das despesas de produção, portanto a diminuição dos impostos que entram na produção, portanto a diminuição das dívidas públicas cujos juros entram nos impostos, portanto a derrubada da aristocracia financeira. Na Inglaterra - e os maiores fabricantes franceses não passam de pequenos burgueses ao lado de seus rivais ingleses - encontramos realmente fabricantes, um Cobden, um Bright, à frente da cruzada contra o banco e a aristocracia bolsista. Por que isso não acontece na França? Na Inglaterra, é a indústria que predomina; na França, é a agricultura. Na Inglaterra, a indústria precisa do free trade: na França, ela precisa da proteção duaneira, do monopólio nacional ao lado de outros monopólios. A indústria francesa não domina a produção francesa, os industriais franceses, em consequência, não dominam a burguesia francesa. Para fazer triunfar seus interesses contra as outras frações da burguesia, eles não podem, como os ingleses, se colocarem à frente do movimento e levar, ao mesmo tempo, ao extremo seus interesses de classe; precisam seguir a revolução e servir a interesses que são contrários aos interesses gerais de sua classe. Em fevereiro, eles haviam negligenciado sua posição; fevereiro tornou-os pessoas prudentes. E quem é mais diretamente ameaçado pelos operários que o empregador, o capitalista industrial? Eis porque o fabricante se tornou necessariamente, na França, o membro mais fanático do partido da ordem. A diminuição do seu lucro pela finança o que é, comparado com a anulação do lucro pelo proletariado? Na França, o pequeno burguês faz o que normalmente devia fazer o burguês industrial; o operário faz o que normalmente seria a tarefa do pequeno burguês; e a tarefa do operário, quem a executa? Ninguém. Na França, a tarefa não é executada; na França, ela é proclamada. Ela não é cumprida em parte alguma nos limites da nação; a guerra de classes no seio da sociedade francesa se expandiu até se tornar uma guerra mundial onde as nações se encontram face a face. A solução apenas se aproxima no momento em que, pela guerra mundial, o proletário se vê à frente do povo que domina o mercado mundial, à frente da Inglaterra. A revolução encontrando ali não o seu termo, mas um início de organização, não é uma revolução de fôlego curto. A atual geração se assemelha aos judeus que Moises conduziu através do deserto. Ela não tem apenas um novo mundo a conquistar; é preciso que ela desapareça para dar lugar aos homens que estarão à altura do novo mundo. Voltemos a Fould. Em 14 de novembro de 1849, Fould subiu à tribuna da Assembleia nacional e expôs o seu sistema financeiro: apologia do antigo sistema fiscal, manutenção do imposto sobre as bebidas, retirada do imposto sobre os rendimentos de Passy! E no entanto Passy não era um revolucionário, era um antigo ministro de Luís-Filipe. Era um desses tipos de puritanos da força de Dufaure, um desses confidentes mais íntimos de Teste, o bode-expiatório de monarquia de julho. Passy, ele também, tinha feito o elogio do antigo sistema fiscal, recomendado a manutenção do imposto sobre as bebidas, mas tinha, ao mesmo tempo, rasgado o véu do déficit público. Ele tinha explicado a necessidade de um novo imposto sobre os rendimentos, se não se quisesse ir à bancarrota pública. Fould, que tinha aconselhado a bancarrota a Ledru-Rollin, intercedeu junto à Legislativa em favor do déficit do Estado. Prometeu economias cujo segredo se revelou mais tarde: viu-se, por exemplo, as despesas diminuírem em sessenta milhões e a dívida flutuante crescer em duzentos milhões - passe de mágica na articulação dos números, no estabelecimento das contas que conduzem todas, finalmente, a novos empréstimos. Com Fould, a aristocracia financeira, ao lado das outras frações burguesas que a invejavam, não mostrou, naturalmente, tanta corrupção cínica quanto na época de Luís-Filipe. Mas o sistema continuava o mesmo: aumento constante das dívidas, dissimulação do déficit. Depois, com o tempo, a escroqueria bolsista de antigamente se manifestou com maior cinismo. Provam isso a lei sobre a estrada de ferro de Avignon, as flutuações misteriosas dos valores do Estado, das quais por algum tempo falou toda Paris, enfim, as especulações infelizes de Fould e de Bonaparte sobre as eleições de 10 de março. Com a restauração oficial da aristocracia financeira, o povo francês não podia deixar de se ver às vésperas de um novo 24 de fevereiro. Em um acesso de misantropia contra a sua herdeira, a Constituinte havia suprimido o imposto sobre as bebidas para o ano da graça de 1850. Não era com a supressão de antigos impostos que se poderia pagar novas dívidas. Créton, um cretino do partido da ordem, tinha proposto a manutenção do imposto sobre as bebidas antes mesmo da prorrogação da Assembleia legislativa. Fould retomou essa proposta em nome do ministério bonapartista e, em 20 de dezembro de 1849, dia do aniversário da proclamação de Bonaparte, a Assembleia nacional decidiu o restabelecimento do imposto sobre as bebidas. O primeiro orador em favor dessa decisão não era um financista, era o líder dos jesuítas, Montalembert. Sua dedução foi de uma simplicidade impressionante: o imposto é a teta onde mama o governo. O governo são os instrumentos da repressão, são os órgãos da autoridade, é o exército, a polícia, os funcionários, os juízes, os ministros, os padres. O ataque contra o imposto é o ataque dos anarquistas contra os sentinelas da ordem, que protegem a produção material e espiritual da sociedade burguesa contra as incursões dos vândalos proletários. O imposto é a quinta divindade, ao lado da propriedade, da família, da ordem e da religião. Então, o imposto sobre as bebidas é incontestavelmente um imposto e, além disso, não é um imposto comum, mas um imposto tradicional, de espírito monarquista, respeitável. Viva o imposto sobre as bebidas! Three cheers and one cheer more! O camponês, quando evoca o diabo, dá-lhe os traços do meirinho, portador de desassossego. Desde o momento em que Montalembert fez do imposto um deus, o camponês se tornou ímpio, ateu e se atirou nos braços do diabo, o socialismo. A religião da ordem tinha zombado dele, os jesuítas tinham zombado dele, Bonaparte tinha zombado dele. O 20 de dezembro de 1849 tinha comprometido irremediavelmente o 20 de dezembro de 1848. O "sobrinho do seu tio" não era mais o primeiro de sua família que tinha sido derrotado pelo imposto sobre as bebidas, por esse imposto que, segundo a expressão de Montalembert, "anuncia a tormenta revolucionária". O verdadeiro, o grande Napoleão declarava em Santa Helena que o restabelecimento do imposto sobre as bebidas tinha contribuído mais para a sua queda do que todo o resto, levando-o a ganhar a hostilidade dos camponeses do midi da França. Objeto já da ira popular sob Luís XIV (ver as obras de Boisguillebert e de Vauban), abolido pela primeira revolução, ele foi restabelecido em 1808 por Napoleão sob nova forma. Quando a Restauração chegou à França, não só os cossacos galopavam diante dela, mas também as processas solenes de supressão do imposto sobre as bebidas. Naturalmente, a nobreza não precisava cumprir a palavra ante à "gent taillable à merci et miséricorde”; 1830 prometeu a supressão do imposto sobre as bebidas. Não era de sua natureza fazer o que dizia e dizer o que fazia; 1848 prometeu a supressão do imposto sobre as bebidas como prometeu tudo. Enfim, a Constituição, que não prometeu nada, teve, como já dissemos antes, uma atitude testamentária segundo a qual o imposto sobre as bebidas deveria desaparecer em 1º de janeiro de 1850. E foi justamente dez dias antes do 1º de janeiro de 1850 que a Legislativa o restabeleceu. Assim, o povo francês continuamente lhe dava caça, e quando o fazia sair pela porta, via-o entrar pela janela. O ódio popular contra o imposto sobre as bebidas se explica pelo fato dele reunir em si todos os lados odiosos do sistema fiscal francês. Seu modo de cobrança é odioso, seu modo de distribuição é aristocrático, pois, sendo as porcentagens do imposto as mesmas para os vinhos mais ordinários e para os mais finos, ele aumenta então em proporção geométrica à medida que diminui a fortuna dos consumidores, é um imposto progressivo às avessas. Também provoca ele diretamente o envenenamento das classes trabalhadoras, fazendo ser mais procurados os vinhos falsificados e fabricados. Ele diminui o consumo erguendo pontos fiscais na entrada de todas as cidades com mais de quatro mil habitantes e transformando-as em espécie de países estrangeiros antecipando os direitos de duana sobre o vinho francês. Portanto, os grandes comerciantes de vinho, mais ainda os pequenos, os vendedores de vinho, são também adversários declarados do imposto sobre as bebidas. E, enfim, diminuindo o consumo, o imposto sobre as bebidas rouba à produção o seu mercado. Ao mesmo tempo em que ele coloca os operários da cidade na impossibilidade de pagar pelo vinho, ele coloca os viticultores na incapacidade de vendê-lo. Ora, a França conta com uma população de doze milhões de vinhateiros. Compreende-se logo o ódio do povo em geral; compreende-se sobretudo o fanatismo dos camponeses contra o imposto sobre as bebidas. Além do mais, no seu restabelecimento, os camponeses não viram um fato isolado, mais ou menos acidental. Eles têm uma espécie de tradição histórica que se transmite de pai para filho: nesta escola de história, murmura-se ao pé do ouvido que cada governo, quando quer enganar os camponeses, promete a supressão do imposto sobre as bebidas; e que, logo depois de conseguir o que quer, ele o mantém ou o restabelece. É no imposto sobre as bebidas que o camponês reconhece o "aroma" do governo, sua orientação. O restabelecimento desse imposto, em 20 de dezembro, significava: Luís Bonaparte é como os outros; mas ele não era como os outros, ele era uma invenção dos camponeses, e, nas petições contra o imposto sobre as bebidas, que contavam com milhões de assinaturas, eles cobravam os votos que tinham dado, um ano antes, ao "sobrinho do seu tio". A população campesina, que ultrapassa os dois terços da população francesa, é composta em sua maior parte de proprietários rurais pretensamente livres. A primeira geração, liberada pela Revolução de 1789 dos encargos feudais, nada havia pago pela terra. Mas as gerações seguintes pagaram, sob a forma de valor da terra, o que seus antepassados semi servos haviam pago sob a forma de renda, de dízimos, de corveias, etc. Quanto mais a população crescia, mais a partilha das terras aumentava e mais o preço do lote subia, pois a demanda crescia à medida que o seu tamanho diminuía. Quanto mais aumentava o preço que o camponês pagava por um lote, fosse por tê-lo comprado diretamente, fosse por tê-lo feito contar como capital por seus coerdeiros, mais o endividamento do camponês, ou seja, a hipoteca, aumentava na mesma proporção. O título de crédito feito sobre a terra se chama, efetivamente, hipoteca, caução sobre a terra. Assim como sobre a propriedade medieval se acumulavam os privilégios, sobre o lote moderno se acumulam as hipotecas. Por outro lado, no regime de loteamento, a terra é para o seu proprietário um mero instrumento de produção. A medida que a terra é fragmentada, sua fertilidade diminui. O uso da máquina na terra, a divisão do trabalho, as grandes obras de melhoramento do solo, como os canais, a drenagem, a irrigação, etc., tornam-se cada vez mais impossíveis, ao mesmo tempo em que as despesas acidentais da cultura crescem proporcionalmente à divisão do próprio instrumento de produção. E é assim que o proprietário do lote possui ou não um capital. Quanto mais a divisão aumenta, e mais o imóvel constitui com seu inventário extremamente miserável todo o capital do camponês parcelário; e quando menos o capital se investe na terra, e mais o pequeno camponês carece de terra, de dinheiro e de conhecimentos para utilizar os progressos da agronomia; e mais a cultura do solo regride. Enfim, o produto líquido diminui à medida que cresce o consumo bruto e que a família inteira do camponês é afastada de qualquer outra ocupação por sua propriedade e, nem assim, ela é capaz de sustentá-la. É então na medida em que cresce a população, e com ela a partilha da terra, que encarece o instrumento de produção, a terra, e que diminui sua fertilidade; é na mesma medida que declina a agricultura e que se endivida o camponês. E o que era o efeito se torna, por sua vez, a causa; Cada geração deixa a outra mais endividada, cada nova geração começa nas condições mais desfavoráveis e mais duras, a hipoteca gera a hipoteca, e quando o camponês não pode mais oferecer a sua terra em penhor de novas dívidas, ou seja, o encargo de novas hipotecas, ele se torna diretamente presa da usura; e os juros usurários se fazem cada vez maiores. Acontece então que o camponês francês, sob a forma de juros sobre as hipotecas feitas sobre a terra, sob a forma de juros sobre os adiantamentos não hipotecados dos usurários, cede ao capitalista não apenas a renda da terra, não apenas o lucro industrial, em uma palavra, não apenas todos os benefícios líquidos, mas até mesmo uma parte do salário, de sorte que ele cai ao nível do fazendeiro irlandês; e tudo isso sob o pretexto de ser proprietário privado. Esse processo foi acelerado na França pelos encargos fiscais sempre crescentes e pelas despesas de justiça, provenientes fosse diretamente das próprias formalidades com as quais a legislação francesa cerca a propriedade imóvel, fosse pelos inúmeros conflitos provocados pelos lotes que, por toda parte, se tocam e se confundem, fosse pelo furor progressivo dos camponeses cujo desfrute da sociedade se limita a fazer prevalecer fanaticamente a sua propriedade imaginária, o direito de propriedade. Segundo um quadro estatístico, datado de 1840, o produto bruto do solo na França se eleva a cinco bilhões, duzentos e trinta e sete milhões, cento e setenta e oito mil francos. Deve-se deduzir dai três bilhões, quinhentos e cinquenta e dois milhões de francos pelas despesas de cultura da terra, aí compreendida a alimentação dos homens que nela trabalham. Sobra um produto líquido de um bilhão, seiscentos e oitenta e cinco milhões, cento e setenta e oito mil francos, dos quais se deve deduzir quinhentos e cinquenta milhões para os juros hipotecários, cem milhões para os funcionários da justiça, trezentos e cinquenta milhões para os direitos de registro, de franquias, de hipotecas, etc. Sobra a terça parte do produto líquido, quinhentos e trinta e oito milhões; repartidos per capita da população, não chega nem mesmo a vinte e cinco francos de produto líquido. Naturalmente, não se conta nesse cálculo nem a usura não hipotecária, nem os honorários de advogados, etc. Compreender-se-á qual foi a situação dos camponeses franceses quando a República somou novos encargos aos já existentes. Viu-se que sua exploração se distingue apenas pela forma da exploração do proletariado industrial. O explorador é o mesmo: o Capital. Os capitalistas, propriamente ditos, exploram os camponeses, propriamente ditos, através das hipotecas e da usura. A classe capitalista explora a classe camponesa através do imposto do Estado. O título de propriedade é o talismã com o qual o capital a tem até aqui enfeitiçado, o pretexto sob o qual ele a tem incitado contra o proletariado industrial. Apenas a queda do capital pode erguer o camponês, apenas um governo anticapitalista, proletário, pode fazê-lo sair de sua miséria econômica, de sua degradação social. A República constitucional é a ditadura de seus exploradores coligados, a República socialdemocrata, a República vermelha, é a ditadura de seus aliados. E a balança sobe ou desce de acordo com os votos que o camponês atira dentro da uma eleitoral. Cabe a ele próprio decidir a sua sorte. Eis o que diziam os socialistas em panfletos, almanaques, calendários, folhetos de toda espécie. Essa linguagem se tornava mais compreensível ao camponês graças às publicações contrárias do partido da ordem, que se dirigindo a ele, por seu turno, com o exagero grosseiro, a interpretação e a representação brutais das intenções e das ideias dos socialistas, atingiam o tom exato em camponês e despertavam o desejo pelo fruto proibido. Mas a linguagem mais compreensível eram as próprias experiências que a classe camponesa tinha do exercício do direito do voto, e as decepções que, na precipitação revolucionária, se tinham abatido continuamente sobre ela. As revoluções são a locomotiva da história. A agitação gradual se manifestou entre os camponeses através de diferentes sintomas. Revelou-se, já, nas eleições da Assembleia legislativa, mostrou-se no estado de sítio proclamado nos cinco departamentos limítrofes de Lyon; mostrou-se alguns meses depois de 13 de junho com a eleição de um montagnard no lugar do antigo presidente da Câmara inencontrável no departamento de Gironde; mostrou-se, em 20 de dezembro de 1849, com a eleição de um deputado vermelho em lugar de um legitimista falecido no departamento de Gard, esta terra prometida dos legitimistas, teatro dos mais terríveis crimes contra os republicanos em 1794 e 1795, centro do terror branco em 1815, quando liberais e protestantes foram publicamente assassinados. Foi após o restabelecimento do imposto sobre as bebidas que essa revolução da classe mais acomodada se manifestou da maneira mais visível. As medidas governamentais e as leis de janeiro e fevereiro de 1850 eram quase que exclusivamente dirigidas contra os departamentos e os camponeses. É a prova mais impressionante do seu progresso. A circular de Hautpoul, fazendo do gendarme o inquisidor do prefeito, do subprefeito e antes de tudo do maire, que organizava espionagem até nos recantos da comuna rural mais distante; a lei contra os professores, que os subjugava, eles, os luminares, os porta-vozes, os educadores e os intérpretes da classe camponesa, ao arbítrio do prefeito que os perseguia de uma com una a outra como um animal a ser caçado, a esses proletários da classe instruída; a proposta de lei contra os maires, que erguia acima de suas cabeças a espada de Democles da revolução ,e que confrontava a cada instante, eles, presidentes das comunas, ao presidente da República e ao partido da ordem; a ordem que transformava as dezessete regiões militares da França em quatro paxaliques e que concedia aos franceses a caserna e o acampamento como salão nacional; a lei sobre o ensino, pela qual o partido da ordem proclamava que a inconsciência e o embrutecimento da França pela força são a condição de sua existência. O que eram todas essas leis e medidas? Formas de tentativas desesperadas do partido da ordem ganhar de novo os departamentos e os camponeses dos departamentos. Considerados como meios de repressão, eles eram lastimáveis e iam de encontro ao seu próprio objetivo. As grandes medidas como a manutenção do imposto sobre as bebidas, o imposto dos quarenta e cinco cêntimos, a rejeição desdenhosa das petições dos camponeses pedindo o reembolso dos bilhões, etc., todos esses raios legislativos vindos do centro caíam sobre a abandonada classe camponesa como uma chicotada; as leis e medidas mencionadas fizeram do ataque e da resistência a conversa diária geral em cada casebre, inoculando a revolução em cada aldeia; elas localizaram a revolução e a tornaram camponesa. Por outro lado, essas propostas de Bonaparte, sua adoção pela Assembleia nacional, não provam a união dos dois poderes da República constitucional, pelo menos quando se trata da repressão da anarquia, melhor dizendo, de todas as classes que se insurgem contra a ditadura burguesa? Soulouque não havia, imediatamente após sua brusca mensagem, assegurado à Legislativa o seu devotamento à ordem através da mensagem de Carlíer, esta caricatura obscena, grosseira, de Fouché, como o próprio Luís Bonaparte era a caricatura vulgar de Napoleão? A lei sobre o ensino nos mostra a aliança dos jovens católicos e dos velhos voltaireanos. A dominação dos burgueses unidos podia ser outra coisa senão o despotismo coligado da Restauração amiga dos jesuítas e da monarquia de julho se julgando acima do bem e do mal? As armas que uma das frações burguesas havia distribuído entre o povo contra a outra, em suas lutas recíprocas pela supremacia, não era preciso tomá-las de volta ao povo quando este começou a se opor à sua ditadura conjugada? Nada irritou mais o comércio parisiense do que essa afetada demonstração de jesuitismo, nem mesmo a rejeição das concordatas amigáveis. Entretanto, as coalizões continuavam tão bem entre as diferentes frações do partido da ordem quanto entre a Assembleia nacional e Bonaparte. Não agradou muito à Assembleia nacional que Bonaparte, imediatamente após seu golpe de Estado, após a formação de seu próprio ministério bonapartista, tivesse convocado diante de si os impotentes da monarquia, agora nomeados prefeitos, e feito de sua agitação anticonstitucional em favor de sua reeleição à presidência a condição para mantê-los em suas funções; que Carlier tivesse celebrado a sua posse com a extinção de uma associação política legitimista; que Napoleão tivesse fundado o seu próprio jornal, o Napoléon, que revelava ao público as ambições secretas do presidente, enquanto que seus ministros eram obrigados a desmenti-Ias na tribuna da Legislativa; não a agradou tampouco essa manutenção insolente do ministério apesar dos inúmeros votos de desconfiança, nem a tentativa de captar o apoio de suboficiais através de um elevado soldo diário de quatro sous, e o apoio do proletariado através de uma espécie de plágio dos Mysteres, de Eugene Sue, o banco de empréstimos sem juros; desagrado, enfim, ante a insolência com a qual se fazia propor pelos ministros a deportação para a Algéria dos últimos insurrectos de junho, para lançar a impopularidade por atacado sobre os representantes legislativos, enquanto o presidente reservava para si próprio a popularidade a varejo com alguns atos de benevolência. Thiers soltou palavras ameaçadoras de golpes de Estado e de decisões levianas, e a Legislativa se vingou rejeitando qualquer proposta de lei que ele apresentasse pessoalmente, submetendo a um ruidoso inquérito, cheia de desconfiança, cada uma daquelas que ele fizesse no interesse geral, para ver se, aumentando o poder executivo, ele não visava o lucro do poder pessoal. Resumindo, ela se vingava com a conspiração da indiferença. O partido dos legitimistas, por seu turno, via com descontentamento os orleanistas, mais capazes, se apoderarem outra vez de quase todos os postos e a centralização crescer, enquanto ele procurava por princípio sua segurança na descentralização. E era a verdade. A contrarrevolução centralizava à força, ou seja, ela preparava o mecanismo da revolução. Através do curso forçado das notas bancárias, ela centralizava até mesmo o ouro e a prata da França no Banco de Paris, criando assim o tesouro de guerra preparado da revolução. Os orleanistas, enfim, constataram com despeito que se estava opondo o princípio da legitimidade ao seu princípio do abastardamento e se viam negligenciados e maltratados a cada instante como um marido nobre casado com uma burguesa. Vimos os camponeses, os pequenos burgueses, as camadas médias em geral, passarem progressivamente para os lados do proletariado, levados à oposição declarada contra a República oficial, tratados por esta como adversários. Revolta contra a ditadura burguesa, necessidade de modificação da sociedade, manutenção das instituições democrático-republicanas como seus órgãos motores, agrupamento em torno do proletariado enquanto força revolucionária decisiva - tais são as características comuns do que se chama o partido da socialdemocracia, o partido da república vermelha. Esse partido da anarquia, como o batizaram seus adversários, é, tanto quanto o partido da ordem, uma coalizão de interesses diferentes. Da menor reforma da antiga desordem social até a subversão dessa antiga ordem social, do liberalismo burguês até o terrorismo revolucionário, esses são os pontos extremos que constituem, ao mesmo tempo, o ponto de partida e o ponto terminal do partido da "anarquia". A supressão dos direitos protecionistas - é socialismo!, porque ela se opõe ao monopólio da fração industrial do partido da ordem. A regularização do orçamento do Estado - é socialismo!, porque ela se opõe ao monopólio da fração financeira do partido da ordem. O livre acesso da carne e dos cereais estrangeiros - é socialismo!, porque ele se opõe ao monopólio da terceira fração do partido da ordem, o grande proprietário rural. As reivindicações do partido livre-cambista, ou seja, do partido burguês inglês mais avançado, surgiram na França também como reivindicações socialistas. O voltaireanismo - é socialismo!, porque ele se opõe a uma quarta fração do partido da ordem, a fração católica. Liberdade de imprensa, direito de associação, instrução geral do povo, é socialismo, ainda socialismo! Eles se opõem ao monopólio do partido da ordem em seu todo. A marcha da revolução tinha tão rapidamente levado à maturidade a situação que os amigos das reformas de todas as espécies, que as exigências as mais modestas das classes médias, eram obrigados a se juntar em torno da bandeira do partido subversivo mais radical, a bandeira vermelha. Por mais variado que fosse, aliás, o socialismo das diversas grandes frações do partido da anarquia, segundo as condições econômicas e todas as necessidades revolucionárias de sua classe ou de sua fração de classe, ele estava de acordo quanto a um ponto: proclamar que ele era o meio de emancipação do proprietário e que a emancipação deste era o seu objetivo. Mentira deliberada para uns, ilusão para outros, que proclamam o mundo transformado conforme suas necessidades como o melhor dos mundos para todos, como a realização de todas as exigências revolucionárias, e a supressão de todas as coalizões revolucionárias. Sob as palavras socialistas em geral bastante semelhantes às do partido da anarquia, se esconde o socialismo do National, de La Presse e do Siêcle, que quer, de maneira mais ou menos consequente, derrubar a dominação da aristocracia financeira e liberar a indústria e o comércio de suas antigas correntes. É o socialismo da indústria, do comércio e da agricultura, cujos administradores do partido da ordem renegam os interesses à medida que eles não estão mais em acordo com os seus monopólios privados. Desse socialismo burguês, que, naturalmente, como cada uma das variedades de socialismo, congrega uma parcela de operários e de pequenos burgueses, se distingue o socialismo pequeno burguês propriamente dito, o socialismo por excelência. O capital persegue essa classe principalmente enquanto credor: ela pede instituições de crédito; ele a esmaga pela concorrência, ela pede associações subvencionadas pelo Estado; ele a oprime pela concentração, ela pede impostos progressivos, restrições à herança, a execução pelo Estado de grandes obras e outras medidas que entravem violentamente o crescimento do capital. Como ela sonha com uma realização pacífica do seu socialismo - exceto, talvez, uma segunda revolução de fevereiro, de alguns dias -, o processo próximo histórico lhe parece, naturalmente, a aplicação de sistemas que os pensadores sociais concebem ou conceberam em conjunto ou isoladamente. Os pequenos burgueses se tornam assim eleáticos ou os adeptos dos sistemas socialistas existentes, do socialismo doutrinário que foi a expressão teórica do proletariado durante tanto tempo que ele, o proletariado, não se encontrava ainda desenvolvido o suficiente para se tornar um movimento histórico livre e independente. Assim, enquanto a utopia, o socialismo doutrinário que subordina o conjunto do movimento a um de seus momentos, que coloca no lugar da produção comum, social, a atividade cerebral do pedante individual e cuja fantasia suprime a luta revolucionária das classes com suas necessidades, por meio de pequenos artifícios ou de grandes sentimentalismos, enquanto esse socialismo doutrinário que se limita no fundo a idealizar a sociedade atual, a reproduzir-lhe uma imagem sem qualquer sombra e que deseja fazer triunfar o seu ideal sobre a realidade social; enquanto o proletariado deixa esse socialismo para a pequena burguesia, enquanto a luta dos diferentes sistemas entre si faz surgir cada um dos pretensos sistemas como a manutenção pretensiosa de um dos pontos de transição da agitação social contra outro ponto, o proletariado se une cada vez mais em torno do socialismo revolucionário, em torno do comunismo ao qual a própria burguesia deu o nome de Blanqui. Esse socialismo é a declaração permanente da revolução, a ditadura de classe do proletariado, transição necessária para chegar à extinção das diferentes classes em geral, à extinção de todas as relações de produção sobre as quais elas se apoiam, à extinção de todas as relações sociais que correspondem àquelas relações de produção, à subversão de todas as ideias que emanam dessas relações sociais. O espaço reservado a esta exposição não permite desenvolver suficientemente esse assunto. Vimos que, se dentro do partido da ordem foi a aristocracia financeira quem tomou necessariamente a frente, no partido da "anarquia" foi o proletariado. Enquanto as diversas classes unidas em uma liga revolucionária se agrupavam em torno do proletariado, enquanto os departamentos se tornavam cada vez menos seguros e a própria Assembleia legislativa se irritava cada vez mais com as pretensões do Soulouque francês, as eleições complementares, por tanto tempo adiadas e retardadas para substituir os montagnards proscritos do 13 de junho, se aproximavam. Desprezado por seus inimigos, maltratado e diariamente humilhado por seus pretensos amigos, o Governo só via um modo de sair de sua situação repugnante e insuportável: o tumulto. Um tumulto em Paris lhe permitiria proclamar o estado de sítio na capital e nos departamentos e lhe daria assim o comando das eleições. Por outro lado, os amigos da ordem, face a um Governo que houvesse alcançado a vitória sobre a anarquia, seriam obrigados a fazer concessões, caso não quisessem eles próprios aparecer como anarquistas. O Governo pôs mãos à obra. No início de fevereiro de 1850, ele provocou o povo abatendo as árvores da liberdade. Uma vez desaparecidas as árvores da liberdade, o próprio Governo perdeu a cabeça e recuou, assustado diante da sua provocação. Mas a Assembleia nacional recebeu essa desajeitada tentativa de emancipação de Bonaparte com uma desconfiança glacial. A retirada das coroas dos imortais sobre o obelisco de julho não teve maior sucesso. Ela forneceu a uma parte do exército a ocasião para manifestações revolucionárias, e à Assembleia nacional o pretexto para um voto de desconfiança mais ou menos disfarçado contra o ministério. E foi em vão que a imprensa governamental ameaçou com a supressão do sufrágio universal, a invasão dos cossacos. Inutilmente Houtpoul convidou, em plena Legislativa, a esquerda a descer à rua, declarando que o Governo estava disposto a recebê-la. Haultpoul não obteve nada mais que uma chamada à ordem do presidente, e o partido da ordem deixou, com uma secreta alegria maligna, um deputado da esquerda ridicularizar as ambições usurpadoras de Bonaparte. Inutilmente, por fim, profetizou-se uma revolução para o dia 24 de fevereiro. O Governo deu um jeito para que o 24 de fevereiro fosse ignorado pelo povo. O proletariado não se deixava provocar a qualquer agitação, porque estava a ponto de fazer uma revolução. Sem se deixar deter pelas provocações do Governo, que só faziam aumentar a irritação geral contra o estado de coisas reinante, o comitê eleitoral, que estava sob a influência dos operários, apresentou três candidatos para Paris: Deflotte, Vidal e Carnot. Deflotte era um deportado de junho, anistiado por Napoleão num ato visando à popularidade, era amigo de Blanqui e havia participado do atentado de 15 de maio; Vidal, antigo secretário de Louis Blanc na comissão do Luxemburgo, era conhecido como escritor comunista por seu livro De la répartition des richesses; Carnot, filho do convencional que havia organizado a vitória, o menos comprometido dos membros do partido do National, tinha sido ministro do Ensino no Governo provisório e na Comissão Executiva; seu projeto de lei democrático sobre o ensino popular era um protesto vivo contra a lei sobre o ensino devida aos jesuítas. Esses três candidatos representavam as três classes aliadas: à frente, o insurrecto de junho, o representante do proletariado revolucionário; ao seu lado, o socialista doutrinário, o representante da pequena burguesia socialista; o terceiro, enfim, o representante do partido republicano burguês, cujas fórmulas democráticas, face ao partido da ordem, adquiriam um sentido socialista, e haviam perdido há muito tempo o seu sentido próprio. Era, como em fevereiro, uma coalizão geral contra a burguesia e o Governo. Mas, desta vez, o proletariado estava à frente da liga revolucionária. Apesar de todos os esforços, os candidatos socialistas triunfaram. O próprio exército votou no insurrecto de junho, contra o seu próprio ministro da Guerra, Lahittte. O partido da ordem foi como que atingido por um raio. As eleições nos departamentos não lhe serviram de consolo: seu resultado foi uma maioria de montagnards. A eleição de 10 de março de 18501 Era a negação de junho de 1848: os massacradores e os "deportadores" dos rebeldes de junho voltavam à Assembleia Nacional, a espinha curvada, atrás dos deportados e seus princípios desdenhosos. Era a negação do 13 de junho de 1849: La Montagne, proscrita pela Assembleia nacional, voltava à Assembleia nacional, mas como o corneteiro avançado da revolução e não mais como o seu líder. Era a negação do 10 de dezembro: Napoleão havia sofrido um revés com o seu ministro Lahitte. A história parlamentar da França conhece apenas um caso análogo: o fracasso de Haussez, ministro de Charles X, em 1830. A eleição de 10 de março de 1850 anulava, enfim, a de 13 de maio, que tinha dado a maioria ao partido da ordem. A eleição de 10 de março protestava contra a maioria de 13 de maio. O 10 de março era uma revolução. Por trás das cédulas de voto, a derrota inesperada. "O voto de 10 de março é a guerra", gritava Ségur dAguesseau, um dos membros mais destacados do partido da ordem. Com o 10 de março de 1850, a República constitucional entra em uma nova fase, na fase de sua dissolução, As diferentes frações da maioria estão outra vez unidas entre si e a Bonaparte. Elas são outra vez os cavalheiros da ordem e ele é outra vez o seu homem neutro. Quando elas lembram que são monarquistas, unicamente porque não têm mais esperanças na possibilidade da República burguesa; ele, quando lembra que é o presidente, é unicamente porque não tem esperança de continuar a sê-lo. A eleição de Deflotte, o rebelde de junho, Bonaparte responde, sob indicação do partido da ordem, com a nomeação de Baroche como ministro do Interior; Baroche, o acusador de Blanqui e de Barbês, de Ledru-Rollin e de Guinard. A eleição de Carnot, a Legislativa responde com o voto da lei sobre o ensino; à eleição de Vidal, com o estrangulamento da imprensa socialista. Pelas "trombetadas" de sua imprensa, o partido da ordem procura dissipar o seu próprio medo. "A espada é sagrada", clama um de seus órgãos. "É preciso que os defensores da ordem tomem a ofensiva contra o partido vermelho", diz outro. "Entre o socialismo e a sociedade há um duelo de morte, uma guerra impiedosa, sem tréguas; nesse duelo desesperado, é preciso que um ou outro desapareça, se a sociedade não anular o socialismo, o socialismo anulará a sociedade", canta um terceiro galo da ordem. Levantem as barricadas da ordem, as barricadas da religião! É preciso romper com os cento e vinte e sete mil eleitores de Paris! Um São Bartolomeu dos socialistas! E o partido da ordem acreditou por um instante na certeza de sua própria vitória. É contra os "comerciantes de Paris" que seus órgãos se debatem da maneira a mais fanática. O rebelde de junho, representante eleito pelos comerciantes de Paris! Isto quer dizer que um segundo junho de 1848 é impossível, Isto quer dizer que um segundo 13 de junho de 1849 é impossível, isto quer dizer que a influência moral do capital foi destruída, isto quer dizer que a Assembleia burguesa representa apenas a burguesia, isto quer dizer que a grande propriedade está perdida, pois o seu vassalo, a pequena propriedade, procura sua salvação no campo dos não capitalistas. O partido da ordem torna inevitavelmente ao seu lugar comum: "Maior repressão!", exclama ele, "dez vezes mais repressão!"; mas o seu poder de repressão está dez vezes mais fraco, ao passo que a resistência está cem vezes mais forte. O instrumento principal da repressão, o exército, não será preciso chamá-la à razão? E o partido da ordem pronuncia as suas últimas palavras: "É necessário romper o círculo de ferro de uma legalidade sufocante. A República constitucional é impossível. É necessário que lutemos com nossas verdadeiras armas: depois de fevereiro de 1848, nós combatemos a Revolução com as suas armas e dentro do seu terreno; aceitamos suas instituições, a Constituição é uma fortaleza que protege os atacantes, não os atacados. Escondendo-nos no ventre do cavalo de Tróia, na santa Ilium, imitando os nossos ancestrais, os gregos, nós não conquistamos a cidade inimiga, nós fomos feitos, ao contrário, nós mesmos, os prisioneiros." Mas o fundamento da Constituição é o sufrágio universal. A supressão do sufrágio universal será a última palavra do partido da ordem, da ditadura burguesa. O sufrágio universal deu-lhe razão em 24 de maio de 1848, em 20 de dezembro de 1848, em 13 de maio de 1849, em 8 de julho de 1849. O sufrágio universal prejudicou a si próprio em 10 de março de 1850. A dominação burguesa, enquanto emanação e resultado do sufrágio universal, enquanto expressão da vontade do povo soberano, eis o sentido da Constituição burguesa. Mas, a partir do momento em que o conteúdo desse direito ao sufrágio, dessa vontade soberana não é mais a dominação burguesa, a Constituição terá ainda um sentido? Não é dever da burguesia regulamentar o direito do voto de maneira tal que ele aceite o razoável, seja sua dominação? O sufrágio universal, suprimindo constantemente outra vez o poder público reinante, e fazendo-o emanar outra vez de seu seio, não suprime toda a estabilidade, não põe a cada instante em questão todos os poderes estabelecidos, não anula a autoridade, não ameaça fazer da própria anarquia a autoridade? Depois de 10 de março quem podia ainda duvidar? Rejeitando o sufrágio universal, no que ela se tinha até então envolvido, e do qual ela extraía toda a sua onipotência, a burguesia confessa sem rodeios: "Nossa vitória se manteve até aqui pela vontade do povo; é preciso consolidá-la agora contra a vontade do povo." E, de uma maneira consequente, ela procura seus apoios não mais na França, mas fora dela, no estrangeiro, na invasão. Com a invasão, segundo Coblence, tendo estabelecido a sua sede na própria França, ela levanta todas as paixões nacionais contra ela. Com seu ataque ao sufrágio universal, ela fornece à nova revolução um pretexto geral; e a revolução precisa de um pretexto assim. Qualquer pretexto particular separaria as frações da liga revolucionária e faria surgir suas diferenças. O pretexto geral atordoa as classes semi revolucionárias; permite-lhes se iludirem elas próprias sobre o caráter determinado da revolução vindoura, sobre as consequências de sua própria ação. Toda revolução precisa de um "caso dos banquetes". O sufrágio universal é o "caso dos banquetes" da nova revolução. Mas as frações burguesas coligadas já estão condenadas quando se refugiam à margem da única forma possível de seu poder comum, essa forma a mais pujante e a mais acabada de sua dominação de classe, a Republica constitucional, e em direção à forma inferior, incompleta e mais fraca da monarquia. Elas parecem o velho que para reconquistar suas forças juvenis, volta a usar as suas roupas de infância e procura, mal e mal, esconder seus membros encarquilhados. A República das frações burguesas coligadas tem um único mérito, o de ser a estufa da revolução. O 10 de março de 1850 traz por epígrafe: "Depois de mim, o dilúvio".