Georg Wilhelm Friedrich Hegel – Estética, a Ideia e o Ideal ÍNDICE ESTÉTICA - A IDEIA E O IDEAL CAP. I - A concepção objetiva da Arte 1ª Seção - Definições Gerais I - Relações entre o belo artístico e o belo natural II - O ponto de partida da Estética III - Objeções à ideia de uma filosofia da arte 2ª Seção - As Ideias Correntes Sobre A Natureza Da Arte I - Imitação da Natureza II - Despertar a alma III - A função moralizadora da Arte CAP. II - As teorias empíricas da Arte 1ª Seção - As Ideias Relativas A Obra De Arte I - Regras da arte. Talento. Exigência de arte II - O sentido da Arte. O gosto. O conhecimento dos especialistas III - Intuição. Inteligência. Ideia 2ª Seção - A Ciência Da Arte I - Teorias fundadas no princípio do gosto II - As mais recentes definições do Belo III - Definição do fim último da Arte CAP. III - A arte considerada do ponto de vista filosófico I - A filosofia kantiana II - Schiller, Goethe, Schelling III - Ironia e romantismo CAP. IV - Plano geral da Estética PARTE PRIMEIRA - A IDEIA E O IDEAL CAP. I - A Ideia I - A ideia e o espírito absoluto II - Ideia. Realidade. Realidade vivente III - A ideia realizada no mundo exterior. O Belo na natureza IV - A vida natural e o Belo V - A vida considerada do ponto de vista puramente natural CAP. II - O Ideal I - A beleza abstrata, exterior a) A beleza da forma abstrata b) A regularidade c) A subordinação a leis d) A harmonia II - A beleza como unidade abstrata da matéria sensível III - As imperfeições do belo natural 1. A interioridade do imediato não é mais do que interioridade 2. O estado de dependência da existência individual imediata 3. A limitação da existência individual ESTÉTICA - O BELO ARTÍSTICO OU O IDEAL A - O Ideal Como Tal 1. A bela individualidade 2. Relações entre o ideal e a Natureza B - A Determinação Do Ideal 1. A determinação do Ideal como tal I - O Divino como Unidade e Universalidade II - O Divino como Pluralidade de Deuses III - A Serenidade do Ideal 2. A Ação I - O Estado Geral do Mundo a) A independência individual e a idade heroica b) Caráter prosaico do tempo atual c) Reconstituição da independência individual II - A Situação a) Ausência da situação b) A situação determinada anódina c) A colisão III - A Ação a) As forças gerais da ação b) Os indivíduos agentes c) O caráter 3. A determinação exterior do Ideal I - A exterioridade abstrata como tal II - Do acordo entre o ideal concreto e a sua realidade exterior III - O aspecto exterior da obra de arte ideal nas suas relações com o público C - O Artista 1. Imaginação. Gênio. Inspiração a) A imaginação b) O talento e o gênio c) A inspiração 2. A objetividade da representação 3. A maneira. O estilo. A originalidade a) A maneira subjetiva b) O estilo c) A originalidade CAPÍTULO I A Concepção Objetiva da Arte 1ª SEÇÃO - DEFINIÇÕES GERAIS I - RELAÇÕES ENTRE O BELO ARTÍSTICO E O BELO NATURAL Esta obra é dedicada à estética, quer dizer: à filosofia, à ciência do belo, e, mais precisamente, do belo artístico, pois dela se exclui o belo natural. Para justificar esta exclusão, poderíamos dizer que a toda ciência cabe o direito de se definir como queira; não é, porém, em virtude de uma arbitrária decisão que só o belo artístico é o objeto escolhido pela filosofia. O hábito que temos de, na vida cotidiana, falarmos de um belo céu, de uma bela árvore, de um belo homem, de uma bela demonstração, de uma bela cor etc., leva-nos a ver como definição arbitrária a que exclui o belo natural. Não podemos agora examinar a questão de saber se há razão em qualificar de belos objetos da natureza como o céu, o som, a cor etc., se tais objetos merecem em geral aquela qualificação e se, por conseguinte, na mesma definição deveremos abranger o belo natural e o belo artístico. Segundo a opinião corrente, a beleza criada pela arte seria muito inferior à da natureza e o maior mérito da arte residiria em aproximar as suas criações do belo natural. Se, na verdade, assim acontecesse, ficaria excluída da estética, compreendida como ciência unicamente do belo artístico, uma grande parte do domínio da arte. Mas, contra esta maneira de ver, julgamos nós poder afirmar que o belo artístico é superior ao belo natural, por ser um produto do espírito que, superior à natureza, comunica esta superioridade aos seus produtos e, por conseguinte, à arte; por isso é o belo artístico superior ao belo natural. Tudo quanto provém do espírito é superior ao que existe na natureza. A pior das ideias que perpasse pelo espírito de um homem é melhor e mais elevada do que a mais grandiosa produção da natureza - justamente porque essa ideia participa do espírito, porque o espiritual é superior ao natural. Examinando de perto o conteúdo do belo natural, o sol, por exemplo, deparamos com um momento absoluto, essencial, na existência, na organização da natureza, ao passo que uma má ideia é algo de passageiro e fugidio. Mas, quando assim consideramos o sol do ponto de vista da sua necessidade e da função necessária que ele desempenha no conjunto da natureza, excluímos a beleza, como que abstraímos dela, para apenas repararmos na existência necessária do sol. Ora, só o espírito engendra o belo artístico que, como produto do espírito, é superior à natureza. Bem sabemos que superior é um qualificativo vago. E ao dizermos que o belo artístico é superior ao belo natural, convém precisar o que por isso entendemos. O comparativo superior apenas indica uma diferença quantitativa, isto é, nada significa. O que está acima de uma coisa só no domínio espacial difere dessa coisa, podendo ser-lhe idêntica em outros domínios. Ora, a diferença entre o belo artístico e o belo natural não é uma simples diferença quantitativa. A superioridade do belo artístico provém da participação no espírito e, portanto, na verdade, se bem que aquilo que existe só exista pelo que lhe é superior, e só graças a esse superior é o que é e possui o que possui. Só o espírito é verdade. Só enquanto espiritualidade existe o que existe. O belo natural será, assim, um reflexo do espírito, pois só é belo enquanto participante do espírito, e dever-se-á conceber como um modo imperfeito do espírito, como um modo contido no espírito, como um modo privado de independência e subordinado ao espírito. A definição que propusemos para a nossa ciência nada tem, pois, de arbitrária. O belo produzido pelo espírito é o objeto, a criação do espírito, e toda a criação do espírito é um objeto a que se não pode recusar dignidade. No cerne da nossa ciência, vamos pois estudar as relações entre o belo artístico e o belo natural, questão na verdade muito importante. Basta-me, por agora, afastar a acusação de arbitrariedade ao determinar que só é belo o que possui expressão artística, o que é criação do espírito, e que só enquanto relacionado com o espírito, ao natural se pode atribuir a beleza. Tudo quanto em suma queremos dizer é que as relações entre as duas variedades da beleza não são as de simples vizinhança. Podemos, pois, precisar o objeto do nosso estudo dizendo-o formado pelo domínio do belo e, com maior rigor, pelo domínio da arte. Não há situação da vida em que não intervenha a beleza, gênio amigável com que nos encontramos sempre. Basta-nos olhar à nossa volta e perguntarmo-nos onde, como, em que forma este gênio se nos apresenta para o encontrarmos vinculado por laços remotos e íntimos à religião e à filosofia. Sempre a arte foi para o homem instrumento de consciencialização das ideias e dos interesses mais nobres do espírito. Foi nas obras artísticas que os povos depuseram as concepções mais altas, onde as exprimiram e as consciencializaram. A sabedoria e a religião concretizaram-se em formas criadas pela arte que nos oferece a chave para decifrar o segredo da sabedoria e da religião dos povos. Religiões há em que a arte foi o único meio que a ideia nascida no espírito utilizou para se tornar objeto de representação. Este é o problema que vamos submeter a um exame científico ou, antes, filosófico científico. II - O PONTO DE PARTIDA DA ESTÉTICA A questão inicial que se nos apresenta é a seguinte: por onde iremos abordar a nossa ciência, que nos irá servir de introdução na filosofia do belo? Claro que é impossível abordar uma ciência sem preparação, que é sobretudo necessária quando se tratar de uma ciência cujo objeto seja de ordem espiritual. Qualquer que seja o objeto de uma ciência e qualquer que seja a própria ciência, em dois pontos se deve demorar a nossa atenção: um, o de que tal objeto existe, outro, o de saber aquilo que ele é. Nas ciências ordinárias, o primeiro ponto não oferece nenhuma dificuldade. Pareceria até ridículo exigir à geometria a demonstração da existência de um espaço, de triângulos, de quadrados etc.; exigir à física a demonstração da existência do sol, das estrelas, dos fenômenos magnéticos etc. Nas ciências como estas, que se ocupam daquilo que existe no mundo sensível, está na experiência exterior a origem dos objetos que não é preciso demonstrar, mas que basta mostrar. Mas já em certas disciplinas, não filosóficas até, podem surgir dúvidas quanto à existência dos seus objetos, como, por exemplo, em psicologia, na doutrina do espírito; pode-se, evidentemente, perguntar se existe uma alma, um espírito, isto é, entidades subjetivas, imateriais, tal como, em teologia, se pode perguntar se Deus existe. Quando é subjetiva a natureza dos objetos, quer dizer: quando os objetos existem no espírito, não fazem parte do mundo do material sensível, sabemos que existem no espírito como produtos da própria atividade espiritual. Várias eventualidades surgem então: a atividade do espírito ou se traduziu na formação de representações e intuições internas ou se manteve estéril; e no primeiro caso, aquelas formas podem também ter desaparecido ou degenerado em representações puramente subjetivas a cujo conteúdo nos é vedado atribuir um ser em si e para si. A realização de uma ou outra destas eventualidades virá então a depender apenas do acaso. E assim é que, por exemplo, o belo muitas vezes aparece na representação, não como necessário em si e para si, mas como origem acidental de mera adesão subjetiva. As intuições, observações e percepções externas já frequentemente são enganadoras e errôneas; com mais forte motivo o serão as representações internas até que possuam a vivacidade irresistível que nos arrasta à paixão. Esta dúvida quanto a saber se um objeto da representação e da intuição internas existe ou não existe de um modo geral, assim como o acaso que preside à formação desta representação ou intuição na consciência subjetiva e à sua correlação ou não correlação com o objeto enquanto ser em si e para si, são a dúvida e o acaso que justamente despertam a mais nobre exigência científica de, perante a própria existência de um objeto, demonstrar a sua necessidade. Uma vez realizada esta demonstração, de um modo verdadeiramente científico, logo ela implica a resposta a outra questão: a de saber o que é o objeto. Insistir neste ponto seria alongarmo-nos demasiado; por isso nos limitaremos às observações seguintes. São as ciências filosóficas as que mais solicitam uma introdução, visto que nas outras ciências se conhecem o objeto e o método: deste modo, as ciências naturais têm o objeto na planta ou no animal e a geometria, no espaço. O objeto de uma ciência natural é, pois, algo de dado que não necessita de definição nem de rigor. O mesmo acontece com o método, fixado de uma vez para sempre e por todos admitido. Pelo contrário, as ciências sobre produtos do espírito solicitam uma introdução, um prefácio. Quer se trate do direito, da virtude, da moralidade etc., quer se trate do belo, nunca o objeto possui as determinações tão firmemente estabelecidas e tão geralmente aceites que dispensem que um trabalho prévio lhes seja especialmente dedicado. A solicitação deste trabalho na estética, por exemplo, apresenta-se logo que consideramos, uma após outra, as diferentes concepções do belo, que revemos os diferentes pontos de vista e as diversas categorias aplicadas ao belo, os analisamos e os confrontamos racionalmente com os elementos que possuímos para tentar extrair o conceito e obter uma definição do belo. Com este fito, devemos utilizar as ideias que já possuímos para ver se o conceito demandado não promanará da mesma introdução. Justifica-se este processo porque, como dissemos, a consideração filosófica de um objeto nada tem de comum com o raciocínio vulgar, seus silogismos, sua concessão de ideias etc. Uma ciência filosófica tem que afastar os pontos de vista e os processos adotados pelas outras ciências, e elaborar ela mesma o seu próprio conceito e a justificação dele. Pode acontecer que, no decorrer da meditação filosófica de um assunto, outras sucessões de ideias, outras representações e concepções venham ocupar o primeiro lugar e substituir o puro método da filosofia. Ainda assim, é preciso que estas ideias, representações e concepções incluam elementos de necessidade e não constituam produtos meramente arbitrários, acidentais, sem consistência e sem futuro. Quando isso aconteça, temos o recurso de renunciar à representação exterior, como começo, para abordamos diretamente a própria coisa. Também acontece que toda a ciência particular, quando considerada como ciência filosófica, apresenta ligações com uma ciência antecedente. Começa ela pelo conceito de um objeto determinado, por um conceito filosófico determinado, mas que se deve já ter revelado como necessário. Tudo o que for pressuposto deve-o ser de tal modo que se imponha como necessário. Em filosofia, não podemos invocar representações a partir de princípios que não resultem de uma antecedente elaboração. A necessidade das pressuposições deve estar provada e demonstrada, pois a filosofia só aceita o que possua o caráter de necessidade, isto é, tudo nela deve aparecer com o valor de um resultado. A filosofia da arte constitui um capítulo necessário no conjunto da filosofia, e é integrada neste conjunto que pode ser compreendida. Só assim a sua existência é suscetível de demonstração e justificação, pois demonstrar algo é mostrar a sua necessidade. Esta demonstração, que viria a reconstituir a formação da filosofia a partir do conceito dela, não está nos nossos propósitos. Propomo-nos apenas a considerar a filosofia da arte de um modo lemático, que é o modo de considerar separadamente qualquer ciência filosófica. No seu conjunto é que a filosofia nos dá o conhecimento do universo como totalidade orgânica, totalidade que se desenvolve a partir do conceito e que, nada perdendo do que faz dela um conjunto, um todo cujas partes estão unidas pela necessidade, a si mesma regressa e no regresso a si mesma forma um mundo de verdade. Cada parte, na coroa assim formada pela necessidade científica, representa um círculo regressando a si mesmo sem cessação das relações de necessidade com as outras partes; e representa não só um aquém donde extrai a origem como um além que de novo a atrai, assim engendrando, no seio fecundo, os elementos novos com que enriquece o conhecimento científico. Nosso propósito atual não consiste, pois, em demonstrar a ideia do belo como um resultado necessário deduzido dos pressupostos preliminares à ciência que neles se formou, mas em seguir o desenvolvimento enciclopédico da totalidade da filosofia assim como o das suas disciplinas particulares. Pensamos nós que o conceito do belo e da arte é um pressuposto advindo do sistema da filosofia. Mas porque é impossível examinar agora este sistema e as suas relações com a arte, ficamos distanciados do conceito científico do belo, e temos de nos contentar em conhecer seus diversos elementos e aspectos tais como se encontram ou foram anteriormente concebidos nas diversas representações do belo artístico pertencentes à consciência vulgar. Partindo destas representações, havemos de chegar a concepções mais fundamentadas que desde logo nos permitirão formar uma ideia geral do nosso objeto e adquirir, mediante uma rápida análise crítica, um conhecimento compreensivo das determinações mais elevadas que se nos virão a deparar. Deste modo, nossa última consideração introdutória será, simultaneamente, uma introdução ao exame da coisa mesma e um meio de orientação para o objeto do nosso interesse que vai passar a absorver-nos toda a atenção. Uma vez isolada esta ciência, vamos agora começar de um modo direto; não a podemos dar como um resultado, visto que não consideramos os antecedentes. Por isso, uma única representação começamos por encontrar perante nós: a de que há obras de arte. Esta representação geral é suscetível de nos fornecer um ponto de partida apropriado. Começaremos por formar uma ideia clara desta representação e dos pontos de vista de onde precedentemente era considerada. Isso nos permitirá verificar e justificar a representação geral e mostrar as relações que ela apresenta com o conteúdo e com o lado material da arte. Temos na arte um particular modo de manifestação do espírito; dizemos que a arte é uma das formas de manifestação porque o espírito, para se realizar, pode revestir múltiplas formas. O modo particular da manifestação do espírito constitui, essencialmente, um resultado. A investigação do caminho seguido até uma forma particular e a demonstração da necessidade desta forma pertencem ao domínio de outra ciência, que previamente deve ter sido tratada. Assim é que nunca a filosofia, ao começar qualquer assunto, procede como se esse fosse um começo direto, antes o apresenta como uma derivação, como algo de já demonstrado; a filosofia exige a provação de que o ponto de vista escolhido se impõe como necessário. E a própria filosofia que exige, para o começo, para o conceito da arte, um antecedente, a fim de que esse conceito seja um resultado demonstrado, um ponto de chegada necessário. Podemos dizer que não há, em ciência, começo absoluto. Por começo absoluto entende-se muitas vezes um começo abstrato, um começo que não passa de começo. Mas, sendo a filosofia uma totalidade, como tal tem o seu começo em tudo. Ora, essencialmente, em tudo este começo é um resultado. É preciso conceber a filosofia como um círculo regressando a si mesmo. Considerando que só vamos tratar de uma parte da filosofia, e não dos seus antecedentes, somos portanto obrigados a precisar, nesta introdução, o ponto de vista onde nos decidimos situar. Como são representações da nossa consciência os antecedentes que podemos utilizar, a elas iremos ligar os esclarecimentos do nosso ponto de vista; comecemos, pois, pelas representações que possuímos. Numa primeira introdução, e pelo menos de um modo geral, mostraremos a maneira por que vamos estudar o nosso assunto, por mais não seja do que pela oposição em que ela se encontra com as outras maneiras de tratá-lo. Em segundo lugar, procuraremos, nas representações que possuímos, aqueles elementos que sejam suscetíveis de nos fornecer os materiais para a construção do conceito. Quer dizer que não deixaremos as representações na forma em que as encontramos, mas conferiremos ao conteúdo delas o que for necessário e essencial para o conceito filosófico. Em contrapartida, constituirão as outras partes da filosofia a introdução verdadeiramente científica. Começaremos, portanto, pela exposição da nossa maneira de tratar o assunto para, em seguida, examinarmos as determinações em relação com o conteúdo. Propunha-me eu, no que acabo de dizer, a mostrar como deve ser feita a introdução a uma ciência filosófica. Não pode ela ser completa, porque uma introdução completa seria já a outra parte, o conjunto da filosofia. Ora, o que nos interessa aqui é a parte e não o conjunto. Para esclarecer este ponto de vista, temos de nos voltar para as representações que, por se ligarem ao nosso assunto, determinam o conteúdo possível do conceito que procuramos. Exponhamos, pois, a maneira por que entendemos dever ser tratado o assunto. Para abordarmos esta exposição, procuraremos as representações referentes ao belo que guardamos na nossa memória, quais as ideias que os homens formam da arte, e logo se nos deparam ideias e representações que se opõem a uma filosofia da arte eriçando de dificuldades o seu caminho. Essas representações são duas. III - OBJEÇÕES À IDEIA DE UMA FILOSOFIA DA ARTE Uma objeção proviria da infinidade do domínio do belo, da infinita variedade daquilo a que se chama belo. A outra objeção partiria do pretexto de que o belo é objeto da imaginação, da intuição, do sentimento, para, por conseguinte, concluir que ele não poderá constituir objeto de uma ciência nem prestar-se à especulação filosófica. Diz-se ainda que é graças à arte que nós nos libertamos do reino perturbado, obscuro, crepuscular dos pensamentos para, recuperada a nossa liberdade, ascendermos ao reino tranquilo das aparências amigáveis. À primeira vista, assim aparece como uma veleidade contraditória querer subordinar o belo às ideias. Comecemos por considerar estas primeiras objeções. Quanto à primeira, sabemos, de um modo geral, que os objetos belos são de infinita variedade: criações da escultura, da poesia, da pintura, para só destas falarmos. Cada uma das artes oferece já uma quantidade infinita de formas, pois inumeráveis são as formas produzidas por cada arte entre os diferentes povos e nas diferentes épocas. Que é que não foi considerado belo na diversidade dos povos e na diversidade das épocas? Que diferença entre estes inumeráveis objetos! E como haveríamos de classificá-los? A variedade e a multiplicidade característica dos produtos da arte, mais do que qualquer outra produção do espírito, levantariam um obstáculo intransponível à constituição de uma ciência do belo. É, pois, apresentada a arte como incapaz de se prestar a um estudo científico porque, além de produto da imaginação que dispõe de toda a riqueza da natureza, ela possui ainda o condão de criar formas extraídas de si própria. Ora, só há ciência do necessário, não há ciência do acidental. A maneira habitual de nas ciências proceder consiste em considerar, como base, certos objetos particulares, fatos, experiências, fenômenos etc., e deduzir em seguida um conceito que seria, no nosso caso, o belo e a sua teoria. Segundo este critério, começa-se por dominar as formas particulares, classificá-las em gêneros e deduzir em seguida as regras particulares válidas em cada gênero e aplicáveis como receitas para a preparação, para a fabricação das obras de arte. Chegar-se-ia assim a constituir uma teoria da arte. Não se trata aqui de um exame inteligente, perspicaz, engenhoso das obras de arte particulares; trata-se de uma coisa muito diferente que deu os resultados mais instrutivos, mais fundamentais, e mais perfeitos, mas que em nada contribuiu para a constituição de uma teoria geral. Os resultados obtidos por esta maneira de tratar a variedade e a multiplicidade da arte revelaram-se negativos, e nem de outro modo podia ter acontecido. Seguindo este caminho, é impossível descobrir uma regra que distinga o que é belo do que o não seja, quer dizer, é impossível formular um critério do belo. Sabe-se como os gostos diferem infinitamente, de gustibus non disputandum; é, portanto, impossível fixar regras gerais aplicáveis à arte. E quando o resultado, daquele modo obtido, se revelar menos negativo, quando, apesar da sua negatividade, tiver um conteúdo afirmativo, então este conteúdo só pode ser abstrato e superficial. Com efeito, as determinações são de tal modo diversas e diferentes entre si, que nenhuma delas se revela essencial e aplicável a tudo o que é belo. Poder-se-á sempre descobrir outras determinações, igualmente aplicáveis ao que é belo, mas não a esta ou àquela beleza, não à beleza que nos interessa. A determinação geral, que permanece após todas as eliminações, é a de que a arte destinar-se-ia a despertar em nós sensações agradáveis mediante a criação de formas com a aparência da vida. Além de nada poder ser mais vago do que esta definição, a expressão "sensações agradáveis" é de uma trivialidade impressionante. Tempo houve em que só se tratava destas sensações agradáveis, do seu aparecimento e desenvolvimento, e foram então publicadas muitas teorias da arte. Mais precisamente, foi durante a última fase da filosofia de Wolf que esta concepção ou, antes, esta categoria motivou numerosas discussões, mas o assunto era demasiado mesquinho para se prestar a ser desenvolvido. Dessa época data o aparecimento da palavra estética. Foi Baumgarten quem denominou de estética a ciência das sensações, esta teoria do belo. Só aos alemães esta palavra é familiar. Os franceses dizem théorie des arts ou des belles lettres. Os ingleses incluem-na na critico Os principais críticos de Home gozaram de grande voga no tempo em que este autor publicou a sua obra. Na verdade, o termo estética não é o que mais propriamente convém. Já se propuseram outras denominações - "teoria das belas ciências", "das belas-artes" - que não foram aceites e com razão. Empregou-se também o termo "calística", mas do que se trata é, não do belo em geral, mas do belo como criação da arte. Conservemos, pois, o termo Estética, não porque o nome nos importe pouco, mas porque este termo adquiriu direito de cidadania na linguagem corrente, o que é já um argumento em favor da sua conservação. O referido modo de raciocinar não vai além de resultados assim inteiramente superficiais na questão que nos interessa: a do conceito da arte. O mesmo acontece nas outras ciências. Não é caracterizando uma espécie por uma definição qualquer que se chega ao conceito dessa espécie. Para chegarmos a saber o que é, por exemplo, um animal, recorremos nós aos animais que conhecemos? De modo algum. Se, por exemplo, definirmos o animal pela livre mobilidade, pela possibilidade de deslocação etc., logo nos apercebemos de que a ostra e muitos outros animais não entram nesta definição; se o definirmos pela sensibilidade, logo encontramos a mimosa, que, embora não seja um animal, possui sensibilidade. Sempre que se tentar distinguir as espécies e os gêneros mediante determinações isoladas, encontrar-se-ão exemplos que escapam a essas determinações. Engana-se, pois, quem pensar que a ciência segue sempre este caminho, caminho completamente vedado à filosofia. A orientação da filosofia modificou-se em geral, e a investigação filosófica aventurou-se por outras vias. Seria necessária esta mudança de orientação? É um problema que não podemos considerar agora, pois pertence ele à natureza do conhecimento filosófico que já tratamos na Lógica. Lembraremos apenas alguns fatos históricos ou lemáticos. O que tem de servir de base não é o particular, não são as particularidades, não são os objetos, fenômenos etc., particulares: é a ideia. Pela ideia, pelo universal, se deve começar em tudo e, por conseguinte, também no nosso domínio. Iremos, pois, começar pela ideia do belo. As referidas e pretensas teorias, ao contrário, partem das particularidades para chegarem ao conceito, ao universal. A nós, aparece-nos em primeiro lugar a ideia em si e para si, não a ideia derivada, deduzida de objetos particulares. Viremos ainda a falar deste começo. Aceitamos, pois, no seu pleno significado, as palavras de Platão: Deve-se considerar, não os objetos particulares qualificados de belos, mas o belo? O começo pela ideia afasta a dificuldade, o embaraço que nos criaria a grande variedade, a infinita multiplicidade dos objetos chamados belos. Não nos perturbam, portanto, as oposições entre os objetos qualificados de belos: estas oposições são afastadas, suprimidas como também se afasta e suprime a quantidade, a multidão dos objetos contraditórios. Nós começamos pelo belo como tal. E esta ideia, que é una, ir-se-á diferenciando, particularizando, a partir de si própria, irá originando a variedade, a multiplicidade, as diferenças, as múltiplas e diversas formas e figuras da arte que, então, se vêm a apresentar como produções necessárias. Com mais aparência de razão se poderia objetar que, embora as belas-artes se prestem à reflexão filosófica, elas não podem constituir objeto de um estudo científico propriamente dito. A beleza artística, com efeito, dirige-se aos sentidos, à sensação, à intuição, à imaginação etc., pertence a esse domínio aparte do pensamento, e a compreensão da sua atividade e dos seus produtos exige, pois, um órgão diferente do pensamento científico. Além disso, o que fruímos da beleza artística é a liberdade das produções e das formas, como se pela criação e contemplação das obras de arte escapássemos aos entraves das regras e regulamentos; como se, fugindo ao rigor das leis e ao íntimo sombrio do pensamento, procurássemos a calma e a ação vivificante das obras de arte; como se trocássemos o reino das sombras a que preside a ideia pela serena e robusta realidade. Enfim, as obras de arte brotaram da atividade livre da imaginação, mais livre do que a da natureza. A arte não disporia apenas de toda a riqueza das formas naturais, de aparência infinitamente múltipla e variada, pois seria ainda capaz de, pela imaginação criadora, exteriorizar-se em intenções de que ela mesma é nascente inesgotável. Em face de tão incomensurável plenitude da imaginação e dos seus produtos, parece que ao pensamento faltaria a coragem para, diante do seu tribunal, citar a arte, pronunciar-se sobre os seus produtos e classifica-los em rubricas gerais. Concorda-se, pelo contrário, em que a ciência é obra do pensamento entregue a um esforço abstrativo a partir da multidão dos pormenores particulares, o que implica, por um lado, o afastamento da imaginação com tudo o que a sua atividade tem de acidental e arbitrário, quer dizer, o afastamento do órgão da atividade e do prazer artísticos. Por outro lado, depois de se considerar que a arte vivifica a secura árida e sombria do conceito, que concilia as abstrações com a realidade, que completa o conceito com o real, vêm-nos dizer que o estudo pensante da arte destrói a eficácia deste meio de conciliação, suprime-o e reconduz o conceito à simplicidade irreal e ao estado de sombra e abstração. Mais ainda: pelo conteúdo próprio, a ciência ocupa-se do que é necessário em si. Ora, se a estética aparta o belo natural, resulta que, além de nada ganharmos, mais nos afastamos do necessário. Pois o termo natureza não implica já a ideia de necessidade e de regularidade, quer dizer, a de uma atitude que parece entregar-se e oferecer-se ao estudo científico? Ao contrário do que acontece na natureza, a arbitrariedade e a anarquia reinam, absolutas, no espírito em geral e, sobretudo, na imaginação, pelo que os seus produtos, isto é, a arte, se tornam completamente impróprios para o estudo científico. Em todos estes aspectos, tanto pela origem como pelo conteúdo e pela extensão, as belas-artes revelar-se-iam, não dignas de um esforço científico, mas refratárias a qualquer regulamentação do pensamento e, por conseguinte, a qualquer elaboração científica. Todos estes argumentos, e outros análogos, utilizados para provar a impossibilidade de um estudo verdadeiramente científico das belas-artes, são inspirados por representações, reflexões e pontos de vista correntes que se encontram desenvolvidos em obras antigas, sobretudo francesas. Deve-se reconhecer que estas obras contêm fatos exatos e, a propósito destes fatos, raciocínios que parecem justos e plausíveis. Citaremos, por exemplo, o fato, invocado por esses autores, da infinita variedade de forma que o belo pode revestir, variedade tão grande como a difusão do belo em geral; daqui se deduzirá, caso se queira, a existência de um instinto do belo na natureza humana, e se concluirá ainda, já que as ideias sobre o belo apresentam uma tão grande variedade e, ao mesmo tempo, tantas particularidades, que não pode haver ideias gerais do belo e do gosto. Antes de abandonarmos estas considerações e regressarmos à questão que nos interessa, vamos tentar, a título puramente introdutório, uma breve refutação destas objeções e dúvidas. Uma segunda causa de embaraços, que pode surgir quando se trata da filosofia da arte, provém da nossa ignorância do critério que permite reconhecer o que é belo, e também da convicção ou opinião direta de que o belo não poderá pertencer ao âmbito da filosofia. Apartemos, por enquanto, a afirmação de que o âmbito do saber, e por conseguinte, da filosofia, se limita unicamente ao que se refere à intuição, à sensação e ao sentimento. É pelo menos o que se afirma e é aceite quanto à religião; quanto à arte, já se admite que, a propósito dela, se podem desenvolver raciocínios e reflexões. O pensamento, diz-se tem um processo científico, filosófico, e o belo e a arte são de tal natureza que escapam às possibilidades da filosofia. O belo apareceria, justamente, numa forma oposta à filosofia. A arte teria como campo de ação a esfera dos sentimentos e das intuições dependentes, por outro lado, da imaginação, e dirigir-se-ia assim a um domínio do espírito muito diferente do da filosofia para despertar uma ordem de pensamentos muito diferentes do pensamento filosófico. Professa-se a opinião de que a vida em geral e tudo o que nela participa, compreendida a arte, não são apreensíveis pelo pensamento. Parece que é justamente pela arte que se escapa ao conceito, porque, conforme se pensa, o objeto dela é incompatível com o pensamento, com o conceito, e destruir-se-á o que uma obra tem de especificamente artístico, sempre que se queira introduzir nela um pensamento. Algumas palavras bastam a respeito desta dificuldade que se pretenderia opor à possibilidade de reconhecer uma obra de arte. Não é este o lugar de insistir em pormenores. Há uma objeção que parece ainda hoje gozar de certa autoridade: a de que as obras de arte escapariam ao domínio do pensamento científico porque a sua origem estaria na imaginação indisciplinada e no sentimento e, portanto, assim infinitamente variadas e múltiplas, só agiriam, por sua vez, na imaginação e no sentimento. Esta maneira de ver relaciona-se com a opinião de que o real em geral, a vida da natura e do espírito em particular, ficam deformados e até destruídos sempre que, ao procurarmos apreendê-los, em lugar de os aproximarmos de nós, utilizamos o pensamento conceitual que aprofunda a cisão do abismo, visto que o homem, ao servir-se do pensamento como meio de apreender a vida e o real, ilude-se e chega ao resultado oposto. Não podemos agora submeter esta questão a uma análise minuciosa. E contentamo-nos em indicar o ponto de vista que consideramos conveniente para afastar esta dificuldade, impossibilidade ou inépcia. Afirmação incontestável é a de que o espírito pode considerar-se a si próprio, dotado como é de uma consciência que lhe permite pensar-se a si próprio e a tudo quanto origina. Porque o pensamento constitui a mais íntima e essencial natureza do espírito. Graças a esta consciência pensante que tem de si mesmo e qualquer que seja a aparência de liberdade ou de arbitrariedade que os seus produtos possam apresentar comporta-se o espírito, se é na verdade imanente, em conformidade com a essência e a natureza próprias. Ora, originadas e engendradas pelo espírito, a arte e as obras artísticas são de natureza espiritual, até quando oferecendo a representação uma aparência sensível, esta esteja penetrada no espírito. Neste aspecto, já a arte se aproxima mais do espírito e do pensamento do que da natureza exterior, inanimada e inerte; o espírito revê-se nos produtos da arte. E quando a obra de arte não exprime pensamentos e conceitos, mas representa o desenvolvimento do conceito a partir de si para uma alteração no exterior, até então o espírito pode apreender-se a si mesmo na forma que lhe é própria e que é a do pensamento, e ainda reconhecer-se como tal na alteração em forma de sentimento e de sensibilidade, em suma, apreender-se a si neste outro ele próprio. Não se julgue que, ao comportar-se para com o outro como para consigo, o espírito se torna infiel ao que realmente é, ou se esquece, apaga e mostra incapaz de apreender o que difere de si; antes, compreende assim ele próprio e o seu contrário. O conceito, universal que subsiste nas manifestações particulares e se excede a si e ao outro, tem assim o poder e a atividade necessários para suprimir a alteração que se havia imposto. Por isso, a obra de arte, onde o pensamento de si se aliena, pertence ao domínio do pensamento conceitual, e o espírito, submetendo-a ao exame científico, satisfaz à exigência da sua mais íntima natureza. Constituindo o pensamento a essência e o conceito do espírito, este só se satisfaz quando penetra de pensamento todos os produtos da sua atividade e assim os torna verdadeiramente seus. Ora, a arte, como mais adiante nitidamente veremos, não é a forma mais elevada do espírito e recebe na ciência a sua verdadeira consagração. A tudo isto podemos acrescentar as novas razões que a nossa época nos traz para justificar a aplicação à arte do ponto de vista do pensamento. Tais razões provêm das relações estabelecidas entre a arte e nós, do nível e da forma da nossa cultura. Já para nós a arte não possui o alto destino que outrora teve. Já para nós apenas objeto de representação, a arte não possui aquela imediateidade, aquela plenitude vital, aquela realidade que entre os gregos teve na época do seu florescimento. Poder-se-á deplorar que sejam para nós coisas desaparecidas a sublime beleza da arte grega e o conceito, o conteúdo de época tão bela; poder-se-á explicar esta situação pelas maiores dificuldades de viver, provenientes da crescente complexidade da vida social e política, e poder-se-á deplorar que a nossa atenção tenha sido absorvida por interesses mesquinhos e visões utilitárias que tiraram à alma aquela serenidade e aquela liberdade que proporcionam o gozo desinteressado da arte. Tal como é, a nossa cultura veio a ficar inteiramente dominada pela regra geral, pela lei. A estas determinações gerais se deu o nome de conceitos e o conceito tornou-se, por seu turno, uma determinação abstrata. Disse Schiller, a este respeito, as palavras precisas: todos contam por um; triste é o poder que sobre eles o conceito exerce. Veio a ser um hábito da nossa inteligência, quase uma segunda natureza, a definição do particular segundo princípios gerais: dever, princípio, direito, máxima etc. O indivíduo é determinado por tais regras e princípios. Adquirimos o hábito de levar a nossa reflexão para estes pontos de vista gerais que consideramos como determinantes, hábito que seguramente não é um produto da vida artística. O que exigimos a uma obra de arte é que participe da vida, e à arte em geral exigimos que não seja dominada por abstrações como a lei, o direito, a máxima, que a generalidade que exprima não seja estranha ao coração, ao sentimento, e que a imagem existente na imaginação tenha uma forma concreta. Mas como a nossa cultura se não caracteriza por um excesso de vida, como o nosso espírito e a nossa alma já não obtêm satisfação dos objetos animados por um sopro de vida, não é do ponto de vista da cultura, da nossa cultura, que poderemos apreciar o justo valor, a missão e a dignidade da arte. A satisfação que nela procuraram e encontraram outros povos não no-la oferece, a nós, a arte. Nossos interesses e exigências deslocaram-se na esfera da representação, e, para os satisfazer, é preciso recorrer à reflexão, aos pensamentos, às abstrações, a representações abstratas e gerais. Por isso a arte já não ocupa o lugar de outrora no que há de verdadeiramente vivo na vida, e sobrepuseram-lhe representações gerais e reflexões; por isso, as reflexões e pensamentos se aplicam hoje à arte; por isso a arte dos nossos dias tem por finalidade servir de objeto ao pensamento. Ainda se pretende, todavia, que a arte não seja apta para um tratamento filosófico. Será a arte, como nos disseram já, um amável gênio que adorna os nossos ambientes exteriores e interiores, suaviza a seriedade das circunstâncias, atenua a complexidade do real, deleita com sortilégios os nossos devaneios, e quando nada de bom produz, ocupa, para maiores proveito e prazer nossos, o lugar do mal. Porém, se é verdade que a arte intervém em tudo, desde o adorno grosseiro do selvagem até a magnificência dos templos ornamentados com todas as riquezas imagináveis, não é menos verdade que são muito distintas, que são até exteriores e estranhas, as relações destas formas com as verdadeiras finalidades da vida, e quando estas produções da arte se mostram menos nocivas à seriedade dos fins e até parecem favorecê-los pela abstenção do mal, nem assim passam de meios de remissão ou distração do espírito num momento em que os interesses substanciais da vida exigem esforço de tensão, de concentração espiritual. Poderá, portanto, parecer um sinal de pedantismo querer tratar com seriedade científica aquilo que, por sua natureza, é desprovido de seriedade. De todos os modos a arte aparece, nesta concepção, como coisa supérflua que só por feliz acaso não elimina os sentimentos ao pretender suavizá-los com a preocupação e o amor da beleza. Muitas vezes estas razões obrigam a defender as belas-artes declarando que, embora admitindo serem elas um luxo, não são no entanto estranhas às necessidades da vida prática nem incompatíveis com a moral e a piedade, e que, caso sejam efetivamente um luxo, mesmo assim oferecem mais vantagens do que desvantagens. Levando ainda mais longe esta defesa, atribuem-se à arte finalidades sérias, apresentando-a no papel de medianeiro entre a razão e a sensibilidade, entre as inclinações e o dever, chegando a recomendá-la como suscetível de se tornar agente conciliador na luta travada entre aqueles dois elementos opostos. Mas antecipadamente se pode estar certo de que nada resultará para a razão e para o dever de tal tentativa de conciliação pelo simples motivo de que a razão e o dever, igualmente ciosos de uma pureza a que não renunciam, são refratários a qualquer mistura e jamais se prestarão a semelhante acordo. Aliás, atribuindo-lhe aquela missão, não se tornaria a arte mais digna do tratamento científico, pois apenas se conseguiria submetê-la a uma dupla finalidade: por um lado, seriedade e elevação dos fins, por outro lado, incentivo à frivolidade e à indolência. Em lugar de ser um fim em si, a arte passaria a constituir um meio. Outro argumento se poderia ainda opor à possibilidade de um tratamento científico da arte. Dir-se-ia que a arte é o reino da aparência e da ilusão e que, portanto, àquilo a que chamamos belo se poderia também chamar aparente e ilusório. Ora, a aparência e a ilusão não conseguem realizar fins verídicos e dignos de perseguição; aos fins verídicos e sérios têm de corresponder meios fundados na verdade e na seriedade. O meio deve estar em relação com a dignidade dos fins, e a ciência só pode considerar os verdadeiros interesses do espírito por aquilo que neles haja de verdade, quer quanto à realidade exterior, quer na representação humana. Nada é mais certo: a arte cria aparências, e, caso se considere a aparência como algo que não deve ser, concluir-se-á que a existência da arte é ilusória, que as criações artísticas são puras ilusões. Mas que é, no fundo, a aparência? Que relações tem ela com a essência? Não esqueçamos que, para não permanecer na pura abstração, toda a essência, toda a verdade, tem de aparecer. O divino deve ser uno, possuir uma existência diferente daquilo a que chamamos aparência. Mas a aparência não é inessente, pois, pelo contrário, constitui um momento essencial da essência. A verdade existe para si no espírito, aparece em si, manifesta-se para outrem. Há, portanto, várias espécies de aparências que se distinguem quanto ao conteúdo do que aparece. Seja, pois, a arte uma aparência, tenha, pois, a aparência que lhe é própria, mas não será nem terá simplesmente uma aparência. Dissemos nós que a aparência própria da arte pode ser considerada como enganadora quando comparada com o mundo exterior, tal como o vemos do ponto de vista utilitário, ou quando comparada com o nosso mundo sensível e interior. Não chamamos ilusórios aos objetos do mundo exterior nem ao que reside no nosso mundo interior, na nossa consciência. Nada nos impede de afirmar que, comparada com esta realidade, a aparência da arte seja ilusória; mas com idêntica razão se pode dizer que a chamada realidade é uma ilusão ainda mais forte, uma aparência ainda mais enganadora do que a aparência da arte. Na vida empírica e sensitiva, chamamos realidade e consideramos como tal o conjunto dos objetos exteriores e das sensações por eles provocadas. No entanto, todo este conjunto de objetos e sensações é, não um mundo de verdade, mas um mundo de ilusões. Sabemos como a verídica realidade existe para lá da sensação imediata dos objetos que percebemos diretamente. Antes, pois, ao mundo exterior do que à aparência da arte se aplicará o qualificativo de ilusório. Só, com efeito, é verdadeiramente real o que existe em si e para si, o que constitui a substância da natureza e do espírito, o que, existindo no espaço e no tempo, não deixa de, com uma existência verdadeira e real, existir em si e para si. É a arte que nos abre os horizontes das manifestações destas potências universais, que no-las torna aparentes e sensíveis. A essencialidade tanto se manifesta no mundo exterior como no interior, tais como no-los revela a experiência cotidiana; mas manifesta-se num caso de acasos e acidentes, aparece deformada pela imediateidade de elemento sensível, pela arbitrariedade das situações, dos acontecimentos, dos caracteres etc. Entre a aparência e a ilusão deste mundo mau e perecível e o conteúdo verídico dos acontecimentos, cava a arte um abismo para erguer tais acontecimentos e fenômenos a uma realidade mais alta, nascida do espírito. Mais uma vez ainda, as obras de arte não são, em referência à realidade concreta, simples aparências e ilusões, mas possuem uma realidade mais alta e uma existência verídica. É certo que (e deste ponto tornaremos a tratar mais adiante), comparada com o pensamento, a arte pode ser considerada como possuidora de uma existência formada de experiências, e assim ter uma forma inferior à do pensamento. Mas sobre a realidade exterior apresenta a mesma superioridade deste: na arte, como no pensamento, é a verdade que procuramos. Em sua mesma aparência, a arte deixa entrever algo que ultrapassa a aparência: o pensamento; ao passo que o mundo sensível e direto não só não é a revelação do pensamento implícito como ainda o dissimula numa acumulação de impurezas para que ele próprio se distinga e apareça como único representante do real e da verdade. Adestra-se em tornar inacessível o dentro que encerra no fora, isto é, na forma. Pelo contrário, em todas as suas representações, a arte põe-nos em presença de um princípio superior. Naquilo a que chamamos natura, mundo exterior, muito dificilmente o espírito se encontra, se reconhece. De todas as anteriores observações sobre a natureza do belo, resulta que, se a arte pode ser considerada como aparência, tem uma aparência de natureza muito particular. É aparente de um modo que nada tem de comum com o sentido que damos a aparência em geral. A seguir à objeção fundada no caráter pretensamente aparente, ilusório da arte e das criações artísticas, apresenta-se a que recusa à arte a possibilidade de constituir objeto da ciência, embora admitindo que ela pode proporcionar considerações puramente filosóficas. Assenta esta objeção numa falsa premissa que consiste em negar caráter científico às considerações filosóficas. Sobre este ponto, limitar-me-ei a dizer que, quaisquer que sejam as ideias professadas sobre a filosofia, eu considero a reflexão filosófica inseparável da reflexão científica. O papel da filosofia consiste em considerar um objeto pela sua necessidade; não pela necessidade subjetiva ou pelas exteriores: ordem, classificação etc., mas por aquela necessidade que provém da natureza do objeto e que à filosofia incumbe mostrar e demonstrar. É, aliás, esta demonstração que confere caráter científico a um estudo. Mas dado que a necessidade objetiva de um objeto reside em sua natureza lógico-metafísica, nas considerações sobre a arte (que assenta num tão grande número de premissas em relação quer com o conteúdo, quer com a matéria e com os elementos pelos quais roça o acidental) pode-se, deve-se renunciar ao rigor científico e só aplicar o ponto de vista da necessidade ao desenvolvimento interno do conteúdo e dos meios de expressão. A filosofia só conhece as coisas pela sua necessidade interna, e pelo seu desenvolvimento necessário a partir delas mesmas. E é nisso que consiste o caráter da ciência em geral. Poder-se-á ainda objetar a que a arte seja digna de constituir objeto de um estudo científico, apresentando-a como jogo fugidio a serviço dos nossos prazeres e distrações, como destinada a ornamento dos nossos ambientes e objetos exteriores e a dar relevo, pela ornamentação e pela decoração, a outros objetos. Assim compreendida, a arte não seria livre nem independente. Ora, o que nos interessa, o que consideramos é, precisamente, a arte livre. Pode a arte servir de meio a fins que lhe sejam estranhos, ser um jogo jogado por entretém. Mas isso tem ela de comum com o pensamento que por um lado, se basta a si próprio e que, por outro lado, pode também servir de meio a fins de que é completamente excluído. Pode também estar a serviço do acidental e do transitório. No entanto, quando o nosso interesse se volta para o pensamento, nós consideramo-lo em toda a sua independência, e o mesmo devemos fazer quando se trata da arte. O seu mais alto destino, tem-no a arte em comum com a religião e com a filosofia. Como estas, também ela é um modo de expressão do divino, das necessidades e exigências mais elevadas do espírito. Já o dissemos atrás: os povos depuseram as suas mais nobres ideias na arte, que constitui, muitas vezes, o único meio que temos para compreender a religião de um povo. Mas a arte difere da religião e da filosofia pelo poder de dar, das ideias elevadas, uma representação sensível que no-las torna acessíveis. O pensamento penetra nas profundidades de um mundo suprassensível que opõe, como um além, à consciência imediata e à sensação direta; procura, com inteira liberdade, satisfazer às suas exigências de conhecimento erguendo-se acima do aquém que a realidade finita representa. Mas a tal rotura, operada pelo espírito, segue-se uma conciliação, também pelo espírito operada. De si mesmo o espírito extrai as obras artísticas que constituem o primeiro anel intermédio destinado a ligar o exterior, o sensível e o perecível ao pensamento puro, a conciliar a natura e a realidade finita com a liberdade infinita do pensamento compreensivo. Digamos, ainda no mesmo propósito, que se a arte serve para tornar o espírito consciente dos seus interesses, não constitui o mais elevado modo de expressão da verdade, embora assim se tenha julgado durante muito tempo e ainda se julgue devido a um erro de que mais adiante nos ocuparemos. Por agora, contentemo-nos em observar que a arte, até pelo seu conteúdo, se encerra em certos limites, que atua sobre uma matéria sensível e, portanto, apenas tem por conteúdo um determinado grau da verdade. A ideia possui, hoje, uma existência mais profunda que já se não presta à expressão sensível: é o conteúdo da nossa religião e da nossa cultura. Hoje, a arte apresenta um aspecto diferente do que teve em épocas anteriores. E esta ideia mais profunda, cujo ponto externo é representado pelo cristianismo, escapa inteiramente à expressão sensível. Nada tem de comum com o mundo da sensibilidade e em nada afeta as relações amigáveis. Na hierarquia dos meios que servem para exprimir o absoluto, a religião e a cultura provindas da razão ocupam o grau mais elevado, superior ao da arte. A arte é, pois, incapaz de satisfazer à nossa última exigência de absoluto. Já, nos nossos dias, se não veneram as obras de arte, e a nossa atitude perante as criações artísticas é fria e refletida. Em presença delas sentimo-nos livres como se não era outrora, quando as obras de arte constituíam a mais elevada expressão da Ideia. A obra de arte solicita o nosso juízo; seu conteúdo e a exatidão da sua representação são submetidos a um exame refletido. Respeitamos, admiramos a arte; mas acontece que já não vemos nela qualquer coisa que não poderia ser ultrapassada, a manifestação íntima do Absoluto, e submetemo-la à análise do pensamento, não com o intuito de provocar a criação de novas obras de arte, mas antes com o fim de reconhecer a função e o lugar da arte no conjunto da nossa vida. Os bons tempos da arte grega e a idade de ouro da última Idade Média são idos. As condições gerais do tempo presente não são favoráveis à arte. O próprio artista já não é apenas desviado e influenciado por reflexões que ouve formular cada vez mais alto à sua volta, por opiniões e juízos correntes sobre a arte, mas toda a nossa cultura lhe torna impossível, mesmo à força de vontade e decisão, abstrair-se do mundo que à sua volta se agita e das condições a que se encontra sujeito, a não ser que recomece a sua educação e se retire para um isolamento onde possa encontrar o seu paraíso perdido. Em todos os aspectos referentes ao seu supremo destino, a arte é para nós coisa do passado. Com sê-lo, perdeu tudo quanto tinha de autenticamente verdadeiro e vivo, sua realidade e necessidade de outrora, e encontra-se agora relegada na nossa representação. O que, hoje, uma obra de arte em nós suscita é, além do direto aprazimento, um juízo sobre o seu conteúdo e sobre os meios de expressão e ainda sobre o grau de adequação da expressão ao conteúdo. Só temos falado, até aqui, das concepções gerais da arte. Vamos agora falar das determinações referentes ao conteúdo da arte. Também neste ponto encontramos algumas concepções diferentes. 2ª SEÇÃO - AS IDEIAS CORRENTES SOBRE A NATUREZA DA ARTE I - IMITAÇÃO DA NATUREZA Segundo uma delas, a arte deve limitar-se à imitação da natureza, mas da natureza em geral, da interior e da exterior. É um velho preceito, este de que a arte deve imitar a natureza; encontra-se já em Aristóteles. Quando a reflexão ainda estava nos seus primórdios, poderia satisfazê-la tal concepção, que contém sempre alguma coisa de justificável com boas razões e que nos aparecerá como um momento, entre outros, do desenvolvimento da ideia. Segundo esta concepção, o fim essencial da arte consistiria na hábil imitação ou reprodução dos objetos tal como existem na natureza, e a necessidade de uma reprodução assim feita em conformidade com a natureza seria uma origem de prazer. Esta definição atribui à arte uma finalidade puramente formal, a de refazer, com os meios de que o homem dispõe, aquilo que existe no mundo natural e tal como existe. Mas esta repetição afigura-se-nos como uma ocupação negociosa e supérflua, pois que precisão temos nós de rever, em telas ou em palcos, animais, paisagens e acontecimentos humanos que já conhecemos por os havermos visto ou os vermos nos jardins, nas moradias e, em certos casos, por termos ouvido falar deles a pessoas do nosso convívio? E podemos até dizer que estes esforços inúteis se reduzem a uma presunção cujos resultados são sempre inferiores aos que a natureza nos oferece. Porque a arte, com as limitações dos seus meios de expressão, só pode produzir ilusões unilaterais, oferecer a aparência da realidade a um só dos sentidos; com efeito, quando não vai além de simples imitação, é incapaz de nos provocar a impressão de uma realidade viva ou de uma vida real: tudo quanto nos possa oferecer não passa de caricatura da vida. Que pretende o homem ao imitar a natureza? Experimentar-se a si próprio, mostrar habilidade, e regozijar-se por ter fabricado uma coisa com a aparência natural. A questão de saber se e como tal produto será conservado e transmitido a épocas vindouras e comunicado a outros povos e outros países já lhe não importa. O homem regozija-se, antes de tudo, por ter criado um artifício, por ter demonstrado a sua habilidade e por ter verificado de quanto era capaz; regozija-se com a sua obra, regozija-se com o seu trabalho, nos quais conseguiu imitar Deus, dispensador de felicidade e demiurgo. Mas esta alegria e esta admiração de si mesmo não tardam a transformar-se em aborrecimento e insatisfação tanto mais depressa e com tanta maior facilidade quanto mais fielmente a imitação reproduzir o modelo natural. Retratos há dos quais se tem dito, com alguma ironia, serem tão parecidos que causam náuseas. De um modo geral, o prazer provocado por uma imitação feliz é um prazer muito relativo porque o conteúdo, a matéria da imitação, são dados com os quais nada há a fazer senão utiliza-los. Maior prazer deveria sentir o homem produzindo algo que proviesse de si, que lhe fosse próprio, a que pudesse chamar seu. Qualquer utensílio técnico, como um navio ou, mais particularmente, um instrumento científico, dar-lhe-á, por ser uma obra própria, maior prazer do que uma imitação. O pior dos utensílios técnicos terá, a seus olhos, mais valor, e pode ficar orgulhoso por haver inventado o martelo e o prego que são invenções originais e não imitadas. Mostra o homem maior habilidade nas produções provenientes do espírito do que nas imitadas da natureza. Pode-se, no entanto, rivalizar com a natureza, e nessa rivalidade se pensa quando se diz que as produções da natureza são superiores às do espírito. Diz-se que aquelas são obras divinas. Mas Deus é Espírito, e melhor se reconhece no Espírito do que na Natureza. A rivalidade com a natureza constitui um artifício sem valor. A um homem que se orgulhava de atirar lentilhas por um estreito orifício, ofereceu Alexandre, perante o qual mostrou aquela habilidade, alguns alqueires de lentilhas; com que razão procedeu Alexandre, porque o homem se havia adestrado num exercício que, além de inútil, não possuía nenhum significação! O mesmo se dirá de toda a habilidade manifesta na imitação da natureza, como sejam os casos de Zêuxis, que pintava uvas com tal aparência de naturais que os pássaros, iludidos, as vinham picar, e de Práxeas, que pintou uma cortina que iludiu aquele pintor. Conhecem-se várias histórias de ilusões criadas pela arte e delas se fala como de um triunfo da arte. Conta. Blumenbach a história de um velho camarada de Lineu, chamado Büttner, que, gastando todo o seu dinheiro em livros, adquiriu um dia os lnsektenbelustigungen, de Rösel, com as mais belas gravuras coloridas que ele jamais vira (veio a constituir coleções análogas sobre rãs). Como estavam soltas as folhas do seu exemplar, Büttner deparou um dia com um macaco a comer a folha que tinha a gravura de um escaravelho. A alegria que sentiu perante esta cena do macaco enganado pela imagem consolou-o da perda da gravura. Em presença destes exemplos, e de outros semelhantes, dever-se-ia, pelo menos, compreender que, em vez de louvar obras de arte por conseguirem enganar pássaros e macacos, se deveria antes vituperar aqueles que julgam enaltecer o valor de uma obra artística indicando estas banais curiosidades e vendo nelas a expressão mais elevada da arte. De um modo geral, pode dizer-se que a veleidade de rivalizar com a natureza pela imitação para sempre condena a arte a permanecer inferior à natureza, como um verme que se esforça por igualar um elefante. Há homens que sabem imitar os trilos do rouxinol, mas já Kant observou que logo que nós percebemos que é um homem, e não um rouxinol, quem está a cantar, achamos esse canto insípido. Vemos nele um mero artifício, não uma livre produção da natureza ou uma obra de arte. O canto do rouxinol apraz-nos naturalmente, porque ouvimos um animal emitir, na sua inconsciência natural, sons que se assemelham à expressão de sentimentos humanos. O que nos apraz é, portanto, a imitação do humano pela natureza. Pretendendo que a imitação constitua o fim da arte, que a arte consista por conseguinte numa fiel imitação do que existe já, coloca-se a lembrança na base da produção artística. Priva-se, assim, a arte da liberdade, do poder de exprimir o belo. O homem pode, decerto, ter interesse em produzir aparências como a natureza produz formas. Mas não se pode tratar de um interesse puramente subjetivo em que o homem se limita a querer mostrar destreza e habilidade sem considerar o valor objetivo daquilo que é sua intenção produzir. Ora, o valor de um produto provém do conteúdo, na medida em que este participa do espírito. Como imitador, o homem não ultrapassa os limites do natural, ao passo que o conteúdo deve ser de natureza espiritual. A imitação da natureza pela arte possui, apesar de tudo, um valor e um lugar. O pintor dedica-se a longa aprendizagem para se familiarizar com as relações entre as cores, com os efeitos e os reflexos da luz, e o saber transpor para a tela. Aprende, além disso, a conhecer e reproduzir, até as menores distensões, as formas e figuras dos objetos. Foi, sobretudo, em nome desta aprendizagem que, nos últimos tempos, se julgou poder revigorar o princípio da imitação da natureza e do natural. Nele se viu um meio de revigorar uma arte enfraquecida, nebulosa, decadente, ao mesmo tempo em que se pretendeu reagir contra o errôneo de uma arte arbitrária e convencional, com tão pouco de artístico como de natural, mediante o retorno à natureza sempre fiel a si própria, dirigida por leis imutáveis e manifesta de um modo direto. Por louváveis que sejam tais tendências e intuitos, não é menos certo que jamais o naturalismo puro e simples constituirá o fundamento substancial da arte que, embora deva ser natural em suas representações e manifestações exteriores, de modo algum se conforma rigorosamente, naquelas representações e manifestações, com a natureza exterior mediante a servil imitação, pois muito diferente é o fim da arte. Sempre e necessariamente, terão as produções artísticas uma aparência sensível e natural, mas todos concordamos que a arte sempre fica aquém e abaixo do natural como sempre os homens mais hábeis se revelarão ineptos desde que procurem colocar as suas imitações no nível da natureza. Na pintura de retratos, em que se trata de fixar os traços de um rosto, a semelhança constitui, sem dúvida, um elemento muito importante, e, todavia, nos melhores retratos, naqueles reconhecidos como melhor realizados, nunca a semelhança é perfeita, pois sempre lhes falta qualquer coisa em relação ao modelo natural. A imperfeição deste gênero de pintura provém de que, apesar dos esforços para a exatidão, as suas representações são sempre mais abstratas do que os objetos naturais de existência imediata. O mais abstrato é o esquema, o desenho. Quando se empregam cores, quando se tem a natureza do modelo, verifica-se sempre que alguma coisa foi omitida, que a limitação não é tão perfeita como a forma natural. Ora, o que torna estas representações particularmente imperfeitas é a ausência de espiritualidade. Os quadros elaborados para reproduzir rostos humanos precisam mostrar uma expressão de espiritualidade que falta ao homem natural tal como se nos apresenta diretamente no seu aspecto cotidiano. É, pois, o naturalismo incapaz de dar aquela expressão, e nisso manifesta a sua impotência. A expressão de espiritualidade deve dominar toda a pintura. Ao fixar formas sensíveis, é, decerto, necessário que o artista se conforme à natureza, à regra, à imitação, mas não pode esquecer que vai assim obter uma simples abstração. A conformidade com a natureza é de capital importância na imitação, mas não é algo de secundário o que falta às obras da imitação, é antes algo de essencial, o espírito, e a própria intenção de imitar a natureza é já uma intenção de caráter espiritual. Temos um exemplo da consciência desta falta na acusação dirigida por um turco a Bruce quando este lhe mostrou a imagem de um peixe (sabe-se que os turcos, tal como os judeus, abominam as imagens). Disse o turco o seguinte: "Se este peixe se erguer contra ti no Juízo Final para te acusar de o teres feito e lhe não teres dado uma alma como te defenderás?" Já o Profeta, está escrito na Sunna, respondera às mulheres Ommi Habiba e Ommi Selba que lhe falaram das imagens que haviam visto nos templos etíopes: "No dia do Juízo Final, essas imagens acusarão quem as fez". Ao pronunciar-nos deste modo contra a imitação da natureza, queremos, em suma, dizer apenas que o natural não deve ser a regra, a lei suprema da representação artística. Já, aliás, dissemos que ao mundo sensível, ao imediato, aos dados da natureza ou das situações humanas, a arte parece ir buscar o seu conteúdo ou, pelo menos, um tão importante elemento do seu conteúdo como é a exteriorização numa forma concreta. Mas daí até pretender que o conteúdo como tal e enquanto conteúdo seja inteiramente extraído da natureza, medeia uma grande distância; anulando esta distância, fatalmente se acaba por apenas ver, na obra de arte, uma imitação pura e simples da natureza e, nesta imitação, o único, ou o principal, destino da arte. Considerando a imitação como finalidade da arte, o belo objetivo desaparece. Porque se não tratará então de saber como é aquilo que vai ser imitado, mas sim o que será preciso fazer, como se procederá, para obter uma imitação tão perfeita quanto possível. O objeto e o conteúdo do belo tornam-se indiferentes. E se, apesar de tudo, ainda se continuar a falar, a propósito dos homens, dos animais, das paisagens, das ações, dos caracteres etc., nas diferenças da beleza e da fealdade, estas diferenças não podem de modo algum interessar a uma arte reduzida ao mero trabalho de imitação. Uma vez mais: que a arte tenha de pedir as formas à natureza, é afirmação incontestável e da qual ainda viremos a falar mais vezes. É de tal natureza o conteúdo de uma obra de arte que, embora dotado de caráter espiritual, só em formas naturais pode ser representado. Quando de um modo abstrato se diz que a obra de arte é imitação da natureza, parece que se querem impor à atividade do artista limites impeditivos de criação propriamente dita. Ora, como já vimos, ainda quando se imita a natureza tão exatamente quanto possível, jamais se chega a obter a reprodução rigorosamente fiel dos modelos. E, esse, por exemplo, o caso do retrato. A ambição do artista pode bem ser a imitação; não é essa, porém, a função da arte. Ao realizar uma obra artística, o homem obedece a um interesse particular, é impelido pelo anseio de exteriorizar um conteúdo particular. Chegamos assim à conclusão de que a imitação da natureza, que parecia ser um princípio geral preconizado e defendido por grandes autoridades, não passa, afinal, de um princípio inaceitável, pelo menos naquela forma geral e abstrata. Apreciando as diferentes artes, verificamos que, se é certo a pintura e a escultura, por exemplo, representarem objetos de aspecto aparentemente natural ou de um tipo essencialmente extraído da natureza, as obras da escultura, uma das belas-artes, assim como as da poesia, por não serem puramente descritivas, em nada constituem imitações da natureza. E caso se queira, por todo o custo, aplicar a estas últimas artes o princípio da imitação, ter-se-á, pelo menos, de fazer um longo circunlóquio, que subordinará aquele propósito a múltiplas condições e reduzirá a verdade à mera probabilidade. Mas, ainda assim, um grande obstáculo se encontrará; determinar o que é e o que não é provável, e, além disso, não se poderá ter a veleidade de eliminar da poesia todas as invenções arbitrárias e inteiramente fantásticas. O fim da arte não consiste, portanto, na imitação puramente formal daquilo que existe, imitação de que só resultam artifícios técnicos sem nada de comum com uma obra de arte. A natureza, a realidade, fontes são que a arte não pode dispensar; como não pode dispensar o ideal que não é algo de nebuloso, de geral, de abstrato. Mas o fim da imitação consiste em reproduzir os objetos da natureza tais como são em sua existência exterior e imediata, o que só é próprio para satisfazer à lembrança. Ora, o que nós esperamos e exigimos, no apelo direto à totalidade da vida, não é apenas a satisfação da lembrança, mas também a da alma. II - DESPERTAR A ALMA Despertar a alma: este é, dizem-nos, o fim último da arte, o efeito que ela pretende provocar. Disso nos vamos agora ocupar. Quando sob este aspecto consideramos o fim último da arte, perguntando-nos qual seja a ação que ela deve exercer, pode exercer e efetivamente exerce, logo verificamos que o conteúdo da arte compreende todo o conteúdo da alma e do espírito, que o fim dela consiste em revelar à alma tudo o que a alma contém de essencial, de grande, de sublime, de respeitável e de verdadeiro. Oferece-nos a arte, num dos seus aspectos, a experiência da vida real, transportando-nos a situações que a nossa pessoal existência nos não proporciona nem proporcionará jamais, situação de pessoas que ela representa, e assim graças à nossa participação no que acontece a essas pessoas, ficamos mais aptos a sentir profundamente o que se passa em nós próprios. De um modo geral, o fim da arte consiste em pôr ao alcance da intuição o que existe no espírito do homem, a verdade que o homem guarda no seu espírito, o que revolve o peito e agita o espírito humano. Isso é o que compete à arte representar, e fá-lo ela mediante a aparência que, como tal, nos é indiferente desde o momento em que sirva para acordar em nós o sentimento e a consciência de algo de mais elevado. Assim a arte cultiva o humano no homem, desperta sentimentos adormecidos, põe-nos em presença dos verdadeiros interesses do espírito. Vemos que a arte atua revolvendo, em toda a sua profundidade, riqueza e variedade, os sentimentos que se agitam na alma humana, e integrando no campo da nossa experiência o que decorre nas regiões mais íntimas desta alma. Nada do que é humano julgo alheio a mim, eis a divisa que a arte pode receber. Produz a arte todos os seus efeitos mediante a intuição e a representação, sendo-nos completamente indiferente saber de onde provém este conteúdo, se de situações e sentimentos reais, se simplesmente de uma representação que nos é dada pela arte. O importante é que o conteúdo que temos perante nós nos desperte sentimentos, tendências e paixões, e é-nos completamente indiferente que tal conteúdo nos seja dado pela representação ou que o conheçamos por uma intuição que tivemos na vida real. Pode a representação arrebatar-nos, agitar-nos, revolver-nos tão fortemente como a percepção. Todas as paixões, o amor, a alegria, a cólera, o ódio, a piedade, a angústia, o medo, o respeito, a admiração, o sentimento da honra, o amor da glória etc., podem invadir a nossa alma por força das representações que recebemos da arte. Tem a arte o poder de obrigar a nossa alma a evocar e experienciar todos os sentimentos, resultado este em que razoadamente se vê a manifestação essencial do poder e da ação da arte, se não, como muitos pensam, o seu último fim. Utiliza a arte a grande riqueza do seu conteúdo no sentido de, por um lado, completar a experiência que possuímos da vida exterior, e, por outro lado, evocar de um modo geral os sentimentos e paixões que há pouco enumeramos, a fim de que as experiências da vida nos não apanhem insensíveis e a nossa sensibilidade permaneça aberta a tudo quanto ocorre fora de nós. Ora, esta sensibilização é obtida pela arte, não com o recurso a experiências reais, mas apenas com a aparência delas, sobrepondo, por meio da ilusão, as produções artísticas à realidade. Esta ilusão da aparência é possível porque, no homem, toda a realidade tem de atravessar, para alcançar a alma e a vontade, o meio intermediário que a intuição e a representação formam. E sempre assim acontece, quer se trate da ação direta da realidade como tal, quer esta se manifeste de modo indireto em sinais, imagens, representações que possuam um conteúdo real e sirvam de expressão a esse conteúdo. É o homem capaz de se representar em objetos que não são reais, como se efetivamente o fossem. Evocar em nós todos os sentimentos possíveis, penetrar a nossa alma de todos os conteúdos vitais, realizar todos estes momentos interiores por meio de uma realidade exterior que da realidade só tem a aparência, eis no que consiste o particular poder, o poder por excelência da arte. Uma vez mais insistimos no ponto seguinte: qualquer que seja o conteúdo que exprima, sempre a arte exerce, sobre a alma e os sentimentos, a ação que acabamos de descrever. Desperta os sentimentos adormecidos, é capaz de ativar todas as paixões, inclinações e tendências. Tem o poder de nos experienciar em todas as infelicidades e misérias, de nos tornar presentes o mal e o crime. Graças a ela, podemos ser testemunhas pávidas de todos os horrores, experimentar todos os medos, todos os pânicos, podemos ser revolvidos pelas emoções mais violentas. Pode a arte erguer-nos à altura de tudo o que é nobre, sublime e verdadeiro, arrebatar-nos até a inspiração e ao entusiasmo, como pode mergulhar-nos na mais profunda sensualidade, nas paixões mais vis, abafar-nos numa atmosfera de volúpia, e abandonar-nos desamparados, esmagados pelo fogo de uma imaginação desenfreada. Tão rico é o humano de bem como de mal, de coisas sublimes como de coisas vis, e por isso a arte nos pode impelir ao entusiasmo pelo belo e sublime como envilecer-nos e efeminar-nos pela exaltação do que ternos de sensível e sensual. Neste aspecto nenhuma diferença existe, pois, entre os conteúdos da arte, tanto nos pode ela enobrecer como envilecer no egoísmo, prender-nos ao mundo sensível como elevar-nos até as esferas sublimes da espiritualidade. Deste modo a arte aparece como um poder puramente formal, independente da natureza do conteúdo. Tem, com efeito, o poder de despertar os nossos sentimentos a propósito de não importa que assunto, de não importa que conteúdo: é a sofística da arte. Assim como o raciocínio pode encontrar razões para tudo, explicações para as coisas mais insignificantes, justificações para qualquer ação, assim também a arte, usando de idêntica sofística, utiliza não importa que conteúdo para atingir o fim essencial. Pouco lhe importa a qualidade ou natureza do conteúdo, uma vez que o fim seja atingido. Se assim, na verdade, é, concluir-se-á que a ação da arte é formal também, tal como se define o aspecto formal do homem dizendo que deve ele exteriorizar, realizar todas as forças que possui, todas as virtualidades que encerra. Uma vez isto admitido, mas digamo-lo de novo, admitido de um modo puramente formal, não tardamos a perceber que uma diferença essencial existe quanto à orientação que a arte deve tornar para atingir o fim verdadeiro, o fim substancial que não pode, naturalmente, consistir no despertar todas as paixões possíveis. Trata-se, portanto, de procurar o fim essencial, o fim em si da arte. Diversos são os critérios suscetíveis de resolver a nossa alma, mas entre eles a arte deve proceder a uma escolha e, para escolher, tem de possuir um critério preciso e referenciado ao que ela considerar como seu destino verdadeiro. Começar-se-á por definir este destino de um modo formal, quer dizer, de um modo tal, que não importa determinar se a obra de arte o pode ou não cumprir. A arte teria por fim, sobretudo, o abrandamento da barbárie, e certo é que, para um povo que mal entrou na vida civilizada, esta suavização dos costumes constitui, com efeito, o fim principal a que a arte se destina. Acima deste fim, situa-se o da moralização, que durante muito tempo se considerou como o mais elevado. A questão que, então, se formula é a seguinte: por que meios, como é capaz a arte de exercer esta ação suavizante sobre a grosseria primitiva? De onde lhe advém a possibilidade de disciplinar os instintos, as tendências e as paixões? Digamos algumas palavras sobre a suavização dos costumes. A primitividade, a grosseria primitiva, caracteriza-se pela indisciplina dos instintos, pelos desejos que só procuram a satisfação e nada mais do que a satisfação. Esta satisfação implica o emprego de um objeto que assim se transforma num meio. Um desejo é selvático quando por si só se apossa do homem inteiro e quando o homem ainda não sabe diferenciar-se, enquanto generalidade, em referência a essa determinação. Quando digo: a minha paixão é mais forte do que eu, estabeleço uma diferença entre o eu abstrato e a paixão; mas é, essa, uma distinção puramente formal que significa que eu nada sou comparado com a paixão. A selvageria da paixão resulta, portanto, da unidade que existe entre o meu eu geral e a limitação à qual está submetido, de modo que já só conheço esta vontade limitada. Chama-se un homme entier ao homem que concentra toda a vontade num fim particular. É isso a selvageria, força e poder do homem dominado pelas paixões. Será ela suavizada pela arte na medida em que esta represente ao homem as próprias paixões, os instintos e, em geral, o homem tal como é. E limitando-se a desdobrar o painel das paixões, ao mesmo tempo em que as lisonjeia a arte mostra ao homem o que ele é para lhe dar a consciência de o ser. Já nisso reside a ação suavizante da arte que assim põe o homem perante os instintos como se estes lhe fossem exteriores e lhe confere, portanto, uma certa liberdade. Deste ponto de vista se pode dizer que a arte é liberadora. Perdem as paixões a força pelo fato de se transformarem em objetos de representações, em simples objetos. Resulta precisamente que, ao serem objetivados, os sentimentos perdem a intensidade, tornam-se-nos estranhos, mais ou menos alheios. Ao passarem, na representação, os sentimentos saem do estado de concentração em que se encontram dentro de nós e entregam-se ao nosso livre-arbítrio. Acontece com as paixões o que acontece com a dor: o primeiro modo que a natureza nos ofereceu para obter o alívio de uma dor que nos fere são as lágrimas; chorar é já ficar consolado. O alívio acentua-se depois com o decorrer de conversas amigáveis, e o anseio de alívio e consolo pode até levar-nos a compor poesias. Acontece assim que quando um homem, vencido e absorvido pela dor, a consegue exteriorizar, logo se sente aliviado, e o que mais o consola é a expressão da dor em palavras, cânticos, sons e figuras. Este meio é o mais eficaz, e da dor se fica liberto pela objetivação que arranca aos sentimentos o caráter intenso e concentrado, que os torna, por assim dizer, impessoais e exteriores a nós. É muito frequente o caso de artistas que, feridos de uma desgraça, conseguem diminuir, enfraquecendo o sentimento dela exteriorizando-o numa obra de arte. Havia outrora o costume das visitas de condolência; eram elas muito penosas, mas a simpatia testemunhada pelos visitantes, a repetição das mesmas fórmulas, a objetivação do acontecimento, contribuíam em grande parte para o alívio da dor. Era também um excelente costume, sobretudo em casos de luto, vir de toda parte exprimir a condolência com os parentes mais próximos do morto, que, falando da infelicidade que os atingira, sentiam um grande alívio. A antiga instituição das carpideiras tem a origem nesta necessidade de objetivar a dor. Quando alguém é capaz de compor um poema sobre a paixão que o obceca, torna-a menos perigosa porque, como dissemos, objetivar um sentimento é afastá-lo de nós e assumir, para com ele, uma atitude mais serena. Transbordando em poesias e cânticos, a alma liberta-se do sentimento concentrado: o conteúdo, dor ou alegria, que se fechava em si mesmo fica aberto agora; ao ser representado, a sua concentração rompeu-se, e a alma recobrou a liberdade. A atenção começa a reparar no que é suscetível de a consolar e nos conselhos que insistem sobre a necessidade de manter a calma e a serenidade. Esta é a base em que assenta a ação formal que a arte exerce sobre os sentimentos e as paixões. III - A FUNÇÃO MORALIZADORA DA ARTE Mas a elevação da alma não para na fase de ruptura, puramente formal, da concentração. O processo prossegue até a alma receber um conteúdo que lhe dê forças para combater e, se possível, para vencer as paixões. E se se admitir que o fim da arte não consiste apenas em evocar paixões mas também em purificá-las, ou melhor, se se admitir que a evocação não é o fim último da arte, não é um fim em si, dir-se-á portanto que é a moralização, significado preciso da palavra purificação, o fim da arte. Vimos, aliás, que a simples representação implica já um determinado grau de purificação, de catarse. Confere ela certo domínio sobre as paixões e os impulsos indisciplinados e selvagens. Aqueles que proclamam que o homem deve permanecer ligado à natureza não reparam que só enaltecem com isso a grosseria e o selvagismo. Ora, a arte, representando embora o homem em união com a natureza, eleva-o acima da natureza. E isto é que é o ponto essencial. A arte agiria, pois, como vivificante, como um fortalecedor da vontade moral, preparando a alma para se opor com eficácia às paixões. Neste sentido se diz que à arte deve presidir um intuito moral, que a obra artística deve possuir um conteúdo moral. Precisa a arte conter algo de tão elevado que subordine tendências e paixões, precisa irradiar uma ação moral que encoraje o espírito e a alma na luta contra as paixões. Nos últimos tempos, este modo de ver provocou numerosas polêmicas. Observou-se, em primeiro lugar, que semelhante fim é indigno da arte. Se é preciso, a todo custo, determinar um fim último à arte, que este fim seja tal que se baste a si mesmo; só poderia ser, portanto, um fim em si. Dizer que a missão da arte é agradar, ser origem de prazer, corresponde a determinar um fim puramente acidental que não podia ser o da arte. A religião, os costumes, a moral constituem já objetos existentes em si, e quanto mais a arte contribuir para favorecer as aspirações religiosas e as tendências morais e para suavizar os costumes, tanto mais elevado será o fim atingido. São absolutos estes critérios, e pretender conformar com eles a criação das formas artísticas corresponde a determinar um conteúdo preciso à arte. Como expressão deste conteúdo, a arte tem servido para instruir os povos. Contesta-se, todavia, que seja este determinado conteúdo o fim último da arte. Esta reserva refere-se sobretudo ao modo da representação. Pois pretende-se que os ensinamentos morais da arte tenham a forma de proposições abstratas, de reflexões mais ou menos teóricas, ou afirmar-se apenas que as abstrações e reflexões desempenham o principal papel, relegando para uma figuração secundária o elemento sensível, mero envoltório do abstrato? Em qualquer dos casos ignora-se completamente a natureza da arte. Pelo conteúdo, a obra de arte é individual e concreta, imagem que se dirige aos sentidos. Se o conteúdo for de tal natureza que não permita a imaginação, fica completamente secundarizado o elemento imaginífico, e o conteúdo quebra-se, dividido em duas partes: uma abstração coberta de ornamentos exteriores que não passam de simples aparência. Uma proposição abstrata basta-se a si mesma sem que recorra a ornamentos exteriores que só suscitam o aborrecimento por não haver correspondência entre o conteúdo e a forma. De uma obra de arte, até no sentido mais autêntico da palavra, é sempre possível extrair consequências e conclusões. Como de tudo o que acontece na vida real e concreta, também dela se podem deduzir ensinamentos. Isso se fez sobretudo no passado, como se verifica nos prefácios à obra de Dante, onde se indica sempre aquilo em que consiste a alegoria, quer dizer, o ensino geral que cada canto supõe. Este método utiliza a arte para formular um ensinamento, para o proteger com a autoridade e para o justificar com o prestígio de uma obra artística. Nada temos a dizer contra este método, desde que a forma artística não degenere em simples ornato para amenizar um ensino abstrato e que o conteúdo mantenha, com a forma figurada, uma unidade que constitui o aspecto essencial. Aquilo que, sobretudo, se exprobou, nesta maneira de ver, foi a subordinação do que há de sensível na obra de arte a proposições morais abstratas. Não continuaremos a insistir sobre este ponto. No entanto, as contradições implícitas nesta maneira de ver importa que sejam apreciadas de mais perto, porque nos abrirão o caminho para o verdadeiro conceito da arte. Mais ainda: constituem o ponto de passagem para o conceito. Com este propósito, põe-se a questão de saber se o ensino moral, considerado como fim supremo da arte, deve estar contido implicitamente, sem ser formulado como ensino, ou se deve ser enunciado de um modo explícito. O que, em primeiro lugar, nos dizem é que a obra de arte tem de compreender, implicitamente, um ensino moral, que este ensino, como fim supremo que é da arte, deve encontrar-se nela num estado não desenvolvido, num estado em que se não realce, se não imponha como doutrina, lei, imperativo. Na generalidade, é admissível que uma boa moral se possa deduzir de uma representação concreta, da representação de um acontecimento. Depende tudo da interpretação, visto que, no caso da moral implícita, se trata de a desenvolver, de a classificar. É, todavia, duvidoso que se chegue assim a algum resultado positivo, porque, como acabamos de dizer, raros são os fatos ou as coisas dos quais se não possa extrair uma moral. Têm sido defendidas e desculpadas as mais imorais representações artísticas e obras literárias alegando que, para alcançar a moralidade, é preciso conhecer também o mal e o pecado, que, para conhecer o bem, é preciso saber qual o contrário do bem, e assim se acreditou poder justificar-se a imoralidade na arte. Não impediram estes argumentos que se tenha dito que as representações de Maria Madalena, a bela pecadora, levaram ao pecado mais homens do que quantos arrependimentos provocaram; mas pode haver arrependimento sem ter havido pecado? A exigência moral tem aqui um caráter demasiado geral, demasiado vago; também à história se pode fazer esta mesma exigência porque, digamo-lo mais uma vez, todas as representações que têm por objeto os assuntos e acontecimentos humanos são sempre suscetíveis de implicar uma moral. Já o mesmo não acontece quando se diz que a moral deve estar representada explicitamente na obra artística, que esta deve exprimir um ensino, leis claras, ser uma fabula docet. É o caso das fábulas de Esopo. Cada fábula constitui, aí, um todo; só mais tarde, e de um modo desastrado, delas se extraiu ou a elas se acrescentou uma moral, ho mytho de loi. Já por si própria, a fábula é um ensinamento. Considerando mais atentamente, trata-se, na verdade, da defesa do ponto de vista da lei, e é isso que temos de examinar. Por corresponder a moral, na vida humana, à verdade em geral, pretendeu-se que a moralidade constituísse um aspecto essencial da arte. E a verdade é lei da vontade e da consciência e, portanto, nela a arte deve inspirar todas as suas criações. Há, de um lado, a lei, há, do outro lado, as tendências, sentimentos e paixões, e entre estes e aquela situa-se o ponto de vista moral que obriga o homem a reconhecer e acatar a lei para combater e dominar as paixões, a reconhecer e ter presente, sempre que age, o dever para repelir os interesses egoístas. Segundo tal concepção, o homem moral teria consciência do dever, da lei, universal que subordinaria as suas decisões e que seria arvorado em sua máxima. Decidir-se-ia de acordo com o dever, como dever, em nome da lei geral, da máxima que seria a razão de terminante dos seus atos. A lei, o dever, o dever pelo dever, é o universal, o abstrato que tem, na natureza, a contrapartida nos sentimentos naturais, nas inclinações, na vontade natural, no coração, na alma. O homem seria o que o dever e o direito são; o que fizesse, fá-lo-ia refletidamente e convicto. Sujeito é aquele que escolhe; ao escolher o bem utilizá-lo-ia contra as suas tendências e os seus interesses subjetivos. Graças a este ponto de vista, encontra-se formulada a oposição da vontade, no que tem de completamente geral, com a vontade particular, natural, oposição que é estabelecida de modo a indicar que a ação moral deve combater permanentemente a vontade natural, que o moral, até por sua essência, é uma luta travada para dominar, para vencer decisivamente o natural. Deriva, pois, do ponto de vista moral, esta oposição que não deve conceber-se na referida e limitada forma, mas sim do modo mais compreensivo e geral. A lei e o imperativo devem ser concebidos como o Abstrato, como produto do intelecto, como aquilo a que na vida corrente se chama o conceito em geral, como o Abstrato oposto à plenitude da alma e da generalidade da natureza. Só no homem e no espírito humano esta posição reveste a forma de um mundo cindido, separado em dois: de um lado, o mundo verdadeiro e eterno das determinações autônomas, do outro lado, a natureza, as inclinações naturais, o mundo dos sentimentos, dos instintos, dos interesses pessoais e subjetivos. De um lado deparamos com o homem sujeito à realidade vulgar e à temporalidade terrestre, atormentado pelas exigências e tristes necessidades da vida, amarrado à matéria, atrás de fins e prazeres sensíveis, vencido e arrastado por tendências e paixões; do outro lado, vemo-lo a elevar-se até as ideias eternas, até o reino do pensamento e da liberdade, a sujeitar a vontade às leis e determinações gerais, a despojar o mundo de realidade viva e florescente para o resolver em abstrações, condição esta do espírito que só afirma o seu direito e a sua liberdade quando domina impiedosamente a natureza, como se quisesse vingar as misérias e violências que ela o obriga a suportar. Quando esta oposição adquire caráter suficientemente nítido, o espírito oscila entre os dois termos, inclinando-se sem cessar de um para o outro: do dever para o sentimento, da liberdade para a necessidade. Enquanto o homem só obedece à vontade própria, a liberdade só realiza os fins próprios: e só realiza a necessidade quando o homem se abandona às exigências naturais, as das circunstâncias, do coração e dos sentimentos. Mas nem sequer a liberdade escapa às leis, havendo leis para a liberdade como há para a necessidade, pelo que deparamos com uma oposição entre o geral e o particular. Esteja, embora, o particular implicado no universal que não é inteiramente determinado por ele. O particular tem determinações próprias que podem corresponder ou não ao universal. Ainda há, além disso, a oposição entre o concreto e o abstrato. Assim se erguem, um perante o outro, os campos hostis do pensamento e da realidade, da vida subjetiva e do conceito frio, da teoria e da experiência. E assim o ponto de vista moral comporta essencialmente uma oposição, uma contradição entre o espírito e a carne; mas não se limita ele a esta oposição, e é, como vamos ver, mais vasto e mais geral. Esta oposição não é o produto de uma reflexão requintada ou de uma filosofia escolástica. Sempre ela preocupou e perturbou, sob formas diversas, a consciência humana, embora seja por influência da cultura moderna que reveste uma expressão particularmente aguda. É a cultura dos nossos dias, é a inteligência moderna que a tornam especialmente sensível ao homem, espécie de anfíbio vivendo em dois mundos contraditórios, entre os quais a consciência sem cessar hesita, incapaz de se fixar numa decisão que a satisfaça. Mas, depois de terem levado ao extremo aquela duplicidade, a cultura e a inteligência modernas postularam a necessidade de uma conciliação. Ora, não podendo a inteligência, o intelecto, vencer a fixidez dos contrários, a conciliação destes permanece para a consciência um simples dever-ser, enquanto a nossa realidade presente continua a viver na inquietude da alternativa, procurando uma solução que não consegue encontrar. Resta, pois, saber se uma oposição assim tão vasta e profunda, cuja necessidade de conciliação ainda se mantém no estado de simples postulado, constitui a verdade em si e é suscetível de ser considerada como o fim supremo da arte. Todavia, está o homem interessado em que aquela oposição se resolva, em que se realize uma conciliação entre os dois termos dela pela descoberta de um terceiro, de um princípio superior que represente a harmoniosa unidade. Nos nossos dias, a oposição é sentida de um modo particularmente vivo e preocupa os homens de múltiplas maneiras. O pensamento não cessa de a avivar, e é o intelecto, com o seu dever erguido contra a realidade, que a mantém para a inquietação do homem que está como que sacudido por todos os lados. Uma vez mais: ao homem importa que esta oposição desapareça, que ela ceda lugar a uma conciliação, que se descubra um ponto de encontro, um princípio mais elevado, mais profundo, suscetível de alcançar a harmonia entre os dois termos aparentemente inconciliáveis. É missão da filosofia, sua principal missão, suprimir as oposições pelo menos na medida em que elas revestirem as formas que acabamos de descrever e caracterizar, e mostrar que os termos opostos não são, na realidade, tão intransigentes e irresolúveis como parecem, que a única verdade enunciável a propósito de cada um é que ele não é verdadeiro em si e que a verdade de ambos só resultará da mútua conciliação, união ou harmonia. De um lado, há a liberdade, do outro, a necessidade. A liberdade é essencialmente um atributo do espírito; a necessidade é a lei da vontade natural. Mantém o intelecto a oposição entre as duas, e a liberdade só existe enquanto adversária do seu contrário. Mas firmemente acredita o homem que a oposição será resolvida, e, quanto à inteligência, é missão da filosofia mostrar-lhe que, se a contradição existe, já é, tal como é resolvida de toda a eternidade, em si e para si. Porque a verdade é esta: a oposição é tal que não só é possível resolvê-la, que não só será resolvida num futuro próximo ou longínquo, como também a resolução já existe, a conciliação dos dois termos já está realizada, e só a inteligência procura ainda, na filosofia, a resolução. Mostra a filosofia que a conciliação se efetua desde a eternidade; todavia, para a inteligência ela só pode efetuar-se pela filosofia. CAPÍTULO II As Teorias Empíricas da Arte 1ª SEÇÃO - AS IDEIAS RELATIVAS À OBRA DE ARTE Podemos resumir as ideias relativas à obra de arte nas três proposições seguintes: 1ª As obras de arte não são produtos naturais, mas produtos humanos. 2ª As obras de arte são criadas para o homem e, embora recorram ao mundo insensível, dirigem-se à sensibilidade do homem; de um modo próprio, a arte confina com o mundo sensível mas é difícil traçar o limite entre ambos. 3ª A obra de arte tem um fim particular que lhe é imanente. A estas três proposições conduz a reflexão exterior. I - REGRAS DA ARTE. TALENTO. EXIGÊNCIA DE ARTE No que se refere ao primeiro destes pontos, o relativo ao caráter humano da obra de arte, pensava-se outrora que a arte possuía regras para a produção dos seus produtos. Partia-se do ponto de vista de que tudo quanto o homem faz é possível saber como se faz, e, uma vez conhecido o processo, nada seria mais fácil do que aplicá-lo, de modo que nenhum obstáculo aparentemente se opunha a que qualquer homem viesse a ser capaz, com conhecimento do processo, de produzir obras artísticas. Muito antiga, esta maneira de ver é designada pelo nome de "crítica de arte", que é uma análise do que se passa com a produção de uma obra artística, do modo como ela pode ou deve ser feita: teoria das belas-artes, a que presidia a intenção de formular regras, de estabelecer preceitos para a produção artística. Está hoje abandonada esta intenção porque se percebeu que não é na conformidade a regras que reside a produção de obras de arte. Só o trabalho mecânico, exterior, se subordina a regras. E o trabalho subordinado a regra só chega a resultados formais, a produtos unicamente caracterizados pela regularidade. Do conhecimento da regra só resulta uma atividade puramente formal porque, estando já contida na regra toda a determinação concreta, quanto se possa realizar será produto de uma atividade formal e abstrata. Mas a atividade do espírito não se exerce gratuitamente por uma determinação imposta: o espírito tem em si próprio a sua determinação, só a si próprio subordina o seu trabalho. Não sendo um produto mecânico, a obra de arte não pode subordinar-se a uma regra. No entanto, têm sido formuladas regras que se não referem a trabalhos mecânicos, do que temos um exemplo na Arte Poética, de Horácio. Toda a gente pode aprender e aplicar a arte da rima que, porém, fica assim decaída em arte mecânica. Contudo, chegou-se a ir mais longe, formulando regras, as da epístola de Horacio, por exemplo, que são de uma generalidade vaga como a que nos ensina que o tema de uma poesia deve ser interessante. Além disto, há preceitos que merecem ser tidos em consideração por se não dirigirem apenas aos aspectos exteriores e quase mecânicos da atividade artística, mas também àquilo que se pode considerar como a atividade espiritual exercida sobre o conteúdo: tal é, por exemplo, o preceito segundo o qual a caracterização das personagens deve convir à sua idade, sexo, situação social, posição. Mas uma coisa é formular estes preceitos, outra coisa imprimir-lhes as condições para serem um verdadeiro estimulante da produção artística. Em sua generalidade, não contêm eles nenhum indicativo referente aos pormenores da execução. Uma receita farmacêutica inclui todas as precisões necessárias para poder ser seguida à letra; mas uma prescrição geral não é exequível. Será, portanto, absurdo pretender estabelecer regras para a produção de obras de arte. Foi, pois, abandonada esta maneira de ver. Mas ao abandoná-la, caiu-se no extremo oposto. Deixou-se de considerar a obra de arte como o produto de uma atividade geral, formal, abstrata e mecânica, para declarar que ela é o produto de um espírito especialmente dotado e que o homem assim dotado só tem de se entregar à sua específica singularidade sem nenhuma preocupação, aliás nociva à sua atividade, com os fins aonde essa entrega o poderá levar. Resumiu-se esta maneira de ver declarando que obra de arte é uma criação do gênio, do talento. Encontra-se, nestas afirmações, uma parte de verdade. A criação de uma obra artística exige talento, que é uma atitude específica, quer dizer, um dom limitado. O gênio é mais geral. Que, na essência, o gênio e o talento sejam ou não qualidades naturais, é ponto que examinaremos mais adiante. Por enquanto, limitamo-nos a observar que, segundo a nossa opinião, é preciso que a atividade artística seja inconsciente para ser eficaz e verdadeiramente criadora, aparecendo a intervenção da consciência como um elemento que só perturba a atividade artística, que só prejudica a perfeição das obras. A produção artística aparece, deste modo, como um estado que recebe o nome de inspiração. O gênio poderia alcançar este estado quer por vontade própria, quer por qualquer influência estranha (a propósito da qual não se deixou lembrar os bons serviços que poderá prestar uma garrafa de champanha). Prevaleceu esta opinião durante o período chamado da genialidade, iniciado na Alemanha pelas primeiras obras de Goethe e de Schiller. Começou a atividade destes poetas por derrubar todas as regras então dominantes. Com total intencionalidade, adotaram, nas suas primeiras obras, uma atitude hostil a todas essas regras. Não é com minúcia que podemos agora examinar o conceito confuso da inspiração e seu correspondente poder. Quanto à noção de gênio, já observamos que o gênio e o talento são, pelo menos em certo aspecto, dons naturais. Mas o que sobretudo se não deve esquecer é que o gênio, para ser fecundo, tem de possuir um pensamento disciplinado e cultivado por um exercício mais ou menos longo. Porque a obra de arte oferece um aspecto puramente técnico que só pelo exercício se chega a dominar. É isto mais particularmente verdadeiro nas artes que exigem uma destreza manual, que as aproxima, mais ou menos, dos ofícios manuais. Isso acontece, por exemplo, com a arquitetura e a escultura. Na música e na poesia, é menos necessária a destreza manual. Mas até na poesia há um aspecto que exige, se não uma aprendizagem, pelo menos certa experiência: a prosódia e a rima, cujo conhecimento se não adquire pela inspiração, constituem o aspecto técnico da poesia. Toda a arte se exerce sobre uma matéria mais ou menos densa, mais ou menos resistente, que é preciso aprender a dominar. Por outro lado, quanto mais elevada for a posição que o artista ambicione, melhor tem de conhecer as profundidades da alma e do espírito humanos. Ora, não se adquire tal conhecimento de um modo direto, mas ao fim de um estudo do mundo exterior e do mundo interior, estudo que fornece o assunto das representações. Podem certas artes, mais do que outras, ter necessidade deste estudo. A música, por exemplo, que traduz sentimentos profundos e imprecisos, movimentos de alma por assim dizer imateriais a que se não pode atribuir conteúdo nem pensamento, não exige uma base experimental tão vasta como a de outras artes. Por isso o talento musical se manifesta com precocidade, quando a cabeça e a alma ainda estão vazias, ausentes de qualquer experiência vinda do espírito e da vida; por isso se conhecem virtuoses com um caráter e um espírito que não correspondem ao talento. O mesmo não acontece com a poesia, expressão consciente do espírito humano com seus interesses profundos e forças que o agitam. Por isso, as primeiras obras de Goethe e de Schiller são ainda hesitantes e bárbaras, frias e prosaicas, o que, precisamente, contradiz a opinião corrente de que a inspiração proviria do ardor da juventude. Só depois de terem atingido a maturidade do pensamento, estes homens (dos quais se pode dizer que foram os primeiros a dar à nossa pátria obras verdadeiramente poéticas e que são os nossos poetas nacionais) criaram obras belas e profundas, verdadeiramente inspiradas e de forma perfeita. Foi na velhice que a inspiração deu a Homero os cantos imortais. O espírito especificamente determinado só se revela fecundo depois de formado por estudos longos e profundos. A terceira observação que se poderia formular refere-se ao valor relativo dos produtos da arte e dos produtos da natureza. Diz-se que, por ser um produto humano, é a arte inferior aos produtos da natureza. Uma obra de arte não é, decerto, dotada de sentimento, não possui vida, é completamente superficial, ao passo que os produtos da natureza são produtos vivos. E, assim, os produtos da natureza, por serem obra de Deus, seriam superiores às obras de arte, que são produtos humanos. Quanto a esta oposição, temos de reconhecer que, enquanto objeto, a obra de arte é privada de vida, de vida exterior, e pode, por conseguinte, ser considerada uma coisa morta. O que é verdadeiramente vivo apresenta uma organização cujo finalismo se alarga a todos os pormenores, enquanto a obra de arte só na superfície tem aparência de vida, não passando, interiormente, de vulgar pedra, madeira, tela, ou, como na poesia, de representações traduzidas em palavras e discursos. Mas, no seu aspecto de coisa, de objeto, a obra de arte não é precisamente uma obra de arte: só é obra de arte enquanto espiritualidade, ungida pelo batismo do espírito e representando algo que ao espírito pertence e com ele se harmoniza. A obra de arte provém, pois, do espírito e existe para o espírito, senhora de uma superioridade que consiste em ser uma obra perene enquanto o produto natural, dotado de vida, é perecível. A perenidade que lhe dá um interesse superior. Vêm os acontecimentos e, como vêm, desaparecem; é a obra de arte que lhes confere perenidade, que na imperecível verdade os representa. O interesse humano, o valor espiritual de um acontecimento, de uma ação, de um caráter individual, em seu desenvolvimento e finalidade, são pela obra de arte apreendidos e realçados de um modo mais puro e transparente do que o da realidade ordinária, não artística. A obra de arte é, por isso, superior a qualquer produto da natureza que não efetua esta passagem pelo espírito. Assim, o sentimento e a ideia que, em pintura, inspiram uma paisagem conferem a essa obra do espírito um lugar mais elevado do que o de paisagem tal como existe na natureza. Tudo quanto pertence ao espírito é superior ao que se encontra em estado natural. E não esqueçamos que ser de natureza alguma representa ideais divinos, que só a obra de arte pode exprimir. De um modo geral, o espírito é superior à natureza, e mais honram a Deus as criações do espírito do que os produtos naturais. A oposição que se pretendia estabelecer entre o divino e o humano provém, por um lado, do mal-entendido que considera a natureza como uma única manifestação de Deus, e nada de divino reconhece no homem. No espírito, o divino manifesta-se com a forma de consciência e através da consciência. Na natureza, também o divino atravessa um meio, mas um meio exterior, mas um meio sensível, que, como tal, já é inferior à consciência. Por conseguinte, um meio infinitamente superior manifesta, na obra de arte, o divino. A existência exterior, própria da natureza, é uma representação muito menos adequada ao divino do que a representação artística. É preciso, pois, afastar o mal-entendido que considera a obra de arte como obra unicamente humana. A ação de Deus no homem é mais conforme a verdade do que o domínio da naturalidade pura e simples. Agora nos aparece uma questão essencial: por que cria o homem obras de arte? A primeira resposta que nos ocorre é que as cria como produtos acidentais de um simples jogo. Ora, o jogo é uma ocupação a que nos dedicamos sem obrigatoriedade e livremente podemos interromper porque há outros e melhores meios de alcançar o que a arte nos alcança e há interesses mais elevados e importantes a que a arte não satisfará. Mais adiante falaremos da carência da arte, no sentido próprio da palavra. Refere-se ela a certas concepções gerais e precisas assim como à religião. A questão é, pois, mais concreta do que a resposta que poderíamos agora dar. Isto apenas digamos. A universalidade da carência de arte provém tão só de que o homem é um ser pensante e dotado de consciência. Dotado de consciência, o homem situa-se em face do que é ele mesmo, do que é de um modo geral, e do que é faz um objeto para si. As coisas da natureza contentam-se em ser, pois são simples e só uma vez são, ao passo que o homem, enquanto consciência, desdobra-se: é uma vez só, mas é para si. Projeta na sua frente o que é, contempla-se, representa-se a si próprio. É preciso, portanto, procurar a ciência geral que uma obra de arte provoca no pensamento humano, porquanto a obra de arte é um meio com o qual o homem exterioriza o que ele mesmo é. A consciência de si próprio adquire-a o homem de duas maneiras: teoricamente, consciencializando o que é no interior, todos os movimentos da alma, todas as cambiantes do sentimento, representando-se a si próprio, tal como se descobre pelo pensamento, e reconhecendo-se na representação que a seus próprios olhos oferece. Mas o homem está preso também a relações práticas com o exterior, relações de que também provém a exigência de transformar o mundo, e bem assim ele próprio na medida em que ao mundo pertence e lhe imprime o sinal da sua personalidade. Ainda aqui, o que o homem procura é reconhecer-se na forma das coisas, gozar-se numa realidade exterior. Descobre-se já esta tendência nos primeiros impulsos da criança que quer ver coisas de que seja autor: se atira pedras à água, vê formarem-se os círculos como uma obra própria em que contempla um reflexo seu. O mesmo se vai observando em múltiplas ocasiões e na gradação de formas diversas até se chegar a essa espécie de reprodução da personalidade que é uma obra de arte. Através dos objetos exteriores, o homem procura encontrar-se a si próprio. E não se contente em permanecer tal como é: cobre-se de adornos. O bárbaro tatua-se e abre incisões nos lábios e nas orelhas. Por bárbaras, absurdas, contrárias ao bom gosto, por deformadoras e até perniciosas que sejam, como a do suplício infligido aos pés das chinesas, todas estas aberrações têm no entanto um fim: o homem não quer ser o que a natureza o fez. Entre os civilizados, o homem realça o seu valor por intermédio da cultura espiritual, porque só entre os civilizados as mudanças de forma, de comportamento e de todos os demais aspectos exteriores são produtos de cultura espiritual. A geral exigência da arte tem, pois, isto de racional: o homem, enquanto consciência, exterioriza-se, desdobra-se, oferece-se à contemplação própria e alheia. O autor da obra de arte procura exprimir a consciência que de si possui. É esta uma poderosa exigência que advém do caráter racional do homem, origem e razão da arte, bem como de toda a ação e de todo o saber. Mais adiante veremos em que difere a exigência de arte, ou de atividade artística, de todas as demais atividades, da política e da moral, das representações religiosas e do conhecimento científico. II - O SENTIDO DA ARTE. O GOSTO. O CONHECIMENTO DOS ESPECIALISTAS A outra determinação da obra de arte, tal como provém da sua ideia, é, já o vimos, a seguinte: a arte dirige-se ao homem, aos sentidos, e deve, por conseguinte, possuir uma matéria sensível. Desta determinação adveio, desde logo, a opinião de que o fim da arte seria evocar sentimentos agradáveis, quer dizer, sentimentos referenciados à sua própria natureza. A partir daí, pretendeu-se sobrepor, ao estudo da arte, o estudo dos sentimentos, e perguntou-se quais seriam os sentimentos evocáveis pela arte. O medo e a piedade, por exemplo? Mas estes sentimentos nada de agradável possuem. Que satisfação poderia trazer a expectação de uma infelicidade? Este modo de considerar a arte deve-se, principalmente, à época de Mendelssohn, o que se pode verificar nas obras deste autor. A investigação referente à natureza dos sentimentos que devem ser evocados não nos leva até muito longe. O sentimento pertence à região obtusa, indeterminada do espírito, ou representa a forma desta região. Tudo o que se experiência fica enfraquecido, velado, e permanece subjetivo. Por este motivo, as diferenças que existem entre os sentimentos são completamente abstratas, não correspondem às diferenças entre as coisas reais. Assim, por exemplo, há no medo, de que o rancor e a angústia são intensificações ou modificações quantitativas, um Ser ameaçado de destruição por qualquer coisa que se aproxima. Trata-se, pois, de um interesse ameaçado, de uma negação. Da reunião dos dois, do interesse e da negação, resulta o sentimento do medo. Mas esta relação é completamente abstrata e indeterminada; o conteúdo do sentimento como tal é puramente abstrato. Todos estes sentimentos podem ser experienciados nas mais diversas ocasiões. Encontramo-nos, portanto, perante formas completamente abstratas. Outros sentimentos - a cólera, a piedade etc. - diferem uns dos outros pelo conteúdo que, no entanto, para cada um deles se mantém no estado de abstração. Como o cristão, cujo sentimento religioso se vai alimentar às mais altas origens, também o negro possui sentimento religioso; e enquanto nos limitamos ao sentimento, o conteúdo da religião fica completamente indeterminado. Empenhando-nos, a propósito da arte, no estudo dos sentimentos, só encontraremos generalidades desprovidas de conteúdo. O conteúdo próprio da obra de arte tem de permanecer estranho a essas considerações, sob pena de não ser o que deve ser. Dizer que toda a forma de sentimento possui um conteúdo é nada afirmar sobre a natureza essencial e precisa do sentimento que continua num estado puramente subjetivo, num meio abstrato que dilui a coisa concreta. O ponto principal é o seguinte: o sentimento é subjetivo e a obra de arte deve possuir um caráter de universalidade e objetividade. Ao contemplá-la, eu posso mergulhar nela até me esquecer de mim; mas há sempre, no sentimento, um aspecto particular, e por isso os homens são tão facilmente sensíveis. A obra de arte, como a religião, deve levar-nos ao esquecimento do particular enquanto a examinamos; se examinarmos o particular à luz do sentimento, consideraremos, não a própria coisa, mas nós mesmos e as nossas subjetivas particularidades. Quando a atenção se concentra nas particularidades do sujeito, o consequente exame da obra de arte é uma ocupação fastidiosa e desagradável. A seguinte observação relaciona-se com o que acabamos de dizer: tem a arte um fim, comum a muitas outras manifestações do espírito, que consiste em dirigir-se aos sentidos e em despertar e suscitar sentimentos. E, para maior precisão, acrescenta-se que o fim da arte é despertar em nós o sentimento do belo. O sentimento assumiria, pois, este aspecto particular, o do sentido do belo. Este sentido não seria inerente ao homem enquanto instintivo, como qualquer coisa que lhe fosse inseparável por natureza e adquirida com o nascimento, como, por exemplo, os órgãos, os olhos. Não, tratar-se-ia de um sentido que é preciso formar e que, uma vez formado, viria a consistir naquilo a que se chama gosto. Ter gosto é, pois, ter o sentimento, o sentido do belo; é uma apreensão que, sem sair do sentimento, passa por tal formação que descobre o belo imediatamente, qualquer que ele seja e onde quer que esteja. A teoria das belas-artes e das ciências do belo destina-se a formar o gosto, e tempo houve em que esteve muito em voga. Mas o gosto é um modo sensível de apreender o belo, adotando, para com ele, uma atitude sensível. Não iremos expor a maneira como estas teorias abstratas se propunham a formar o nosso gosto que, entretanto, permanecia exterior e unilateral. Se, na época em que prevaleceu, lhe faltavam, por um lado, princípios gerais, a crítica particular das obras de arte isoladas mais visava, por outro lado, a propiciar a formação do gosto em geral do que a estabelecer as bases de um juízo seguro e preciso (porque também os materiais lhe faltavam). Aquela formação ficou, por conseguinte, num estado impreciso e indeterminado, limitando-se a desenvolver, com o auxílio da reflexão, o sentimento do belo, de modo a que, como já dissemos, o descobrisse onde e como quer que se encontrasse. Fala-se, hoje, menos do gosto porque, como meio de apreensão e de juízo imediatos, ele se mostrou incapaz de nos levar muito longe e de aprofundar o que quer que seja. Tudo exige um juízo em profundidade; o gosto, o sentimento, não perfura a superfície e contenta-se com reflexões abstratas. O gosto não vai além dos pormenores, a fim de que estes concordem com o sentimento, e repele a profundidade da impressão que o todo possa produzir. São os aspectos exteriores, secundários, acessórios, das coisas que importam ao gosto, e são-lhe suspeitos, porque repugnam ao seu amor pelas minudências, os grandes caracteres e as grandes paixões que o poeta nos descreve. Perante o gênio, o gosto recua e esvai-se. Renunciou-se, pois, à tentativa de formar o gosto para adquirir um juízo fundado sobre a própria coisa e sobre os seus aspectos. E assim se chegou a uma fase mais adiantada, a do especialismo. O homem de gosto cedeu o lugar ao especialista. Ora, o especialista pode, também, limitar-se ao aspecto puramente exterior, técnico, histórico, sem pressentir o que quer que seja da natureza profunda de uma obra de arte. Pode, até, atribuir mais valor ao aspecto histórico do que àquela profunda natureza. Mas o especialismo já supõe, pelo menos, certos conhecimentos que abrangem conjunto da obra; implica a reflexão sobre uma obra de arte, enquanto gosto se limita à contemplação puramente exterior. Necessariamente, uma obra artística oferece aspectos suscetíveis de interessar ao especialista: o significado histórico, os materiais de que foi feita, as múltiplas condições em que foi produzida; liga-se a certo grau de formação técnica. A personalidade do artista inclui-se também entre estes aspectos da obra de arte. O estudo do especialista exerce-se sobre estes aspectos técnicos, sobre as condições históricas e sobre muitas outras circunstâncias exteriores. Aspectos todos eles que são indispensáveis a quem quiser conhecer e admirar uma obra de arte. O especialismo presta, portanto, grandes serviços; sem que constitua um fim em si, é um momento necessário. Tais são as considerações que se podem formular quanto à aspecção sensível da obra de arte. III - INTUIÇÃO. INTELIGÊNCIA. IDEIA Vamos agora considerar as relações que existem entre o sensível e a obra de arte objetiva, por um lado, e, por outro lado, o sensível e a subjetividade do artista ou até do gênio. E uma questão essencial. Entretanto, não podemos ainda falar do sensível tal como se extrai do conceito da obra de arte, e não transporemos, provisoriamente, o domínio das reflexões exteriores. Convém desde já observar, quanto às relações entre o sensível e a obra de arte como tal, que esta se oferece à nossa intuição ou representação sensível, exterior e interior, no mesmo modo que a natureza exterior ou a nossa própria natureza interior. Até o discurso se dirige à representação sensível. Mas este sensível existe essencialmente para o espírito que na matéria sensível tem de encontrar uma origem de satisfação. De tal definição se conclui que a obra de arte não pode ser um produto natural, não pode estar animada de uma vida natural. Não o pode nem o deve ser, ainda quando fosse verdade que um produto natural é um produto superior. De modo algum tem a obra de arte a pretensão de viver uma vida natural, pois que o seu aspecto sensível só para o espírito existe e deve existir. Se de mais perto considerarmos o sensível, tal como existe para o homem, descobrimos dois aspectos nesta relação. O sensível é o objeto de contemplação, de intuição. Enquanto assim, não se dirige ao espírito mas à sensibilidade. Poremos também de parte a contemplação pura e simples, depois de afirmarmos o seguinte: a apreensão puramente sensível é a pior, a que menos convém ao espírito; consiste ela, principalmente, em olhar, escutar, sentir etc., como muitas pessoas repousam, em horas de tensão espiritual, com não pensarem em nada, com escutarem de um lado e olharem para outro. Mas o espírito não para na simples apreensão pela vista e pelo ouvido. Mais estreitas são as relações entre o sensível e a vida interior do homem, a quem também se pode chamar espírito. O aspecto natural do espírito, ou o sensível, existe para o desejo. Temos precisão de objetos exteriores que consumimos e para os quais nos comportamos de um modo negativo. A relação estabelecida pelo desejo é a de um individual para um individual, é uma relação em que o pensamento não interfere e que não provém de uma determinação geral. O individual perante o individual só se conserva mediante o sacrifício do outro. O desejo devora, pois, os objetos, caso em que não existe nada mais do que um interesse isolado. Os objetos a que o individual se refere são sempre individuais, concretos; o desejo só se referencia com o que seja puramente superficial, artificial, carece do que é material e concreto. Não se satisfaz ele com pinturas que representem o bosque de que precisa ou os animais que quer consumir. Nem, tampouco, o desejo pode permitir que o objeto subsista na sua liberdade, porque é justamente impelido a suprimir a independência e a liberdade dos objetos exteriores e a mostrar que estes só existem para serem devorados e destruídos. Ao mesmo tempo, porém, o sujeito dominado pelos interesses limitados e mesquinhos dos desejos nem é livre em si, pois que não se determina pela universalidade e racionalidade essencial da vontade, nem é livre em relação ao mundo exterior, pois que o desejo é essencialmente determinado pelas coisas que o ocupam. Não é em conformidade com o desejo que o homem se situa perante a arte, mas sim como perante um natural concreto. Ao afirmar-se que os produtos da natureza são superiores à arte por possuírem uma vida orgânica, dever-se-ia acrescentar que as obras de arte se situam em outro plano, visto que servem ao espírito e só existem para o satisfazer. O desejo prefere, decerto, os produtos da natureza, porque as obras de arte se não consomem. O interesse pela arte não é ditado pelo desejo, pois não se fixa no sensível concreto. Por outro lado, dirigidas também à inteligência, as obras de arte devem ser julgadas do ponto de vista do espírito, e não do dos sentidos. Os interesses da arte são quase idênticos aos da inteligência. Também esta permite que os objetos subsistam em sua liberdade. O exame teórico dos objetos visa a aprender a conhecê-los, à saber o que são na sua íntima natureza e refere-se também ao que há de geral nos objetos e não aos pormenores nem à existência imediata deles. Assim, o interesse teórico assegura a liberdade aos objetos, e, em relação a eles, se comporta livremente. Enquanto o desejo é, ao mesmo tempo, dependente e destruidor, e só apreende o pormenor, a inteligência tanto se ocupa do particular como do geral. O que sobretudo interessa à inteligência é apreender, com a universalidade e a essência das coisas, o conceito do objeto. Estranho é, este interesse, à arte, que por isso se distingue da ciência. A ciência busca o pensamento, o universal absoluto, não tem por objeto o que encontra diretamente no que existe e vai além do imediato. Não procede assim a arte que não vai além do objeto que lhe é dado e, tal como lhe é dado, o toma por objeto. Diremos, portanto, que o sensível constitui objeto de considerações estéticas, mas de modo a salvaguardar toda a sua liberdade, ao contrário do que acontece com o desejo que o destrói. O sensível está, na arte, para o espírito, mas o objeto da arte não é, como na ciência, a ideia, a essência, a natureza íntima deste sensível. Por isso a obra de arte, embora apresente aparências sensíveis, não precisa existir verdadeiramente sensível e concreta, ser animada por uma vida natural, e deverá até evitar este terreno, se quiser satisfazer a interesses espirituais e despojar-se de todo o desejo. Quando, na ciência, o homem se comporta para com as coisas do ponto de vista da universalidade delas, obedece às exigências da razão que, pelo que tem de universal, procura encontrar-se na natureza, e assim reconstituir a essência íntima das coisas cuja existência sensível a não revela diretamente. Este interesse teórico que a ciência é chamada a satisfazer não é, pelo menos em forma científica, o interesse da parte que, aliás, nada tem de comum, como acabamos de ver, com os pulsos dos desejos práticos. Bem sabemos que a ciência parte do sensível individual e pode possuir uma ideia do modo como este particular existe diretamente com sua cor, sua forma, sua grandeza individuais etc. Mas este sensível particular não tem nenhuma relação com o espírito, porque a inteligência procura o universal, a lei, a ideia, o conceito do objeto e, em vez de o abandonar à sua individualidade imediata, sujeita-o a uma transformação íntima no termo da qual o que era um sensível concreto aparece como um abstrato, como uma coisa pensada, totalmente diversa do objeto enquanto sensível. Tal é a diferença que separa a arte e a ciência. Apresentando-se a obra de arte como objeto exterior na sua determinação direta e na sua individualidade sensível, com a sua cor, a sua forma, a sua sonoridade, ou como intuição particular, só como tal pode ser julgada enquanto aceitarmos critérios estéticos que não ultrapassam a objetividade direta e não permitem apreender, como a ciência apreende, o conceito daquela objetividade no que ele tem de universal. O interesse da arte distingue-se do interesse prático do desejo por salvaguardar a liberdade do objeto, ao passo que o desejo o utiliza e destrói; contrariamente, a arte separa-se do ponto de vista teórico da inteligência científica por visar à existência individual do objeto sem procurar transformá-lo em ideia universal e conceito. Falta-nos ainda acrescentar que o objeto da arte é a superfície sensível, a aparência do sensível como tal, ao passo que o desejo se refere ao objeto na sua extensão empírica e natural, na sua materialidade concreta. Por outro lado, o espírito não procura o universal, a ideia, com a supressão do sensível, mas apenas o sensível e o individual abstraídos de materialidade. Só procurando a superfície do sensível, a arte eleva, assim, o sensível ao estado de aparência, e ocupa o meio entre o sensível puro e o pensamento puro. Não representa o sensível, para a arte, a materialidade imediata e independente, como, por exemplo, a de uma planta, de uma pedra, da vida orgânica, mas sim a idealidade que, aliás, se não confunde com a idealidade absoluta do pensamento. Trata-se da aparência puramente sensível ou, com maior exatidão, da forma. Dirige-se ela, por um lado, à vista e ao ouvido: simples aspecto e tonalidades das coisas. São estes os aspectos em que o sensível aparece na arte. O reino da arte é o reino das sombras do belo. As obras de arte são sombras sensíveis. Já, assim, vemos de mais perto que gênero de sensível pode ser objeto da arte: é somente o sensível que se dirige aos nossos dois sentidos sublimados. O cheiro, o gosto e o tato apenas se referem às coisas materialmente sensíveis: o tato é sensível ao frio, ao calor etc.; o cheiro à evaporação de partículas materiais, o gosto à dissociação de partículas materiais. O agradável não participa do belo mas liga-se à sensibilidade tal como existe para o espírito. A matéria sobre a qual a arte se exerce é o sensível espiritualizado ou o espiritual sensibilizado. O sensível só entra na arte no estado de idealidade, de sensível abstrato. É um erro pensar que, por impotência e limitação de meios, o homem, ao criar obras de arte, se limita a apenas representar a superfície do sensível, a representar, por assim dizer, esquemas. A arte cria estas formas e sons sensíveis, não para eles próprios tais como existem na realidade imediata, mas para satisfação de interesses espirituais superiores porquanto, vindos das profundidades da consciência, aqueles sons e formas são capazes de repercutir no espírito. O outro aspecto que tínhamos de considerar aqui era o aspecto subjetivo da atividade criadora ou o que dele se poderia deduzir a respeito desta atividade que deve ser tal como a exige a determinação da obra de arte. Deve ser atividade espiritual, mas incluir, ao mesmo tempo, um aspecto sensível e direto. Não será, portanto, nem mecânica nem científica. Não se referirá às ideias puras e abstratas, mas deve ser uma atividade simultaneamente sensível e espiritual. Seria uma obra de péssima poesia querer dar forma imaginífica a uma ideia precedentemente enunciada em prosa, isto é, acrescentar, a título de ornamento, uma imagem a uma reflexão abstrata. A produtividade artística exige a indivisão do espírito e do sensível. Aos produtos desta atividade chamamos nós criações da fantasia. Neles se exprime o espírito, o racional, a espiritualidade que torna o seu conteúdo consciente graças a elementos sensíveis. A atividade artística exerce-se, pois, sobre conteúdos espirituais representados de um modo sensível. A esses conteúdos a fantasia imprime formas sensíveis. Este modo de produção pode comparar-se com a atividade de um homem experimentado, conhecedor da vida e contingências dela, que não consegue formular regras a sua experiência e tem sempre diante dos olhos os casos isolados que presenciou; ou, dizendo de outra maneira: sendo um homem capaz de se entregar a reflexões gerais, só sabe explicitar a sua experiência concreta em narrativas de casos isolados. Tudo, para ele, se concretiza em imagens situadas em momentos precisos do tempo e em pontos precisos do espaço, dotadas de um nome e envolvidas por circunstâncias exteriores. Assim também pode acontecer com a invenção de um conteúdo que o espírito não consegue exteriorizar por outro modo que não seja a forma imaginífica, quer dizer, individual. Assim procede a fantasia criadora. Tudo o seu conteúdo pode abranger, mas a única maneira de consciencializar o conteúdo é a representação sensível. A imaginação vulgar assenta na lembrança de acontecimentos vividos, de experiências realizadas, e não é, propriamente, criadora. A lembrança conserva e revive os pormenores e o aspecto exterior dos acontecimentos, com todas as circunstâncias que os envolveram, mas não dá deles uma aspecção geral. A imaginação criadora de arte, ou fantasia, é própria de um grande espírito e de uma grande alma, é a que apreende e engendra representações e formas, a que dá uma expressão figurada, sensível e precisa aos interesses humanos mais profundos e gerais. Disto resulta, em primeiro lugar, que o talento artístico é essencialmente um dom natural, visto que, para se afirmar, precisa do sensível. Também se fala de um talento científico, mas a ciência apenas supõe uma aptidão de pensar por generalizações (em termos exatos, não se pode falar do talento científico como dom natural). Pelo contrário, o elemento sensível e natural desempenha um papel importante na produção de uma obra de arte, ao passo que o pensamento livre abstrai de toda a naturalidade, não se comporta de um modo natural. Por ser natural um dos seus fundamentos, a fantasia criadora está carregada de naturalidade, e, sendo dons naturais o talento e a fantasia, é lícito considerar a produção artística como uma atividade quase instintiva. Não dizemos inteiramente instintiva porque o natural só constitui uma parte dela. a espiritual e o natural formam um todo indivisível, e nisso consiste a singularidade da obra artística. A qualquer homem é, sem dúvida, possível adquirir certo grau de habilidade artística; mas o talento artístico corresponde a um elemento específico, e quem for destituído de talento jamais ultrapassará aquele limite que marca o início da arte propriamente dita. Frederico Schelegel, por exemplo, tentou compor versos, quando estava em Jena; conseguiu-o, mas como o teria conseguido quem quer que fosse, porque ele tem uma maneira definida e conhecida de compor poemas ou qualquer outra produção, e só o talento natural assume até um nível superior. O talento artístico, por ser em parte natural, manifesta-se cedo, e procura desenvolver-se, excitar-se, possesso de uma inquietação, de uma agitação que lhe vem da exigência de se explicitar. Ao futuro escultor, tudo aparece, desde cedo, no aspecto estatuário como desde cedo o futuro poeta começa a traduzir em verso tudo quanto vê, experiencia ou ouve. A destreza técnica, sobretudo, constitui o sinal precoce de uma predisposição natural. Tudo se transforma em figura, poema, melodia, e é o aspecto técnico que, com o natural, um talento mais facilmente domina. Aqui oferece a obra de arte um duplo aspecto, o que provém de ela se dirigir à nossa apreensão espiritual que, por sua vez, participa da natureza. A esta definição geral da arte podemos acrescentar a seguinte observação: ao dizermos que a fantasia é a origem da arte e o motivo da sua ilimitação, de modo algum lhe atribuímos um arbítrio selvagem e indisciplinado; pelo contrário, pensamos que a mais alta missão da fantasia consiste em jamais perder de vista os nobres interesses humanos, o que a obriga a possuir pontos de apoio fixos e firmes. Também as suas formas se não devem perder numa variedade acidental: a cada conteúdo tem de corresponder uma forma digna dele. Isso nos dará a orientação racional por entre a multidão aparentemente inextricável de formas e obras artísticas. 2ª SEÇÃO - A CIÊNCIA DA ARTE I - TEORIAS FUNDADAS NO PRINCÍPIO DO GOSTO Aparece-nos agora a questão de saber quais os processos científicos que se aplicam ao estudo das obras de arte. Mais uma vez nos encontramos perante dois processos que parecem excluir-se mutuamente e impedir-nos de chegar a um resultado positivo. Vemos, por um lado, a ciência da arte aplicar todos os seus esforços ao aspecto exterior das obras artísticas que classifica e reúne ordenadamente para as transformar em objeto de história, entregar-se a considerações sobre as obras existentes e formular teorias que fornecerão pontos de vista gerais aos juízos referentes à criação artística. Por outro lado, vemos a ciência dedicar-se a reflexões sobre o belo e a ideia de belo e limitar-se a generalidades a que não importa o que há de particular nas obras de arte, desenvolver, em suma, uma filosofia abstrata do belo. Quanto ao primeiro destes processos, que tem um ponto de partida empírico, verificamos que a sua utilização é necessária para quem se proponha ser um erudito em matéria de arte. E tal como, em nossos dias, até àqueles que não tencionam dedicar-se à física são obrigados a possuir eventuais conhecimentos físicos, assim também se considera quase como uma obrigação de todo homem culto possuir conhecimentos sobre arte, e está muito difundida a pretensão de passar por diletante ou por especialista de arte. Para constituírem verdadeira erudição, devem esses conhecimentos ser muito variados e vastos. Com efeito, a erudição implica, antes de tudo, um conhecimento secreto do imenso domínio das obras de arte individuais, antigas e modernas, das quais muitas já desapareceram e outras se encontram em países de continentes longínquos que o desfavor da sorte não permite, ao que por isso se interesse, ver com os próprios olhos. Além disso, toda obra de arte pertence a uma época, a um povo, a um meio, relaciona-se com certas representações e fins, históricos ou não, obrigando o estudioso de arte a possuir vastos conhecimentos, simultaneamente históricos e muito especializados, dado que a natureza individual da obra artística contém pormenores particulares e especiais indispensáveis para a compreensão e interpretação dela. Em suma, esta erudição não exige apenas, como qualquer ciência, a memória que registra e guarda os conhecimentos adquiridos, mas precisa ainda de uma imaginação viva capaz de reter, para futuras comparações e confrontos, todos os traços das formas que as obras de arte apresentam. Ao considerar as obras de arte neste aspecto puramente histórico, surgem alguns pontos de vista que é preciso atenciar na formulação do juízo sobre uma obra. Discernidos e coordenados, estes pontos de vista constituem, como em todas as ciências que começaram por ser empíricas, o ponto de partida para critérios e proposições de ordem geral, e, levada a formal generalização ainda mais longe, são eles que conduzem às teorias da arte. Não julgamos conveniente citar toda a literatura relacionada com esta questão; basta lembrar algumas obras gerais, como a Poética, de Aristóteles, em que se mantém atual todo o interesse da teoria da tragédia, sem falar de, entre os antigos, na Arte Poética, de Horácio, e na obra de Longino sobre o sublime, que mostram como são construídas estas teorias. As determinações gerais obtidas com o processo da abstração deveriam constituir, segundo os autores delas, prescrições e regras indispensáveis, sobretudo em épocas de decadência da poesia e da arte, para produzir obras artísticas. Seriam receitas que se deviam observar. Mas as receitas prescritas por estes médicos da arte para lhe restabelecer a saúde seriam ainda menos eficazes do que as que os médicos prescrevem para curar os doentes. A este propósito direi apenas que, embora contenham pormenores muito interessantes, as proposições e regras de tais teorias foram abstraídas de um número muito reduzido de obras de arte, escolhidas, é certo, entre as classificadas de mais belas. Por outro lado, estas determinações não passam, as mais das vezes, de reflexões banais, e dotadas de tal generalidade que se tornam impróprias para aquilo que, justamente, importava, as aplicações particulares. As Epístolas de Horácio estão, assim, cheias de bons conselhos dirigidos a toda a gente e, por isso mesmo, sem qualquer aplicação prática: omne tulit punctum etc. (semelhantes àqueles conselhos de higiene: vai para o campo e alimenta-te bem); judiciosos na generalidade, faltam-lhes as determinações concretas, as únicas que importam ao ponto de vista da ação. Esta maneira de considerar a arte, sem que de um modo explícito se procure provocar a criação de verdadeiras obras artísticas, visava sobretudo a fornecer elementos para os juízos sobre as obras, formar o gosto; esse foi, com efeito, o fim dos Elements of Criticism de Home, das obras de Batteux, da introdução de Ramber à ciência das belas-artes e de algumas mais obras do mesmo gênero bastante lidas na sua época. O gosto serve para apreciar a aparência exterior de uma obra de arte: o arranjo dos diversos elementos, a habilidade de execução, a técnica mais ou menos elaborada etc. Aos princípios destinados a formar e dirigir o gosto, acrescentavam-se ideias extraídas da velha psicologia e assentes nas observações empíricas das faculdades e atividades da alma, da hierarquia e suposta sucessão das paixões etc. Com tudo isso, esquecia-se um elemento de decisiva importância; esquecia-se que toda a gente introduz, nos juízos referentes às obras de arte e aos caracteres, às ações e aos acontecimentos, aquilo que possui de mais subjetivo: as ideias, opiniões e sentimentos; ora, os autores e as obras que viemos citando, ao proporem-se a formar o gosto do público, atenderam apenas ao aspecto exterior e sumário da obra de arte, assentaram os seus preceitos numa base muito limitada, trabalharam com uma cultura intelectual que ainda tinham pouco desenvolvida, motivos por que as suas regras e teorias de nada valiam para penetrar a intimidade da obra de arte e nela apreender a verdade oculta e o profundo sentido. A falta de um critério objetivo que se aplique às inumeráveis formas da natureza e que permita distinguir o belo do feio, é o gosto subjetivo, que se subtrai a todas as regras e discussões, o único guia na escolha dos objetos. E, com efeito, quando as opiniões correntes sobre o belo e o feio, sobre o que é ou não digno de ser imitado, quando, em suma, o gosto dos homens preside à escolha dos objetos da representação, esta dispõe de todos os objetos na natureza, pois nenhum deles há que não possua apreciadores. Corre entre os homens que o noivo acha sempre bela a noiva (outro tanto se não dirá da opinião do marido sobre a mulher), mais bela do que todas as mulheres, e será porventura uma felicidade para as duas partes não existirem regras do gosto subjetivo. Se dos indivíduos e dos gostos acidentais passamos aos gostos dominantes nas diversas nações, verificamos que também eles variam de uma para outra nação. É comum dizer-se que uma beleza europeia não agrada a um chinês ou a um hotentote, que a noção da beleza de um chinês é diferente da de um negro, e a deste diferente da do europeu. E ao considerarmos as obras de arte destes povos extra-europeus, as suas imagens dos deuses, tais como brotaram da sua fantasia, e tão sublimes aos seus olhos, e tão profundamente veneradas, aparecem-nos elas, com efeito, como ídolos medonhos, assim também a sua música medonha nos soa aos ouvidos. Por seu lado, esses povos consideram a nossa escultura, a nossa pintura e a nossa música como insignificantes, senão como absurdas e feias. De um modo geral, estas teorias procedem como as ciências não fisiológicas. O conteúdo que examinam é extraído da nossa representação e considerado como algo que existe em si; e à medida que se impõe a exigência de novas determinações, procuram deduzi-las daquela mesma representação; sempre se extraem, pois, as determinações assim obtidas para serem formuladas em definições. Com este processo, nunca saem de um terreno incerto e abrem um vasto campo de disputa. À primeira vista, poderá, com efeito, parecer que o belo corresponde a uma representação muito simples. Logo, porém, se reconhece que, longe de assim ser, o belo oferece múltiplos aspectos, que certo juízo se refere a um só aspecto, e este outro àquele outro; e até quando os dois juízos são fundados, a discussão incide ainda sobre a questão de saber qual dos aspectos é o essencial. II - AS MAIS RECENTES DEFINIÇÕES DO BELO Considera-se, justamente, que um exame científico desta questão exigiria a observação e análise, uma após outra, das diversas definições do belo. Não nos dedicaremos, neste livro, a esse trabalho, apesar do interesse histórico que ele apresentaria e apesar da iniciação, que nos proporcionaria, em todas as formas de definição; citaremos alguns exemplos apenas, escolhidos entre os mais interessantes e modernos e entre os que mais se aproximam daquilo que a ideia do belo representa na realidade. Convém lembrar, por oportuna, a definição do belo dada por Goethe e adotada, na História das Artes Plásticas entre os Gregos e Romanos, por Mayer, que utiliza também a maneira de ver de Hirt, sem, no entanto, o nomear. Hirt, um dos maiores conhecedores de arte modernos, depois de, no seu artigo sobre o Belo na Arte, ter falado do belo tal como é expresso pelas diferentes artes, chega à conclusão de que o que constitui a base do juízo sobre o belo na arte e da formação do gosto é O conceito do característico. Segundo ele, o belo é a perfeição que pode atingir ou atinge um objeto visto, ouvido ou imaginado. Define em seguida a perfeição como o que corresponde a um fim determinado, aquilo que se propôs a natureza ou a arte com a criação do objeto, que deve ser perfeito no seu gênero. Além disso, a nossa principal atenção deve incidir, para que possamos formular um juízo da beleza, sobre os característicos que compõem um ser ou, com maior exatidão, sobre os sinais característicos graças aos quais um ser é o que é. Consequentemente, por característico, como lei da arte, entende Hirt a individualidade determinada que permite distinguir a forma, os movimentos, os gestos, a expressão, a cor local, a sombra e a luz, o claro-escuro e a atitude por que um objeto difere de outro e que são, para cada objeto, aquilo que devem ser. Esta definição já possui uma rara explicação. Se, agora, perguntarmos o que seja o característico, ser-nos-á respondido que, em primeiro lugar, é um conteúdo, quer dizer, um sentimento, uma situação, um evento, uma ação, um indivíduo determinado; e que, em seguida, é a maneira como se exprime o conteúdo. A esta se aplica a lei do característico na arte, lei que exige que todas as particularidades do modo de expressão contribuam para salientar o conteúdo, participem da representação total. A definição abstrata do característico assenta, pois, no postulado da finalidade do particular que se destina a pôr em relevo o conteúdo para representar. Podemos ilustrar esta definição com exemplos familiares e correntes, dizendo que ela se reduz ao seguinte: o conteúdo de, por exemplo, um drama é constituído pela ação, e o drama tem por função representar o modo como a ação se desenvolve e realiza. Ora, de múltiplas ações se ocupam os homens: conversam, comem, dormem, vestem-se etc., e tudo o que, nesta multiplicidade, se não referir diretamente à ação principal, que forma o conteúdo do drama, será eliminado para que não enfraqueça o significado dele. De igual modo, poder-se-ia introduzir num quadro, que só apreende um momento da ação, uma infinidade de pormenores extraídos das múltiplas ramificações do mundo exterior: situações, circunstâncias, pessoas, atitudes etc., sem relação com o momento representado e que em nada contribuíram para lhe salientar o característico. Ora, segundo a definição do característico, só o que serve essencialmente à expressão de um dado conteúdo entra na obra de arte, que nada de supérfluo e inútil pode inserir. Estamos perante uma definição muito importante e, de certa maneira, justificável. No entanto, pensa Mayer, na obra que citamos, que esta maneira de ver desapareceu sem deixar vestígios, e acrescenta que com grande proveito para a arte, pois, seguindo à letra a teoria de Hirt, ela apenas nos levará à arte puramente caricatural. Tratar-se-ia de uma concepção errada porque assente na ideia falsa de que a arte se deveria deixar guiar por qualquer coisa. A filosofia da arte não procura impor regras ao artista; procura apenas o que é o belo em geral e como se exprime ele nas obras de arte existentes, sem que com isso se proponha a estabelecer quaisquer regras. Quanto à crítica de Mayer à concepção de Hirt, penso que, na verdade, a definição de Hirt se alarga também ao caricatural, porque também a caricatura pode ser característica, mas é preciso acrescentar que, na caricatura, se um caráter dado se representa com exagero, é afetado por um excesso de característico. Ora, o excesso não salienta o característico, mas antes constitui uma repetição fastidiosa, suscetível de causar a deformação do característico, de, por assim dizer, o desnaturar. Além disso, a caricatura apresenta-se como o característico da fealdade, quer dizer, do que está desfigurado. Mas pode a fealdade oferecer relações mais ou menos íntimas com o conteúdo, e dir-se-á portanto, em obediência ao princípio do característico, que nada impede que também a fealdade seja um objeto de representação. A definição de Hirt não nos permite formar uma ideia clara nem do que deva ser caracterizado no belo criado pela arte, nem do belo em geral. Neste aspecto, constitui uma definição puramente formal que contém, decerto, uma parte de verdade, mas de verdade abstrata. Que opõe, porém, Mayer ao princípio da arte proposto por Hirt? Quais as suas preferências? Ocupa-se ele, em primeiro lugar, do princípio que rege as obras artísticas da antiguidade e que, segundo ele, deve servir para determinar o belo em geral. Fala, então, da definição do ideal por Mengs e Winckelmann para declarar que não tem a intenção de rejeitar ou aceitar, tais quais, as leis da arte, mas que não opõe nenhuma dificuldade em seguir a opinião de um ilustre juiz em matéria de arte, Goethe, opinião que nos pode aproximar da solução do enigma. Diz Goethe o seguinte: O mais elevado princípio dos antigos era o do significativo, mas o resultado mais elevado da sua feliz aplicação era o belo. Examinada de perto, esta proposição mostra-nos dois elementos: o conteúdo ou a coisa e o modo de representação. De uma obra de arte, nós começamos por ver aquilo que nos é apresentado diretamente, e só depois perguntamos qual sejam o seu significado e o seu conteúdo. O que vemos exteriormente não tem para nós um valor direto, e atribuímos-lhe um valor interior, um significado que lhe anima a exterior aparência. Atribuímos-lhe a alma que adivinhamos pelo exterior. Com efeito, uma aparência que significa algo não tem representação própria, nem sequer do que exteriormente é, mas representa algo alheio, como acontece, por exemplo, com o símbolo e, melhor ainda, com a fábula que recebe o significado da moralidade que implica. Poder-se-á até dizer que todas as palavras implicam uma significação e nada valem por si próprias. Assim também no rosto humano, nos olhos, na carne, na pele, em toda a estrutura do homem, transparece um espírito, uma alma, e sempre e em tudo o significado se relaciona com algo que ultrapassa a aparência direta. É com este sentido que se pode falar no significado da obra de arte que se não esgota nas linhas, curvas, superfícies, relevos, e entalhes da pedra, nas cores, sons, combinações harmoniosas das palavras etc., mas constitui a exteriorização da vida, dos sentimentos, da alma, de um conteúdo do espírito, e em tudo isso consiste o seu significado. Entretanto, não se vê claramente em que difira este princípio do significativo, do princípio do característico formulado por Hirt. Segundo esta maneira de ver, seriam de duas ordens os elementos constitutivos do belo: um elemento interno, o conteúdo, e um elemento externo que serve para significar, para caracterizar aquele conteúdo; o elemento interior aparece, deixa-se reconhecer no exterior que, por sua vez, o revela. Nada mais se pode dizer do princípio do significativo. Estas velhas teorias, e bem assim as regras práticas que delas se julgava poderem ser deduzidas, foram na Alemanha repudiadas após, sobretudo, o aparecimento de uma poesia verdadeiramente viva, e às pretensões de tais leis e vogas teóricas opuseram-se os direitos do gênio a produzir obras só atentas à inspiração. Nesta espiritualização da arte e na correspondente atitude de profunda penetração mediante a simpatia para com o que se dissimula no exterior envoltório se pode ver a origem da receptividade e da liberdade que nos tornaram aptos a reconhecer e apreciar grandes obras de arte há muito existentes no mundo moderno, na Idade Média e até em povos antigos que nos são completamente estranhos (os hindus, por exemplo). Obras são essas que, para nós, se apresentam, por serem antigas ou pertencerem a povos estrangeiros, num alheamento em demasia compensado pela universalidade de um conteúdo essencialmente humano: só devido a um prejuízo teórico se pôde considerá-las como de mau gosto bárbaro. Esta apreciação das obras de arte, que ultrapassa os critérios assentes nas abstrações das teorias, promoveu o reconhecimento de uma forma de arte particular, a arte romântica, e impôs a exigência de aprofundar como o não fizeram as referidas teorias, a análise do conceito e da natureza do belo. Ao mesmo tempo, o conceito em si, o espírito pensante, encontrou na filosofia um mais profundo conhecimento de si próprio e assim pôde formar uma ideia mais adequada e mais substancial da natureza da arte. Deste modo prescreveram, caducaram todas as reflexões sobre a arte de que acabamos de falar, todas as teorias, todos os princípios e aplicações. Só a erudição em história da arte mantém todo o valor e, graças aos progressos da receptividade espiritual, ainda o acrescerá, visto que a sua competência se vai alargando a um campo cada vez mais vasto. Consistem o seu objeto e o seu fim na apreciação estética das obras de arte individuais e na clarificação das circunstâncias que condicionam exteriormente uma obra artística; só aquela apreciação, quando nela intervenha a inteligência e o espírito e quando se apoie em conhecimentos históricos, é suscetível de realçar toda a individualidade de uma obra de arte. Assim procedeu Goethe em seus numerosos escritos sobre arte. Esta maneira de considerar e de julgar as obras artísticas não implica a construção de teorias (porquanto, obrigada quase sempre a empregar princípios e categorias abstratas, algumas vezes se arrisca, inconsideradamente, a ser arrastada para a teoria pura), e quando consegue resistir a tal solicitação e não desviar a sua atenção das representações concretas que tem perante si, então pode, pelo menos, fornecer à filosofia da arte, incapaz de se ocupar de pormenores históricos particulares, documentos e materiais suscetíveis de lhe darem uma base concreta. Este seria o primeiro modo de considerar a arte, o que tem como ponto de partida o particular e o existente. Outro modo, oposto a este, é o da reflexão puramente teórica que se propõe a definir o belo como tal, sem lhe transpor os limites, e clarificar a sua ideia. Como se sabe, foi Platão quem mais insistiu sobre a exigência de a reflexão filosófica considerar os objetos, não nas suas particularidades, mas na generalidade, no seu ser em si e para si; e acrescentava que a verdade não reside nas boas ações ou opiniões individuais, nos homens belos ou nas belas obras de arte, mas no bem, no belo, na verdade, como tais. Se, portanto, se quer saber o que é o belo, conforme a sua natureza e conceito, tem de se seguir o pensamento conceitual, único capaz de trazer à luz da consciência a natureza lógico-metafísica da ideia em geral, da ideia do belo em particular. Este modo de considerar o belo em si, na sua ideia, pode, por sua vez, degenerar numa metafísica abstrata, e ainda quando o próprio Platão é o nosso guia, as suas abstrações, até no que delas se refere à ideia lógica do belo, não nos satisfazem. Essa ideia, queremo-la nós conhecer de um modo mais profundo e mais concreto, porque a ausência de conteúdo que caracteriza a ideia platônica já não satisfaz às mais ricas exigências filosóficas do nosso tempo. Ao tratar da filosofia da arte, também nós, sem dúvida, teremos de adotar como ponto de partida a ideia do belo, mas com o cuidado de evitar as abstratas ideias platônicas como introdução à filosofia do belo. Para só uma ideia provisória da verdadeira natureza do belo darmos agora, diremos que o seu conceito filosófico deve constituir uma mediação entre os dois extremos de que falamos, entre a generalidade metafísica e a particularidade da determinação real. Só assim é possível apreendê-lo tal como é em si próprio, em toda a sua verdade. Com efeito, e ao contrário da reflexão marcada de esterilidade, aquele conceito é fecundo porque, enquanto conceito, e conceito do belo, abre-se numa totalidade de determinações; e quer em si mesmo seja considerado, quer nos elementos em que se decompõe, sempre a um e aos outros é inerente a necessidade das suas particularidades e respectivas evolução e trocas recíprocas. Além disso as particularidades em que a totalidade se manifesta trazem o cunho da qualidade e substancialidade do conceito donde emanam. Às concepções de que nos temos ocupado faltam estas duas condições e por isso só este conceito pleno e perfeito é suscetível de nos conduzir a princípios substanciais, necessários e totais. III - DEFINIÇÃO DO FIM ÚLTIMO DA ARTE Se se quiser marcar um fim último à arte, será ele o de revelar a verdade, o de representar, de modo concreto e figurado, aquilo que agita a alma humana. Este fim é também o da história, da religião etc. A propósito se dirá que a questão do fim último implica muitas vezes a falsa concepção de que o fim existiria em si e a arte teria para com ele a função de um meio. Assim entendida, a questão do fim transforma-se numa questão de utilidade. Formulando a questão do fim e, por conseguinte, da utilidade, subentende-se que um objeto, neste caso a arte, referencia-se a algo alheio com um valor em si e um dever-ser. O fim teria, pois, um valor essencial, estranho à coisa que o deve realizar. Por isso a questão que nos ocupa é uma falsa questão, uma vez que todo objeto que se apresenta como absoluto deve ter em si próprio a sua determinação. Se ele se comportar perante outro objeto como o não essencial perante o essencial, o objeto que tenha a função de meio deve ter as propriedades do outro para que lhe seja adequado. Sempre se volta, pois, ao objeto se se partir do essencial, e, para servir fins morais, a obra de arte deve possuir um conteúdo moral. O desvio que se comete para dar à obra de arte, como fim último, um essencial que lhe é alheio, é, pois, completamente supérfluo. Ao mesmo tempo, desfaz-se a falsa opinião, de que já tratamos, de que a arte constituiria um meio para melhorar e elevar moralmente o mundo em geral, quer dizer, não seria o seu próprio fim, mas teria o fim fora de si. Coisas há, decerto, que não são meios dos fins exteriores que têm em vista e isso se pode dizer, em certo sentido, da arte quando é considerada como um meio de enriquecer, de adquirir honras e glória. Mas estes fins não são inerentes à arte como tal. Ao considerarmos um objeto do ponto de vista da sua natureza essencial, não pensamos nos interesses que lhe são alheios e que só em alheias condições intervêm. Se, pelo contrário, em vez de situar o fim último fora do objeto, vemos nele uma determinação imanente ao próprio objeto, somos levados a considerar a obra de arte em si e para si, segundo sua natureza e conceito. Até agora, as nossas reflexões sobre a arte apenas têm sido, por assim dizer, exteriores, e a elas juntamos outras exteriores relações. Esse é o modo habitual de considerar os objetos. Mas com essas reflexões chegamos a um ponto onde nos vemos obrigados a entrar no próprio objeto. Temos, portanto, de nos ocupar do interior do conceito. Só depois de definirmos o conceito poderemos estabelecer a classificação e o plano do conjunto da ciência; porque uma classificação que não assente, como nas considerações não filosóficas, em princípios exteriores, tem de procurar o seu princípio no conceito do próprio objeto. Se assim acontece, a questão está em saber onde iremos buscar esse princípio. Começando pelo conceito do belo artístico, logo este se tornaria uma pressuposição e, até, uma simples suposição. Mas o método filosófico não admite suposições; só admite aquilo ruja verdade possa ser demonstrada, cuja necessidade possa ser evidente. Vamos dizer algumas palavras sobre esta dificuldade com que esbarra a introdução a toda disciplina filosófica independente e em si mesma considerada. Acabamos de formular a questão do fim da arte. Dizer que o fim de arte está na moralização é formular uma definição vulgar, superficial, vaga, mas, em todo caso, com algum sentido. Profundamente examinado, este ponto de vista aparece como o da contradição não resolvida, mas que deve ceder o lugar a um ponto de vista superior que é o da oposição resolvida, o da conciliação dos contrários. Tal é o fim supremo, o fim absoluto. A esta ideia se deve referenciar a arte que, uma vez assim referenciada, encontra o seu fim absoluto na fruição daquele ponto de vista de que se apodera para realizar o que ele implica. A arte desenvolve-se nesta mais elevada esfera, a da ideia da conciliação dos contrários, e este ponto de vista passaremos, por nossa vez, a adotar nas ulteriores considerações sobre a arte. Deste modo afastaremos os demais pontos de vista, fins últimos etc. Apesar do uso frequente dado à palavra ideia pelas teorias da arte, ainda há excelentes especialistas que se não mostram hostis a essa palavra. Encontramos um exemplo muito recente e interessante na polêmica que trava o senhor Von Rumohr nas suas Investigações italianas. Tem esta polêmica o seu ponto de partida no interesse prático da arte, e de modo algum se refere àquilo a que nós chamamos ideia. Com efeito, o Sr. Von Rumohr, pouco familiarizado com a filosofia moderna, confunde a ideia com a representação indeterminada e com o ideal abstrato, desprovido de individualidade, que conhecidas teorias e escolas artísticas opõem às formas naturais, precisas na sua verdade e perfeitas na sua realização. Ora, o Sr. Von Rumohr, por sua vez, opõe estas formas à ideia e ao ideal abstrato concebidos pelo próprio artista fora e independentemente de toda a realidade. O artista que pretendesse inspirar-se em semelhantes abstrações atuaria como o pensador que fundasse o pensamento em representações indeterminadas e se contentasse com conteúdos também indeterminados. Esta censura, porém, não abrange aquilo a que nós, filósofos, chamamos ideia, porque a ideia como tal é concreta em si, é uma totalidade de determinações, e só será belo o que contiver uma adequação direta de ideia à representação objetiva. A definição do belo proposta pelo Sr. Von Rumohr é a seguinte: Para a inteligência mais geral e, se se quiser, moderna, a beleza é inerente a todas as propriedades das coisas que excitam agradavelmente a vista, e por seu intermédio estimulam a alma e aprazem ao espírito. Essas propriedades seriam de três espécies: umas atuariam sobre o olhar, órgão sensível; outras sobre o sentido do espaço, próprio ao homem e considerado um sentido inato; outras, enfim, sobre o intelecto e, mediante ele, sobre a faculdade cognitiva e a vida dos sentimentos. A última destas ações, a mais importante, teria origem em formas que, sem nenhuma relação com o prazer sensível e a beleza do modelo, oferece certo prazer moral e espiritual (portanto e apesar de tudo: prazer) que, em parte, provém dos estímulos exercidos pelas representações evocadas e, noutra parte, do simples exercício da faculdade cognitiva. São estas as principais definições do belo que propõe o profundo especialista de arte. Poderão elas satisfazer a certo nível de cultura, mas são completamente insatisfatórias do ponto de vista filosófico. Porque, no fundo, estas definições tornam a dizer que o belo serve para deleitar a vista e o espírito, para evocar sentimentos, para oferecer aprazimento. Ora, já Kant pusera termo a esta redução do belo ao agradável, e já mostrara que era preciso transpor, na concepção e definição do belo, os domínios do sentimento puro e simples. CAPÍTULO III A arte considerada do ponto de vista filosófico I - A FILOSOFIA KANTIANA Chegamos enfim, através das reflexões precedentes, a um ponto de vista que parece o único adequado para apreender o conceito da arte tal qual é na sua necessidade interna; e acrescentaremos que, até do ponto de vista histórico, só se começou a conhecer e apreciar a arte a partir do momento em que ela foi considerada como nós o fazemos. Porque a oposição de que anteriormente falamos era um obstáculo para as pessoas simplesmente cultas e em condições de refletir bem assim como para a meditação filosófica, e só quando a filosofia transpôs definitivamente a oposição pôde esta apreender o conceito próprio e o da natureza. No triunfo do ponto de vista em questão, se pode, pois, ver o despertar da filosofia em geral e da ciência da arte em particular; a este despertar deve a ciência estética a sua origem e a dignidade própria que a arte lhe reconhece. Vou esboçar com brevidade a história desta evolução, atendendo ao interesse histórico que oferece e para definir com maior clareza a base sobre que entendemos apoiar-nos nas ulteriores investigações. Para, logo de início, darmos uma definição muito geral, dizê-la-emos formada pela concepção que vê na arte um meio onde se opera a conciliação do espírito abstrato, descansado em si mesmo, com a natureza, quer nas manifestações exteriores, quer nas manifestações interiores, afetivas e psíquicas. Depois de conciliá-los, a arte realiza a união, a fusão dos dois termos. Já a filosofia kantiana sentia a exigência desta conciliação e, mais do que isso, reconhecia-se e indicava a sua viabilidade. Como fundamento da inteligência, e também da vontade, Kant colocara, de um modo geral, o racional em si, a liberdade, a consciência que se descobre e se sabe infinita, e este reconhecimento do caráter absoluto da razão como tal, que deu o impulso a toda a orientação da filosofia moderna, este ponto de vista absoluto solicita, sem objeção alguma, a nossa adesão, qualquer que seja a insuficiência que se atribua à filosofia de Kant. Mas o reconhecimento de uma irredutível oposição entre o pensamento subjetivo e a realidade objetiva, entre o universal abstrato e o particular sensível do querer, levara Kant à descoberta de que na moral é onde reveste esta oposição o caráter mais agudo, e resolveu-a, ou julgou resolvê-la, sobrepondo o espírito prático ao espírito teórico. Em face da irredutibilidade desta oposição, tal como ela se lhe apresentava, Kant só podia escolher a concepção da unidade sob a forma de ideias subjetivas elaboradas pela razão e cuja realidade seria indemonstrável; o mesmo aconteceria com os postulados que, embora deduzidos da razão prática, não poderiam ser reconhecidos pelo pensamento no seu em si essencial, porquanto a realização deles tem a forma de um tu deves que se alarga infinitamente. Assim evidenciou Kant a oposição e a exigência de conciliá-la, mas sem investigar a verdadeira natureza desta oposição e sem atenciar, como devia, em que ela constitui a única realidade verdadeira. É certo que Kant prosseguiu as suas investigações até o ponto de encontrar a unidade naquilo a que chamou o intelecto intuitivo, mas, ainda aqui, não chegou a ultrapassar a oposição entre o subjetivo e o objetivo; por isso, quando nos fala da resolução abstrata entre os opostos conceito e realidade, entre o universal e o singular, entre o intelecto e a sensitividade, quando, em suma, nos fala da ideia, Kant transforma tal resolução ou conciliação num caso subjetivo, em vez de a conceber em conformidade com a verdade e o real. Neste aspecto, a Crítica do juízo, que examina os juízos estético e teleológico, é uma obra notável e muito instrutiva. Ao referir-se aos objetos belos da natureza e da arte, aos produtos da natureza que, pelo caráter finalista, lhe abrem o caminho para o conceito do organismo e do ser vivo, Kant só os considera do ponto de vista da reflexão e do juízo subjetivos. É certo que Kant define o juízo em geral por a faculdade de pensar o particular como participante do geral, e diz que o juízo é refletido quando está perante só o particular que irá integrar no geral a achar. Para fazê-lo, precisa o juízo de uma lei, de um princípio a que obedeça e a que Kant chama finalidade. De acordo com o conceito da liberdade, que é o da razão prática, o cumprimento do fim permanece no estado de simples tu deves; mas para o juízo teleológico, com o ser vivo por objeto, de outro modo vai Kant considerar o organismo vivente: aqui, o conceito, o geral, ainda contém o particular e, enquanto fim, determina, não de fora, mas de dentro, o particular e o exterior, a estrutura dos membros de tal forma que se estabelece por si própria a correspondência entre o particular e o geral. No entanto, este juízo não implica o reconhecimento da natureza objetiva do objeto, mas constitui apenas o resultado de uma reflexão subjetiva. Finalmente, Kant concebe o juízo estético e diz que ele é, não produto do intelecto como tal, ou seja, da nossa faculdade de formar conceitos, não o produto da intuição sensível, que possui tão variadas modalidades, mas resulta do livre jogo do intelecto e da imaginação. É assim que o objeto fica referenciado ao sujeito e ao seu sentimento de prazer e agrado. O sentimento de agrado deve, no entanto, ser completamente desinteressado, quer dizer, não se referir a nenhum desejo. Quando nos guia um interesse, tal como a curiosidade, uma exigência material ou o desejo da posse e do uso, os objetos importam-nos não por si próprios, mas por causa do nosso desejo ou da nossa exigência. Então, o valor do objeto provém da relação em que está com o nosso desejo ou exigência, e essa relação é tal que há, de um lado, o objeto e, do outro, uma determinação que lhe é estranha, mas que nós lhe conferimos. Quando consumo, por exemplo, um objeto para me alimentar, o interesse que lhe encontro reside em mim e não nele. Ora, segundo Kant, não seria esta a nossa atitude perante o belo. O juízo estético deixa livremente subsistir o que existe fora de si, e provém do prazer que se alcança no objeto como tal, sem que intervenha nenhuma outra consideração e atribuindo ao objeto um fim em si. Esta é, como já dissemos, uma reflexão muito importante. O belo, acrescenta Kant, é aquilo que se pode representar fora de todo o conceito, de toda a categoria do intelecto, como objeto de um prazer geral. Para apreciar o belo, há que possuir um espírito cultivado. O homem, tal qual, é incapaz de formular um juízo sobre o belo, um juízo que possua validade universal. O universal como tal, é decerto, uma abstração; mas, por isso mesmo, tem o direito de aspirar a uma validade geral cuja determinação traz em si. Neste sentido, pode também o belo aspirar a um geral reconhecimento, embora se não preste a juízos fundados sobre simples conceitos do intelecto. O bem, o justo, por exemplo, tais como se manifestam em ações isoladas, podem sempre referenciar-se a conceitos gerais, e pela conformidade com eles se qualifica de boa uma ação. Ao contrário, o belo tem de despertar diretamente um prazer geral sem relação com nenhum conceito. Isto significa apenas que, nos juízos sobre o belo, nós não temos consciência do conceito e da integração nele do objeto e que, sempre sem consciência, nós não aceitamos como adquirida a separação entre o objeto particular e o conceito geral, separação que, entretanto, existe no juízo. Em terceiro lugar, o belo deve ser de natureza finalista, mas apenas de uma finalidade que reside no próprio objeto, independente da representação de um fim qualquer. Ao dizermos isto, nós só repetimos, no fundo, aquilo que já anteriormente dissemos. Um produto da natureza, como, por exemplo, uma planta, um animal etc., apresenta, na sua organização, uma inegável finalidade, e nesta finalidade existe ele para nós com tal imediateidade que não concebemos o fim como isolado e diverso da realidade presente do objeto. É neste sentido que se pode falar da finalidade do belo. Na finalidade do mundo finito, meio e fim permanecem estranhos um ao outro, sem que nenhuma relação íntima e substancial exista entre o fim e os materiais destinados à sua realização. A ideia do fim em si difere então da do objeto no qual este fim se realiza. O belo, pelo contrário, existe enquanto fim em si, sem que haja nenhuma separação entre meio e fim como se se tratasse de duas faces distintas. O fim dos membros de um organismo, por exemplo, consiste em manifestar a vitalidade deste, vitalidade que realmente existe nos membros que, sem ela, cessariam de ser membros. No mundo vivo, com efeito, o fim e os materiais para realizá-lo estão tão intimamente ligados que a vida desaparece logo que o fim deixa de lhe ser imanente. Considerado deste ponto de vista, o belo possui uma finalidade que lhe não é extrínseca, mas o que constitui a natureza imanente do objeto qualificado de belo é a íntima e racional correspondência entre o exterior e o interior. Enfim, Kant representa o belo como sendo um objeto de um prazer necessário, independentemente de todo o conceito. Necessidade é uma categoria abstrata que indica uma relação necessária e essencial entre dois termos: sempre que um deles está presente, também, por força desta presença, o outro está presente. Cada um contém o outro na determinação, como, por exemplo, a causa que, sem efeito, não tem sentido. Sem a intervenção de conceitos, quer dizer, de categorias do intelecto, é esta necessidade inerente à beleza que com ela provoca o prazer. É assim que a regularidade, por exemplo, nos apraz por se conformar com um conceito do intelecto, se bem que, segundo Kant, ela precisa, para nos aprazer, de alguma coisa mais do que a unidade e a igualdade exigidas por este conceito. O que em todas estas proposições kantianas sempre se encontra é a indivisão de quanto, na nossa consciência, se apresenta separado. Esta separação fica suprimida no belo que é a compenetração do geral e do particular, do fim e do meio, do conceito e do objeto. Por isso Kant vê, no belo artístico, a realização de um acordo mediante o qual o particular aparece em conformidade com o conceito. O particular como tal é um acidente em relação a outras particularidades, assim como em relação ao geral, e, constituída por sentimentos, inclinações e tendências, esta acidentalidade não só se integra em categorias gerais do intelecto, não só é dominada pelo conceito da liberdade, na sua abstrata generalidade, mas liga-se ao geral por laços tão íntimos que lhe fica interiormente adequada. É graças a isso que o pensamento se acha incorporado no belo artístico e que a matéria, em vez de sujeita a uma exterior determinação do pensamento, possui a liberdade própria: o natural, o sensível, os movimentos da alma, encontram em si a sua medida, o seu fim, o seu acordo, e se, por um lado, a intuição e o sentimento adquirem um caráter de generalidade que lhes permite participar no espírito, o pensamento, por outro lado, não só renuncia à hostilidade contra a natureza mas nela se abre e expande. Ao mesmo tempo, o prazer e a fruição acham-se justificados e sagrados, de modo que a natureza e liberdade, sensibilidade e conceito, vêm colocar-se no mesmo plano, adquirem os mesmos direitos, fundem-se em indissolúvel unidade. Mas, no fundo, até esta conciliação, aparentemente tão completa, não passa de subjetiva, quer dizer, de realizada pelo sujeito e só existente em função do seu juízo; não corresponde à verdade e à realidade em si. Tais seriam, para o interesse do nosso estudo, os principais resultados da crítica kantiana, que constitui um ponto de partida para uma verdadeira apreensão do belo artístico. Apresenta, porém, certas lacunas que seria preciso preencher para que nos proporcionasse a mais eficaz e completa apreensão. Seria preciso, sobretudo, conceber de maneira mais larga e compreensiva a unidade, tal como se realiza entre a liberdade e a necessidade, entre o universal e o particular, entre o racional e o sensível. II - SCHILLER, GOETHE, SCHELLING Vamos agora expor um resumo histórico das tentativas para preencher as lacunas da concepção kantiana da arte e para investir a arte na sua missão de representar a verdade pela conciliação dos contrários que acabamos de enumerar. Foi um homem dotado de grande sentido artístico e, ao mesmo tempo, de profundo espírito filosófico quem primeiro se ergueu contra a acepção da infinitude abstrata do pensamento, do dever pelo dever, do intelecto amorfo (do intelecto que vê na natureza e na realidade, na vida dos sentidos e dos sentimentos uma barreira que é preciso afastar) e reivindicou a totalidade e a conciliação, antes de a filosofia lhes reconhecer a necessidade. O grande mérito de Schiller está em ter ultrapassado a subjetividade e a abstração do pensamento kantiano, e em haver tentado conceber pelo pensamento e realizar na arte a unidade e a conciliação como única expressão da verdade. Não se limitou Schiller, nas suas considerações estéticas, à arte e ao conteúdo dela, sem se prender às relações com a filosofia propriamente dita, mas, depois de justificar, com princípios filosóficos, o seu interesse pela arte, chegou a resultados que lhe permitiram ir até o fundo da natureza e do conceito do belo. Tem-se até a impressão de que Schiller, durante um período da sua vida, se ocupou, mais do que o permitia a beleza serena da obra de arte, das suas relações com o pensamento. Em muitas das suas poesias, encontramos reflexões intencionalmente abstratas e, até, certo interesse pelos conceitos filosóficos. Disso o acusaram com o fim, sobretudo, de realçar a imparcialidade e a objetividade de Goethe, que conceito algum perturba. Neste aspecto, porém, Schiller pagou, como poeta, o tributo devido à época em que viveu, e a falta cometida, se falta houve, só honra esta alma profunda e nobre e só alargou a ciência e o conhecimento. Aliás, esta mesma imposição científica desviou também Goethe da sua esfera própria, quer dizer, da poesia. Mas enquanto Schiller mergulhou na exploração de íntimas profundidades do espírito, as tendências de Goethe levaram-no para o estudo do aspecto natural da arte, da natureza exterior, dos organismos vegetais e animais, dos cristais, da formação das nuvens, das cores. A este estudo científico aplicou Goethe a sua grande inteligência que, neste domínio, rejeitou a simples atividade e os erros do intelecto com o mesmo empenho com que Schiller proclamou a livre totalidade da beleza em oposição à maneira como o intelecto considerava o querer e o pensamento. Uma série inteira de obras de Schiller se inspira nesta concepção da natureza da arte, e no primeiro plano dessas obras figuram as Cartas Sobre a Educação Estética. Nelas, parte Schiller do ponto de vista de que todo homem individual contém o germe do homem ideal. A representação deste homem verdadeiro reside no Estado que será a forma objetiva, geral, canônica por assim dizer, que reúne e funde os sujeitos individuais apesar das múltiplas diferenças que os separam. Ora, a unidade entre o homem no tempo e o homem na ideia de dois modos se pode realizar: de um lado, o Estado, como representação genérica do que é moral, conforme ao direito e à inteligência, pode suprimir todas as suas encarnações individuais; de outro lado, o indivíduo pode elevar-se ao genérico, e o homem no tempo adquire títulos de nobreza tornando-se o homem na ideia. A razão exige a unidade como tal, isto é, o genérico, enquanto a natureza solicita a variedade e a individualidade, e assim cada uma delas procura chamar a si o homem. Perante o conflito entre as duas forças, cumpre à educação estética impor-se como mediadora, porque o seu fim consiste, segundo Schiller, em conferir às inclinações, tendências, sentimentos e impulsos, uma formação que as leve a participar na razão, de tal modo que a razão e a espiritualidade ficam despojadas do caráter abstrato para se unirem à natureza como tal, e da sua carne e do seu sangue se enriquecerem. Assim é o belo considerado como resultante da fusão do racional e do sensível, no que reside, segundo Schiller, a verdadeira realidade. De um modo geral, já se encontra esta concepção na Graça e Dignidade onde, tal como nos seus poemas, Schiller mais particularmente elogia as mulheres por ver no caráter delas essa íntima união do natural e do espiritual. Foi essa íntima união do geral e do particular, da liberdade e da necessidade, do espiritual e do natural, em que Schiller via o princípio e a essência da arte e cuja realização incansavelmente procurou alcançar através da arte e da formação estética, foi ela que, posteriormente e sendo a própria ideia, apareceu como o princípio do conhecimento e da existência, e a ideia foi proclamada como a verdade e o real por excelência. É resultado desta evolução a tentativa de Schelling para adotar, na ciência, o ponto de vista absoluto; e se a arte começara já a afirmar a sua natureza e valores particulares em relação aos mais elevados interesses do homem, assim agora se possuía o conceito da arte, se conhecia já o lugar que lhe pertence na ciência e qual a sua mais alta e verídica determinação (não nos demoraremos a refutar alguns erros que maculavam o modo de ver a este respeito). Já Winckelmann, ao contemplar as obras artísticas da antiguidade, experimentara um entusiasmo tal que o levou a introduzir um novo sentido nas obras de arte, subtraindo-as aos perigos fundados na vulgar finalidade e no êxito da imitação, e que o incitou a só procurar, nas obras e na história da arte, a ideia da arte. Deve, com efeito, ser Winckelmann considerado entre aqueles que, no domínio da arte, souberam armar o espírito de um novo órgão e de um novo método de estudo. Todavia, foi no campo da teoria e do conhecimento científico da arte que a sua influência menos se sentiu. III - IRONIA E ROMANTISMO Para brevemente expormos a evolução do despertar filosófico da ideia, ocupemo-nos já de A. W. e Frederico Schlegel que, ao procurarem o novo e o original, se apropriariam daquilo que, na ideia filosófica, as suas naturezas, menos filosóficas do que críticas, eram capazes de assimilar. Nem um nem outro se podia, na verdade, orgulhar da vocação para o pensamento especulativo. Mas, graças ao talento crítico, alcançaram aproximar-se do ponto de vista da ideia, e assim puderam, embora com uma débil bagagem filosófica, lançar-se audaciosamente numa brilhante polêmica contra os modos de ver dominantes, introduzindo, em vários ramos da arte, um novo critério de juízo e pontos de vista mais elevados do que aqueles que combatiam. No entanto, faltava à sua crítica o apoio do conhecimento filosófico profundo, e por isso os critérios deles se revelaram um tanto vagos e hesitantes e umas vezes por defeito, outras por excesso, pecaram os seus juízos. Embora tenham, pois, alcançado um mérito incontestável exumando e estudando com amor obras dos tempos passados que a época de então tratava com desprezo - como a antiga pintura italiana e holandesa, os Nibelungos etc. -, ou que ignoravam completamente, como a poesia hindu e a mitologia, sem razão atribuíram um valor ilimitado a essas obras quando admiravam, por exemplo, as medíocres comédias de Holberg, quando conferiam um valor geral ao que só tinha um valor relativo, ou quando se entusiasmavam com tendências falsas e pontos de vista secundários que declaravam, com rara impertinência, representarem a manifestação suprema da arte. Foi esta corrente e sobretudo as ideias e doutrinas de Frederico Schlegel que deram origem às várias formas da ironia. Por um dos seus aspectos, encontra a ironia a mais profunda justificação na filosofia de Fichte, quando os princípios desta filosofia são aplicados à arte. Schlegel e Schelling adotaram, como ponto de partida, o ponto de vista de Fichte: Schelling para ultrapassá-lo, Schlegel para o desenvolver a seu talante e, em seguida, subtrair-se-lhe. Para mostrarmos a íntima relação entre as proposições de Fichte e uma das correntes da ironia, basta revelar que Fichte via no eu, no eu abstrato e formal, o princípio absoluto de todo o saber, de toda a razão, de todo o conhecimento. O eu é assim concebido como simples em si, o que implica, por um lado, a negação de toda a particularidade, de toda a determinação, de todo o conteúdo (porque todas as coisas se submergem nesta liberdade e unidade abstratas) e, por outro lado, implica que todo o valor para o eu do conteúdo consiste no que pelo eu é definido e sancionado. Tudo o que é, é pelo eu, e tudo quanto existe mediante o eu pode também pelo eu ser destruído. Dentro destas formas inteiramente vazias, com origem no absoluto do eu abstrato, nada aparece com um valor próprio, mas apenas com o que seja conferido pela subjetividade do eu. Mas, se assim acontece, o eu é o soberano senhor de tudo, e nada existe, na moral ou no direito, no humano ou no divino, no profano ou no sagrado, que não deva começar por ser posto pelo eu e que pelo eu não possa igualmente ser suprimido. Assim também não passa de experiência tudo quanto existe em si e para si; e em vez de guardarem em si a verdade e a realidade própria, as coisas só têm a experiência que do eu recebem, abandonadas como estão ao poder e alvedrio dele. A afirmação e a supressão dependem inteiramente do beneplácito do eu, concebido como um eu absoluto. Além disso, o eu é um indivíduo vivente, ativo, de uma vida que consiste em formar a sua individualidade para si e para os outros, em exprimi-la e em afirmá-la. Cada homem, enquanto vive, procura realizar-se e realiza-se. Aplicado à arte, este princípio significa que o artista deve viver como artista, dar à sua vida uma forma artística. Mas, segundo este princípio, viverei como artista se todos os meus atos, se todas as minhas expressões, enquanto incidam sobre qualquer conteúdo, apenas forem para mim aparência e só recebam a forma que o meu poder lhes impuser. Disso resulta que eu não posso tomar a sério nem este conteúdo nem as correspondentes expressão e realização porque se não pode tomar verdadeiramente a sério o que não oferece um interesse substancial, uma coisa rica de significação, como a verdade, a moralidade etc., um conteúdo que, como tal, tenha já para mim um valor tão assente que eu próprio me torne essencial para mim próprio ao mergulhar nesse conteúdo e ao identificar-me com ele mediante todo o meu saber e toda a minha atividade. Se o artista adotar esse ponto de vista de um eu que tudo põe e destrói, para o qual conteúdo algum é absoluto ou existe para si nada aparecerá aos seus olhos com um caráter sério e só atribuirá valor ao formalismo do eu. Poderão os outros tomar a sério o aspecto em que eu lhes apareço se julgarem que eu próprio tomo a peito o que sou ou o que faço. Como, porém, se engana toda essa pobre gente privada do órgão e da faculdade necessária para compreender o meu ponto de vista e ascender até ele. Mostra isso que não é toda a gente bastante livre (de uma liberdade formal, naturalmente) para ver apenas como um produto do meu poder e do meu beneplácito, únicos guias que reconheço sempre que me afirmo, me exprimo, me decido naquilo que ainda tem, para o homem, valor, dignidade e caráter sagrado. Ora, a esta virtuosidade de uma vida artisticamente irônica se deu o nome de genialidade divina, e por ela tudo e todos são coisas desprovidas de substância, às quais se não poderia prender o criador livre, de tudo liberto, que tanto os pode destruir como criar. Aquele que se coloca no ponto de vista da genialidade divina olha do alto os outros homens e acha-os limitados e vis, sempre presos ao direito, à moral etc., essas bagatelas em que veem coisas essenciais. Acontece, pois, que o indivíduo com tal vida de artista manterá decerto relações com os outros, terá amigos e terá amantes, mas, gênio que ele é, dado a realidade que se atribui e a sua atividade tanto particular como referente ao geral, para nada contam essas relações que considerará do alto da sua ironia. Tal é a significação geral da genial ironia divina: consiste ela na concentração do eu, no eu que rompe todos os laços e só pode viver na felicidade que lhe oferece a fruição de si próprio. Foi Frederico Schlegel quem inventou esta ironia, e muitos depois dele tagarelaram sobre tal assunto e hoje voltam a tagarelar. Outra expressão da negatividade irônica reside na afirmação da vacuidade do concreto, do moral, de tudo o que é rico em conteúdo, na afirmação da nulidade de tudo o que é objetivo e possui um valor imanente. Quando o eu adota este ponto de vista, tudo lhe parece mesquinho e vão, a não ser a sua própria subjetividade que, isolada, fica também vazia e vã. Por outro lado, o eu pode não se sentir satisfeito com a fruição de si próprio, achar-se incompleto e sofrer a exigência de qualquer coisa firme e substancial, de interesses essenciais e precisos. Disso resulta uma situação infeliz e contraditória, com o sujeito a desejar a verdade e a objetividade mas impotente para se arrancar ao seu isolamento, à sua fuga, àquela interioridade abstrata e insatisfeita. Cai então numa espécie de lânguida tristeza de que já há sintomas na filosofia de Fichte. A insatisfação proveniente desta quietude e desta impotência que impedem o sujeito de agir e alcançar o que quer que seja, ao mesmo tempo em que a nostalgia do real e do absoluto, o obriga a sentir o vazio e a irrealidade, que são uma espécie de expiação da pureza; essa insatisfação engendra assim um estado mórbido, o de uma bela alma a morrer de tédio. A alma verdadeiramente bela age e vive no real. Mas o tédio resulta do sentimento que o sujeito tem da sua nulidade, seu vazio, sua vaidade, bem como da impotência para escapar a esse vazio e para adquirir um conteúdo substancial. Mas, erigida a forma de arte, a ironia não se limita a imprimir um caráter artístico à vida e à individualidade do sujeito irônico, pois o artista ainda deverá criar, além das obras artísticas que são os seus próprios atos, obras de arte exteriores, produtos de um esforço de imaginação. O princípio destas produções, de que a poesia contém os principais exemplos, continua a ser a representação do divino como irônico. Mas a ironia, que é própria da individualidade genial, consiste na autodestruição de tudo o que é nobre, grande e perfeito, de modo que a arte fica reduzida, até em suas produções objetivas, à representação da subjetividade absoluta, visto que tudo quanto para o homem tem valor e dignidade se revela inexistente após a sua autodestruição. Razão é essa para que se não tome a sério, não só a justiça, a moral e a verdade, mas também o sublime e o melhor que, ao manifestarem-se nos indivíduos, nos seus caracteres e suas ações, a si próprios se desmentem e destroem, isto é, não passam de uma ironia de si próprios. Considerada de um modo abstrato, esta forma aproxima-se do cômico, mas entre o cômico e o irônico, subsistem diferenças essenciais. O cômico limita-se a demolir o que é desprovido de valor em si, um fenômeno falso e contraditório, uma extravagância, uma mania, um capricho particular que se oponha a uma paixão poderosa, um princípio ou máxima que nada justifique e que não resiste à crítica. E outra coisa é repudiar e renegar todos os valores concretos, todo o conteúdo substancial existente no indivíduo e, o que é mais, renegá-los e repudiá-los pelo próprio indivíduo, pelo senhor desses valores e esse conteúdo. De tal indivíduo se pode dizer que é dotado de um caráter mesquinho e desprezível e que as suas negações só revelam fraqueza e inferioridade moral. Assim acontece que as diferenças entre o irônico e o cômico incidem essencialmente sobre o conteúdo do que se destrói. Mas aqueles que se comprazem com tal destruição são sujeitos maldosos e inaptos, incapazes de aspirarem a fins firmes e importantes e que, se alguma vez determinam um fim a alcançar, logo a ele renunciam e o aniquilam. É uma ironia fundada numa falta de caráter essa que os partidários da ironia mais apreciam. O que, efetivamente, caracteriza um homem de caráter é saber designar fins que procura alcançar com tal empenho que consideraria perdida a sua individualidade se tivesse de renunciar a eles. Com a substancialidade do fim, esta constância constitui a base daquilo a que se chama um caráter. Catão só podia viver como romano e republicano. Mas, desde que se faça da ironia a base da representação artística, faz-se do não artista o grande princípio da criação de obras de arte, e só vêm a realizar formas que, se não forem vis, são desprovidas de qualquer conteúdo, visto que eliminam o substancial como destituído de valor. A isto acrescentam-se, por vezes, a languidão e as contradições não resolvidas de que falamos atrás. Semelhantes representações não podem suscitar nenhum interesse e, por isso, os ironistas se queixam continuamente em invectivas contra o público que acusam de falta de compreensão, de falta de ideias sobre a arte e o gênio, o que só revela que o público não sente nenhum prazer em contemplar estas produções vulgares, absurdas umas, incaracterísticas outras. E bom é que assim aconteça, que estas desonestidades e hipocrisias não consigam agradar e que os homens não se interessem senão por coisas vivas e verdadeiras, por caracteres imbuídos de seiva. A título de observação histórica, é preciso ainda acrescentar que foram principalmente Solger e Luís Tieck que fizeram da ironia o princípio supremo da arte. Não é este o lugar próprio para de Solger falar como ele o merece. Limitar-me-ei, por isso, a algumas breves alusões. Longe de, como os outros, se contentar com uma cultura filosófica superficial, Solger sentia um grande interesse pela especulação, o que o levava a aprofundar as suas meditações sobre a ideia filosófica. Chegou, assim, até aquele momento dialético da ideia que eu denomino por negatividade absoluta e infinita, até os esforços da ideia para se negar como geral e infinita e se afirmar particular e finita, para, em seguida, negar esta negação de si própria e se reafirmar enfim como o universal e o infinito no seio do particular e do finito. Solger insistia muito nesta negatividade que, na verdade constitui um momento da ideia especulativa, mas que, concebida como a expressão da instabilidade dialética e da supressão dialética do infinito e do finito, é apenas um momento e não, como Solger pensava, toda a ideia. A morte prematura impediu, infelizmente, Solger de chegar a uma elaboração completa da ideia filosófica e de ir para além deste aspecto da negatividade que, pela destruição do que é preciso e substancial em si, se aproxima da concepção irônica e onde ele pensava residir o verdadeiro princípio da atividade artística. Mas, na vida real, Solger deu provas de uma firmeza, de uma seriedade e de uma distinção de caráter que impedem de colocá-lo, sem reservas, entre os artistas irônicos que caracterizamos; a sua profunda compreensão das obras de arte verdadeiras, erguida ao mais alto grau por longos estudos, nada tinha de propriamente irônico. É nosso dever reabilitar Solger que, pela sua vida e sua filosofia e em nome da arte, se não pode confundir com os apóstolos da ironia. Quanto a Luís Tieck, também ele se formou naquele período que, durante algum tempo, teve o centro em Jena. Como outras figuras deste notável período, Tieck servia-se com familiaridade de expressões dos ironistas sem que, no entanto, nos dissesse o que entendia por elas. É assim que Tieck glorifica a ironia, mas, ao elaborar o juízo de grandes obras de arte, fá-lo de um modo perfeito e sabendo apreciá-las em todo o seu valor; se, porém, alguém esperar que ele aproveite a excelente oportunidade para revelar a ironia implícita numa obra como, por exemplo, Romeu e Julieta, logo fica desiludido, pois da ironia se não trata já. CAPÍTULO IV Plano Geral da Estética Após os preliminares que acabais de ler, tempo é de abordar o nosso estudo, o estudo propriamente dito do nosso assunto. Falamos da arte como uma emanação da ideia absoluta, demos-lhes, por finalidade, a representação sensível do belo, e cumpre-nos agora mostrar, neste plano, pelo menos de um modo geral, como é que os elementos particulares provêm do conceito do belo artístico concebido como uma representação do Absoluto. E para que este plano não pareça arbitrário, deveremos também fundamentá-lo na necessidade, quer dizer, começar por uma definição muito geral do conceito. Dissemos já que a ideia, representada numa forma concreta e sensível, constitui o conteúdo da arte. A função da arte consiste em conciliar, numa livre totalidade, estes dois aspectos: a ideia e a representação sensível. O primeiro requisito a satisfazer para possibilitar a conciliação, é que o conteúdo a representar se preste à representação pela arte. Sem isso, obtém-se uma péssima associação: ou se dá determinada forma a um conteúdo impróprio para a representação concreta e exterior ou determinado assunto só pode encontrar adequada representação numa forma oposta à que se lhe pretende dar. Deste requisito deduz-se outro: nada de abstrato se pode incluir no conteúdo da arte que deve ser sensível e concreto por oposição não só ao que participa do espírito e do pensamento como também ao abstrato e ao simples em si. Porque tudo o que verdadeiramente existe no espírito e na natureza é concreto e, apesar de toda a generalidade, subjetivo e particular. Quando, por exemplo, se diz que Deus é o simples e uno, o ser supremo como tal, enuncia-se uma abstração morta, produto do intelecto irracional. Tal Deus, por não ser concebido na sua verdade concreta, não fornecerá à arte, sobretudo à arte plástica, nenhum conteúdo. Por isso os judeus e os turcos, ao contrário dos cristãos, jamais representaram na arte, de um modo positivo, Deus que, aliás, não é para eles uma abstração do intelecto. No cristianismo, a ideia de Deus é a de um Deus verdadeiro, de uma pessoa, de um sujeito e, mais precisamente, de um espírito; e o que é como espírito exterioriza-se numa representação religiosa sob a forma de uma trindade que é ao mesmo tempo unidade. Assim se encontra realizada a unidade do essencial, do geral e do particular, e é esta unidade que constitui o concreto. Ora, tal como nenhum conteúdo é verdadeiro se não for concreto, assim também a arte exige conteúdos concretos para as suas representações, porque o abstrato e o geral não são suscetíveis de se manifestarem em particularidades e aparências sem destruírem a sua própria unidade. Para que uma forma concreta ou uma figura sensível corresponda a um conteúdo verdadeiro e, por conseguinte, concreto, é pois preciso - e esse é o terceiro requisito - que aquela forma ou figura seja também individual e essencialmente concreta. É, com efeito, na qualidade concreta que os dois elementos da arte, conteúdo e representação, têm o ponto de encontro, de correspondência: assim acontece que a forma natural do corpo humano, por exemplo, é um concreto sensível suscetível de representar e se coadunar ao espírito. É, pois, preciso renunciar à ideia de que por acaso se recolhe certa forma para representar certa realidade exterior. Não escolhe a arte uma forma dada por encontrá-la à sua disposição ou por outra não encontrar, mas porque o próprio conteúdo concreto fornece a indicação do modo de alcançar a sua realização exterior e sensível. Este sensível concreto, que exprime um conteúdo de essência espiritual, falta também à alma, e à forma exterior, que o torna acessível à intuição e à representação, só tem por fim despertar um eco na nossa alma e no nosso espírito. Em vista deste fim, o conteúdo e a sua realização artística penetram-se reciprocamente. O que só é o concreto sensível, a natureza exterior, não existe só em vista deste fim. A plumagem colorida das aves brilha também quando ninguém a olha, o canto delas ressoa também quando ninguém o escuta; flores há que só vivem uma noite e outras que murcham, sem terem sido admiradas, em florestas virgens dos trópicos, florestas que, por seu turno, formam uma massa impenetrável de plantas raras e magníficas com aromas deliciosos, que definham e por vezes desaparecem sem que tenham sido apreciadas. A obra de arte, porém, não apresenta este isolamento desinteressado: é uma interrogação, um apelo dirigido às almas e aos espíritos. Embora, neste aspecto, a arte não constitua um meio puramente acidental de tornar sensível um conteúdo, não é, no entanto, o meio mais perfeito para apreender o concreto espiritual. Para isso é-lhe superior o pensamento que, apesar de relativamente abstrato, não pode cessar de ser concreto a fim de se conformar com a verdade e a razão. Se quisermos ver a correspondência entre uma determinada forma artística e um determinado conteúdo ou se quisermos saber como um conteúdo exige, por sua natureza, uma forma mais elevada e mais espiritual, basta-nos comparar os deuses da escultura grega com a ideia cristã da divindade. O deus grego não é uma abstração, é individual, recebe uma forma que se aproxima das formas naturais; também o deus cristão é, sem dúvida, uma personalidade concreta, mas só o é como espiritualidade pura, e como espírito deve ser conhecido. É sobretudo o conhecimento interno que dele temos que nos garante a sua existência, não a representação exterior que sempre permanecerá incompleta por ser incapaz de traduzir toda a profundidade de tal conceito. Pelo que acabamos de dizer a função da arte consiste em tomar a ideia acessível à nossa contemplação, mediante uma forma sensível e não na forma do pensamento e da espiritualidade pura em geral, e ainda em que o valor e a dignidade desta representação resultam da correspondência entre a ideia e a forma que se fundem e interpenetram; deste modo, a qualidade da arte e a conformação da realidade representada com o conceito dependerão do grau de fusão, de união existente entre a ideia e a forma. É esta ascensão para a expressão da verdade cada vez mais conforme com o conceito do espírito, cada vez mais espiritualizada que dá as indicações referentes às divisões da ciência da arte. Com efeito, antes de atingir o verdadeiro conceito da sua essência absoluta, o espírito percorre os graus que o próprio conceito lhe impõe; a esta evolução do conteúdo pelo conteúdo imposta, corresponde, em íntima conexão com ela, uma evolução das representações concretas da arte, das formas artísticas, que, decifradas, dão a consciência de si próprio. Efetuada no seio do espírito, esta evolução apresenta, por seu lado e em relação com a natureza, dois aspectos: em primeiro lugar, esta evolução é de ordem espiritual e geral; consiste na sucessão gradual de representações artísticas incididas sobre concepções do mundo que refletem as ideias que o homem tem de si próprio, da natureza e do divino; em segundo lugar, esta evolução, efetuada no interior da arte, traduz-se de um modo direto em existências sensíveis correspondentes às artes particulares que, a despeito das suas diferenças necessárias, formam uma totalidade. Os vários modos da criação artística participam, de maneira geral, do espírito, não estão ligados a determinados materiais com exclusão de todos os demais, e as suas expressões sensíveis apresentam, por sua vez, diferenças essenciais; mas à medida que a arte é animada pelo espírito, vão-se estabelecendo relações mais íntimas e um acordo por assim dizer secreto entre uma matéria sensível dada e tal ou tal forma de criação artística. Partindo destas considerações, poder-se-á dividir a nossa ciência em três seções principais: 1º - Teremos, primeiro, uma parte geral que terá por objeto a ideia geral do belo artístico enquanto ideal, bem como as mais íntimas relações que o belo apresenta com a natureza, por um lado, e com a criação artística subjetiva, por outro. 2º - O conceito do belo artístico dá, em seguida, lugar a uma parte especial porque as diferenças abrangidas nesse conceito tornam-se numa sucessão de formas artísticas particulares. 3º - Teremos de considerar enfim a diferenciação do belo artístico, o progresso da arte na realização sensível das suas formas e no estabelecimento de um sistema que compreende as artes particulares e suas variedades. Quanto às duas primeiras partes, convém lembrar, para melhor inteligência do que segue, que se não deve confundir a ideia do belo artístico com a ideia como tal, necessariamente considerada como absoluta em toda a lógica meta física, pois que é uma ideia transfigurada em realidade e una com a realidade. Decerto, a ideia como tal é a verdade em si, a verdade na sua generalidade ainda não objetiva, ao passo que a ideia do belo artístico possui uma função mais precisa: a de ser uma realidade individual do mesmo modo que as manifestações individuais da realidade se destinam a deixar transparecer a ideia de que são as realizações. Quer isto dizer que deve haver uma adequação completa entre a ideia e a forma enquanto realidade concreta. Assim entendida, a ideia, realizada em conformidade com o seu conceito, constitui o ideal. Poder-se-ia, à primeira vista, interpretar esta correspondência como se pouco importasse a forma desde que ela exprima tal ou tal ideia definida. Mas esta interpretação confunde a verdade do ideal com a simples exatidão que consiste em exprimir algo do modo que lhe convirá desde que mostre diretamente o seu sentido e a sua significação. Não se pode entender assim o ideal. É possível obter uma representação adequada a um conteúdo, no que este tem de essencial, sem que para isso seja preciso recorrer à beleza artística. Do ponto de vista da beleza ideal, será até permitido encontrar uma representação assim defeituosa. A propósito, lembremos desde já que o defeito de uma obra de arte sempre provém de uma falta de dons do artista porque também da insuficiência do conteúdo pode resultar a insuficiência da forma. Assim acontece, por exemplo, que os chineses, os judeus e os egípcios criaram obras de arte, imagens de deuses e ídolos informes ou com formas imprecisas a que faltava a verdade, sem jamais terem podido alcançar a beleza verdadeira porque as suas representações mitológicas, porque o conteúdo e as ideias incorporadas nessas obras de arte também eram ainda imprecisos ou mal precisos, não tinham um caráter absoluto. Tanto mais perfeita é uma obra de arte quanto mais corresponder a uma verdade profunda o conteúdo e a ideia dela. Não se trata apenas de maior ou menor facilidade para apreender e reproduzir as formações naturais tal como existem na realidade exterior. Em certa fase do desenvolvimento da consciência e da representação artística, pode acontecer que o artista descuide ou suprima, intencionalmente e não por falta de experiência e habilidade técnicas, esta ou aquela formação natural por exigência do conteúdo que guarda na consciência. Existe assim uma arte que nada deixando a desejar, na esfera própria, aos pontos de vista técnicos e quejandos, não deixa de ser imperfeita do ponto de vista do conceito da própria arte e do ideal. Ora, na arte mais elevada, há entre a ideia e a representação uma correspondência conforme com a verdade no sentido de que a forma em que a ideia se incorpora é a forma verdadeira em si e de que a ideia expressa nesta forma constitui, por sua vez, a expressão de uma verdade. Acresce ainda, como já o temos dito, que a ideia considerada como tal, independentemente da sua representação, comporta-se como uma totalidade concreta que possui em si própria a medida e o princípio da sua particularização e do modo de se manifestar. A imaginação cristã, por exemplo, só representa Deus com uma forma humana e uma expressão espiritual, porque concebe Deus como um espírito concentrado em si próprio. A determinação é como que a ponte para chegar à representação, à manifestação exterior. Quando esta determinação não é inerente à totalidade provinda da própria ideia e quando se representa esta ideia de um modo tal que ela não pode determinar-se e particularizar-se pelas suas próprias forças e meios, então a ideia permanece abstrata, e não é em si, mas fora de si, que encontra a sua determinação e o princípio da sua manifestação particular adequada. Por isso a forma que reveste uma ideia ainda abstrata é uma forma exterior, uma forma que a ideia de si própria se não deu. Pelo contrário, a ideia concreta guarda em si o princípio do seu modo de expressão, dá-se a si própria, com inteira liberdade, a forma que lhe convém. A ideia verdadeiramente concreta engendra assim a verdadeira forma, e é na correspondência entre uma e outra que reside o ideal. Deste modo apresentada a ideia como uma unidade concreta, só poderá esta penetrar na consciência após uma diferenciação, seguida de uma mediação conciliadora, das particularidades da ideia; é dentro deste processo que a beleza artística aparece como uma totalidade de graus e de formas particulares. Após termos pois considerado o belo artístico em si, resta-nos ver como é que ele se distingue nas suas determinações particulares. Será esse o objeto da segunda parte da nossa exposição, consagrada às formas da arte. As diferenças que separam estas formas fundam-se nas diferenças que existem entre as maneiras de apreender e conceber a ideia pois a elas correspondem, naturalmente, diferentes modos de expressão. As formas de arte correspondem às diferentes relações entre a ideia e o conteúdo, relações que provêm da própria ideia e que fornecem, assim, o verdadeiro princípio de divisão do sujeito. Porque a divisão deve sempre radicar no conceito de que constitui, por assim dizer, a ramificação, a diferenciação, a separação nos elementos constitutivos dele. Dissemos nós da beleza que ela representa a unidade do conteúdo e do modo de ser do conteúdo, que resulta da apropriação, da adequação da realidade ao conceito. Só nestas relações entre o conceito e a realidade, só na maneira como o conceito se insere no real, se podem fundar as modalidades da arte. Tais relações são de três espécies. Há, em primeiro lugar, a demanda daquela unidade verdadeira, que é aspiração à unidade absoluta: a arte que ainda não atinja essa perfeita interpenetração, que ainda não obtenha o conteúdo que lhe convém, não possui ainda forma precisa e definitiva. O conteúdo e a forma buscam-se assim um ao outro, e enquanto se não encontrarem, não reconhecerem, não unirem, permanecerão estranhos um ao outro sem relação de contiguidade entre si. Em princípio, a ideia está indeterminada, abstrata, sem clareza, no estado de substancialidade geral, não é ainda uma realidade precisa que se manifesta na sua verdadeira forma; ideia indeterminada que ainda não é aquela subjetividade que deveria ser por o ideal a exigir ou para constituir uma aparência verdadeira, quer dizer, o belo. Enquanto a subjetividade própria do ideal não tiver penetrado a ideia, da forma desta se pode asseverar que não é a forma verdadeira; está-se ainda em presença da ideia não determinada, sem a forma que ainda procura, visto que a ideia não contém a sua forma absoluta. E enquanto a ideia se não insere numa forma absoluta, qualquer forma que revista ser-lhe-á exterior. Digamo-lo mais uma vez: duas coisas há, a ideia e a forma. A ideia é abstrata, não encontrou ainda a forma absoluta; e a forma em que aparece é-lhe exterior, inadequada, não passa de matéria natural, de sensível em geral. Em sua inquietude e insatisfação, a ideia evolui e expande-se nesta matéria, procura tomá-la adequada, apropriá-la. Mas estando ainda indefinida, não pode apropriar-se da matéria natural, torná-la verdadeiramente adequada; por isso a trata de um modo negativo, procura erguê-la até si, mas de maneira indefinida, dispersando-se em contusões e violências. Nisso consiste o sublime e a forma simbólica é a primeira forma da ideia. Na arte simbólica, temos, de um lado, a ideia abstrata e, de outro lado, as formas materiais que lhe não são adequadas. A ideia indefinida, a ideia infinita apropria-se da forma, e esta apropriação de uma forma que lhe não convém tem todos os aspectos de uma violência: na verdade, só maltratada e contundida, uma forma é apropriada pela ideia a que não convém. A ideia que assim usa da violência para se inserir em formas, aparece como representante do sublime porque essas formas não lhe são adequadas. O conteúdo é mais ou menos abstrato, indeciso, sem determinação, sem precisão verdadeira, enquanto a forma, ainda exterior e indiferente, é direta e natural. Aqui reside a primeira determinação, a determinação abstrata. Turvo e abstrato é o conteúdo, e extrai o seu aspecto figurado da natureza imediata. Seguindo de mais perto as investigações e aspirações da arte, verificamos que o pensamento, a ideia ainda sem verdadeira determinação, se comporta arbitrariamente para com a matéria exterior, natural e, incapaz de se harmonizar com ela, torna não naturais as próprias formas naturais, atraiçoa a matéria, violenta-a, introduz nela o desmedido. Assim obtidas as formas, nelas aparece o elemento universal como que dotado de um caráter voluntarioso, arbitrário. E porque seja indeterminado o conteúdo, também a sua expressão é atirada para lá de toda a determinação. De uma arte assim poder-se-á dizer que é sublime, mas nada tem ela que ver com a beleza. No entanto, até numa arte assim tem de haver certa correspondência, qualquer correspondência, entre o conteúdo e a forma. É verdade que a forma sofre uma violência, que é, por assim dizer, devorada. Mas menos, com isso, se adéqua, de qualquer modo, a um grande conteúdo. Aliás, se a matéria natural ainda não se adapta verdadeiramente ao conteúdo, é também porque o próprio conteúdo se não presta ainda a essa adaptação. A correspondência entre ambos só se pode, portanto, realizar mediante uma determinação abstrata. É o que caracteriza a arte simbólica ou oriental. Esta arte pertence à categoria do sublime, e o sublime define-se pelo esforço de exprimir o infinito. Mas, aqui, o infinito é uma abstração a que nenhuma forma sensível se poderá adaptar e, por isso, a forma é impelida para lá de toda a determinação. A expressão não passa de tentativa, de ensaio, que produzirá gigantes e colossos, estátuas com mil braços e com mil corpos. No entanto, como há pouco dissemos, deve haver numa relação qualquer, uma adequação entre estas formas naturais e os seus conteúdos. Esta adequação apresenta-se como uma generalidade abstrata e puramente sensível ainda desprovida da concretização precisa. Quando, por exemplo, se representa a força como um leão e, portanto, se faz do leão a figura de um deus, estabelece-se uma correspondência puramente exterior, abstratamente simbólica. A forma animal, dotada da qualidade geral da força, possui uma determinação que, embora abstrata, é adequada ao conteúdo que se destina a exprimir. Esta arte é, pois, uma arte que investiga e aspira e nisso consiste o seu simbolismo. Mas pelo conceito e pela realidade, é uma arte ainda imperfeita. Além disso, a arte simbólica caracteriza-se por partir de intuições provindas da natureza, das formações naturais. Estas formações são colhidas tais quais, mas introduz-se-lhes, para dar uma significação, a ideia substancial, universal, absoluta; interpretadas, depois, à luz desta ideia, aparecem como se a implicassem, como se a contivessem. Esta maneira de tratar as formações naturais constitui aquilo a que se chama o panteísmo oriental. Nele se dá largas a uma liberdade abstrata e infinita. Para tomar a matéria adequada, vai-se até o monstruoso, desfigura-se a forma, produz-se o grotesco. Ou, então, sim introduz-se a ideia, o universal, nas formas mais ingratas. É a arte simbólica. O símbolo consiste numa representação com um significado que se não conjuga com a expressão, com a representação: mantém-se sempre uma diferença entre a ideia e a forma. O simbolismo caracteriza-se por uma diferença entre o fora e o dentro, por uma falta de apropriação entre a ideia e a forma incumbida de significá-la, pelo que esta forma não constitui a expressão pura do espiritual. Uma distância afasta ainda a ideia da sua representação. À arte simbólica, sucede a arte clássica, que é a da livre adequação da forma e do conceito, da ideia e da manifestação exterior; que é um conteúdo dotado da forma que lhe convém, um conteúdo verdadeiro exteriorizado num aspecto verídico. O ideal da arte ergue-se em toda a realidade. O que sobretudo importa é que essa adequação entre a representação e a ideia não seja puramente formal: a figura, o aspecto natural, a forma que a ideia utiliza, deve conformar-se, em si e para si, com o conceito. Se assim não fosse, e apenas se considerasse a correspondência pura e simples entre o conteúdo e a forma, poderia ser qualificado de clássico tudo aquilo que se prestasse a conteúdo de qualquer representação, como qualquer reprodução da natureza, qualquer retrato, a representação de qualquer paisagem, de qualquer flor ou cena etc. Na arte clássica, o sensível, o figurado, deixa de ser natural. Ainda se trata, decerto, da forma natural, mas que já está subtraída à indigência da finitude e se conforma perfeitamente com o conceito. Foi o conceito primitivo e universal que, graças à sua atividade criadora, descobriu esta forma de exprimir o espiritual, a forma representada pela figura humana; isto a torna sumamente utilizável porquanto, de um modo geral, a forma humana representa, por sua vez, o desenvolvimento do conceito que, repudiando todas as outras formas, só naquela se exterioriza, se representa e se manifesta; o espiritual, enquanto manifesto, só o é revestindo a forma humana. O espírito da arte encontrou, enfim, a sua forma. O conteúdo verdadeiro é um espiritual concreto em que o elemento concreto reside na forma humana, a única capaz de revestir o espiritual em sua existência no tempo. Enquanto existe, e de uma existência sensível o espírito só se pode manifestar na forma humana. É assim que se realiza a beleza em todas as suas virtualidades, a beleza perfeita. Afirmou-se já que a personificação e a humanização do espiritual correspondem a uma degradação; a verdade é, porém, que só humanizando-o a arte pode exprimir o espiritual de modo a torná-lo sensível e acessível à intuição, porque só encarnado no homem o espírito se nos torna sensível. Neste sentido, a metempsicose constitui uma representação completamente abstrata, e é já um dos princípios da fisiologia a necessidade de a evolução da vida conduzir ao homem, única manifestação adequada do espírito. Tal é a segunda fase da evolução da arte: a adequação da ideia à forma. Se, para poder exprimir o conteúdo que lhe é destinado, a forma deve ser, digamos assim, purificada, desembaraçada dos laços que a prendem à miserável finitude, também, a fim de que o acordo entre a significação e a forma seja completo, a espiritualidade deve, por sua vez, ser tal que se possa exprimir de modo exaustivo na figura humana sem, no entanto, ultrapassar esta expressão, isto é, sem se identificar completamente, sem se deixar absorver inteiramente pelo sensível e corporal. Assim se afirma, ao mesmo tempo, o espírito como um particular, não como absoluto e eterno, o qual, aliás, só pode encontrar a sua expressão na espiritualidade pura. Esta circunstância constitui a fraqueza e a insuficiência da arte clássica, fraqueza e insuficiência em que acaba por sucumbir. A fase seguinte, que é a terceira, é assinalada pela ruptura do conteúdo e da forma, por um regresso, portanto, ao simbolismo, mas regresso que é simultaneamente um progresso. Enquanto arte, o classicismo atingiu os mais altos cumes, e o seu defeito está em não ser senão arte, arte simplesmente e nada mais. Nesta terceira fase, a arte procura erguer-se a um nível superior, é aquilo a que se chamou arte romântica ou cristã. No cristianismo deu-se uma cisão entre a verdade e a representação sensível. O deus grego é inseparável da intuição; representa a unidade visível da natureza humana e da natureza divina, e aparece como a sua única e verdadeira realização. Mas esta unidade é de natureza sensível, ao passo que, no cristianismo, é concebida no espírito e na verdade. O concreto e a unidade subsistem, mas concebidos segundo o espírito, independentemente do sensível. A ideia libertou-se. A arte romântica nasceu da ruptura da unidade entre o real e a ideia e do regresso da arte à oposição que existia na arte simbólica. Regresso é, porém, este que não deve ser considerado como uma simples regressão, como um desejo de recomeço. A arte clássica conseguiu atingir os mais altos cumes. Deu o máximo do que era capaz e, neste aspecto, nada se lhe pode censurar. Os defeitos da arte clássica, de que falamos anteriormente, referem-se às limitações a que submetem a arte em geral. A arte romântica atingiu, do ponto de vista da ideia, o máximo, e havia de sucumbir pelos defeitos provenientes das limitações que a si própria, enquanto romântica, se impôs. As limitações da arte em geral, da arte como tal, provêm de que, fiel ao seu conceito, a arte porfia em exprimir, com uma forma concreta, o universal, o espírito, e é a arte clássica que realiza a união, a correspondência perfeita do sensível e do espiritual. Nesta fusão, porém, não diminui a distância que afasta o espírito da representação conforme ao seu verdadeiro conceito, porque o espírito constitui a infinita subjetividade da ideia que, enquanto interioridade absoluta, se não pode exprimir livremente, manifestar completamente na prisão corporal em que fica encerrado. A ideia, segundo a sua verdade, só existe no espírito, pelo espírito e para o espírito. Para o espiritual, é o espírito o único terreno onde se pode manifestar. Há uma relação entre a ideia concreta do espiritual e a religião. Segundo a religião cristã, Deus deve ser adorado em espírito, Deus só é objeto para o espírito. Na arte romântica que, pelo conteúdo e modo de expressão, ultrapassou a arte clássica, a ideia participante do espírito acha-se oposta ao que participa da natureza, o espiritual acha-se oposto ao sensível. Esta oposição existe também na arte simbólica, mas na arte romântica o conteúdo da ideia é de ordem mais elevada, é de caráter absoluto; esse conteúdo é o próprio espírito. As relações da arte romântica com a arte clássica podem ser definidas assim: a arte clássica assenta na unidade das naturezas divina e humana, unidade que não passa, porém, de um conteúdo concreto, e, como a ideia é a unidade em si, só se pode manifestar de um modo direto, sensível. O deus grego, que se oferece à contemplação objetiva e à representação sensível, reveste a forma carnal do homem; por seu poder e natureza, é um ser individual e particular, e uma substância e uma força representa em relação ao sujeito que nele se pode reconhecer sem ter o sentimento, a íntima convicção de com ele formar a unidade. A consciência desta unidade intervém num grau mais elevado com o conhecimento do que era em si a fase precedente; este conhecimento do em si, esta consciência da fase precedente é o que constitui a superioridade da fase atual, da fase romântica. Uma fase, um grau, podem existir em si e podem também ser apreendidos pela consciência. Grande diferença é esta, tanto mais que é a consciência desta diferença que distingue o homem do animal. O que eleva o homem acima do animal é a consciência que tem de ser um animal, e essa consciência implica outra, a da sua participação no espírito. Ao saber que é um animal, o homem deixa de o ser. O homem é um animal, mas até nas suas funções animais não se comporta como um ser passivo; ao contrário do animal, adquire a consciência das suas funções, reconhece-as e aperfeiçoa-as para fazer delas o objeto de uma ciência iluminada, esclarecida pela consciência. Assim procede, por exemplo, para a digestão. E quando assim procede, o homem quebra os obstáculos da sua passividade e sua imediateidade, embora seja precisamente por saber que é um animal que, como acabamos de mostrar, deixa de o ser e se reconhece e afirma como espírito. Se, portanto, o em si da fase precedente fica ultrapassado, se a unidade da natureza divina e da natureza humana deixa de ser uma unidade direta e imediata para se tornar uma unidade consciente, já não é o sensível e o corporal, representados pela forma humana, mas sim a interioridade consciente de si própria que aparece, agora, como o conteúdo verdadeiramente real da arte. Por isso o cristianismo, ao conceber Deus como espírito, não individual e particular mas absoluto, e ao empenhar-se, por conseguinte, em representá-lo em espírito e verdade, renunciou à representação puramente sensível e corporal e preferiu a expressão espiritualizada e interiorizada. Do mesmo modo, é a unidade do divino e do humano uma unidade de que se adquire consciência e que só pode realizar no espírito e mediante a intuição espiritual. Assim adquirido, o novo conteúdo deixa, pois, de estar ligado à representação sensível e fica liberto dessa correspondência direta que, de reconhecida natureza negativa, é transcendida, ultrapassada e transformada numa correspondência, numa unidade querida e consagrada pelo espírito. Neste sentido se pode dizer que o romantismo, consiste num esforço da arte para se ultrapassar a si própria sem, todavia, transpor os limites próprios da arte. O sensível aparece, então, como que à margem da ideia espiritual, subjetiva, deixa de ter necessidade; mas fica, por sua vez, livre na esfera que lhe é própria, na esfera da ideia. O que caracteriza esta arte é, pois, o seu em si, o espiritual, o subjetivo. E uma arte que serve para exprimir tudo o que se refere à sentimentalidade, à alma. Trata o mundo exterior com indiferença, de modo arbitrário e aventuroso. Já não existe unidade absoluta entre o mundo exterior e o conteúdo, e o sensível, a matéria em geral, só na alma encontra a significação. Nesta terceira fase, o espiritual aparece como espiritual, a ideia é livre e independente. Domina, agora, o saber, o sentimento e, portanto, a ideia, a alma quando o espírito atingiu um estado em que pode ser para si, está liberto da representação sensível. O sensível é, por conseguinte, para o espírito algo de indiferente, de transitório, de inessencial; a alma, o espiritual como tal, é que dá ao sensível a sua significação. Assim, a forma, a representação exterior, aparece como simbólica. O espírito pode integrar o sensível com tudo o que ele comporta de essencial; a forma ganha, então, a liberdade, é entregue a si própria. Mas esta acidentalidade do sensível tem de ser percorrida por uma corrente interior, visto que é do interesse do espírito que o próprio acidental lhe sirva de guia até a região da alma. O espírito deve dominar tudo o que faz parte do conteúdo presumido. Na arte romântica, o elemento espiritual é o elemento predominante, o espírito goza da sua plena liberdade e, seguro de si, não teme as aventuras e as surpresas da expressão exterior, não recua perante os desvarios das formas. Como um elemento acidental poderá ele tratar o sensível mas sempre o percorrerá de um fluido de espiritualidade que transforma a aparência acidental em realidade necessária. Dir-se-á, pois, que, nesta terceira fase, a livre e concreta espiritualidade, tal como deve ser apreendida pela interioridade espiritual, constitui o objeto da arte e o romantismo propõe-se, precisamente, apresentá-la às nossas próprias profundidades espirituais, confrontá-la com a nossa própria espiritualidade. Visando a tal fim, a arte não pode, portanto, trabalhar para a simples contemplação sensível, mas procura satisfazer a nossa interioridade subjetiva, a alma, o sentimento que, enquanto participante do espírito, aspira à liberdade para si e só busca a pacificação no espírito e pelo espírito. Este mundo interior forma o conteúdo do romantismo e é enquanto interior e na aparência desta interioridade, que recebe a sua representação. O dentro festeja o triunfo sobre o fora, e afirma esse triunfo pela negação de qualquer valor às manifestações sensíveis. Entretanto, também esta arte tem, como todas as outras, precisão de elementos exteriores para se exprimir. Mas retirado do mundo exterior o elemento espiritual, que quebra todos os laços que a ele o prendiam a fim de reentrar em si próprio, o aspecto exterior e sensível é tratado como na arte simbólica: nega-se-lhe importância, é considerado perecível, e acaba-se por não ver inconveniente algum, por não sentir nenhum escrúpulo em representar o espírito e a vontade como subjetivos e finitos, para isso utilizando até as mais íntimas manifestações particulares da arbitrariedade individual, os mais desvairados traços de caráter e de comportamento, os mais aparentemente estranhos acontecimentos e complicações. Tudo o que seja exterior abandona-se ao acidental, às aventuras da fantasia que tanto pode, consoante a sua vontade ou os caprichos da ocasião refletir o que existe tal qual é, como realizar as mais absurdas e grotescas combinações entre as formas exteriores. Daí provém, como na arte simbólica, a inapropriação da ideia e da forma, a separação delas, a indiferença de uma para com a outra; há, todavia, entre a arte simbólica e a romântica, uma diferença: a de que a ideia, defeituosa no símbolo em resultado de um defeito da forma, atinge no romantismo o mais alto grau de perfeição, e, em virtude da sua comunhão com a alma e o espírito, subtrai-se à união com o sensível e o exterior e procura em si própria a sua realidade sem precisar recorrer, para se manifestar, a meios sensíveis ou, pelo menos, de se sujeitar à influência deles. Tais seriam as características das artes simbólica, clássica e romântica, consideradas como possibilidades de relacionar, no domínio da arte, a ideia e o conteúdo. A arte simbólica ainda procura o ideal, a arte clássica atingiu-o e a romântica ultrapassou-o. Daqui em diante, já não teremos de nos ocupar do desenvolvimento interno da beleza artística que se efetua sob o impulso das suas determinações gerais; e cumpre-nos examinar a maneira como estas determinações se realizam, como exteriormente afirmam as diferenças que as separam e exteriorizam todos os termos do conceito da beleza, não numa forma geral, mas nas formas das obras de arte independentes. A objetividade exterior na qual se integram estas formas mediante os materiais sensíveis e próprios a cada uma, opera uma distinção entre elas, pois cada forma encontra a sua realização adequada numa determinada matéria exterior e na sua representação. Além disso, apesar do seu caráter doravante particular, estas formas artísticas não se desligaram da determinação geral em si, e conseguem, graças a certo artifício, ultrapassar a mesma particularidade e, com o auxílio de outras artes, que entre si colaboram de um modo sem dúvida subordinado, cada arte alcança a realização adequada. Por isso as artes particulares participam especificamente de uma das formas artísticas gerais e criam a realidade artística que lhes corresponde, enquanto, por outro lado, representam, mediante o modo próprio de exteriorização, a totalidade das formas de arte. O desenvolvimento da arte é, pois, como o de um mundo; o conteúdo, o objeto mesmo é representado pelo belo, e o verdadeiro conteúdo do belo não é senão o espírito. No centro encontra-se o espírito na sua verdade, o espírito absoluto como tal. Pode-se ainda dizer que esta região da verdade divina ofertada pela arte à contemplação intuitiva e ao sentimento, constitui o centro do mundo de toda a arte, centro representado pela figura divina, livre e independente, que completamente assimilou os aspectos exteriores da forma e da matéria transformando-os na perfeita manifestação de si própria. É Deus, é o ideal, que está no centro, Deus, ao desenvolver-se, é o mundo. Ao desenvolver-se, manifesta-se. Deus é, por um lado, a natureza inorgânica, a objetividade donde o espírito se ausenta; é, por outro lado, objetividade subjetiva, divindade refletida de si próprio; ou, então, e, por um lado, objetividade abstrata e estranha ao espírito e, por outro lado, subjetividade concreta, subjetividade que só em si existe, espiritualidade particularizada, divindade subjetiva. Assim também nos podemos exprimir quanto à religião com a qual a arte, no grau mais elevado, apresenta relações diretas. Distinguimos, na religião, a vida exterior, terrestre, finita e a elevação para Deus, elevação que nos não permite falar de diferença entre subjetividade e objetividade. Há ainda a piedade dos fiéis, o culto, o espírito divino que se integra na comunidade e no seio dela permanece. O primeiro modo por que se afirmam as diferenças gerais explicadas na arte, ou o seu modo mais direto de realização, é-nos dado pela forma de arte a que chamamos simbólica. É no termo da exterioridade que evolui esta arte pois só uma relação puramente exterior existe entre a forma das suas representações e o conteúdo; o deus não encontrou ainda a forma adequada, a expressão perfeita, por a ele próprio faltar ainda a precisão concreta. A primeira realização da arte é representada pela arquitetura. Nela, consoante o conteúdo seja mais ou menos profundo ou, então, vago e superficial, assim será a forma mais ou menos significativa ou, então, insignificante, mais ou menos concreta ou, então, abstrata. Quando esta arte que é a arquitetura quer realizar uma adequação perfeita entre o conteúdo e a forma, transpõe os limites do domínio próprio para invadir um domínio mais elevado que é o da escultura. E é assim que ela manifesta a sua natureza limitada mediante relações puramente exteriores com o espiritual e mediante a exigência que tem de se ultrapassar para se aproximar da ideia, do espírito. Consiste a missão da arquitetura em conferir à natureza inorgânica transformações que, devido à magia da arte, a aproximam do espírito. Os materiais com que trabalha representam, pelo aspecto exterior e direto que têm, uma pesada massa mecânica, e as formas deles continuam a ser da natureza inorgânica ordenadas de acordo com as relações abstratas da simetria. Aqui, a arte inicia-se, pois, através da natureza inorgânica, nela se realiza, e, porque abstrato, o seu conteúdo permanece exterior para, deste modo, em vez de mostrar Deus exteriormente, apenas se limitar a uma simples alusão. A arquitetura mais não faz do que rasgar o caminho para a realidade adequada de Deus e cumpre a sua missão trabalhando a natureza objetiva e procurando arrancá-la aos matagais da finitude e às disformidades do acidental. Prepara a vida que deve conduzir a Deus, ergue-lhe templos, cria-lhe espaço, limpa o terreno, elabora e apronta os materiais exteriores, para que eles deixem de ser exteriores, para que o mostrem, fiquem aptos a exprimi-lo, capazes e dignos de o receber. Arranja o lugar para as reuniões íntimas, constrói um abrigo para os membros destas reuniões, uma proteção contra a tempestade que ameaça, contra a chuva e as intempéries, contra as feras. Exterioriza, dando-lhe uma forma concreta e visível, o comum querer-ser. Esse é o seu destino, esse é o conteúdo que lhe cumpre realizar. Os materiais são-lhe fornecidos pela grosseira matéria exterior, na forma de massas mecânicas e pesadas. O trabalho desses materiais é um trabalho exterior, executado de acordo com as regras abstratas da simetria. Assim se ergue o templo, a morada de Deus. Sujeita-se a matéria exterior a transformações, e ela é, de súbito, iluminada pelo clarão da individualidade. Deus entra no templo, Deus recebe a sua morada. O clarão da individualidade é o meio por que Deus se manifesta, e a sua estátua ergue-se então no templo. Noutros termos: graças à arquitetura, o inorgânico mundo exterior é sujeito a uma purificação, é ordenado segundo as regras da simetria, aproxima-se do espírito, e o templo de Deus, a casa da sua comunidade, ergue-se acabada. Em seguida, Deus entra no templo, rasgando e penetrando a massa inerte com o relâmpago da individualidade, e a forma infinita, já não apenas simétrica, do espírito apodera-se da materialidade do templo e torna-a digna do seu verdadeiro destino. O templo recebeu uma alma, um conteúdo espiritual, na forma de um Deus criado pela arte. As relações entre este Deus e a forma na qual ele aparece, já não são agora puramente exteriores. Há, pelo contrário, absoluta e completa identidade entre ambos, e o mérito de haver realizado tão perfeita adequação pertence à arte clássica que é a arte da escultura. A escultura introduz o próprio Deus na objetividade do mundo exterior; graças a ela, a subjetividade, a individualidade manifesta-se exteriormente pelo seu lado espiritual. Deus introduz-se, penetra nestas manifestações exteriores do subjetivo e do individual e nelas realiza a sua total representação. Só a espiritualidade então aparece, a forma corporal já nada significa nem exprime por si mesma, mas apenas enquanto reflete uma profundidade íntima, representação do espírito. O sensível já nada exprime que não seja expressão do próprio espiritual, como, por outro lado, a escultura não poderia representar um conteúdo espiritual sem lhe dar uma forma sensível, acessível à nossa intuição. A escultura representa, na forma corporal, o espírito na sua unidade imediata, num estado de tranquilidade serena e beatifica, ao mesmo tempo que a forma, por sua vez, se acha vivificada pela individualidade espiritual. A forma e o conteúdo são de uma adequação absoluta, nenhum deles sobreleva o outro, a forma determina o conteúdo e o conteúdo determina a forma; é a unidade na sua pura universalidade. Assim, a estátua reproduz a própria figura divina. O deus é imanente à sua expressão exterior, num estado de imóvel tranquilidade, de beatifica serenidade; só consigo mesmo apresenta relações, mostra-se como uma espécie de manifestação orgânica. Temos pois, aqui, o conceito encerrado em si próprio, numa relação consigo mesmo que nada tem de aparente. É assim que os materiais exteriores e sensíveis são objeto de uma elaboração, não enquanto massas pesadas sem outras qualidades além das mecânicas e indiferentes à coloração que se lhes dá, mas enquanto formas ideais da figura humana e na totalidade das suas dimensões especiais. Neste aspecto, importa reconhecer o mérito da escultura em ter sido a primeira arte que serviu para a expressão do mundo interno e espiritual no seu repouso eterno e na sua essencial independência. A este repouso e a esta unidade consigo própria corresponde um exterior que goza do mesmo repouso e da mesma unidade. É a figura na sua abstrata especialidade. O espírito representado pela escultura é o espírito que se basta a si próprio, que se não dispersa no jogo dos acidentes, dos acasos e das paixões. Coíbe-se a escultura de deixar que a forma exterior se perca na variedade dos acidentes e dos acasos, e este único aspecto ela representa, quer dizer, a especialidade abstrata na totalidade das suas dimensões. O espiritual completamente assimilou, portanto, os seus materiais; a forma infinita concentrou-se no corporal, a massa inerte tornou-se massa infinita. O deus interior mergulhou na exterioridade; a exterioridade transfigurou-se em deus, individualizou-se. O fora tornou-se dentro, o dentro tornou-se fora. Os materiais já não são indiferentes; são, é certo, sensíveis, mas puros e monocromos, e a sua particularização não foi efetuada à custa do que há de universal na sua unidade. Tal é o destino da escultura. Vimos já que na terceira forma da arte, no romantismo, a interioridade, o sujeito, o conteúdo da obra de arte abandona o seu tranquilo silêncio, a sua unidade absoluta com a forma, a sua matéria, a sua representação exterior, para regressar a si próprio, reentregando a liberdade à exterioridade que, por sua vez, regressa a si mesma, quebra a união com o conteúdo, torna-se-lhe estranha e indiferente. É a poesia, no sentido mais geral, que constitui a realização desta forma. Com efeito, na poesia, o sujeito e a forma seguem cada um o seu caminho e particularizam-se. Templos ergueu a arquitetura em honra do Deus, o próprio Deus saiu das mãos do escultor, e à sua volta, nos vastos espaços da sua casa, reúne-se a comunidade. Contra a indivisão geral do conteúdo e da forma, ergue-se agora a diferenciação, a subjetividade, a particularização de um e de outro. A comunidade é o Deus que arrancou ao mundo exterior, onde estava mergulhado, e que regressou a si mesmo; o Deus representado na estátua já não é o único, pois a unidade abstrata foi quebrada e substituída por subjetividades de uma multiplicidade indefinida. E é deste modo que nos achamos agora em face de particularidades subjetivas dos sentimentos e dos atos, em face de uma variedade de viventes movimentos individuais, de individuais quereres e não quereres. Por sua vez, os materiais estão fragmentados, particularizados e individualizados. Já não são os materiais maciços da arquitetura nem a aparência abstrata e simples que a escultura lhes imprime: trata-se de uma matéria particularizada e subjetivada que apenas recebe a significação da sua própria subjetividade. Alcança-se assim uma mais elevada unidade da forma e do conteúdo porque o conteúdo subjetivado dispõe agora, para a sua expressão, de uma matéria particularizada. O conteúdo afeiçoa-se à matéria, a matéria ao conteúdo. No entanto, esta íntima união não vai além do domínio subjetivo e só à custa da universalidade objetiva se vai realizando à medida que a forma e o conteúdo se particularizam. Deste modo, o terceiro elemento é formado pela comunidade, e esse é o elemento subjetivo. O divino manifesta-se particularizando-se, fragmenta-se, por assim dizer, e em circunstâncias tais que o mais importante é, precisamente, a aparência, a manifestação. Na escultura, a unidade substancial de Deus decompõe-se numa multiplicidade de interioridades particulares reunidas por laços que, em vez de serem sensíveis, são puramente ideais. Deus está presente em tudo, ao realizar-se no saber subjetivo e na sua particularização como ao servir de laço unitivo destas numerosas particularidades. Ele é, verdadeiramente, espírito, espírito da comunidade. E nesta, Deus eleva-se acima da identidade abstrata e encerra em si mesmo, e também da absorção no elemento corporal como o representa a escultura: é pura espiritualidade, saber puro, é contra-aparência no sentido em que é essencialmente interior e subjetivo. O conteúdo possui agora um valor mais alto; tomou-se espiritual e também absoluto mas, devido à fragmentação de que acabamos de falar, este conteúdo espiritual e absoluto é, ao mesmo tempo, um conteúdo particularizado, repartido por almas particulares; e como a coisa principal já deixou de ser a serenidade tranquila e impossível de Deus mas sim a aparência em geral, o ser, não em si e para si, mas para outrem, a manifestação, a representação artística terá doravante por objeto as mais variadas subjetividades nos seus movimentos e viventes atividades, ou seja, o vasto domínio dos sentimentos, das volições e das inibições humanas. Para exprimir estas particularidades temos nós três elementos: a luz e a cor, o som como tal e, por fim, o som como sinal da representação, quer dizer, a linguagem. Temos aqui uma representação do divino na sua aparente espiritualidade, ou seja, na sua particularização. Por sua vez a forma da arte romântica apresenta-se num triplo aspecto. Em primeiro lugar, carece de matérias visíveis para as suas representações. Os materiais da arquitetura e da escultura são, decerto, materiais visíveis, mas de uma visibilidade concreta e não abstrata. Na arte romântica, a visibilidade, sendo abstrata, não pode permanecer puramente abstrata pois tem de servir a representação do particular; tomou-se, por si mesma, uma visibilidade particularizada e subjetiva, mediante a cor, por exemplo, ou mediante a luz que implica a determinação do escuro com o qual forma uma unidade específica e particularizada. Esta visibilidade subjetivada que tem em si mesma a sua determinação não precisa, como a arquitetura, dos contrastes abstratos de massas mecânicas nem, como a figura, da materialidade especial das três dimensões, pois os contrastes de que precisa são-lhe, por assim dizer, imanentes na forma de cores. Deste modo se acha a arte romântica liberta do que é puramente material e apenas se dirige ao sentido abstrato e ideal da vista. Por outro lado, o conteúdo passa por uma particularização profunda. Tudo quanto se agita na alma, tudo o que procura exteriorizar-se no ato, constitui aqui matéria de representação. Toda a vida dos sentimentos, todo o domínio da particularidade encontra aqui lugar. Até as formas naturais podem ser adotadas desde que uma alusão a algo de espiritual as aproxime do pensamento. O conjunto em que esta forma de arte se apresenta é o da pintura. Outro meio para a realização da arte romântica é uma matéria que, embora sensível, possui origem ainda mais profunda. Dissemos já que a cor é um meio de subjetivação. A mais profunda subjetivação, que temos agora em mente, consiste em suprimir as coexistências indiferentes que preenchem espaço e que a cor ainda deixa subsistir, idealizando-as e reunindo-as num ponto. Este ponto de supressão é um ponto concreto, e esta determinação pode ser considerada como o começo da idealização do espacial pelo movimento comunicado à matéria, movimento que a torna, por assim dizer, vibrante e lhe modifica as relações que ela tem consigo mesma: é isso que se obtém pelo som, que se dirige ao ouvido, e é um dos sentidos ideais. A visibilidade abstrata torna-se auditividade abstrata; a dialética própria do espaço desenvolve-se até alcançar o tempo, até esse sensível que existe, sem existir, e que em seu não ser engendra seu ser futuro, assim se suprimindo e criando sem cessar. Esta matéria, que é abstrata interioridade, constitui o meio onde evolui a sensação também indeterminada que ainda não teve a força de chegar até o plano da autodeterminação. Só a música exprime o despertar e a extinção do sentimento e forma o centro da arte subjetiva, a passagem da sensibilidade abstrata para a espiritualidade abstrata. Pela sua matéria, a música funda-se, como a arquitetura, em relações racionais e, para a definir de um modo abstrato, ela é em geral a arte que exprime a inferioridade abstrata e espiritual do sentimento. O som não é ainda material; é um elemento abstrato. A vista e o ouvido são, precisamente, os sentidos adequados às manifestações puras e abstratas. O som em geral representa esta idealidade do material enquanto vibração, movimento do material; é um elemento ideal, adequado à manifestação do divino. A extensão espacial transforma-se num ponto, e o ponto que se demora não é senão o tempo. A este elemento corresponde a segunda subdivisão da arte romântica: a música. A última e mais espiritual variedade da arte romântica caracteriza-se porque o elemento sensível, que começara a ser libertado pelo som, é sujeito a uma total espiritualização, de tal modo que o próprio som já não exprime o sentimento mas aparece como um simples sinal, sem conteúdo, não já do sentimento impreciso, mas da representação que é agora concreta. O som que, na música, era uma ressonância imprecisa, transforma-se em palavras, é um som articulado, preciso, de uma função que consiste em exprimir representações, ideias, em ser o sinal de uma espiritual interioridade. O elemento sensível que, em música, ainda está estreitamente ligado ao sentimento, acha-se agora separado do conteúdo como tal, pois o elemento espiritual precisou-se até chegar à representação que será expressa pelo sinal desprovido de qualquer valor e de qualquer significação intrínseca. O som pode, pois, ser uma letra do alfabeto porquanto, aqui, o visível e o audível estão ambos reduzidos a simples sinais do espírito. Esta variedade da arte constitui aquilo a que chamamos, no sentido estrito da palavra, poesia. A poesia é a arte geral, a mais compreensiva, a que consegue elevar-se à mais alta espiritualidade. Na poesia, o espírito é livre em si, está separado dos materiais sensíveis que transformou em sinais destinados para a sua expressão. O sinal, aqui, não é um símbolo mas algo de completamente indiferente e sem valor sobre o qual o espírito exerce um poder de determinação. Este terceiro elemento é, portanto, o elemento perfeito, é o som enquanto sinal de representação, e é o espiritual que, de um modo espiritual, se exprime pelo sinal da representação: poesia épica, lírica e dramática. Insistamos neste ponto: o que caracteriza mais particularmente a poesia é o poder de submeter ao espírito e às suas representações o elemento sensível de que a arte já tinha começado a ser libertada pela pintura e pela música. O som transforma-se na palavra articulada, destinada a designar representações e ideias; o ponto negativo para que tendia a música transforma-se num ponto perfeitamente concreto, o do espírito representado pelo indivíduo consciente que, com os seus próprios meios, associa o espaço infinito da representação ao tempo do som. Tais seriam as características gerais das formas de arte representadas, por um lado, pela arquitetura e escultura, e, por outro lado, pelas artes subjetivas: pintura, música e poesia. Só nos falta agora falar do aspecto, por assim dizer, mecânico destas artes. O seu aspecto sensível reside nas relações com o tempo e o espaço que já são abstrações do sensível. O tempo e o espaço são formas gerais do mundo sensível, e é graças a isso que o sensível é sensível; são abstrações gerais do sensível. Considerada deste ponto de vista, a matéria de representação da arquitetura é o espaço de três dimensões mas é-o de um modo tal que as determinações fundamentais do espaço, ângulos, superfícies, linhas, têm uma regularidade que lhes é imposta pelo intelecto. As formas são, aqui, simples cristalizações das quais ainda estão ausentes a alma e o espírito. A pirâmide encerra um deus ausente. Quanto à escultura, deu ela a todo o espaço uma figuração orgânica a partir do interior. Vêm a seguir, as artes românticas nas quais o exterior se começa a subjetivar e o espaço a ser abstrato. A pintura ocupa-se das superfícies extensas e sua figuração. Este espaço abstrato acaba por se reduzir ao ponto que se torna ponto do tempo, ao ponto negativo que é, ao mesmo tempo em que um ponto de separação, uma negação da separação. Este elemento sensível do tempo é o da música. Na poesia, o ponto corresponde também ao tempo mas este, em vez de possuir uma negatividade formal, é perfeitamente concreto, enquanto ponto do espírito, enquanto sujeito pensante, associado ao som temporal no espaço infinito da representação. É assim que a cada arte particular correspondem determinações particulares da exterioridade. Tal é o sumário dos assuntos que serão tratados na parte especial deste livro. Quanto às relações entre as artes particulares e a arte em geral, cumpre ainda observar que a arte simbólica encontra na arquitetura o mais vasto campo de aplicação; nela se desenvolve de um modo completo sem se tornar ainda a parte inorgânica de outra arte. Na arte clássica, a escultura está incondicionada e só a título acessório é que a arquitetura nela entra. A pintura e a música constituem o principal domínio da arte romântica que nelas revela a sua independência incondicionável. A terceira arte romântica, a poesia, eleva-se até a objetividade em si, alarga indefinidamente o seu domínio, intervém nas duas outras artes românticas para nelas introduzir um elemento novo e, ao mesmo tempo, para delas extrair elementos da sua própria formação. Com efeito, a poesia é comum a todas as formas do belo, porque o seu verdadeiro elemento é a fantasia de que carece toda a criação que, por qualquer forma, vise à beleza. A obra de arte é de uma riqueza tal, oferece tão numerosos aspectos que é fácil, na sua consideração, adotar tal ou tal critério particular. Escolhendo um só aspecto, adotando um único critério depressa se cai em inconsequências porquanto o aspecto escolhido não existe por si mesmo mas em vista de um superior princípio a que está subordinado. Considerado na sua particularidade, mostra-se decerto consequentemente, mas enquanto subordinado a um princípio superior, logo se revela sem independência. Já se quis considerar uma classificação das artes a partir das relações de espaço e tempo que não passam, porém, de relações completamente abstratas. A arquitetura torna-se, nesse caso, cristalização, a escultura, forma orgânica da matéria, a pintura, superfície e linha. Na música, o tempo reduz-se ao ponto - ao ponto que nunca é vazio, quer dizer, ao tempo - e, enfim, uma determinação diferente desta determinação abstratamente sensível aparece na poesia. Mas neste grau supremo, a arte ultrapassa-se a si mesmo para se tornar prosa, pensamento. O que, em cada obra de arte considerada à parte, as artes particulares realizam são, de acordo com o seu conceito, as formas gerais da ideia do belo em via de desenvolvimento. Enquanto realização exterior dessas formas, a arte aparece como um Panteão em que o espírito do belo, apreendendo-se a si mesmo, é simultaneamente o arquiteto e o operário e que só estará terminado ao fim de milênios de história universal. No que se segue, começaremos por tratar da ideia do belo. Esta ideia será considerada em três aspectos: primeiro, como o belo em geral, depois, como a diferenciação deste belo em geral, como a sua participação na forma do belo artístico; este é o belo propriamente dito, o ideal em geral. Trataremos, em terceiro lugar, da manifestação, da expressão do ideal, sua individualização e realização. PARTE PRIMEIRA A IDEIA E O IDEAL CAPÍTULO I A ideia I - A IDEIA E O ESPÍRITO ABSOLUTO Começamos pela ideia, cujo exame nos irá revelar as relações que existem entre a arte e os domínios que dela se aproximam. Poderia, a propósito, parecer oportuna uma revisão das diversas tentativas de apreender o belo pelo pensamento, analisá-las e formular um juízo de cada uma delas. Foi isso, porém, o que em parte fizemos na Introdução; além disso, um verdadeiro estudo não se pode demorar apenas no exame do que os outros fizeram mais ou menos bem nem apenas nisso procurar ensinamentos. Pelo contrário, conviria lembrar rapidamente que numerosos são aqueles que pensam que o belo em geral, precisamente por ser o belo, se não deixa encerrar em conceitos e constitui, por esse motivo, um objeto que o pensamento é incapaz de apreender. Responderemos a esta maneira de ver dizendo que embora toda a verdade seja, ainda hoje, considerada como inconcebível e só, portanto, as temporais finitude e ocasionalidade do fenômeno se ofereçam à conceituação, nós pensamos, pelo contrário, que só a verdade é concebível pois só ela se funda no conceito absoluto e, mais exatamente, na ideia. Ora, sendo a beleza certo modo de exteriorização e representação da verdade, por todas as suas faces se oferece ela ao pensamento conceitual quando este possua verdadeiramente o poder de formar conceitos. É certo que, nos nossos dias, nenhum conceito foi mais inditoso do que o próprio conceito, o conceito em si e como tal: entende-se geralmente por conceito uma precisão e uma unilateralidade abstratas do processo da representação e dos produtos do intelecto, o que impede o pensamento de levar até a consciência tanto a totalidade da verdade como a beleza concreta em si. É que a beleza, como já mostramos (e disso voltaremos a tratar), não constitui uma abstração do intelecto mas sim o conceito em si, concreto e absoluto, ou seja, a ideia absoluta. Para darmos da ideia uma definição mais rigorosa; diremos que, enquanto existente em si e para si, a ideia é também a verdade em si, é que participa do espírito de um modo geral, o que é o espiritual universal, espírito absoluto. O espírito absoluto é o espírito enquanto universal e não enquanto particular e finito. Determina-se como o que recebe a verdade de uma verdade universal. É certo que estamos habituados a colocar o espírito ao lado da natureza como se esta o igualasse em dignidade, como se as relações entre o espírito e a natureza fossem as de igual para igual, reciprocamente independentes. Ora, nós postulamos, aqui, a oposição de espírito e natureza. O espírito que, separando-se da natureza, se opõe a ela, não é o espírito absoluto, mas o espírito finito que recebe a verdade do espírito absoluto onde a natureza se situa de um modo ideal. Ele se diferencia por virtude das suas imanentes atividades e se decompõe em termos opostos - a natureza e o espírito finito -, termos que, embora representem a ideia total, apenas a representam sem constituírem a verídica forma dela. Mas em tudo isto trata-se apenas do ponto de vista do espírito finito cuja verdade provém do espírito absoluto que é a união de si próprio com a natureza. Para este, natureza só existe, pois, na ideia, como algo que está. Consistindo o espírito numa atividade que lhe permite diferenciar-se de si próprio, daí resulta que o que provém do espírito por diferenciação, ou seja, a natureza, implica a ideia e o espírito na sua totalidade, mas só enquanto natureza; o espírito ainda não encontrou a sua verdade. Prova de generosidade dá o espírito ao comunicar à natureza toda a plenitude do seu ser; na existência real, porém, esta plenitude opõe-se à subjetividade do espírito. A natureza é, portanto, coisa dada, criada, e o que nela há de verdadeiro reside na sua idealidade, na sua negatividade. Mas a subjetividade implica o que é diferente de si e o poder de se opor e tratar o diferente como algo de negativo. É a negatividade infinita, a negação, e a natureza representa esta última. Tal idealidade e tal negatividade infinita formam o conceito profundo da subjetividade do espírito. Mas enquanto subjetividade, o espírito ainda não é mais do que a verdade da natureza, visto que ainda não formou o conceito de si para si. A natureza não lhe aparece como outro, como o que lhe foi formulado por ele, mas sim como aquilo que é feito diferentemente, como aquilo que é limitado e não ultrapassado e com o qual o espírito, enquanto subjetivo na sua existência de querer e de saber, se relaciona como com uma objetividade que acha completamente feita e de que ele é, por assim dizer, uma resposta. Eis o que explica o caráter finito do espírito, quer teórico quer prático, a limitação do conhecimento e a mera obediência ao dever na realização do bem. Como na natureza, também aqui a manifestação exterior não corresponde à verdadeira essência do espírito, e por isso temos esse quadro confuso de toda a espécie de habilidades, paixões, opiniões, intuitos e propósitos que convergem e divergem, que concordam, se contradizem e opõem, com o acaso a presidir, sob as formas mais variadas, à orientação do querer e dos anseios, à direção das opiniões e dos pensamentos, umas vezes favorecendo-os, outras vezes perturbando-os. Assim aparece tão só o espírito finito, o espírito de manifestações temporais, o espírito em contradição consigo próprio e, por conseguinte, caduco, insatisfeito e infeliz. É que as satisfações assim obtidas são sempre, em virtude do seu caráter finito, limitadas e confusas, relativas e isoladas. Para procurarem e acharem a universalidade verdadeira, o acordo e a satisfação, precisam a consciência, o querer e o pensamento se elevar acima dessa esfera, até o infinito da verdade. Tal acordo e tal satisfação, até os quais é erguida pela racionalidade dinâmica do espírito a matéria da sua finitude, constituem a verídica revelação do que é o mundo dos fenômenos considerado do ponto de vista do seu conceito. O espírito apreende a finitude como sendo a sua própria negação e atinge assim o infinito. Esta verdade do espírito finito é que é o espírito absoluto. O espírito absoluto é esta totalidade, verdade suprema. Este é o ponto de partida das nossas reflexões sobre a filosofia, e a ele ligamos a arte. A prova de que esse é, verdadeiramente, o ponto de vista de onde convém considerar a arte, encontrar-se-á nas partes da filosofia que já anteriormente tratamos; aí mostramos que a própria natureza, como tal, se ergueu até o espírito e regressa a sua verdade, e que o espírito, inicialmente finito, nesta finitude adquire consciência da sua negatividade. A natureza, dizemos nós, regressa à sua verdade, que é o espírito. Enquanto, pois, na sua existência, o espírito se relaciona com a natureza, enquanto provém da natureza, é espírito finito. Então se produz uma evolução que ao espírito, desde início limitado a existir e numa existência imediata, permite adquirir o conhecimento do seu caráter finito, como algo de negativo, e do espírito absoluto, como único verdadeiro. Assim este espírito finito se torna absoluto; assim acontece com o espírito prático, que realiza o bem e a verdade, e extrai a sua própria verdade do espírito finito, absoluto. Ao entrarmos no domínio da arte, colocamo-nos, pois, no ponto de vista do espírito absoluto. Com efeito, o domínio da arte está acima da natureza e do espírito finito; não coincide com a lógica, onde o pensamento, enquanto pensamento, se manifesta e desenvolve para si próprio, nem com a natureza onde aquele pensamento se objetiva. O belo artístico não existe na natureza, não é de ordem lógica, não faz parte da esfera do espírito finito nem da do pensamento puro e simples, pensamento que é só pensamento, como também se não inclui entre os fins e os atos do espírito finito: pertence à esfera do espírito absoluto, e existe na arte um conhecimento do espírito absoluto como de um objeto para o espírito finito. Ora, enquanto objeto, o espírito absoluto enfrenta o espírito finito e comporta-se ele mesmo como espírito finito. Assumindo um ponto de vista mais elevado, especulativo, esta situação pode ser interpretada dizendo que o espírito, enquanto consciência, se diferencia de si mesmo e devido a esta diferenciação, a esta divisão da sua subjetividade, se torna espírito finito. O espírito absoluto opõe-se a si mesmo, na sua comunidade, como espírito finito; só é espírito absoluto quando é reconhecido como tal na comunidade. Como esse é o ponto de vista da arte, considerada na mais alta e verídica dignidade, logo aparece evidente que a arte se situa no mesmo plano da religião e da filosofia. Isto têm de comum a arte, a religião e a filosofia: exercer-se o espírito finito sobre um objeto que é a verdade absoluta. Na religião, o homem eleva-se acima dos seus interesses particulares, acima das suas opiniões, representações, tendências pessoais, acima do saber individual, para a verdade, quer dizer, para o espírito que é em si e para si. A filosofia tem por objeto a verdade; pensa a verdade e o seu único objeto é Deus. A filosofia é, essencialmente, teologia e serviço divino. Poderá ser designada se assim se quiser, pelo nome de teologia racional, de serviço divino do pensamento. A arte, a religião e a filosofia só diferem quanto à forma; o objeto delas é o mesmo. Num olhar que lancemos ao conteúdo total da nossa existência, descobrimos, até na mais vulgar consciência, a maior variedade de interesses e de meios para satisfazê-los. Deparamos, em primeiro lugar, com o vasto sistema das exigências materiais que têm ao serviço da sua satisfação numerosas indústrias, o comércio, a navegação, as artes técnicas; encontram-se, depois, o mundo das leis e do direito, a vida familiar, as classes sociais, todo o imenso domínio do Estado; temos, em seguida, a exigência de religiosidade que existe na alma de toda a gente e é satisfeita na vida da igreja; e há, por fim, a atividade de múltiplas e entrecruzadas ramificações, da ciência, do conjunto do saber e do conhecimento. No interior de cada uma destas esferas exerce-se também a atividade artística, provinda do interesse pela beleza em cujas realizações reside uma satisfação espiritual. A questão que então se formula é a de saber a que necessidade interna corresponde este interesse pela beleza, esta exigência de arte, em relação com todos os outros domínios da vida e do mundo. À primeira vista, poderíamos pensar que nos basta a simples existência daquelas esferas e que toda a questão que a ultrapasse é supérflua e negociosa. Mas a ciência exige que procuremos as suas íntimas e essenciais relações e dependências recíprocas. Ora, as relações que as ligam umas às outras não são as de simples utilidade, mas as de complementaridade pois uma esfera comporta modos de atividade superiores aos de uma outra, de onde resulta que a esfera que está num plano subordinado aspira a ultrapassar-se e a preencher, por meio da satisfação mais profunda de interesses mais vastos, aquilo que anteriormente se apresentava como uma lacuna. Rememorando o que já dissemos quanto ao conceito do belo e da arte, insistiremos mais uma vez sobre o seu duplo aspecto: o de conteúdo, de fim, de significação, por um lado, o de expressão, de manifestação, de realidade, por outro. Entre estes dois aspectos existe uma interpenetração tal que o exterior, o particular só tem razão de ser como expressão do interior. Na obra de arte nada mais há senão o que se refere ao conteúdo e serve para o exprimir. Aquilo a que chamamos conteúdo, significação, é o simples em si, a própria coisa reduzida à determinações mais simples e ao mesmo tempo mais compreensivas, por tal diferindo da execução. Assim acontece, por exemplo, que se pode indicar o conteúdo de um livro em duas frases ou proposições, e o livro não deverá conter senão o que foi indicado no resumo com as linhas gerais do conteúdo. Esta coisa simples, este tema que, por assim dizer, fornece uma base à execução, é o abstrato; pelo contrário, a execução é que é o concreto. Mas os dois termos desta oposição não existem para permanecerem indiferentes um ao outro ou numa justaposição puramente exterior (como, por exemplo, uma cor ou uma grandeza é exteriormente alheia a uma figura matemática, um triângulo ou uma elipse, na simplicidade do seu conteúdo), pois a significação, embora abstrata, enquanto simples conteúdo, está destinada a realizar-se, quer dizer, a tornar-se concreta. Surge, então, um dever-ser. Qualquer que seja o valor próprio de um conteúdo, não nos pode satisfazer o seu caráter abstrato pois exigimos algo mais. De uma existência insatisfeita se trata, de um sentimento de insuficiência experienciado pelo sujeito e que busca suprimir-se para se transformar em satisfação. Será o conteúdo neste sentido considerado, antes de tudo, como subjetivo como puramente interior; opõe-se-lhe o objetivo, e da oposição ressalta a exigência de objetivar o subjetivo. Esta oposição entre o subjetivo e o objetivo, e a necessidade de a suprimir, constituem um fato geral que sempre se verifica em tudo. Já a nossa vitalidade física e mais ainda, o mundo dos nossos fins e interesses espirituais assentam na exigência de transferir para a objetividade o que inicialmente se encerra no subjetivo e interior, e só quando satisfeita está tal exigência, se acha realizada uma existência completa, única suscetível de nos contentar. Se, portanto, o conteúdo dos fins e interesses só reside inicialmente na forma subjetiva, isso os obriga a uma limitação de que provém, por sua vez, um mal-estar, uma dor sentida como um estado negativo que, como tal, é preciso suprimir para que finde o sofrimento que nos provoca aquela limitação conhecida e pensada. A situação não se apresenta como se o objetivo fosse apenas aquilo que falta ao subjetivo. Trata-se de uma relação mais estreita, de uma dependência mais íntima; o subjetivo sente em si próprio e por si próprio uma ausência, uma negação que, por sua vez, negar procura. Por si próprio e conforme ao seu conceito, o sujeito representa o todo, isto é, não só o interior mas também a realidade dele no e para o exterior. Se só unilateralmente, se num só aspecto existir, cairá na contradição ínsita em ser o todo pelo conceito e um só aspecto do todo pela existência real. Por isso a vida não é afirmativa antes de suprimir esta negação de si própria. O maior privilégio dos viventes consiste em ter percorrido este processo da oposição, da contradição e da negação até a conciliação dos dois termos opostos; o que é afirmativo imediatamente e assim permanece, sem precisar resolver o problema da conciliação, nada tem com a vida. A vida progride para a negação, com a dor que ela arrasta, e só afirma perante si mesma após o apaziguamento da oposição e da contradição. Perdida está, porém, se se imobilizar na oposição e se instalar na contradição. Tais são, apresentadas na forma abstrata, as definições de que precisamos aqui. Ora, o mais alto conteúdo concebível pelo subjetivo é o da liberdade, que é a determinação mais nobre do espírito. Do ponto de vista formal, logo o sujeito se encontra a si mesmo em tudo que o envolve e nada vê que lhe seja estranho, limites ou barreiras. Já, considerada deste ponto de vista puramente formal, a liberdade significa a extinção de toda a miséria e de toda a infelicidade, a conciliação do sujeito com o mundo, transformado numa fonte de satisfações, o desaparecimento de toda a oposição ou contradição. Mas a liberdade possui também um conteúdo racional: por exemplo, a moralidade nos atos, a verdade no pensamento. Enquanto a liberdade permanece subjetiva, sem se exteriorizar, o sujeito acha-se em presença do que não é livre, do que só é objetividade e necessidade natural, e daí resulta a exigência de conciliar esta oposição. Por outro lado, oposição análoga se manifesta no interior do próprio sujeito. Ao falar de liberdade, é preciso não esquecer, por um lado, o que em si é universal e independente, como sejam as leis gerais da justiça, do belo, da verdade etc., e, por outro lado, os instintos humanos, os sentimentos, disposições, paixões, tudo o que, em suma, enche o coração do homem individual. Entre estes dois termos opostos trava-se uma luta incessante que é origem de desesperos, dores profundas, sofrimento e de um não menos profundo sentimento de insatisfação. Os animais vivem em paz consigo próprios e com as coisas que os rodeiam, mas a natureza espiritual do homem obriga-o a viver num estado em que se desdobra, se descama, se debate entre as contradições daquele modo engendradas. Não se contenta o homem com uma vida reduzida ao seu mundo interior, com uma vida encerrada no pensamento puro, no mundo das leis e da universalidade; precisa também de uma existência sensível, de dar livre curso aos impulsos do sentimento e aos ritmos do coração, de uma vida psíquica. A filosofia concebe esta oposição de um modo muito geral, e os meios que propõe para a suprimir são também muito gerais. Mas na imediateidade da sua vida, o homem aspira a uma satisfação igualmente imediata. No sistema das exigências físicas é onde encontramos primeiro reabsorvimento da referida oposição. A fome, a sede, o cansaço, comer, o beber, a saciedade, o sono etc., são neste domínio, exemplos daquela oposição e correspondente reabsorvimento. Mas, no domínio das exigências físicas, o conteúdo da satisfação apresenta um caráter finito e limitado; a satisfação não é absoluta e logo se lhe segue o despertar da exigência. Jamais o comer, o dormir e a saciedade dão resultados definitivos: a fome e a fadiga reaparecem horas depois. No domínio espiritual, o homem busca a satisfação e a liberdade com o querer e o saber, com o conhecimento e a ação. O ignaro não é livre porque se acha em presença de um mundo que lhe é superior e exterior e do qual depende, mundo estranho que não é obra sua para nele se sentir como em sua casa. A busca do saber, a aspiração ao conhecimento, desde o mais baixo nível até o mais elevado grau, são promovidas pelo imperativo irresistível de sair daquele estado de não liberdade e apreender o mundo mediante a apresentação e o pensamento. Por outro lado, a liberdade na ação consiste em estar conforme com a razão que impõe à vontade uma exigência da realidade. No Estado se efetua esta realização da vontade conforme às exigências da razão. Num Estado assim organizado, todas as leis e instituições são realizações da vontade segundo as mais essenciais determinações dela. Quando isso acontece, a razão individual vê nas instituições a realização da sua própria essência e ao obedecer às leis só obedece a si mesmo. É corrente confundir-se a liberdade com a arbitrariedade: mas a arbitrariedade é uma liberdade irracional, e não é a vontade razoável, mas sim impulsos acidentais, exteriores motivos sensíveis, que presidem às preferências e às decisões arbitrárias. Assim obtêm efetiva satisfação no mundo as exigências físicas, o saber e o querer, e assim se acha livremente resolvida a oposição entre o subjetivo e o objetivo, entre a liberdade interior e a necessidade exterior. Mas não fica menos limitado o conteúdo desta liberdade e desta satisfação, pelo que uma e outra possuem ainda um caráter finito. Ora, sempre que há finitude reaparecem a oposição e a contradição, e a satisfação é, pois, puramente relativa. No direito, na realidade do direito, por exemplo, é certo que estão reconhecidos o meu aspecto racional, a minha liberdade e a minha vontade, que eu sou considerado uma pessoa e, como tal, respeitado; se eu sou proprietário, o que possuo pertencer-me-á para sempre, e se a minha propriedade correr risco, o tribunal restabelecer-me-á nos meus direitos. Mas tal liberdade e tal reconhecimento só se referem a aspectos relativos ou a objetos isolados: esta casa, esta quantia de dinheiro, este direito preciso, esta lei determinada etc., tal ação ou tal realidade isoladas. O que a consciência encontra perante si, são pormenores reunidos num conjunto por certas relações que possuem mas que só pertencem a categorias relativas e estão subordinadas a numerosas condições de que tanto pode resultar o aparecimento momentâneo da satisfação como o não aparecimento. No seu conjunto, a vida do Estado é, decerto, uma totalidade perfeita: o príncipe, o governo, os tribunais, o exército, a organização da sociedade civil, a sociabilidade etc., os direitos e os deveres, os fins e a sua satisfação, a regulamentação do comércio etc., tudo isso faz do Estado um organismo completo, acabado, perfeito. Mas, quaisquer que sejam as suas manifestações exteriores e interiores, não deixa de ser menos unilateral e abstrato em si aquele princípio cuja realidade a vida do Estado encarna e em cujo nome o homem procura a sua satisfação. O que nele se explica é somente a liberdade racional do querer, é somente o Estado, e ainda tal ou tal Estado particular, quer dizer, um domínio particular da existência; só neste domínio, só nesta realidade isolada, a liberdade se manifesta efetivamente. O próprio homem se apercebe de que, naquele domínio, os direitos que possui como os deveres que o obrigam, são de um caráter limitado e finito e carecem, quer no ponto de vista objetivo quer no das suas relações com o sujeito, de garantia e de sanção mais altas. Constrangido pelo finito que o envolve, o homem procura uma mais alta região de verdade substancial, onde encontrem solução definitiva todas as oposições e contradições e onde a liberdade obtenha a satisfação completa. Procura a região da verdade em si, não a de uma verdade relativa. Só a verdade suprema, a verdade como tal, concilia a oposição e contradição por excelência que é a da liberdade e necessidade, a do espírito e natureza, a do conhecimento e objeto; em suma, a oposição e a contradição em geral, quaisquer que sejam as suas formas, assumem todo o valor e toda a força. Graças a essa verdade, por um lado se demonstra que a liberdade como tal, subjetiva e isolada da necessidade, não é verídica de um modo absoluto, e, por outro lado, que se não pode atribuir um caráter absoluto à necessidade isolada. Ora, incapaz de ultrapassar esta oposição, a consciência vulgar agarra-se desesperadamente à contradição ou repele-a por intermédio de qualquer subterfúgio. Mas a filosofia introduz-se no íntimo das determinações contraditórias, reconhece-as, à luz do conceito delas, como unilaterais, portanto não absolutas, e, ao mesmo tempo, como suscetíveis de serem conciliadas e instaladas na harmonia e na unidade, quer dizer, na verdade. A missão do filósofo consiste em considerar a verdade à luz deste conceito. Ora, se a filosofia tudo considera à luz dos conceitos, o que qualifica como o único modo compreensivo e verdadeiro de pensar, uma coisa, no entanto, é o conceito, a verdade em si e outra, a existência que lhe corresponde ou não. Na realidade finita, existem, umas independentes das outras, as determinações que correspondem à verdade, de sorte que se apresenta como uma separação o que, segundo a verdade, é inseparável. Acontece, por exemplo, que o ser vivente é um indivíduo, mas um indivíduo que, enquanto sujeito, se acha também em oposição com a natureza inorgânica que o rodeia. Ora um e outros termos se encontram no conceito em estado de conciliação; a existência finita que os separa constitui, por isso, uma realidade que não está conforme nem com o conceito nem com a verdade. Poder-se-á, pois, dizer que o conceito está em tudo, mas o que importa é saber se também segundo a verdade se realiza o conceito nessa unidade em que os aspectos particulares e as oposições subsistem uns ao lado dos outros, desprovidos de qualquer independência e de real fixidez, apenas como momentos ideais reunidos por virtude de um acordo livre. A verdade, a liberdade e a satisfação constituem a verdadeira realidade desta unidade suprema. Viver no domínio onde esta unidade reina é viver segundo a verdade, tida como felicidade do ponto de vista do sentimento, como conhecimento do ponto de vista do pensar, e outro não é esse viver senão o da religião. E que a religião constitui o domínio geral onde o homem adquire conhecimento da única totalidade concreta em que se acham unidas a própria essência sua e a da natureza, única realidade verídica essa que lhe surge como a força suprema que domina tudo o que seja particular e finito, e que integra, numa unidade superior e absoluta, tudo o que é dividido, separado, oposto. Também a arte participa da esfera absoluta do espírito enquanto se ocupa da verdade como de um objeto absoluto da consciência, e assim se coloca, pelo seu conteúdo, no mesmo plano da religião, no mais especial sentido desta palavra, e da filosofia. Porque também a filosofia só tem como objeto Deus e constitui, por isso, uma teologia essencialmente racional e um serviço divino de culto à verdade. Se assim têm o mesmo conteúdo, os três reinos do espírito diferem, no entanto, pela forma em que, dentro de cada um deles, se apresenta à consciência o mesmo objeto, quer dizer, o absoluto. As diferenças das formas reportam-se ao próprio conceito do absoluto. O espírito, enquanto espírito verdadeiro, existe em si e para si; não é, portanto, uma essência abstrata, exterior ao mundo dos objetos, mas reside no íntimo deste mundo e conserva no espírito finito a lembrança da essência de todas as coisas, lembrança que permite ao finito a apreensão do finito, ou seja, de si próprio, de um modo essencial e absoluto. A primeira forma desta apreensão é um saber direto e, por conseguinte, sensível, um saber que todas as coisas considera do ponto de vista sensível e objetivo e no qual o absoluto é surpreendido pela intuição e apreendido pela sensibilidade. A segunda forma é a da representação consciente, a terceira a do livre pensamento que é o pensamento do espírito absoluto. A intuição sensível pertence à arte que confere à verdade a forma de representações sensíveis. Estas representações, até como tais, têm um sentido e uma significação que ultrapassam a esfera sensível; não se propõem, todavia, através destes modos sensíveis, tornar concebível o espírito em toda a sua universalidade pois é, precisamente, a unidade deste com o fenômeno individual que constitui a essência do belo e sua representação pela arte. Ora, esta unidade, fundamento da arte, não se realiza apenas no domínio da exterioridade sensível mas também no da representação e, mais particularmente, na poesia. Até a poesia, que é a mais espiritual de todas as artes, se caracteriza pela unidade da sua significação e da sua forma individual, o que não a impede de também existir para a consciência representativa graças à qual todo o conteúdo é apreendido de um modo imediato e vem a ser objeto de representação. Observemos que, sendo a verdade o objeto da arte, não pode o espírito tomá-la perceptível por intermédio de elementos naturais isolados, tais como, por exemplo, o sol, a lua, a terra, as estrelas etc. São estes elementos existências sensíveis, é certo, mas particulares, e, portanto, incapazes de dar a intuição do espiritual. Conferindo, assim, à arte um valor absoluto, intencionalmente pomos de lado a ideia a que, páginas atrás, aludimos e que daria à arte o poder de utilizar os mais variados conteúdos e por isso servir interesses que não seriam propriamente os seus. A religião, pelo contrário, serve-se muitas vezes da arte para tornar a verdade religiosa mais sensível e mais acessível à imaginação; podemos, neste caso, dizer que a arte está a serviço de um domínio que não é o seu. Mas sempre que a arte se afirma na suprema perfeição, é ela precisamente que, pelas formas imaginíficas, dá da verdade a mais apropriada expressão, a que melhor corresponde à essência dela. Entre os gregos, por exemplo, a arte era a forma mais elevada de que um povo dispunha para representar os deuses e apreender conscientemente a verdade. Por isso os artistas e os poetas gregos vieram a ser os criadores dos deuses, quer dizer, deram ao povo uma representação definida da vida e ações dos deuses e à religião um definido conteúdo. Enganar-se-ia quem pensasse que essas representações e reações já existiam na consciência em forma abstrata, como proposições e determinações religiosas de caráter geral, antes da poesia, e que só posteriormente elas foram revestidas de imagens pelos poetas, cobertas do envoltório exterior da poesia. Pelo contrário: empenhados na atividade artística, os poetas só podiam exprimir o que neles fermentava mediante esta forma determinada da arte e da poesia. Em outras fases da consciência religiosa, quando o conteúdo religioso se apresenta menos acessível à representação artística, muito mais reduzida se torna a interferência da arte no domínio da religião. Tal seria o lugar original e verdadeiro que à arte deve pertencer como interesse supremo do espírito. Mas tendo a arte o seu antes, também possui, como na natureza e nas esferas finitas da vida, o seu depois, quer dizer, um domínio que ultrapassa o seu modo de apreensão e de representação do absoluto. E que a arte tem em si os seus limites e deve, por isso, ceder o lugar a formas de consciência mais elevadas. Também esta limitação determina o lugar que em geral atribuímos à arte na nossa vida atual. Para nós, a arte já não é a forma mais elevada que a verdade escolhe para afirmar a sua existência. De um modo geral, já há muito que o pensamento deixou de atribuir à arte a representação sensível do divino. Isso aconteceu já, por exemplo, com os judeus e os maometanos e até com os gregos, pois Platão adotava uma atitude de firme oposição aos deuses de Homero e de Hesíodo. Todos os povos que atingem um avançado estádio de civilização chegam, em geral, a um momento em que a arte alcançou qualquer coisa que a ultrapassa. Assim, por exemplo, os elementos históricos do cristianismo, a aparição de Cristo, sua vida e sua morte, proporcionaram à arte, sobretudo à pintura, numerosas ocasiões de se manifestar, o que a própria igreja favoreceu e encorajou; mas quando o movimento em favor do saber e da investigação, e a correia ta exigência de espiritualidade, provocaram a Reforma, também a representação religiosa foi despojada do seu caráter sensível e orientada para a interioridade da alma e do pensamento. Deste modo, o depois da arte consiste em que é inerente ao espírito a exigência de só reconhecer como verídica verdade a que descobre no interior de si próprio. Em seus primórdios, a arte ainda dá uma impressão de mistério, anda provoca uma espécie de pesar que se explica pela incapacidade de as suas produções darem uma representação sensível e exaustiva de todo o conteúdo. E quando este conteúdo obtém, na arte, uma representação completa e total, então o espírito, cujo olhar vê mais além, desvia-se dessa objetividade para reentrar em si. E o que em nossos dias acontece. Poderemos ainda esperar que a arte não cesse de se elevar e aperfeiçoar, mas o certo é que a sua forma já deixou de satisfazer as exigências mais altas do espírito. Pareçam-nos, embora, incomparáveis as imagens dos deuses gregos, tenham a maior dignidade e perfeição as representações de Deus Pai, de Cristo, da Virgem Santa, que a admiração que estas estátuas e imagens nos provocam é impotente para nos obrigar a cair de joelhos. O domínio que, de mais perto, ultrapassa a arte é o da religião. A consciência religiosa adquire a forma da representação, o absoluto transita da objetividade da arte para a interioridade do sujeito e oferece-se à representação de um modo subjetivo, pelo que o coração e a alma, a subjetividade em geral, vêm a constituir o principal momento. Pode caracterizar-se esta progressão da arte para a religião dizendo que a arte só representa um aspecto da consciência religiosa. Se, efetivamente, a obra de arte representa, na forma sensível de um objeto, a verdade ou o espírito, e nessa representação vê uma expressão adequada do absoluto, a religião acrescenta-lhe a piedade que constitui a atitude interior para com o objeto absoluto. A piedade é, sem dúvida, estranha à arte como tal, pois ela provém de o sujeito se deixar penetrar interiormente por aquilo que a arte objetiva mediante a sensibilidade exterior e com esta se identifica de tal modo que a interioridade da representação e a intimidade do sentimento passam a constituir o elemento essencial da existência do absoluto. A piedade é o culto da comunhão na forma mais pura, mais íntima, mais subjetiva; é um culto onde a objetividade se acha, por assim dizer, assimilada e dirigida e que tem conteúdo que, despojado daquela objetividade, fica propriedade do coração e da alma. Por fim, a terceira forma do espírito absoluto é representada pela filosofia. Na religião, Deus aparece, primeiro, à consciência como um objeto exterior, pois tem de se começar por saber o que Deus é, como se revelou e se revela; a religião constitui, assim, um elemento interior que estimula e constitui a comunidade. Mas a interioridade que caracteriza a piedade da alma e da representação não é a forma suprema de interioridade. O pensamento livre é a forma mais pura do saber, o pensamento com o qual a ciência faz seu o conteúdo e assim se torna o culto mais espiritual no sentido de que o pensamento se revela capaz de apropriar e apreender o que, sem isso, só seria o conteúdo da representação e do sentimento. E assim que a arte e a religião acham a sua união na filosofia: une ela, por um lado, a objetividade da arte que, perdendo o que tinha de sensível, desta perda encontra uma compensação na forma mais elevada do objetivo, isto é, no pensamento; une, por outro lado, a subjetividade da religião que se purifica até constituir a subjetividade do pensamento. O pensamento constitui, efetivamente, a mais íntima e autêntica subjetividade, e a ideia verdadeira, que é também a generalidade mais completa e objetiva, só no pensamento se deixa apreender como tal. Temos de nos limitar, aqui, apenas a algumas observações sobre as diferenças que existem entre a arte, a religião e a filosofia. A consciência sensível é, no homem, a primeira em data, a que precede todas as outras. Por isso, nas fases mais antigas da religião, a arte e os seus produtos sensíveis ocuparam um dos mais importantes, senão o mais importante lugar. Só na religião do espírito, Deus vem a ser, enquanto espírito, o objeto de uma consciência mais elevada e é concebido de um modo mais próximo do pensamento, o que constitui, ao mesmo tempo, a comprovação de que as manifestações sensíveis da verdade não se adéquam ao espírito como tal. E agora, que já sabemos qual o lugar ocupado pela arte no domínio do espírito e o que a filosofia da arte ocupa entre as disciplinas filosóficas particulares, resta-nos completar esta parte geral do nosso estudo com o exame da ideia geral da arte. II - IDEIA. REALIDADE. REALIDADE VIVENTE Vamos agora considerar a ideia em suas outras determinações e, especialmente, a ideia como ideal. A ideia é a unidade do conceito e da realidade; o conceito é a alma, e a realidade é o envoltório corporal. O conceito realizado constitui a ideia. É esta a definição abstrata. Mas enganar-se-ia quem imaginasse que o conceito e a realidade unidos na ideia se neutralizam mutuamente como dois corpos químicos que, ao combinarem-se, perdem as qualidades próprias a cada um deles. Não, o conceito é que decide tudo. Na ideia, é ele que representa a unidade e desempenha, por isso, o papel dominante. Ao unir-se-lhe na ideia, o conceito não faz qualquer concessão à realidade porque já é, por si próprio e por força da sua natureza, uma unidade; de si próprio engendra a realidade pela qual e na qual prossegue o seu desenvolvimento, sem deixar de permanecer idêntico a si próprio, sem nada ceder da sua essência. Ao contrário das combinações químicas nas quais o ácido, por exemplo, perde a acidez ao neutralizar-se, o conceito continua a ser o elemento dominante e permanece invariável. A ideia, é, pois, o real em geral e só o real. O real começa por aparecer como possuidor de uma existência externa, como senhor de uma realidade sensível; mas o real sensível só é verídico ou verdadeiramente real quando corresponde ao conceito. E verídico só é então, não no sentido subjetivo, no da correspondência entre as minhas representações e as coisas existentes, mas no sentido objetivo, no da correspondência entre um objeto exterior, ou o eu real, e o conceito. Só na conformidade com o conceito, a existência exterior é verdade; caso contrário, não deixa ela certamente de ser uma manifestação, mas é uma manifestação que, em vez de constituir a realização do conceito, lhe permanece alheia. O conceito implica determinações; será abstrato ou concreto. É concreto quando unidade de objetos diversos, quando as diferenças determinadas que implica nele se acham num estado de oposição definida, quando é a unidade das diferenças que, permanecentes ainda no conceito e não expressas no real, são de natureza subjetiva, ideal. Enquanto esta unidade só existe no conceito, ela constitui a consciência subjetiva do meu eu; a multiplicidade das diferenças está como que comprimida na minha pessoa. Mas, na realidade, os objetos estão separados uns dos outros, não existem em estado de compressão. Nós temos um conceito de algo, e esse conceito só no homem e na consciência tem uma existência livre portanto nos objetos inorgânicos, como o sol, ou nos seres viventes que não sejam o homem, está mergulhado na sua realidade. No conceito como tal as determinações são ainda simples, ideais: assim, aquilo a que chamamos alma, eu, é o próprio conceito na sua livre existência. Sei que trago comigo uma infinidade de representações, de pensamentos, constituindo um conteúdo que, enquanto por si permanece em mim, é desprovido de corpo, não passa de uma coesão puramente material, ideal. Sou um mundo de representações, e este mundo encerra-se no simples eu. Enquanto não vence os limites do eu, o conceito permanece no domínio da idealidade, tomando o eu evidente a si mesmo, refletindo-lhe a sua própria imagem. Mas, na realidade, as determinações estão separadas, apresentam uma grande variedade de formas, são numerosas e parecem independentes umas das outras. Dissemos que o conceito correspondia à alma e, também, que a realidade correspondia ao elemento corporal; mas este elemento existe no espaço o que implica a separação das duas partes. Então, as diferenças reunidas no conceito saem do domínio da idealidade, do eu; cada uma afirma-se independente das demais; as partes umas das outras se alheiam. Exemplo comparativo encontramos na semente de uma árvore. Na semente, nesse ponto ínfimo, nesse corpo minúsculo que é uma unidade onde nenhuma diferenciação existe ou onde só existe uma insignificante diferenciação, aí se acham já implicadas todas as determinações da árvore futura. Toda a árvore está contida, segundo a sua idealidade, na semente. Quando a semente se desenvolve e se transforma em árvore, temos perante nós a realidade da semente; a semente, enquanto embrião, é o conceito, a árvore é a realidade. Todo o conceito da árvore está representado pelo seu embrião; a árvore não passa da explicitação do conceito, da identidade do conceito e da realidade. Una, a vida que circula na árvore, nos ramos, nas folhas e nos frutos, constitui o conceito em estado de realidade viva. O germe contém todas as determinações que, porém, nele existem só em si. O germe contém em potência tudo o que, no espaço, aparece em ato. Este tronco, esta variedade de folhas, de ramos, este perfume das flores, este sabor dos frutos, tudo isto que existe na árvore existia já na semente sem que, todavia, nela o pudéssemos discernir nem recorrendo ao microscópio. Podemos representarmo-nos nas determinações existentes na semente como forças de uma simplicidade extrema. Quanto à natureza do conceito como tal diremos que não é por se opor às diferenças que existem na realidade que ele representa a unidade abstrata; enquanto conceito, é já a unidade de determinações diferenciadas, ou seja, uma totalidade concreta. Deste modo, representações como homem, azul etc., devem começar por ser consideradas, não como conceitos, mas como representações gerais e abstratas que só serão conceito quando contiverem elementos diferenciados em estado de unidade. É esta unidade, que em si própria encontra a sua determinação, que constitui o conceito. Se o conceito da representação azul, enquanto cor, é a unidade específica do claro e do escuro, e se a representação homem compreende uma oposição entre razão e sensibilidade, entre o corpo e o espírito, é preciso não ver nestas representações simples compostos daqueles elementos, supostamente indiferentes um ao outro, mas sim considerá-las como realizantes, de harmonia com o seu conceito, da unidade concreta e mediatizada de tais elementos. A unidade das determinações realizada no conceito possui, porém, um caráter de tal forma absoluto que essas determinações nada são por si sós nem se deixam utilizar isoladamente, o que levaria à rotura da unidade delas. Por isso conclui o conceito todas as suas determinações na forma daqueles ideais, unidade e universalidade que lhe imprimem o caráter de subjetividade que o diferencia do real concreto. As outras determinações próprias ao conceito porque inerentes à sua natureza são: o universal, o particular e o individual. Isoladamente consideradas, todas estas determinações seriam uma pura abstração unilateral. Mas não se acham elas concluídas no conceito enquanto unilaterais, porquanto nele realizam a sua unidade ideal. É, pois, o conceito do universal que, por um lado, a si próprio se nega em favor da determinação e do particular e, por outro lado, suprime esse mesmo particular como negação do universal. É que no particular, que provém de uma diferenciação do universal, este não conduz a nenhum outro absoluto e é obrigado, por isso, a restabelecer a unidade do particular consigo próprio, ou seja, com o universal. Por estes retornos a si próprio, o conceito é uma negação que se não refere a outra coisa, quer dizer, a uma coisa exterior ao conceito, mas que é o resultado de uma autodeterminação do conceito que deste modo mantém, ao negar-se, a sua unidade afirmativa permanecendo ele mesmo. Ele é assim, a verdadeira individualidade, como universalidade encerrada em si própria, com todas as suas particularidades. A melhor demonstração de tal natureza do conceito reside no que anteriormente dissemos acerca da essência do espírito. Graças a esta infinidade em si, o conceito como tal é já por si mesmo uma totalidade, porque implica uma unidade que permanece através e apesar de todas as modificações e, por conseguinte, implica a liberdade que permite que toda a negação seja uma autodeterminação e não uma limitação imposta do exterior. Mas sendo esta totalidade, o conceito já inclui tudo o que se há de manifestar na realidade e que a ideia, graças à mediação, fará regressar à unidade. Aqueles que pensam que a ideia é algo de diferente do conceito, algo de particular, desconhecem a verdadeira natureza tanto da ideia como do conceito. Difere o conceito da ideia por só representar a particularização de um modo abstrato porquanto o que há de preciso e de concreto no conceito é representado pela unidade e pela universalidade ideais que são elementos conceituais. Apesar disso, o conceito ainda continua unilateral pois apresentando-se como sendo uma totalidade, só favorece o livre desenvolvimento para a unidade e para a universalidade. Como, no entanto, tal unilateralidade se não adéqua à sua essência, o conceito suprime-a a fim de permanecer fiel a si próprio. Por isso, nega-se precisamente como unidade e universalidade cuja subjetividade ideal transforma em objetividade real e independente. Em virtude da sua atividade, o conceito apresenta-se, pois, como objetividade. Considerada em si mesma, a objetividade não é senão o conceito na sua realidade, o conceito na forma de particularização independente e de diferenciação real de todos os momentos de que é composto e cuja unidade ideal é a do conceito subjetivo. Ora, como só o conceito deve revestir uma existência real na objetividade, é esta que terá de lhe conferir o sinal de realidade. Mas o conceito, como já dissemos, implica a unidade ideal pela mediação dos seus momentos particulares, tanto mais que a unidade conceitual das particularidades se deve reconstituir no seio das diferenças que na realidade as separam. Consiste a força do conceito em, precisamente, não perder a sua universalidade pela dispersão na objetividade, antes manifestar e salvaguardar a sua unidade através e no seio da própria realidade. Só assim ele representa a totalidade real e verdadeira. Esta totalidade é a ideia que não corresponde apenas à unidade ideal e subjetiva do conceito mas também à sua objetividade que, sem apresentar a menor oposição ao conceito, o relaciona consigo próprio. Do ponto de vista tanto subjetivo como objetivo do conceito, a ideia é um todo e, ao mesmo tempo, é o acordo, incessantemente renovável e renovado, de todas as totalidades parciais, é a unidade mediadora delas. Só assim a ideia é a verdade, toda a verdade. Tudo quanto existe só é, portanto, verdade enquanto ideia, pois só a ideia tem existência verdadeiramente real. Um fenômeno é verdadeiro, não porque possua uma existência exterior ou interior, não porque seja realidade em geral, mas porque a sua realidade corresponde ao conceito. Só então aquilo que é se torna real e verdadeiro. Verdadeiro não no sentido subjetivo da palavra, que é o da conformidade com as minhas representações, mas no sentido objetivo pois o eu ou um objeto exterior, uma ação, um acontecimento, um estado, constituem, pela sua realidade, a realização do próprio conceito. Quando falta esta identidade do real e do conceito, o existente não passa de uma simples aparência onde se objetiva, não o conceito total, mas apenas um seu aspecto abstrato que se torna independente da unidade e da totalidade e chega a adotar uma atitude de oposição para com o verdadeiro conceito. Por isso a única realidade conforme com o conceito é a realidade verdadeira, a que manifesta a própria ideia. Ao dizermos que a beleza é ideia, queremos dizer que beleza e verdade são uma e a mesma coisa. Com efeito, o belo tem de ser verdadeiro em si. Mas, observando mais atentamente, deparamos com uma diferença entre o belo e a verdade. A ideia é verídica porque é pensada como tal em virtude da sua natureza e do ponto de vista da sua universalidade. O que então se oferece ao pensamento não é a ideia na sua existência sensível e exterior, mas no que tem de universal. Contudo, a ideia também se deve realizar exteriormente e adquirir uma existência definida enquanto objetividade natural e espiritual. A verdade como tal também existe, quer dizer, também se exterioriza. Desde que, assim exteriorizada, a verdade se oferece à consciência e o conceito fica inseparável da manifestação exterior, a ideia não só é verdade como também é beleza. O belo define-se, pois, como a manifestação sensível da ideia. O sensível e a objetividade não mantêm, na beleza, qualquer independência; ambos têm de abandonar a imediateidade do seu ser, visto que se apresentam como existência e objetividade do conceito, como uma realidade que representa o conceito formando um todo com a sua objetividade, quer dizer, uma manifestação do conceito. O intelecto é incapaz de apreender a beleza por isso que, em vez de procurar atingir aquela unidade, mantém separados e independentes os diversos elementos que a constituem. Sendo a realidade coisa diferente da idealidade, sendo o sensível coisa diferente do conceito e diferentes sendo o objetivo e o subjetivo, não deverão, segundo o intelecto, estar reunidas tais oposições. Por isso o intelecto persevera sempre no finito, no unilateral, na não verdade. O belo, contrariamente, é por si mesmo infinito e livre. Embora possa ter um conteúdo particular e, por conseguinte, limitado, não deixa esse conteúdo de aparecer como uma totalidade infinita em si e de ser dotado de uma existência livre: é que sempre o belo é o conceito que, longe de contraditar a sua objetividade opondo-lhe uma finitude abstrata e unilateral, se confunde com essa objetividade e se torna, graças à unidade imanente, infinito em si. Do mesmo modo, por animar a existência real a que deve o manifestar-se, o conceito goza de uma liberdade que usa para si. Não permite, com efeito, que a parte exterior do belo obedeça a leis que lhe sejam próprias, determina a sua articulação com o aspecto exterior, e graças a isso realiza o acordo consigo mesmo, acordo que constitui a essência do belo. Mas é a subjetividade, a alma, a individualidade que constitui o elo deste acordo e representa a força que o mantém vigente. Por tais motivos, e considerado nas suas relações com o espírito subjetivo, o belo não existe nem para a inteligência privada de liberdade e perseverante na sua finitude nem para o querer também finito. Enquanto dotados de inteligência finita, impressionam-nos os objetos exteriores e interiores, observamo-las, recebemos deles uma percepção sensível, deixamo-los alcançar a nossa representação, a nossa intuição, as abstrações até do nosso intelecto pensante que os transforma em generalidade abstrata. O caráter finito e não livre de todas estas operações provém da consideração dos objetos como independentes. Por esse motivo, nós vamos atrás dos objetos, deixamo-los, por assim dizer, andar e mantemos presa a nossa representação à crença nos objetos, persuadidos como estamos de que os objetos só podem ser corretamente percebidos quando nos comportamos em passividade para com eles e reduzimos toda a nossa atividade ao trabalho formal da atenção, quando permanecemos numa abstenção negativa, perante o esforço da imaginação e nos despojamos de todo o preconceito, de toda a ideia preconcebida. Entretanto, ao atribuir-se esta liberdade aos objetos, recusa-se qualquer liberdade à apreensão subjetiva. Com efeito, o conteúdo torna-se, para a última, em dado, de modo que a autodeterminação subjetiva é substituída pela simples recepção, simples percepção da objetividade existente. Assim se pretende que a verdade só será atingida após a submissão da subjetividade. Identicamente, embora em sentido inverso, se passam as coisas no caso do querer. No querer, os interesses, os fins, as intenções, as decisões residem no sujeito que procura afirma-los em contrariedade com o ser e as propriedades dos objetos. Tais fins, intenções, decisões e interesses só se podem realizar de harmonia com a vontade ao suprimir ou modificar os objetos, elaborá-las, dar-lhes certa forma, anular-lhes as qualidades ou deixar estas agir umas sobre as outras como, por exemplo, a água sobre o fogo, o fogo sobre o ferro, o ferro sobre a madeira e assim sucessivamente. Fica-se, pois, em presença de objetos que perderam a independência, que o sujeito subordinou a si considerando-os e tratando-os como utilidade, quer dizer, como se o conceito e a finalidade deles não estivesse em si próprios mas no sujeito, de modo que o seu caráter essencial consiste em estarem ao serviço de fins subjetivos. Os dois termos da relação trocaram as posições: os objetos perderam a liberdade, os sujeitos ficaram livres. Na realidade, quer se trate da vontade ou do intelecto, ambos os termos da relação são igualmente finitos e unilaterais, e não passa de uma pretensa liberdade a de um e de outro. O sujeito é finito e não livre, em teoria, por causa dos objetos pretensamente independentes, na prática, por causa do caráter unilateral, da luta e da contradição que existem quer entre os fins internos quer entre os impulsos e as paixões provocados pela circunstâncias exteriores e a que é preciso acrescentar a resistência oferecida pelos objetos. É na separação e na oposição dos dois termos - objetos e subjetividade - que se vê o princípio em que assenta essa relação e que é considerado como o verídico conceito. Idênticas finitude e ausência de liberdade caracterizam o objeto nos dois casos que apreciamos. Em teoria, e pense-se o que se pensar, a sua independência é apenas aparente. Na objetividade, e enquanto unidade e universalidade subjetivas, o conceito não existe em e para os objetos. É-lhes exterior. E dada tal exterioridade dos conceitos, cada objeto existe, por conseguinte, como simples particularidade apenas; dirige-se para o exterior pela sua variedade, e, sob a influência de inumeráveis circunstâncias, está exposto à transformação, à violência, ao desaparecimento devido à ação que sobre ele exercem os demais objetos. Na prática, esta dependência dos objetos é expressamente afirmada, e por isso a resistência deles à vontade é relativa no sentido de que os objetos não possuem a força necessária para vencer e, em suma, para afirmar a sua autonomia. Estes dois pontos de vista coincidem na consideração dos objetos como belos. O que cada um deles tem de unilateral fica eliminado na aplicação quer ao sujeito quer ao objeto. E suprimidas ficam, por conseguinte, a finitude e a liberdade de ambos. Do ponto de vista teórico, o objeto deixa, com efeito, de ser considerado como algo que só existiria isolado e que teria, portanto, o seu conceito subjetivo fora da sua objetividade; deixa de ser considerado como tendo na sua realidade particular os mais variados comportamentos, dispersos nas direções mais diversas ao sabor das circunstâncias exteriores: o objeto belo deixa aparecer, no que é e tal como é, o próprio conceito, e apresenta-se assim em toda a sua unidade vivente e subjetiva. Por isso, renunciou o objeto à sua orientação para o exterior, pôs termo à sua dependência perante outros objetos e transformou, para quem o contemple, a sua finitude sem liberdade numa livre infinitude. Por sua vez, o eu deixa de constituir, em relação ao objeto, uma simples abstração, suscetível apenas dos esforços da atenção e das intuições sensíveis, e própria para observar e transformar intuições e observadas isoladas em pensamentos abstratos. Ele próprio se concretiza no objeto, realizando a unidade do conceito e do objeto, dando a estes elementos uma forma mais concreta, fundindo o que estava separado e, por isso, abstrato; o eu e o objeto. Do ponto de vista prático, a contemplação do belo implica, como dissemos, aquilo a que se pode chamar a fuga do desejo; o sujeito renuncia aos fins dirigidos contra o objeto que passa a considerar como autônomo, como um fim em si. Deste modo se suprime esse caráter puramente finito que obriga a considerar o objeto como um meio útil em vista de fins exteriores e que, só lhes podendo opor uma resistência sem liberdade, era obrigado a curvar-se perante esses fins, a fazê-los seus. Desaparece, ao mesmo tempo, a atitude sem liberdade do sujeito que renuncia à distinção entre intuições subjetivas etc., e materiais ou meios e que, na realização de fins subjetivos nos objetos, deixa de se ocupar da relação finita do simples dever-fazer, pois tem perante si o conceito e o fim perfeitamente realizados. Eis por que a contemplação do belo é um ato liberal, uma apreciação dos objetos como livres e infinitos em si, independentemente de possuí-los e utilizar em vista de exigências e intuições finitas. Pela mesma razão, o objeto, enquanto belo, aparece-nos ao abrigo de qualquer violência nossa e fora do alcance de qualquer hostilidade das coisas exteriores que nada podem contra ele. É, com efeito, próprio da essência do belo que o objeto por ele qualificado fique liberto de influências exteriores: tanto o seu conceito, fins e alma como a sua determinação, variedade e realidade exterior em geral têm origem nele mesmo visto que a verdade sua é extraída da sua unidade imanente e do acordo entre o seu conceito e o seu ser manifesto. Como, por outro lado, o conceito constitui o elemento concreto, a sua realidade surge, por sua vez, como uma formação perfeita; nesta, todas as parte formam, assim, uma unidade ideal dotada de uma alma. O acordo entre o conceito e a manifestação exterior corresponde a uma verdadeira interpenetração. Por isso, a forma e a figura se não apresentam como separadas da substância exterior ou como produções mecânicas ao serviço de fins heterogêneos, mas sim como formas imanentes à realidade, consoantes com o conceito desta e que se exteriorizam a si mesmas. Todavia, embora os aspectos particulares, as partes, os membros dos objetos belos se reúnam para constituírem e manifestarem a unidade do seu conceito, isso não impede que essa reunião seja tal que as partes componentes mantenham, umas para com as outras, a aparência de uma liberdade autônoma, isto é, que elas não só constituam uma unidade ideal análoga à do conceito como tal mas ainda exponham, por um dos aspectos, a sua realidade autônoma. O objeto qualificado de belo tem de, simultaneamente, estar submetido à necessidade postulada pelo conceito, que consiste na interdependência dos seus aspectos particulares, e ser dotado de certo grau de liberdade que revela esses aspectos particulares como existentes por si próprios e não só por comporem a unidade. A necessidade como tal manifesta-se nas relações entre os aspectos particulares encadeados de tal modo que cada um deles evoca imediatamente o outro. Esta necessidade não pode, sem dúvida, faltar nos objetos considerados como belos, mas em vez de neles aparecer na forma mesma da necessidade, dever-se-á encobrir sob a vestidura de uma acidentalidade não intencional. Com efeito, se assim não acontecesse, as particularidades reais perderiam o privilégio de serem impostas pela sua própria realidade e apareceriam apenas como servidoras e componentes da unidade ideal a que dariam uma submissão abstrata. Graças à liberdade e à finitude inerentes tanto ao conceito do belo como ao belo objetivo e à sua contemplação subjetiva, o belo sai da esfera relativa das condições finitas para entrar no reino da ideia e da verdade. III - A IDEIA REALIZADA NO MUNDO EXTERIOR. O BELO NA NATUREZA O belo é a ideia concebida como unidade imediata do conceito e da sua realidade quando esta unidade se apresenta na sua manifestação real e sensível. Deste ponto de vista, impõe-se, porém, uma distinção quanto ao modo como o conceito, para devir ideia, se realiza no mundo da natureza. Em primeiro lugar, observe-se que o conceito pode mergulhar tão profundamente na objetividade que, em vez de aparecer como uma unidade subjetiva ideal, se perde, como que inanimado, na materialidade sensível. Na natureza inorgânica o conceito confunde-se inteiramente com a existência. Admitindo, por exemplo, que é o peso específico que constitui conceito do outro, deveria eu poder deduzir também dele a cor amarela, odor metálico etc.; mas o conceito está completamente mergulhado na realidade. Na natureza orgânica, pelo contrário, o conceito realiza-se no sentido da animação, da sensação, de certo modo de ser para si. Não dizemos que o outro tem uma alma, mas dizemo-lo do animal. No animal, o conceito, enquanto alma, está realizado no sentido daquele ser para si. Há aqui uma interioridade que na vida animal reveste a forma da sensação, da relação interna consigo mesmo, de algo que difere da realidade e no seio dela se distingue. No sistema solar já nós podemos encontrar diferenças semelhantes. Se admitíssemos que o sol, sendo o centro, é também a alma deste sistema, os corpos lunares, os planetas e os cometas seriam explicitações, ramificações dessa alma; como, porém, o sol difere daqueles corpos, como o sistema solar inclui diferenças absolutas sem qualquer unidade entre elas, o sol não pode ser considerado uma alma, uma ideia. Cada membro do sistema é tão independente como o próprio sol. Por outro lado, esses membros são o que são em virtude do lugar definitivo que ocupam no conjunto do sistema. Seus movimentos específicos e suas propriedades físicas podem ser deduzidas das posições e relações que têm entre si com o sol e pelas quais realizam aquela unidade interna que lhes permite ligarem-se uns aos outros e manterem o conjunto das suas existências particulares. Ora, o conceito não se reduz a tal unidade de existências particulares autônomas. Não só as diferenças reunidas como ainda a própria unidade têm de ser reais. A unidade deve elevar-se acima da separação que há entre os corpos objetivos particulares e adquirir um caráter independente, real e corporal. No sistema solar, por exemplo, o sol depende da unidade do sistema, unidade que domina as diferenças reais que o sistema implica. E o que há de insatisfatório nesta forma de unidade é resultar ela apenas das relações entre corpos particulares independentes e ser, além disso, representada por um dos corpos do sistema que se opõe aos outros e às suas diferenças reais. Se o quiséssemos considerar como alma do sistema, o sol existiria como corpo independente dos outros membros que iriam aparecer como a explicitação daquela alma. O sol representa assim um momento apenas do conceito, o da unidade entre particularidades reais, ou seja, o de uma unidade em si, portanto abstrata. Com efeito, a identidade do sol é determinada tão só pelas suas propriedades físicas - é um corpo que ilumina, um corpo luminoso, nada mais - e isso confere à sua identidade um caráter abstrato. A luz não passa de uma aparência simples na qual não há diferenças nem distinções. Destarte, se no sistema solar o conceito se tornou real com a explicitação da totalidade das suas diferenças e com o aparecimento em cada corpo de um dos momentos do conceito, não deixa por isso de continuar o conceito mergulhado na sua realidade sem se apresentar como a idealidade dela, como o seu ser para si interno. Ora, a verdadeira natureza do conceito exige que as diferenças reais, ou seja, a realidade das diferenças independentes e da unidade também objetivamente independente, possam reintegrar-se numa só e mesma unidade, num todo que, se permite subsistirem as explicitações particulares, não deixa, no entanto, de dominar a independência delas e a procura suprir mediante o retorno das diferenças a uma unidade subjetiva, ideal e mediante a atribuição de, por assim dizer, uma alma. Então, as particularidades não só ficam justapostas, como ainda deixam de ser partes, apresentando entre si tais ou tais relações, para serem membros; isto é, deixam de existir cada uma para si e adquirem uma existência verdadeira naquela unidade ideal. Só nesta articulação orgânica se acha realizada a unidade conceitual, ideal, tabernáculo e alma imanente dos membros; e em vez de continuar mergulhado na realidade, o próprio conceito apresenta-se como a identidade e universalidade internas em conformidade com a sua essência e a sua natureza. Só este terceiro modo de manifestação natural corresponde às exigências da ideia; e a ideia, enquanto natural, representa a vida. A natureza inorgânica inanimada não tem relações com a ideia; só a natureza vivente pode representar a sua realidade. Em primeiro lugar, a realidade das diferenças implicadas no conceito é efetivamente mais acentuada no mundo vivente; em segundo lugar, o mundo vivente contém a negação daquelas diferenças e da sua realidade a que preside a subjetividade ideal; em terceiro lugar, enfim, o mundo vivente guarda o princípio vital enquanto manifestação afirmativa do conceito como tal na corporeidade real, enquanto forma infinita com o poder de se manter através de seja que conteúdo for. Se interrogarmos a nossa consciência acerca do que seja o ser na vida, depararemos, de um lado, com a representação do corpo e, de outro lado, com a da alma. A uma e a outra atribuímos nós propriedades particulares e diferentes. Esta distinção entre a alma e o corpo também possui uma grande importância filosófica e temos de aceitá-la tal como é. Não é, porém, menor o interesse que tem para o conhecimento a unidade do corpo e da alma que levantou sempre as maiores dificuldades à compreensão racional. Ora é, precisamente, graças a esta unidade que a vida constitui a primeira manifestação natural da ideia. E devemos conceber a unidade da alma e do corpo, não como uma simples ligação de ambos, mas de modo mais profundo. É preciso ver no corpo e na respectiva organização, a exteriorização da organização sistemática do próprio conceito que, nos membros do organismo vivo, confere às suas determinações uma existência natural e exterior, analogamente ao que acontece num plano menos elevado, com o sistema solar. Ora o conceito eleva-se, no interior dessa existência real, até a unidade ideal de todas as suas determinações, e é esta unidade que constitui a alma. Essa é a unidade substancial e a generalidade que tudo abrange, e ao mesmo tempo que revela uma relação simples consigo própria, representa também um ser para si subjetivo. É preciso atribuir à unidade do corpo e da alma este sentido superior. Não constituem eles entidades diferentes que se encontraram, mas ambos formam a mesma entidade e implicam as mesmas determinações; e assim como a ideia em geral só pode ser concebida sob a forma do conceito na sua realidade, o que a faz corresponder às diferenças entre ambos e à respectiva unidade, assim também a vida só pode ser considerada e conhecida como unidade do corpo e da alma. Na forma da sensação se manifesta a unidade simultaneamente subjetiva e substancial da alma no interior do corpo. A sensação experimentada por um organismo vivente não pertence apenas, e com total independência, a um aspecto particular do organismo mas constitui a simples unidade ideal do organismo inteiro. Ela vai atingir todos os membros, afetar centenas e centenas de corpúsculos e, todavia, a sensação não é a de milhares de órgãos e de membros mas a de um único sujeito. Dotada de vida, a natureza orgânica consegue resolver, mediante uma unidade mediatizada, a intrínseca diferença entre a existência real dos membros e a alma que neles reside apenas para si própria, assim se situando num plano superior ao da natureza inorgânica; é que só o vivente é a ideia, e a ideia é a verdade. Até no orgânico está, decerto, sujeita esta verdade a perturbações, nomeadamente nos casos em que o corpo não realiza completamente a sua idealidade e a sua condição, que lhe advêm da presença de uma alma, como se observa, por exemplo, nas doenças. Em vez de reinar de modo absoluto, o conceito partilha, então, o poder com outras entidades. Encontramo-nos, nesses casos, perante uma vida má e diminuída mas vida que ainda merece esse nome pois o desacordo do conceito e da realidade é, não completo, mas relativo. Se, com efeito, todo o acordo tivesse desaparecido já, se o corpo estivesse totalmente privado da sua verdadeira organização e da sua verídica idealidade, então estaríamos em presença, não da vida, mas da morte, da morte que transforma em partes independentes o que a ação da alma mantém numa unidade indivisível. Dizer, contudo, que a alma constitui a totalidade do conceito enquanto subjetividade ideal, que o corpo constitui essa mesma totalidade, mas, pelo contrário, enquanto manifestação e separação sensíveis de todas as partes particulares, e que, todavia, ambos, no estado vivente, se encontram reunidos numa só unidade - é enunciar uma proposição contraditória. Com efeito, não só a unidade ideal não é aquela separação sensível que permite a cada particularidade existir em estado de independência encerrada na singularidade, como é precisamente o contrário desta realidade exterior. Ora afirmar a identidade de duas coisas opostas é enunciar uma proposição contraditória. Mas aqueles que pretendem que é inexistente o que em si tem uma contradição na forma da identidade de contrários, afirmam implicitamente a inexistência do que é vivo porque a força da vida ou, mais ainda, o poder do espírito consiste precisamente em afirmar em si a contrariedade, em a suportar e a ultrapassar. O processo da vida consiste nisso precisamente de afirmar e resolver a contrariedade entre a unidade ideal e a separação real dos membros, e toda a vida é um processo. O processo vital desenvolve uma dupla atividade: por um lado, assegura a existência sensível das diferenças reais de todos os membros e de todas as determinações do organismo; por outro lado, imprime a esses membros e determinações uma idealidade geral que os vivifica quando eles manifestam alguma tendência para se isolar e mobilizar na sua independência de uns em relação aos outros. Nisso reside o idealismo da vida. Na verdade, nem só a filosofia é idealista, pois a natureza enquanto vida é o que é a filosofia idealista no domínio espiritual. Na união, numa só, daquelas duas atividades, ou seja, a realização das determinações do organismo, por um lado, e a idealização das determinações reais mediante a sua fusão numa unidade subjetiva, por outro lado, nisso reside o processo completo da vida de que não temos outras formas a considerar. Todos os membros do organismo devem à união daquelas duas atividades a inalterável conservação e a idealidade vivificante. Manifestam os membros esta idealidade ao considerarem a sua idealidade viva, não como indiferente, mas como algo que constitui a substância onde e pela qual conservam a sua individualidade particular. Nisso reside a principal diferença entre a parte de um todo e o membro de um organismo. As partes particulares de uma casa - as pedras, as janelas etc. - permanecem o que são, quer pertençam ou não pertençam a uma casa; a associação com outras partes é-lhes indiferente, e para elas, o conceito não passa de uma forma puramente exterior que não vive nas partes reais para as elevar até a idealidade de uma unidade subjetiva. Pelo contrário, os membros de um organismo, embora possuam decerto uma realidade exterior, têm a própria e íntima essência no conceito que lhes não é imposto exteriormente a título de força unificadora mas que, só ele, lhes assegura a existência. Por isso possuem os membros de um organismo uma realidade que não é a das pedras de um edifício ou a dos planetas, das luas, dos cometas no sistema planetário; não, a sua existência é uma existência afirmada pela ideia como inerente ao organismo independentemente de toda a realidade. Mão, por exemplo, que seja amputada, perde a existência independente, deixa de ser o que era no organismo; a sua vivacidade, movimentos, aspecto, forma etc. mudam, ela sofre a decomposição e toda a sua existência se esvanece, porque a mão só pode existir como membro do organismo, porque só é real quando integrada na unidade afirmada pela ideia. Consiste a realidade superior no organismo em que o real, o positivo é negado e afirmado pela ideia, e a idealidade, por sua vez, lhe assegura o fator essencial da permanência das diferenças reais. Esta é a razão por que a realidade que a ideia adquire enquanto dotada de vida natural é uma realidade fenomenal. Fenômeno significa, efetivamente, a existência de uma coisa, existência que, todavia, não tem em si a sua origem e é, ao mesmo tempo, afirmada negativamente no seu ser manifesto. Mas a negação dos membros no seu ser manifesto exterior e imediato, não possui uma significação apenas negativa enquanto atividade idealizante: implica também uma afirmação como tal. Temos considerado até agora o real particular, na sua particularidade fechada, como algo de afirmativo. Esta independência é, porém, negada no vivente, e só a unidade afirmada pela ideia tem o direito e o poder da afirmação no seio do organismo corpóreo. Tal idealidade, afirmativa até na negação, é a alma. Se, portanto, é a alma que se manifesta no corpo, esta manifestação é também afirmativa. Afirma-se, sem dúvida, como um poder oposto à independência e ao isolamento dos membros, mas é, ao mesmo tempo, a força organizadora que interioriza e idealiza quanto se manifesta exteriormente, sejam formas ou membros. Assim, aquilo que aparece exteriormente é esta interioridade positiva: o exterior que permanecesse exterior apenas, seria abstração e unilateralidade. No organismo vivente, nós deparamos com um exterior onde se revela o interior, pois o exterior manifesta-se como sendo o interior que é seu conceito. Aliás, a este conceito pertence a realidade em que, enquanto conceito, se manifesta. E dado que o conceito como tal é, na objetividade, a subjetividade que se refere a si mesma, e que para si mesma existe na sua realidade, conclui-se que a vida, por sua vez, só existe na forma do vivente, como sujeito individual. Foi a vida que, primeiro, atingiu este ponto de união negativo porquanto o ser para si subjetivo só se afirma como mais real mediante a idealização das diferenças reais, o que, ao mesmo tempo, implica a unidade subjetiva do ser para si. Muito importa salientar este aspecto da subjetividade. A vida só é real na forma da subjetividade vivente. Ao interrogarmo-nos sobre aquilo que permite reconhecer a ideia da vida no interior dos indivíduos viventes reais, podemos obter a resposta seguinte. Em primeiro lugar, o ser em vida deve ser real enquanto totalidade de um organismo corpóreo que, em segundo lugar, aparece, não como algo de imobilizado, mas como um processo ininterrupto de idealização, processo pelo qual, precisamente, se manifesta a alma vivente. Em terceiro lugar, não é esta totalidade determinada por fatores extrínsecos nem do exterior recebe as suas variações, mas forma-se por impulso interior e a fatores internos subordina o seu processo, assim se referindo a si próprio e em si próprio encontrando o seu fim enquanto unidade subjetiva. Tal independência, tal liberdade do ser em vida subjetivo manifesta-se, sobretudo, nos movimentos espontâneos. Os corpos inanimados da natureza inorgânica possuem uma espacialidade imutável; identificam-se com o lugar que ocupam e a que ficam ligados se não forem movidos por um agente exterior. Seus movimentos não provêm, efetivamente, de si próprios. E quando produzem movimentos, aparecem determinados por uma ação exterior a que procuram reagir. Até o movimento dos planetas etc., embora pareça não resultar de impulso exterior e alheio aos corpos, está ligado a uma lei fixa e à sua abstrata necessidade. Pelo contrário, o animal vivente nega, nos movimentos livres e espontâneos, a sua dependência de um lugar determinado e caracteriza tais movimentos por um esforço de contínuo livramento da dependência daquela determinação. Nesses movimentos se verifica também a supressão, decerto relativa, da abstração de certas formas do movimento: sentido, velocidade etc. Além disso, em si, no seu organismo, possui o animal uma espacialidade sensível e o ser em vida consiste nos movimentos espontâneos interiores a essa realidade; a circulação do sangue, a mobilidade dos membros etc. O movimento não é, porém, a única manifestação do ser em vida. A livre emissão da voz animal já constitui uma forma mais alta da subjetividade animada; não a têm os corpos inorgânicos que só por impulso exterior podem emitir ruídos e sons. Mas a mais impressionante manifestação da atividade idealizante reside, de um lado, na autodelimitação do indivíduo vivente perante a realidade exterior e, de outro lado, no afeiçoar para si próprio o mundo exterior, quer, teoricamente, pela vista etc., quer, praticamente, pela submissão dos objetos exteriores que utiliza, que assimila na nutrição, em suma, pela reprodução incessante, enquanto indivíduo, à custa daquilo que não é ele. Fazem-no os organismos mais desenvolvidos com intervalos maiores ou menores conforme as suas exigências, a sua rapidez de absorção e o grau de saciedade. Tais são as atividades pelas quais se manifesta o conceito do ser em vida nos indivíduos animados. Sem constituir apenas um produto da nossa reflexão, esta idealidade existe objetivamente no próprio sujeito vivente cujo ser-manifesto merece, por isso, ser qualificado de idealismo objetivo. Origem desta idealização, a alma manifesta-se ao reduzir ao estado de simples aparência a realidade só exterior do corpo, para que ela própria se afirme objetivamente na corporeidade. IV - A VIDA NATURAL E O BELO Enquanto ideia sensível e objetiva, a vida que anima a natureza é bela, na proporção em que a verdade, a ideia, como primeira forma natural, reveste diretamente a ideia da vida no íntimo de uma realidade particular e adequada. Mas apesar desta encarnação direta e sensível da vida, o belo natural vivente deixa de ser belo para e em si quando não é produto de si próprio e não existe em virtude da sua aparência bela. Só para os outros, quer dizer, para nós, para a consciência que apreende a beleza, é bela a beleza natural. A questão que se formula é, pois, a de saber como e por que o ser em vida nos aparece como belo no seu ser-manifesto imediato. Quando se consideram as manifestações e o comportamento do ser vivente, o que logo nos impressiona é o movimento voluntário. E considerado este movimento como movimento em geral, não passa ele da liberdade completamente abstrata de mudança de lugar, mudança que, no caso do animal, parece arbitrária e promovida pelo acaso. Também a música e a dança implicam movimentos; mas estes não são arbitrários nem de acaso: são em si mesmos regulares, marcados, definidos, concretos e assim nos aparecem sempre, até quando abstraímos do significado de que eles são a expressão bela. Se, porém, dermos um passo mais e virmos no movimento animal a expressão de uma atividade racional e de uma cooperação de todas as partes, o juízo que assim formulamos não é mais do que um resultado do nosso intelecto. O mesmo acontece também quando refletimos no modo de o animal satisfazer as suas exigências, ao procurar, devorar e digerir a alimentação, ao efetuar tudo o que precisa para a sua conservação. E que, uma vez mais, é preciso decidir entre duas coisas: ou o aspecto exterior de exigências particulares é a sua satisfação arbitrária e acidental (e, então, a atividade interior do organismo escapa à nossa atenção); ou todas essas atividades, todas essas formas de exteriorização se tornam objeto do intelecto que se esforça por apreender aquilo que nelas haja de racional: a cooperação entre os fins internos do animal e os órgãos que presidem à realização deles. Nem a percepção sensível dos desejos ocasionais, dos movimentos arbitrários e das satisfações, nem a compreensão intelectual da finalidade do organismo bastam para conferir à vida animal a representação do belo natural: a beleza é que caracteriza uma figura dada, quer em repouso quer em movimento, independentemente da adaptação de exigências, independentemente do que possa haver de momentâneo e ocasional nos próprios movimentos. Mas a beleza só se pode exprimir na forma, porque só ela é a manifestação exterior através da qual o idealismo objetivo do ser vivente se oferece à nossa intuição e a nossa contemplação sensíveis. O pensamento apreende este idealismo no conceito dele, conceito que faz seu graças a sua generalidade, ao passo que a natureza é considerada através da realidade aparente. E esta realidade é representada pela configuração exterior do organismo articulado que, para nós, é, simultaneamente, o que aparece, porquanto a variedade puramente real dos membros componentes do organismo deve ser considerada como aparência na totalidade animada da figura. Ao conceito do ser em vida, tal como acabamos de o definir, ainda se extraem as particularidades seguintes desta aparência: a forma é caracterizada pela sua extensão espacial, sua delimitação, seu aspecto, forma, cor, movimentos etc., e por uma multidão de outros pormenores do mesmo gênero. Mas se o organismo, que contém estas diferenças, se manifestar como animado, é seguro que ele não extrai a sua verídica existência de tal variedade e de tais formas. Se possui uma existência verídica, é porque as suas diferentes partes, que são para nós coisas sensíveis, se reúnem para formarem um todo, para serem membros de um indivíduo que é uno, de sorte que as particularidades que o compõem, embora diferentes umas das outras, realizam um acordo que as aproxima e as faz convergir para um mesmo fim. Portanto, esta unidade deve começar por apresentar o caráter de uma identidade não intencional das diferenças e, por conseguinte, nada ter de uma finalidade abstrata; também as suas partes não devem aparecer nem como visando ou servindo certos fins, nem despidas das diferenças que as separam do ponto de vista da estrutura e da configuração. Em segundo lugar, os membros assumem, para quem os contempla, a aparência da acidental idade, no sentido de nenhum deles apresentar a determinação de outro e, se assim fosse, tal ou tal membro possuir tal ou tal figura por ela ser a de um outro, como acontece, por exemplo, nas coisas submetidas a um regra única. Nas coisas desse modo regradas, uma determinação abstrata preside a configuração, a grandeza etc. de todas as partes. As janelas de um edifício, por exemplo, ou pelo menos as de um andar, são do mesmo tamanho; os soldados de um regimento de tropas regulares usam todos o mesmo equipamento. Nestes casos, as partes particulares do vestuário, na sua forma, cor etc., nada têm de acidental e cada vestuário possui uma forma definida porque essa é a forma de um outro ou dos outros. Nem a diferença nem a autonomia particular das formas encontram aqui ocasião de se afirmarem. É isso que não acontece com um indivíduo orgânico. Neste, as partes diferem entre si: o nariz é diferente da testa, a boca das faces, o peito do pescoço, os braços das pernas etc. Ora, como, para quem os contempla, não há membro que tenha a figura de outro, mas todos possuem a sua forma particular que não é determinada de um modo absoluto por outro membro, cada um deles aparece como autônomo em si e, por conseguinte, livre e acidental em face dos demais, visto que a coesão material não abrange a forma como tal. Mas apesar desta autonomia, deve existir, em terceiro lugar, um nexo interno, uma unidade que não seja puramente exterior, espacial, temporal e quantitativa como nas coisas submetidas a uma regra única mas sem que isso implique o desaparecimento dos traços particulares. À intuição não se impõe esta identidade de um modo sensível e direto, como o fazem as diferenças existentes entre os membros, e não deixa ela de ser por isso uma necessidade secreta, oculta, interna que promove o acordo entre os membros e as suas formas. Ora, esta unidade exteriormente invisível mas necessária e que, conforme acabamos de dizer, escaparia à intuição, só poderia ser apreendida pelo pensamento. Mas o próprio belo escaparia, então, à nossa intuição e a presença do belo não representaria para nós a ideia como realizada. Por isso, a unidade também se deve manifestar exteriormente sem que, todavia, postulada pela ideia que a anima, ela não seja apenas sensível e espacial; aparece no indivíduo como idealidade geral dos seus membros, idealidade que constitui a base, o suporte, o sustentáculo do sujeito vivente. Sob a forma da sensação se manifesta esta unidade na vida orgânica. É na sensação e na expressão dela que a alma se manifesta enquanto alma. Com efeito, a simples justaposição dos membros é, para a sensação, um fato oposto à verdade, e a multiplicidade das formas não existe para a idealidade subjetiva dela. A sensação supõe, decerto, a variedade, a formação particular e a articulação orgânica das partes mas por se manifestar, através desta última, a alma que sente, isso implica que a unidade interna e onipotente contenha justamente o desaparecimento das autonomias puramente reais que representam, não já elas mesmas, mas sim o elemento que recebem da alma sensível. A expressão da alma sensível não basta, porém, para nos fornecer a certeza nem de uma coesão necessária dos membros particulares nem da identidade necessária entre a organização real e a unidade subjetiva que a sensação nos revela. Todavia, se é a configuração como tal que promove esse acordo interno e bem assim a necessidade dele, isso pode também provir do hábito, contraído por aqueles membros, de estarem em justaposição, o que criaria, por sua vez, certo tipo de variedades repetidas. Mas também o hábito não é mais do que uma necessidade puramente subjetiva. Baseados neste critério, poderemos, por exemplo, considerar feios animais que não possuem um organismo semelhante aos que estamos habituados a ver ou que contradizem a nossa experiência corrente. Qualificamos, assim, de esquisitos os organismos de animais que têm os seus órgãos reunidos de um modo diverso daquele que nos é familiar; é o caso, por exemplo, dos peixes cujo corpo além de exageradamente volumoso, acaba em forma de cauda ou têm olhos situados um ao lado do outro na mesma face da cabeça. Mais habituados estamos a certos desvios dos vegetais embora alguns nos possam parecer extravagantes como, por exemplo, o cacto com os seus espinhos e a forma angulosa dos ramos. No entanto, quem possuir largos conhecimentos de história natural e guardar na memória o maior número possível de tipos de associação, nada certamente encontrará de insólito em tais casos. Uma mais profunda penetração no modo de associação das partes poderá, ainda, criar a possibilidade e a aptidão para reconstituir, à vista de um só membro, a forma total a que ele pertence. Isso deu a celebridade a Cuvier que, a partir de um só osso, fóssil ou não, era capaz de determinar a espécie animal que se devia atribuir ao indivíduo a que pertencera aquele osso. A este caso se aplica propriamente o ex ungue leonem; a observação das unhas e dos fêmures permite reconhecer a estrutura dos dentes que, por sua vez, possibilita reconstituir a configuração das ancas, a forma da coluna vertebral etc. Dentro deste modo de julgar, o reconhecimento de um tipo já não é apenas uma questão de hábito mas também de reflexão e de intervenção do pensamento puro. Cuvier, por exemplo, era guiado nas suas reconstituições pela ideia de que uma determinação e uma propriedade gerais se devem manifestar, e formar-lhes a unidade, em todas as partes apesar das diferenças que as separam. De semelhante determinação geral temos um exemplo na carnivoridade que impõe a sua lei à organização de todas as partes. Um animal carnívoro precisa ter dentes, ossos etc., diferentes dos de um animal herbívoro; um animal de presa não pode arrastar as suas vítimas com cascos, mas precisa de garras. Por conseguinte, uma só determinação preside, neste caso, à forma particular e ao modo de associação dos membros. E é em determinações gerais desta ordem que nós pensamos ao tentarmos compreender a força do leão, da águia etc. Tal maneira de considerar as coisas merece os nomes de bela e engenhosa pois nos revela uma unidade na configuração e respectivas formas, unidade que, em vez de resultar de uma simples repetição uniforme, permite, pelo contrário, que subsistam todas as diferenças entre as partes. Todavia, não é a intuição o elemento dominante neste modo de considerar as coisas; uma ideia geral o inspira e dirige. Colocados neste ponto de vista, não diremos que a nossa atitude para com os objetos seja determinada pela beleza deles; diremos apenas, que é a nossa maneira de considerar o objeto que é bela enquanto subjetiva. Vistas de perto, estas reflexões mostram um ponto de partida e um princípio diretor muito limitado: o modo de nutrição do animal, o carnívoro, o herbívoro etc. Esta determinação não é, porém, suficiente para nos dar a intuição da coesão, da totalidade, do conceito, da própria alma. Se, neste domínio, quisermos, pois, adquirir a consciência da unidade total interna só o podemos alcançar mediante o pensamento e a apreensão, visto que a alma como tal ainda se não manifesta na natureza, pois na natureza ainda a unidade subjetiva não aparece como unidade em si. Ao apreendermos a alma pelo seu conceito, obtemos um duplo resultado: a intuição da figura animada e o conceito da alma como conceito pensado. Isso, porém, não pode acontecer quando se trata da intuição do belo: o objeto não se nos deve apresentar como simplesmente pensado, nem diferir ou opor-se à intuição, só com interesse para o pensamento. Conclui-se, portanto, que o objeto só existe em virtude do sentido que dele se extrai em geral, e a intuição, obtida assim pelo sentido inerente às formações naturais, constitui o verdadeiro modo de apreensão do belo. Sentido é, com efeito, uma curiosa palavra que se emprega, por sua vez, em dois sentidos opostos. Por um lado, designa os órgãos que presidem a apreensão imediata; por outro lado, chamamos sentido à significação, à ideia de uma coisa, àquilo que nela há de geral. Deste modo, o sentido refere-se, por um lado, ao aspecto imediatamente exterior da existência e, por outro, à sua Íntima essência. É tal a consideração refletida que, em vez de separar as duas partes, as apresenta simultaneamente, quer dizer, recebe a intuição sensível de uma coisa e, ao mesmo tempo, apreende o sentido e o conceito dela. Mas recebidas estas determinações num estado de não dissociadas, o contemplador ainda não adquire consciência do conceito que, por assim dizer, só vagamente pressente. Ao considerarmos, por exemplo, a existência de três reinos - o mineral, o vegetal e o animal -, pressentimos nesta gradação uma necessidade interna de ordem conceitual pois não nos satisfaz a representação pura e simples de uma finalidade exterior. Até na variedade das formações intrínsecas a cada reino, a intuição refletida pressente a intervenção de uma diretriz espiritual: uma progressão racional na formação das montanhas como nas séries animais e vegetais. Descobrir-se-á, também, uma organização racional em todos os organismos animais, no inseto dividido em cabeça, tórax, abdome e extremidades, sem falar nos cinco sentidos que, se à primeira vista podem parecer uma adjunção artificial, logo a um olhar mais atento se revelam conformes com o conceito. Por isso Goethe pôde observar e descrever a racionalidade interna da natureza e dos fenômenos naturais; começou ele por se dedicar à observação ingênua dos objetos, com um lúcido sentimento da unidade conceitual deles. A própria história pode ser compreendida e narrada de modo a mostrar, através dos acontecimentos e dos indivíduos isolados, a sua significação essencial e a sua unidade necessária. V - A VIDA CONSIDERADA DO PONTO DE VISTA PURAMENTE NATURAL De um modo geral, pode, pois, qualificar-se de bela a natureza enquanto representação sensível do conceito concreto e da ideia sob a condição, apesar de tudo, de a contemplação das formações naturais conformes com o conceito deixar pressentir essa conformidade e enquanto a observação sensível aos sentidos revelar, simultaneamente, a necessidade interna e a concordância da organização total. A contemplação da natureza, merecedora da qualificação de bela, não nos leva além desse pressentimento. Esta apreensão - para a qual as partes, embora parecendo livres e possuidoras de uma existência independente, não tornam menos visível a concordância que manifestam na figura, nos contornos, nos movimentos etc. - continua a ser, nas condições que acabamos de descrever, indeterminada e abstrata. A unidade continua a ser interior, não se oferece à intuição numa forma concretamente ideal, e a observação permanece no postulado geral da necessidade de um acordo animador. Provisoriamente, ainda só conhecemos, após o que afirmamos, a beleza natural no aspecto da coesão animada das formações naturais concretas, em conformidade com o conceito. Há identidade imediata entre esta coesão e a matéria: a forma é imediatamente inerente à matéria como sua verdadeira essência e sua força formativa. Tal é, no estádio em que nos achamos, a definição geral da beleza. Admiramos, por exemplo, o cristal natural pela regularidade da sua forma que mecanismo algum poderia produzir mas que é produto de uma determinação interna sui generis e de uma força livre em relação ao objeto mesmo. Certo é que uma atividade exterior ao objeto poderia também ser livre, mas, nos cristais, a atividade formativa não poderia ser exterior ao objeto: é uma forma ativa que, em virtude da sua própria natureza, faz parte do mineral, é a força livre da própria matéria que adquire forma, graças a uma atividade imanente em vez de, passivamente, receber do exterior a sua determinação. Deste modo, tanto por si mesma como na forma realizada a matéria permanece livre. Num grau mais elevado e num aspecto mais concreto, esta atividade da forma imanente manifesta-se no organismo vivente, em seus contornos, na aparência dos membros e, sobretudo, no movimento e na expressão dos sentimentos. Porque, aí, a própria excitabilidade interna manifesta-se de um modo vivente. Apesar deste caráter indeterminado, quanto à sua animação interna, da beleza natural, cremos poder afirmar que: 1º Pela ideia que possuímos do grau de animação, pelo pressentimento do seu verdadeiro conceito e, também, pelo conhecimento dos tipos correntes da sua manifestação adequada, existem diferenças essenciais que nos permitem distinguir a beleza e a fealdade no mundo animal: os animais tardígrados que se deslocam com dificuldade e acusam uma incapacidade de se moverem e agirem rapidamente, desagradam-nos por causa desta inércia. Ora, a atividade, a movimentação, constituem sinais de uma elevada idealidade da vida. Bem assim, não podemos considerar como belos certos peixes, os crocodilos, as tartarugas, muitas variedades de insetos; certos seres híbridos, que constituem a transição de uma forma para outra e realizam a miniatura de ambas, provocam o nosso espanto mas não os achamos belos, como acontece com o ornitorrinco que é uma mistura de ave e de quadrúpede. Em casos deste gênero, talvez se trate, no que nos respeita, de um simples hábito, isto é, de termos na nossa representação um tipo fixo de espécies animais. Mas até este hábito não é alheio ao pressentimento de que a formação de, por exemplo, uma ave exige necessariamente certo acordo das partes e de que a sua natureza a impede de revestir formas que pertencem a outras espécies, sob pena de originar formações híbridas. Estas formações revelam-se, assim, extravagantes e contraditórias. Nem a unilateral limitação da organização, defeituosa e desprovida de significado porque só corresponde a exigências exteriores e limitadas, nem as misturas e as transições em que acabamos de falar e que, embora menos unilaterais, não deixam de ser incapazes de manter as determinações das diferenças, nem estas nem aquela fazem parte do domínio da beleza natural vivente. 2º Também falamos do belo da natureza quando não estamos em presença de criaturas orgânicas viventes: perante uma paisagem, por exemplo. Não há aqui, a articulação orgânica das partes que é determinada pelo conceito e a que um sopro de vida imprime uma unidade, realização da ideia: o que temos perante nós é uma rica variedade de objetos e uma associação exterior de diversas figuras, orgânicas e inorgânicas - perfis de montanhas, sinuosidades de rios, conjuntos de árvores, cabanas, casas, aldeias, palácios, barcos, céu e mar, vales e desfiladeiros. Contudo, apesar de tanta variedade e no íntimo desta diversidade, nós deparamos com um acordo entre as partes constitutivas da paisagem que, agradável ou impressionante, nos interessa. 3º Há, enfim, entre nós e a beleza natural uma relação particular por aquela estabelecida mediante os estados de alma que em nós provoca e com os quais se põe de acordo. Citaremos, como exemplos, o silêncio de uma noite de luar, a tranquilidade de um vale por onde um riacho abre caminho, o aspecto sublime da cólera do imenso mar, a serenidade majestosa do céu estrelado. A significação que atribuímos a estes objetos não lhes pertence propriamente, mas provém dos estados de alma que eles provocam. Analogamente, dizemos que certos animais são belos quando neles encontramos manifestações psíquicas que se assemelham às do homem: coragem, força, astúcia, generosidade etc. Trata-se de manifestações próprias aos objetos e relacionados, por um lado, com um aspecto da vida animal e, por outro, com a nossa própria representação e o nosso próprio estado de alma. Se deste modo se pode declarar estabelecido que a vida animal, cume que é da beleza natural, exprime já certo grau de animação, isso não significa que toda a vida animal não seja uma vida limitada a certas qualidades. Reduzido é o ciclo de vida do animal e dominados são os seus interesses por exigências naturais: alimentação, instinto sexual etc. A sua interior vida psíquica, expressa no rosto, é pobre, abstrata, inconsciente. Além disso, este aspecto interno não se manifesta como tal; a vida natural não revela a alma do animal, não a faz surgir do interior, e, aliás, o natural consiste precisamente em ser a alma incapaz de abandonar a região onde está relegada e exteriorizar-se segundo a ideia. Como já dissemos, a alma do animal não constitui para si própria a unidade ideal; se a constituísse, manifestar-se-ia também para si. Só o eu consciente representa a idealidade simples que é uma idealidade para ele próprio; só o eu se conhece como sendo esta unidade simples e se atribui, por isso, uma realidade que não é apenas sensível e corporal mas representa, também, a realização da ideia. Só então a realidade reveste a forma do conceito; o conceito opõe-se a si mesmo e tornando-se a sua própria objetividade, nesta existe para si mesmo. Pelo contrário, a vida animal só em si possui esta unidade, e nesta unidade tem a realidade, enquanto corporeidade, uma forma diferente da unidade ideal da alma. O eu consciente é, para si próprio, esta unidade onde todos os componentes têm como denominador comum a mesma idealidade. É enquanto concretização assim consciente que o eu se manifesta também aos outros. Mas, pelo seu aspecto, o animal limita-se a sugerir à intuição a existência de uma alma de que só possui uma vaga aparência, espécie de sopro ou de vapor que se alarga ao todo, assegura a unidade dos membros e revela em todo o procedimento os primeiros começos de um caráter particular. É esta outra lacuna que a beleza natural apresenta até na sua forma mais elevada, e essa lacuna nos levará a postular a necessidade do ideal enquanto beleza artística. Antes, porém, de chegarmos ao ideal, vamos- ocupar-nos de duas determinações que são consequências da lacuna que acabamos de verificar no belo natural. Dissemos, há pouco, que, na configuração animal, a alma só aparece no aspecto vago de uma coesão do organismo, como ponto de concentração do psiquismo a que falta um conteúdo consistente. De natureza vaga e completamente limitada é o psiquismo que o animal manifesta. É esta manifestação abstrata que em si mesma vamos examinar. CAPÍTULO II O ideal I - A BELEZA ABSTRATA, EXTERIOR Existe uma realidade exterior que, como tal, possui um caráter determinado, mas cujo interior, em vez de se concretizar na forma da unidade da alma, fica no estado de indeterminação e de abstração. Por isso esta interioridade, em vez de ser verdadeiramente interior enquanto ideia e de implicar um conteúdo que encarna uma ideia, limita-se a aparecer como unidade que tem uma determinação exterior numa realidade exterior. A unidade concreta do interior consistiria, por um lado, na vida psíquica em si e para si, possuiria um conteúdo de grande riqueza, e, por outro lado, impregnaria a realidade exterior da sua interioridade para assim fazer da configuração real a patente manifestação do interior. Na fase em que nos encontramos, a beleza não alcançou ainda esta unidade concreta; a ela aspira como a um ideal. Esse é o motivo por que a unidade concreta ainda se não pode realizar na figura, e apenas se presta a um exame analítico, quer dizer, a um exame separado dos diferentes elementos que o compõem. Começando, deste modo, por separar o elemento formativo da realidade sensível e exterior, obtêm-se dois aspectos diferentes que separadamente se examinam. Mas devido, por um lado, a esta separação e, por outro lado, à correspondente abstração, a própria unidade interna aparece, na sua relação com a realidade exterior, como uma unidade também exterior e apresenta-se, por conseguinte, não como a forma apenas imanente do conceito interno total, mas como uma idealidade e uma determinação promanadas do exterior. Estes são os pontos de que nos vamos ocupar no que segue. E começamos por: a) A beleza da forma abstrata A forma do belo natural, enquanto abstrata, é, por um lado, uma forma determinada e, portanto, delimitada, e implica, por outro lado, uma unidade graças à qual ela se referenda a si mesma. Regula ela a variedade exterior segundo esta determinação e esta unidade que em vez de virem a ser interioridade imanente e figura animadora, se mantêm em determinação e unidade exteriores. Esta forma é chamada regularidade, simetria ou é considerada como subordinada a leis e qualificada, enfim, de harmonia. b) A regularidade A regularidade como tal consiste geralmente na igualdade exterior ou, com maior precisão, na repetição de uma só e mesma figura determinada que confere à forma a unidade determinante. Em virtude da sua primeira abstração, tal unidade é o que há de mais afastado da totalidade racional do conceito concreto e por isso a beleza só existe para o intelecto abstrato que apenas concebe a igualdade e a identidade abstratas e não concretas. Assim acontece que, entre as linhas, a reta é uma linha regular porque só tem uma direção que, em abstrato, permanece sempre igual a si mesma. No mesmo sentido, é o cubo uma figura regular porque todas as suas faces têm sempre superfícies de grandeza igual e porque se compõe, além disso, de linhas iguais e de ângulos que, sendo retos, não podem, como os agudos e obtusos, mudar de grandeza. A simetria aproxima-se da regularidade. Com efeito, a forma não se reduz a essa extrema abstração que é a da determinação na igualdade. À igualdade associa-se a desigualdade, e a diferença irrompe através da vazia identidade. Assim nasce a simetria. Consiste ela, não na repetição de uma só e mesma forma abstrata, mas na alternância desta forma com outra que também se repetia; esta última, considerada em si mesma, é também determinada e sempre a mesma, mas desigual daquela primeira a que se acha sempre associada. Desta associação devem provir uma igualdade e uma unidade mais determinadas e mais variadas em si. Quando por exemplo, a fachada de uma casa tem três janelas com as mesmas dimensões e à mesma distância umas das outras; Depois três ou quatro janelas mais altas e separadas por intervalos maiores ou menores, e por fim três janelas semelhantes às primeiras nas dimensões e nas distâncias que as separam, aí temos perante nós o aspecto de um conjunto simétrico. Assim, a repetição e a uniformidade de uma só e mesma determinação bastam para criar a simetria que exige diferenças de grandeza, de situação, de forma, de cor, de som, e outras determinações que, por sua vez, se devem repetir uniformemente. É desta regular associação de determinações desiguais que nasce a simetria. As duas formas, regularidade e simetria, como arranjo e unidade puramente exteriores, fazem parte, sobretudo, da determinação que incide sobre a grandeza. A determinação exteriormente imposta, e não imanente, é em geral de natureza quantitativa, ao passo que a qualidade faz de uma coisa aquilo que ela é, tomando-se outra se a determinação qualitativa muda. Mas a grandeza e as suas variações, enquanto grandezas, constituem para o qualitativo uma determinação indiferente a não ser quando se impõem como medida. Com efeito, é a medida uma quantidade que produz uma determinação qualitativa e, por ela, certa qualidade se associa a uma determinação quantitativa. A regularidade e a simetria são antes de tudo características de determinações de grandezas, da sua conformidade e do seu arranjo na desigualdade. Ao procurarmos a verdadeira realização deste arranjo de grandezas, não tardamos a verificar que as formações da natureza, quer orgânica quer inorgânica, são regulares e simétricas na sua grandeza e sua forma. O nosso próprio organismo, por exemplo, é, pelo menos em parte, regular e simétrico. Nós temos dois olhos, dois braços, duas pernas, ancas iguais, omoplatas iguais etc. De outras partes sabemos nós que são irregulares: o coração, o fígado, os intestinos etc. O que, neste caso, importa saber é em que consiste a diferença. A parte onde se manifesta a regularidade quanto à grandeza, à forma, à localização etc. é, precisamente, a parte exterior do organismo. A regularidade e a simetria existem, segundo o próprio conceito da coisa, onde o objetivo, em conformidade com a sua determinação, é exterior em relação a si mesmo e não tem nenhum elemento subjetivo a animá-la. A realidade que não vai além de tal exterioridade é anulada por esta unidade exterior e abstrata. Pelo contrário, em tudo o que vive e tem alma, e num grau ainda mais elevado, na livre espiritualidade, a simples regularidade apaga-se perante a vivente unidade subjetiva. Mas embora a natureza, ao contrário do espírito, apenas tenha uma existência exterior em si, a regularidade, só se manifesta nela quando a exterioridade desempenha um papel verdadeiramente predominante. Além disso, percorrendo rapidamente os principais graus, chegamos aos minerais, aos cristais etc., que, enquanto formações inanimadas, possuem formas que têm, como primeiras características, a regularidade e a simetria. O seu aspecto, conforme já dissemos, é-lhes decerto imanente, não determinado por influências exteriores; a forma, que por natureza lhes convém, elabora, mediante uma atividade obscura, a sua estrutura interna e externa. Mas esta atividade ainda não é a atividade total do conceito concreto e idealizante que postula a negatividade das partes autônomas e as anima, como na vida animal. Pelo contrário: a unidade e a determinação da forma mantêm uma unilateralidade abstrata, captada apenas pelo intelecto, e é essa unidade de um objeto exterior a si mesmo que produz, simultaneamente, a simples regularidade e a simetria, únicos arranjos onde as abstrações desempenham um papel predominante. A planta é já superior ao cristal. Desenvolve-se ela até um início de organização e absorve materiais mediante uma nutrição incessante e ativa. Mas a planta ainda não possui vida animada porque tem uma atividade que, apesar da sua articulação orgânica, é constantemente solicitada pelo exterior. Está fortemente enraizada, incapaz, por isso, de se mover e deslocar, o seu crescimento faz-se de maneira durável, e as incessantes assimilação e nutrição não são as de um organismo em repouso e encerrado em si mas provocam, no exterior, uma projeção que sem cessar a renova. Também, é certo que o animal cresce, mas o crescimento cessa quando atinge determinado limite, e a reprodução do animal não significa, no fundo, mais do que a perpetuação de um só e mesmo indivíduo. A planta, pelo contrário, acresce, indefinidamente; só com a morte termina a multiplicação dos seus ramos, folhas etc. E o que, graças a este crescimento, ela produz, é sempre um novo exemplar do mesmo organismo total. É que cada ramo constitui uma nova planta e não, como no organismo animal, um simples membro. Nesta multiplicação prolongada de si própria, nesta transformação de uma planta em grande número de outras, falta à planta a subjetividade animada e a unidade ideal da sensação. Por toda a sua existência e por todo o seu processo vital, e apesar da digestão interior, da assimilação ativa dos alimentos, apesar da autodeterminação pelo seu conceito que, tornando-se livre, exerce a sua atividade no material, apesar de tudo isso a planta continua encerrada na exterioridade, sem independência, sem unidade subjetiva, e a sua autoconservação não passa de uma perpétua exteriorização. Por causa da constante atração da planta para o exterior, a regularidade e a simetria, que asseguram a unidade nesta multiplicação exteriorizada da planta por si própria, constituem a principal característica das formas vegetais. A regularidade desempenha, decerto, na planta um papel tão importante como o cristal, esse não se exprime por linhas e ângulos tão abstratos, não deixa todavia de ser a principal característica. A maior parte das vezes, o tronco eleva-se em linha reta, os anéis das plantas superiores são circulares, as formas das folhas se assemelham às dos cristais, e os botões, pelo número das folhas, pela posição e aspecto, têm, em conformidade com o seu tipo fundamental, o sinal de uma determinação regular e simétrica. Os organismos dotados de vida animal distinguem-se essencialmente por um duplo modo de formação dos membros. É que o animal, sobretudo o que ocupa um grau elevado, possui um organismo que se apresenta, por um lado, como um organismo inteiro, encerrado em si próprio, referente a si próprio e que, tal como uma esfera, a si mesmo regressa sempre, e se apresenta, por outro lado, como um organismo exterior, dirigido para a exterioridade. Os órgãos mais nobres são os órgãos internos, o fígado, o coração, os pulmões etc., aqueles de que depende a vida. Esses não são determinados apenas pelos critérios da regularidade. Os membros, pelo contrário, constantemente referenciados ao mundo exterior, até no organismo animal apresentam uma disposição simétrica. São os membros e os órgãos que asseguram as relações teóricas e práticas do organismo com o exterior. As relações puramente teóricas dependem dos órgãos dos sentidos, da vista e do ouvido; tudo quanto vemos e ouvimos nós deixamos tal e qual, quer dizer, intato. Pelo contrário, os órgãos do cheiro e do gosto já fazem parte das relações práticas. Só podemos, efetivamente, sentir o cheiro daquilo que a si mesmo se consome, e só podemos saborear destruindo. Ora, nós só possuímos um nariz, mas composto de duas metades que, reunidas, lhe conferem uma forma regular. O mesmo acontece com os lábios, os dentes etc. Completamente regulares, pela forma e posição, são os olhos e as orelhas bem como os membros que servem para a locomoção e a transformação prática dos objetos exteriores: as pernas e os braços. É assim que, até no mundo orgânico, a regularidade não abandona inteiramente os seus direitos, mas isto só se verifica com os membros que asseguram as relações diretas com o mundo exterior e não as relações do organismo consigo próprio, ou seja, o regresso a si mesma da subjetividade da vida. Tais seriam as principais determinações das formas regulares simétricas e do papel que elas desempenham nos fenômenos da natureza. Dentre estas formas abstratas convém distinguir: c) A subordinação a leis que ocupa um lugar já mais elevado e constitui a passagem para a liberdade da vida, quer a natural quer a espiritual. Considerada em si mesma, a subordinação a leis ainda não é a unidade e a liberdade subjetivas totais, mas já constitui, no entanto, uma totalidade de diferenças essenciais que se não apresentam apenas como diferenças e oposições para realizarem já, na sua totalidade, uma unidade e uma coesão. E embora esta unidade, que é regida por leis, ainda continue ligada ao quantitativo, não se deixa todavia reduzir às simples diferenças de grandeza, mensuráveis e exteriores a si próprias, mas contém relações qualitativas entre os diversos elementos. Por isso ela representa, não a repartição abstrata de uma só e mesma determinação, não a alternância regular do igual e do desigual, mas sim o encontro, a reunião de partes essencialmente diferentes. Nós ficamos satisfeitos quando vemos reunidas num conjunto essas diferenças sem que disso lhes advenha qualquer atenuação. O elemento racional desta satisfação consiste em que os sentidos só se contentam com a totalidade e, sobretudo, com a totalidade das diferenças conformes à natureza da coisa. Todavia, a coesão só é assegurada por um nexo oculto criado, para a intuição, pelo hábito numa parte e, noutra, por um mais profundo sentimento. Com o auxílio de alguns exemplos, é fácil mostrar, com mais rigor, o trânsito da regularidade para a subordinação a leis. Linhas paralelas do mesmo comprimento são regulares do ponto de vista abstrato. Dá-se um passo mais se se considerar a simples igualdade de relações no caso de grandezas desiguais, como, por exemplo, o de triângulos semelhantes. São as mesmas a inclinação dos ângulos e as relações das linhas entre si, mas as características quantitativas diferem de um triângulo para outro. Assim também a circunferência não possui a regularidade da linha reta mas está, como esta, sujeita à determinação da igualdade abstrata pois os seus raios têm o mesmo comprimento; a circunferência é uma linha curva de interesse restrito. Pelo contrário, as elipses e as parábolas são de uma regularidade menor e só podem ser reconhecidas mediante as leis que as regem. Assim, por exemplo, os raios vetores da elipse não são iguais mas são regidos por leis; existe também uma diferença essencial entre o eixo grande e o pequeno e os focos não coincidem, como no círculo, com os centros. Aqui, já nos encontramos perante diferenças qualitativas determinadas por leis, e é a reunião delas que constitui a lei. No entanto, se dividirmos a elipse pelos dois eixos (o maior e o menor), obtemos quatro partes iguais: é que, neste aspecto, o conjunto é ainda dominado pela igualdade. Dotada de um determinismo interno, a linha oval possui, ao mesmo tempo, uma maior liberdade. Está ela sujeita à ação de uma lei que ainda se não conseguiu descobrir e calcular. Não sendo uma elipse, a sua curvatura inferior difere da superior. Mas dividida segundo o eixo maior esta linha natural mais livre, ainda obtemos duas partes iguais. Completamente desaparece a regularidade perante a ação de leis em linhas que, semelhantes às ovais, dão, no entanto, ao serem seccionadas segundo o eixo maior, duas partes desiguais, sem que uma seja a repetição da outra e tendo cada uma delas a sua rotação própria. É o caso da linha ondulosa que Hogarth disse ser a linha da beleza. Assim, as linhas de um dos braços não têm a orientação das linhas do braço oposto. A ação das leis é, aqui, independente de toda a regularidade; e é esta ação que determina as tão variadas formas dos organismos viventes superiores tanto nas suas diferenças como na sua unidade. Mas, por um lado, o domínio das leis só se exerce de um modo abstrato, sem que provoque o despertar da individualidade e, por outro lado, à própria liberdade superior falta ainda aquela subjetividade que é a condição imprescindível da manifestação animada e ideal. Por isso se deve, nesta fase, colocar a harmonia num nível superior àquele em que se exerce a ação das leis. d) A harmonia Com efeito, a harmonia resulta da relação entre diferenças qualitativas; constitui uma totalidade destas diferenças que têm a sua razão de ser na própria natureza da coisa. Esta relação escapa à ação das leis, e embora um dos seus aspectos se caracterize pela regularidade, ela ultrapassa a igualdade e a repetição. Ao mesmo tempo, as diferenças afirmam-se, não como diferenças nas suas oposições e contradições, mas como uma unidade harmoniosa que, enquanto assinala todos os momentos de que se compõe, os inclui a todos no estado de um todo único. É isso que constitui a harmonia. Representa ela, por um lado, a totalidade dos elementos essenciais cuja oposição pura e simples, por outro lado, suprime para assim criar entre eles um nexo interno que é fator da sua unidade. Neste sentido se fala da harmonia de figuras, de cores, de sons etc. O azul, o amarelo, o verde e o vermelho, por exemplo, constituem diferenças necessárias que têm a razão de ser na própria natureza das cores. O que caracteriza estas cores não é tanto a desigualdade - como na simetria onde os elementos diferentes se reúnem com regularidade para formar uma unidade exterior - mas sobretudo as suas oposições diretas, como as do amarelo e do azul, e bem assim a sua neutralização e a sua identidade concreta. A beleza da harmonia das cores provém da eliminação de qualquer crueza de diferença e de oposição que se dilui para maior relevo do acordo dos contrários. Entre as diferenças há relações íntimas porquanto cada cor, longe de ser simples, representa uma totalidade essencial. Esta totalidade pode ser tal que, como disse Goethe, basta aparecer-nos diante dos olhos o azul para logo termos a visão subjetiva do amarelo. Entre os sons, por exemplo, os tônicos, e os dominantes constituem as diferenças principais que se reúnem, concordes, num todo. O mesmo acontece com a harmonia da figura, a oposição, o repouso, o movimento etc. Nenhuma das diferenças pode ser unilateralmente perceptível pois logo perturbaria todo o acordo. Mas nem a harmonia como tal é ainda a subjetividade livre e ideal da alma. Nesta, a unidade promana, não de uma simples aproximação ou de um acordo, mas da negação das diferenças pois essa é que engendra a unidade ideal. Não cria, a harmonia, esta idealidade. Qualquer melodia, por exemplo, embora baseada na harmonia, possui e exprime uma subjetividade mais elevada e mais livre. A harmonia pura e simples não revela nem a animação subjetiva como tal nem a espiritualidade, apesar de constituir já o grau mais elevado da forma abstrata e de se aproximar da subjetividade livre. Tal seria a primeira determinação da unidade abstrata e tais seriam as primeiras variedades da forma abstrata. II - A BELEZA COMO UNIDADE ABSTRATA DA MATÉRIA SENSÍVEL O outro aspecto da unidade abstrata refere-se, não já à forma e à figura, mas à matéria, ao sensível como tal. Aqui, a unidade apresenta-se como um acordo, que exclui toda a diferença, da matéria sensível dada. O material, considerado como substância sensível, só está apto a realizar a unidade. Neste aspecto, a pureza abstrata da matéria quanto à forma, à cor, ao som etc. constitui, na fase de que nos ocupamos, o essencial. Linhas traçadas com nitidez que se alongam de maneira uniforme sem desvios para a direita ou para a esquerda, superfícies lisas etc., satisfazem-nos pela firmeza de rigor e pela uniforme unidade. A pureza do céu, a transparência do ar, um lago brilhante como um espelho, a superfície imóvel do mar, aprazem-nos pelos mesmos motivos. E o mesmo acontece com a pureza dos sons. Uma voz pura, até emitindo apenas sons simples, tem já qualquer coisa de agradável e atraente, ao passo que uma voz impura só emite sons que se fecham em si, sons impuros e sem precisão. A língua, também, possui sons puros como as vogais e sons mistos como os ditongos. É sobretudo nos dialetos populares que predominam os sons impuros. Para que os sons conservem a pureza, é preciso que as vogais se rodeiem de consoantes, mas consoantes que as não amorteçam como nas línguas nórdicas em que muitas vezes as consoantes viciam as vogais; a italiana, que se conserva pura, presta-se facilmente ao canto. O mesmo acontece com as cores que as há puras, simples, não misturadas, como, por exemplo, um vermelho puro ou um azul puro mas que tão raras são por aparecerem quase sempre avermelhadas, amareladas, verdes. Também a cor violeta pode ser pura, mas de uma pureza só exterior, isto é, não poluída porque o violeta não é simples por si mesmo e a diferença que o separa das outras cores não é daquelas que se referem à própria natureza da cor. É nestas cores fundamentais que mais facilmente os sentidos reconhecem a pureza, embora seja difícil reuni-las num conjunto harmonioso pois a justaposição delas evidencia mais nitidamente as suas diferenças. As cores atenuadas, mistas, são menos agradáveis; mas como lhes falta a energia da oposição, o desacordo dos seus elementos componentes impressiona-nos menos. No verde, que é uma mistura de amarelo e azul, estas duas cores estão neutralizadas e por isso quando o verde é verdadeiramente puro agrada-nos mais do que o azul e o amarelo com as suas acentuadas diferenças. Estes são os pontos mais importantes no que se refere à unidade abstrata da forma e à simplicidade, à pureza das substâncias sensíveis. Em ambos os casos, do que se trata é de abstrações mortas e de uma unidade que nada tem de real. Falta a esta, com efeito, a subjetividade ideal de que em geral está privado o belo natural quando considerado na sua manifestação de conjunto. Esta lacuna essencial autoriza-nos a concluir pela necessidade do ideal que se não acha na natureza; em relação a ele, a beleza natural não passa de uma beleza de segunda ordem. III - AS IMPERFEIÇÕES DO BELO NATURAL O objeto próprio do nosso estudo é o belo artístico considerado como a única realidade adequada à ideia do belo. Até aqui temos considerado o belo natural como primeira expressão do belo. A questão que se apresenta agora é a de saber em que difere o belo natural do belo artístico. De um modo abstrato, pode dizer-se que a ideia é o belo perfeito em si enquanto a natureza será o belo imperfeito. Mas estes predicados vazios nada adiantam, porque aquilo que queremos conhecer de maneira rigorosa é o que faz a perfeição do belo artístico e a imperfeição do belo natural. A questão deverá, pois, formular-se nos seguintes termos: por que é que a natureza é necessariamente imperfeita na sua beleza e em que se manifesta essa imperfeição? Só de posse da resposta, nos aparecerão com clara evidência a necessidade e a natureza do ideal. Depois de nos havermos erguido até o plano da vida animal e visto como é que a beleza nele se pode manifestar, impõe-se o exame atento daquilo em que consiste a subjetividade e a individualidade que são atributos da criatura vivente. Temos falado da beleza como ideia no mesmo sentido em que se fala da verdade e do bem como ideias: queríamos nós acentuar com isso que a ideia é o substancial e o geral, a matéria absoluta (não sensível), o intelecto do mundo. Mas definida com mais rigor, a ideia não é só substância e universalidade mas também unidade do conceito e da sua realidade, situado o conceito como tal no seio da sua objetividade. Como já na Introdução mostramos, Platão foi quem primeiro proclamou que só a ideia é verdadeira e universal, que só ela é o universal concreto. Mas a ideia platônica ainda não é o verdadeiramente concreto pois só corresponde à verdade quando considerada no seu conceito e na sua universalidade. Acontece porém que, considerada como universalidade, a ideia ainda não está realizada e ainda não é a verdade para si própria, na sua realidade. Não sai ela do simples quanto a si. Ora, tal como, sem a sua objetividade, o conceito não é verdadeiramente o conceito, assim também a ideia não é verdadeiramente a ideia sem a sua realidade e sem se situar fora desta. A ideia deve, pois, progredir no sentido da realidade, realidade que só recebe da subjetividade real, conforme ao conceito, da sua unidade ideal e do seu ser para si. Assim, por exemplo, a realidade da espécie promana do indivíduo concreto e livre; a vida só existe na forma dos seres viventes individuais, o bem só é realizado por homens individuais e toda a verdade só o é para uma consciência que sabe, para um espírito que existe para si mesmo. Só a individualidade concreta é verídica e real; não o são a universalidade abstrata e a particularidade. Este ser para si, esta subjetividade é, pois, um ponto que não devemos abandonar. Mas a subjetividade reside na unidade negativa, que resulta da idealização das diferenças e da existência real delas. A unidade da ideia e da sua realidade é, pois, a unidade negativa da ideia como tal e da sua realidade, unidade que resulta da postulação e supressão da diferença existente entre uma e outra. Só graças a esta atividade é que ela existe afirmativamente para si própria, como sendo essencialmente uma subjetividade concreta, quer dizer, individual, como sendo ideia só enquanto é real e acha a sua realidade no individual concreto. Temos de aqui distinguir duas formas do individual: o individual natural imediato e o individual espiritual. A ideia existe nestas duas formas, e é o mesmo o conteúdo substancial de ambas formado pela ideia ou, no domínio especial que nos ocupa, pela ideia da beleza. Todavia, se o belo natural e o ideal têm o mesmo conteúdo, importa observar que, num outro aspecto, a diferença entre as duas formas em que a ideia se realiza, ou seja, a diferença entre o individual natural e o individual espiritual, é também uma diferença essencial entre os conteúdos das duas formas. Trata-se, com efeito, de saber qual a forma que verdadeiramente corresponde à ideia porque só naquela que lhe corresponde verdadeiramente a ideia explicita a verídica totalidade do seu conteúdo. É esta a questão que temos agora de examinar, tanto mais que a essa diferença de forma que o individual apresenta corresponde também uma diferença entre o belo natural e o ideal. Quanto ao individual imediato, é ele inerente quer ao natural como tal quer ao espírito, pois a existência exterior deste reside no corpo e a sua existência provém, até do ponto de vista espiritual, da realidade imediata. Podemos, portanto, considerar o individual imediato de um triplo ponto de vista. 1. A INTERIORIDADE DO IMEDIATO NÃO É MAIS DO QUE INTERIORIDADE. Como já vimos, o organismo animal só obtém o ser para si, a individualidade, mediante um processo que se desenvolve sem cessar nele próprio e contrariamente a uma natureza, inorgânica em relação a ele, e que ele absorve, digere, assimila, transformando o exterior em interior e só assim realizando o seu ser em si. Vimos também que este ininterrupto processo vital representa um sistema de atividades executadas por um sistema de órgãos. Este sistema fechado tem por único fim a conservação da criatura vivente pelo referido processo, e, por isso, a vida animal é uma vida de carência cujas evolução e satisfação dependem do funcionamento do mencionado sistema de órgãos. Disso resulta que a criatura vivente está organizada segundo o princípio da finalidade. Todos os membros servem de meios para a realização de um único fim: a conservação do organismo. É-lhes imanente a vida, estão ligados à vida e a vida está ligada a eles. O resultado deste processo é o animal, ser individual com o anímico sentimento de si e, por isso, com a possibilidade de fruir da sua individualidade. A comparação do animal com a planta mostra precisamente que o que à planta falta é o sentimento de si e a posse de alma pois ela produz sempre novos indivíduos que deixa permanecerem-lhe ligados sem os concentrar até aquele ponto negativo em que o indivíduo se torna um ser independente e delimitado em relação aos outros e ao mundo exterior. O que, no entanto, nós vemos do organismo animal no exercício da sua vitalidade não é esse ponto de concentração onde a sua unidade se efetiva, mas apenas a variedade dos órgãos; a criatura vivente ainda não é bastante livre para se poder afirmar como sujeito individual punctiforme apesar da expansão dos seus membros no mundo exterior. O ponto onde verdadeiramente residem as atividades da vida orgânica é-nos desconhecido, e nós só vemos os contornos exteriores da forma que, por sua vez, se cobre de penas, de escamas, de pelos, de peles, de espinhos etc. Estes revestimentos constituem atributos animais, mas são produções animais com caráter vegetal. Isso constitui a principal causa da inferioridade do animal do ponto de vista da beleza. O que vemos do organismo não é a alma; o que se volta para o exterior e a todo o momento se manifesta não é a vida interior, mas formações que ocupam um grau inferior ao da vida propriamente dita. Não realizando o animal o seu em si na forma da interioridade, nem sempre esta se oferece à nossa observação. E como o interior permanece só o interior, também o exterior aparece só como exterior, quer dizer, sem nenhuma relação com o dentro, sem estar penetrado de alma em todas as suas partes. Pelo contrário, neste aspecto possui o corpo humano uma superioridade porquanto nos permite verificar a todo o instante que o homem é um ser uno, sensível e com alma. Não tem a pele coberta de revestimentos sem vida, de natureza vegetal, a pulsação do sangue é perceptível em toda a superfície, as palpitações do coração ouvem-se em todos os pontos e aparecem, até quando observadas de longe, como um dos principais sinais de vida, de vida por assim dizer turgescente: turgor vitae. Possui a pele uma sensibilidade generalizada e apresenta aquela morbideza, aquela carnação que muitas vezes causa o desespero do pintor. Mas embora o corpo humano, ao contrário do corpo animal, manifeste exteriormente o seu ser em vida, não abandona a natureza os seus direitos e aparece através de sinais que se acham na superfície: incisões, rugas, poros, pelos, volume de artéria etc. A própria pele, que deixa transparecer a vida interior, é um revestimento protetor contra o exterior, um meio unicamente utilitário ao serviço de uma exigência natural. A imensa superioridade do corpo humano consiste, porém, na sensibilidade, que, se nem sempre comporta sensações reais, nunca deixa de ser a condição e possibilidade delas. Mas também aqui se depara com uma lacuna: esta sensibilidade não é uma sensibilidade interiormente concentrada e difundida por todos os membros: enquanto uma parte dos órgãos com a sua configuração está ao serviço de funções animais, a outra parte serve para a exteriorização da vida psíquica, dos sentimentos e das paixões. Deste modo, a alma, a vida interior, não se manifesta em toda a realidade da forma humana. Com a mesma lacuna se depara no mundo, mais elevado, do espírito e dos respectivos organismos quando consideramos no seu ser em vida imediato. Quanto maiores e mais ricas são as suas formações, tanto mais numerosos são os meios de que precisa, como auxiliares, o único fim que constitui alma do todo, que o anima. Ora, na realidade imediatamente dada, tais meios revelam-se como órgãos que funcionam em vista de uma finalidade, e tudo quanto acontece e se produz é devido à intervenção da vontade. Cada elemento de um organismo, como sejam o Estado, a família etc., quer dizer, cada indivíduo separadamente considerado, manifesta uma vontade e atua associado aos demais membros do mesmo organismo; acontece, porém, que a única alma íntima desta associação, bem como a liberdade e a razão do fim único, não se manifestam tais quais na realidade e está longe de ser evidente a presença delas em todas as partes constitutivas da associação. Outro tanto se poderá dizer dos atos e eventos particulares que, de modo análogo, formam um todo orgânico. As razões internas que os determinam nem sempre atingem a superfície como nem sempre são visíveis através do aspecto exterior da sua realização imediata. O que aparece é apenas uma totalidade real, enquanto a origem interna que a anima e lhe insufla a vida não transcende os limites da região profunda onde reside. Do mesmo modo se apresenta, a este respeito, o indivíduo particular. O indivíduo espiritual é uma totalidade em si disposta em volta de um centro espiritual. Na sua realidade imediata, quer dizer, na sua maneira de viver e de agir, nos seus abandonos, desejos e iniciativas, aparece num aspecto fragmentário; e, todavia, é preciso conhecer toda a sucessão dos seus atos e das suas paixões para julgar do seu caráter. Nessa sucessão, que constitui a sua realidade, o ponto de concentração, de unificação só aparece como a origem visível de que tudo o mais seria apenas emanação. 2. O ESTADO DE DEPENDÊNCIA DE EXISTÊNCIA INDIVIDUAL IMEDIATA. Outra importante consequência se extrai do que acabamos de dizer. Como já vimos, a ideia adquire uma real existência graças à imediateidade do individual. Mas esta mesma imediateidade cria entre si e o mundo exterior relações complexas; a ideia esbarra com circunstâncias e condições exteriores, com a relatividade dos fins e dos meios e acha-se envolvida, de um modo geral, no turbilhão dos fenômenos finitos. Com efeito, o individual imediato é, antes de tudo, uma unidade encerrada em si mesma; como tal, delimita-se negativamente perante tudo que não é graças a este isolamento imediato, que o condena a uma existência condicionada, é impelido, pela força da totalidade cuja realidade não reside nele, a contrair relações com o que ele não é até cair na dependência de coisas que lhe são alheias. Nesta imediateidade, a ideia realizou separadamente cada um dos seus aspectos, e o nexo das existências separadas, quer naturais quer espirituais, já só é formado pela força interna do conceito. Este nexo aparece, àquelas existências, como vindo de fora, como uma necessidade exterior imposta por múltiplas dependências recíprocas e pelo impulso que cada uma delas recebe de determinações com origens diversas. Considerada neste aspecto, a existência imediata apresenta-se como um sistema de relações necessárias entre indivíduos e forças na aparência independentes no qual cada elemento ou é utilizado como um meio ao serviço de fins que lhe são estranhos ou carece ele próprio do que lhe é exterior para o utilizar como meio. E como, de um modo geral, a ideia aqui só se realiza no domínio da exterioridade, fica-se com a impressão de se assistir à soltura da arbitrariedade e do acaso, da miséria e da pobreza espirituais. O individual imediato vive no reino da não liberdade. Um animal está, por exemplo, ligado a certo elemento natural - ar, água ou terra - que determina toda a sua maneira de viver, seu gênero de alimentação e, com isso, todo o seu comportamento. Disto provêm as grandes diferenças que se observam no conjunto da vida animal. Existem, decerto, espécies intermediárias, aves que nadam, mamíferos que vivem na água, anfíbios e outras espécies de transição, mas elas constituem misturas e não sínteses superiores e compreensivas. Além disso, do ponto de vista da conservação, o animal permanece na dependência constante da natureza exterior, frio, secas, falta de alimentos, pelo que, no caso de empobrecer o ambiente, corre o risco de perder a plenitude da forma, o brilho da beleza, de emagrecer e só refletir a deplorável insuficiência das condições em que vive. Quanto ganha ou perde na beleza que lhe pertence, depende de condições exteriores. Embora em menor grau acha-se o organismo humano, na sua existência corporal, na mesma dependência das forças naturais exteriores e está também exposto aos mesmos acasos, às mesmas impossibilidades de satisfazer às exigências naturais, à doenças destruidoras, a toda a espécie de privações e de misérias. Num nível mais elevado da realidade imediata, o dos interesses espirituais, a dependência de que vimos a falar revela-se inteiramente relativa. Já o observamos no contraste entre os fins da vida psíquica e os fins, mais elevados, do espírito, pois uns aos outros se podem inibir, perturbar e até destruir. Deve o homem, enquanto indivíduo e para preservar a sua individualidade, transformar-se num meio ao serviço de outrem e de alheios e limitados fins, e servir-se, por sua vez, de outrem e de alheios meios. Tal como se apresenta no prosaico mundo do cotidiano, o indivíduo não se exterioriza completamente nas suas atividades, quer dizer, estas atividades não constituem uma emanação da sua totalidade. Não pode ele ser compreendido mediante aquilo que ele próprio é mas sim segundo o que ele não é. Com efeito, o homem individual acha-se na dependência de fatores exteriores, de leis, de instituições políticas, de um preexistente estatuto civil perante os quais é obrigado a curvar-se sem que se possa interrogar sobre se eles estão ou não de acordo com a sua interioridade. Além disso, o sujeito não é, para os outros, uma totalidade em si, pois é julgado e apreciado unicamente em função do interesse imediato que para os outros oferecem os seus atos, desejos e opiniões. O que, antes de tudo, aos homens importa é o que se refere aos seus próprios fins e intuitos. Até mesmo as grandes ações e os grandes acontecimentos, produtos de um esforço coletivo, se apresentam, neste mundo de fenômenos relativos, unicamente com o aspecto de tendências individuais, múltiplas e variadas. Este ou aquele indivíduo dá a sua contribuição em vista deste ou daquele fim que consegue ou não realizar; e se, em caso favorável, o conseguir, tudo quanto obteve aparecerá como completamente secundário em relação ao todo. Neste aspecto, o que a maior parte dos indivíduos efetuam apenas é uma obra parcial quando comparada com a importância do acontecimento global e do fim total para que todos contribuem, e até aqueles que, por se encontrarem nos pontos mais altos, se identificam pelo sentimento e pela razão com o todo da coisa, ficam, por assim dizer, presos numa rede de circunstâncias particulares, de obstáculos e de condições relativas. Por todos estes motivos, o indivíduo aparece, quando só considerado nesta esfera, como privado daquela liberdade e daquela vitalidade independentes e totais que são o fundamento da beleza. Também a realidade humana imediata, com os seus eventos e organizações, comporta decerto um sistema e uma totalidade de atividades; mas o todo aparece apenas como uma multiplicidade de pormenores, num número indefinido de partes, divididas as ocupações e as atividades de modo tal que cada parte só representa uma parcela do todo. Por isso, quaisquer que sejam os fins próprios a cada indivíduo e os interesses pessoais que lhe motivam a atividade, não deixam de ser mais ou menos formais a liberdade e a independência da sua vontade, determinadas como são por circunstâncias e acasos exteriores e tolhidas pelos obstáculos da naturalidade. Este é o prosaísmo do mundo, tal como aparece à consciência de todos e de cada um; deste mundo finito e vário, sempre em luta com as exigências do relativo e com a pressão da necessidade às quais o indivíduo não é capaz de se subtrair. E que todo o indivíduo vivente se acha numa situação contraditória que consiste em considerar-se um todo perfeito e fechado, uma unidade, e estar, ao mesmo tempo, na dependência do que não é ele; a luta travada com o objetivo de resolver esta contradição reduz-se a tentativas que só prolongam a duração da luta. 3. A LIMITAÇÃO DA EXISTÊNCIA INDIVIDUAL. Em terceiro lugar, o individual imediato do mundo natural e espiritual não só se acha num estado de dependência como também lhe falta a independência absoluta por ser limitado, ou com maior rigor, particularizado em si. Todo o indivíduo vivente que pertence ao mundo animal faz parte, em primeiro lugar, de uma espécie determinada, circunscrita e, portanto, fixa em limites que lhe é impossível transpor. Poderá o espírito formar uma ideia geral da vida e da sua organização, mas na realidade natural esse organismo ideado cinde-se numa multidão de particularidades correspondentes a outros tantos tipos diferentes pela forma exterior, pelo grau de desenvolvimento de tais ou tais partes do organismo etc. No interior desses intransponíveis limites, só se acham acasos provindos das condições exteriores, e a própria dependência varia de acordo com os acasos e manifesta-se de um modo particular a cada indivíduo, relacionada com aquelas condições. Por isso, ainda neste aspecto, sofrem uma grave diminuição a autonomia e a liberdade exigidas pela beleza verdadeira. Ora, no seu próprio organismo corpóreo, encontra decerto o espírito a completa realização do conceito do seu natural ser existente, de tal modo que as espécies animais podem aparecer-lhe, comparativamente, como imperfeitas, como criaturas que ocupam os graus mais baixos da vida; todavia, também o organismo humano apresenta, numa gradação de formas segundo a beleza, diferenças de raça. E além destas diferenças, que são, apesar de tudo, gerais, é preciso ainda considerar as características familiares que, formadas acidentalmente, acabam por se fixar e de cujas misturas, por sua vez já provindas de misturas entre famílias diferentes, resultam particularidades que não têm o caráter da liberdade; acrescente-se a tudo isso as particularidades provocadas pelas ocupações, os ofícios, as profissões exercidas num círculo vital estreito e às quais, finalmente, se ligam as singularidades de temperamento, de caráter e uma série de deformações e perturbações. A pobreza, a angústia, a cólera, a frieza e a indiferença, o frenesi das paixões, a obstinação com fins unilaterais, a variabilidade e a dissociação espirituais, a subordinação à natureza exterior e, de um modo geral, toda a finitude da natureza humana convergem para, segundo os acasos, caracterizar fisionomias particulares que acabam por solidificar numa expressão perdurável. Há, assim, fisionomias destroçadas com as marcas de destruidoras tempestades passionais, outras que só revelam a necedade e a esterilidade internas e outras ainda tão particulares que perderam o tipo geral das formas. A acidentalidade das figuras não tem limites. Por isso as crianças são, no conjunto, os seres mais belos: nelas, todas as particularidades dormem ainda como num embrião fechado, paixão alguma lhes agitou a alma e nenhum dos múltiplos interesses humanos conseguiu ainda imprimir-lhes no rosto tenro o selo da sua triste necessidade. Mas, embora a vivacidade infantil pareça conter todas as virtualidades, faltam a esta inocência os traços mais profundos do espírito cuja atividade só se deve exercer no interior dele próprio de acordo com diretivas e em vista de fins essenciais. Esta variedade de existência imediata, tanto física como material, deve-se considerar como manifestando essencialmente um estado de finitude, e, sobretudo, uma finitude que não corresponde ao seu conceito e nesta não correspondência precisamente se revela. O conceito e, o que é mais concreto, a ideia é o que é infinito e livre em si. Mas a vida animal, embora seja ideia enquanto vida, não possui esse caráter infinito e livre que só se manifesta quando o conceito integra de tal modo toda a realidade para a qual é feito que nele não encontra senão a si nem nada de alheio nele permite que apareça. Só então representa a individualidade verdadeiramente livre e infinita. Mas a vida natural não transpõe os limites da sensação que reside nela mesma, não se alarga ao conjunto da realidade, e, além disso, acha-se diretamente condicionada, limitada e dependente em si própria porque, em vez de ser livre e determinada por si, só é determinada pelo que não é ela. Tal é também a sorte da realidade imediata e finita do espírito no seu saber, seu querer, suas manifestações, seus atos e seus destinos. Apesar de já aqui se encontrarem centros mais importantes, são centros estes que não guardam em si próprios, mais do que a guardam os pormenores particulares, a verdade, e só a representam nas relações recíprocas que têm com o todo. Considerado como tal, este todo, embora corresponda ao seu conceito, não se manifesta na totalidade, de tal modo que fica limitado no interior e só para o interior do conhecimento pensante existe em vez de, como perfeita correspondência da interioridade, se tornar visível na natureza exterior e de arrancar os inúmeros pormenores do estado de dispersão em que eles se acham para os concentrar e assim constituir uma expressão, uma forma. Essa é a razão por que o espírito, na finitude da existência, na sua limitação e na sua dependência do exterior, é incapaz de reencontrar a sua verdadeira e imediata liberdade, bem como a fruição desta liberdade, o que o obriga a procurar num plano superior a satisfação da sua exigência de liberdade. Esse plano é a arte, e a realidade da arte é o ideal. A necessidade do belo artístico provém, portanto, dos defeitos inerentes à realidade imediata, e a sua função pode definir-se dizendo que ele é chamado a representar, em toda a liberdade delas, até exteriormente, as manifestações da vida, sobretudo quando a vida é animada pelo espírito, e a tornar assim o exterior adequado ao conceito. Graças ao belo artístico, a verdade acha-se liberta da sua ambiência temporal, da sua peregrinação através das coisas finitas e adquire, ao mesmo tempo, uma expressão exterior na qual se apercebe, não já a mediocridade da natureza e da prosa, mas uma existência digna da verdade e que, por sua vez, se afirma como livre e autônoma pois que tem a sua determinação em si própria e não no que ela não é. ESTÉTICA O BELO ARTÍSTICO OU O IDEAL Sobre o belo artístico, três pontos principais é preciso considerar: 1º - O ideal como tal; 2º - O modo como o ideal se realiza na obra de arte; 3º - A subjetividade criadora do artista. A O IDEAL COMO TAL 1. A BELA INDIVIDUALIDADE Depois das precedentes considerações podemos, do modo mais geral e inteiramente formal, dizer o seguinte a propósito do ideal na arte: a verdade só existe e só é enquanto manifestada na realidade exterior, mas é-lhe possível ultrapassar a separação entre existência e verdade quando estas se reúnam e mantenham num todo que forme, por assim dizer, a alma de ambas e impregne todas as partes da manifestação. Para primeira ilustração do que acabamos de dizer, consideremos a forma humana: representa esta, como já anteriormente mostramos, uma totalidade de órgãos que constituem outras tantas subdivisões do conceito, de tal sorte que a cada membro pertence uma atividade particular e só lhe corresponde a execução de um movimento parcial. Se, porém, nos perguntarmos em qual destes órgãos aparece a alma enquanto alma, logo pensamos que é nos olhos, porque no olhar a alma se concentra; ela não só vê através do olhar como também no olhar se deixa por sua vez ver. E assim como, ao falarmos do exterior do corpo humano, nós dizemos que toda a sua superfície, ao contrário da do animal, revela a presença e as pulsações do coração, assim diremos agora que a arte tem de proceder de tal modo que em todos os pontos da sua superfície o fenomenal seja o olhar, sede da alma que torna visível o espírito. Todos nos lembramos do celebre dístico em que Platão dirige uma invocação a Aster: "Quando olhas as estrelas, oh! minha estrela, eu queria ser o céu Com mil olhos para te contemplar da minha altura". Numa paráfrase invertida, poder-se-ia dizer que a arte faz de cada figura sua um Argus com mil olhos para que a alma e a espiritualidade apareçam em todos os pontos da fenomenalidade, para que manifestem a sua presença não só na configuração do corpo, na expressão do rosto, nos gestos e nas atitudes, mas também nos atos e nos eventos, nos discursos e nos sons, pois, em quaisquer condições e contingências da fenomenalidade, elas devem ser o olhar que reflete a alma livre em sua infinitude interna. Perante tal exigência de uma animação geral, temos de nos perguntar qual seja a alma que tem os olhos em todos os pontos da fenomenalidade, ou, de um modo mais preciso, de que natureza é a alma assim suscetível de se manifestar plenamente na e pela arte. É que, ao empregar-se o eu no sentido corrente, fala-se também de uma específica alma dos metais, das pedras, das estrelas, dos animais, dos caracteres humanos com suas múltiplas particularidades e manifestações. No entanto, quando de coisas naturais se trata, como pedras, plantas etc., a palavra alma, com o sentido que lhe damos nós, só se pode empregar de um modo inadequado. A alma das coisas puramente naturais é uma alma finita, transitória, que para falarmos com propriedade, mais merece o nome de natureza especificada do que o de alma. A individualidade de tais existências afirma-se já completamente na sua finita manifestação, até quando esta só apresenta uma única limitação, e elevá-la ao plano da autonomia e liberdade infinitas não passa de uma aparência que do mesmo modo pode ser atribuída ao que quer que seja; mas quando se dá na realidade, essa elevação só provém do exterior, por intermédio da arte, sem que aquela infinitude e aquela liberdade consequentes tenham a sua origem nas coisas mesmas. De igual modo a alma sensível decerto representa, enquanto dotada de vitalidade natural, uma individualidade subjetiva; esta individualidade permanece, porém, encerrada em si mesma, sem penetrar na realidade, para, só depois, a si regressar e assim se tornar infinita em si. Esta é a razão por que o seu próprio conteúdo é limitado e por que as suas manifestações se reduzem, ou da vitalidade formal, inquietude, agitação, mobilidade, avidez, angústia e temor, ou à simples exteriorização de uma interioridade finita em si. Só a animação e a vida do espírito constituem a livre infinitude que lhe permite continuar a ser, na manifestação real, o interior para si próprio e, após a exteriorização, a si regressar e em si permanecer. Só ao espírito é, pois, dado imprimir à sua exterioridade, até quando esta comporta para ele um estado de limitação, o sinal da própria infinitude e assegurar o livre retomo a si mesmo. Se, todavia, o espírito só é livre e infinito enquanto apreende realmente a sua universalidade e comunica o mesmo caráter de generalidade aos fins que em si próprio propõe, é também suscetível, de acordo com este conceito, de existir, quando não tiver apreendido aquela liberdade, no estado de conteúdo limitado, de caráter estreito, de vida psíquica chã e estéril. Quando o conteúdo chega a tal ponto de insuficiência, a manifestação infinita do espírito aparece, por sua vez, como meramente formal porque, então, já se não acha perante a forma abstrata da espiritualidade consciente cujo conteúdo está em oposição com a infinitude do espírito livre. Graças a um conteúdo autêntico e substancial é que a existência limitada e mudável adquire, por sua vez, autonomia e substancialidade, e deste modo a precisão, a profundidade e um conteúdo rigorosamente definido e substancial acham-se simultaneamente realizados, o que dá à existência a possibilidade de se manifestar, através do seu conteúdo limitado, como universal e, ao mesmo tempo, como uma alma que conserva o seu quanto a si. Em suma, é missão da arte apreender a existência e apresentá-la como verídica nas suas manifestações fenomenais, quer dizer, no acordo dela com um conteúdo coerente consigo mesmo e possuidor de um valor próprio. A verdade da arte não é, pois, a da exatidão pura e simples a que se reduz a chamada imitação da natureza; para ser verdadeira, deve a arte realizar o acordo entre o exterior e o interior, estando este de acordo consigo mesmo como condição que toma possível a revelação exterior. Assim erguendo a um acordo, harmonioso com o seu verídico conceito, aquilo que, sem ela, está sujeito ao acidental e ao exterior, a arte põe à margem tudo o que, nos fenômenos, não corresponde ao conceito e só após esta depuração, esta purificação, cria o ideal. Tal maneira de proceder poderá qualificar-se de lisonja, como de lisonjeiros são tratados os pintores de retratos. Mas até o pintor de retrato, que é o artista menos interessado pelo ideal na arte, deve louvar, no sentido que nós damos a este termo, isto é, deve pôr de lado todas as particularidades exteriores do rosto e da expressão, da forma, da cor, dos traços fisionômicos, todo o aspecto natural da existência limitada, pelos, poros, cicatrizes, sinais da pele etc., para só reproduzir o caráter geral do retratado e as suas propriedades espirituais permanentes. Reproduzir uma fisionomia por simples imitação, tal como se apresenta em repouso, toda ela superficial e exterior, e reproduzir os traços verdadeiros, aqueles pelos quais se exprime a própria alma do retratado, são dois processos totalmente diferentes. O que, na verdade, o ideal exige é que a forma exterior seja a expressão da alma. Os quadros vivos, que desde há algum tempo estão na moda, imitam bem e de um modo bastante agradável os quadros de mestres célebres, reproduzindo com exatidão os pormenores, os vestuários etc.; mas para a expressão espiritual das fisionomias utilizam-se geralmente quaisquer rostos, o que quebra o encanto e dissipa a ilusão. As Madonas de Rafael apresentam formas do rosto, faces, olhos, nariz, lábios, adequados ao amor maternal que é, ao mesmo tempo, glorioso e alegre, piedoso e humilde. Dir-se-á que todas as mulheres podem sentir esse amor; decerto, mas nem todas as fisionomias se prestam para exprimir aquela profundidade de alma. O ideal manifesta a sua verdadeira natureza ao reintegrar de tal modo a existência exterior no espiritual que este encontra na fenomenalidade exterior, assim adequada ao espírito, a sua revelação. Apenas se trata, pois, de reintegração no interior, mas que não chega até a generalização da forma abstrata, até o extremo limite formado pelo pensamento, e que reside, por assim dizer, no ponto de encontro do interior com o exterior. O ideal é, assim, constituído pela realidade extraída da multidão de particularidades e acasos desde que, nesta exterioridade oposta à generalidade, o próprio interior apareça como uma individualidade vivente. Com efeito, a subjetividade individual, porque tem em si um conteúdo substancial que através dela se manifesta, acha-se situada naquele ponto central onde a substancialidade do conteúdo, em vez de se exteriorizar na forma de uma generalidade abstrata, se encerra na individualidade; assim ela se liga a certa existência que, liberta por sua vez do finito e do condicional, realiza um acordo livre com o interior da alma. Na poesia O Ideal e a Vida, à realidade, com suas dores e lutas, opõe Schiller "a beleza do tranquilo país das sombras". É o do ideal este país das sombras, o dos espíritos mortos para a vida do imediato, libertos das mesquinhas exigências que constituem a vida natural, soltos dos laços que os prendiam às influências exteriores, a todas as perversões e deformações inerentes à finitude do mundo dos fenômenos. Certo é que o ideal se não pode coibir de transpor as fronteiras do sensível, com as suas formas naturais, mais logo dele se retira trazendo consigo o mundo exterior, pois a arte tem o poder de restabelecer o aparelho de que esse mundo exterior carece para assegurar a sua persistência nos limites dentro dos quais a manifestação exterior surge como liberdade espiritual. É graças a isso que o ideal permanece livre, encerrado em si e, assente sobre si mesmo no próprio seio do sensível, só de si extrai toda a felicidade e alegria. Os ecos desta felicidade ressoam através de todas as manifestações do ideal, pois, por múltiplas que sejam as formas em que ele aparece e por mais longe que se alarguem aquelas manifestações, sempre se reencontra a jamais perdida alma do ideal. Daí lhe vem a sua verdadeira beleza: pois que o belo só existe como unidade total e subjetiva, sujeito do ideal, subtraído ao estado de dispersão em que vivem as individualidades da vida real com seus fins e aspirações heterogêneos, concentra-se em si mesmo e ergue-se a uma totalidade e autonomia superiores. Pode, por conseguinte, dizer-se que o que, antes de tudo, caracteriza o ideal é a tranquilidade e a felicidade serena, é a satisfação e a fruição de que goza sem sair de si. Toda a representação artística do ideal nos surge como uma divindade gloriosa. Todas as misérias, todas as cóleras e interesses dos nossos meios e fins transitórios são desprovidos de fundamento para as divindades gloriosas cuja alma e serenidade provêm daquela positiva concentração em si mesmas que tem um corolário na negação de toda a particularidade. Neste sentido se deverão entender as palavras de Schiller: "A vida tem seriedade, a arte tem serenidade". Estas palavras têm provocado jocosidades pedantes, afirmando-se que nada há de mais sério do que a arte em geral e, em especial, a poesia de Schiller (sendo, aliás, verdade que a própria arte ideal possui seriedade); não obstante, no próprio seio desta seriedade, e talvez apesar dela, a serenidade continua a ser o principal caráter da arte. É esta força da individualidade, é este triunfo da liberdade concentrada em si mesma, o que mais admiramos na tranquila serenidade das personagens criadas pelas obras de arte antigas. Isto não é apenas verdade para os casos em que a satisfação e a serenidade são obtidas sem luta, mas também para aqueles outros em que o sujeito sofre infelicidades que o dilaceram a ele e a toda a sua existência. Quando os heróis trágicos, por exemplo, são representados sucumbidos pelo destino, a sua alma regressa a eles mesmos como se dissesse: assim seja. Nunca o sujeito deixa de ser fiel a si próprio; renuncia ao que lhe foi arrebatado, mas não lhe foram arrebatados os fins que pretendia alcançar e é ele quem os abandona sem se perder perdendo-os. O homem destroçado pelo destino poderá perder a vida, mas não a liberdade. É esta confiança em si que lhe permite, na dor, manter e pôr à prova a calma e a serenidade. Na arte romântica, são mais acentuadas a discórdia e a dissonância interiores, mais profundas e perduráveis as oposições. Assim, por exemplo, os quadros que representam a Paixão limitam-se por vezes à expressão insultuosa da soldadesca cruel à horrível deformação dos seus rostos malvados; parecer-nos-á, então, que este desdobramento, sobretudo quando representa o vício, o pecado e o mal, é incompatível com a serenidade do ideal; não em todos os casos, mas decerto muitas vezes, até quando aquele desdobramento não é tão profundo e permanente, a fealdade ou, pelo menos, a não beleza substitui a beleza serena. Num outro ciclo da velha pintura holandesa, a lealdade e a fidelidade para consigo, bem como a fé e a inquebrantável certeza, são sinais de uma conciliação da alma consigo mesma sem, todavia, atingirem a serenidade e a satisfação do ideal. No entanto, até na arte romântica se encontra a expressão da alegria na submissão, da felicidade na dor e da beatitude no sofrimento apesar de, nessa arte, a dor e o sofrimento serem representados como penetrando mais profundamente na alma e na intimidade do sujeito. Até na música italiana em que predomina a seriedade religiosa, a expressão do lamento ressente-se dessa volúpia e dessa transfiguração da dor. Tal expressão adquire, na arte romântica, a forma do sorriso por entre as lágrimas. As lágrimas acompanham a dor, o sorriso revela a serenidade, e o sorriso por entre lágrimas é o sinal de uma tranquila segurança apesar da tortura do sofrimento. Mas não deve o sorriso ser uma simples manifestação sentimental, não deve provir da vaidade do sujeito, não deve resultar de uma veleidade interessada em mostrar que se está acima das pequenas misérias e sensações subjetivas; é preciso que o sorriso signifique o triunfo e a liberdade do belo sobre todas as dores, como era o de Ximena, de quem diz o romanceiro do Cid: que era bela nas lágrimas. A falta de contenção no homem é coisa feia e repugnante ou ridícula. As crianças, por exemplo, choram pelos motivos mais insignificantes e fazem-nos rir; mas as lágrimas de um homem sério, senhor de si e profundamente comovido, impressionam-nos e emocionam-nos de outro modo. Pode, no entanto, estabelecer-se uma separação abstrata entre o riso e as lágrimas, e abstratamente utilizar aquele ou estas para as exigências da arte. Lembremos, como exemplo, o coro do riso no Freischütz, de Weber. De um modo geral, o riso é uma expansão explosiva que não deve, porém, chegar até a perda da contenção sob pena de deixar fugir o ideal. Há um riso deste gênero e assim abstrato num duo do Obéron, de Weber, que se não pode ouvir sem angústia e sem ter pena da garganta e do peito da cantora. Como é diferente a impressão que nos causa o inextinguível riso dos deuses de Homero, o riso provindo da tranquila beatitude divina, e que é serenidade, não resultado de uma abstrata imoderação. Também as lágrimas, enquanto lamentação incoercível, não acham lugar na obra de arte ideal; mais uma vez citaremos o Freischütz de Weber onde vemos as lágrimas adquirirem as proporções de uma desolação abstrata. Na música, canta-se pelo prazer e pela alegria de cantar, como a cotovia canta ao ar livre. Exprimir com gritos a dor ou a alegria nada tem de musical; até no sofrimento, a doce voz do choro atravessa e transfigura a dor de tal modo que obriga a pensar que vale a pena sofrer assim para ouvir tal lamento. Essa é a função da melodia, do canto, em toda a arte. Assim se justifica, até certo ponto pelo menos, o princípio da ironia moderna, no sentido de que, por um lado, a ironia é quase sempre desprovida de verdadeira seriedade, preferindo incidir principalmente sobre assuntos inferiores, e de que, por outro lado, conduz a simples veleidades da alma em vez de procurar a ação e o ser reais. Novalis, por exemplo, que foi uma das almas mais nobres que adotaram este ponto de vista, acabou por renunciar a todo o interesse preciso, a exilar-se da realidade e a cair numa verdadeira consunção do espírito. Esta veleidade não permite, aos que a têm, entregarem-se à atividade e à produtividade reais com o receio de se macularem no contato com o mundo finito; mas isso não impede que tenham o sentimento do caráter defeituoso de tal abstração. É assim que a ironia implica aquela negatividade absoluta na qual o sujeito, ao destruir tudo o que tem uma determinação precisa e unilateral, se refere a si mesmo; como, porém, a destruição a que se entrega não atinge somente, como no cômico, o que é desprovido de valor em si, o que se manifesta como oco e vazio, mas abrange também coisas realizadas e excelentes, a ironia toma-se uma arte de destruição universal e leva, tal qual a veleidade de que há pouco falamos, a uma inconsistência que nada tem de artístico e nenhuma relação possui com o verdadeiro ideal. É que o ideal exige um conteúdo substancial em si, que, pela razão de se apresentar numa forma tirada ao exterior, se particulariza, se impõe uma limitação, mas uma limitação tal que tudo o que é apenas exterior nela fica abafado e aniquilado. Graças apenas a esta negação da exterioridade pura e simples, a forma que o ideal reveste aparece, à intenção e à representação, como a manifestação do conteúdo substancial de que acabamos de falar. 2. RELAÇÕES ENTRE O IDEAL E A NATUREZA A parte de imagem e de exterior, de que o ideal precisa tanto como do fundamental conteúdo, e o modo pelo qual aquela e este se interpenetram, põe perante nós a questão das relações entre o idealismo da arte e a natureza. Com efeito, o elemento exterior e a conformação que recebe ligam-se àquilo que designamos pelo termo geral natureza. Neste aspecto, está ainda longe de se aproximar de uma solução a antiga discussão, sempre renovada, para saber se a arte deve ser uma representação natural do que existe exteriormente ou se deve enobrecer e transfigurar os fenômenos naturais. Com palavras tão vagas como direito da natureza, direito do belo, ideal e verdade natural, poder-se-á discutir sem fim. "Não há dúvida", diz-se, "de que a obra de arte deve ser natural, mas há também uma natureza vulgar, feia, que se não deve reproduzir tal qual e, por outro lado" ( ... ) assim se procede e raciocina sem jamais chegar a um resultado positivo. Nos nossos dias, a questão da oposição entre o ideal e a natureza foi novo erguida ao primeiro plano por Winckelmann. Foi o entusiasmo de Winckelmann provocado, como já dissemos, pelas obras da antiguidade e suas formas ideais, e não descansou enquanto não adquiriu a convicção da excelência delas e não impôs ao mundo o reconhecimento e o estudo dessas obras-primas da arte. Esta campanha voltou os espíritos para a investigação de uma representação ideal, onde se julgava residir a beleza, mas o que se obteve foi a criação de obras insípidas, sem vida, sem caráter e superficiais. Foi este vazio do ideal, sobretudo na pintura, que M. von Rumohr tinha em vista na sua polêmica contra a ideia e o ideal. À teorese cumpre resolver esta oposição. Quanto ao seu interesse prático para a arte, podemos deixa-lo ainda uma vez de lado, pois bem se poderá insuflar quantas teorias haja aos talentos da mediocridade que isso será sempre trabalho perdido. Para as suas produções, pode a mediocridade inspirar-se nas mais falsas ou nas melhores teorias, que sempre produzirá obras medíocres e débeis. Além disso, e ainda por outras razões, a arte em geral e a pintura em particular renunciaram a esta investigação dos chamados ideais, mas tentaram, graças ao despertar do interesse pela velha pintura italiana e alemã, algo de mais vivificante quanto às formas e ao conteúdo. Também o emprego de elementos naturais, outrora tão utilizados na arte, acabou por enfadar. No teatro, por exemplo, toda a gente se cansou já da representação naturalista de historietas da vida doméstica cotidiana. As discórdias do pai com a mãe e dos filhos com as filhas, os queixumes sobre as dificuldades da vida, sobre os rendimentos e sobre a dependência dos superiores, as intrigas dos criados de quarto e dos secretários bem como as zangas da mulher com as criadas, na cozinha, e com os apaixonados e suspiros os pretendentes das filhas, no salão - tudo isso são cuidados e tormentos que todos encontram no seu convívio, em sua casa, sem precisarem ir ao teatro para assistir à mais ou menos fiel reprodução dele. Ao falar-se da oposição entre o ideal e a natureza, tinha-se em vista tal arte mais do que qualquer outra, e pensava-se principalmente na pintura, cujo domínio é constituído precisamente pela particularidade intuitiva. Vamos, pois, formular a questão de um modo mais geral; a arte deve ser poesia ou prosa? O que há de verdadeiramente poético na arte é constituído por aquilo a que chamamos ideal. Se o ideal fosse uma simples palavra, seria fácil abandoná-lo. Mas teríamos, então, de perguntar o que é que, na arte, é poesia e o que é prosa. Atribuindo o poético em si a certas artes, corre-se o risco, e mais do que uma vez isso já aconteceu, de se perder a rota, porquanto tudo o que pertence incontestavelmente à poesia, e sobretudo à poesia lírica, pode também ser expresso pela pintura. Ora, é nisso que consiste o erro que mais atrás assinalamos. E assim que, por exemplo, a exposição de pintura que atualmente (1828) se realiza, apresenta certo número de quadros pertencentes à mesma escola (a de Düsseldorf) e que foram buscar os seus assuntos à poesia e, em especial, ao aspecto emocional da poesia. Se se examinarem repetida e atentamente, esses quadros revelam-se insípidos e adocicados. Apresentemos agora as proposições gerais que podem formular a respeito da oposição que nos interessa: Convém insistir inicialmente na idealidade puramente formal das obras de arte, dado que a poesia em geral, como o seu nome indica, é uma obra humana, uma produção que o homem concebeu no domínio da representação e que realizou pela sua própria atividade, depois de a ter elaborado e transformado. Completamente indiferente pode ser o conteúdo que, fora da sua representação artística, apenas se nos pode apresentar, na nossa vida cotidiana, com um interesse momentâneo. Assim, por exemplo, soube a pintura holandesa recriar as aparências fugidias da natureza e tirar delas intermináveis efeitos. Quando olhamos esses quadros, perpassam diante do nosso olhar veludos, clarões de metais, luz, cavalos, mulheres, velhas, camponeses envoltos no fumo dos cachimbos, vinhos que brilham em copos transparentes, rapazes de roupas rotas a jogar cartas e centenas de outros assuntos que na vida cotidiana pouco nos interessam, pois é com um interesse completamente diferente que jogamos as cartas, que bebemos, que cavaqueamos disto e daquilo. Ora, o que nos atrai nestes conteúdos quando representados pela arte é precisamente essa manifestação dos objetos enquanto obras do espírito, que transforma em profundidade o mundo material, exterior e sensível. Em vez de uma lã, de uma seda reais, em vez de cabeleiras, de vidros, de alimentos e de metais reais, o que vemos efetivamente são cores, em vez de dimensões totais de que a natureza precisa para se manifestar, o que vemos é uma simples superfície e, no entanto, a impressão que nos provocam esses objetos pintados é a mesma que receberíamos se nos encontrássemos perante as suas réplicas reais. Ao lado da prosaica realidade existente, a aparência criada pelo espírito é, pois, um milagre de idealidade, uma espécie de zombaria, ou de ironia se quiser, feita à custa do mundo natural exterior. Pense-se nos meios a que, na vida ordinária, o homem e a natureza têm de recorrer, nos processos que têm de utilizar para produzir esses objetos reais: pense-se, por exemplo, na resistência que oferecem os metais para serem trabalhados. Ora, a representação, da qual a arte extrai os seus objetos, é, pelo contrário, um elemento simples e fácil; facilmente a arte colhe do seu interior tudo o que a natureza e o homem, na sua natural existência, só obtêm à custa de esforços quase sempre consideráveis. De um modo análogo, os objetos representados e o homem na sua vida cotidiana não são de uma riqueza inesgotável; pedras preciosas, ouro, plantas, animais etc. têm si próprios uma existência limitada. Mas, enquanto artista criador, o homem é todo um mundo pelo conteúdo que desviou da natureza e acumulou no vasto reino da representação e da intuição para juntar um tesouro que exterioriza livremente, livre das numerosas condições e preparativos a que se está submetido o real. Ocupa a arte, nesta idealidade, o termo médio entre a existência acanhada, puramente objetiva, e a representação puramente exterior. Apresenta-nos ela os próprios objetos, mas extraídos do interior; e não os põe à nossa disposição para este ou aquele fim, limitando-se a suscitar o nosso interesse pela abstração que a aparência ideal oferece à contemplação puramente teórica. Graças a esta idealidade, a arte imprime um valor a objetos que em si são insignificantes e que, apesar dessa insignificância, a arte fixa para si mesma transformando-os no seu próprio fim e atraindo a nossa atenção sobre coisas que, sem ela, nos escapariam completamente. O mesmo papel desempenha a arte em relação ao tempo e também aqui a sua ação é idealizante. Torna perdurável o que, no estado natural, é fugidio e efêmero: quer se trate de um sorriso instantâneo, de uma rápida contração sarcástica da boca, de manifestações mal perceptíveis da vida espiritual do homem, quer de acidentes e eventos que vão e vêm, que existem um momento para longo serem esquecidos, tudo isso a arte arranca à existência perecível e evanescente, e também aí se mostra superior à natureza. O que, porém, sobretudo nos interessa nesta idealidade formal não é o próprio conteúdo, mas a satisfação que nos proporciona a sua exteriorização. A representação deve aqui aparecer natural; mas o que, do ponto de vista formal, constitui o poético e o ideal, não é o natural como tal mas sim o ato que reduz a nada a materialidade sensível e as condições exteriores. Sentimos alegria perante uma manifestação que deve ter todas as aparências de uma manifestação natural, mas a sua existência provém do espírito que a produziu sem recorrer a nenhum dos meios de que a natureza dispõe. Os objetos encantam-nos, não porque sejam naturais, mas porque são feitos tão naturalmente. Interesse bem mais profundo está ligado à característica que o conteúdo oferece de não ser apenas representado nas formas em que a sua existência imediata se apresenta, mas de ser, uma vez apreendido pelo espírito, amplificado no interior destas formas e de receber uma nova orientação. Tudo o que existe segundo a natureza só existe, de qualquer ponto de vista em que seja considerado, no estado individual. Pelo contrário, a representação implica a determinação do geral que imprime, a tudo quanto dela sai, o caráter da generalidade oposta à individualidade natural. Neste aspecto, a representação possui a vantagem de uma maior capacidade e a de apreender o interior, de o expor e explicar de um modo mais visível. Ora, a obra de arte não é apenas uma manifestação geral, é também uma concretização definida. Mas, gerada pelo espírito e pelo poder de representação, mostra-se ela penetrada de universalidade apesar do seu caráter de individualidade vivente e sensível. Nisso se exprime a idealidade superior do poético, diferente da idealidade formal do trabalho de fabricação. Considerada deste ponto de vista, a função da arte consiste em apreender o objeto em toda a sua generalidade e em omitir, na reprodução exterior, tudo o que seja estranho ou indiferente à expressão do conteúdo. É assim que o pintor não exprime tudo quanto vê no mundo exterior mas escolhe os traços adequados e conformes com os conceitos da coisa; e quando escolhe para modelos a natureza e os produtos naturais, o que existe à sua volta, não o faz porque a natureza haja produzido as coisas, tais quais são, mas porque é tais quais são que as coisas são verdadeiras e porque o modo como as coisas foram feitas é superior às próprias coisas. Ao pintar a figura humana, não procede o artista como um restaurador de quadros antigos que reproduz, nos sítios estragados, todas as fendas abertas pelo estalar do verniz e das cores, cobrindo de uma espécie de rede todas as demais partes velhas do quadro; até o pintor de retratos omite certos pormenores como sardas, espinhas, cicatrizes de vacinas, sinais produzidos por doenças de fígado etc. A chamada pintura naturalista de um Denner por ninguém é considerada como modelo. Também os músculos e as veias mal se devem esboçar e nunca serão reproduzidos com a precisão dos pormenores naturais. É que há em tudo isso pouca ou nenhuma espiritualidade e é principalmente o rosto humano que serve para exprimir o espiritual. Por esta mesma razão, não há motivos para considerar como sinal de inferioridade o fato de possuirmos menos estátuas nuas do que os antigos. O corte dos nossos vestuários atuais é prosaico e sem arte quando comparados com os vestuários antigos, de um traço mais ideal. Como os dos antigos, também os nossos vestuários têm por finalidade cobrir o corpo. O vestuário representado nas obras de arte antigas é, porém, uma superfície mais ou menos informe que precisa de um apoio fornecido pelo corpo: os ombros, por exemplo. A não ser nesse ponto, o tecido fica informe, cai livremente ao sabor apenas do seu peso e, consoante a atitude do corpo, a posição ou o movimento dos membros, adquire esta ou aquela forma. O que constitui a parte ideal do vestuário é a determinação que mostra que o exterior serve apenas a expressão variável do espírito, e esta expressão manifesta-se no corpo. Daí resulta que a forma particular das roupagens, a disposição das pregas e a maneira como sobe ou cai, unicamente são determinadas pelo interior e só momentaneamente se adaptam a tal e tal posição, a este ou àquele movimento. No traje moderno, a forma apresenta, pelo contrário, um completo acabamento; o tecido é cortado e cosido de acordo com a forma do corpo a que se destina, de modo que o vestuário perde grande parte, se não toda a liberdade de ele mesmo se ajeitar, subir ou cair. Até a forma das dobras é fixada pelas costuras e, de um modo geral, o corte e o feitio são dados, de uma vez por todas, no trabalho técnico e artesanal do alfaiate. Certo é que a estrutura do corpo determina, em geral, a forma do vestuário que, precisamente ao adotar a forma do corpo, constitui uma má imitação ou então, conforme a uma moda convencional ou ao capricho de uma época, o que faz é deformar os membros humanos; para mais, uma vez feito, o corte permanece sempre o mesmo sem que nele tenham influência a posição e os movimentos. Quaisquer que sejam, por exemplo, os movimentos dos braços e das pernas, as mangas e as calças ficam as mesmas. Quando muito, mostram as dobras certa flexibilidade, e essa também limitada pelas costuras. Por força de tantos motivos, o nosso vestuário não está, enquanto exterior, suficientemente livre do interior para aparecer como delineado de dentro; pelo contrário, na falsa imitação da forma natural, fica sempre invariavelmente idêntico, pois o feitio foi-lhe dado de uma vez por todas. Quanto acabamos de dizer do corpo humano e da maneira de o vestir dir-se-á também de muitas outras atribuições exteriores e exigências da vida humana que, sendo necessárias em si e comuns a todos os homens, em nada se relacionam com as determinações e interesses essenciais, com o que, pelo seu conteúdo, constitui o aspecto pura e essencialmente humano, qualquer que seja o encadeamento aparente e exterior das condições físicas - comer, beber, dormir etc. - e dos atos que emanam do espírito. Outro tanto se dirá também da representação artística, tal como ela é realizada na poesia, e não é sem razão que se tem visto em Homero o poeta que ao naturalismo deu a mais elevada expressão. No entanto, apesar de toda a paixão que tinha pelo concreto e pelo real, apesar de toda a inárkheia, Homero, é obrigado a só falar nela de um modo geral, e ninguém se lembraria de o censurar por não haver descrito o concreto e o real com todos os pormenores dos seus aspectos autênticos e naturais. Ao descrever o corpo de Aquiles, Homero fala da sua grande testa, do nariz bem desenhado, das pernas robustas e altas, sem, todavia, descrever ponto por ponto os caracteres reais destes membros, a posição de cada parte do corpo em relação às outras, a cor, todos os pormenores que ocupariam um naturalismo entendido no sentido literal da palavra. Em vez da coisa, o poeta dá nome, a palavra em que o individual aparece no aspecto do geral, a palavra que tem já um caráter geral porque é produzida pela representação. Poder-se-ia objetar que é natural empregar o nome, a palavra, a título de que ele constitui uma abreviação infinita do natural; decerto, mas a palavra não deixa de ser um natural que se opõe diretamente à verdadeira naturalidade e que a suprime até. Podemos, portanto, interrogarmo-nos sobre qual seja o gênero de naturalidade que se opõe ao poético, visto que falar da natureza em geral é empregar uma palavra vaga e vazia. A poesia deve sempre mostrar o aspecto enérgico, acentuado, essencial das coisas; o ideal é constituído por este essencial aspecto expressivo, e não pelo que simplesmente existe e só nos pode deixar, na descrição pormenorizada da narrativa de uma intriga ou de uma cena, a impressão de uma fadiga enfadonha e insuportável. Do ponto de vista da generalidade, existem diferenças entre as artes; têm umas um caráter mais ideal, são outras mais acessíveis à percepção exterior. As produções da escultura, por exemplo, são mais abstratas do que as da pintura; a poesia, os poemas épicos, são, por um lado, dotados de menor vida exterior do que uma verdadeira representação dramática, mas, por outro lado, ultrapassam a arte dramática graças ao seu conteúdo concreto: com efeito, os rapsodos épicos oferecem à percepção quadros concretos dos acontecimentos, ao passo que os dramaturgos têm de concentrar toda a atenção nas motivações internas dos atos, nas influências que sofre e a que reage a vontade. Como, todavia, é o espírito que realiza, numa forma exterior, o conteúdo que tem um interesse intrínseco, cabe perguntar, também neste caso, qual seja o significado preciso da oposição entre o ideal e o natural. Representando um dos termos desta oposição, a palavra natural não pode ser empregada com o sentido corrente porque, considerado como uma exteriorização do espírito, o natural não se nos oferece de um modo direto, como as manifestações vitais de um animal ou as paisagens da natureza; na medida em que o natural não é senão o espírito encarnado, apresenta-se-nos, pela sua mesma definição, como expressão do espiritual e, portanto, como já identificado. Diz-se que o rosto dos mortos adquire uma expressão infantil; a expressão, corporalmente fixada, das paixões, dos hábitos, das tendências, o que há de característico em todo o querer e em todo o agir, desapareceu e deu lugar à indeterminação dos traços infantis. Ora, durante a vida, os traços fisionômicos e todo o rosto recebem, do modo com exprimem o interior, particularidades características, o que explica as diferenças entre os diversos povos, as diversas classes sociais etc., diferenças que provêm daquelas que distinguem as tendências e as atividades. Em todos estes aspectos, o exterior apresenta-se-nos penetrado de espírito, e, portanto, idealizado em relação à natureza. Aqui se acha o ponto de inserção significativo das relações entre o ideal e o natural. Com efeito, pretende-se, por um lado, que as formas naturais do espírito existem já no mundo fenomenal, não recriado pela arte, nele existem num tal estado de perfeição e de excelência que não pode haver beleza superior à que já existe e que possa, por isso, ser qualificada de ideal, acrescenta-se até que a arte é incapaz de igualar sequer as produções da natureza. Por outro lado, exige-se que a arte encontre por si mesma, pelos seus próprios esforços, outras formas e representações ideais que nada tenham de comum com o que existe na natureza. Devemos assinalar a importância que, neste aspecto, tem a polêmica de Von Rumohr, porque se outros há que, enchendo a boca com ideal, falam desdenhosamente da vulgar natureza, ele, ao menos, fala, com o mesmo tom elevado e superior, da ideia e do ideal. No mundo do espírito existe, na verdade, uma natureza exterior e interior vulgar: uma natureza exteriormente vulgar porque corresponde a um interior vulgar, porque é uma manifestação de tendências inferiores, como a inveja, o ciúme, a cupidez, a mesquinhez e a sensualidade. Até esta natureza vulgar pode, sem dúvida, oferecer à arte assuntos, o que tem acontecido muitas vezes; mas, então, como já o dissemos, todo o interesse, todo o essencial interesse se liga, não ao assunto como tal, mas à maneira, à arte com que ele é explorado, e será em vão que o artista tentará interessar um homem culto na totalidade da sua obra, quer dizer, tanto no conteúdo como na forma. Foi sobretudo a pintura que se ocupou destes assuntos que a escola holandesa elevou ao mais alto grau de perfeição. Que é que atraiu os holandeses para este gênero, que conteúdo se exprime nesses quadrinhos que provocam uma irresistível atração quando só mereciam, ao que parece, serem postos de lado e rejeitados como reproduções da natureza vulgar? Com efeito, examinados atentamente, os assuntos desses quadros ainda se afiguram mais vulgares do que se julgava. Em si mesmos encontraram os holandeses os conteúdos dos seus quadros, na atualidade da sua própria vida, e não há motivo para os censurar por terem dado a essa atualidade uma realidade nova recriando-a pela arte. O que se oferece aos olhares e ao espírito dos contemporâneos já anteriormente lhes deve ter sido dado, pois, sem isso, não seria possível despertar-lhes o interesse. Ora, se se quiser saber o que interessava os holandeses de então, é preciso interrogar a história. Os holandeses tiveram de criar a maior parte do solo em que vivem e foram obrigados a preservá-la incessantemente dos assaltos do mar; os burgueses das cidades e os camponeses tiveram de sacudir, pela coragem, valentia e audácia, a dominação espanhola desse poderoso senhor do mundo, Felipe II, filho de Carlos V, e conquistaram, com a liberdade política, a liberdade religiosa. Tal civismo, tal espírito de empreendimento nas pequenas como nas grandes ações, no próprio país como vasto mar, tal prosperidade vigilante e honrada, tal consciência de si transbordante e alegre, tudo isso os holandeses devem a si mesmos, à sua atividade, e isso é o que constitui o conteúdo geral da sua pintura, conteúdo que está longe de ser vulgar e que deve ser apreciado com a amabilidade de um cortesão ao regressar de uma boa sociedade. É este sinal de robusta nacionalidade que se encontra na Ronda da Noite, de Rembrandt, em Amsterdam, em muitos dos retratos de Van Dyck, nas cenas de cavaleiros de Wouwermann e até nas orgias, nos festejos e nos jogos campestres. Ainda hoje aparecem nas exposições, como na deste ano, quadros deste gênero, mas a sua arte está longe de igualar a dos quadros holandeses e nem sequer, pelo seu conteúdo, exibem a mesma alegria e a mesma liberdade. Vemos, por exemplo, uma mulher que se encaminha para o casebre a fim de discutir com o marido. O que resulta é uma cena em que os atores estão cheios de ódio e de uma cólera venenosa. O contrário acontece com os holandeses; nas suas casas, núpcias, danças, festins e orgias, poderá haver rixas e zangas, mas tudo, em conjunto, se passa feliz e alegremente; lá estão também as mulheres e as raparigas, e o sentimento de liberdade, que vai até a turbulência, anima todos e cada um. Esta alegria espiritual provoca um prazer honrado, atinge até os animais, e dá às personagens uma expressão de ociosidade e prazer; esta viçosa liberdade espiritual, esta vida transbordante preside à concepção e à execução que constituem a alma de tal pintura, uma alma de elevada qualidade. Pelos mesmos motivos se deverão qualificar de excelentes os mendigos pintados por Murillo (Galeria Central de Munique). Visto do exterior, também aqui o assunto pertence à natureza vulgar; a mãe cata os piolhos de um rapazinho que vai roendo tranquilamente uma côdea; num outro quadro análogo, duas figuras de mendigos andrajosos comem melão e uvas. E interiormente e exteriormente transparece, através desta miséria e desta seminudez, um tão perfeito descuido que traz consigo profundo sentimento de saúde e de alegria de viver. Este descuido, esta indiferença para com o mundo exterior, esta liberdade interna que o exterior não pode atingir, forma o conceito do ideal. Há em Paris o retrato de um rapazito pintado por Rafael: está ele sentado, preguiçando, a cabeça apoiada num braço e o olhar atirado para os longes livres com tal felicidade de contentamento descuidado que não nos podemos arrancar à contemplação deste quadro de admirável saúde espiritual. O mesmo sentimento de satisfação nos causam os rapazes pintados por Murillo. Nada de alheio os interessa, nada de alheio os preocupa, e não porque tenham uma inteligência obtusa, mas porque estão contentes e felizes como os deuses do Olimpo; não fazem nada, nada dizem, mas são homens de uma só peça, que ignoram o depauperamento e a não liberdade em si, o que os torna virtualmente aptos para tudo, de tal modo que temos a impressão de que esses rapazes são senhores de um destino que não podemos sequer adivinhar. Estas concepções artísticas são completamente diferentes das que levam à representação de uma mulher colérica e biliosa, de um camponês que prepara o seu chicote ou de um postilhão adormecido sobre a palha. Os quadros deste gênero devem ter pequenas dimensões e aparecer como qualquer coisa de insignificante, de modo a permitirem-nos dominar, de uma só vez, o objeto exterior e o conteúdo do quadro. Inadmissível seria representar estes objetos no tamanho natural e pretender mostrá-los, com o pretexto do realismo, na sua totalidade. Compreendemos, deste modo, que aquilo a que se convencionou chamar a natureza vulgar pode também entrar no domínio da arte. Para a arte existem, porém, assuntos de um caráter mais ideal e mais elevados do que a representação, em pormenores que em si são sempre insignificantes, daquela alegria de viver e daquele decoro burguês. Com efeito, tem o homem interesses e fins mais elevado, que provém do desenvolvimento e aprofundamento do espírito e em cuja realização se deve mostrar em harmonia consigo mesmo. A grande arte é a que assume a missão de representar este mais elevado conteúdo. Só aqui se formula a questão de saber onde se devem procurar as formas adequadas aos produtos do espírito. Porque o artista tem em si essas elevadas ideias de que é criador, pretendem uns que é em si mesmo que ele deverá encontrar, mediante um novo ato de criação, as formas adequadas a essas ideias, como sejam as imagens dos deuses gregos, as de Cristo, dos apóstolos, dos santos etc. Contra esta maneira de ver se erguem outros, como Von Rumohr, que afirma que os artistas têm errado sempre que inventam as suas formas assim se afastando da natureza, e opõe-lhes as obras-primas dos italianos e dos holandeses. Acusa ele a estética dos últimos sessenta anos de haver lutado por provar que "o fim, o principal fim da arte, consiste em melhorar, em corrigir a criação nas suas diversas manifestações, em produzir formas arbitrárias que se diz serem destinadas a embelezar a criação e a recompensar, por assim dizer, o gênero humano de não ter sabido dar à natureza formas mais belas". Por isso, Von Rumohr aconselha o artista "a renunciar à intenção titânica de nobilitar, de transfigurar, ou qualquer outro que seja o nome com que se designe esta presunção do espírito humano em matéria de arte, as formas naturais”. Está ele, efetivamente, convencido de que, na realidade dada, se podem encontrar, até para os mais sublimes objetos espirituais, formas exteriores satisfatórias, e acrescenta, por conseguinte, que "a representação artística, até quando incide sobre objetos de uma sublime espiritualidade, jamais deve partir de sinais arbitrariamente escolhidos, mas de formas orgânicas cuja significação está fixada pela natureza”. Ao dizer isso, Von Rumohr pensa sobretudo nas formas ideais da antiguidade, reunidas e descritas por Winckelmann com um mérito que será inesquecível apesar dos erros que haja, segundo Von Rumohr, cometido na interpretação de certos caracteres ou sinais particulares. Crê, assim, Von Rumohr que o prolongamento da parte abdominal do corpo, característica para Winckelmann das formas ideais da antiguidade, será antes uma característica das estátuas romanas. Pelo contrário, exige, na sua polêmica contra o que é ideal, que o artista se entregue completamente ao estudo das formas naturais onde encontrará manifestações da verdadeira beleza. Porque, diz ele, "a mais importante beleza assenta, não na arbitrariedade humana, mas na simbólica das formas com raízes na natureza, simbólica que permite às formas atingir combinações definidas com sinais e caracteres perante os quais em nós despertam, necessariamente, certas representações e certos conceitos ao mesmo tempo em que a consciência de certos sentimentos até então adormecidos". Acontece assim que "um traço espiritual oculto, que se chama ideia, estabelece uma afinidade entre o artista e manifestações da natureza onde ele pouco a pouco aprende a conhecer melhor o seu próprio querer e a mais facilmente encontrar os meios de oprimi-lo”. Não se trata, porém, na arte ideal, de sinais arbitrariamente escolhidos; e se aconteceu que as formas ideais da arte antiga, por muito terem descuidado e desdenhado as verdadeiras formas naturais, acabaram por se transformar em falsas e várias abstrações, então Von Rumohr tem toda razão de protestar contra tal processo. O essencial, na questão da oposição entre o ideal da arte e a natureza, reside no seguinte: As formas naturais e reais de conteúdo espiritual devem, com efeito, ser consideradas como simbólicas, no sentido geral do termo, e, sobretudo, no sentido de que contêm, não um valor direto em si, mas uma expressão do mundo interior, do mundo do espírito. É isso que imprime à sua realidade independente da arte um caráter ideal, diferentemente do que acontece na natureza, que nada de espiritual representa. Nos graus mais elevados da arte, o conteúdo interno do espírito deve, pois, receber uma forma exterior. Reside este conteúdo no espírito humano real e, por isso, possui, como tudo o que é interior ao homem, a sua forma exterior mediante a qual se exprime. Admitindo este ponto, cientificamente se deverá considerar negociosa a questão de saber se a realidade existente contém figuras e fisionomias suficientemente belas e expressivas para que a arte delas se possa servir na representação, por exemplo, de um Júpiter, com toda a sua majestade, serenidade e poder, de uma Juno, de uma Vênus, de um São Pedro, de Cristo, de São João, da Virgem Maria etc., pintando-os de acordo com modelos que existem na realidade. É fácil arranjar argumentos a favor de uma e de outra solução da questão, mas esta continua a pertencer ao domínio empírico e até empiricamente é impossível resolvê-la de um modo definitivo. Só recorrendo a um sinal se poderia resolvê-la, o que, aliás, seria difícil no caso dos deuses gregos, pois até em nossos dias há pessoas que viram belezas perfeitas, enquanto outras, embora infinitamente mais dotadas, jamais viram alguma. Além disso, a beleza da forma ainda não é o que constitui aquilo a que chamamos o ideal, porque o ideal comporta também a individualidade da forma. Um rosto belo e de forma regular, por exemplo, pode ser frio e inexpressivo. Ora, os ideais encarnados pelos deuses gregos são indivíduos a que não falta a determinação bem caracterizante no seio da generalidade. O que há de vivente no ideal assenta, portanto, no fato de que a significação espiritual determinada, que se deve representar no que ela tem de essencial, anima de um a outro extremo a manifestação exterior e tanto se exprime na atitude como na posição, no movimento como nos traços do rosto, na forma e estrutura dos membros etc., de modo que nada fique vazio e insignificante e que tudo seja penetrado da significação que importa. O que hoje nós conhecemos das estátuas gregas atribuídas a Fídias impressionou-nos precisamente por esta penetração da vida que as anima. O ideal ainda nelas se mantém em toda a sua pureza, ainda não efetuou o trânsito para o gracioso, o atraente, o amaneirado; cada forma permanece em íntima relação com a significação geral que deve ser encarnada. Isso caracteriza a arte maior, esse poder de animar no mais alto grau as manifestações exteriores do ideal. Comparada com a particularidade do mundo fenomênico real, esta essencial significação pode ser considerada como abstrata, principalmente na escultura e na pintura, que incidem sobre um só instante sem prosseguirem o desenvolvimento em todos os sentidos como faz Homero, que soube descrever o caráter de Aquiles mostrando a sua dureza e crueldade como também a sua doçura e lealdade para com os amigos, além de muitos outros traços. Decerto se pode encontrar também tal significação expressa na realidade concreta, pois não há rosto que não possa refletir a piedade, a serenidade, a devoção etc.; mas estas fisionomias exprimem também mil outras coisas a que é quase ou completamente impossível atribuir uma significação essencial. E por isso que um retrato, devido a sua particularidade, logo se toma por aquilo que é. Certos quadros alemães e holandeses da Idade Média representam os retratos de um pai com a sua família: mulher, filhos e filhas. Todos estão mergulhados na meditação, e nos seus rostos inscreve-se a expressão da piedade; mas, ao mesmo tempo, discernimos, nos homens, guerreiros valentes, seres robustos e turbulentos, muito presos à vida e muito ligados à ação, e vemos, nas mulheres, esposas dotadas de fortes qualidades e também, como os homens, muito agarradas à vida. Se, nestes quadros célebres pela fiel semelhança que existe entre as suas personagens e os modelos que reproduzem, nós passarmos das figuras de que acabamos de falar para as da Virgem, dos santos e dos apóstolos que estão ao lado delas, encontramos nos seus rostos uma expressão para que convergem todas as formas: esqueletos, músculos, traços de repouso e de movimento. A diferença entre a representação ideal e o retrato consiste, precisamente, em que, na primeira, toda a exteriorização do conteúdo se acha condensada apenas no rosto. Poder-se-ia julgar que basta ao artista escolher na realidade concreta as melhores formas que reunirá, ou procurar, nas coleções de gravuras de madeira e cobre, como muitas vezes se faz, fisionomias, atitudes, para mostrar as formas que mais convêm ao conteúdo que quer exprimir. Mas não basta colecionar, procurar, escolher: o artista tem de proceder como um criador; tem de possuir um profundo conhecimento das formas correspondentes e de, recorrendo à sua sensibilidade, elaborar num gesto da sua própria fantasia a significação que o anima e dar-lhe uma representação concreta. B A DETERMINAÇÃO DO IDEAL O ideal, tal como o temos considerado até agora, era relativamente fácil de definir em harmonia com o seu conceito. O belo artístico, porém, que é também ideia, não se pode restringir tão só ao seu conceito geral, pois comporta, segundo este mesmo conceito, precisões e particularidades, e deverá, por conseguinte, sair da sua esfera própria para entrar na determinação real; uma questão, então, se formula, que é a de saber como - apesar da sua introdução na realidade exterior e finita, portanto não ideal - pode o ideal continuar a afirmar-se e, inversamente, como pode a existência finita receber a realidade do belo criado pela arte. Três pontos, que é preciso examinar, assim se nos deparam: 1º A determinação do ideal como tal. 2º A determinação enquanto conducente, por força da sua particularidade, a diferença em si e à reabsorção delas: é o que podemos designar, de um modo geral, pelo termo ação. 3º A determinação exterior do ideal. 1. A DETERMINAÇÃO DO IDEAL COMO TAL I - O DIVINO COMO UNIDADE E UNIVERSALIDADE Vimos já que o divino constitui o centro em volta do qual se dispõem as representações da arte. Só para o pensamento existe porém o divino concebido como unidade e universalidade, entidade desprovida de forma que escapa à ação figurativa e formativa da fantasia. Por isso estão os judeus e os maometanos proibidos de fazerem de Deus uma imagem acessível à percepção que evolui através do sensível. Aqui não há, pois, lugar para a arte plástica cuja exclusiva função é a de produzir figuras dotadas da vida mais concreta, e só a poesia lírica pode, no seu impulso para Deus, celebrar-lhe o poder e a glória. II - O DIVINO COMO PLURALIDADE DE DEUSES Se é certo que o Divino possui os atributos da unidade e da universalidade, por sua natureza é também essencialmente determinado e, subtraindo-se por isso à abstração, torna-se acessível à intuição e à representação figurada se presta. Uma vez que a fantasia, depois de o apreender no aspecto da determinação, o concebe numa representação figurada, logo a variedade se introduz no modo da determinação e é aí que se abre o verdadeiro reino da arte ideal. No primeiro momento, a substância divina, que é una, decompõe-se e divide-se numa multidão de deuses independentes, com plenitude própria, como na intuição politeísta da arte grega; até na concepção cristã, e embora aí conserve a sua unidade espiritual, Deus está relacionado diretamente, como homem real, com a vida terrestre e mundana. No segundo momento, o divino está presente, pela sua manifestação determinada e sua realidade, em tudo quanto o homem sente e sofre, quanto quer e realiza, e, deste modo, homens que o espírito de Deus anima, santos, mártires, bem-aventurados, homens piedosos em geral, constituem objeto adequado à arte ideal. Mas este princípio da particularização do divino, de que é corolário a sua existência determinada e portanto secundária, promove o aparecimento, no terceiro momento, da particularidade da realidade humana. É que a alma humana, no seu conjunto, com tudo o que remove as suas profundezas e constitui sua força e poder, com todo o sentir e todas as paixões, todo o profundo interesse que agita os íntimos - toda esta vida concreta forma a matéria vivente da arte de que o ideal constitui a representação e a expressão. Como espírito puro, o divino só é objeto do conhecimento abstrato. Mas porque sempre apela para o coração humano, à arte pertence o espírito encarnado na realidade ativa. Logo, porém, se veem surgir interesses e atos particulares, caracteres definidos com os seus estados e situações transitórias, toda a espécie de compromissos com o real, de tal sorte que a primeira missão que se nos apresenta é a de examinar, de um modo geral, as relações que, em face destes compromissos, existem entre o ideal e a determinação de onde elas provêm. III - A SERENIDADE DO IDEAL De acordo com o que acabamos de dizer, é preciso ainda, para que o ideal conserve toda a sua pureza, que Deus, Cristo, os apóstolos, os santos, os arrependidos e os devotos nos sejam apresentados em plena serenidade e beatífico contentamento, sem máculas da vida terrestre, sem as misérias dela, sem domínio das suas inumeráveis complicações, oposições e lutas. Foram, sobretudo, a pintura e a escultura que, guiadas por esta ideia, conseguiram representar de modo ideal as figuras dos diferentes deuses, bem como a de Cristo Redentor, as dos apóstolos e dos santos. O que, na existência, é verdadeiro em si, é representado na sua existência como referindo-se a si próprio, e não nas suas relações com as circunstâncias exteriores. Encerradas em si mesmas a estas figuras não falta particularidade; e achando-se elas em relação com o mundo exterior mediante tal particularidade, está esta, porém, despida de tudo o que não faz parte da determinação pura e simples, de qualquer sinal da influência de circunstâncias exteriores. Esta serenidade eterna e plena ou, antes, este remanso que se segue à ação, como em Hércules por exemplo, constitui, até na determinação, a presença do ideal em si. E se acaso os deuses se deixarem enredar nas complicações mundanas, devem eles, apesar de tudo, conservar a majestade eterna e imperturbável. Júpiter, Juno, Apolo, Marte, por exemplo, representam, com efeito, forças e poderes determinados, mas forças e poderes firmes e estáveis que mantêm a liberdade e a independência até quando orientam a sua ação para o exterior. E, assim, que a determinação do ideal se não deve representar por uma só particularidade, pois a liberdade espiritual deve mostrar-se como uma totalidade em si, só de si dependendo, implica todas as virtualidades. No domínio do profano e do humano, o aspecto ideal da determinação manifesta-se sempre que um conteúdo substancial que absorve o homem só se pode exprimir mediante a particularidade subjetiva. O que há de particular na ação e no sentimento subtrai-se assim à influência do acidental, e a particularidade concreta representa-se num acordo mais íntimo com a sua verdade interior propriamente dita. Com efeito, tudo o que há de nobre, de excelente e de perfeito na alma humana não é senão a verdadeira substância espiritual, moral e divina cujo poder se afirma no sujeito, e o homem satisfaz as suas exigências interiores referindo àquele substancial a sua atividade vivente, a sua força de vontade, seus interesses, paixões etc. Se o ideal implica assim, de um modo condensado, a determinação do espírito e a possibilidade da sua manifestação exterior, a particularidade não deixa de, orientada para o exterior, incluir o princípio do desenvolvimento a que se ligam diretamente, em referência ao exterior, as diferenças e a luta entre contrários. Leva-nos isto a considerar a determinação diferente, por assim dizer progressiva, do ideal, aquela que nós podemos, de um modo geral, apreender na forma de ação. 2. A AÇÃO A determinação como tal, e enquanto ideal, inclui, ao lado da inocência amativa de uma felicidade celeste semelhante à dos anjos, a tranquila serenidade e a majestade de uma força independente, segura em si mesma, a excelente e perfeita plenitude que caracteriza o substancial em geral. Mas o que é interior e espiritual não deixa de ser suscetível também de movimento ativo e de desenvolvimento. Por sua vez, o desenvolvimento tem de se sujeitar à unilateralidade e ao equívoco. O espírito perfeito, total, desenvolvendo-se nas suas particularidades, abandona repouso para se lançar num mundo dilacerado e perturbado por oposições e complicações; uma vez envolvido nesta dispersão, já se não pode subtrair às infelicidades a aos desastres do mundo finito. Nem sequer os deuses eternos do politeísmo vivem uma paz eterna; defrontam-se em lutas provocadas pelas paixões e interesses opostos, e são obrigados a submeterem-se ao destino. Nem o deus cristão consegue escapar à humilhação do sofrimento e à vergonha da morte, consegue libertar-se da dor que lhe faz exclamar: "Senhor Meu Deus, por que me abandonaste?"; a mesma amarga dor sofre Maria, e toda a vida humana é feita de combates, de lutas e de sofrimentos. É que, na verdade, a grandeza e a força do homem medem-se pela grandeza e força da oposição que o espírito é capaz de vencer para reencontrar a unidade; e a profundeza e intensidade do subjetivo tanto mais se manifestam quanto mais contraditórias forem as circunstâncias que ele tem de vencer e mais acentuadas as oposições que tem de enfrentar, sem deixar de ser ele mesmo no meio de tais contradições e oposições. É através desta luta que se afirma a força da ideia e do ideal, porque a fortaleza consiste em permanecer íntegro no negativo. Mas se, devido a este desenvolvimento, a particularização põe o ideal em contato com o exterior e o introduz num mundo que, em vez de resultar do livre acordo entre o conceito e a sua realidade, tem uma existência da qual se pode dizer que não é o que deveria ser, então incumbe-nos a tarefa de investigar em que medida as determinações a que o ideal ficou ligado são ricas de idealidade ou mais ou menos suscetíveis de adquirir idealidade. Para isso, a nossa atenção deverá incidir sobre três pontos: Em primeiro lugar, o estado geral do mundo, que encerra as condições e a natureza de ação individual. Em segundo lugar, a particularidade da situação cuja determinação introduz nesta unidade substancial a tensão e as diferenças que servem de estimulantes à ação. Em terceiro lugar, a apreensão da situação pela subjetividade e a reação graças à qual a luta termina e as diferenças se conciliam: a ação propriamente dita. I - O ESTADO GERAL DO MUNDO A subjetividade como tal tem em si a determinação que a leva a agir, a mover-se e a mostrar-se em geral ativa. Carece, pois, do mundo ambiente que lhe fornece o terreno geral para as suas realizações. Se, portanto, nós falarmos de estado, entendemos, por isso, a maneira geral como, no seio da realidade espiritual, se mantém o substancial que lhe assegura a coesão. Pode-se assim falar, por exemplo, no estado da instrução, das ciências, do sentimento religioso, bem como do das finanças, do direito, da vida familiar e de outras particularidades. Ora, na realidade, essas são as formas de um só e mesmo espírito, de um só e mesmo conteúdo que nelas se explicitam e realizam. Do mesmo modo, ao falarmos do estado do mundo, como maneira de ser geral da realidade do espírito, teremos do o considerar do ponto de vista da vontade porque, em geral, é por intermédio da vontade que o espírito entra na existência, e os elos substanciais e diretos que ligam as diversas faces da realidade intimamente dependem das manifestações ativas da vontade, dos conceitos morais, das noções jurídicas, daquilo a que chamamos, de um modo geral, a justiça e a equidade. A questão que então se formula é a de saber como deve estar constituído tal estado geral para se apresentar em conformidade com a individualidade do ideal. a) A independência individual e a idade heroica Em vista do que dissemos anteriormente, desde já podemos estabelecer os pontos seguintes: O ideal é unidade em si; não é apenas uma unidade exterior e formal, mas uma unidade imanente ao próprio conteúdo. Já anteriormente caracterizamos este apoio substancial sobre si mesmo, dizendo que ele é a suficiência, a serenidade, a felicidade do ideal. Propomo-nos agora a considerar esta determinação no aspecto da independência e mostrar que neste aspecto o mundo deve aparecer para revestir a forma do ideal. A palavra independência tem, porém, um duplo sentido. 1º Considera-se geralmente como independente aquilo que é substancial em si, por virtude desta mesma substancialidade e de ter em si a sua própria causa; chega-se até a qualifica-lo de divino e absoluto. Definido, nessa generalidade e substancialidade, deixa, porém, de ser subjetivo e depara com uma firme oposição na particularidade da individualidade concreta. Nesta oposição, como em toda a oposição, a verdadeira independência desaparece. 2º Por outro lado, é costume atribuir independência à individualidade que a si mesma se basta, não seja senão de um modo formal como na firmeza do caráter subjetivo. Mas acontece que a subjetividade - na medida em que lhe falta o verdadeiro conteúdo da vida e em que, portanto, perante ele permanecem como um conteúdo estranho as potências e as substâncias que, fora do sujeito, existem para si mesmas - também se acha em oposição com o que há de verdadeiramente substancial na existência e assim perde todo o estado de independência e liberdade. A verdadeira independência consiste na unidade e na penetração recíproca do individual e do geral, adquirindo o geral uma existência concreta, individualizando-se, e obtendo a subjetividade do individual e do particular uma base sólida e um conteúdo verdadeiro para a sua realidade que só o geral lhe pode fornecer. De quanto precede podemos concluir, em referência ao estado geral do mundo, que, para ser independente, a generalidade substancial desse estado deverá apresentar-se na forma da subjetividade. O primeiro modo de manifestação desta identidade, que nos pode ocorrer, é o do pensamento. Com efeito, o pensamento é, por um lado, subjetivo e, por outro, a generalidade constitui o produto da sua verdadeira atividade; assim realiza, pois, a livre união do geral e do subjetivo. Mas o aspecto geral do pensamento não pertence à arte, que busca a beleza; para mais, não existe necessariamente um acordo entre o natural, a forma e a atividade prática da individualidade particular, por um lado, e, por outro lado, a generalidade do pensamento; deste modo, surge ou pode surgir uma diferença entre o sujeito como tal, na sua realidade concreta, e o sujeito pensante. Idêntica diferença se produz no mesmo conteúdo do geral. Quando se vê que este conteúdo começa, no sujeito pensante, a diferenciar-se das outras realidades é porque ele já está separado na existência objetiva, enquanto geral em si, dos outros modos de manifestação que a seu lado se desenvolvem e, em relação a eles, adquiriu já estabilidade. Mas, no ideal, a individualidade particular deve subsistir em perfeito acordo, em indissolúvel unidade com o substancial e, na medida em que o ideal deve possuir a liberdade e a independência da subjetividade, o mundo ambiente dos estados e das circunstâncias não tem nenhuma objetividade essencial, independente do subjetivo e do individual. Com efeito, o indivíduo deve estar encerrado em si mesmo, o objetivo de fazer parte integrante da sua constituição em vez de estar separado da individualidade do sujeito e ser independente dos seus movimentos e realizações; se assim não fosse, o sujeito achar-se-ia numa situação subordinada a um mundo acabado. Por tais razões, o universal deve afirmar-se no indivíduo como sendo um bem próprio dele, não como pensamento do sujeito mas como caráter seu e disposições psíquicas suas. Em outros termos: nós reivindicamos, contra o pensamento que desempenha funções de mediação e de divisão, a unidade do universal e do individual na forma da imediateidade, e, por isso, a independência que temos em vista recebe a forma da independência imediata. Isso, porém, também implica o acidental. E, com efeito, se o universal que impregna a vida do espírito, para se afirmar de um modo imediato na independência dos indivíduos, só se pode afirmar na forma de sentimentos subjetivos, de disposições psíquicas, de traços de caráter, tanto basta para que ele se ache exposto a todos os aspectos acidentais da vontade e da realização. É que, então, o universal fica como particularidade dos indivíduos e da sua sensibilidade e, enquanto propriedade particular, ele não possui força nem necessidade de se afirmar como o que é: em vez de se realizar sempre de um modo geral, invariável, estabelecido por si de uma vez por todas, o universal só manifesta a sua presença através das decisões, dos atos, das abstrações arbitrárias ou dos sentimentos, disposições, poder, astúcia e habilidade do sujeito entregue a si mesmo. É este gênero de acidentalidade que caracteriza aquele estado que vemos como terreno que serve de apoio ao conjunto dos modos de manifestação do ideal. Para mostrar com mais clareza o aspecto preciso desta realidade acessível à arte, vamos lançar um olhar sobre a maneira de ser oposta a ela. Encontramo-la onde a moral, a justiça e a liberdade nacional adquiriram já a forma de uma ordem organizada, e assim aparecem, até exteriormente, como uma necessidade independente da individualidade e da subjetividade particulares da alma e do caráter. Isso caracteriza a vida de um Estado quando ela está organizada em conformidade com o conceito de Estado. Para formar um Estado, não basta que um número maior ou menor de indivíduos esteja reunido por um elo social ou faça parte de uma organização patriarcal. No verdadeiro Estado, as leis, os costumes, os direitos, na medida em que constituem determinações gerais da liberdade, só valem pela sua generalidade e abstração, pela sua independência de todo o acidental das boas vontades e das particularidades individuais. As leis, cujas prescrições são concebidas pela consciência na sua universalidade, agem exteriormente como generalidades que seguem o seu curso ordenado e opõem a forma e o poder público aos indivíduos que afrontem, como os seus arbitrários malefícios, o reino da lei. Tal Estado supõe uma prévia separação entre as generalidades do intelecto elaborador da lei e as manifestações da vida imediata; por manifestações da vida imediata entende-se a unidade graças à qual tudo o que há de substancial e de essencial na moral e na justiça só se torna realidade nos indivíduos como sentimento e opinião e só por seu intermédio se afirma. Num Estado constituído, o direito e a justiça - tal como a religião e a ciência, ou, pelo menos, o zelo pela educação religiosa e científica - incumbem aos poderes públicos que possuem a direção e o monopólio da execução do que isso exija. Por fazerem parte do Estado, os indivíduos devem, pois, aderir à sua organização, contribuir para a sua estabilidade, e subordinar-se a ele, uma vez que já não são, pelo seu caráter e estrutura psíquica os únicos representantes dos poderes morais; no Estado verdadeiro, os indivíduos devem regrar todas as particularidades da sua sensibilidade, da sua maneira de pensar e de sentir, de acordo com a legalidade. Esta adesão à racionalidade objetiva do Estado independentemente de qualquer arbitrariedade subjetiva pode revestir duas formas: ou a de uma submissão pura e simples ao direito, leis e instituições enquanto encarnações da força que se podem impor coerciva mente, ou a de um livre assentimento, resultado do conhecimento, da racionalidade do que existe; neste último caso, o sujeito acha-se, por assim dizer, no objetivo. Todavia, os indivíduos não deixam de constituir um elemento secundário que, fora do Estado, é desprovido de qualquer substancialidade própria. A substancialidade já não constitui a propriedade particular de tal ou tal indivíduo, mas apresenta-se, em si mesma e até nos pormenores da sua manifestação, como geral e necessária. Façam o que fizerem os indivíduos nos domínios do direito, da moral e das leis em favor do todo que, para o todo, o seu querer, as suas realizações e eles mesmos não passam de insignificantes e com o valor de um simples exemplo. As ações deles não passam, quase sempre, de realizações completamente parciais de casos dados, sem que estes casos adquiram o significado de universalidade graças ao qual os casos singulares podem assumir o valor de uma lei ou podem ser aplicados aos fenômenos como sendo a lei deles. Também não é do indivíduo como tal que depende querer que a lei ou a justiça sejam ou não válidas; elas são válidas por si mesmas, quer o indivíduo o queira ou não. É certo que o geral, que constitui o domínio público, está interessado em que todos os indivíduos se conformem com ele e o desejem. Mas este interesse não é devido a que da concordância dos indivíduos dependa a validade da escolha e da lei; o geral não precisa desses assentimentos isolados, pois dispõe do castigo quando o direito e a lei são lesados. O caráter subordinado do indivíduo nos Estados bem organizados provém, enfim, de que a parte de cada indivíduo no Todo está determinada e limitada. Com efeito, no verdadeiro Estado, o trabalho em proveito do geral é, como na sociedade civil, o da atividade comercial e industrial dividida ao infinito; e embora a vida do Estado apareça, no seu conjunto, como o resultado da atividade concreta de um só indivíduo ou, de modo geral, da vontade dele, da sua força, audácia, coragem, poder ou inteligência, apesar disso as inumeráveis ocupações e tarefas que esse indivíduo empreender devem estar confiadas a agentes também inumeráveis. O castigo de um crime, por exemplo, não depende já do heroísmo ou da virtude deste ou daquele indivíduo, mas decompõe-se em diversos momentos, como a instrução e apreciação da situação de fato, o julgamento, a execução da sentença proferida pelos juízes, e cada um destes momentos apresenta, por sua vez, subdivisões mais especiais que se referem a aspectos isolados da questão. A aplicação das leis não depende, pois, de um só indivíduo, mas resulta de uma vasta colaboração que se efetua numa ordem estabelecida. Por outro lado, existem regras gerais que devem servir de diretrizes à atividade de cada um, e o que cada um efetua em conformidade com tais regras é, por sua vez, submetido ao juízo e à apreciação das autoridades superiores. Em todos estes aspectos, os poderes públicos são desprovidos de qualquer caráter individual num Estado cuja ordem seja assegurada pela lei; o universal reina em toda a sua universalidade, como se os indivíduos não existissem, pois eles são sempre considerados como um elemento secundário e indiferente. Não é, portanto, nestas condições que encontraremos a independência que reivindicamos. Por isso exigimos, para o livre desenvolvimento do indivíduo, um estado oposto ao daquelas condições, um estado no qual a validade da moral assentasse exclusivamente naqueles indivíduos que, graças à sua vontade e à eminente grandeza e eficácia do seu caráter, se acham no posto mais elevado da realidade em que vivem. O que é justo seria então definido pelas suas decisões pessoais, e quando eles viessem a lesar, pelos seus atos, o que é moral em si, não haveria força pública com o poder para lhes pedir contas e os punir. Não haveria outro direito senão o que se deduz de uma necessidade interna que se individualiza em caracteres particulares, em acidentalidades e circunstâncias exteriores etc., e que só nessa forma se realiza. É nisso que o castigo difere da vingança. O castigo aplicado pela força das leis opõe ao crime o direito geral estabelecido, e exerce-se segundo normas gerais através dos órgãos do poder público, tribunais e juízes, que, enquanto indivíduos, só representam o acidental. A vingança também pode ser justa em si, mas funda-se na subjetividade dos que foram pessoalmente lesados pelo ato iníquo e que formulam eles mesmos as razões justificativas da vingança que tiram da injustiça que sofreram. A vingança de Orestes, por exemplo, era justa, mas foi realizada por imposição da lei da sua virtude pessoal, e não em consequência de um julgamento e em concordância com o direito. Nas condições que são, segundo o que dissemos, as da representação artística, o que é moral e justo deve revestir uma forma individual, no sentido de que deve apenas depender dos indivíduos e só neles possuir vida e realidade. É assim que, nos Estados bem ordenados, a existência exterior do homem está cheia de segurança, a sua propriedade está protegida, e, para falar com precisão, o homem só possui, como verdadeiramente seu, as opiniões e ideias pessoais. Na falta, porém de uma organização política, a segurança da vida e da propriedade assenta na força e na coragem de cada indivíduo que tem de velar a sua própria existência e a conservação do que lhe pertence e lhe é devido. Tal Estado, atribuímo-lo, em geral, à época chamada heroica. Não nos cumpre examinar, aqui, qual destes dois Estados, o de uma organização política estável ou o da época chamada heroica, é o melhor; ocupamo-nos do ideal na arte, e a distinção entre o universal e o individual deve ser na arte suprimida, por mais necessária que seja essa distinção nas outras manifestações reais da existência espiritual. É que a arte e o seu ideal constituem precisamente o universal, mas, enquanto objetos de percepção, estão presos ao mundo vivente constituído por particularidades. Foi isso o que aconteceu na época heroica que aparece como uma época em que a virtude, areté, no sentido que os gregos atribuíam a esta palavra, era a base e a razão dos atos. Com efeito, é preciso distinguir entre areté e a virtus romana. Os romanos tinham a sua cidade, a sua pátria, as suas instituições legais, e a personalidade apagava-se perante o Estado que constituía um fim universal. A seriedade e a dignidade da virtude romana consistem em ser romano de um modo apenas abstrato, em representar, na subjetividade enérgica, apenas o Estado romano, o poder e a grandeza da pátria. Os heróis, pelo contrário, são indivíduos que, na independência dos seus sentimentos e vontades individuais, aceitam toda a responsabilidade dos atos que praticam, e que, por virtude do imperativo da sua vontade particular, realizam o que é justo e moral. Esta unidade imediata entre o substancial e a individualidade dos gostos, das tendências e da vontade é o que caracteriza a virtude grega, de tal sorte que a individualidade tem em si mesma a sua própria lei sem estar submetida a uma lei, juízo ou tribunal exteriores. Por isso os heróis gregos são produtos de uma época pré-legal ou tornam-se eles mesmos fundadores de Estados, de modo que o direito e a ordem, a lei e os costumes emanam deles e apresentam-se como criação individual que fica ligada à sua lembrança. Neste sentido era Hércules glorificado pelos antigos que viam nele o ideal da virtude heroica dos tempos primitivos. A virtude livre e independente que animava a particularidade da sua vontade sublevando-a contra as injustiças e lançando-a contra os monstros humanos e naturais nada tem que ver com estado geral do seu tempo, mas pertence-lhe própria e exclusivamente. Não era ele um herói moral como o mostra a história das cinquenta filhas de Téspios que todas dele conceberam na mesma noite, mas aparece, de um modo geral, como uma personificação daquela força plenamente independente que é apanágio do justo, e é, para realizar a justiça que, por sua escolha e por sua vontade, expõe a fadigas infindas e se entrega a trabalhos inumeráveis. É verdade que efetua uma parte das suas empresas ao serviço e às ordens de Euristeu, mas esta dependência não passa de uma relação abstrata, não é um laço legal e rígido que lhe tirasse o poder de agir como individualidade livre e independente. Assim são também os heróis de Homero. Certo é que também estes possuem um chefe comum, mas também não é uma lei fixa e imutável que os prende uns aos outros, impondo-lhes a submissão; espontaneamente, em virtude de uma livre decisão, seguem eles Agamêmnon, que não é, aliás, um monarca no sentido moderno da palavra. Por isso dá cada herói a sua opinião, por isso Aquiles, encolerizado, se separa dos demais, e, em geral, cada um deles parte e regressa, combate e repousa conforme lhe aprazo A mesma independência encontramos nos heróis da antiga poesia árabe: também estes não estão ligados a nenhuma organização estabelecida de uma vez para sempre e em cada um não passaria da partícula de um conjunto facilmente dissociável. Os heróis de Shah-Named ou de Firdousi gozam de plena independência. No ocidente cristão, o regime feudal e a cavalaria constituíram o ambiente que se formou uma classe de heróis e de individualidades ciosas da sua independência. A título de exemplo, citaremos os heróis da Távola Redonda e o círculo de heróis em volta de Carlos Magno. Como Agamêmnon, Carlos Magno está rodeado de heróis livres, sobre os quais nada pode, que é obrigado a consultar em todas as ocasiões e que só obedecem as suas próprias paixões. Bem poderá trovejar como Júpiter no Olimpo, que sempre eles o abandonam no meio dos empreendimentos para cada um seguir, por conta própria, a sua aventura. O caso mais completo desta situação é-nos dado pelo Cid. Também ele faz parte de uma liga e, ligado a seu rei, deve cumprir os deveres de vassalo; mas à dependência em que está do rei opõem-se a lei da honra e a voz irresistível da personalidade do herói, o seu brilho imaculado, a nobreza e a glória. E assim, também aqui o rei não pode julgar, decidir e concluir a guerra sem ouvir os conselhos dos vassalos e sem ganhar o seu assentimento. Se o não quiserem, não combaterão, ainda quando contra eles estiver a maioria das vozes; cada um vale por si mesmo e de si mesmo recebe a vontade e a força de agir. Exemplo não menos brilhante de altiva independência é-nos dado pelos heróis sarracenos que têm um aspecto ainda mais voluntarioso. E até o Romance da Raposa nos oferece uma nova forma desta situação. Bem se pode o leão orgulhar de ser o senhor e rei, que no conselho têm lugar o lobo, o urso etc., e a raposa, como os outros, faz o que muito bem quer; em caso de disputa, saber-se-á arranjar astutamente usando em seu proveito tais ou tais interesses particulares do rei e da rainha para os levar a darem a sua sentença que é a que a ela lhe convém. Do mesmo modo que, no estado heroico, o indivíduo forma um só bloco com todo o seu querer, com todos os seus atos e todas as suas realizações, assim também é inseparável das consequências e efeitos dos seus atos. Quando, por exemplo, agimos ou julgamos os atos dos outros, só imputamos a nós mesmos ou aos outros os atos efetuados na medida em que aquele que age está bem consciente da maneira como age e das circunstâncias em que o ato é praticado. Se as circunstâncias não forem aquelas de que o indivíduo tinha consciência e se a objetividade comporta outras determinações além das que eram previstas, o homem moderno não aceita a inteira responsabilidade do que fez, não se responsabiliza por uma só parte do que realizou, visto que, ignorante das circunstâncias ou tendo delas uma falsa apreciação, esta parte da sua atividade não foi o que ele quis que fosse; só se imputa assim aquilo que sabia e o que, fundando-se nesse saber, efetuou intencionalmente. Para o caráter heroico, tal distinção não existe; realiza-se plenamente, com toda a sua individualidade, no conjunto da sua obra. Édipo, por exemplo, ao procurar o oráculo, encontra um homem que mata durante uma rixa. Na época em que foi praticado, este ato nada tinha de criminoso, tanto mais que foi o homem quem usou da violência para com Édipo. Mas esse homem era o seu pai. Édipo desposa uma rainha; ora, esta mulher era a sua mãe, assim, sem o saber, ele contraiu um casamento incestuoso. Todavia, embora tivesse morto o pai e partilhado o leito da mãe sem saber nem o querer, Édipo assume toda a responsabilidade dos crimes e castiga-se a si mesmo como parricida e como culpado de incesto. Firme, total e íntegro, o caráter heroico recusa-se a dividir as culpas, não que saber de uma oposição possível entre a intenção subjetiva e o ato objetivo, enquanto, na atividade moderna, com complicações e ramificações infinitas, cada qual procura inculpar também os outros, subtrair-se quanto possível às responsabilidades de uma falta cometida. Neste aspecto, a nossa maneira de ver será mais moral, dado o que caracteriza antes de tudo o comportamento moral é o conhecimento subjetivo das circunstâncias, a ideia que temos do bem e a intenção de a realizar nos nossos atos. Mas na idade heroica, em que o indivíduo é essencialmente uno e origem única do objetivo, o sujeito considera-se como fator, ele só, de tudo quanto faz, integralmente se responsabiliza por todas as consequências dos seus atos. Não estabelece o indivíduo heroico qualquer separação entre si e o Todo moral de que faz parte, mas antes se considera como formando uma unidade substancial com o Todo. De acordo com ideias atuais, nós, pelo contrário, separamos as nossas pessoas, nossos interesses e fins pessoais, dos fins visados pelo Todo; o que o indivíduo pratica, pratica-o só enquanto pessoa, só se julga responsável pelos seus próprios atos e não pelos do Todo substancial em que participa. Daí provém a diferença que postulamos entre, por exemplo, pessoa e família. Esta diferença não existe na idade heroica. Nela, a falta dos pais era também imputada aos filhos e aos netos, e toda a família expiava o crime de um só. As faltas e os crimes faziam também parte do patrimônio hereditário. Tal condenação afigura-se-nos como algo de irracional, como a submissão a de um destino cego. Se, como pensamos hoje, as proezas dos antepassados não são suficientes para enobrecer os filhos e os netos, também julgamos que os crimes cometidos e as penas sofridas pelos ascendentes não conseguem desonrar os descendentes e, ainda menos, determinar o seu caráter subjetivo. Mais ainda: segundo o modo de ver moderno, a confiscação do patrimônio familiar constitui um castigo que repugna ao nosso sentimento de profunda liberdade subjetiva. Mas, na antiga totalidade, o indivíduo não vive isolado, é membro de uma família, de uma tribo. Por isso o caráter, os atos e a sorte da família são também os de cada um dos seus membros e em vez de denegar os atos e de se separar da sorte da família, cada membro fá-los deliberadamente seus, vive-os, é o que os seus pais foram, sofreram, e realizaram. Parecer-nos-á excessivo tanto rigor, mas existir como acontece nos nossos dias, só por si e com a independência mais subjetiva que isso implica, é reduzir-se à independência puramente abstrata da pessoa. A individualidade heroica tem um caráter mais ideal porque se não limita à liberdade e à infinitude puramente formais mas identifica-se inteiramente com todo o aspecto substancial das circunstâncias espirituais que realiza. Na idade heroica, o substancial é imediatamente individual, e o indivíduo é, assim, substancial como tal. Nestes elementos é preciso procurar a razão por que a arte recebe as suas figuras ideais da época mítica, de um passado em geral longínquo. Quando os assuntos são procurados no presente, cuja forma particular, tal como é na realidade, está fixada com todos os pormenores na nossa representação, as modificações que o poeta não pode deixar de fazer facilmente adquirem uma aparência artificial. Pelo contrário, o passado só vive na lembrança, e a lembrança por si mesma cria, em volta dos caracteres, dos acontecimentos e das ações, uma atmosfera de generalidade que não deixa transparecer as particularidades exteriores e acidentais. Uma ação ou um caráter reais compreendem grande número de circunstâncias e de condições intermediárias e pouco significativas, de acontecimentos e atos isolados e variados que se acham apagados na imagem que a lembrança guardou. Liberto assim da acidentalidade do exterior, o pintor acha-se menos enredado no particular e no individual quando quer ressuscitar atos, histórias e caracteres pertencentes ao passado. Há, decerto lembranças históricas de que é preciso elaborar um conteúdo para lhes dar a forma do geral, mas a imagem do passado, como acabamos de dizer, apresenta já, enquanto imagem, a vantagem de uma maior generalidade e, ao mesmo tempo, numerosos fios que tecem umas nas outras as circunstâncias e as condições com tudo o que elas têm de finito, oferecendo assim o modo e o ponto de apoio que impedem o desaparecimento da individualidade exigida pela obra de arte. Outra vantagem da idade heroica, em relação a épocas posteriores e mais evoluídas, consiste em que, nela, todo o caráter e o indivíduo em geral ainda não esbarram com o substancial, a moral e o direito que se lhe imporia como uma necessidade legal; por isso o poeta dessa época encontra diretamente aquilo que o ideal exige. Shakespeare, por exemplo, procurou os assuntos de muitas das suas tragédias em crônicas e antigas narrativas que falam de um estado que ainda não havia ascendido ao plano de uma organização solidamente estabelecida, no qual as forças vivas do indivíduo ainda exerciam decisiva influência sobre as suas concepções e realizações. O principal elemento dos seus dramas históricos é, pelo contrário, de uma natureza puramente exterior precisamente porque histórica, e assim se afasta do modo de representação ideal embora ainda aqui as situações e as personagens sofram incontestavelmente a influência de uma altiva independência dos caracteres. Certo é que esta independência, nas personagens destes dramas históricos, se reduz quase sempre a uma confiança puramente formal em si mesma, ao passo que a independência dos caracteres heroicos propriamente ditos se refere, também, e essencialmente, ao conteúdo que eles se impuseram realizar. Assim fica antecipadamente refutada, na questão do domínio geral do ideal, a opinião de que o estado idílico constitui, para a realização do ideal, o domínio mais favorável porque a separação entre o legal e o necessário, de um lado, e a individualidade, do outro, seria completamente desconhecida naquele estado. Por mais simples e primitivas que sejam as situações idílicas, por mais afastadas que estejam da prosa que guarda a existência espiritual, é em virtude dessa mesma simplicidade que o conteúdo próprio daquelas situações oferece somenos interesse para servir de domínio e justificação do ideal. Nelas não encontramos nenhum dos mais importantes motivos do caráter heroico, tais como pátria, moral, família etc., nem nenhuma possibilidade de que nelas surjam e se desenvolvam; o essencial do seu conteúdo reduz-se à perda de uma ovelha ou aos amorios de uma rapariga púbere. O gênero idílico quase nunca passa de um refúgio para a alma sedenta de quitação a que ainda se poderão acrescentar, como em Gessner por exemplo, modos adocicados e uma lânguida moleza. Outro defeito das situações idílicas do nosso tempo reside em que o caráter doméstico e rústico do sentimento amoroso ou o bem-estar provocado por uma bebida ao ar livre também oferecem um interesse insignificante porquanto se abstrai, na descrição destes sentimentos, de qualquer relação com fins mais profundos e conteúdos mais ricos do que os de uma vida bucólica de pastor. Por isso se deve, até neste aspecto, admirar o gênio de Goethe que colocando Hermann e Dorotéia num ambiente análogo e concentrando embora o seu interesse numa particularidade muito limitada da vida atual, desenvolve a ação do poema numa atmosfera em que se agitam os grandes interesses da Revolução e da Pátria, e assim estabelece uma ligação entre a matéria em si limitada e os mais grandiosos e mais vastos acontecimentos do mundo. Todavia, o mal e a maldade, as guerras, as batalhas, os atos de vingança, não são, de um modo geral, incompatíveis com o ideal, mas são relegados para a idade mítico-heroica na qual adquirem um aspecto tanto mais rude e selvagem quanto mais afastada está a época escolhida do reino da lei e da moral. Nas aventuras de cavalaria, por exemplo, veem-se cavaleiros andantes, que partiram para castigar injustiças, caírem eles mesmos na mais cruel e primitiva selvageria; o mesmo estado de crueldade, de barbárie, se encontra no heroísmo religioso dos mártires. No conjunto, porém, o ideal cristão, que reside na íntima profundidade da alma, é mais indiferente às circunstâncias exteriores. Assim como estado mais ideal do mundo é compatível com épocas determinadas de preferência a outras, assim a arte escolhe, para as figuras que situa, um meio determinado de preferência a outros: o dos príncipes. Não acontece isso por sentimento aristocrático ou pelo gosto da distinção, mas assim se manifesta a liberdade da volição e da criação que para se realizar só têm os meios principescos. Na tragédia antiga, por exemplo, os coros representam o meio geral, absolutamente impessoal, dos sentimentos, representações, ideias, em que se desenvolve uma ação determinada. Deste meio impessoal separam-se depois os caracteres individuais das personagens agentes, que são os de dirigentes do povo, membros de famílias reais. As figuras de classes subordinadas agem em estreitos limites e aparecem como oprimidas. Nos estados evoluídos, a dependência destas figuras é quase total e por isso fica muito limitado o seu campo de ação ao mesmo tempo em que as suas paixões e interesses são esmagados ao peso da necessidade exterior; a ameaça da força invencível da ordem civil está sempre suspensa sobre as suas cabeças que se acham até a arbitrariedade das classes superiores desde que estas posam invocar a autoridade das leis. Tal limitação imposta pelas circunstâncias exteriores exclui toda a independência. Estes motivos explicam que as figuras pertencentes às classes subordinadas se prestam para personagens de farsa e de comédia porque, na comicidade, os indivíduos têm o direito de se exteriorizarem como queiram e possam, de se arrogarem uma independência de volições, opiniões e ideias que de si mesmos efetivamente possuem mas de que estão privados na vida real e que desaparece logo que a situação cômica termina. Esta independência momentânea e postiça desaparece sobretudo por influência das circunstâncias exteriores e da falsa atitude perante essas circunstâncias. As circunstâncias exteriores constituem para as classes inferiores uma ameaça muito mais grave do que para os senhores e os príncipes. Na "Noiva de Messina", de Schiller, D. César tem razão em exclamar: "Acima de mim, não há nenhum juiz", e se se deixa punir, quer ser ele mesmo a pronunciar a sentença e executá-la. É que não está ele submetido a qualquer necessidade exterior provinda do direito e da lei, e, em relação ao castigo, só de si mesmo depende. Certo é que nem todas as figuras de Shakespeare pertencem aos meios principescos e que todas elas agem, em parte, no domínio histórico e não mítico. Mas foram elas situadas em épocas de guerra civil quando estão abaladas as bases em que assenta a ordem e desfeitos os laços formados pelas leis; isso confere às personagens de Shakespeare o grau necessário de independência e autonomia. b) Caráter prosaico do tempo atual Se, agora voltarmos os olhos para o mundo atual, com as condições evoluídas da sua vida política, jurídica e moral, somos obrigados a verificar que estão muito limitadas as suas possibilidades de criações ideais. Muito raros e restritos são os meios em que ainda há lugar para a independência de decisões particulares. A principal matéria de criações ideais ainda é fornecida pelas virtudes domésticas e cívicas que constituem o ideal dos homens leais e das mulheres fortes na medida em que a sua vontade e a sua atividade não ultrapassam os limites em que o homem, enquanto sujeito individual, pode ainda agir livremente, quer dizer, pode ser o que é e fazer o que faz obedecendo apenas à voz da sua vontade individual. Mas também a este ideal falta um conteúdo mais profundo, porquanto, determinado o conteúdo pelas condições fixas já existentes, o lado subjetivo das ideias é a única coisa que importa; o interesse essencial concentra-se assim na maneira como o conteúdo se manifesta nos indivíduos: na subjetividade interior, na sua moralidade etc. Por outro lado, seria completamente despropositado querer, hoje, idealizar juízes ou monarcas. Com efeito, quando um representante da justiça se comporta e age como lho exigem a função e o dever, não faz mais do que cumprir uma obrigação determinada de acordo com a ordem estabelecida e prescrita pelo direito e pela lei; o que os funcionários do Estado a isso acrescentam da sua individualidade, doçura no procedimento, perspicácia etc., não constitui o principal nem o conteúdo substancial, não passa de um elemento indiferente e secundário. Também os monarcas já não são hoje, como os heróis da idade mítica, o conjunto concreto do Todo, não passam de um centro mais ou menos abstrato de instituições solidamente estabelecidas e protegidas por leis e constituições. Os monarcas deixaram fugir das suas mãos os atos governamentais mais importantes: já não ditam o direito; as finanças, a ordem civil e a segurança pública não fazem parte das suas funções especiais; a guerra e a paz estão condicionadas pela situação política geral e pelas relações com os países estrangeiros, situações e relações estas que eles não decidem e que não dependem da sua determinação particular. E quando ainda tenham, sobre todos estes assuntos, o poder da decisão suprema, o certo é que o conteúdo propriamente dito de tal decisão existe já antes, sem que a vontade dos monarcas tenha participado na sua formação, de modo que é lícito dizer que, naquilo que respeita aos assuntos gerais e à coisa pública, a autoridade do monarca apenas constitui uma autoridade puramente formal. Análoga é a situação de um comandante de exército que, nos nossos dias, possui, decerto, um grande poder pois às suas mãos se entregam os fins e os interesses mais essenciais, à sua prudência, coragem, energia e inteligência se confiam as decisões de maior importância; todavia, o que, nessas decisões, propriamente pertence ao general, quer dizer, o que pode ser considerado como manifestação do seu caráter subjetivo, é de um volume muito reduzido. Por um lado, os fins a alcançar não têm a origem na sua individualidade mas em circunstâncias que são alheias ao seu poder; por outro lado, não é ele que cria os meios para atingir aqueles fins, mas, pelo contrário; são-lhe eles dados, não estão subordinados à sua vontade, ocupam um lugar exterior aos domínios da sua personalidade militar. Assim verificamos, de um modo geral, que embora o espírito possa, na situação atual do mundo, agir espontaneamente em certos casos e em certos momentos, ele nunca deixa de fazer parte, para qualquer lado que se volte, de uma ordem social estabelecida, e, longe de ser uma representação total, individual e vivente desta sociedade, não passa de um membro dela com possibilidades muito limitadas. Só age, pois, dentro dos quadros desta sociedade e, assim, é de um particularismo infinito a natureza dos fins a que visa e da atividade que desenvolve bem como os interesses que representa. Em suma sempre a sociedade se limita a observar como se comporta o indivíduo, se realiza com êxito os seus fins, quais os obstáculos e as contrariedades que se opõe a ele, quais as complicações acidentais ou necessárias que dificultam ou facilitam o êxito final etc. E embora a personalidade moderna se considere, enquanto sujeito, pela sua alma, pelo seu caráter, como que alargada ao infinito, embora a sua natureza infinita pareça efetivamente manifestar-se no que faz e sofre, nas leis, no direito, na moral etc., não deixa por isso de ser o direito, tal como está encarnado no indivíduo, tão limitado como o próprio indivíduo, ao passo que, na idade heroica, o indivíduo constitui a encarnação da totalidade do direito, da moral, da legalidade. Nos nossos tempos modernos, o indivíduo já não é, como o foi na idade heroica, o portador e o único realizador daqueles poderes. c) Reconstituição da independência individual Por mais fundado que seja o nosso reconhecimento do que há de útil e de racional na organização da vida política e civil evoluída, jamais poderemos renunciar à exigência de uma liberdade individual e de uma independência vivente e real, nem esconder o interesse que esta liberdade e esta independência têm para nós. Não podemos, por isso, deixar de admirar o espírito poético de Schiller e de Goethe nas suas tentativas juvenis de reencontrar, entre as complicações preexistentes da vida moderna, a perdida independência individual. Como é que, nas suas primeiras obras, Schiller procura realizar essa tentativa? Pela revolta contra a sociedade burguesa considerada em conjunto. Karl Moor revoltado contra a ordem existente e contra os homens que abusam do poder, sai da legalidade e, após ter tido a audácia de derrubar as barreiras que o esmagavam e de ter criado um novo estado heroico, faz-se o representante do direito, o vingador de todas as injustiças, de todos os opróbrios, de todas as opressões. Todavia, essa vingança está, por um lado, condenada à ineficácia devido à insuficiência dos meios empregados, e é, por outro lado, suscetível de levar ao crime, visto que tem em si mesma a injustiça que quer abolir. No caso de Karl Moor, a tentativa resulta numa empresa; todavia, e com tudo o que tem de trágico, esta figura impressiona a imaginação dos jovens, apresentando-lhes com um aspecto sedutor o ideal do salteador. Em Intriga e Amor, os indivíduos também são torturados, através de circunstância opressoras, pelas suas pequenas particularidades e paixões; só em Fiesco e em Dom Carlos Schiller encarna um ideal mais elevado da personalidade, atribuindo àquelas personagens um conteúdo mais substancial, pondo-as a lutar pela libertação da pátria, pela liberdade das convicções religiosas. Num plano ainda superior, Wallenstein aspira ser, à frente dos seus exércitos, o condutor da vida política. Conhece ele a força dos elementos que compõem esta vida e dos quais depende o próprio instrumento de que se serve, o exército, e tão bem a conhece que muito tempo hesita entre a sua vontade e o seu dever. Logo que chegou a uma decisão, o instrumento de que se julgava seguro foge-lhe das mãos, o utensílio quebra-se. E que o que, em último lugar, decide da atitude dos seus oficiais e dos seus generais não é o reconhecimento que lhe devem pelas nomeações e adiantamentos nem tampouco a sua glória militar, mas sim os deveres para com o poder e o governo universalmente reconhecidos, o juramento que prestaram ao chefe do Estado, ao imperador da monarquia austríaca. Assim, Wallenstein fica só. Não se pode dizer que tenha sido atacado e vencido por uma adversa força exterior, pois ele foi despojado dos instrumentos que lhe teriam permitido atingir os seus fins. Abandonado pelo exército, ficou perdido. No Goetz von Berlichingen, Goethe adota uma solução análoga, embora em sentido inverso. A época de Goetz e de Franz de Sikingen é a interessante época em que a cavalaria, composta até então por indivíduos de altiva nobreza e independência, começa a desaparecer sob o peso de uma ordem nova, objetiva e legal. Ter escolhido para assunto da sua primeira obra este contato, esta colisão entre a época heroica da Idade Média e a vida moderna fundada sobre o domínio da lei, comprova o profundo sentido histórico de Goethe. Goetz e Sikingen ainda são heróis que, conscientes da sua personalidade, coragem e sentido de justiça, querem dirigir com toda a independência os acontecimentos abrangidos no círculo mais ou menos vasto dos seus interesses. A nova ordem, porém, tira toda a razão a Goetz e provoca a sua perdição. É que este gênero de independência só na cavalaria e na estrutura feudal da Idade Média tem terreno favorável. A partir do dia em que a ordem fundada sobre a legalidade completou a sua estrutura, de caráter inteiramente prosaico, a aventurosa independência dos representantes da cavalaria passa a ser uma coisa anacrônica; quando, apesar disso, ela se quer prolongar e a cavalaria se continua a considerar como a vingadora das injustiças e o auxílio dos oprimidos, então cai no ridículo que Cervantes representou em Dom Quixote. Ao abordarmos esta oposição entre as diferentes maneiras de considerar o mundo e entre os atos que nesta oposição se realizam, aproximamo-nos daquilo que anteriormente designamos pelo nome geral de situação, a qual se manifesta, no estado geral do mundo, por mais nítidas determinações e diferenças. II - A SITUAÇÃO O estado ideal do mundo, que a arte representa em oposição à realidade prosaica, é, de acordo com o que temos dito, da existência espiritual em geral, ou seja, o que contém possibilidades de representação individual e não esta mesma representação. Ainda só conhecemos o terreno, o chão de onde podem surgir indivíduos viventes. Está, decerto, fecundado este terreno pela individualidade, para o que tem de lhe assegurar a independência; mas enquanto condição geral, não nos mostra ainda o movimento ativo dos indivíduos e a sua vivente eficácia, tal como o templo acabado de erguer pela arte não constitui a representação individual de Deus, mas apenas, por assim dizer, o seu embrião. Por isso nós devemos, em primeiro lugar, considerar este estado ideal do mundo como ainda permanecente na imobilidade, na harmonia das forças que o seguem, como, portanto, uma existência substancial submetida à conformidade mas que, todavia, se não pode identificar com aquilo a que se chama um estado de inocência. No estado a que nos referimos, o monstro do desdobramento estava ainda adormecido. O primeiro aspecto em que se nos apresentou era o da sua unidade substancial, por conseguinte o da individualidade nos seus traços mais gerais, quer dizer, da individualidade que, em vez de nos revelar a sua determinação, passa sem deixar profundos traços ou perturbações. Ora, o que essencialmente caracteriza a individualidade é a sua determinação, e para que o ideal se nos ofereça como um conteúdo determinado, necessário é que não fique indefinidamente na generalidade mas que exteriorize o universal em formas particulares, que lhe imprima uma existência e uma aparência exteriores. Considerada deste ponto de vista, a arte não pode limitar-se a representar um estado do mundo geral, mas deve proceder, a partir da representação indeterminada, à pintura, e a descrição de caracteres e de ações determinadas. Do ponto de vista dos indivíduos, o estado geral constitui o terreno que lhes é necessário, mas implica também a necessidade da particularização que, por sua vez, leva a colisões e a complicações que constituem, para os indivíduos, ocasiões e pretextos para manifestarem aquilo que são e para se revelarem num aspecto determinado; do ponto de vista daquilo a que chamamos o estado do mundo, esta revelação aparece como uma transformação da generalidade em particularidades viventes, em determinações que nunca deixam de estar sob o domínio das forças gerais. O aspecto essencial do ideal determinado consiste precisamente em dever o seu conteúdo substancial às forças eternas que regem o mundo. Todavia, o modo de existência puramente ocasional é indigno desse conteúdo; é que, por um lado, a existência ocasional constitui-se, em parte, de hábitos, e por outro lado, os interesses que compõem essa existência nada têm de comum com os interesses mais profundos, que provêm da espiritualidade consciente de si mesma, pois são o produto da natureza acidental e da arbitrariedade individual; ora, a acidentalidade e a arbitrariedade opõem-se à substancialidade e à universalidade que caracterizam o conceito do que é verdadeiro em si. Temos pois, de procurar, para o conteúdo concreto do ideal, uma expressão artística que seja simultaneamente mais determinada e mais digna. As forças gerais, para receberem formas novas, devem diferenciar-se umas das outras ou, melhor ainda, devem-se opor-se umas às outras, o que implica o movimento. É preciso, portanto, distinguir, nesta particularização do geral, dois momentos: primeiro, a substância em que residem as forças gerais cuja separação implica a sua divisão em forças independentes; depois, os indivíduos, portadores ativos destas forças às quais imprimem formas particulares. A diferenciação e a oposição, que daqui resultam, entre este estado do mundo, em que até então reinava a harmonia, e os seus indivíduos, são causadas pela exteriorização do conteúdo essencial do primeiro enquanto, inversamente, a sua generalidade substancial se particulariza e individualiza de tal modo que o geral, revestindo a aparência do ocasional, do dividido e do separado, suprime esta generalidade ao manifestar-se daquela maneira. A separação entre estas forças e a sua realização nos indivíduos só pode, todavia, fazer-se em certas circunstâncias e situações que, se não esgotam a totalidade do fenômeno, atuam, neste aspecto, como excitantes. Consideradas em si mesmas, tais circunstâncias e situações não possuem interesse e só valem pelas relações que têm com o homem, no sentido de que a exteriorização das forças espirituais é efeito da atividade consciente dele. É principalmente deste ponto de vista que se devem considerar as circunstâncias exteriores cuja importância provém de existirem elas para o espírito; isto é: a sua importância está em relação com o modo como elas são apreendidas pelos indivíduos, proporcionando-lhes assim a ocasião e a possibilidade de satisfazer exigências espirituais, de exteriorizar fins, maneiras de pensar, toda a natureza determinada da forma individual. Assim se cria aquilo a que de pode chamar a situação, que constitui a ambiência mais especial em que se efetuam a exteriorização e a atuação de tudo o que, no estado geral do mundo, existe ainda como potência, como não desenvolvido. Deste modo, devemos preceder o estudo da ação propriamente dita pela definição do conceito de situação. De um modo geral, a situação pode ser definida como o estado que, particularizado, recebe uma determinação; esta serve, por sua vez, de estimulante, à exteriorização determinada do conteúdo puro da produção artística. E, sobretudo, à produção artística que a situação oferece um vasto campo de estudos, e a arte sempre considerou como sua mais importante tarefa a de encontrar situações interessantes, isto é, fazer que apareçam os interesses profundos e importantes e o verdadeiro conteúdo do espírito. Neste aspecto, são diversas as exigências das diferentes artes. Limitada em escultura, mais vasta em pintura e música, inesgotável em poesia, é a variedade interna das situações. Como, no entanto, ainda não é agora que nos vamos ocupar das artes particulares, limitemo-nos a mostrar os pontos de vista gerais que consideramos nas três seguintes fases: Em primeiro lugar, temos a situação que, antes de ser determinada, se encontra ainda na forma de generalidade ou de indeterminação, de modo que, nesta fase, estamos perante uma situação que é, por assim dizer, a da ausência de situação. Com efeito, a indeterminação é uma forma que se opõe à determinação, que, portanto, aparece como uma determinação unilateral. No segundo momento, a situação transita daquela generalidade para a particularização e desde logo surge como uma determinação propriamente dita, anódina, sem que haja ainda oposição nem necessidade de resolvê-la. Em terceiro lugar, por fim, o desdobramento e a correspondente determinação tornam-se a própria essência da situação que se resolve em colisão, provocando reações e constituindo o ponto de partida e a passagem para a ação propriamente dita. Com efeito, a situação representa, de um modo geral, a fase intermediária entre o mundo geral e imóvel em si e a atividade concreta, constituída de ações e reações e, assim, ela deve possuir os caracteres destes dois extremos e permitir-nos a passagem de um para outro. a) Ausência da situação Partimos do conceito do estado geral do mundo e mostramos que a sua forma é constituída pela independência individual essencial. Ora, a independência, considerada como tal e como bastando-se a si mesma, apenas significa, inicialmente, a certeza que inspira a confiança em si, encerrada num repouso rígido. A forma determinada não contrai ainda nenhuma relação com o que está fora dela e permanece encerrada, exterior e interiormente, na sua indivisa unidade. Esta ausência de situação é a que caracteriza, por exemplo, as antiquíssimas obras que decoram templos e igrejas e que remontam aos primórdios da arte. A sua seriedade profunda e imóvel, a sua majestade serena e rígida mas grandiosa, foram reproduzidas, segundo o mesmo tipo, em épocas posteriores. A escultura egípcia e a mais antiga escultura grega, por exemplo, foram feitas para dar uma ideia desta ausência de situação. Nas artes plásticas cristãs, especialmente nos bustos, o Deus Pai e o Filho são representados deste mesmo modo. É que, em geral, a imutável substancialidade do divino, quer seja concebida como um Deus particular e determinado, quer como uma personalidade absoluta em si, adequadamente se prestam para esta representação; certo é, todavia, que também os retratos medievais são caracterizados por esta ausência de situação em vez de exprimirem, como o podiam fazer, os caracteres individuais e, assim, só no seu conjunto e na sua fixidez representam o caráter determinado. b) A situação determinada anódina Dado que é a determinação que caracteriza a situação em geral, a segunda fase é a do abandono da atitude de silêncio e de beatífica serenidade ou a do rigor e do domínio exclusivo da independência. As figuras da fase precedente, que era a de ausência de situação, saem da sua imobilidade exterior e interior, para se porem em movimento e libertarem-se da sua simplicidade. Este trânsito para manifestações mais especializadas, mediante uma exteriorização particular, corresponde já a uma situação que, embora determinada, ainda se não diferencia nem é fértil de colisões. Esta primeira manifestação individualizada caracteriza-se também por não ter consequências, pois não chega a opor-se nem a hostilizar o que lhe é alheio, e assim, não manifestando nenhuma reação, apresenta-se como acabado e imutável na sua impassibilidade. Deste gênero fazem parte as situações que, no seu conjunto, podem ser consideradas como jogos, visto que o que neles se faz e acontece é coisa desprovida de seriedade. Com efeito, a ação só adquire seriedade quando a oposição e a contradição a obrigam a suprimir ou ultrapassar um dos termos em luta. Por tais motivos, estas situações ainda não são, por si mesmas, ações, nem fornecem impulsos à ação. São estados determinados em parte, em parte simples em si, ou que correspondem a atividades que se exercem sem um fim essencial e sério, quer dizer, sem um daqueles fins de que provêm conflitos ou que engendram conflitos. O segundo grau é o da passagem da serenidade, inerente à ausência de situação, para o movimento e para a exteriorização, em parte sob a forma do movimento mecânico, em parte como resultante do primeiro despertar de um sentimento provocado por uma exigência que quer ser satisfeita. Se na estatuária os egípcios representam os deuses com as pernas unidas e os braços colados ao corpo, já os deuses das estátuas gregas têm os braços e as pernas livres em relação ao tronco e são representados a andar ou a executar quaisquer movimentos. Também as estátuas gregas representam os deuses em situações simples: sentados, de rosto tranquilo, mergulhados numa perfeita e imperturbável serenidade. Estes estados conferem, sem dúvida, certa determinação à independência das figuras dos deuses, mas é essa uma determinação que não implica outras relações nem provoca oposições: permanece encerrada em si própria e a si própria se basta. As situações de tão extrema Simplicidade são principalmente representadas pela escultura, e era, nos antigos, inesgotável a invenção destes estados de impassibilidade. Deste aspecto, deram os antigos prova de muito engenho, pois foi graças, justamente, à ausência de significação que caracteriza as situações determinadas que eles conseguiram exteriorizar o ideal que dos deuses possuíam, com os seus atributos de majestade e independência, e também utilizar o que havia de anódino e menos importante nos fatos em geral para nos fazerem sentir o tranquilo silêncio e a imutabilidade dos deuses eternos. É assim que a situação revela, de um modo geral, o que no caráter de um deus ou de um herói há de particular, isto é, revela-o sem o relacionar com outros deuses e heróis e, menos ainda, sem estabelecer relações de hostilidade e discórdia. Mais um passo para a determinação dá a situação quando indica um fim particular, cuja realização se efetua, uma atividade relacionada com o exterior, e quando exprime o conteúdo independente em si no próprio seio desta determinação. Exteriorizações são estas que não perturbam a tranquila e serena beatitude das figuras mas que aparecem como um efeito e uma definida modalidade dessa beatitude. Foram também os gregos que se mostraram extremamente engenhosos e ricos em invenções deste gênero. Não consiste a impassibilidade destas situações em implicar ela uma atividade que se limita a aparecer como o começo de um ato de modo que se possam esperar complicações e oposições ulteriores, mas sim em que a determinação fica completamente esgotada naquilo que se fez. Essa é, por exemplo, a situação do Apolo de Belveder que, depois de ter morto com a flecha o Pyton, avança majestosamente, com a fúria e a segurança da vitória. Já não possui, esta situação, a grandiosa simplicidade da mais antiga escultura grega, que apenas se servia de manifestações insignificantes para que sobressaíssem a serenidade e a candura dos deuses. É o caso de Vênus a sair do banho e a olhar para a frente na tranquila consciência do seu poder; o do sátiro que tem nos braços o jovem Baco e olha a sorrir a criança, com uma doçura e uma bondade infinitas; o dos faunos e sátiros entregues a jogos que, enquanto situações, nada mais são nem pretendem ser; o do Amor entregue a atividades variadas que a si próprias se bastam. Exemplos são todos estes da situação de que nos ocupamos. Quando a atividade se torna mais concreta, acontece que a situação mais complicada que ela implica se presta menos à representação escultórica dos deuses gregos enquanto potências independentes porque, então, a pura generalidade do deus individual fica menos aparente através das particularidades acumuladas pela sua atividade determinada. O Mercúrio de Pigalle, por exemplo, oferenda de Luís XV que está exposta em SansSouci, acha-se prestes a terminar o arranjo das suas asas, ocupação completamente insignificante. Pelo contrário, o Mercúrio de Thorwaldsen apresenta uma situação demasiado complicada para a escultura: depois de depor a sua flauta, põe-se a espreitar Marsyas; olha-o cheio de manha, e não o perde de vista ao mesmo tempo em que se arma do escondido punhal com que se propõe matá-lo. Para darmos um exemplo de uma obra de arte moderna, citaremos ainda a rapariga que ata as sandálias, de Rudolfo Schadow; está ela absorvida numa ocupação tão simples como a de Mercúrio mas, aqui, o caráter anódino da ocupação oferece-nos um interesse menor, visto que já não possui a impassibilidade de um deus. Quando uma rapariga ata ou desata as sandálias, este ato, precisamente, é que é insignificante e em si mesmo desprovido de importância. Em terceiro lugar, a situação determinada pode ser considerada como suscetível se servir de ponto de partida, enquanto ocasião exterior mais determinada ou indeterminada, para outras exteriorizações que se lhe referem mais ou menos intimamente. Essa é, por exemplo, a situação de um grande número de poesias líricas, daquelas que se podem chamar poesias de circunstância. Certo estado de alma, um sentimento particular, podem apossar-se de um poeta e impor-lhe, por assim dizer, a expressão e a representação, numa forma minuciosa ou resumida, de sentimentos que se referem a circunstâncias e eventos exteriores: festas, vitórias etc. O exemplo mais típico deste gênero é-nos fornecido pelas Odes de Píndaro que são, no sentido mais autêntico da palavra, poesias de circunstância. Goethe, por sua vez, utilizou muitas situações deste gênero e até se pode, alargando o quadro, considerar o Werther como um poema de circunstância. Ao escrever o Werther, Goethe produziu uma obra de arte a que deu, como conteúdo, as suas próprias aflições e seus tormentos, os seus próprios estados de alma, procedendo como todo poeta lírico que, ao procurar aliviar o coração, exprime aquilo de que é afetado enquanto sujeito. Graças a isso, o que era interior imobilidade acha-se livre e transforma-se num objeto exterior de que o homem se libertou. Do mesmo modo as lágrimas servem de derivativo à dor do que, por assim dizer, se esvai através delas. Como ele mesmo o disse, Goethe escreveu o Werther para se libertar da angústia íntima, e conseguiu-o. A situação descrita neste romance ainda não pertence, porém, à fase de que nos ocupamos, pois ela implica oposições mais profundas cujo desenvolvimento é suscetível de fornecer. Em tais situações líricas, pode refletir-se, por um lado, um estado objetivo, uma atividade referenciada ao mundo exterior, e, por outro lado, um estado da alma que, desligando-se de tudo o que é exterior, regressa a si mesma e torna-se o ponto de partida de estados internos e de sentimentos profundos. c) A colisão Como já observamos, todas as situações que até agora temos descrito não são nem atos propriamente ditos nem ocasiões criadas para suscitar atos. É que a determinação reduzia-se a, mais ou menos, um estado ocasional ou uma atividade insignificante, e era tal a expressão do conteúdo substancial que a determinação aparecia como um jogo anódino que nenhum motivo havia para considerar com seriedade. A seriedade e a importância de uma situação, na sua particularidade, não começam antes de a determinação, sob a forma de uma diferença essencial e pela oposição de contrários, provocar uma colisão. A causa da colisão é, nestas condições, uma perturbação, mas uma perturbação que, em vez de se manter como tal, deve ser suprimida, ou seja, uma perturbação de que resulta uma modificação do estado de harmonia até então existente e que há de ser restabelecido por uma nova modificação. Todavia, a colisão não é ainda uma ação, pois contém apenas os germes e as condições de uma ação; por isso ela deverá conservar, como simples possibilidade de ação que é, o caráter de uma situação, não obstante poder ser resultado de uma ação anterior à oposição que provocou a colisão. É assim que, nas antigas trilogias, o fim de uma das obras dramáticas serve de ponto de partida para uma colisão na segunda obra e vem a encontrar a solução na terceira. Dado que a colisão em geral exige uma solução que obedece à luta de contrários, são sobretudo as situações prenhes de colisões as que constituem o objeto da arte dramática, arte que tem o privilégio de poder representar o belo no mais profundo e completo estado de desenvolvimento. A escultura, por exemplo, é incapaz de dar a representação completa de uma ação em que as grandes forças espirituais apareçam no seu desacordo e na sua reconciliação. A própria pintura, que se exerce num domínio mais vasto, nunca nos dá mais do que um momento da ação. Estas situações sérias apresentam, todavia, uma singular dificuldade, que se encontra já no seu conceito. Tendo por origem perturbações na harmonia do estado do mundo, elas criam, por sua vez, circunstâncias que não podem permanecer tais quais, mas exigem uma regressão. Ora, a beleza do ideal reside precisamente no perfeito acordo consigo mesmo, na sua tranquila e impassível serenidade, ao passo que a colisão perturba esta harmonia do que é verdadeiramente real e moral, e introduz na unidade do ideal a dissonância e a oposição. Ao representar esta perturbação, o próprio ideal fica perturbado, e a missão da arte só pode consistir, por um lado, em não deixar sucumbir, na oposição, a livre beleza e, por outro lado, em representar a separação e a luta dos contrários como conducentes a uma solução que restabelece a harmonia em sua perfeição inalterável. Quanto a saber até onde pode ser levada a dissonância, é coisa que se não consegue determinar com precisão, visto que é impossível formular a este respeito regras gerais e cada arte deve seguir neste domínio o caminho que lhe é indicado pelo seu caráter particular. A representação interna, por exemplo, é suscetível de um grau de dissonância infinitamente mais elevado que a percepção direta. É por isso que, quando se trata de sentimentos internos, a poesia deve ir até os limites extremos do sofrimento e do desespero e, para os objetos exteriores até os limites extremos da fealdade. Mas nas artes plásticas, na pintura e mais ainda na escultura a figura exterior mantém-se fixa e permanente, sem que possa ser suprimida ou sem que possa desaparecer imediatamente quando é representada de passagem. Falta se cometeria, nestes casos, se se quisesse manter a fealdade sem a reabsorver. O que é permitido à poesia dramática, que apresenta as personagens para o logo a seguir as retirar, não é permitido às artes figurativas. Quanto às outras formas de colisão, nós só podemos aqui indicar os pontos de vista mais gerais. Não vamos, pois examinar, neste aspecto, mais do que três formas principais. Examinaremos, em primeiro lugar, as colisões que resultam de situações naturais, puramente físicas, na medida em que elas constituem um elemento de negatividade, de mal, portanto de perturbação. Em segundo lugar, as colisões espirituais que assentam numa base natural que, apesar de positiva em si, não deixa de comportar, para o espírito, a possibilidade de diferenças e de oposições. Em terceiro lugar, os desacordos resultantes de diferenças espirituais e que podem ser considerados como oposições verdadeiramente interessantes que têm a sua origem nos atos próprios do homem. 1º - Quanto aos conflitos da primeira categoria, podem eles ser considerados como puramente ocasionais, pois a natureza exterior, com suas doenças, males e misérias, cria circunstâncias que perturbam a harmonia normal da vida e dão lugar a diferenciações. Consideradas em si mesmas, estas colisões não têm interesse e se a arte as utiliza é por causa dos desacordos e dissonâncias que podem surgir como consequências de uma infelicidade natural. É assim que para a Alceste, de Eurípedes, cujo assunto foi retomado por Cluck, todos os acontecimentos estão condicionados pela doença de Admet. A doença como tal não inspira uma obra de arte, e Eurípedes só a utilizou por causa da colisão que, em consequência dessa infelicidade, se desencadeava entre os indivíduos. O oráculo anuncia que Admet deve morrer, a não ser que alguém o queira substituir no mundo subterrâneo. Por amor do esposo, Alceste aceita o sacrifício e decide morrer a fim de subtrair à morte o bem-amado, o pai de seus filhos, o rei. É também uma infelicidade física que provoca a colisão no Filoteto de Sófocles. Dirigindo-se para Tróia, os gregos deixam em Lemnos o homem que tem uma chaga na perna provocada pela mordedura que uma serpente lhe tinha feito em Chrysa. Também aqui é uma infelicidade física que constitui o ponto de partida, completamente exterior, da colisão que em seguida se desenvolve. De acordo com a predição do oráculo, Tróia só cairá quando as flechas de Hércules estiverem nas mãos dos assaltantes. Hércules demora em se decidir, porque tinha sofrido cruelmente, durante nove anos, o abandono em que o haviam deixado. Mas esta hesitação, tal como o abandono de que ela provém, poderia ter sido representada de um modo diferente, e o verdadeiro interesse não reside na doença e nos seus infelizes efeitos físicos, mas sim na oposição de que resulta a decisão de Filoteto de não entregar as flechas. O mesmo acontece com a peste espalhada no acampamento dos gregos e que, em si mesma, já é representada como uma consequência de perturbações anteriores, como um castigo. Aliás, convém mais, de um modo geral, à poesia épica do que à dramática referir as perturbações e obstáculos, que descreve, às infelicidades naturais: tempestades, naufrágios, secas etc. No seu conjunto, porém, a arte representa as infelicidades deste gênero, não como simples acidentes ou acasos, mas como obstáculos ou desastres que só podem revestir aquela forma e não outra. 2º - Se é certo que a força natural exterior não desempenha um papel essencial nos interesses e oposições que pertencem ao domínio do espírito, ela não deixa todavia de representar, sempre que de coisas do espírito se trate, o terreno sobre o qual a colisão propriamente dita produz a ruptura e a discórdia. A esta categoria pertencem todos os conflitos que se relacionam com o nascimento natural. Podem-se aqui distinguir três casos. Em primeiro lugar, distingue-se um direito que tem origem na natureza, como a paternidade, o direito de sucessão etc., que, por isso mesmo que é natural, está submetido a uma multiplicidade de determinações naturais, enquanto o direito é uno, a coisa é una. O exemplo mais importante, neste aspecto, é-nos fornecido pelo direito de sucessão ao trono. Dadas as colisões que é suscetível de provocar, este direito não pode ser regulado e fixado como tal porque, se assim o fosse, o conflito tomaria logo uma outra forma. Se as leis positivas e a ordem vigente ainda não tivessem estabelecido definitivamente as regras da sucessão, nenhuma injustiça haveria em que o direito de reinar fosse transmitido ao filho mais novo ou a qualquer outro parente, em vez de o ser ao filho mais velho. Ora, visto que o poder é de natureza qualitativa, e não quantitativa como o ouro ou os bens, visto que não se presta às partilhas, tal sucessão não deixa de provocar discórdias e lutas. Quando Édipo, por exemplo, deixou vago o seu trono, os filhos, o par tebano, defrontaram-se um ao outro apelando para os mesmos direitos e formulando pretensões idênticas; é certo que os irmãos concordam em alterar o poder todos os anos, mas Eteocles rompe o contrato obrigando Polynice, na defesa dos seus direitos, a marchar contra Tebas. A inimizade entre irmãos constitui, aliás, um gênero de colisão que serviu de objeto à arte de todos os tempos. Já se encontra ela em Caim que matou Abel. Também no Schah-Named, o primeiro livro épico persa, uma luta pela sucessão ao trono origina os mais diversos conflitos. Feridu divide a terra entre os três irmãos: Selm recebe Rum e Chawer; Turan e Dshin cabem a Thur, e lredsh fica com a terra do Irão; cada um deles ambiciona, porém, a terra dos outros e isso dá lugar a discórdias e guerras inumeráveis. Também na Idade Média cristã são numerosas as histórias de rivalidades familiares e dinásticas. Por si mesmas, estas discórdias parecem acidentais; com efeito, não é necessário em si que entre irmãos reine a hostilidade, e por isso é sempre precisa a intervenção de circunstâncias particulares e de causas importantes como, por exemplo, a hostilidade que já existia entre os filhos de Édipo no momento em que nasceram. É assim também que, na Noiva de Messina, o autor procura transferir para um destino superior a responsabilidade da inimizade fraternal. Colisão análoga se acha no Macbeth de Shakespeare. Duncan é o rei, e Macbeth, por ser seu parente mais próximo e mais velho, tem mais direito ao trono do que os filhos de Duncan. Ao designar como herdeiro do trono o seu próprio filho, Duncan comete uma injustiça suscetível de justificar o crime de Macbeth. Nenhum caso faz Shakespeare desta justificação, que está registrada nas crônicas, porque o seu principal fim consistia em mostrar o que havia de horrível na paixão de Macbeth, assim lisonjeando ao mesmo tempo o rei Jaime, que devia gostar de ver Macbeth representado como um criminoso. Nada nos diz, por isso, a peça de Shakespeare acerca das razões por que Macbeth não matou os filhos de Duncan, os deixou fugir e ninguém pensou neles. No seu conjunto, todavia, a colisão desenvolvida no Macbeth ultrapassa já os limites da situação de que estamos a falar. Em segundo lugar, achamo-nos perante um caso inverso, aquele em que, às diferenças referidas, provenientes do nascimento e injustiças em si mesmas, os costumes ou a lei opõem uma barreira intransponível, e transformam-nos numa injustiça natural, geradora de colisões. Entre estas diferenças provenientes do nascimento, é preciso incluir a escravatura, todas as formas de servidão, as diferenças de casta, a situação dos judeus em muitos países e, até certo ponto, a oposição entre a nobreza e a burguesia. Nos casos em questão, o conflito provém do seguinte: por um lado, o homem pode reivindicar direitos, ter desejos, perseguir fins etc., cuja legitimidade está assegurada pelo mesmo fato de ser homem, em virtude do conceito de homem, ao passo que, por outro lado, as diferenças referidas ao nascimento como uma força natural opõem, a tais reivindicações e pretensões, obstáculos que as tomam irrealizáveis. Vamos dizer o que pensamos a respeito desta colisão. Sem qualquer dúvida, as diferenças que existem entre classes sociais, entre governantes e governados etc., estão fundadas na essência das coisas e são racionais no sentido de que são determinadas pela organização necessária do conjunto da vida política, e manifestam-se de múltiplos modos: no gênero de ocupação, nas ideias, nas opiniões, na conduta, em toda a cultura espiritual. De outra maneira, porém, se apresentam as coisas quando essas diferenças se estabelecem entre os indivíduos em virtude do seu diverso nascimento, de tal sorte que cada homem se acha, logo ao nascer, irrevogavelmente incluído numa classe, numa casta etc., não por razões intrínsecas mas em consequência de um simples acidente natural. Consideram-se, então, essas diferenças como puramente naturais e confere-se-lhes uma força determinante irresistível. Não nos podemos agora ocupar das causas e origens desta estabilidade nem do fundamento desta força. É possível que tal ou tal nação, onde existem distinções a que nos referimos, tenha sido originalmente una e que a diferença de natureza entre homens livres e servos só posteriormente se tenha nela introduzido, ou que as diferenças de casta, de classe, as que separam os privilegiados dos não privilegiados, provenham de primitivas distinções nacionais ou étnicas como dizem ser as diferenças de casta na Índia. Quanto a nós, este fato não tem importância: o ponto principal consiste em provirem da natureza e do nascimento as condições de vida que regulam toda a existência do homem. Do ponto de vista do conceito, as diferenças de classes devem, sem dúvida, considerar-se como justificadas, mas o indivíduo jamais deve ser privado do direito de se integrar livremente nesta ou naquela classe. Só as disposições, o talento, a habilidade e a instrução devem, neste caso, servir de guia e ditar a decisão. Se o direito de escolher estiver antecipadamente suprimido pelo nascimento, o que coloca o homem na dependência da natureza e dos acasos, então pode produzir-se um conflito, no íntimo desta não liberdade, entre a situação imposta ao sujeito pelo nascimento e a sua formação espiritual com todas as exigências que ela implica e justifica. Triste e infeliz colisão é essa, pois assenta numa injustiça que a arte verdadeiramente livre não pode respeitar. Nas condições atuais, e excetuando um círculo muito restrito, as distinções de classes não têm nenhuma relação com o nascimento. A exceção a que aludimos é constituída pela dinastia reinante e pelo pariato, e justifica-se por considerações fundadas numa mais alta noção do Estado. Em todos os demais casos, o nascimento não cria nenhuma diferença que possa prevalecer para impedir o indivíduo de entrar na classe que lhe convém ou que escolheu. É por isso que à reivindicação desta plena e inteira liberdade se acrescenta uma a outra: a de que o sujeito se tome digno, pela sua instrução, conhecimentos e maneira de pensar, da classe de que quer fazer parte. Mas quando o homem satisfaz, pela sua força e sua atividade, estas exigências e vem a encontrar, no nascimento, um obstáculo intransponível, isto já nos não aparece apenas como uma infelicidade, mas como uma injustiça de que o indivíduo é a vítima. É que é um obstáculo puramente natural e sem fundamento em qualquer direito, o que afasta o indivíduo, que pelo seu espírito, talento, sensibilidade, educação e instrução se elevou muito acima daquilo que ele pode atingir, e é o simples fato natural, a que só a arbitrariedade conferiu uma aparência de direito e um caráter de fatalidade, que se arroga o poder de opor um obstáculo intransponível à liberdade do espírito que tem em si mesma a sua própria justificação. Os principais aspectos que apresentam as colisões deste gênero são os seguintes: Em primeiro lugar, é preciso que o indivíduo possua tais qualidades espirituais que se possa dizer que ele já ultrapassou os limites naturais que se opõem às suas ambições e aos seus fins; sem isso, as suas pretensões seriam absurdas e estultas. Quando, por exemplo, um criado que só tem os conhecimentos necessários ao seu serviço se apaixona por uma princesa ou, inversamente, quando uma princesa se apaixona pelo criado, esta paixão é absurda e inepta por mais esforços que se façam para nos mostrar a sua profundidade e intensidade. Não é a diferença de nascimento que produz, aqui, a dissonância, mas sim todo o conjunto de interesses de ordem mais elevada, a maior instrução, a concepção de vida, as exigências e maneiras de pensar e sentir, próprios de uma mulher que pela classe a que pertence, pela riqueza, pelos hábitos mundanos se acha numa situação social que a separa do seu criado. O amor, que é o único traço de união entre eles e se acha fora dos interesses vitais do homem condicionado pela sua cultura espiritual e pelas condições do seu estado, é coisa vazia, abstrata, que só interessa à sensibilidade. Para que seja pleno e total, o amor tem de ser uma emanação da consciência, em geral, uma expressão da nobreza de ideias e interesses. Em segundo lugar, temos a legalização, por assim dizer, do entrave que o nascimento opõe à manifestação do espírito e à realização dos seus fins legítimos. Também nesta colisão há qualquer coisa de inestético que está em contradição com o conceito do ideal, apesar da frequência com que se recorre a ela. Com efeito, se as distinções relacionadas com o nascimento forem sancionadas por leis positivas que as transformam numa injustiça permanente, como é o caso dos judeus etc., o homem, profundamente ferido no seu sentimento de liberdade por esse entrave, está no direito de não o reconhecer como definitivo e de se não considerar condenado sem apelo. Lutar para suprimir esse obstáculo é um seu direito absoluto. Na medida em que a pressão exercida pela ordem de coisas existentes for tal que tome esse obstáculo intransponível e se estabilize na forma de uma necessidade invencível a situação disso resultante é uma situação falsa e prenhe de infelicidades. É que se o homem razoável não possuir meios de dominar tal necessidade, tem de se submeter a ela, isto é, tem de renunciar a reagir e aceitar o inevitável com uma amargurada resignação. Tem de renunciar às exigências e aos interesses que embatem contra tal obstáculo e suportar o intransponível com uma tranquila coragem, com uma dolorosa paciência. Quando a luta é inútil, o mais razoável é não lhe correr os riscos a fim de, pelo menos, se salvaguardar o refúgio na independência formal da liberdade subjetiva. Então, a infelicidade não absorve o indivíduo que, opondo-se-lhe, torna consciente toda a sua dependência. Todavia, nem esta abstração, que é uma independência puramente formal, nem a luta, que está condenada a nada alcançar, são verdadeiramente belas. Temos ainda, em terceiro lugar, um caso estreitamente ligado ao anterior: o da distância que vai entre o ideal e o real. Indivíduos a quem o nascimento assegura privilégios sancionados por leis positivas, por prescrições religiosas e por convenções sociais, querem afirmar e fazer valer esses privilégios. Perante a realidade positiva exterior, estes indivíduos são, decerto, independentes, mas esta independência, posta ao serviço de uma reivindicação injustificada e irracional em si, não passa de uma falsa independência, puramente formal, que nada tem de comum com o conceito do ideal. Poder-se-á, todavia, supor que o ideal se mantém, porquanto, considerados globalmente, a subjetividade acompanha o geral e o legal, com estes formando uma unidade consciente. Ora, no caso de que nos ocupamos, o geral extrai a sua força e o seu poder, não do indivíduo, como acontece no ideal heroico, mas da autoridade pública, das leis positivas e suas aplicações; por outro lado, aquilo que o indivíduo reivindica é injusto em si e, por conseguinte, está desprovido da substancialidade que, como já vimos, também faz parte do conceito do ideal. A causa que o sujeito ideal defende deve ser verdadeira e justa. Podemos citar, como pertencendo a esta categoria, o direito, quando concedido pela lei, de dispor da sorte dos escravos, de tirar a liberdade aos estrangeiros e oferecê-los em sacrifício aos deuses etc. Tais direitos podem, na verdade, ser exercidos com inteira boa-fé pelos indivíduos, como o fazem, por exemplo, as castas superiores da Índia, como o fez Thoas as mandar sacrificar Orestes, como o fazem, na Rússia, os grãos-senhor que tratam os servos como objetos. Digamos ainda mais: os que se acham no alto da hierarquia social podem estar persuadidos de que exercem os direitos, que as leis lhes concedem, no interesse daqueles mesmos à custa de quem os exercem na realidade. Esses direitos são, porém, bárbaros e ilegítimos, e bárbaros são os que exercem e não têm qualquer noção do que é justo. A legalidade em que se apoia o sujeito é apenas a legalidade de uma época e só se justifica na medida em que corresponde ao espírito e ao ponto de vista dessa época. Para nós, porém, ela é única e essencialmente positiva, sem valor e sem força. Se o indivíduo privilegiado faz valer os seus direitos exclusivamente em vista dos seus fins pessoais, da sua particular paixão ou com intenções interessadas, já não é só perante um bárbaro que nos encontramos, mas também perante um mau-caráter. Muitas vezes se tem pretendido que tais conflitos, na sua representação dramática, provocam o sentimento da piedade e do terror, em conformidade com a teoria de Aristóteles que atribui à tragédia o fim de despertar aqueles sentimentos; mas não sentimos nós nem temor nem veneração perante esses direitos que são produtos da barbárie e da infelicidade dos tempos, e a piedade que poderíamos sentir depressa se transforma em repugnância e indignação. A única justificação possível de tais conflitos consiste em não permitirem que se afirmem esses direitos falsos, em impedirem o seu exercício como acontece no sacrifício de Ifigênia em Áulida e de Orestes em Táurida. Uma última categoria de colisões provenientes da ordem da natureza compreende os casos que a causa do conflito é a paixão subjetiva fundada nas disposições naturais do temperamento e do caráter. Citaremos, a propósito, o exemplo do ciúme de Otelo. A ambição, a avareza e, em parte, o amor também, podem ter os mesmos efeitos. No entanto, estas paixões só podem motivar colisões quando os indivíduos que se acham sob o seu domínio exclusivo se opõem ao que há de verdadeiramente moral e legítimo em si na vida humana; isso vai envolvê-los num conflito mais profundo. Somos, assim, obrigados a considerar uma terceira variedade dos conflitos que têm a origem nas forças espirituais e na sua oposição, na medida em que esta oposição é provoca da pelos atos do próprio homem. 3º - Ao falarmos de colisões com uma origem puramente natural, já chamamos a atenção para o fato de elas apenas constituírem, por assim dizer, um preliminar para oposições de maior alcance. O mesmo se pode dizer dos conflitos da segunda categoria que anteriormente caracterizamos. Nas obras com um interesse verdadeiramente profundo, estes conflitos não se mantêm tais quais, pois as perturbações e oposições de que se compõe constituem como que o prelúdio de uma oposição e de uma luta entre as forças vitais do espírito. Mas o que participa do espírito só pelo espírito pode ser ativado e é assim que, para se apresentarem nas suas formas autênticas, as diferenças espirituais só dos atos humanos podem receber a sua realidade. Estamos, pois, em presença, por um lado, de uma dificuldade, de um obstáculo, de um insulto proveniente de um ato real do homem; e por outro lado, de um atentado contra interesses e forças que são legítimos em si. Da reunião de tais determinações resulta a profundidade das colisões desta última categoria. Os principais casos que, então, são suscetíveis de se produzir podem ser caracterizados como a seguir fazemos. Os primeiros casos desta nova categoria são os motivados por razões relacionadas com a ordem da natureza e se acham, por assim dizer, no limite delas. Mas se a origem da colisão deve ser a atividade humana, o natural que o homem, não enquanto espírito, realiza, só pode consistir no que o homem faz contra a vontade, sem intenção, num ato que ulteriormente se revela como um atentado contra forças morais que devem ser respeitadas. Quando, mais tarde, adquire consciência do que fez, esse atentado inconsciente, a que verifica por fim não poder fugir, põe-no em oposição e em contradição consigo mesmo. Esta oposição entre, por um lado, o estado de consciência e a intenção com que executou o ato e, por outro lado, o estado de consciência depois de efetuado o ato, quando se dá conta da natureza do que fez, é a oposição que constitui a base do conflito. Exemplos disso são os de Édipo e de Ajax. O ato de Édipo, tal como ele o queria e pensava, era o de um homem que, no decurso de uma luta, mata alguém que lhe é estranho; o ato real era, porém, o que ele ignorava, o do assassínio do próprio pai. Ajax mata, num acesso de loucura, os rebanhos dos gregos julgando matar os próprios príncipes gregos. Quando, ao regressar à lucidez, refletiu sobre o que tinha feito, a vergonha apossa-se dele e põem-no em colisão consigo mesmo. Isso que, sem intenção, o homem afronta deve, pois, constituir qualquer coisa que a sua lúcida razão lhe manda venerar e considerar como sagrado. Se esta adoração, esta veneração, não passarem de uma simples opinião ou de uma falsa superstição, a colisão resultante já não pode ter o menor interesse, pelo menos para nós. Os conflitos desta categoria, os que são motivados por um atentado espiritual contra forças espirituais, implicam uma subdivisão que é constituída pelos conflitos provenientes de violação consciente, desejada, intencional. Os pontos de partida destes conflitos podem também ser a paixão, a violência, a estupidez etc. A causa da guerra de Tróia, por exemplo, foi o rapto de Helena; Agamêmnon, por sua vez, sacrifica Ifigênia, ultraja o amor de mãe roubando-lhe o filho mais querido, e Clitemnestra vinga-se assassinando o marido; Orestes, finalmente, mata a mãe para vingar o assassínio do pai e do rei. Do mesmo modo, no Hamlet, o pai é suprimido de maneira pérfida, e a mãe de Hamlet ultraja os manes do assassinado desposando o assassino. A principal característica destas colisões consiste em que o homem entra em oposição consigo mesmo ao afrontar a moral, a verdade, a santidade. Quando assim não acontece, quando se trata de um conflito em que a violação incide sobre coisas que não pertencem à categoria daquilo que nós consideramos como moral e sagrado, então o conflito perde todo o valor, todo o interesse substancial. Lembraremos, a propósito, o célebre episódio da Mahâ-Bhârata intitulado Na/as e Damayanti. O rei Nalas desposa a princesa Damayanti que possuía o privilégio de ela mesma escolher, entre os seus pretendentes, o futuro marido. Enquanto os outros pretendentes eram gênios que habitavam nos ares, Nalas estava firmado na terra e a princesa teve o bom gosto de escolher um homem. Furiosos, os gênios empenham-se em perder o rei Nalas, mas durante anos nada podem fazer porque ele não pratica nenhuma falta. Um dia, conseguem, enfim, surpreendê-lo porque, depois de ter urinado, pisa como os pés o solo molhado de urina. Segundo as ideias hindus, isso constitui uma grave falta que tem de ser expiada. A partir desse momento, os gênios têm-no nas mãos: um insufla-lhe a paixão do jogo, outro suscita-lhe o ódio do irmão e, por fim, Nalas perde o trono, cai na miséria e arrasta consigo Damayanti. A tantas misérias, sobrevém ainda a dolorosa separação da mulher. Mas, depois de numerosas aventuras, consegue readquirir a felicidade de outrora. A verdadeira causa deste conflito, o que constitui o cerne da narrativa, é o ultraje de qualquer coisa que é sagrada para os hindus mas que, para nós, não passa de um absurdo puro e simples. Em terceiro lugar, a violação não deve ser direta, quer dizer, não é necessário que o ato como tal e considerado em si mesmo seja já um ato de colisão, pois só o vem a ser em virtude de circunstâncias e condições conhecidas dentro das quais se efetua e que lhe são opostas e contrárias. Romeu e Julieta, por exemplo, amam-se; por si mesmo, o amor não constitui uma violação ou um ultraje. Mas os amantes sabem que as respectivas casas se odeiam e vivem em permanente luta, que os pais jamais darão a concordância ao seu casamento, e é do encontro destas opostas situações que resulta a colisão. Cremos que o que acabamos de dizer, de um modo geral, acerca do estado geral do mundo é já suficiente. Se houvéssemos pretendido analisar a questão em todos os seus aspectos, considerar todas as suas variedades e examinar todas as situações possíveis, considerações seriam essas que forneceriam matéria para mais de um capítulo. É, com efeito, possível indefinidamente inventar e imaginar situações, pois cada arte dispõe de recursos e de possibilidades que lhe são próprios. No conto, por exemplo, pode tratar-se de muitas coisas que se não tolerariam noutros gêneros de concepção e de representação. Todavia, a invenção de uma situação é, de um modo geral, um ponto importante que aos mesmos artistas exige profundos cuidados. Nos nossos dias, sobretudo, é frequente lamentar-se a dificuldade de achar materiais adequados para constituírem circunstâncias e situações. Poder-se-ia, à primeira vista, julgar que é mais digno de um poeta mostrar-se original e inventar ele mesmo as situações; mas a situação como tal e considerada em si mesma ainda não faz parte do domínio do espírito e não representa a forma artística propriamente dita: apenas fornece as condições exteriores para o desenvolvimento de um caráter e de uma alma. A atividade artística propriamente dita consiste na elaboração dos materiais que a situação fornece, até que surjam ações e caracteres. Por isso se não deve exigir que o poeta invente as situações, o que não lhe confere qualquer mérito particular. Deve-lhe antes ser permitido que recorra ao que já existe na história, nas lendas, nos mitos, nas crônicas e, até, que submeta a nova elaboração assuntos e situações que já tiveram representação artística. Em pintura, o aspecto exterior da situação tem sido tirado das lendas dos santos e, muitas vezes, reproduzido fielmente. Mas o aspecto verdadeiramente artístico destas representações é infinitamente mais importante do que a invenção de uma situação determinada. Outro tanto se poderá dizer da riqueza dos estados e das complicações que perpassam à frente dos nossos olhos. A respeito disto, muitas vezes se tem louvado a arte moderna que, ao contrário da antiga, dá provas de uma fantasia infinitamente mais fecunda, pois se acham nas obras de arte moderna bem como nas medievais a maior variedade e a mais rica sucessão de situações, eventos e destinos. Mas esta riqueza exterior nada acrescenta à arte, pois, não obstante ela, são muito poucos os dramas e as poesias épicas verdadeiramente excelentes que possuímos. É que o que antes de tudo importa não é o aparato exterior nem a sucessão dos acontecimentos. O verdadeiro conteúdo de uma obra de arte não está aí; está na transfiguração moral e espiritual desses acontecimentos, da representação dos grandes tumultos da alma e do caráter que através daquela transfiguração se exprimem. Ao procurarmos, agora, qual deve ser o ponto de partida para o nosso ulterior estudo, verificamos que ele se acha nos movimentos de alma e nas paixões que transformam circunstâncias exteriores e interiores dadas em estados e que determinam as relações delas com a situação. Já, em referência à situação, nós mostramos que ela diferencia a determinação sem oposições, obstáculos, complicações e violações; desse modo, a alma é irresistivelmente obrigada pelas circunstâncias a agir contra o que a perturba e a prende, contra o que se lhe opõe aos seus fins e paixões. A ação só, portanto, começa após o momento em que se torna manifesta a oposição que se achava latente na situação determinada. Mas ao defrontar aquilo que se opõe, a ação que abre a colisão ergue contra si a força atacada e assim provoca uma reação imediata. A partir desse momento, o ideal entra na sua plena determinação e no seu pleno desenvolvimento; é que, doravante, dois interesses, que até aí viviam em harmonia, contrapõe-se numa luta e, em sua negação recíproca, exigem uma solução conciliadora. Considerado no seu conjunto, este movimento já não pertence ao domínio da situação e respectivos conflitos, mas conta o exame daquilo a que chamamos a ação propriamente dita. III - A AÇÃO Na hierarquia que adotamos, a ação ocupa o terceiro lugar, depois do estado geral do mundo e da situação determinada. No capítulo precedente, já nós vimos que a ação supõe a presença de circunstâncias que conduzem a colisão, com ações e reações. Presentes estas circunstâncias, é difícil prever onde deve a ação começar. O que à primeira vista parece um começo pode não ser senão o resultado de complicações anteriores e é possível que sejam estas que fornecem o ponto de partida, caso não sejam já, por sua vez, o resultado de colisões anteriores etc. Na casa de Agamêmnon, por exemplo, Ifigênia expia em Áulida as faltas e as desgraças da casa. Aqui, seria o começo constituído com a salvação de Ifigênia por Diana que a leva para Táurida; mas este acontecimento é a consequência de complicações anteriores, nomeadamente do sacrifício executado em Aulis, provocado, por sua vez, pelo ultraje feito a Menelau a quem Páris rapta Helena, e assim sucessivamente até ao famoso ovo de Leda. Do mesmo modo, o ponto de partida do assunto tratado na Ifigênia em Táurida é o assassínio de Agamêmnon e toda a série de dramas cujo teatro é a casa de Tântalo. O mesmo acontece com o ciclo das lendas tebanas. Só a poesia poderia cumprir com rigor a tarefa que consiste em representar a ação com todo o cortejo das circunstâncias que a precederam e, nas quais, cada uma delas condiciona a que lhe sucede. Todavia, procedendo assim a poesia não seria senão enfadonha, e admite-se geralmente que o monopólio dos pormenores deve ser entregue à prosa enquanto a poesia tem de introduzir imediatamente o leitor ou o espectador in media res. Não pode interessar à arte adquirir como ponto de partida o primeiro começo exterior de uma ação determinada, pela profunda razão de que tal começo só o é em referência à evolução natural e exteriores dos acontecimentos e, referida a ele a ação, só se considera a unidade empírica dos eventos, não o conteúdo verdadeiro da ação. Puramente exterior permanece ainda a unidade quando os diversos eventos estão ligados entre si mediante um só e mesmo indivíduo. O conjunto das circunstâncias, dos atos, dos fatos constitui, decerto, os fatores da formação do indivíduo; mas certo é também que à verdadeira natureza do indivíduo, ao verdadeiro núcleo da sua individualidade moral e anímica basta, para se manifestar e exprimir, uma só grande situação que nos revele o que realmente é aquele que até então só era conhecido pelo nome e atributos exteriores. Não é, pois, no começo empírico que se deve iniciar a ação, mas é preciso apreender as circunstâncias que sulcaram a alma do indivíduo e lhe relevaram as suas próprias exigências, que provocaram a colisão em que se acha empenhado e cuja solução procura, pois isso constitui a ação propriamente dita. Na Ilíada, por exemplo, Homero começa por contar imediatamente a cólera de Aquiles sem atender aos eventos anteriores e à biografia do herói; apresenta-nos imediatamente o conflito e consegue suscitar o nosso interesse até por aquilo que não diz e que forma, por assim dizer, o fundo do quadro. Ora, representar a ação como sendo um movimento total, composto da ação, da reação e da solução de um conflito é o que à poesia sobretudo pertence, visto que as outras artes só podem um instante reter do desenvolvimento da ação. Bem parece que, neste aspecto, as outras artes possuem uma riqueza de meios que, superior à da poesia, lhes permitirá representar, não apenas a forma exterior, mas também a expressão dos gestos e atitudes bem como as impressões por estes gestos e atitudes produzidas nas figuras circundantes e a maneira como se refletem nos objetos agrupados em volta. Meios de expressão são, todavia, esses que não igualam a clareza e profundidade de que dispõe a poesia. A ação consiste na revelação mais clara do que há de mais profundo no indivíduo que, na ação, manifesta e realiza seu ser mais íntimo; e visto que a ação é de natureza espiritual, a expressão espiritual, no discurso, se representa ela com a máxima clareza e determinação. Pensa-se, em geral, que a ação seja suscetível de uma variedade indefinida. Mas, na verdade, as ações que se adéquam à representação artística são de número limitado, pois a arte só pode considerar as ações necessitadas pela ideia. Neste aspecto se devem distinguir na ação, na medida em que fornece assuntos à arte, três pontos principais que se justificam no que vamos a seguir dizer. De um modo geral são a situação e o conflito que atuam como excitantes; mas o movimento, a oposição, que se forma no seio do ideal durante a sua atividade, só são provocados pela reação. Este movimento compreende: Em primeiro lugar, as forças gerais que constituem o conteúdo e o fim essenciais daquilo para que se age; Em segundo lugar, o ativar essas forças pelo indivíduo agente; Em terceiro lugar, a reunião daquelas forças gerais e desta ação. a) As forças gerais da ação Embora, no estudo da ação, ainda estejamos na fase em que o ideal, ao determinar-se, se opõe a si mesmo, não obsta isso a que, de acordo com o conceito da arte tal como se realiza na beleza verdadeira, cada termo desta oposição ainda tenha o signo do ideal e participe da razão e da justiça. Opondo-se, as forças gerais consideradas, umas às outras, deverão combater-se os interesses de um caráter ideal. Com efeito, tais interesses correspondem às forças universais e eternas da vida espiritual, às exigências essenciais da alma humana, às finalidades da atividade que são necessárias, legítimas e racionais em si mesmas, e isso, precisamente, lhes confere a dignidade de forças universais. Não são estas forças o mesmo divino absoluto, mas as filhas de uma ideia absoluta e a esta qualidade sua elas devem o poder que exercem e o valor que representam. São as filhas da única verdade universal e, ao mesmo tempo, dos momentos particulares e determinados desta verdade. Enquanto assim determinadas, podem elas opor-se umas às outras, mas, apesar desta oposição, deverão elas mesmas possuir algo de essencial para aparecerem como o ideal determinado. Neste caso estão os grandes motivos da arte: a família, a pátria, a igreja, o Estado, a glória, a amizade, a classe social, a dignidade e, na esfera romântica, a honra, o amor etc. Podem estas forças diferir no grau de valor que possuem, mas todas devem ser racionais. São, ao mesmo tempo, forças da alma humana que importa conhecer como tais e cuja manifestação e ativação é preciso favorecer. Não se deve, no entanto, considerá-las como direitos estabelecidos por uma legislação positiva. Porque, de um lado, a legislação positiva está, já o dissemos, em oposição com o conceito e o modo de realização do ideal; e, de outro lado, porque o conteúdo do direito pode sancionar também o que é imposto em si, e não é por lhe conferir força de lei que se transforma o injusto em justo. A lei positiva cria um estado de violência e coação que é oposto ao ideal. A força, para ter o direito de se afirmar e impor, deve possuir um caráter racional. As forças de que falamos não atuam do exterior, mas são forças substanciais que têm em si o verdadeiro conteúdo da existência humana. São elas o único motivo da ação e representam o que, nesta, se realiza sem cessar. É essa, por exemplo, a natureza dos interesses e dos fins que se opõe na Antígona de Sófocles. O rei Creonte, na sua qualidade de chefe do Estado, havia proibido rigorosamente prestarem-se honras de funerais ao filho de Édipo que em frente de Tebas se tinha apresentado como inimigo da pátria. Esta proibição estava sem dúvida justificada, pois se tratava do bem de toda a cidade. Mas a Antígona animava-a uma força também moral: o amor sagrado do irmão que não queria abandonar sem sepultura, que não queria deixar como presa das aves. Não cumprir o dever dos funerais seria ultrajar a piedade familiar e isso a obrigava a passar por cima da proibição de Creonte. De modos muito vários se podem, decerto, produzir os conflitos. Mas não pode ser ditada por razões excêntricas ou bizarras a necessidades de reação que tem de ser fundada na razão e na justiça. Assim, por exemplo, é na verdade impressionante o conflito de que trata a conhecida poesia alemã de Hartmann von der Aul, O Pobre Henrique. Atingido por uma doença incurável, o herói dirige-se, pedindo a cura, aos monges de Salerno. Exigem estes que um homem se sacrifique voluntariamente por ele, pois só assim, pelo sacrifício de um coração humano, se poderia alcançar a cura. Uma pobre rapariga apaixonada pelo cavaleiro, dispõe-se a morrer por ele, e com ele se dirige para Itália. Tudo isto é, princípio ao fim, bárbaro, de tal modo que o sereno amor e o comovente sacrifício da rapariga nos deixam completamente indiferentes. Entre os antigos, o sacrifício humano é a causa de conflitos, como acontece na história de Ifigênia que inclui o sacrifício dela e do irmão. Mas, por um lado, esse conflito encadeia-se com outras circunstâncias, legítimas em si mesmas, e, por outro lado, apresenta-se numa forma racional no sentido de que Ifigênia e o irmão acabaram por ser salvos. A força deste injusto conflito fica assim quebrada, como também acontece no poema de Hartmann, de que falamos há pouco, pois que, não tendo querido aceitar o sacrifício da rapariga, o cavaleiro Henrique é salvo por Deus e a fidelidade amorosa da jovem é, desse modo, recompensada. Às forças afirmativas de que acabamos de falar, opõem-se outras: as da negação e do mal. Na representação ideal de uma ação, não há, no entanto, lugar para o negativo como domínio essencial da reação necessária. Conforme à sua essência e à sua natureza pode estar a realidade do negativo, mas quando o interno conceito e o fim são já nulos em si, menos ainda a interna fealdade deixa aparecer, na sua realidade exterior, a verdadeira beleza. Bem poderá a sofística das paixões servir-se da maleabilidade, da força e da energia do caráter para dar ao negativo aparências positivas que não conseguirá dar-nos mais do que a impressão de um sepulcro embranquecido. Porque aquilo que é negativo, aquilo que pálido e branco é, indiferentes nos deixa, repugnantes se nos afigura, até quando seja empregado como motivo de uma ação ou como meio de provocar a reação de outrem. O que há de cruel, de desgraçado, de impiedoso no abuso da força, pode ainda ser representado caso se fundamente na grandeza e nos intuitos de um caráter rico de conteúdo; mas o mal, a inveja, a pusilanimidade e a baixeza só podem ser repugnantes. Por isso o diabo é uma figura esteticamente inutilizável, ele que não passa da mentira em si. De modo análogo, as fúrias do ódio e muitas outras alegorias semelhantes são forças, mas forças desprovidas de independência afirmativa e de fixidez; não se prestam, portanto, à representação ideal embora, ainda neste aspecto, haja entre as várias artes grandes diferenças quanto ao modo de tornar o seu objetivo imediatamente acessível à intuição: o que certas artes se permitem está vedado a outras. De um modo geral, o modo é desprovido de interesse e de conteúdo porque dele só resulta a negatividade, a destruição e a infelicidade ao passo que a verdadeira arte tem de ser a representação da harmonia. A baixeza é, sobretudo, desprezível, visto que nasce da inveja e do ódio pelo que é nobre, e não hesita em fazer de uma força legítima em si um meio para satisfazer a uma paixão vil e vergonhosa. Jamais os grandes poetas e artistas da antiguidade nos ofereceram o espetáculo da maldade e da perversão; Shakespeare, no entanto, apresenta no Rei Lear todo o horror da maldade. O seu reino divide entre as filhas e é o Rei Lear, é bastante ingênuo para confiar nas promessas aduladoras de duas delas e não perceber a fidelidade que se ocultava no silêncio de Cordélia. Já ao fazer o que fez, ele dera provas de estultícia e aberração, mas de todo perde o juízo quando duas das filhas, e os maridos, mostram para com ele a mais vergonhosa ingratidão e indignidade. Também os heróis da tragédia francesa se esforçam por nos fazer acreditar, em termos exageradamente enfáticos, que estão animados dos sentimentos mais nobres e mais elevados e com muita ostentação falam da sua honra e dignidade; mas se examinarmos o que são e realmente fazem, depressa verificamos que as suas declarações não passam de mera presunção. Em nossos dias, sobretudo, as perturbações e a instabilidade interiores, produzindo os mais dissonantes contrastes, tornaram-se moda e originaram um macabro humor e uma grotesca ironia que tão cultivados foram por Teodoro Hoffmann. Só, pois, as forças afirmativas e substanciais podem constituir o verdadeiro conteúdo da ação ideal. Mas não é na sua generalidade que estas forças motoras devem ser representadas. Certo é que, à medida que a ação se realiza e exterioriza, cada vez mais elas vão aparecendo como os momentos essenciais da ideia; a sua completa representação exige, porém, que recebam a forma de indivíduos independentes. Sem isso, elas não vão além do estado de ideias gerais ou de representações abstratas que não pertencem ao domínio da arte. Se é certo que tais forças não provêm da arbitrariedade pura e simples da fantasia, esta não deixa de lhes imprimir um caráter de individualização e determinação que, todavia, não pode ser levado até a transformação em entidades, pois essa transformação far-lhes-ia perder a interioridade subjetiva e mergulhá-las-ia nas complicações da existência finita. Levada até esse ponto, a determinação da individualidade já não teria qualquer razão de ser. Oferecem-nos as divindades gregas o exemplo mais perfeito deste predomínio das forças gerais que exercem o seu poder de um modo independente. Qualquer que seja a forma em que se mostrem aos nossos olhos, são a serenidade e a felicidade a sua invariável expressão. Como deuses individuais e particulares, estão decerto sujeitos a combaterem e a lutarem uns com os outros, mas, no fundo, nunca tomam a sério essas lutas e combates, neste sentido de que não concentram toda a energia do seu caráter e toda a sua paixão num fim determinado que houvesse de realizar fosse por que preço fosse, como se da vitória ou da derrota dependessem a sua salvação ou a sua perda. Limitam-se a intervir nisto e naquilo, confundem, em certos casos concretos, o seu próprio interesse com um interesse determinado, mas nada os impede de, quando isso lhes agrade, deixar seguir o curso das coisas e retirarem-se, sem nada terem perdido da sua serenidade, para as alturas do Olimpo. E assim que vemos os deuses de Homero defrontarem-se em guerras e combates: faz isso parte da sua determinação mas não atinge a determinação geral de que são dotados. A batalha, por exemplo, vai atingir o auge; os heróis avançam uns após outros para se perderem na confusão geral; as particularidades espaciais já se não distinguem; as vozes individuais fundem-se num ruído indistinto inspirado por um espírito geral: é, então, que as forças gerais, os mesmos deuses, intervêm na luta. Mas apesar de todas as complicações e oposições em que se acham envolvidos, sabem sempre retirar-se sem nada perderem da sua independência e da sua serenidade. Devido à individualidade da sua forma, poderão eles ser arrastados no acidental; como, porém, o divino e o geral constituem o seu caráter dominante, o que neles há de individual é demasiado exterior para que se possa elevar até a verdadeira subjetividade interna. A determinação não passa de uma forma mais ou menos acrescentada à divindade. Mas a independência e a impassível serenidade de que falamos lhes dão precisamente a individualidade plástica graças à qual podem abstrair do que neles há de determinado. Na realidade concreta, os deuses homéricos que se entregam a atividades variadas, em ocasiões oferecidas apenas por interesses e eventos humanos, não dão provas de um espírito persistente. Nos deuses gregos achamos excentricidades que se não relacionam com o conceito geral de tal ou tal deus; Mercúrio, por exemplo, é o assassino de Argus, Apolo apanha lagartos, Júpiter tem aventuras amorosas sem fim e prende Juno a uma bigorna, e assim sucessivamente. Todas estas histórias, e muitas outras do mesmo gênero, não passam de, por assim dizer, revestimentos exteriores que a simbólica e a alegoria inventaram para acentuar o aspecto natural dos deuses e cuja origem teremos ocasião de examinar de mais perto. Também na arte moderna se encontra a concepção de forças simultaneamente determinadas e gerais. Mas, na maior parte das vezes, não passam de alegorias ocas e frias como, por exemplo, as do ódio, da inveja, da esperança, do amor, da fidelidade etc., em suma, alegorias em que não acreditamos porque não correspondem a nada de verdadeiramente real. O que nos faz interessar mais ou menos profundamente nas produções da arte é a subjetividade concreta; e esta, para que lhe atribuamos algum valor, devem-na aquelas abstrações extrair, não de si mesmas, daquilo que elas são enquanto abstrações, mas sim do que representam como momentos e aspectos do caráter humano, da sua particularidade e da sua totalidade. Não têm os anjos a mesma generalidade nem a mesma significação de Marte, Vênus, Apolo etc., ou de Oceano e Hélio; sendo objetos da representação, são-no como servidores particulares de um único ser divino substancial que se não deixa dividir em individualidades independentes, como a assembleia dos deuses gregos. Não são, portanto, poderes objetivos fundados em si mesmos e com a forma de indivíduos humanos que se oferecem à nossa intuição sensível; o conteúdo essencial da sua representação é constituído, quer objetivamente por um Deus único, quer, de modo particular e subjetivo, por caracteres humanos nos quais o Deus se realiza. É, precisamente, esta individualização, esta divisão em individualidades independentes que é fonte e origem da representação ideal dos deuses. b) Os indivíduos agentes Enquanto não sai do domínio divino, ou, antes, da concepção ideal dos deuses, não encontra a arte grandes dificuldades para conservar a idealidade exigida. Mas uma singular dificuldade surge logo que a arte entra no domínio da atividade concreta. Os deuses, e as potências gerais como tais, são decerto a origem dos movimentos e impulsos; na realidade, porém, a atividade individual pertence, não àquelas potências, mas ao homem. Assim nos achamos perante duas modalidades distintas: temos, de um lado, as potências gerais na sua substancialidade que, bastando-se a si mesma, é, por isso, abstrata; e temos, de outro lado, a individualidade humana a quem pertence aquela última decisão que conduz ao ato. Fato incontestável é o de que as forças eternas e dominantes são imanentes ao eu do homem e constituem o que há de substancial no caráter dele. Mas por isso mesmo que, na sua divindade, elas são concebidas em formas individualizadas, delimitadas umas perante as outras, exteriores se tornam as suas relações com o sujeito. Daí provém a própria dificuldade. Nas relações entre o homem e os deuses, há, na verdade, algo de contraditório. Por um lado, o conteúdo atribuído aos deuses pertence ao próprio homem e corresponde a esta ao àquela das suas paixões, das suas decisões, à sua vontade; por outro lado, os deuses são concebidos como existentes por si mesmos, como poderes não só independentes do sujeito mas ainda como sendo eles o determinante e o dirigente, de sorte que as mesmas determinações são representadas tanto no aspecto de uma individualidade divina independente, tanto como expressão do que há de mais íntimo na alma humana como expressão do humano por excelência. Ora, isto não deixa de ser pernicioso à livre independência dos deuses e bem assim à liberdade dos indivíduos humanos agentes; e quando se atribui aos deuses um poder de comando, a independência humana é que é sobretudo atingida, visto que ela constitui a condição essencial que o ideal da arte exige. Trata-se da mesma relação que se encontra nas representações religiosas do cristianismo. Diz-se, por exemplo, que o espírito de Deus leva a Deus. Mas, então, o que há de íntimo no homem pode aparecer como sendo o domínio puramente passivo onde se exerce a ação do espírito de Deus, o que implica a anulação da vontade humana que assim fica despojada da sua liberdade, e a decisão divina, em virtude da qual esta ação se exerce, aparece ao homem como uma espécie de fatum de que o seu eu está completamente afastado. Se, portanto, se conceber esta relação como sendo a que existe entre um homem agente e um Deus cuja substancialidade lhe seria exterior, adota-se uma solução demasiado prosaica, visto que, em tal concepção, Deus ordena e o homem só tem de obedecer. Nem os grandes poetas conseguiram manter-se sempre acima desta concepção da exterioridade dos deuses em relação aos homens. Em Sófocles, por exemplo, Filoteto, depois de ter desmascarado a impostura de Ulisses, persiste na decisão de não voltar ao acampamento dos gregos até que Heracles, intervindo como Deus ex machina, lhe manda obedecer ao desejo de Neoptoleme. O conteúdo deste evento possui, decerto, uma suficiente motivação, uma preparação do que resulta; considerado, porém, no modo como se produz, ele é alheio e exterior ao conteúdo, e Sófocles, nas suas mais sublimes tragédias, nunca utiliza este processo que, a ser levado um pouco mais longe, transformaria os deuses em máquinas mortas e os indivíduos em meros instrumentos de uma vontade exterior. Também na poesia épica se veem os deuses agir de uma maneira que parece exterior à vontade humana. Hermes, por exemplo, leva Príamo até junto de Aquiles, Apolo fere Pátroclo entre os ombros e assim o mata. Também muitas vezes se utilizam os aspectos mitológicos de modo tal que eles formam como que um ser alheio ao indivíduo. Aquiles, por exemplo, é mergulhado pela mãe no Styx, o que o torna invulnerável e invencível até os calcanhares. Se se interpretar este mito num sentido intelectualista, concluir-se-á que ele é a negação da coragem e da bravura, e todo o heroísmo de Aquiles deixará de ser uma qualidade espiritual para se transformar numa mera qualidade física. Este modo de representação está mais justificado para a poesia épica do que para a dramática porque, na primeira, o aspecto interior exerce uma influência menor na intenção que preside à realização dos fins e porque, em geral, o exterior encontra na poesia épica um campo mais vasto para se manifestar. Aliás, estas interpretações intelectualistas só se devem utilizar com os maiores cuidados, pois elas conjugam-se para levarem o poeta a dizer um absurdo que ele jamais pensou em dizer, como seja, o de que os seus heróis não são heróis. É que, até em casos como o que acabamos de citar, sempre subsiste a relação poética entre homens e deuses. Pelo contrário, logo o prosaico aparece quando as potências que se representam como independentes são, ao mesmo tempo, desprovidas de substancialidade e não passam de produtos de uma fantasia arbitrária e da extravagância de uma falsa originalidade. Caem, então, no domínio da superstição, quando não no do disparate. A relação ideal verdadeiramente poética consiste na identidade dos deuses e dos homens que deve estar manifesta até quando as potências gerais são representadas como independentes e sem nada terem de comum com a individualidade dos homens e com as paixões dele. O conteúdo dos deuses deve revelar-se claramente como o conteúdo dos indivíduos mesmos, de tal modo que, por um lado, as potências dominantes apareçam como individualizadas em si e para si e que, por outro lado, embora sejam exteriores ao homem, se apresentem como imanentes ao seu espírito e ao seu caráter. A função do artista consiste, pois, em conciliar esta aparente oposição ou, antes, em criar um nexo sutil entre as potências gerais e o homem, mostrando claramente que o ponto de partida se acha na alma humana e, ao mesmo tempo, que nela se exerce o poder do geral e do essencial apresentados numa forma individualizada. A alma do homem manifesta-se nos deuses que apresentam, em formas gerais e independentes, o que nela mais profundamente existe e atua. É que os deuses são, antes de tudo, deuses da alma e das paixões humanas. Quando lemos, num autor antigo, que Vênus ou o Amor sujeitaram o coração de um homem, Vênus e o Amor são aí efetivamente concebidos como poderes exteriores ao homem, mas o amor como tal é uma fonte de emoções e uma paixão que pertence à alma humana até o fundo das suas mais profundas e íntimas regiões. Da mesma maneira se fala, muitas vezes, das Eumênides. Começamos por apresentá-las como virgens vingadoras, como fúrias que perseguem o criminoso. Mas, ao mesmo tempo, esta perseguição é a de uma fúria interior que reside na alma do criminoso, e, com efeito, Sófocles fala das fúrias como fazendo parte do interior do homem, como pertencendo-lhe. É assim que, por exemplo, no Édipo em Colona, Eríneas é o nome dado ao próprio Édipo, e essa palavra serve para significar a maldição de um pai, a força de uma alma ultrajada. Simultaneamente, pois, se tem e se não tem razão quando se consideram os deuses em geral quer como puramente exteriores ao homem, quer como potências imanentes ao seu íntimo ser. Com efeito, uma e outra coisa eles são. Por isso Homero, entrelaçam-se os atos dos deuses e dos homens; parecendo cumprir ações exteriores e estranhas aos homens, os deuses exteriorizam, na realidade, o que constitui a substância da alma humana. Na Ilíada, por exemplo, quando Aquiles vai levantar a sua espada contra Agamêmnon, Atena, só para ele visível, aparece-lhe e segura-o pela cabeleira dourada. Do Olimpo a havia enviado Hera, que protege Aquiles e Agamêmnon, e a sua intervenção parece completamente independente do humor de Aquiles. Mas, por outro lado, facilmente se pode imaginar que a súbita aparição de Atena significa que é o próprio Aquiles quem, recobrando a calma e o sangue-frio, fecha os ouvidos à voz da cólera e que, no fundo, todo este drama se desenvolve na alma do herói. O próprio Homero a isso alude alguns versos adiante, quando diz: "O desgosto apossa-se do filho de Peléia e no seu peito viril o coração hesita entre dois desígnios. Arrancará a aguda espada suspensa da sua couraça? De um só golpe levantará a assembleia e matará o Átrida? Ou acalmará o despeito e dominará a cólera?" (Ilíada, I, v. 190.) O poeta épico tem o direito de representar como resultados de acontecimentos exteriores esta interior interrupção da cólera, esta brusca paragem por alguma coisa imposta à cólera que dominava todo o ser de Aquiles. É neste mesmo aspecto que, na Odisseia, Minerva se apresenta a acompanhar Telêmaco. O ato de acompanhar já mais dificilmente se concebe como efetuando-se na alma de Telêmaco, embora também aqui não falte o nexo do dentro e do fora. De um modo geral, a serenidade dos deuses homéricos, e a ironia manifesta na maneira como são venerados, ligam-se à natureza da sua serenidade e independência que são tais que desaparecem logo que sejam tidas como representando as potências da alma humana, o que aos homens restitui a independência própria e os deixa frente a frente consigo mesmos. Não precisamos procurar longe de nós um exemplo perfeito desta transformação de tal maquinaria divina, puramente exterior em subjetividade, liberdade e beleza moral. Neste sentido realizou Goethe a mais bela e admirável criação na sua Ifigênia em Táurida. No drama de Eurípedes, Orestes e Ifigênia apoderam-se da estátua de Diana. Simples roubo. Em consequência, Thoas manda que os persigam e lhes tirem a estátua da deusa. Dá-se, porém, a intervenção inteiramente prosaica de Atena, que ordena a Thoas que se acalme, pois ela já tinha recomendado Orestes a Poseidon, que o havia ocultado nos seus vastos domínios marítimos. Thoas obedece imediatamente, assim respondendo às ordens de Atena: "Divina Atena: não está seguro do entendimento aquele que, ouvindo-as, às palavras dos deuses não obedece. Que beleza haveria em lutar contra os deuses poderosos?" O que nisto vemos é uma ordem seca, puramente exterior, de Atena, e um ato de obediência, também de pobre conteúdo, de Thoas. No drama de Goethe, pelo contrário, Ifigênia torna-se uma deusa que só acredita na verdade de que é portadora e que reside na alma humana. Animada desta fé, afronta Thoas e diz-lhe: "Só ao homem cabe, pois, o privilégio dos empreendimentos inauditos? Só a ele foi, pois, dado apertar o impossível de encontro ao seu poderoso coração de herói?" Em Eurípedes, a conversão de Thoas é um resultado das ordens de Atena, mas a Ifigênia de Goethe procura obtê-la, e obtém-na efetivamente, apelando para o seu sentimento com argumentos que arranca das profundidades da própria alma: "Uma empresa audaz faz estremecer meu coração hesitante, Não me serão poupadas grandes acusações e pesadas desgraças, se ela se frustrar. No entanto, ó Deuses, a vós a confio. Se, conforme se diz, vós amais a verdade, mostrai-o socorrendo-me, glorificando em mim a verdade". E quando Thoas lhe pergunta: "Pensas tu que o grosseiro Cita, o Bárbaro, poderá escutar a voz da verdade e da humanidade perante a qual ficou surdo Atreu, o grego?", responde-lhe ela num tom cheio de ternura e de confiança: "Todo homem a escuta, qualquer que seja o céu em que tenha nascido, quando no seu seio corre, livre e pura, a fonte da vida". Confiante na grandeza da dignidade que ele representa, Ifigênia apela para a sua generosidade e para a sua ternura, e acaba por o impressionar e o vencer, obtendo dele, com meios de uma beleza eminentemente humana, a permissão de regressar para junto dos seus. Esta é a única coisa necessária. Não precisa ela revestir a imagem da deusa, podendo afastar-se sem astúcia nem mentira, pois Goethe interpreta de maneira divinamente bela o sentido equívoco da predição divina: "Se conseguires regressar para a Grécia com a irmã que, contra sua vontade, está no santuário das margens do Tauros, a maldição terá então fim". Dá-lhe a interpretação puramente humana que é a pura e Santa Ifigênia, a irmã, imagem divina e protetora da casa. "O desígnio da deusa revela-se-me em toda a beleza e magnificência", diz Orestes a Thoas e a Ifigênia: "Como uma imagem sagrada, à qual o imutável destino da cidade está ligado por uma secreta determinação dos deuses, ela que nos roubou, a ti, guardiã tutelar da nossa casa. Num santo e tranquilo recolhimento te escondeu para felicidade do teu irmão e de todos os teus. E quando parecia que, sobre a vasta terra, já não havia para nós salvação possível, eis que tu nos tornas a dar tudo". Com a pureza e a beleza moral da sua alma, já antes ela tinha conseguido sossegar e reconciliar o irmão. E ele, que não mais acreditava na possibilidade de uma vida tranquila, não pôde suster o furor quando enfim reconhece a irmã. Mas o amor puro de Ifigênia acaba por libertá-lo das torturas em que o lançavam as suas fúrias interiores: "Em teus braços, pela última vez, me apertou o mal com todas as garras e pavorosamente me abalou até a medula dos ossos para, em seguida, como uma serpente se refugiar no seu covil. Graças a ti, de novo posso gozar a clara luz do dia". Neste aspecto, os temas cristãos são muito mais ingratos do que os da arte antiga. Nas lendas sagradas e nas representações cristãs em geral, a crença em Cristo, na Virgem Mãe, nos santos etc. aproxima-se da crença em invenções criadas pela mais arbitrária fantasia, bruxas, espectros, aparições de espíritos, que se apresentam como poderes estranhos ao homem e que o vencem, sem que ele se possa defender, com os seus encantamentos, suas imposturas, sua falsas aparências; tanto assim é que, na sua representação, a loucura e a arbitrariedade têm o caminho aberto. É então que, sobretudo, se impõe ao artista que o homem não abdique da liberdade e autonomia dos seus desígnios. Neste sentido, é Shakespeare quem nos oferece os mais notáveis exemplos. No Macbeth, as bruxas aparecem como poderes estranhos que predeterminam a sorte do protagonista. Mas o que esses poderes predizem não passa, na realidade, do mais querido desejo de Macbeth que só assim dele toma consciência, como se ele lhe fosse exteriormente imposto. Com mais profundidade e ainda maior beleza aparição do espectro, no Hamlet, é a forma objetivada das próprias suspeitas de Hamlet. Vemo-lo atormentado pelo obscuro sentimento de que alguma coisa de monstruoso se deve ter passado; e é então que o aspecto do pai lhe revela todo o horror da traição. Perante a reveladora descoberta, poder-se-ia esperar que Hamlet se entregasse a uma vingança impiedosa, que os espectadores já estão preparados para achar justificada. Mas, em vez disso, Harnlet hesita e contemporiza. Há quem censure Shakespeare por esta inatividade de Hamlet e o acuse de com isso ter demorado a evolução dos acontecimentos. No entanto, Hamlet é, na vida prática, uma natureza débil, concentrada e voltada sobre si mesma, que só dificilmente se pode resolver a perturbar a harmonia interior; é um melancólico, um sonhador, um hipocondríaco sempre mergulhado em pensamentos e, por isso, incapaz de uma ação rápida. Não disse Goethe que o que Shakespeare quis representar, ao escrever Hamlet, foi o drama de uma grande ação imposta a uma alma sem grandeza para ela? Esse seria, em sua opinião, se não o sentido geral da peça, pelo menos o objetivo principal dela. "Um carvalho foi plantado num vaso precioso onde só deveriam crescer lindas flores; as raízes espalham-se e rebentam o vaso." Mas Shakespeare diz, a propósito da aparição do espectro, coisas ainda mais profundas. Quando Hamlet hesita, porque não acredita cegamente no espectro, exclama: "Bem poderia ser o demônio o fantasma que vi, porque o demônio tem o poder de aparecer nas formas mais sedutoras. Sim! e talvez que ele, abusando da minha fraqueza e melancolia - pois é sobre os espíritos assim que ele mais pode -, me engane para me danar. Quero ter provas mais pertinentes do que essa. Este drama (a peça que os cômicos vão representar) é o espelho onde surpreenderei a consciência do rei". Neste trecho vemos que a aparição não exerce sobre Hamlet um domínio sem limites. Pois que ele duvida e, antes de passar à ação, quer adquirir a certeza pelos seus próprios meios. Como os antigos, podemos designar com a palavra páthos as potências gerais que não se manifestam apenas na sua independência mas também residem vivas no peito humano e agitam a alma dos homens até as mais íntimas profundidades. Dificilmente se pode traduzir a palavra páthos, visto que por "paixão" se entende algo de insignificante, de baixo, como, por exemplo, quando dizemos que um homem não deve ceder, sucumbir às suas paixões. Ora, é preciso dar a páthos um sentido mais elevado, mais geral, diferente de "lamentável", "egoísta" etc. Assim, o sagrado amor de Antígona pelo irmão pertence ao domínio do páthos, no sentido grego da palavra. Entendido deste modo, o páthos é um poder da alma, legítimo em si, um conteúdo essencial da racionalidade e da vontade livre. Orestes, por exemplo, mata a mãe, não sob a influência de um desses impulsos interiores a que chamamos paixões, pois o páthos que o leva a tal ato é um páthos refletivo e motivado. Ao colocarmo-nos neste ponto de vista, não nos é lícito dizer que também os deuses sejam suscetíveis de manifestações patéticas. Apenas representam eles o conteúdo geral daquilo que dita ao indivíduo humano as suas decisões e os atos. Os deuses, como tais, não saem do seu remanso e impassibilidade, e quando haja discórdias entre eles, ou não as consideram seriamente, ou os seus combates assumem a geral significação simbólica de uma guerra geral entre deuses. Só se pode falar de páthos quando se trata de ações humanas e por ele se deve entender o conteúdo essencial e racional que, presente no eu, penetra e absorve a alma humana. O páthos constitui o verdadeiro centro, o verdadeiro domínio da arte; é sobretudo por ele que a obra de arte atua sobre o espectador porque faz vibrar e ressoar uma corda que todo homem tem na sua alma. Toda a gente conhece e reconhece tudo o que há de precioso e racional no conteúdo de um verdadeiro páthos. O páthos comove e remove porque desempenha um poderoso papel na existência humana. Neste aspecto, tudo o que é exterior, a ambiência natural e o seu cenário, só constituem meios acessórios destinados a apoiar a ação do páthos. Por isso a arte só se deve servir da natureza de um modo simbólico, deixando que ela mesma manifeste o páthos que é o único e verdadeiro objeto da representação. A pintura da paisagem, por exemplo, é, em si, um gênero inferior à pintura de história, e até quando ela se apresente como tal, pura e independente de qualquer outro gênero, deve fazer vibrar um sentimento geral e revestir a forma de um páthos. A propósito disto, muitas vezes se diz que a arte deve, antes de tudo, comover. Admitindo que seja assim, deve perguntar-se o que é que na arte provoca a comoção. De um modo geral, a base da comoção é o sentimento da simpatia, e os homens, sobretudo nos nossos dias, facilmente se comovem. Aquele que chora reserva lágrimas que facilmente verte. Mas, na arte, só o páthos, o verdadeiro páthos, pode e deve comover. Também no cômico e no trágico, não deve o páthos ser nem uma simples estultícia nem um capricho. O Timon, de Shakespeare, por exemplo, só exteriormente é um inimigo dos homens: os amigos arruinaram-no, com eles esbanjou a sua fortuna, e quando lhe chega a vez de precisar de dinheiro, todos lhe voltam as costas. Torna-se, então, um obstinado inimigo dos homens. Isto é concebível e natural, mas não constitui um páthos legítimo e justificado. Também o ódio aos homens que, na obra de juventude de Schiller: O Inimigo dos Homens, impele o protagonista, não passa de uma bola de sabão. Porque este inimigo dos homens é, ao mesmo tempo, um homem refletido, inteligente, de uma grande nobreza de caráter, generoso para com os camponeses que libertou da servidão e terno amante de sua filha tão bela como digna de ser amada. A título de exemplo, citaremos ainda o caso de Quinktius Heymeran von Flamming, no romance de August Lafontaine, que vive atormentando e obcecado com a sua mania das raças humanas etc. Mas foi, sobretudo, a poesia mais recente que se entregou a uma verdadeira devassidão de invenções fantásticas e falsas, destinadas a impressionar pelo exotismo mas que não provocam o menor eco numa alma saudável porque às sutilezas a que se entrega, para determinar aquilo em que consiste a verdadeira essência do homem, inteiramente falta um conteúdo real. Por outro lado, tudo o que se refere ao conhecimento teórico, às convicções e à investigação da verdade é desprovido de páthos e não pode, por isso, constituir objeto da representação artística. Esse é, particularmente, o caso dos conhecimentos e verdades científicos. A ciência, para se compreender e assimilar, exige uma cultura especial, muitos e longos esforços e uma grande familiaridade com a ciência escolhida bem como uma ideia exata do seu valor. Ora, o interesse por estudos deste gênero não faz parte das forças gerais comuns a todos os homens; uma força é que só exerce a sua ação sobre certo número de homens. Não é menos difícil a representação artística de doutrinas religiosas, sobretudo quando se quer mostrar o seu conteúdo interior. O conteúdo geral da religião, a crença em Deus etc., são decerto de tal natureza que interessam a todas as almas que profundamente sentem. Mas, ao entrar neste domínio, tem a arte de se coibir de tratar o que de modo algum pertence ao seu domínio, ou seja, a aplicação dos dogmas religiosos à interpretação especial das verdades religiosas. Pelo contrário, à alma humana atribuímos nós todos os sentimentos patéticos, todas as motivações suscetíveis de interessar à ação. Apela a religião para a nossa sensibilidade, é o céu para o nosso coração, fonte de consolações para o indivíduo e um meio de elevá-lo, mas não se relaciona com a ação propriamente dita. Com efeito, o que, do ponto de vista da ação, há de divino na região é a moral, as potências morais particulares. Ora, o reino destas potências não é o céu puro da religião mas o reino profano e puramente humano. Entre os antigos, era este elemento que, para o essencial, constituía o conteúdo dos deuses que, por tal motivo, podiam ser utilizados na representação da ação. Sendo limitado o número dos momentos substanciais da vontade, dos grandes motivos que revolvem a alma humana, de um círculo muito estreito dispõe o páthos para se exprimir. A ópera, em especial, acha-se reduzida à expressão de sentimentos pouco variados e em número muito restrito: queixumes e alegrias provocados por um amor feliz ou infeliz, exaltação da glória, da honra, do heroísmo, da amizade, do amor maternal, filial, conjugal etc. O páthos tende a ser representado e exteriorizado. Só uma alma nobre é capaz de pôr no seu páthos toda a riqueza da sua interioridade e, em vez de permanecer num estado intensivo de concentração, exteriorizar-se à superfície e elevar-se até as formas perfeitas. Entre aquela concentração e este desabrochar, a diferença é grande, e também neste aspecto existem distinções essenciais entre as diversas individualidades étnicas. Os povos habituados à reflexão exprimem as paixões com maior eloquência. Os antigos, por exemplo, estavam habituados a exteriorizar o páthos que anima toda a profundidade dos indivíduos sem caírem em considerações frias ou em vazia verbosidade. Também os franceses são patéticos, e a eloquência com que exprimem as paixões nem sempre é uma verbosidade grandiloquente como nós, alemães, o pensamos, habituados como estamos à concentração profunda que nos leva a ver, em toda a expressão demasiado multiforme, um ultraje aos sentimentos que desse modo se exprimem. Neste aspecto, tivemos na Alemanha uma época em que os poetas, sobretudo os jovens cansados das águas da retórica francesa, aspiraram à naturalidade e tanto a procuraram que acabaram por se exprimir apenas com interjeição. Mas não é com ah! E oh! Com imprecações, com palavras impetuosas e com punhadas violentas que se consegue realizar uma obra de arte. A força das interjeições puras e simples é uma força má e modo de expressão de uma alma ainda fruste. O espírito individual que anima o páthos deve estar repleto dele e ser, ao mesmo tempo, capaz de o exteriorizar e de o exprimir. Uma impressionante diferença, que vai até a oposição, existe, neste aspecto, entre Goethe e Schiller. Goethe é menos patético do que Schiller e mais intenso no modo da representação; os seus Lieder, como todos os Lieder, dizem o que querem dizer sem, no entanto, o dizerem de maneira demasiado explícita. Schiller, pelo contrário, prefere exprimir o seu páthos com grandes desenvolvimentos, com muita clareza e força. Analogamente opõe Claudius, no Wandsbecker Boten, Voltaire a Shakespeare dizendo que um é o que o outro parece: "Mestre Arouet diz: eu choro, e Shakespeare chora". Mas o que interessam à arte é, precisamente, o dizer e o parecer, não o ser real e natural. Se Shakespeare só tivesse chorado, enquanto Volta ire parecia chorar, então Shakespeare teria sido um bem fraco poeta. Para ser concreto em si, como o exige a arte ideal, o páthos deve, pois, ser a representação de um espírito rico e total. E isto nos introduz no terceiro aspecto da ação, o do caráter. c) O Caráter O ponto de que partimos foram as potências gerais substanciais da ação. Para se ativarem e realizarem, carecem estas potências da individualidade humana na qual adquirem a forma patética da emoção. Mas o caráter geral destas potências deverá, nos indivíduos particulares, contrair-se para se tornar totalidade e particularidade. Esta totalidade é a do homem na sua espiritualidade concreta, com a sua subjetividade, é a individualidade humana total em si, como caráter. Os deuses transformam-se em páthos humanos, e o páthos, na sua atividade concreta, constitui o caráter humano. O caráter vem assim a constituir o verdadeiro centro da representação artística ideal porquanto nele se acham reunidos, como momentos da sua totalidade, os aspectos que anteriormente consideramos. É que a ideia como ideal, a ideia que adquiriu uma forma acessível à representação e à percepção sensíveis, depois de ter realizado, graças ao seu dinamismo, todas as possibilidades, constitui, na sua determinação, a individualidade verdadeiramente livre, tal como o ideal a exige, deve revelar-se não apenas como generalidade mas também, e na mesma medida, como particularidade concreta e como centro de reunião e de fusão de todos estes aspectos, cada um dos quais, à parte considerado, constitui uma unidade em si. Nisso consiste a totalidade do caráter, e o seu ideal reside na vigorosa riqueza e no poder de síntese da subjetividade. Ao estudarmos o caráter neste sentido, temos de considerar três aspectos: Em primeiro lugar, como individualidade total, enquanto riqueza do caráter como tal. Deve, no entanto, esta totalidade ser também considerada, em segundo lugar, como particularidade e o caráter como mais determinado. Em terceiro lugar, o caráter, uno em si, forma com esta determinação, como se fosse consigo mesmo, um ser para si subjetivo, e assim se deve afirmar como caráter firme e estável. Vamos, pois, desenvolver agora estas formulações abstratas e dar-lhes o sentido mais concreto. Ao manifestar-se no seio de uma individualidade completa, nesta sua determinação já o páthos não aparece como atraindo sobre si todo o interesse da representação e fica a constituir uma das partes, a principal é certo, do caráter em ação. É que não é um só Deus a origem do páthos no homem. Grande e vasta como é a alma humana, um homem, que no verdadeiro sentido o seja, tem em si vários deuses e no coração todas as potências que no círculo dos deuses se separavam umas das outras; a sua alma contém o Olimpo inteiro. Isto pensava o antigo que disse: "Foi com as tuas paixões, homem, que fizeste os deuses!". Com efeito, quanto mais progredia a civilização dos gregos mais aumentava o número dos seus deuses e mais vagos, menos individualizados e determinados, se tornavam os deuses primitivos. No meio de toda esta riqueza é que ao caráter cabe afirmar-se. E justamente por isso é que o caráter nos interessa ou, dizendo de outra maneira, o que nos interessa é que, apesar de toda esta riqueza e totalidade, o caráter não deixe de ser ele próprio, um sujeito encerrado em si próprio. Quando um caráter nos é apresentado, não nesta subjetividade delimitada e ao mesmo total, mas dominado por uma única paixão, afigura-se-nos alienado ou perverso, débil e impotente. A debilidade e a impotência dos indivíduos consiste, precisamente, em que neles se não manifesta, como constituindo o seu próprio eu, o conteúdo das potências eternas nem estas se apresentam como predicados de sujeitos que os indivíduos são. Cada herói de Homero, por exemplo, representa um conjunto real de propriedades e traços de caráter. Aquiles é um herói juvenil, mas a força juvenil não exclui a afirmação de outras qualidades autenticamente humanas. Homero revela-nos esta variedade de qualidades colocando o herói nas mais diversas situações. Aquiles ama sua mãe Tétis, chora por Briseida que lhe foi arrebatada, e o ultraje feito à sua honra lança-o na luta contra Agamêmnon que é o ponto de partida dos ulteriores acontecimentos em que consiste a Ilíada. Ao mesmo templo, é Aquiles o mais fiel amigo de Pátroclo e de Antíloco: e, jovem na flor da idade, é ardoroso, ágil e audaz mas cheio de respeito para com os homens idosos; o fiel Fênix, seu servidor de confiança, jaz morto a seus pés, e nos funerais de Pátroclo mostra o seu respeito pelo velho Nestor a quem presta as honras devidas à idade. Mas Aquiles é também capaz de se encolerizar e facilmente se indigna; vingativo, é de uma crueldade implacável para os inimigos: não prendeu ele ao seu carro Heitor, depois de o ter morto, e não arrastou assim o cadáver atrás de si dando três voltas aos muros de Tróia? No entanto, enternece-se quando vem encontrar o velho Príamo na sua tenda porque se lembrou do próprio pai que ficara em casa, e estende àquele desditoso pai as mãos que lhe tinham morto o filho. Bem se pode dizer de Aquiles: é um homem! Vária e multiforme, a natureza humana dá-se em toda a sua riqueza a um só indivíduo. E o mesmo acontece com os outros heróis de Homero: Ulisses, Diamede, Ajax, Agamêmnon, Heitor, Andrômaco, cada um dos quais é um todo, um mundo em si, um homem completo, vivente, não a abstração alegórica de um traço de caráter isolado. Ao lado deles, bem pálidas, áridas e, por assim dizer, diminuídas nos aparecem, apesar da sua energia, individualidades como Sigfredo, Hagen de Troy e até Volken, o menestrel. Só uma tal multiformidade confere ao caráter aquele interesse que possui tudo o que é vivente. Mas tal riqueza, tal plenitude, deve apresentar-se como constituindo um todo indivisível num só sujeito e não como uma reunião acidental de umas tantas qualidades que se manifestam ao acaso, ignorando-se umas às outras porque as não liga nenhum nexo orgânico e necessário que delas faça um conjunto único e forte. As crianças mexem em tudo e parecem interessar-se por tudo, mas o seu interesse é apenas momentâneo e desloca-se sem transição e sem razão suficiente de um objeto para outro; por isso se pode dizer que são desprovidas de caráter. Com efeito, o caráter deve afirmar-se nas mais diversas manifestações da alma humana, nelas deve aparecer integralmente e, sem se imobilizar, manter, nessa totalidade de interesses, de fins, de propriedades e de traços de caráter, uma subjetividade concentrada em si próprio, que se não desvia nem dispersa. É a poesia épica, mais do que a dramática e a lírica, que se presta à representação dos caracteres totais. Mas a arte não pode ficar nesta totalidade como tal. É preciso contar ainda com ideal na sua determinação, o que implica a exigência da particularidade e da individualidade do caráter. A ação sobretudo, com o seu conflito e sua reação, deve ser representada numa forma limitada e determinada. Ora, a determinação dá-se quando um páthos particular se torna o traço de caráter essencial, que domina todos os outros, e leva a fins, decisões e ações determinados. Se, porém, se leva a simplicidade até ao ponto de fazer do indivíduo uma forma pura e simples, abstrata portanto, de um páthos dado (como o amor, a honra etc.), suprime-se com isso o aspecto vivente e subjetivo da representação que aparece, como nos franceses, fria e pobre. Assim, se um caráter, dada a sua particularidade, deve ter um aspecto principal, que domina todos os outros, também deve conservar, apesar da sua determinação e dentro dela, toda a plenitude de vida para que o indivíduo se não ache constrangido em seus movimentos e manifestações e seja capaz de se orientar em qualquer situação e desenvolver, nas formas mais diversas, a riqueza da sua interioridade. Encontramos esta plenitude de vida, apesar da simplicidade patética, nas personagens trágicas de Sófocles que se podem comparar, na sua expressão plástica, a estátuas esculturais. É que também a escultura pode, apesar da limitação das suas figuras, exprimir o que há de multiforme num caráter. Ao contrário da tumultuosa paixão que concentra toda a sua força num só ponto, a escultura representa a neutralidade vigorosa, mas tranquila e muda, que reúne em estado de repouso todas as potências; esta unidade serena não é, porém, um estado de determinação abstrata mas apresenta-se, em sua beleza, como o receptáculo e o ponto de partida de inumeráveis possibilidades prontas a realizarem-se nas mais diversas condições. Nas obras de escultura encontramos uma serenidade profunda que contém a possibilidade de exteriorização de todas as forças e potências que nelas se acham num aparente estado de repouso. Mais ainda do que a escultura, a pintura, a música e a poesia devem revelar a multiformidade interna do caráter e isso fizeram sempre os artistas que verdadeiramente o foram. No Romeu e Julieta, de Shakespeare, por exemplo, é o amor o principal sentimento patético que impele Romeu; no entanto, nós vemo-lo enfrentar as mais diversas situações: quer se trate dos pais, dos amigos, dos pajens, sempre ele se comporta à altura das circunstâncias; vemo-lo também envolvido, por questões de honra, num duelo com Tebaldo; respeitoso e confiante se mostra diante do monge e até à beira do túmulo trava uma conversa com o boticário a quem compra o veneno mortal. Em todas as circunstâncias e ocasiões se mostra digo e nobre, revelando sempre uma profunda sensibilidade. Julieta, pelo seu lado, enfrenta todas as dificuldades que lhe são criadas pelos laços que a prendem ao pai, à mãe, à ama, ao conde Páris, ao confessor. E, no entanto, mergulhando profundamente em cada uma dessas situações, mantém sempre a sua própria profundidade, todo o seu caráter está repleto de um só sentimento, o do amor, vasto e profundo como o mar infinito, de tal modo que tem o direito a dizer: quanto mais dou, mais possuo; o que ela dá é, na verdade, tão infinito como o que possui. Se aqui se trata, com efeito, de um só sentimento patético, este é bastante rico para se exprimir infinitamente. Isso se encontra também na poesia lírica, apesar de, nela, o páthos não poder dar à ação condições concretas. Também aí o páthos deve exprimir o estado interior de uma alma capaz, pela sua plenitude, de enfrentar todas as situações e circunstâncias. Eloquência viva, fantasia com poder para se apoderar de tudo o que se lhe depara, para ligar o passado ao presente, para utilizar toda a ambiência exterior e fazer dela a expressão simbólica da sua própria interioridade, para não recuar perante profundos pensamentos objetivos e manifestando, na expressão deles, um espírito compreensivo, claro, digno e nobre - toda esta riqueza de caráter que exterioriza o seu mundo interior tem também lugar na poesia lírica. Do ponto de vista intelectualista, tal multiformidade existente no seio de uma determinação dominante poderá afigurar-se como inconsequente. Aquiles, por exemplo, esse nobre caráter de herói, senhor de uma força juvenil que é o essencial da sua beleza, mostra-se cheio de ternura para com o pai e o amigo; por isso se pode perguntar como é que Aquiles, possesso de um sentimento cruel e vingativo, arrasta o cadáver de Heitor à volta dos muros da Tróia? Também em Shakespeare se encontram inconsequência de uma genial invenção. Poder-se-á, pois, perguntar: como é que indivíduos tão ricos de espírito se comportam de maneira tão repulsiva? É que o intelecto, que procede de um modo abstrato, só concentra a sua atenção numa face do caráter do qual deduz o homem todo; e o que apareça contrário a esta unilateralidade, ao intelecto se afigura como uma inconsequência. Mas se nos colocarmos no ponto de vista da racionalidade, que é o da totalidade e da vida, estas inconsequências incluem-se na lógica mesma do caráter, pois o destino do homem consiste em pôr e em supor a multiplicidade de contrários, permanecendo sempre fiel e igual a si mesmo. Por tais motivos, deve o caráter constituir uma síntese do particular e do subjetivo, representar-se numa forma determinada e nesta determinação possuir a força e a fixidez de um páthos sempre igual a si próprio. Quando o homem não é uma unidade desta espécie, os diversos elementos de que a sua multiplicidade se compõe separam-se e dispersam-se, e a sua situação fica caracterizada pela ausência de ideia e sentimentos. O que, na arte, torna uma individualidade infinita e divina é o acordo, a unidade que ela realiza consigo mesma. Neste sentido, a fortaleza e a firmeza fornecem uma importante determinação para a representação ideal do caráter. Este resulta, como já dissemos, da interpretação da generalidade das potências e da particularidade do indivíduo e graças a essa interpenetração se torna unidade subjetiva, síntese indissolúvel de todos os elementos da multiplicidade. Deste ponto de vista, muitas são as criações da arte moderna que dão o flanco à crítica. No Cid, de Corneille, a colisão do amor e da honra constitui um tema sem dúvida brilhante. Quando um páthos esbarra com um páthos oposto, surge um motivo de conflitos; mas quando os dois opostos sentimentos residem no mesmo caráter e a luta se desenvolve no íntimo de um só e mesmo indivíduo, constituirão pretextos para uma brilhante retórica e para veementes monólogos, mas é incompatível com a firmeza e a fortaleza do caráter esse desdobramento de uma só e mesma alma que salta da abstração da honra para a abstração do amor, e vice-versa. Dá-se também a incompatibilidade com a fortaleza individual quando uma personagem principal, impelida por um sentimento patético, se deixa dominar e sugestionar por uma personagem secundária e vem, por isso, a cair num erro eventual. É o que acontece, por exemplo, em Racine, quando Fedra é persuadida por Oenone. Um verdadeiro caráter age sempre por iniciativa própria e com responsabilidade própria, não permite que um estranho intervenha nas suas decisões ou influencie os seus atos. Ao agir por iniciativa própria, assume a responsabilidade e aceita as consequências dos atos que pratica. Em muitas produções literárias modernas, sobretudo alemãs, de outro modo se manifesta a inconsistência do caráter que degenera em fraqueza interna e numa exagerada sensibilidade que durante muito tempo dominou a mentalidade nacional. O exemplo mais célebre é o do Werther de Goethe; o herói deste romance é dotado de um caráter francamente mórbido que, no seu egocentrismo, o impossibilita de se elevar acima do seu amor. O que o torna interessante é a paixão e a beleza dos seus sentimentos, os apelos à natureza em que procura um eco das suas dores, a ternura da sua alma. A fraqueza a que referimos pode adquirir outras formas quanto mais se fixarem as preocupações do sujeito sobre a sua inconsistente personalidade. Foi isso o que, também na nossa literatura, aconteceu. Citaremos, por exemplo, Woldemar, o herói do romance de Jacobi. Vemo-lo enaltecer a sua alma, cair em admiração perante as suas próprias virtudes e perfeições. Vive ele numa ilusão de que nada o faz sair. Alma que se presume grande e divina, adota para com todos os aspectos da realidade uma atitude falsa e, demasiado débil para suportar e elaborar o verdadeiro conteúdo do mundo real, cobre-se com a separação que a isola para ter o direito de tudo repudiar como indigno de si. O que efetivamente acontece a esta alma é ficar inacessível aos interesses verdadeiramente reais e aos fins legítimos da vida; está dobrada sobre si mesma e mergulhada nas suas elucubrações religiosas e morais. A este entusiasmo pela própria perfeição, de que tanto se orgulha para consigo mesma, acrescenta-se uma suscetibilidade exagerada, pois esta alma está persuadida de que toda a gente se deveria inclinar diante de si, procurar compreendê-la e adivinhá-la. Quando os outros se mostram indiferentes e insensíveis, a sua solitária beleza sente-se insultada e profundamente ferida. Volta-se, então, contra a humanidade inteira, renuncia à amizade e ao amor. Suportar o pedantismo e a má educação, todos os mesquinhos incômodos e contratempos que deixam indiferente um caráter verdadeiramente grande e forte, é coisa que ultrapassa toda a imaginação; são precisamente as coisas na realidade mais insignificantes que lançam estas almas no mais profundo desespero. O homem cai num estado de melancolia, de tristeza, de rancor, de mau humor sem fim. Torna-se injusto, sente-se abatido e infeliz, entrega-se a reflexões com que se atormenta a si e importuna os outros, das provas de uma espécie de couraça psíquica, de uma dureza e crueldade em que se fecha toda a miserável impotência desta bela alma. Este isolamento da alma é incompatível com a própria existência da alma. É que um verdadeiro caráter deve ser capaz de desejar algo de real e ter coragem de olhar a realidade frente a frente. Dedicar interesse a tais subjetividades, que não saem de si mesmas, é dedicar-se a coisas vazias, apesar da convicção que domina estas almas de possuírem uma essência superior e pura e de encarnarem o divino que veem, por assim dizer, desdenhado pelo comum dos mortais que consideram mergulhados na mais profunda escuridão. Esta substancial e interna inconsistência do caráter conduz ainda a outro resultado: a uma falsa hipóstase destas singulares perfeições da alma que um raciocínio pervertido arvora em potências independentes. Isso dá origem às concepções em que desempenham um grande papel a magia, o demonismo, o magnífico, as histórias de fantasmas, de almas do outro mundo, de videntes e os milagres do sonambulismo. O indivíduo são, e que quer continuar são, coloca-se perante estas potências obscuras como perante algo que, por um lado, existe em si mesmo e que, por outro lado, é completamente alheio ao seu ser íntimo, embora se pretenda que este ser é por elas determinado e regido. Diz-se que estas potências desconhecidas ocultam uma verdade indecifrável que provoca estremecimentos e não é possível desvendar e apreender. Estas potências secretas devem ser expulsas do domínio da arte porque neste domínio nada há de obscuro, tudo nele é claro e transparente, porque tais visões são o sinal de uma doença de espírito que só pode arrastar a poesia para regiões nebulosas, vãs e vazias, de que nos deram ilustres exemplos Hoffmann e Henrique von Kleist no Príncipe de Hamburgo. O caráter que é verdadeiramente real não faz incidir o seu páthos sobre o além e o mundo espectral, mas aplica-o a interesse reais entre os quais continua a ser ele próprio e a pisar o seu terreno. Foi sobretudo a vidência que se tornou um assunto vulgar e comum na poesia moderna. Mas no Guilherme Tell, de Schiller, quando o velho Attinghausen prediz, à hora da morte, o destino da pátria, esta profecia é inteiramente adequada. Sempre é, no entanto, uma tentativa infeliz a de querer trocar a saúde do caráter pela doença do espírito com o fim de provocar colisões e suscitar o interesse; é por isso que a loucura, como tema poético, deve ser tratada com as maiores precauções. Podemos ainda acrescentar, a estas deformações assim perniciosas para a unidade e a firmeza do caráter, a que provém da ironia moderna. Esta teoria falsa induziu os poetas a conceber os caracteres no sentido de uma diversidade que exclui toda a unidade, e daí resulta a destruição do mesmo caráter como tal. Quando um indivíduo é apresentado de certa maneira, a definição deverá transformar-se no seu contrário, e, assim, o caráter serve para provar a nulidade de toda a determinação. A atenção do espectador não deve estar absorvida pelo interesse afirmativo em si mas sim colocar-se, como a mesma ironia, acima de tudo e dessa posição tudo considerar. Foi neste sentido que se tentou interpretar os caracteres das personagens de Shakespeare. Lady Macbeth seria uma esposa amantíssima, de coração terno, embora tenha, depois de conceber e amadurecer o projeto de assassínio, realizado o crime. Ora, o que, precisamente, é notável em Shakespeare é a integridade dos caracteres até no aspecto da grandeza puramente formal ou no da firmeza na maldade. Hamlet é, decerto, um caráter indeciso; a sua indecisão não incide, porém, sobre o que deve fazer, mas sim sobre a maneira como há de fazer aquilo que se propõe. Pretende-se, todavia, apresentar os caracteres de Shakespeare como caracteres espectrais e afirma-se que O que deve interessar os espectadores é esse labirinto de permanentes hesitações e de bruscos saltos de um sentimento para outro. Ora, o que constitui o ideal é a realidade da ideia de que o homem faz parte enquanto sujeito; graças a ela, pode permanecer fiel a si mesmo e formar um todo uno e indivisível. Julgamos ter já dito o bastante para definir a individualidade e o que se deve considerar como o seu verdadeiro caráter. O elemento essencial do caráter consiste num páthos determinado no indivíduo de grande riqueza interior; deverá esta riqueza impregnar o páthos de tal modo que seja ela, e não o páthos como tal, o que a representação coloca diante de nós. 3. A DETERMINAÇÃO EXTERIOR DO IDEAL Quanto à determinação do ideal, começamos nós por realidade perguntar, de um modo geral, como e por que deve o ideal revestir a forma do particular. Vimos, depois, que o ideal deve ser impelido por um movimento que no seu seio produz uma oposição cujos termos, na sua totalidade, criam a ação. Mas pela ação se insere o ideal no mundo exterior, e a questão que então se apresenta é a de saber como é que este último aspecto da realidade concreta pode vir a ser objeto da representação artística. O ideal representa a ideia identificada com a sua realidade. E no que precede seguimos o caminho desta realidade até a individualidade humana e o caráter. Mas o homem vive também uma vida concreta exterior da qual se diferencia para regressar a si e se encerrar na sua subjetividade, sem que, no entanto, se separe definitivamente do exterior. A existência real do homem supõe a de um mundo ambiente em que se acha situado como a estátua de Deus no templo. Resta-nos, pois, seguir agora os diversos fios por onde o ideal se entretece com o mundo exterior. Colocar-nos-á este estudo em face de complicações tão numerosas como variadas, criadas pela multiplicidade de circunstância exteriores e relativas. Deparam-se-nos, em primeiro lugar, as condições referentes à natureza exterior: local, região, lugar, época, clima (meridional e setentrional) e já, neste aspecto, a cada passo nos aparece um quadro novo e sempre determinado. Por outro lado, o homem utiliza a natureza exterior para satisfazer às suas exigências e realizar os seus fins. As maneiras como a utiliza, o engenho que revela na invenção e fabricação de utensílios, de casas, armas e veículos, o vasto domínio da comodidade e do luxo, o modo de preparação dos alimentos e a maneira de os consumir, tudo isso deve também ser considerado. Para mais, vive o homem numa realidade concreta de laços espirituais que igualmente assume uma existência exterior. Assim, os diferentes modos de mandamento e de obediência, os diferentes modos de organização da família, da paternidade, da propriedade, os diferentes modos da vida rural e urbana, do culto religioso, da condução da guerra, da estrutura política e civil, da vida social, em suma, toda a variedade de costumes em todas as situações e em todas as atividades faz também parte do mundo real em que se manifesta a existência humana. São, esses, outros tantos caminhos por onde o espírito se insere diretamente na comum realidade exterior, no cotidiano da realidade e, portanto, na prosa da vida. Se se adotasse a nebulosa representação que hoje se tem do que é o ideal, concluir-se-ia que a arte deve quebrar todas as ligações com o mundo do relativo porque tudo o que é exterior lhe é indiferente, é oposto e indigno do seu espírito e da sua interioridade. Assim se considerará a arte como um poder espiritual que deverá elevar-nos acima das exigências, misérias e dependências e dispensar-nos dos esforços intelectuais e do engenho de que o homem é em geral pródigo neste domínio. Aquilo que principalmente constitui este domínio seria, sempre de acordo com tal teoria, puramente convencional, pois, existindo em função do lugar, da ocasião e do hábito, não seria mais do que um conjunto de acidentes do qual a arte se deve afastar para ser digna da sua missão. Em parte, esta aparente idealidade é apenas uma simples abstração criada pela subjetividade moderna que não tem a coragem de afrontar o mundo exterior; noutra parte, é uma espécie de violência que o sujeito a si mesmo inflige para se erguer acima daqueles círculos cuja constante proximidade lhe é imposta pela sua origem, classe ou situação. O único meio de que então dispõe para realizar tal fito é o de se refugiar no mundo interior dos sentimentos de onde se recusa a sair; vivendo assim no irreal, considera-se senhor de conhecimentos inacessíveis aos outros, contempla o céu com uma espécie de nostalgia e julga que é seu dever desprezar tudo o que seja de essência terrestre. Ora, o verdadeiro ideal jamais se contenta com o que é indefinido e puramente exterior, para atingir na sua totalidade a intuição determinada de todos os aspectos do exterior. É que o homem, verdadeiro centro do ideal, vive, quer dizer, evolui num espaço determinado e pertence a uma época determinada, é simultaneamente o presente e o indefinido individuais; ora, a vida implica oposição com o ambiente exterior e quem diz oposição diz contato e atividade. A arte apreende esta atividade, não apenas como tal e de um modo geral, mas também, e sobretudo, nas suas manifestações concretas e representa-a como uma reação mediante a qual o ser vivente excita e anima os materiais que o ambiente exterior fornece. Tal como o homem é uma totalidade subjetiva distinta de tudo o que lhe é exterior, assim também o mundo exterior constitui um todo perfeitamente definido e fechado. Apesar desta delimitação, entre si mantêm os dois mundos relações essenciais e é destas relações que resulta a realidade concreta, a que constitui o conteúdo da arte. Assim se define a questão que anteriormente formulamos, a de saber em que forma e em que aspecto constitui a arte uma representação ideal do exterior no seio daquela totalidade. Também neste domínio temos que distinguir três aspectos da arte. É o primeiro a esterilidade puramente abstrata como tal: espacialidade, figura, tempo, cor, que exigem uma representação. Em segundo lugar, o exterior, que se apresenta na sua realidade concreta tal como a acabamos de descrever, exige que esta na obra de arte esteja em inteira concordância com a subjetiva interioridade humana e o ambiente que a envolve. Em terceiro lugar, finalmente, uma obra de arte visa à satisfação intuitiva, dirige-se ao público que, para se identificar com os objetos representados, neles se quer ver a si e àquilo que constitui o fundo das suas crenças, neles quer encontrar um eco dos seus sentimentos e um espelho das suas verdadeiras representações. I - A EXTERIORIDADE ABSTRATA COMO TAL Ao abandonar a sua essencialidade para penetrar na existência exterior, ao mesmo tempo adquire o ideal uma dupla realidade. Com efeito, por um lado a obra de arte confere ao conteúdo do ideal a forma concreta da realidade e da existência exterior, representando-o como um estado determinado, como um acontecimento preciso. Por outro lado, a arte fixa este fenômeno, já total em si, numa matéria sensível, também determinada, para assim criar um novo mundo, visível ao olhar e audível ao ouvido: o mundo da arte. Em ambos os sentidos, vai a arte até os últimos confins do exterior, quer dizer, até os limites para lá dos quais a unidade total do ideal já não revela a sua espiritualidade concreta. A obra de arte apresenta assim um duplo aspecto exterior, mas a forma que reveste só pode ser a da unidade extrínseca. Reproduz-se aqui a situação que assinalamos ao ocuparmo-nos do belo na natureza. Trata-se das mesmas determinações que são porém, neste caso, domínio da arte. Com efeito, o modo de representação do exterior implica, por um lado, a regularidade, a simetria, a obediência a regras fixas e, por outro lado, a unidade que resulta da simplicidade e da pureza da matéria sensível, do elemento exterior de que a arte se serve para dar aos seus produtos uma forma concreta. a) Quanto à regularidade e à simetria, são elas incapazes, enquanto realizam uma unidade puramente abstrata, de esgotar, sequer exteriormente, a natureza da obra da arte. Só têm lugar no que não participa da vida: o tempo, o espaço em suas várias figurações etc. Nestes elementos não vivos, a regularidade e a simetria são apenas, até no que se afigura mais exterior, sinais em que se manifesta a serenidade da reflexão. Também de duas maneiras elas aparecem na obra de arte. Por um lado, o seu caráter abstrato opõe-se ao que há de vivo na arte, ao que se eleva acima da simetria pura e simples e atinge, até na representação do exterior, o ideal; esta libertação, que se encontra por exemplo nas melodias musicais, não leva à expressão total da regularidade a que é dada uma função inferior, a de base. Por outro lado, esta interferência da medida e da regra no que é em si refratário à regra e à medida constitui a razão fundamental que certas artes, em virtude dos materiais que empregam, podem dar aos seus produtos; nestes casos, a regularidade constitui o único elemento ideal. Neste aspecto, é a arquitetura que dá a principal aplicação à regularidade, pois a obra arquitetônica tem por fim dar uma forma artística ao que é ambiência exterior, ignorância do espírito. Funda-se inteiramente sobre linhas retas, ângulos retos, linhas circulares, sobre a igualdade das colunas, das janelas, dos arcos, dos pilares etc. A obra de arte arquitetônica não possui, na verdade, um fim em si, não existe para si mesma, é uma exterioridade destinada a servir outra coisa, é um local exterior etc. Um edifício aguarda que a estátua de um deus ou um grupo humano o vá habitar. Não é, pois, por si nem para si que tal obra de arte se impõe à nossa atenção e, sendo assim, bem se pode dizer que as leis da regularidade e da simetria convêm perfeitamente à forma exterior, pois a sua aplicação permite uma rápida e fácil apreensão do conjunto dispensando um exame longo e profundo. Não nos ocuparemos agora das relações simbólicas que podem e devem existir entre as formas arquitetônicas e o conteúdo espiritual de que são o lugar exterior. E quanto dissemos da arquitetura também se pode dizer da arte da jardinagem que é uma variedade dela, uma aplicação de formas arquiteturais à natureza real. A jardinagem oferece duas modalidades opostas: submete-se uma às leis da regularidade e da simetria, procura a outra a variedade e a irregularidade. Mas à regularidade se deve, nestas considerações, dar a preferência porque os labirintos complicados, os caminhos com ziguezagueantes sinuosidades, as pontes lançadas sobre as águas estagnadas, as surpresas com a forma de igrejas góticas, de templos, de pagodes chineses, de ermidas, de urnas funerárias, de colunas, de arcos são ornamentos que depressa se tornam fastidiosos e se reveem sem qualquer sobressalto sentimental. O mesmo não acontece com a beleza das paisagens reais que se não destinam ao uso nem ao prazer mas constituem, por si próprias, uma fonte de contentamento. A regularidade, pelo contrário, não pretende surpreender-nos e coloca a figura humana como principal personagem no ambiente natural exterior. Também à pintura se impõem a regularidade e a simetria que presidem ao arranjo do conjunto, ao agrupamento das figuras, à colocação de cada uma delas no lugar mais conveniente, à ordem dos seus movimentos etc. Como, no entanto, a espiritualidade vivente penetra mais profundamente na pintura do que a fenomenalidade exterior na arquitetura, pouco resta nela para a unidade abstrata da simetria: quando a arte está nos seus começos a ela presidem as regras da rígida igualdade, mas, numa fase mais desenvolvida, o agrupamento em pirâmides por exemplo, essas regras são substituídas por linhas mais livres que se aproximam entre si, por formas como as da natureza orgânica. Pelo contrário, na música e na poesia, a regularidade e a simetria são de novo determinações importantes. Aquelas artes têm, na duração de sons, uma forma de exterioridade pura insuscetível de apresentar outra forma concreta. E fácil abranger num olhar o que se justapõe no espaço; mas o que existe no tempo, onde o que está num momento já desapareceu no instante seguinte, é composto por uma sucessão indefinida de desaparições e regressos. Ora, é a regularidade da medida que dá uma forma a esta indeterminação, que domina a progressão indefinida mediante uma determinação que se repete com intervalos regulares. A medida musical possui uma força mágica a que somos incapazes de nos subtrair, de tal modo que, ao escutarmos uma obra musical, batemos sem consciência o compasso dela. Esta repetição de intervalos iguais segundo uma regra determinada não é coisa que pertença, objetivamente, aos sons e à sua duração; o som como tal é indiferente à sua reprodução com tais e tais intervalos, como o tempo é alheio à sua divisão em períodos certos e iguais. A medida aparece, pois, como proveniente apenas do sujeito, e ao ouvirmos a medida temos a imediata certeza de que há, nessa regularidade dos intervalos, algo de subjetivo que se acha na origem da igualdade em que o homem permanece, da igualdade e da unidade que o homem preserva por entre a maior diversidade e a mais luxuriante variedade de circunstâncias e condições. Por isso a medida encontra um eco profundo no íntimo da nossa alma e atinge a nossa subjetividade cuja identidade consigo mesma começava por ser uma abstração apenas. Nestas condições, o que no som nos impressiona não é o conteúdo espiritual nem a alma concreta onde nascem os sentimentos; não é já o som, enquanto som, que nos comove até o mais profundo da alma: é sim, essa unidade abstrata que o sujeito insere no tempo e que tem a réplica na unidade do próprio sujeito. Quanto dissemos da medida musical também se aplica à medida e à rima da poesia. Também aqui a regularidade e a simetria campeiam dominadoras no que se refere ao aspecto exterior, à combinação das palavras. O elemento sensível fica, portanto, subtraído da esfera sensível e mostra com isso que não se trata na poesia da expressão da consciência ordinária, que é indiferente à duração dos sons e a fixa de um modo arbitrário. Embora menos determinada, a mesma regularidade alarga o seu poder até se insinuar no conteúdo vivo da representação. Numa obra épica e dramática, por exemplo, que se compõe de subdivisões certas, de cantos, de atos etc., é preciso dar a estas partes uma extensão aproximadamente igual, e o mesmo acontece com as figuras que constituem um quadro. O arranjo deve, porém, ser feito sem atingir o conteúdo essencial e sem dar ao que é acessório e secundário um lugar desproporcionado à sua importância. A regularidade e a simetria, enquanto unidade e determinação abstratas de figuração do que é espacial e temporalmente exterior, aplicam-se sobretudo, como vimos ao falarmos do belo na natureza, ao que é quantitativo, às determinações da grandeza. O que não participa desta exterioridade, o que não está nela como no seu próprio elemento, repudia esse domínio das condições puramente quantitativas e entrega-se à determinação de condições mais profundas e à unidade delas. Deste modo, quanto mais a arte se afasta da exterioridade como tal, menos dominada é, na sua forma de representação, pela regularidade a que atribui apenas uma função limitada e subordinada. Depois de falarmos da simetria, vamos ocupar-nos, uma vez mais, da harmonia. Esta já se não define no que é puramente quantitativo, e refere-se a distinções essencialmente quantitativas entre as quais é preciso estabelecer um acordo e não as deixar subsistir numa eterna oposição. Em música, por exemplo, as relações entre a tônica, a mediante e a dominante não são puramente quantitativas, são sons essencialmente diferentes que se fundem para formar uma unidade e não permitem que se ouça a sua discordância desagradável. As discordâncias exigem, com efeito, uma conciliação. O mesmo acontece com a harmonia das cores, pois a arte exige que, num quadro, as cores não formem uma excentricidade arbitrária, não se oponham nem dissimulem essa oposição, mas que se fundam harmoniosamente de modo a causar uma impressão total e indivisível. Quando se trata de uma totalidade de diferenças que, pela natureza das coisas, pertencem a um só e mesmo círculo, torna-se mais fácil realizar a harmonia. Assim, por exemplo, uma cor é composta por certo número de cores chamadas cardiais que não são, de acordo com o conceito fundamental da cor, acidentais misturas; devido à concordância dos seus elementos constitutivos, tal totalidade deve ser considerada como harmoniosa. Num quadro, por exemplo, deve-se encontrar, não apenas a totalidade das cores fundamentais, o amarelo, o azul, o vermelho e o verde, como também a harmonia delas; sem darem por isso, o que os velhos mestres têm procurado é realizar esta perfeição e seguir as suas leis. Logo que, porém, a harmonia começa a separar-se da exterioridade pura e simples, torna-se capaz de apreender e exprimir um conteúdo espiritual mais vasto. Foi por isso que os velhos mestres pintaram o vestuário das personagens principais com cores fundamentais puras e o das personagens secundárias com cores mistas. A Virgem Maria, por exemplo, tem quase sempre um manto azul que, em sua tranquila serenidade, corresponde à paz e à serenidade interiores; muito raramente é ela representada com um manto da cor berrante do vermelho. b) A matéria sensível de que a arte se serve nas suas produções constitui o outro aspecto da exterioridade. A unidade constitui, aqui, uma determinação feita de tal simplicidade e uniformidade que os materiais empregados não podem encontrar-se numa divergência indeterminada, numa simples mistura, numa geral impureza. Por sua vez, esta determinação só se aplica ao aspecto espacial, como seja a pureza dos contornos, a nitidez das linhas retas e dos círculos etc., e bem assim ao elemento temporal como a fidelidade à medida, e ainda à pureza dos sons e das cores. Em pintura, as cores não devem ser impuras nem cinzentas, mas claras, nítidas e simples. A beleza de uma cor reside precisamente na simplicidade e pureza, e por isso são as cores mais simples as que mais efeitos produzem: o amarelo puro que se distingue do verde, o vermelho que não se confunde com o azul e o amarelo etc. No entanto, é sem dúvida muito difícil conciliar a simplicidade das cores com a harmonia. As cores simples constituem a base que se não pode abandonar, e até quando seja impossível evitar as misturas não devem estas ter o aspecto de manchas turvas mas serem constituídas de modo tal que as cores apareçam, apesar de tudo, na sua luminosa e simples claridade. Aos sons se aplica a mesma regra. As vibrações dos materiais que produzem os sons devem ter certo comprimento e a corda estar adequadamente estendida; quando a corda está lassa ou as vibrações não têm o comprimento de onda desejado, o som perde a precisão e a simplicidade, cai sobre outros sons e disso resulta um som falso. O mesmo acontece quando se dão atritos mecânicos que alteram, com o seu ruído, o som. Também a voz humana deve sair pura e livre, sem se lhe misturarem ruídos vindos dos próprios órgãos vocais ou de obstáculos que se não conseguiu vencer e que dão à voz um som rouco. Esta claridade e pureza isentas de toda mistura estranha constituem, na sua firme determinação, a beleza puramente sensível, a que distingue o som dos ruídos. Outro tanto se poderá dizer da linguagem, em especial no que se refere às vogais. Uma língua que possui as vogais puras, como a italiana, é de uma sonoridade agradável e propícia ao canto. Os ditongos, pelo contrário, têm sempre um som misto. Na escrita, os vocábulos da linguagem acham-se reduzidos a alguns sinais, sempre os mesmos, o que lhes dá um aspecto de grande simplicidade e um caráter de não menor precisão. Esta precisão desaparece quase sempre da linguagem falada, como nos dialetos populares, sejam os do sul da Alemanha, da Suábia ou da Suíça, que possuem vocábulos de tal modo mistos que é impossível escrevê-los, Não se deve essa impossibilidade a deficiências da linguagem escrita, mas à grosseria do povo. São estas as observações que julgamos dever formular quanto ao aspecto exterior da obra de arte, aspecto que, por isso mesmo que é exterior, só é suscetível de realizar uma unidade exterior e abstrata. Resta-nos ainda falar da individualidade espiritual concreta. Introduz-se esta na realidade para encarnar, inserir nela a interioridade e totalidade que deve exprimir. Ora, a regularidade, a simetria e a harmonia ou a determinação pura e simples da matéria sensível não bastam para chegar a esse resultado. Por isso vamos examinar o segundo aspecto da determinação exterior do ideal. II - DO ACORDO ENTRE O IDEAL CONCRETO E A SUA REALIDADE EXTERIOR A este respeito, a lei geral que se pode formular é a de que o homem se deve sentir no mundo que o cerca como em sua casa, de que a individualidade deve estar tão familiarizada com a natureza e as condições exteriores que não haja separação entre a totalidade subjetiva e a existência exterior objetiva, que não sejam estranhas ou reciprocamente indiferentes a interna subjetividade e a exterior objetividade. Preciso é, pelo contrário, que um acordo subsista entre elas e se adaptem mutuamente. Despojar-se-á a objetividade exterior, como realidade do ideal que é, da sua rudeza, e à sua objetiva independência renunciará para se revelar idêntica àquilo de que é manifestação exterior. De um triplo ponto de vista pode ser considerado este acordo. Em primeiro lugar, a unidade entre a subjetividade interna e a objetividade exterior pode constituir um acordo puramente em si, assegurado por um nexo íntimo e oculto que liga o homem ao seu exterior ambiente. Dado, no entanto, que a espiritualidade concreta e a respectiva individualidade constituem o ponto de partida e o conteúdo essencial do ideal, acontece em segundo lugar que o acordo com o ambiente exterior aparecerá como efeito da atividade humana, como emanação desta atividade. Finalmente, e em terceiro lugar, o mundo criado pelo espírito constitui, por sua vez, uma totalidade que, na sua existência em si e para si, forma uma objetividade com a qual os indivíduos, ao evoluírem neste terreno, devem permanecer em constante concordância. a) Quanto ao primeiro destes pontos de vista, podemos começar por estabelecer o seguinte: a ambiência do ideal, enquanto não é ainda uma emanação, uma criação da atividade humana, constitui, para o homem, o exterior em geral, a natureza exterior. Por agora, só de um modo muito geral vamos falar da sua representação na obra de arte ideal. Três aspectos temos de considerar aqui. Em primeiro lugar, a natureza exterior, como exterior que é, constitui uma realidade com uma forma definida e definitiva em todos os seus pormenores. Caso se queira reconhecer a sua pretensão, aliás legítima, a constituir objeto de uma representação artística, esta representação terá de reproduzir fielmente a natureza tal qual ela é. Já anteriormente falamos das diferenças que importa considerar entre a arte e a natureza, que se oferecem à intuição imediata. O que, de um modo geral, caracteriza os grandes mestres é que as suas representações da ambiência natural são sempre fiéis, verídicas e perfeitas. É que a natureza não abrange apenas o céu e a terra nem o homem vive isolado no ar, mas sente e move-se num ambiente composto de regatos, rios, colinas, montanhas, planícies, florestas, vales etc. Homero, por exemplo, não dando descrições da natureza análogas às dos modernos, não deixa de nos impressionar com a fidelidade das suas observações e apontamentos. De tal modo são verdadeiras as suas representações da costa, das enseadas marítimas, que se pôde verificar nos nossos dias que essas descrições correspondem perfeitamente ao que são na sua realidade geográfica. Pelo contrário, a pobre poesia dos cantores ambulantes é, neste aspecto como no dos caracteres, débil, vazia e nebulosa. Quando, por exemplo, põem em verso histórias bíblicas e escolhem como cenário da ação Jerusalém, os mestres cantores só nos dão nomes. O mesmo acontece no "Livro dos Heróis": Otnit penetra na floresta, trava um combate com o dragão, mas tudo acontece sem nenhum ambiente humano, sem a indicação precisa do local etc., de modo tal que a percepção se acha, por assim dizer, perante o vazio. Também nos Nibelungos as coisas se passam assim: ocorrem as ações em Worms, no Reno, no Danúbio, mas tudo é o mais impreciso e vago que é possível. Ora, a perfeita precisão é que constitui o traço mais característico da individualidade e da realidade que, sem ela, não passam de uma abstração, o que manifestamente contradiz o seu conceito. É com esta precisão, com esta fidelidade, que se relaciona diretamente o desenvolvimento de pormenores que serve para nos dar a imagem e a intuição exatas do aspecto exterior. Neste aspecto, existe sem dúvida uma grande diferença entre as várias artes, diferença que reside nos elementos por que elas se exprimem. É assim que a escultura, devido à calma serenidade e à generalidade das suas criações, mais facilmente prescinde dos pormenores e das particularidades e não utiliza o exterior com um fim de localização ou a título de ambiência, mas sim na forma de vestuários, toucados, armas etc. Muitas figuras da antiga escultura só puderam ser identificadas pela forma convencional do vestuário, pelo arranjo dos cabelos e por outros análogos sinais. Ora, o que pertence à convenção não pertence à natureza e é incompatível com o que há de acidental nas coisas deste gênero; com efeito, é pelo convencional que as coisas adquirem um caráter geral e invariável. No extremo oposto, encontra-se a poesia lírica que só exprime a vida interior e que, quando assimila o exterior, serve-se dele sem precisar torná-lo concretamente perceptível. A poesia épica, pelo contrário, conta aquilo que é, onde e como se realizam os eventos e, por conseguinte, precisa introduzir nas suas narrativas, para bem as localizar e concretizar, o maior número possível de pormenores. A pintura por sua vez utiliza muito mais particularidades do que as outras artes. Mas em nenhuma arte esta procura e esta exigência de precisão devem ser levadas para lá dos limites em que começa a prosa da naturalidade real e da sua direta reprodução; nem a abundância de pormenores deve ultrapassar as exigências da expressão do aspecto espiritual do indivíduo e da sua vida interior. Digamos que, de um modo geral, esta precisão se não deve tornar um fim em si porque o exterior só se apresenta na sua adequação com o interior. Nunca se insistirá demasiado nisto: para revelar um indivíduo em toda a sua realidade tanto se precisa considerar a sua subjetividade como a sua ambiência exterior. Mas para que o exterior apareça como sendo o dele, o seu, necessário é que exista um acordo essencial entre aquela subjetividade e aquela ambiência. Este acordo pode ser mais ou menos interno e conter alguns elementos ocasionais sem que no entanto atinja a identidade que é seu fundamento. Em todas as manifestações espirituais dos heróis épicos, por exemplo, da sua maneira de viver, pensar, sentir e agir, deve haver uma harmonia oculta que faz da subjetividade e da ambiência um todo inseparável. O árabe, por exemplo, constitui um todo com a sua natureza e só pode ser compreendido quando situado no seu ambiente, com suas estrelas, áridos desertos, tendas e cavalos. Porque só esse clima é o seu, só essa região do mundo é a sua. De modo análogo, a subjetividade e a interioridade atingem o mais elevado grau nos heróis de Ossian que, pela sua tristeza e melancolia, nos lembram charnecas de urze batidas pelos ventos, e nos fazem pensar em nuvens, nevoeiros, colinas e cavernas sombrias. Pela fisionomia desta região é que compreendemos a vida interior das gentes com as suas tristezas, suas dores e suas lutas; neste terreno, de que fazem por assim dizer parte integrante, é que estão verdadeiramente em si. Situados neste ponto de vista, podemos pela primeira vez observar que, sobre todos os assuntos, os históricos oferecem uma grande vantagem que é a de neles se achar já realizado, de maneira direta e pormenorizada, o acordo entre a subjetividade e a objetividade tal como anteriormente o descrevemos. É difícil, a priori, derivar apenas da fantasia esta harmonia, e no entanto sente-se a sua presença em todas as partes do assunto em que ela aparece de modo explícito. Habituados estamos, todavia, a dar mais valor aos livres produtos da imaginação do que à elaboração de assuntos já existentes. Não obstante, está vedada à fantasia a pretensão de conferir, ao exigido acordo, a fixidez e a precisão que ele possui na vida real onde as características nacionais precisamente desse acordo provêm. Tal seria o princípio geral que se aplica à unidade em si entre a subjetividade e a sua natureza exterior. b) Há outro gênero de acordo que, em vez de permanecer naquele em si, se realiza diretamente graças à atividade e ao engenho humanos. O homem utiliza os objetos exteriores para satisfazer seus fins pessoais e assim estabelece, devido à satisfação que esses objetos lhe trazem, uma harmonia entre si e eles. Ao contrário do acordo em si de que antes falamos e que só incide sobre o que é geral, este de que nos ocupamos agora refere-se ao particular, às suas exigências e respectiva satisfação mediante o uso particular dos objetos que a natureza oferece. Tais exigências e satisfações são de uma variedade infinita, mas mais variados são ainda os objetos naturais que só adquirem alguma simplicidade quando o homem neles introduz os fins próprios do seu espírito e com a sua vontade anima o mundo exterior. Assim humanizado, o ambiente mostra até que ponto se presta às satisfações do homem e é incapaz de lhe opor a menor pretensão de independência. Graças apenas a esta atividade, o homem deixa de permanecer no geral, e vem instalar-se e sentir-se em seu ambiente próprio no mundo exterior que o rodeia com todas as suas minúcias e particularidades. A ideia fundamental que, do ponto de vista da arte, se adéqua a todo este domínio pode resumir-se nos termos seguintes. Nos aspectos particulares e finitos das suas exigências, desejos e fins, o homem tem com a natureza exterior uma relação que é relação de dependência. Esta ausência de liberdade está em contradição com o ideal, e o homem, para constituir objeto da arte, tem de se libertar dessa relação de dependência. Tal conciliação dos dois aspectos, o subjetivo e o objetivo, pode ter um duplo ponto de partida. Por um lado, a natureza oferecerá amavelmente ao homem tudo aquilo de que ele precisa e, em vez de lhe levantar obstáculos no caminho que ele segue para alcançar a satisfação das suas exigências, ajuda-o com todos os meios a realizar seus interesses e fins. Mas, por outro lado, o homem possui exigências e desejos aos quais a natureza não pode dar imediata satisfação. O homem é, então, obrigado a satisfazê-los mediante a sua própria atividade, apoderando-se das coisas naturais, modificando-as e arranjando-as para o servirem, afastando os obstáculos com o seu aguçado engenho, transformando, enfim, tudo que lhe é exterior em meios que lhe permitem atingir os fins. Neste aspecto, a situação ideal seria a de uma conjugação entre a natureza amigável e o engenho espiritual onde, em vez de lutas e dependências, houvesse uma harmonia preexistente. Isto explica por que é que as misérias da vida devem ser expulsas do domínio ideal da arte. Na medida em que criam uma situação isenta de privações e de trabalho, a propriedade e o bem-estar não só não são inestéticos como contribuem para a realização do ideal; cair-se-ia, porém, numa abstração contrária à unidade se se pusessem de lado as relações do homem com aquelas exigências nas representações em que se tem de considerar a realidade concreta. Este domínio é, decerto, o domínio do finito, mas a arte não pode dispensar o finito nem tratá-lo como qualquer coisa de mau; deverá, antes, esforçar-se por conciliá-lo e harmonizá-lo com a verdade, visto que as melhores ações e os melhores pensamentos que a arte representa são, na sua determinação precisa e no seu conteúdo abstrato, limitados e, portanto, finitos. Ora, eu tenho de alimentar-me, de comer e beber, de habitar uma casa ou uma barraca etc., tudo isso me é imposto pelas exigências da vida exterior; mas de tal modo a vida interior impregna esses aspectos puramente exteriores da existência que o homem atribui aos seus deuses vestuários e armas e representa-os como sujeitos às mais variadas exigências, a que procuram satisfazer. Mas esta satisfação deve aparecer como assegurada. Os cavaleiros andantes, por exemplo, devem a ausência de miséria exterior aos acasos das aventuras, e entregam-se a esses acasos como o selvagem se entrega à generosidade da natureza. O verdadeiro ideal não consiste em o homem se libertar, de qualquer modo, do estado de dependência pura e simples perante o exterior, mas sim em poder viver numa abundância que lhe permita, apenas com os meios naturais de que dispõe, gozar uma vida mais livre e mais serena. Dentre estas considerações de caráter geral, é possível distinguir dois pontos mais precisos. Refere-se o primeiro à utilização dos objetos naturais em vista de uma satisfação puramente teórica. É o caso de tudo o que seja adorno e ornamento com que o homem procura embelezar-se e, em geral, de todo o luxo com que se cerca. Assim se adornando a si mesmo e embelezando o seu ambiente, o homem mostra que o que a natureza lhe fornece de mais precioso, que o que os objetos exteriores têm de mais belo, ouro, pedras preciosas, pérolas, marfim, tecidos luxuosos, que, em suma, os objetos mais raros e mais brilhantes não o interessam tal como existem na natureza, mas só na medida em que podem servir de adorno a si mesmo ao seu ambiente ou àquilo e àqueles que ama e venera, os seus príncipes, os seus templos, os seus deuses. Para esse fim, o que o homem principalmente escolhe é o que já como objeto exterior lhe parece belo, cores puras e luminosas por exemplo, metais brilhantes como espelhos, madeiras odorantes, mármores etc. Os poetas, sobretudo os orientais, dão grande valor, nas suas obras, a tais riquezas que também têm um importante lugar nos Nibelungos, e a arte em geral não se limita à simples descrição dessa magnificência, adornando com tais riquezas, sempre que isso lhe é possível e lhe parece adequado, as suas obras reais. Para ornamentar a estátua de Palas em Atenas e a de Zeus em Olímpia, não se poupou ouro nem marfim. Em todos os povos, os templos dos deuses, as igrejas, as estátuas dos santos, os palácios reais são modelos de esplendor e de luxo; os povos sempre gostaram de ver nas suas divindades a sua própria riqueza como se orgulharam sempre com a ideia de que o luxo que cerca os seus príncipes é o sinal de uma reconhecida generosidade. Os prazeres desta espécie podem ser perturbados por reflexões chamadas morais; poder-se-á perguntar quantos pobres de Atenas teriam matado a fome, quantos escravos teriam sido remidos com o dinheiro que custou o manto de Palas, e em circunstâncias particularmente graves, quando a existência do Estado se achava ameaçada, os antigos sabiam também utilizar aquelas riquezas para fins úteis como se fez entre nós, com os tesouros das igrejas e dos conventos. Estas pessimistas considerações podem nem se aplicar apenas às obras de arte isoladas mas também à arte no seu conjunto, pois sabemos quanto despende o Estado para manter academias de arte, para a investigação de obras artísticas antigas modernas, para a construção de galerias, de teatros, de museus etc. Mas, quaisquer que sejam as considerações morais a este respeito, por mais comoventes que se apresentem, sempre elas assentam na evocação de tristes necessidades que a arte procura, precisamente, fazer esquecer. Deste modo, poderá um povo ganhar a glória e a honra despendendo os seus tesouros no seio da realidade que sempre precisa se erguer acima das misérias dela. Todavia, a missão do homem não é apenas a de se adornar a si e ao seu ambiente: precisa também dar aos objetos exteriores um uso prático para satisfazer as suas exigências práticas. Começa então a vida laboriosa e penosa, a dependência do homem perante a finitude da existência, e podemos perguntar-nos de que modo estas exigências práticas, com todas as suas consequências, são suscetíveis de constituir objeto da representação artística. De início, a arte procurou representar este domínio na forma a que se chama a idade do ouro ou o estado idílico. Neste estado, a natureza dá ao homem, sem o obrigar a qualquer trabalho, tudo de que ele precisa para satisfazer às suas exigências e, por outro lado, o homem, no estado de inocência, contenta-se com o que as pradarias, as florestas, os rebanhos, um jardim, uma cabana etc. lhe podem fornecer para alimento, habitação e outras comodidades sem ainda sofrer, ao mesmo tempo, nenhuma das paixões ou tendências, como a ambição e desejo de posse, que parecem opor-se ao que há de nobre na natureza humana. A primeira vista, o estado idílico parece possuir certa idealidade, e alguns setores limitados da arte podem, por isso, contentar-se com tal assunto. Um exame um pouco mais profundo logo revela como essa vida é enfadonha. As obras de Gessner, por exemplo, já deixaram de ser lidas e quem as reler sentir-se-á constrangido. É que uma vida assim limitada implica uma ausência de desenvolvimento do espírito. Um homem total, um homem que o seja no pleno sentido da palavra, possui ambições e desejos de uma ordem suficientemente elevada para se não satisfazer com o que os produtos naturais e a natureza em que vive lhe podem fornecer. Não é o homem feito para viver na pobreza do espírito idílico; carece de trabalhar e deve procurar o que deseja mediante a sua própria atividade. Ora, as exigências puramente físicas abrem já, por si sós, um campo vasto à atividade humana e provocam, no homem, um sentimento de força interior que é, por sua vez, suscetível de evocar mais profundos interesses e energias. Mas também aqui se deverá realizar um acordo entre o exterior e o interior, e nada é mais inadequado à função da arte do que representar a miséria física no seu extremo estado. Dante, por exemplo, apressa-se a descrever em traços rápidos a morte de Ugolino que sucumbe à fome. Pelo contrário, quando Gerstenberg, na tragédia com o título de Ugolino, procura causar-nos todas as formas de horror, mostrando-nos a morte dos três filhos de Ugolino e, depois, a do próprio Ugolino, trata assim um assunto que, pelo menos neste aspecto, de modo algum se presta para a representação artística. Num outro sentido, e por razões diferentes, também o estado de civilização generalizada se opõe à realidade do ideal. Com efeito, num país civilizado, as múltiplas relações entre as exigências e o trabalho, entre os interesses e as respectivas satisfações estão de tal modo encadeadas que o indivíduo se acha privado de independência e preso a inumeráveis laços de dependência para com os outros. Os objetos de que se serve não são o produto do seu trabalho ou são-no numa medida ínfima e, por outro lado, as suas atividades não se exercem de maneira individual e viva, cumprem-se de um modo maquinal de acordo com as normas gerais. Esta civilização industrial, assente numa exploração e numa eliminação recíprocas, cria, para uns, a mais atroz pobreza e dá, a outros, a libertação da miséria e das necessidades, a riqueza suficiente para não estarem sujeitos ao trabalho de ganhar o pão cotidiano e para se poderem consagrar a interesses mais elevados e ao páthos. Graças a esse supérfluo, a prisão constante de uma dependência interminável fica suprimida, e o homem subtrai-se tanto melhor aos acasos da corrida ao ganho quanto menos enleado estiver nas redes dos interesses puramente materiais cujo fim único é o lucro. Mas o homem não está à vontade neste seu ambiente imediato porque não é obra sua. Não foi ele quem criou ou produziu o que o cerca e usufrui; tudo isso lhe veio de uma reserva que já existia e que, produzida por meios quase sempre mecânicos e portanto de um modo formal, chegou até ele no fim de uma longa cadeia de esforços e de exigências sofridos e realizados por outros homens. Um terceiro estado, o que se situa entre as idades de ouro idílicas e as complicadas organizações da sociedade burguesa, é pois o que parece prestar-se melhor para a representação artística ideal. É esse um estado do mundo que conhecemos já: a idade heroica, que é por excelência ideal. As idades heroicas, que não têm a idílica pobreza de interesses espirituais, erguem-se acima dessa pobreza, visam a interesses e fins mais profundos e é ainda obra sua a ambiência imediata dos indivíduos, a satisfação das suas exigências imediatas. A alimentação é simples e tem um caráter ideal: é o mel, o leite, o vinho, em contraste com os quais o café e a aguardente, por exemplo, logo nos lembram as mil manipulações com que são preparados. Assim também os heróis caçam os animais comestíveis, com as suas próprias mãos lhes preparam a carne, fabricam eles mesmos os utensílios de que se servem; a charrua, as armas de defesa, as couraças, a espada, a lança, tudo isso é fabricado por eles ou com a colaboração deles. Num tal estado, o homem tem o sentimento que de si provém tudo de que se cerca e de que se serve, que todos esses objetos exteriores lhe pertencem e não provêm de uma origem estranha, de um domínio subtraído ao seu poder. Nestas condições, a atividade que se emprega para alcançar e usar os materiais não se afigura um serviço penoso, mas sim um trabalho ligeiro, cheio de alegrias, a que nenhum obstáculo se opõe e que nenhum perigo ameaça. É um estado deste gênero que encontramos em Homero, por exemplo. O cetro de Agamêmnon é um bastão de família que um antepassado talhou e transmitiu aos descendentes. Odisseu fabricou o seu grande leito nupcial, e se as célebres armas de Aquiles não foram fabricadas por ele é porque, a pedido de Tétis, Hefesto as preparou. Vê-se, por todos os lados, a primeira alegria das descobertas novas, a frescura da posse e o prazer que ela dá; por todos os lados o homem se acha perante produtos que deve à força do seu braço, à habilidade das suas mãos, ao engenho do seu espírito; à sua audácia e coragem. Graças a tudo isso, os meios de satisfação não desceram até o plano das simples coisas exteriores e assistimos, por assim dizer, ao nascimento vivo desses meios e à viva manifestação do sentimento de valor que o homem lhes atribui porque neles vê, não coisas mortais que o hábito tornou inertes a seus olhos, mas as suas próprias e mais diretas emanações. Tudo aqui é, pois, idílico, mas não porque a terra, OS rios, as árvores, os animais etc. deem ao homem a alimentação, encerrando-o num ambiente limitado e mantendo-o na ignorância de outras fontes de prazer. No seio desta primitiva humanidade transbordante de vida, veem-se surgir interesses mais profundos, ao pé dos quais tudo o que é exterior figura de acessório, como terreno e meio que tornam possível a realização de fins mais elevados e, ao mesmo tempo, como ambiente favorável à manifestação da harmonia e da independência que se exprimem em ser tudo o que existe, cada coisa e cada objeto, o produto do homem destinado ao seu uso e à satisfação das suas exigências. Se, porém, se quiser aplicar este modo de representação a épocas posteriores que evoluíram num sentido quase sempre oposto, esbarram-se com dificuldades e perigos. No entanto, Goethe fê-lo com êxito em Hermann e Dorotéia. Vamos comparar alguns aspectos deste romance com outras obras modernas do mesmo gênero. Em Luiza, dá-nos Voss um quadro idílico da vida e da atividade num meio tranquilo e limitado mas independente. Nele ocupam um lugar importante o pastor da aldeia, o cachimbo, o roupão, a poltrona e a xícara de café. Mas o café e o açúcar são produtos de proveniência exterior, vêm de mundo alheio ao círculo em que se desenrola a vida das personagens de Voss e no qual se introduziram através de numerosos modos intermediários: comércio, fábricas etc., através das múltiplas manipulações a que os sujeitou a indústria moderna. Aquele meio aldeão não é, por isso, completamente fechado. Pelo contrário, ao belo quadro formado por Hermann e Dorotéia não podemos nós exigir a definição de um meio fechado porque, como noutra ocasião dissemos, este poema, em que predomina, no seu conjunto, uma atmosfera idílica, dá um lugar dos mais importantes e acertadamente oportuno aos grandes interesses da época, às lutas da Revolução Francesa e à defesa da pátria. Delimitado se acha também o círculo estreito da vida familiar aldeã, não porque nele se ignorem os grandes acontecimentos e revoluções do mundo exterior como acontece com o pastor de aldeia de Voss; mas porque, relacionada com os grandes acontecimentos mundiais entre os quais se manifestam os caracteres e os eventos idílicos, a cena insere-se na esfera infinitamente mais vasta de uma vida infinitamente mais rica, e o boticário obstinado em não rasgar o estreito horizonte dos hábitos pessoais é descrito como um filisteu miudinho, não mau mas bilioso. Quanto ao ambiente que envolve os caracteres, nenhuma dissonância se insere na descrição idílica que perfeitamente corresponde à concepção, que acabamos de expor, do idílico. É assim que, lembrando um só exemplo, nós vemos o anfitrião e os seus convivas, o pastor e o boticário, a beberem, não café, mas "trouxe a mãe o nobre e claro vinho numa botelha facetada, em cima de um prato brilhante de estanho, com copos verdes, verdadeiras taças para o vinho do Reno". Bebem, entre sombras frescas, o sumo de uma planta da região, vinho de 83, em copos fabricados expressamente para vinho do Rena; isto basta para despertar em nós a lembrança das "águas do Reno e das suas encantadoras margens" e como que atravessamos as próprias vinhas do agricultor, por detrás da casa, de tal modo que nada sai fora dos limites de uma situação em que tudo é alegre, em que todas as exigências são ali mesmo satisfeitas. c) Além destas duas variedades de ambiência exterior, uma terceira existe à qual o indivíduo se liga mediante relações concretas. Trata-se da ambiência espiritual que é constituída pela religião, pelo direito, costumes, organização do Estado, a administração, tribunais, família, vida privada e pública, vida social etc. É que a idealidade não se deve manifestar apenas na satisfação das exigências físicas, mas também na dos interesses do espírito. Ora, se o que há de substancial, de divino, de necessário nestes domínios é invariável e imutável em si, não deixa de revestir, ao objetivar-se, as formas várias e múltiplas em grande parte constituídas pelo particular, pelo convencional, pelo que é vário conforme as épocas e os povos. Ao revestirem tais formas, todos os interesses da vida do espírito adquirem uma realidade exterior - costumes, hábitos, procedimentos - que o indivíduo já encontra acabada; com que tem o indivíduo de se relacionar, enquanto sujeito assente em si mesmo, tal como se relaciona com a natureza exterior, tanto mais que aquela realidade lhe é mais próxima e lhe oferece mais afinidades do que esta. Na totalidade, a este domínio podemos exigir o mesmo acordo vivente de que há pouco falamos e a que, por isso, não vamos agora dedicar um estudo mais pormenorizado; além disso, a propósito de outro assunto, depressa teremos ocasião de mostrar os seus principais aspectos. III - O ASPECTO EXTERIOR DA OBRA DE ARTE IDEAL NAS SUAS RELAÇÕES COM O PÚBLICO Como expressão do ideal, nele se deve a arte inspirar em todas aquelas relações, que acabamos de estudar, com a realidade exterior e assim criar um acordo entre a exterioridade e a subjetividade do caráter. Se, no entanto, a arte é deste modo suscetível de formar um mundo sem dissonâncias nem contradições, um mundo por assim dizer formado e fundado em si mesmo, não é para si própria que a arte existe enquanto objeto real e individual, mas sim para um público que a contempla e aprecia. Ao representarem um drama, por exemplo, os atores não falam apenas entre si, mas falam também para nós e em ambos os casos devem ser compreendidos. É assim que a obra de arte trava um diálogo com quem se acha diante dela. O verdadeiro ideal manifesta-se de um modo compreensível para toda a gente através das paixões e interesses gerais dos deuses e dos homens que o representam; por isso, porque os seus indivíduos à nossa intuição se apresentam num mundo exterior determinado, com costumes, hábitos e outras particularidades próprias, torna-se necessária a concordância desta exterioridade não só com os caracteres representados mas também conosco. Nas obras de arte, o mundo exterior a que pertencem os caracteres é propriamente deles, e o que nós exigimos é que um acordo se estabeleça entre esses caracteres, o seu ambiente e nós outros. De bom grado procuram os poetas, pintores, escultores e músicos, os seus assuntos em épocas já passadas, com civilização, moralidade, costumes, estrutura e culto totalmente diferente dos da civilização atual e, como já o dissemos, este retorno ao passado oferece a vantagem de subtrair o artista aos interesses diretos do presente e de conferir ao assunto escolhido aquele caráter de generalidade que a arte não pode dispensar. Mas o próprio artista pertence a certa época, vive no meio dos seus hábitos e costumes, partilha um certo modo de pensar e as respectivas representações. Tenha ou não sido Homero o único autor da Ilíada e da Odisseia, tenha realmente vivido ou não, isso não impede que quatro séculos separem os poemas homéricos da guerra de Tróia e que um intervalo de tempo duas vezes maior distancie os grandes trágicos gregos da idade dos antigos heróis que forneceram o conteúdo, transposto para o presente dessa poesia. O mesmo acontece com o poema dos Nibelungos e com o poeta que reuniu as diversas lendas que o poema contém, deles fazendo um todo orgânico. O páthos geral do humano e do divino é, sem dúvida, familiar ao artista, mas tornaram-se-lhe estranhas as condições exteriores e a realidade das épocas passadas que se modificaram essencialmente. Por outro lado, o artista produz para um público - isto é, para o seu povo e para o seu tempo -, por quem a obra de arte deve ser compreendida como algo de familiar. Verdade é que as grandes obras de arte aspiram à imortalidade, querem vir a ser compreendidas e admiradas por todas as épocas e todos os povos; para que estas pretensões sejam justificadas, para que as obras de arte se achem ao alcance dos povos estrangeiros e dos séculos futuros, precisam eles recorrer a vastos conhecimentos geográficos, históricos e sobretudo filosóficos. Em face desta colisão entre épocas diferentes, podemos perguntar que forma deverá apresentar a obra de arte tendo em consideração as circunstâncias do local onde se situa, os hábitos, os costumes, as condições religiosas, políticas, sociais e morais. O que é preciso saber é se o artista deve esquecer a própria época, a fim de voltar toda a sua atenção para passado e para a vida real, ou se tem não apenas o direito mas também dever de só se ocupar da sua nação e do presente em geral e só elaborar a sua obra de acordo com critérios referentes às particularidades do seu tempo. Esta alternativa também se pode exprimir do modo seguinte: o assunto deve ser tratado objetivamente quanto ao seu conteúdo e à época a que se refere, ou subjetivamente, quer dizer, de acordo com o grau de civilização e as particularidades da época a que o artista pertence? Mantendo na sua oposição os dois termos desta alternativa, somos levados a dois extremos igualmente falsos, e vamos dizer algumas palavras que nos ajudarão a formar uma ideia do que deve ser a representação verdadeira. São três os casos a considerar neste aspecto: Em primeiro lugar, a utilização subjetiva pelo artista das condições da sua própria época na representação dos assuntos que pertencem ao passado. Em segundo lugar, a fidelidade puramente objetiva na representação do passado. Em terceiro lugar, a verdadeira objetividade na representação e o domínio pelo artista dos assuntos que pertencem a épocas e a povos estranhos. a) No que se refere à predominância do ponto de vista puramente subjetivo, chega-se, se a levarmos ao extremo, à supressão do aspecto objetivo do passado para pôr no seu lugar a fenomenalidade do presente. Provém isso, por um lado, da ignorância em que se está do passado, e manifesta-se assim certa ingenuidade que não permite apreender e ter consciência da contradição que existe entre o assunto e essa maneira de o tratar; por outro lado, poder-se-á dizer que é a falta de cultura que está na origem de uma tal concepção. De modo especialmente acentuado se revela esta ingenuidade em Hans Sachs, do qual se pode literalmente dizer que "nurembergificou" Deus Nosso Senhor, Adão, Eva e o patriarca, embora tenha dado provas, ao fazê-lo, de uma bela frescura, intuição e serenidade de alma. Deus, por exemplo, dá lições a Abel, a Caim e aos outros filhos de Adão tal como o faria um mestre-escola contemporâneo de Hans Sachs; catequiza-os, ensinando-lhes os dez mandamentos e o Pai Nosso; Abel aprende tudo e tudo sabe como um bom rapaz aplicado, mas Caim comporta-se e responde como um garoto velhaco e malcriado; quando se lhe manda repetir os dez mandamentos, dá-lhes um sentido oposto ao que eles possuem na Bíblia: roubarás, não honrarás pai e mãe etc. Da mesma maneira se representava na Alemanha do Sul a história da paixão (proibidas durante algum tempo, estas representações foram de novo autorizadas): Pilatos aparece na figura de um funcionário grosseiro e orgulhoso; os soldados, tão vulgares como os dos nossos dias, oferecem a Cristo uma pitada de tabaco e, como ele a recusa, metem-lhe à força o tabaco no nariz; e o povo inteiro na sua piedade e devoção, diverte-se com esta cena e, quantos mais sinais encontra da atualidade imediata, mais acresce a sua piedade, mais aumenta, no seu foro íntimo, o sentimento religioso. Em todo caso, esta transformação das coisas do passado, com o intuito de as assemelhar às do presente, justifica-se até certo ponto, e não podemos deixar de admirar a audácia de Hans Sachs, que se coloca num pé de igualdade com Deus e as antigas representações respectivas para lhes dar um caráter pequeno-burguês; todavia, não deixa de constituir uma prova de brutalidade e ignorância despojar o assunto da objetividade que lhe pertence e, mais do que isso, dar-lhe uma forma contrária à sua forma real, o que só pode ter um resultado burlesco. Por outro lado, pode a subjetividade não ser mais do que resultado do orgulho que provêm da consciência da superioridade da civilização a que se pertence e por isso se consideram as ideias, os costumes, as convenções sociais que predominam nesta civilização como as únicas válidas e aceitáveis, ao mesmo tempo em que se julga que só revestido de formas análogas às desta civilização se pode utilizar um conteúdo qualquer. É deste modo de pensar que provém aquilo a que muitos chamam o bom gosto clássico dos franceses. Uma coisa, para lhes agradar, tinha de ser afrancesada, e ao que proviesse de outros povos, como, sobretudo, ao que tivesse um aspecto medieval, faltava, para os franceses, o gosto, era classificado de bárbaro e afastado com desdém. Não tinha Voltaire razão quando dizia que os franceses haviam aperfeiçoado as obras dos antigos, pois o que eles fizeram foi apenas nacionalizá-las. As transformações a que, deste modo, sujeitaram tudo o que fosse original e pessoal, mais fastidiosas eram por obedecerem a gostos formados na estufa de uma civilização cortesã, fundada na regularidade e generalidade convencionais da maneira de pensar e de exprimir. A abstração, esse produto de uma cultura delicada, introduziram-na os franceses não só na sua poesia como também na sua dicção. Era proibido o poeta de empregar palavras como porco, colher, garfo e muitas outras análogas; tinha de recorrer a eufemismos e a perífrases. Em vez de nomear a colher e o garfo deveria dizer: o instrumento que serve para levar à boca os alimentos líquidos ou sólidos etc. O gosto francês é por isso muito limitado, pois a arte, em vez de planificar o seu conteúdo e o reduzir àquelas generalidades, tem de o particularizar e fazer dele uma individualidade vivente. Por tais motivos, são os franceses povo que mais dificuldade tem em compreender Shakespeare, e quando representam e traduzem eliminam das suas obras precisamente o que nelas há de mais admirável. Do mesmo modo, Voltaire desvaloriza Píndaro dizendo: Como cortesãos franceses devem, segundo os franceses, proceder e falar os chineses, os americanos ou os heróis gregos e romanos. Na Ifigênia em Áulida, por exemplo, Aquiles é, dos pés à cabeça, um príncipe francês, e, se não fosse o nome, ninguém diria que se tratava do herói grego. Aparece ele em cena vestido à grega, de couraça e capacete, mas traz também os cabelos polvilhados e frisados, as ancas alargadas com almofadas e calça sapatos de saltos encarnados, presos ao pé com fitas de cor. No tempo de Luís XIV, assistiu sempre um público numeroso às representações da Ester, de Racine, sobretudo porque Ahasverus entrava em cena tal qual Luís XIV entrava na grande sala de audiências. Este Ahasverus tinha uma caracterização oriental, mas estava também polvilhado, trazia um manto de arminho e vinha seguido por muitos camareiros vestidos à francesa, os cabelos presos por um cordão, na mão um chapéu de plumas, casaca bordada a ouro, calças de seda e sapatos de saltos encarnados. Era assim que no teatro toda a gente podia admirar um espetáculo a que só os cortesãos e algumas pessoas privilegiadas podiam assistir na realidade: era a entrada do rei posta em verso. Pela mesma razão se explica que a história seja em França, na maior parte dos casos, cultivada e escrita, não por si mesma nem pelo intrínseco interesse dos acontecimentos, mas devido ao interesse de atualidade, a fim de inculcar nos governantes as boas doutrinas ou para os tornar odiosos. É ainda por isso que os dramas contêm, seja do princípio ao fim e de maneira explícita, seja apenas numa ou noutra cena, alusões aos acontecimentos atuais, e quando as peças antigas incluem passos que se podem relacionar com esses acontecimentos dá-se-lhes um relevo que não existia nas intenções do autor e o público aplaude-as com entusiasmo. Um terceiro modo de representação subjetiva consiste em abstrair de tudo o que possa haver de verdadeiramente artístico no passado e no presente, para só oferecer ao público o espetáculo dos fatos e eventos cotidianos, tal como ocorrem na vida real. Com isso despertam-se no espectador os sentimentos subjetivos que a vida prosaica pode inspirar. Com este processo podem produzir-se obras acessíveis a toda a gente, obras que não exigem nenhum esforço de compreensão, mas quem se aproximar delas com um interesse artístico depressa fica decepcionado, pois o fim da arte é precisamente libertar-nos daquela subjetividade. Os dramas de Kotzebue, por exemplo, obtiveram tanto êxito nos nossos dias porque, ao falarem da "nossa decadência e miséria", de "colheres de prata roubadas", ao porem em cena "sacerdotes, conselheiros do comércio, secretários ou majores de hussardos", não fazem mais do que mostrar ao público o que toda a gente já viu em sua própria casa, na de um amigo ou parente, e assim despertam em cada um a lembrança de pontos sensíveis da sua existência. O que falta a esta subjetividade é o poder de se elevar até o sentimento e a representação do que constitui o verdadeiro conteúdo de uma obra de arte, e assim tudo o que ela é suscetível de fazer consiste apenas em justificar o interesse que confere a todos aqueles aspectos banais da vida cotidiana; alega para isso exigências do coração e entrega-se a reflexões que, chamem-se elas morais, não passam na realidade de lugares-comuns. Os modos de representação que acabamos de descrever são, pois, de uma unilateralidade subjetiva que em nada considera o aspecto real e objetivo do mundo e das coisas exteriores. b) A segunda maneira de conceber a arte e a representação artística esforça-se, pelo contrário, em reproduzir os caracteres e os eventos do passado tanto quanto possível no seu meio real, respeitando todas as particularidades dos costumes, toda a atmosfera exterior em geral. Neste sentido, foram principalmente os alemães que se distinguiram. É que, ao contrário dos franceses, nós somos arquivistas conscienciosos de todas as particularidades estrangeiras e exigimos à arte a fiel reprodução de todas as circunstâncias de tempo e lugar, de costumes, vestuários, armas etc.; ternos, ao mesmo tempo, bastante paciência para nos entregarmos ao estudo profundo, que exige muito trabalho e erudição, das maneiras de pensar e conceber o mundo características das nações estrangeiras e dos séculos longínquos, e próprios também para nos familiarizarem com as suas particularidades. Graças a esta largueza de espírito, de que damos provas no esforço para compreender o espírito de outras nações, em arte nos mostramos não só tolerantes para com as extravagâncias que encontramos nos outros, mas ainda levamos os nossos escrúpulos ao ponto de exigirmos a reprodução tão exata quanto possível dos pormenores exteriores, até os menos essenciais. Também os franceses são homens sérios e ativos, e se devemos prestar justiça ao seu alto grau de cultura e ao seu sentido prático, devemos também reconhecer que eles não têm a paciência dos alemães para aprofundar as coisas sem pressa e com o verdadeiro desejo de as conhecer por si próprias. O francês começa sempre por formular juízos, enquanto nós, alemães, apreciamos sobretudo, nas obras de arte estrangeiras, o que é reprodução fiel; quer se trate de plantas exóticas, ou de outras formações da natureza exterior, qualquer que seja o reino a que elas pertençam, quer se trate de móveis de todo gênero e for;na, de cães e de gatos, até de objetos desagradáveis, tudo nos interessa. E assim que nos conseguimos familiarizar com as mais estranhas maneiras de ver: sacrifícios, lendas de santos, com todos os absurdos que lhes estão ligados, e muitas outras representações análogas. Do mesmo modo, quando vemos a representação de personagens em ação, é-nos possível achar que o que elas têm de mais interessante é a maneira como falam, como procedem etc., aquilo que elas foram não apenas para si próprias mas também como representativas de uma época e de uma nação, e nas suas relações recíprocas. Nos nossos dias, graças sobretudo à ação de Frederico von Schlegel, estabeleceu-se a opinião de que é uma tal fidelidade que constitui a objetividade de uma obra de arte. Dela se deverá fazer, por esse motivo, o principal critério de apreciação das obras de arte, e o interesse subjetivo será função do prazer que dá a fidelidade. Supõe isto a nossa incapacidade de alcançarmos um ponto de vista mais elevado para formarmos uma ideia da natureza e caráter do conteúdo representado, e supõe também que não devemos trazer para a nossa apreciação e nosso juízo nenhum dos pontos de vista referentes ao nosso grau de cultura e aos nossos fins próprios. Quando, por iniciativa de Herder, se renovou na Alemanha o interesse pela música e pelos cantos populares, inventou-se toda espécie de canções sobre os modelos dos cantos neogregos, lapões, turcos, tártaros, mongóis etc., e considerou-se uma prova de grande genialidade esse poder de adaptação aos costumes e à mentalidade populares estrangeiros, essa facilidade de imitar tais produções líricas. Mas acontece que as produções que resultam desse poder e dessa facilidade de adaptação e imitação representam para o público a que se destinam algo de completamente exterior. Tal concepção, na medida em que é assim limitada, reduz-se ao aspecto puramente formal da exatidão e finalidade históricas, e abstrai não só do conteúdo e do alcance subjetivos como ainda de tudo o que o nosso poder de intuição, a nossa maneira de pensar e de sentir devem à cultura moderna. Nem de um nem de outro desses elementos nos podemos abstrair porque de um e outro queremos obter satisfações, e a exigência de fidelidade histórica apresenta-se então num aspecto que até aqui ainda não consideramos. Chegamos, pois, ao momento de examinar em que consiste a verdadeira subjetividade e a verdadeira objetividade que a produção de uma obra de arte deve incluir. c) O que, de um modo geral e desde já, se pode dizer sobre este assunto é que nenhum dos aspectos que até aqui consideramos deve ser posto em relevo à custa dos outros, nenhum pode colocar em plano secundário qualquer dos outros; e também que a exatidão puramente histórica das coisas e objetos exteriores - lugar, hábitos, costumes, instituições - constitui a parte secundária da obra de arte, a que tem um interesse insignificante ao lado do que deve despertar em nós um conteúdo que contém uma verdade imperecível e, portanto, válida também para o presente. Também neste aspecto se podem opor à representação, tal como ela deve ser para permanecer na verdade, as seguintes concepções que são relativamente deficientes. Em primeiro lugar, pode a representação das características de uma época ser fiel, exata, viva e compreensível até para um público atual, sem que, no entanto, ultrapasse a vulgaridade da prosa e sem que seja poética em si mesma. Temos um exemplo no Goetz von Berlichingen. de Goethe. Encontramo-lo no início da peça. A ação passa-se numa estalagem em Schwarzenberg, na Francônia, e estão em cena Metzler e Sievers sentados a uma mesa; dois criados de cavaleiros sentam-se diante do fogo; o estalajadeiro: "SIEVERS - Hansel, mais uma aguardente, e enche-a como um cristão. METZLER (em voz baixa, dirigindo-se a Sievers) - Acaba lá de contar essa história do Berlichingen para irritar ali os bambergueses que já estavam vermelhos de fúria..." E aqui está outro exemplo extraído do terceiro ato: "JORGE (entra com uma goteira do telhado) - Aqui está o chumbo. Basta só que metade acerte para não escapar nenhum que vá dizer a Sua Majestade: Senhor, portamo-nos mal. LERSE (partindo o chumbo) - É um bom pedaço. JORGE - A chuva que procure outro caminho. Não me dá cuidado. Um bom cavaleiro e uma chuvada valente passam por toda parte. LERSE (deitando chumbo) - Anda ali um escudeiro imperial a rondar de espingarda. Julgam eles que já não temos munições. Vai apanhar com a bala quentinha, acabada de sair do lume. (carrega) JORGE (pousando a colher) - Deixa-me ver. LERSE (dispara) - Lá caiu o pardal". Tudo isto é claro, compreensível, inteiramente adequado ao caráter da situação e dos cavaleiros; no entanto, estas cenas são muito banais e prosaicas, pois o seu conteúdo só é constituído por fatos vulgares e a sua forma é uma objetividade ao alcance de toda a gente. Exemplos análogos se encontram em muitas outras obras de juventude de Goethe, obras dirigidas contra tudo o que era até então considerado como regra e cujo efeito se devia sobretudo ao modo concreto e familiar como representam as personagens e os eventos, o que diminui a distância que as separa do público. Mas é justamente porque essa distância se acha reduzida a nada e porque o conteúdo em grande parte fica insignificante, que cenas como estas se afiguram vulgares. Tais vulgaridades só se tornam perceptíveis, nas obras dramáticas, durante a representação, pois, antes do espetáculo, em face dos preparativos feitos, das luzes, dos atores com belos figurinos, espera-se ver alguma coisa mais do que dois camponeses, dois cavaleiros e um copo de aguardente. Por isso é que o Goetz foi sobretudo apreciado através da leitura e não se pôde manter durante muito tempo em cena. Por outro lado, podemos nós estar ao corrente do que constitui a base histórica de uma mitologia antiga, acharmo-nos familiarizados com o que há de singular na história política e nos costumes de certos Estados graças aos conhecimentos que adquirimos, pois esses conhecimentos fazem parte da cultura da nossa época. Com efeito, não constituem, o estudo da arte e da mitologia, da literatura e dos costumes da antiguidade, o ponto de partida de todo o nosso atual sistema de ensino? Os rapazes familiarizam-se na escola com os deuses, os heróis e as personagens históricas da Grécia. E desde que tais figuras e tais interesses se tornaram nossos na representação, é natural que os apreciemos como nossos quando eles se nos apresentam de um modo objetivo, embora possamos perguntar por que é que não acontece o mesmo com a mitologia egípcia, a hindu ou a escandinava. Além disso, em todas estas representações há Deus, que é o elemento geral delas. O elemento determinado destas representações, as particulares divindades gregas e hindus, já não constituem para nós, naquela sua determinação, a expressão da verdade, já não acreditamos nelas e só lhes entregamos o prazer da nossa fantasia. Elas ficam, por isso, estranhas à nossa consciência propriamente dita no que esta tem de mais profundo, e nada se nos afigura mais frio e mais vazio do que as exclamações: "Oh! Zeus, oh! Júpiter", ou então, "Oh! Osíris, oh! Ísis", que se ouvem nas óperas, para já não falarmos nos comovedores oráculos (é raro que não haja oráculos numa ópera) que nas tragédias modernas foram substituídos por manifestações de loucura e sonambulismo. O mesmo exatamente acontece com quaisquer outros fatos históricos, refiram-se eles aos costumes, às leis etc. Tais fatos pertencem à história do passado, e se não apresentam nenhuma relação com a vida presente, por melhor que os conheçamos em todos os seus pormenores, eles não são nossos; ora, nós não podemos interessar-nos pelo que existiu uma vez e já não existe. O que é histórico só é nosso quando pertence à nação a que também pertencemos ou quando podemos considerar o presente em geral como uma consequência de tais ou tais acontecimentos passados, em especial daqueles cujos caracteres e atos neles representados se prendem como os anéis de uma cadeia. É que não basta o laço que existe entre o povo e a terra em que ele vive; é preciso que haja uma íntima ligação entre o passado do nosso povo e o nosso Estado atual, a nossa vida e modo de existência de hoje. Os Nibelungos, por exemplo, narram certos eventos que se passaram na nossa terra, mas os burgonheses e o rei são de tal modo estranhos a todas as condições da nossa atual cultura e dos nossos atuais interesses nacionais que, até sem sermos eruditos, nos sentimos mais próximos dos acontecimentos que Homero narra nos seus poemas. Com um louvável sentimento patriótico, Klopstock substituiu as divindades gregas pelos deuses escandinavos e, no entanto, Wotan, Walhala, Freya são nomes menos familiares à nossa representação do que os de Júpiter ou do Olimpo. Um ponto em que não será demasiado insistir é o de que as obras de arte não constituem objetos de estudo e de erudição, mas devem compreender-se e apreciar-se sem ser preciso recorrer a uma longa preparação nem a um vasto aparato de conhecimentos. A arte não existe para um pequeno círculo de algumas pessoas com instrução superior, mas para o conjunto da nação como tal. E o que se diz da obra de arte em geral, aplica-se também ao aspecto exterior da realidade histórica representada. Também esta nos deve ser acessível e compreensível dentro dos interesses da nossa época e do povo a que pertencemos, sem nos exigir um esforço de erudição; é preciso que quando nos deslocamos para a realidade histórica, nós nos sintamos no nosso mundo e não num mundo estranho e incompreensível. Assim nos aproximamos do que deve ser considerado a verdadeira objetividade e começamos já a entrever as condições a que deve obedecer uma obra de arte para que os assuntos de épocas passadas se nos afigurem familiares. Citaremos, a propósito, os poemas nacionais autênticos, os que adotam um assunto histórico que por si mesmo pertence já à nação e não lhe é estranho. Neste caso estão as epopeias da Índia, os poemas homéricos e a poesia dramática grega. Os coros e as personagens de Sófocles, Filoteto, Antígona, Ajax, Orestes ou Édipo não falam como falariam na época a que se reporta a ação. O mesmo acontece no romanceiro do Cid; Torquato Tasso, na Jerusalém Libertada, cantou a glória da cristandade católica; o poeta português Camões celebrou a descoberta do caminho marítimo para a Índia, os feitos de enorme importância dos heróis do mar lusíadas, cujo destino se identifica com o da nação; Shakespeare escreveu os dramas com assuntos que eram os acontecimentos da história trágica nacional, e Voltaire compôs uma Henríada. Também nós, alemães, renunciamos a escolher para assunto das nossas obras, e delas fazer poemas épicos nacionais, narrativas longínquas sem nenhum interesse para a nação. A Noachida de Bodmer e a Messíada de Klopstock, passaram de moda e já ninguém pretende que a honra de uma nação lhe exige que tenha, não só um Homero, mas também um Píndaro, um Sófocles etc. Mais próximos nos são os assuntos bíblicos graças à nossa familiaridade com o Velho e o Novo Testamento; mas alguma coisa de estranho tem sempre, para nós, o aspecto histórico dos usos e costumes que são domínio da erudição. Aquilo que verdadeiramente nos é conhecido na Bíblia é o encadeamento prosaico dos eventos e dos caracteres que, ao aparecerem-nos descritos em termos novos, nos causam o sentimento nítido de que nos achamos perante uma obra artificial. Todavia, não se pode a arte limitar a assuntos de caráter unicamente nacional, e dada a multiplicação das relações que existem entre os diferentes povos e que serão cada vez mais frequentes e estreitas, é lícito recorrer a assuntos de todas as nações e de todos os séculos. Quando assim acontecer, não precisa o poeta ocupar a sua genialidade na identificação com épocas passadas ou com os povos estrangeiros, mas deve proceder de tal sorte que o aspecto histórico exterior só represente, na sua obra, um elemento secundário, para que o primeiro lugar pertença ao humano, ao geral. Foi assim que procederam os medievais que, utilizando os assuntos da antiguidade, neles introduziram o espírito do seu próprio tempo; caíram, no entanto, no extremo oposto, ao conservarem, de Alexandre, de Enéias ou do imperador Otaviano, os nomes apenas. O que antes de tudo importa é que as obras de arte possam ser imediatamente compreendidas. Todos os públicos exigiram sempre que as obras de arte lhes sejam familiares, que deem a impressão, ao serem lidas ou representadas, de que nelas só se acham coisas há muito tempo conhecidas, embora apresentadas de certa maneira. Foi com este espírito de independência nacional que Calderón tratou a sua Zenóbia e a sua Semíramis; Shakespeare, por sua vez, conferiu aos tão variados assuntos dos seus dramas e tragédias um caráter nacional inglês, sabendo embora, infinitamente melhor do que os espanhóis, conservar também o caráter histórico das nações estrangeiras, como, por exemplo, o dos romanos. Os trágicos gregos jamais perderam de vista a atualidade do seu tempo e da sua cidade. O Édipo em Colona está intimamente ligado a Atenas pela vizinhança daquela cidade e, sobretudo, porque, depois da morte de Édipo, Colona viria a ser um lugar sagrado para os atenienses. Também as Eumênides, de Ésquilo, têm, para os atenienses, um interesse nacional devido à decisão do Areópago. Mas nunca a mitologia grega, apesar do seu emprego constante nas artes e nas ciências a partir do Renascimento, conseguiu lançar raízes profundas entre os povos modernos e mantêm um caráter frio sempre que aparece nas artes figurativas e nas poéticas, e ainda mais nestas do que naquelas. A ninguém ocorreria hoje compor, por exemplo, um poema consagrado a Vênus, a Júpiter ou a Palas. É certo que a escultura não se pode libertar definitivamente dos deuses gregos, mas, por isso, as suas produções só são, na maior parte, acessíveis aos entendidos, aos eruditos e ao círculo estreito dos sábios que possuem conhecimentos excepcionais. Foi sem êxito que Goethe tentou levar os pintores a inspirarem-se nos quadros de Filóstrato, e de um modo geral se pode dizer que os objetos antigos, mergulhados como estão na atualidade e na realidade antigas, são estranhos tanto ao público como aos pintores modernos. Em contrapartida, conseguiu Goethe, com um espírito mais profundo, escrever o Divã Ocidental-Oriental e introduzir o Oriente na poesia moderna, adaptá-lo à nossa maneira de ver. Ao trabalhar nesta adaptação, nunca esqueceu decerto que era um homem do Ocidente e um alemão; por isso, conseguiu traduzir o caráter oriental das situações e condições e ao mesmo tempo criar uma obra que em nada repugna à nossa consciência moderna nem se opõe à nossa individualidade própria. Nada impede, portanto, que o artista escolha os seus assuntos em países longínquos, em séculos passados, em povos estrangeiros, e respeite de um modo geral o caráter histórico da mitologia, dos costumes e das instituições; apenas é preciso que só utilize os pormenores históricos como molduras dos seus quadros e adapte o conteúdo interno à consciência mais profunda do seu tempo, como Goethe o fez na Ifigênia, obra que os homens jamais se cansarão de admirar. As condições em que se deve efetuar esta transformação variam de uma arte para outra. A poesia lírica, que tem por essencial o mundo dos sentimentos e os movimentos da alma, é a que menos precisa recorrer à descrição exata da ambiência histórica exterior. Os sonetos de Petrarca, por exemplo, pouco nos dizem da personalidade de Laura; dela conhecemos o nome, que se poderia trocar por outro sem que disso resultasse qualquer alteração, e dos lugares onde os eventos se passam só sabemos que se situam nas vizinhanças das nascentes de Vaucluse etc. A poesia épica é a que precisa de maior quantidade de pormenores, que formam o seu revestimento exterior e, por isso, aceitamos sem crítica. É, porém, para a arte dramática que os aspectos exteriores constituem o obstáculo mais perigoso, sobretudo porque, nas representações teatrais, tudo nos fala diretamente e diretamente se oferece aos nossos olhos em formas de atualidade, de tal modo que nos queremos sentir em comunicação direta e em íntima comunhão com o que nos é apresentado. A representação da realidade histórica exterior deve ocupar, na arte dramática, um lugar completamente secundário, servir apenas de moldura; para isso deve proceder-se como nas poesias amorosas em que, manifestando uma profunda simpatia pelos sentimentos que se exprimem e pela maneira como se exprimem, se dá à amada um nome que não é o da mulher que realmente se ama. Pouco importa que os eruditos venham a encontrar inexatidões na descrição dos costumes, das formas de civilização, dos sentimentos. Muitas coisas há nas peças de Shakespeare que nos são estranhas e nos interessam muito pouco. Se as admitimos na leitura, já as não aceitamos no palco. Pensam os críticos e os entendidos que os valores históricos devem ser representados por si mesmos, e denunciam com indignação o mau gosto do público quando não dissimula o seu aborrecimento. Todavia, não é para entendidos e críticos que a obra de arte existe, mas sim para o prazer imediato do público; os críticos procedem mal ao estabelecer tal distinção, pois, ao fim e ao cabo, também eles fazem parte do público, e na exatidão minuciosa dos pormenores históricos nada há que os possa interessar. Isso explica que os ingleses, por exemplo, só representem, das peças de Shakespeare, as cenas de uma perfeição reconhecida e facilmente compreensíveis, desdenhando com indiferença o pedantismo dos nossos estetas que quereriam impor ao público o espetáculo dos pormenores exteriores que nada lhe interessa, de que se sente o mais afastado possível e que não oferece nenhuma relação com as suas ideias atuais. Quando, portanto, se pretende pôr em cena obras dramáticas estrangeiras, o público tem o direito de exigir que elas sejam adaptadas às condições do seu tempo e à sua mentalidade, e até as obras perfeitas esta adaptação se exige. Poder-se-á, decerto, dizer que o que é perfeito o é para todas as épocas, mas a obra de arte possui também um aspecto temporal, perecível, e é esse que carece de uma modificação. A beleza é criada para o prazer dos outros, e esses para quem a beleza é criada não se devem sentir estranhos em presença daquele aspecto exterior. Em tal adaptação reside o motivo e, ao mesmo tempo, a desculpa de tudo o que, em arte, é conhecido pelo nome de anacronismo, e que como um grave erro se imputa aos artistas. Entre esses anacronismos figuram, em primeiro lugar, as minúcias exteriores. Todavia, quando Falstaff, por exemplo, fala de pistolas, de modo algum nos sentimos impressionados. Anacronismo mais grave é o de Orfeu representado com um violino na mão, porque neste caso é demasiado berrante a contradição entre a época mítica e um instrumento cuja invenção toda a gente sabe que não data de uma tão remota antiguidade. Para não se cair em tais anacronismos, tomam-se nos teatros inúmeras precauções e os diretores dão muita importância à exatidão histórica dos figurinos e dos cenários: no cortejo da Donzela de Orléans, por exemplo, despendeu-se muito trabalho, mas como esse esforço incidiu sobre coisas relativas e indiferentes, bem se pode dizer que foi despendido em pura perda. O anacronismo mais importante não é, porém, o dos trajes e outras minúcias exteriores; é o que consiste em pôr as personagens a falar em tais termos, a manifestar tais sentimentos e ideias, a formular reflexões e a executar atos tais que estão em total contradição com a época delas, o nível da sua civilização, com a sua religião e concepção geral do mundo. Aos anacronismos deste gênero aplica-se comumente o critério do naturalismo, e afirma-se que não é natural pôr as personagens representadas a falar e a agir como se não falava nem procedia na época em que viviam. Aplicado de uma maneira absoluta, o natural assim entendido leva a verdadeiros absurdos. É que o artista, quando descreve a alma humana com as suas alegrias e paixões, deve dar a cada páthos a manifestação adequada, e não se limitar, para conservar a individualidade, a reproduzi-la tal qual ela se manifesta nas circunstâncias habituais da vida cotidiana. O artista só é artista porque conhece a verdade e a sabe, na forma que melhor lhe convém, representar perante os nossos olhos. Por isso tem de considerar, na expressão das suas personagens, o grau de civilização da respectiva época, a linguagem delas etc. Na época da guerra de Tróia, o modo de expressão e o estilo da vida em geral eram tão diferentes dos que encontramos na Ilíada como era diferente daquela que admiramos na incomparável beleza de Ésquilo e Sófocles, a maneira de pensar e de se exprimir da massa popular e dos representantes mais eminentes das famílias régias gregas. Este afastamento disso a que se chama naturalidade constitui na arte um anacronismo necessário. Inalterável permanece a substância intrínseca do que se representa, mas a reprodução e o desenvolvimento dessa substância fazem que sejam necessárias certas transformações no modo de expressão e na maneira de tratar o assunto. Muito diferente é o caráter que estas transformações adquirem quando se pretende transformar noções e representações nascidas num estádio ulterior da consciência religiosa e moral para uma época ou para um povo cuja concepção do mundo está em total contradição com tais recentes noções e representações. Assim, a religião cristã criou categorias morais que eram completamente estranhas para os gregos. A íntima reflexão a que se entrega a consciência para, por exemplo, decidir do bem e do mal, o arrependimento, o remorso são produtos que só pertencem ao desenvolvimento moral dos tempos modernos. A moral heroica ignora a inconsequência do arrependimento: o que fez está feito. Depois de assassinar a mãe, Orestes não sente o menor arrependimento; é certo que as fúrias vingadoras o perseguem, mas as eumênides são poderes gerais e não serpentes interiores da consciência subjetiva. O poeta tem de conhecer o núcleo substancial de uma época e de um povo, e só pratica um grave anacronismo quando introduz naquele núcleo intrínseco o que se lhe opõe e o contradiz. Deste ponto de vista, é lícito exigir ao artista que se identifique com o espírito de épocas remotas e de povos estrangeiros, pois este aspecto substancial, quando é verdadeiramente substancial, não perde o seu nítido valor através dos tempos; pelo contrário, a reprodução de todas as minúcias de fatos e fenômenos exteriores já cobertos pelo bolor da antiguidade só é sinal de uma erudição pueril aplicada a fins extrínsecos. Também neste aspecto se pode, sem dúvida, exigir certa fidelidade, mas apenas de um modo geral e sem negar ao poeta o direito de ser fiel à poesia e à verdade. Julgamos ter mostrado com bastante clareza de que maneira um artista deve adaptar o passado à cultura e à mentalidade do seu tempo e em que consiste a verdadeira subjetividade de uma obra de arte. A obra de arte tem de ser a expressão dos interesses mais altos do espírito e da vontade, do que possui humanidade e força, da verdadeira profundidade das almas; e é preciso que esse conteúdo seja perceptível em todas as formas exteriores da representação, que o seu tom fundamental ressoe através de todas as tessituras da obra. Isso é que é o essencial, disso é que se trata antes de tudo o mais. É também assim que a verdadeira objetividade nos revela o conteúdo substancial de uma situação, bem como a rica e poderosa individualidade em que vivem e se realizam exteriormente os momentos substanciais do espírito. Tal conteúdo deve encerrar-se em limites adequados e compreensíveis, e possuir uma realidade determinada e precisa. Independentemente de saber se as minúcias exteriores são ou não historicamente certas, a obra artística que exprime aquele conteúdo será objetiva guando ele se defina e desenvolva de acordo com o princípio do ideal. E, então, que a obra de arte fala à nossa verdadeira subjetividade e se torna propriedade nossa. Pode o assunto ser extraído de um passado longínquo, mas a obra de arte será imperecível graças ao caráter humano que lhe vem do espírito. Elemento poderoso e invariável, a humanidade do espírito não pode deixar de exercer a sua influência porque a objetividade constitui também o conteúdo e a realização da parte mais íntima do nosso ser. Pelo contrário, aquilo que é apenas histórico e exterior constitui, numa obra artística, a sua parte efêmera e perecível que temos de aceitar, resignadamente, quando se trata da arte antiga, mas da qual devemos abstrair quando estamos perante a arte do nosso tempo. É assim que os salmos de Davi, que celebram com tanta opulência e onipotência de Deus na bondade como na cólera, ou os acentos profundamente dolorosos dos profetas, ainda hoje, que Babilônia e Sião já não existem, despertam ecos na nossa alma. Do mesmo modo, estamos sempre prontos a identificarmo-nos com os egípcios para aceitar a moral que Sarastro canta em A Flauta Mágica. Em face de uma obra de arte realizada com espírito de objetividade, o sujeito deve renunciar a encontrar nela as suas particularidades e propriedades subjetivas. Quando o Guilherme Tell se representou pela primeira vez em Weimar, nenhum suíço ficou satisfeito. Do mesmo modo, muitos são os que, não encontrando os seus próprios sentimentos nos mais belos cânticos de amor, falsos os consideram, tal como aquelas pessoas que, apenas conhecendo o amor através dos romances, julgam que só podem vir a estar verdadeiramente apaixonadas se sentirem os mesmos sentimentos e se se acharem nas mesmas situações dos seus heróis romanescos. C O ARTISTA Nesta parte inicial da Estética, examinamos em primeiro lugar a ideia geral do belo; mostramos em seguida a sua realização incompleta na natureza, e chegamos, em terceiro lugar, a ver no ideal a sua realidade adequada. Consideramos, depois, o ideal do ponto de vista do seu conceito geral e do seu modo de expressão preciso e determinado. Mas a obra de arte, como produto do espírito, exige uma atividade subjetiva criadora que faz dela um objeto de intuição para os outros e um apelo à sensibilidade alheia. É a imaginação do artista que constitui esta atividade subjetiva criadora, e por isso nos resta falar agora da obra de arte como terceiro aspecto do ideal, mostrar que a obra de arte faz parte da interioridade subjetiva e que, antes de ser uma realidade tangível e visível, tem de amadurecer na subjetividade criadora, no gênio e no talento que lhe dão a forma definitiva. Limitar-nos-emos, todavia, a mencionar este aspecto, acrescentando que ele não pode constituir objeto de considerações filosóficas ou que sobre ele apenas se podem formular algumas observações gerais. Não obstante, muita vez se pôs a questão de saber de onde vem ao artista o dom e a faculdade de conceber, de executar, de produzir a sua obra de arte. Dir-se-ia que se pretende adquirir uma receita, arranjar uma regra que indicasse o que é preciso fazer, quais as circunstâncias e condições convenientes para produzir algo desse gênero. Assim aconteceu que o Cardeal de Este perguntou a Ariosto, a propósito do Orlando Furioso: "Mestre Luís, onde arranjou esta história levada dos diabos?". Analogamente interrogado, Rafael respondeu, numa carta célebre, que seguia determinada ideia. Podemos considerar a atividade artística de um triplo ponto de vista. Em primeiro lugar, determinaremos o conceito de gênio artístico e de inspiração. Em segundo lugar, falaremos da objetividade desta atividade criadora. Em terceiro lugar, procuraremos definir o caráter da verdadeira originalidade. 1. IMAGINAÇÃO. GÊNIO. INSPIRAÇÃO O gênio tem de ser definido com alguma precisão, pois gênio é um termo muito geral que não se aplica apenas aos artistas, mas também aos grandes guerreiros, aos reis e aos heróis da ciência. Uma vez mais, deparamos com três aspectos a considerar. a) A imaginação Quanto ao poder geral da criação artística, uma vez ele admitido, logo se deve ver na imaginação a faculdade artística mais importante. Todavia, é preciso não confundir a imaginação criadora com a imaginação puramente passiva. Por isso daremos à imaginação criadora o nome de fantasia. Há nesta atividade criadora um dom e um sentido que permitem apreender as formas da realidade, e no espírito gravar, graças a uma visão e uma audição atentas, as variadas imagens da realidade existente; a isso acrescenta-se uma memória capaz de conservar a lembrança do colorido mundo destas imagens multiformes. Não deverá, pois, o artista entregar-se desde o início às suas concepções pessoais e antes lhe cabe abandonar a região incolor do chamado ideal para se embeber de realidade. Arte ou poesia que comecem no ideal são sempre suspeitas, pois o artista deve inspirar-se, não no reservatório das abstrações gerais, mas na vida; é que a missão da arte não é exprimir pensamentos, como a filosofia, mas formas exteriores e reais. Este é o ambiente próprio do artista; muito há de ele ter visto, ter ouvido e memorado, e certo é que sempre os grandes homens possuíram uma vasta memória. É que o homem retém aquilo que lhe interessa, e um espírito profundo alarga os seus interesses a objetos inumeráveis. Assim começou, por exemplo, Goethe, e nunca deixou, durante toda a vida, de alargar o círculo das suas intuições. Tal dom e tal interesse por uma determinada concepção do real na sua forma real, bem como a faculdade de reter as coisas vistas e ouvidas, é o que constitui a terceira condição que o artista deve satisfazer. Este conhecimento exato das formas exteriores será acompanhado de uma íntima familiaridade com o mundo interior do homem, com as suas paixões de alma e todos os fins que o atraiam, duplo conhecimento a que se acrescentará ainda o da maneira como o íntimo do espírito se exprime na realidade e exteriormente se manifesta. Não se limita, porém, a fantasia à simples apreensão da realidade exterior e interior, porque a obra de arte não é apenas uma revelação do espírito encarnado em formas exteriores, e deverá, antes de tudo, exprimir a verdade e a racionalidade do real representado. Esta racionalidade do assunto escolhido pelo artista não estará apenas presente na sua consciência para o estimular, mas o artista há de entrever, à força de reflexão, o seu fundo de verdade e o seu caráter essencial. Sem a reflexão, o homem não adquire consciência do que se passa em si, e o que mais nos impressiona numa obra de arte é isso mesmo, que facilmente podemos verificar, de o seu assunto ter sido longamente meditado, considerado em todas as suas partes, examinado em todos os aspectos. Uma fantasia fácil jamais produzirá uma obra durável. Com isto, não queremos nós dizer que o artista deva formular em pensamentos filosóficos a verdade das coisas que conjuntamente constitui a base da religião, da filosofia e da arte. O artista não precisa da filosofia, e se pensar como filósofo, entrega-se a um trabalho que é oposto à forma de saber própria da arte. A missão da fantasia apenas consiste em ter consciência desta racionalidade intrínseca, e em tê-la, não na forma de proposições e representações gerais, mas na de uma realidade concreta e individual. Por isso o artista deve exprimir o que em si vive e se agita mediante as formas e aparências sensíveis cujas imagens e modelos apreendeu e conservou, dominando ao mesmo tempo tais formas e aparências de modo a obter delas uma expressão total e completa da verdade. Para alcançar esta recíproca penetração do conteúdo real e do conteúdo racional, tem o artista de apelar, por um lado, para a reflexão calma e vigilante do intelecto e, por outro lado, para a profundidade e ação vivificadora do seu sentimento. É, pois, absurdo afirmar que poemas como os de Homero foram imaginados pelo poeta enquanto dormia. Sem reflexão, sem escolha, sem comparações, o artista é incapaz de dominar o conteúdo que pretende tratar, e um erro é pensar que o verdadeiro artista não sabe o que faz. Nunca ele poderá dispensar a concentração de alma. Graças a esta sensibilidade que anima e embebe a totalidade, o artista faz do seu assunto e da forma em que o concebe algo que se confunde consigo próprio, que lhe pertence propriamente, que faz parte do seu mundo mais íntimo e mais subjetivo. A representação concreta leva todo o conteúdo para o domínio da coisa exterior e só a sensibilidade mantém a sua unidade subjetiva com o eu íntimo. Neste aspecto, o artista não só deve ter experiência do mundo em todas as suas manifestações extrínsecas e intrínsecas, como ainda é preciso que haja padecido grandes sentimentos, que o seu coração e o seu espírito tenham sido profundamente emocionados e comovidos, que muito tenha jubilado e penado, para se achar em estado de exprimir em formas concretas as profundidades insondáveis da vida. É por isso que o gênio desabrocha durante a juventude, como aconteceu, por exemplo, com Goethe e Schiller, mas só os homens formados pela idade são capazes de imprimir na obra de arte o sinal da maturação. b) O talento e o gênio A esta atividade criadora da fantasia, com a qual o artista consegue dar forma real ao que é racional em si, como se este racional fizesse parte de si mesmo, é que se chama gênio, talento etc. Aludimos, anteriormente, às características do gênio. Gênio é aquele que tem o poder geral da criação artística bem como a energia necessária para exercer tal poder com o máximo de eficácia. Tal poder e tal energia são, porém, essencialmente subjetivos, pois a produção espiritual só pode existir num sujeito consciente do que quer, dos fins que se propõe, da obra que pretende realizar. Todavia, na realidade distingue-se em geral o talento do gênio, e é fundada essa distinção, pois não existe entre eles uma identidade direta, embora, ela venha a ser exigida para que a criação artística resulte perfeita. E que a arte, enquanto individualiza as suas concepções e lhes dá uma expressão concreta, delas faz fenômenos, por assim dizer, reais, exigindo faculdades que variam com a natureza da realização. Tal pessoa tem talento como violinista, por exemplo, esta outra como cantor etc. Quem não possui mais do que talento só pode obter resultados apreciáveis confinando-se num ramo especial da arte. Mas, para realizar a perfeição em si própria, é preciso ter dons para a generalidade da arte e sentir dentro de si a inspiração que só o gênio possui. O talento sem o gênio não ultrapassa, por isso, os limites da habilidade puramente exterior. O gênio e o talento, diz-se também, são inatos ao homem. Verdadeira em certo aspecto, falsa é, noutro aspecto, esta opinião. Com efeito, também se pode dizer que o homem, enquanto homem, nasceu para, por exemplo, ser religioso, para pensar, para cultivar a ciência etc., o que quer dizer que, enquanto homem, é capaz de se elevar até a ideia de Deus ou o conhecimento racional. Basta, para isso, ter nascido, ter recebido certa educação e haver trabalhado com aplicação. a mesmo já não acontece com a arte, que exige disposições especificas, essencialmente naturais. Assim como a beleza é a ideia na sua realização sensível e real e a obra de arte torna diretamente perceptível à vista e ao ouvido o que seja concepção espiritual ou do espírito provenha, assim também o artista, não se limitando a revestir as suas produções da forma puramente espiritual do pensamento, jamais abandona o domínio da imaginação e da sensibilidade e jamais esquece que é o mundo sensível que lhe fornece a matéria com que pode realizar a sua obra. Esta criação artística, a arte em geral, tem, pois, uma parte direta e natural que não é obra do próprio sujeito, pois já ele a encontra pré-formada em si mesmo. Neste sentido se poderá falar da identidade do talento e do gênio. No mesmo sentido se dirá ainda que as diferentes artes dependem do gênio racional e das naturais disposições de um povo. Os italianos, por exemplo, possuem o dom natural do canto e da melodia, mas já nos povos nórdicos a música e a ópera, embora hajam sido cultivadas com êxito, não constituem um produto do gênio nacional tal como as suas terras não se prestam para o cultivo das laranjeiras. Aos poemas épicos souberam os gregos dar uma forma magnífica bem como atingiram a perfeição na escultura; já os romanos não possuíram uma arte própria e limitaram-se a transplantar a arte grega para o seu país. De um modo geral, é a poesia a mais cultivada de todas as artes, porque emprega materiais sensíveis de menores exigências e relativamente fáceis de trabalhar. Dentro da poesia, são os cantos populares que, sobre os demais gêneros, possuem um caráter nacional e natural; por isso os cantos populares surgem até em épocas de civilização relativamente primitiva e possuem um caráter de natural ingenuidade. Goethe, por exemplo, criou obras de arte em todas as formas e gêneros poéticos, mas é nos primeiros Lieder que se acham as criações mais íntimas e espontâneas, que não são incompatíveis com um grau de civilização pouco desenvolvido. Os gregos modernos continuam a ser um povo de rapsodos e de poetas. O que quer que aconteça hoje ou tenha acontecido outrora, quer se trate de um acidente mortal ou das circunstâncias em que ele se produziu, de um enterro, de uma aventura, de um caso de represálias turcas, tudo é para os gregos pretexto de uma canção, e muitas vezes chegou a acontecer que, no mesmo dia de uma batalha, já estava pronta uma canção para celebrar a vitória que se viria a alcançar. Fauriel, por exemplo, publicou uma coletânea de canções neogregas ouvidas da boca de mulheres, de amas, de criadas que se mostravam estupefatas com o interesse suscitado por essas canções. Pode-se, assim, falar de um nexo entre a arte e, por um lado, o seu modo de produção, por outro lado, o gênio nacional de um povo. Na Itália, por exemplo, os improvisadores são particularmente numerosos e dotados de um talento por vezes extraordinário. Ainda em nossos dias, italianos há capazes de improvisarem uma peça em dois atos na qual nada existirá de aprendido e onde tudo provém do conhecimento das paixões e situações humanas bem como de uma profunda inspiração de momento. É conhecida a história de um pobre improvisador que, depois de improvisar durante muito tempo, deu a volta à assistência para arrebanhar algumas moedas no velho chapéu esburacado; mas, dominado ainda pelo fogo da inspiração, não parou de declamar, de gesticular com os braços e as mãos até cair por terra inanimado, espalhando no chão as moedas que conseguira recolher. O que, em terceiro lugar, caracteriza o gênio, na medida em que possui um caráter natural, é a facilidade da produção interior e o engenho técnico exterior de que dá provas em algumas artes. Quando se trata, por exemplo, de um poeta, fala-se muito das dificuldades da métrica e da rima, e quando se trata de um pintor são lembrados os obstáculos que o desenho, o domínio das cores, a sombra e a luz levantam à invenção e à execução. Todavia, qualquer que ela seja, a arte exige sempre, e em todos os casos, longos estudos, constante aplicação, muito grande saber; mas quanto mais ricos e vastos forem o talento e o gênio, menos esforços se terão de fazer para adquirir a facilidade de que a produção carece. O verdadeiro pintor é impelido por uma natural tendência e por uma exigência direta a dar forma e cor a tudo quanto sente e lhe surge na representação. É a sua maneira de sentir e de conceber que sem esforço encontra dentro de si, como se se tratasse de um órgão que utilizasse para se exprimir. Um músico, por exemplo, só pode exprimir em melodias o que se move nas profundidades da sua alma; tudo quanto sente torna-se-lhe logo melodia. Com o pintor, tudo se torna forma e cor, e o poeta exprime as suas representações em harmoniosas palavras e combinações de palavras. Não se trata apenas de uma representação teórica, de uma maneira de imaginar e sentir, mas de um sentimento ou disposição puramente práticos, dê um dom de execução real. No verdadeiro artista, há a coexistência daquela representação teórica e deste dom de execução real. O que agita na sua fantasia passa-lhe aos dedos, como nós enunciamos com a boca aquilo que pensamos, ou como os nossos mais íntimos pensamentos, representações e sentimentos se manifestam diretamente nas nossas atitudes e gestos. Depressa o verdadeiro gênio se torna mestre da técnica exterior da sua arte e aprende a dominar os materiais mais pobres e aparentemente mais impróprios para encarnar e representar as criações íntimas da fantasia. Este domínio exige, decerto, um prolongado exercício, mas o dom de execução direta deverá ser inato, pois uma simples facilidade adquirida pelo exercício jamais permitirá realizar uma obra de arte autêntica. Os dois aspectos, o da produção interna e o da sua realização, são, de acordo com o conceito de arte, inseparáveis. c) A inspiração A atividade da fantasia e a correspondente exigência de execução técnica, consideradas como um estado de alma do artista, constituem aquilo a que geralmente se chama inspiração. A pergunta que desde logo se formula é a de saber como se produz a inspiração. A esta pergunta têm sido dadas variadas respostas. Em primeiro lugar, considerando os estreitos laços que prendem o artista ao que provém do espírito e ao que à natureza pertence, julgou-se que a inspiração seria principalmente motivada por estímulos sensíveis. Mas o sangue quente não faz o artista e, por si só, o champanha não chega para provocar a produção de uma obra de arte. Não nos diz Marmontel que, com as seis mil garrafas que guardava na sua cave, jamais sentiu a inspiração poética? Do mesmo modo, poderá o mais belo artista estender-se de madrugada e ao anoitecer sobre a erva verde, gozar o fresco sopro da brisa e contemplar o céu, que isso não lhe trará a doce inspiração. Se a não trazem os estímulos sensíveis, também não é a deliberada intenção de criar que concitará a inspiração. Aquele que apenas aguarda a inspiração para escrever uma poesia, para pintar um quadro ou para compor uma melodia, e, sem sentir em si o estímulo autêntico de um conteúdo, o procura aqui e além, esse será incapaz, por maior talento que possua, de alguma vez apreender uma bela concepção ou de realizar uma obra perfeita. Nem o estímulo sensível, nem a vontade e a decisão, são por si sós geradores da verdadeira inspiração, e os que recorrem a esses meios só mostram com isso que na sua alma e na sua fantasia não existe nenhum interesse autêntico. Pelo contrário, quando o artista obedece a uma tendência profunda que o obriga, contra todas as vontades, a exteriorizar-se e a exprimir-se, é porque já ligou o seu interesse a um objeto e a um conteúdo determinados e deles se não pode separar. A verdadeira inspiração é a que é provocada por um conteúdo determinado que a fantasia apreende para lhe dar expressão artística. Confunde-se ela com aquele trabalho ativo de formação que se liga, por um lado, à intimidade subjetiva e, por outro lado, à execução objetiva. A inspiração é, com efeito, necessária a estas duas atividades. E pergunta-se, então, como é que um assunto se dá ao artista e lhe incendeia a inspiração. Também sobre isto as opiniões se dividem. Por um lado, afirma-se que o artista deve encontrar em si mesmo os seus assuntos. É esse, rigorosamente, o caso do poeta "que canta como as aves nas ramagens". Seu alegre descuido oferece-se-lhe como um conteúdo interior que, exteriorizado, goza. Então, "o canto que lhe sai do peito é a sua generosa recompensa". Por outro lado, verifica-se que as grandes obras artísticas foram produzidas por motivos exteriores. Muitas das obras de Píndaro foram escritas por encomenda; muitos planos de edifícios e assuntos de quadros foram impostos aos artistas que, no entanto, não deixaram de os executar com o entusiasmo da inspiração. Mais do que isso: muitas vezes os artistas se queixam de que lhes faltam assuntos. Estes estímulos exteriores da produção constituem aquele elemento natural e imediato que entra na composição do talento e constitui, por assim dizer, a anunciação da inspiração. A atitude do artista é, então, a de um talento natural que se encontra em face de um assunto que existe já; um acontecimento exterior, uma ocasião oportuna - a leitura de lendas, de contos, de baladas, de crônicas (como no caso de Shakespeare) -, incitam-no a desenvolvê-lo e a servir-se dele para se exprimir. Do exterior apenas pode, pois, provir o estímulo da produção, e aquilo que ao artista cumpre dar, como única condição importante, é um interesse essencial, vivendo, dentro de si, o assunto. É então que surge a inspiração do gênio; e o artista verdadeiro e autêntico acha, na mesma vida que o anima, os estímulos de atividade e as fontes de inspiração diante dos quais os outros passam sem se aperceberem. Se nos perguntarmos agora em que consiste a inspiração artística como tal, será a seguinte a única resposta possível: consiste em estar obsediado pela coisa, em a ter sempre presente, em não encontrar repouso enquanto lhe não der uma forma estética e perfeita. Ora, quando o artista assim estiver identificado com o objeto, deverá ter a sabedoria de esquecer a sua particularidade subjetiva, com tudo o que ela tem de contingente e acidental, para se embeber inteiramente do seu assunto; deve ser, por assim dizer, a forma que enforma o conteúdo de que o artista está possesso. Má inspiração é a inspiração que dá ao artista a liberdade de se lhe impor e se fazer valer, em vez de ser o órgão da atividade criadora que se concentra sobre a coisa. Isto nos obriga a falar da objetividade nas criações artísticas. 2. A OBJETIVIDADE DA REPRESENTAÇÃO a) No sentido vulgar da palavra, consiste a objetividade de uma obra de arte em que o conteúdo desta reverte a forma de uma realidade objetiva já existente e se nos apresenta, assim, com um aspecto exterior já conhecido. Se nos satisfizéssemos com tal objetividade, teríamos de considerar objetivos poetas como Kotzebue. A todo o momento nele encontramos, com efeito, a realidade vulgar. Ora, o fim da arte consiste, precisamente, em tornar tão pouco perceptível quanto possível o conteúdo da vida cotidiana e o modo como ele se manifesta, em empregar a atividade criadora do espírito, em libertar o aspecto racional das coisas para as apresentar numa forma exterior que exprima a sua íntima verdade. Entendida daquela maneira, a objetividade tem uma vida própria e pode até, como o mostramos com alguns exemplos das obras de juventude de Goethe, exercer por vezes um poder atraente, graças àquela vida interior que a anima. Mas sempre falta a estas obras, para alcançarem a verdadeira beleza, um conteúdo substancial. Por isso, enquanto não estiver de posse deste conteúdo, o artista não deve procurar a objetividade puramente exterior. b) Outro gênero de objetividade consiste no seguinte: o artista, em vez de reproduzir o exterior vulgar e prosaico, apreende o seu assunto até se identificar com ele na profundidade da sua alma. Mas o assunto permanece encerrado nessa profundidade, num estado, por assim dizer, de concentração, sem conseguir chegar à claridade da consciência e proceder ao necessário desenvolvimento. Por isso, o páthos limita-se, para se exprimir, a manifestações exteriores que são simples alusões ao que o artista sente, simples esboços do conteúdo que o artista traz em si, sem a força nem a possibilidade de plenamente o exteriorizar. As canções populares são produções que pertencem a este gênero de objetividade. Ao ouvi-las, ou lendo-as, bem nos damos conta de que elas exprimem exteriormente um sentimento, mais profundo e mais íntimo do que aquilo que aparece, mas tal sentimento não se revela completamente porque a arte ainda não atingiu o grau de perfeição que lhe permita exprimir aberta e claramente o seu conteúdo, e tem de se limitar a simples alusões. É como se o coração estivesse apertado e constrangido, e procurasse, para a si próprio se compreender, o seu reflexo no espelho das circunstâncias e manifestações puramente exteriores que podem, aliás, ser demonstrativas, desde que se ponha, no modo de as utilizar, uma certa sensibilidade e se saiba introduzir nelas um pouco de alma. Foi também Goethe quem se assinalou neste gênero com Lieder perfeitos, como, por exemplo, o belo poema A Mágoa do Pastor. O coração partido de dor e de tristeza fica mudo e silencioso e só se exprime por sinais exteriores; mas conseguem estes mostrar-nos toda a profundidade do sentimento, embora se ache num extremo estado de concentração. O mesmo tom encontramos em O Rei dos Álamos e em muitas outras poesias de Goethe. Pode, porém, este tom degradar-se e levar a um estado de obtusa insensibilidade, impeditivo de a consciência atingir aquilo que há de essencial numa coisa ou numa situação, limitando-se a aproximações prosaicas, umas vezes grosseiras, outras vezes absurdas. A este gênero pertencem expressões como as que se encontram em Des Knabens Wunderhorn: "Oh! Potência, alta casa!" e "Adeus, senhor caporal" que foram, no entanto, consideradas comovedoras. Pelo contrário, quando Goethe canta: "As flores que colhi mil vezes te saúdam. Quantas vezes me inclinei, E as apertei contra o coração. Oh! Quantas vezes mil vezes!" o sentimento íntimo exprime-se de um modo que nada tem de trivial nem grosseiro. O que, em geral falta à objetividade deste gênero é a expressão nítida e real do sentimento que, em vez de ficar encerrado numa profundidade inacessível e só se manifestar por ligeiras alusões, na verdadeira arte deve exteriorizar-se tal qual, em toda a sua plenitude, impregnar do princípio ao fim a matéria em que encarna. Schiller, por exemplo, punha no seu páthos toda a sua alma, uma grande alma que se identificava com a essência das coisas e que sabia exprimir a riqueza escondida nas suas profundidades, da maneira mais livre, mais brilhante e mais harmoniosa. c) Temos, agora, de considerar o conceito do ideal, e, colocando-nos no ponto de vista da expressão subjetiva, podemos definir a verdadeira objetividade do seguinte modo. De quanto forma o verdadeiro conteúdo, o conteúdo ideal do objeto que inspira o artista, nada se deve obliterar e tudo se deve manifestar e desenvolver para que a alma e a substância do objeto escolhido apareçam com a maior nitidez e para que a sua representação individual obtenha uma perfeição completa toda ela imbuída da sua alma e substância. O sublime e o mais perfeito não é, com efeito, o inefável. Se o fosse, abrir-se-ia a suposição de que o poeta ou artista ainda seria mais profundo do que o revelam as suas obras. Ora, o artista e o poeta procedem de tal sorte que as obras que nos apresentam são as melhores que nos poderiam oferecer, pois elas são verdadeiramente aquilo que mostram e não o que jaz sem expressão na profundidade do seu espírito e da sua alma. 3. A MANEIRA. O ESTILO. A ORIGINALIDADE Se assim deve ser, na verdade, a objetividade de um artista, conclui-se que a representação é o produto da sua inspiração, pois, como sujeito, ele identifica-se com o objeto, e é da sua alma, da sua fantasia, da sua vida interior, em suma, que extrai os elementos para a sua encarnação numa obra de arte. Esta identificação da subjetividade do artista e da objetividade da representação constitui o terceiro aspecto que importa agora examinar, pois nele se acham reunidos o gênio e a objetividade que até aqui temos considerado separadamente. Podemos dizer que esta unidade constitui o conceito da verdadeira originalidade. Antes de procurarmos determinar o conteúdo deste conceito, temos de nos ocupar de dois pontos cujo unilateral caráter constitui obstáculo que se opõe à originalidade e que, por isso, é preciso afastar. São eles a maneira subjetiva e o estilo. a) A maneira subjetiva Deve começar-se por distinguir claramente a maneira da originalidade. A maneira provém das qualidades particulares, portanto acidentais do artista, mas embora assim não tenha a sua razão de ser na coisa e na sua representação ideal, não deixa todavia de se manifestar e impor na produção da obra de arte. Assim entendida, a maneira não é uma característica das variedades da arte em gêneros que exprimem, singularmente, um modo próprio de representação, como acontece, por exemplo, com o pintor paisagístico que concebe os objetos de um modo diferente do pintor de assuntos históricos, ou como o poeta épico que vê e exprime as coisas numa forma que não é a do poeta lírico ou dramático. A maneira é uma forma especial de conceber, própria de um sujeito dado, e um modo de execução devido a uma idiossincrasia pessoal, forma de conceber e modo de execução que, se forem levados demasiado longe, podem apresentar-se em oposição direta ao conceito do ideal. Considerada deste ponto de vista, a maneira é o que há de pior num artista que, em vez de se entregar ao poder da arte e o deixar livremente agir em si, o faz reverter para a sua própria subjetividade com tudo o que esta tem de contingente e acidental. Ora, a arte, que suprime a pura e simples acidentalidade do conteúdo e da sua manifestação exterior, não pode deixar de exigir que o artista, por sua vez, apague as particularidades acidentais da sua personalidade subjetiva. Não é, pois, em face da verdadeira representação artística que a maneira se acha em oposição direta; escolhe ela para seu campo de expansão os aspectos exteriores da obra de arte e aí grava as particularidades do modo de representação subjetivo. Esta imposição da maneira é muito frequente em pintura e em música, pois são estas as artes que oferecem, à concepção e à execução, mais vastas possibilidades e mais meios exteriores. Uma forma particular, própria de certo pintor, dos seus epígonos e alunos e que, à força de repetição, se torna um hábito, constitui uma imposição de maneira que se pode considerar de um duplo ponto de vista. Temos, em primeiro lugar, o da concepção. A tonalidade da atmosfera, a folhagem, a distribuição da luz e da sombra, a geral coloração, oferecem, na pintura, uma variedade infinita. Na coloração e na iluminação, sobretudo, é onde se encontram as maiores diferenças entre os pintores; o mesmo acontece com o modo de conceber. Pode, por vezes, tratar-se de uma cor que não captamos na natureza porque distraímos a nossa atenção em outras coisas. No entanto, impressionou ela certo artista que a fez, por assim dizer, sua e criou o hábito de dá-la a tudo o que pinta. Isto que pode acontecer com a cor também se aplica aos objetos, à forma de reuni-los, à posição deles, movimentos, caráter etc. São, sobretudo, os holandeses que nos oferecem exemplos mais significativos; basta lembrar a maneira como Van der Meer pinta as paisagens ao luar; a presença das dunas de areia em muitas paisagens de Goyen; a função que têm o cetim e outros tecidos de seda em muitos quadros de outros mestres etc. A maneira pode alargar-se à execução, ao traço do pincel, à sobreposição e fusão das cores etc. À medida que este modo específico de concepção e de execução se vai tornando, através da incessante repetição, um hábito, uma segunda natureza, vai-se vendo a maneira degenerar, tanto mais facilmente quanto mais característica for, numa repetição e fabricação automáticas em que o artista não participa com todo o seu espírito e toda a sua inspiração. A arte cai, então, numa simples profissão, numa simples habilidade, e a maneira, que em princípio se não poderia condenar, torna-se algo de enfadonho, frio e inanimado. Por tais motivos, deve a autêntica maneira evitar essa particularidade limitada, adquirindo um caráter tal que, em vez de ser um simples hábito, não impeça o artista de ver, através dos modos especiais da representação, a própria natureza do que tem de representar, permanecendo fiel ao conceito dela. É neste sentido que se pode dizer que Goethe utiliza, ao terminar não apenas as poesias de sociedade mas também outras de um caráter sério e grave, uma maneira destinada, para umas, a atenuar o seu caráter de gravidade, para outras, a colocar o leitor numa disposição mais séria. Também Horácio utiliza esta maneira nas suas epístolas. Trata-se de um processo de conversar e de uma conveniência social que se não deve levar demasiado longe para que possam, de novo, emergir os aspectos profundos e sérios que aparecerão, então, com maior relevo. Este processo constitui, decerto, uma maneira que faz parte da subjetividade da representação, mas de uma subjetividade mais geral, que não vai além do que é estritamente necessário à realização que se tem em vista. Depois de havermos assim definido a maneira, podemos passar a considerar o estilo. b) O estilo Uma frase francesa muito conhecida diz que "le style, c'est l'homme", Segundo esta definição, o estilo seria, pois, aquilo em que se revela a personalidade do sujeito que se manifestaria, assim, na maneira de se exprimir, no jeito da frase etc. VonRumohr, ao contrário, afirma (Italienische Forschungen) que a palavra estilo significa "uma adaptação, que se torna um hábito, às exigências internas da matéria em que o escultor esculpe as estátuas, com que o pintor compõe as suas formas", e formula, a propósito, observações extremamente importantes sobre os modos de execução que certos materiais, utilizados pela escultura, permitem ou impedem. No entanto, não se deve limitar a palavra estilo apenas a este elemento sensível e antes se pode alargá-la às determinações e leis da representação artística próprias da natureza da arte a que pertence o objeto representado. E assim que, na música, por exemplo, se distingue a música sacra da música de ópera etc. O estilo refere-se, pois, a um modo de execução que toma em conta as condições dos materiais empregados, bem como às exigências de concepção e execução de cada arte e às leis que provêm do próprio conceito da coisa. Empregando a palavra no seu sentido mais amplo, dir-se-á que a ausência de estilo será resultado ou da impotência em que o artista se encontre de se familiarizar com tal modo de representação necessário em si, ou de uma arbitrariedade subjetiva que, em vez de obedecer às leis, dá livre curso ao capricho e acaba por adotar uma maneira inferior. Von Rumohr tem, pois, razão quando diz que se não devem alargar as leis do estilo de certa arte às outras artes, como o fez, por exemplo, Mengs na célebre A Assembleia das Musas, da vila Albani, em que "concebeu e executou as formas coloridas de Apolo aplicando-lhes um princípio que pertence à escultura". Com o mesmo deparamos nos quadros de Durer: tão bem ele dominava o estilo da gravura em madeira que até o empregava nos seus quadros, especialmente na pintura das rugas. c) A originalidade Não consiste a originalidade na observância das leis do estilo, mas na inspiração subjetiva que, em vez de se formar de certa maneira para sempre utilizada, escolhe um assunto racional em si mesmo e o desenvolve escutando apenas a voz da subjetividade artística, assim obedecendo, de igual modo, à natureza e conceito desta ou daquela arte particular e ao conceito geral do ideal. Daí resulta confundir-se a originalidade com a verdadeira objetividade; reúne ela os aspectos subjetivo e objetivo da representação, de sorte que não há nenhum elemento que seja estranho a qualquer outro. Por outro lado, exprime ela o que de mais espontâneo existe no artista e, além disso, nada exprime que não esteja na própria natureza do objeto; assim, a originalidade do artista aparece como sendo a do próprio objeto, e ela tanto pertence, com efeito, ao objeto como à atividade criadora do sujeito. Nada a originalidade tem, pois, de comum com a arbitrariedade e a subjetividade de meros achados, de quaisquer ideias que ocorram. Entende-se, geralmente, por originalidade a posse de certas singularidades de comportamento próprias a um determinado sujeito e que em nenhum outro se encontram. E essa uma péssima originalidade. Não há, neste sentido, povo mais original do que o inglês, pois cada inglês tem a sua mania que nenhum homem sensato gostará de imitar, e é impondo essa mania que pretende ser original. A esta se liga outra originalidade, particularmente dominante nos nossos dias, que consiste em ter espírito e humor. O artista que utilize este gênero de humor parte sempre da sua própria subjetividade para sempre a ela voltar de novo, e assim o objeto da representação propriamente dito apenas serve de pretexto para o artista manifestar a sua verve, expandir-se em saídas, gracejos, palavras espirituosas e rever-se nos saltos da sua caprichosa fantasia. Mas dá-se, neste caso, uma separação entre o objeto e o artista: o objeto é tratado arbitrariamente porque o artista tem de manifestar, antes de tudo, a sua originalidade. Poderá, este humor, ter muito espírito e profundo sentimento, chega, geralmente, a produzir até uma forte impressão, mas, no fundo, é muito mais ligeiro e superficial do que se julga. É que interromper a todo instante o decorrer lógico das coisas, começar, continuar e acabar ao sabor das variações caprichosas do humor, entregar-se a um fogo de artifício de ironias e sentimentos e assim produzir caricaturas da imaginação - tudo isso é um esforço muito mais fácil do que o de desenvolver e dar uma forma perfeita a um conjunto, no signo do verdadeiro ideal. O humor, nos nossos dias, compraz-se em acentuar os aspectos desagradáveis de um talento impertinente e facilmente cai na sensaboria e no absurdo. O verdadeiro humor é muito raro; hoje, porém, passam por engenhosas e profundas as trivialidades mais enfadonhas, por diminuto que seja o aspecto exterior e as pretensões que tenham ao humor. Até em Shakespeare, cujo humor, no entanto, é grande e profundo, se encontram muitas sensaborias. E o humor de Jean-Paul, se por um lado nos impressiona com a profundidade dos paradoxos e a beleza dos sentimentos, não deixa, por outro lado, de nos decepcionar com as rebuscadas associações que estabelece entre objetos que nada têm de comum e cujas relações, fabricadas pelo humor, nos escapam completamente. Nem o maior humorista se lembra das razões que o levaram a estabelecer tais relações e, por isso, ao examinarmos as associações de Jean-Paul, vemos bem que elas não foram criadas pela força do gênio e são puramente extrínsecas. Por isso ele se viu obrigado, para dispor de materiais sempre novos, a percorrer livros dos mais variados assuntos, de Direito, de Botânica, de viagens, de Filosofia etc., anotando o que mais o impressiona no decurso de tais leituras e acrescentando às notas as ideias que nesse momento lhe ocorriam; assim, ao chegar a hora da invenção, não hesitava em associar as coisas mais heterogêneas, como, por exemplo, a flora do Brasil com o antigo tribunal do Império. Isso era o que mais particularmente se aplaudia, como prova de originalidade ou, então, o que se desculpava dizendo que o humor autoriza tudo. Ora, a verdadeira originalidade é incompatível com semelhante arbitrariedade. É esta a ocasião de lembrar o que dissemos sobre a ironia. Segundo os seus admiradores, a ironia possui o mais alto grau de originalidade por isso mesmo de a nada atribuir seriedade e de gracejar pelo gosto de gracejar. Por outro lado, reúne ela, nas suas representações, uma infinidade de minúcias cujo profundo sentido o poeta não exprime e oculta. A habilidade reside, precisamente, em declarar que essa mistura de pormenores constitui a poesia da poesia, visto que o que haja de mais profundo e perfeito permanece oculto, sem que possa ser expresso em virtude da sua imensa profundeza. Foi assim que, por exemplo, nas poesias de Frederico SchlegeI, feitas no tempo em que ele se julgava um poeta, era o que ele não disse que, precisamente, se considerava o melhor, coisa que não evitou, no entanto, que esta poesia da poesia se revelasse como a mais enfadonha das prosas. A verdadeira obra de arte deve, pois, estar depurada da falsa originalidade. A originalidade revela-se em ser a obra de arte criação própria de um espírito que não procura os elementos da sua obra no exterior para depois os reunir de qualquer modo, mas que, por assim dizer, elabora de um só jato, e num só tom, um conjunto cujos elementos realizaram a sua inteira fusão nas profundidades do eu criador. Se, pelo contrário, as cenas e os motivos se reúnem, não por virtude de uma interior afinidade, mas por impulso exterior, isso só mostra que não existe uma Íntima necessidade que justifique a sua união e que eles se acham ligados uns aos outros de um modo acidental e por uma subjetividade estranha. O Goetz, de Goethe, por exemplo, foi particularmente admirado devido à sua originalidade e, como já lembramos, o próprio Goethe nesta obra calcou aos pés todas as leis artísticas formuladas pelas teorias estéticas então dominantes; todavia, à realização desta obra falta a verdadeira originalidade. Caracteriza-a a ausência de elementos pessoais. Cenas inteiras e muitos dos aspectos, em vez de serem produto da elaboração espontânea e livre, trazem marcados os interesses da época em que a obra foi escrita e estão ligados entre si por laços puramente exteriores. A cena, por exemplo, que põe Goetz em presença de Frei Martinho, que se considera representar Lutero, só contém ideias que Goethe recebeu da sua época, quando na Alemanha de novo recomeçaram as queixas contra os frades, acusados de se embriagarem, de terem digestões que os mergulhavam na sonolência, de cederem às tentações, de renunciarem aos insuportáveis votos de pobreza, castidade e humildade. Por outro lado, a vida cavaleiresca de Goetz e a narrativa das suas aventuras entusiasmam Frei Martinho. Ora, não foi com ideias tão profanas que Lutero iniciou a sua campanha; antes, monge piedoso, de Santo Agostinho recebeu profundas concepções e convicções religiosas. Do mesmo modo se encontram, noutras cenas, alusões às teorias pedagógicas da época, sobretudo às de Basedow e seus discípulos. Segundo estas teorias, ensinam-se às crianças muitas matérias que elas eram incapazes de compreender, e o verdadeiro método consistiria em ensinar-lhes coisas reais mediante a observação e a experiência. Karl, por exemplo, recita de cor, como se fazia no tempo da juventude de Goethe: "Jaxthausen é uma aldeia e um castelo, situada junto do Jaxt, que há duzentos anos pertence, como propriedade inalienável e hereditária, aos senhores de Berlichingen". E quando Goetz lhe pergunta: "Conheces o senhor de Berlichingen?", o rapaz olha-o desnorteado, sem saber que responder, pois a sua ciência era tal que não conhecia o próprio pai. Goetz assevera, então, que conhecia todos os atalhos, caminhos e passagens antes de saber os nomes da aldeia, do rio e da vila. A obra está assim sobrecarregada de intermédios sem relação com o assunto propriamente dito; e quando este devia ser expresso com toda a profundidade necessária, como por exemplo no diálogo entre Goetz e Weisslingen, deparamos com reflexões frias e prosaicas sobre os acontecimentos da época. Sobreposição análoga de assuntos isolados sem relação com o conteúdo, encontramo-la até nas "Afinidades Eletivas"; assim acontece com a descrição dos parques, os quadros vivos, as oscilações pendulares, a sensibilidade para os metais, as dores de cabeça e todo o quadro das afinidades que pertencem à Química. Num romance em que a ação decorre numa época prosaica, é decerto permitido proceder assim, sobretudo quando se procede com a habilidade e a elegância de Goethe. Mas não esqueçamos que, se uma obra de arte não pode alhear-se completamente das tendências e da cultura do seu tempo, refletir esta civilização é uma coisa, e procurar e reunir materiais colhidos no que é extrínseco, sem relações com o conteúdo propriamente dito da representação, é outra. A verdadeira originalidade do artista, e da obra de arte, consiste na racionalidade do conteúdo verdadeiro em si próprio, racionalidade que tanto anima o artista como a sua obra. Quando o artista faz sua esta razão objetiva, sem a alterar com a mistura de elementos alheios, de proveniência interior ou exterior, só então exprime no objeto representado a sua mais autêntica subjetividade, que é onde se elabora e realiza a obra. Em todo o pensamento e em todo o ato conformes com a verdade, a verdadeira liberdade consiste em permitir que o que há de substancial se afirme como um poder em si que não tarda, aliás, em tornar-se o poder próprio do pensamento e da vontade subjetivos com os quais se vem a confundir para formar uma unidade. Assim, a originalidade da arte nutre-se de todas as particularidades que se lhe oferecem, mas só as absorve para que o artista possa obedecer ao impulso do seu gênio inspirado pela concepção da obra a realizar, e, em vez de seguir os caprichos e os interesses de momento, encarnar o seu verdadeiro eu na obra realizada segundo a verdade. Não possuir maneira própria foi sempre a única grande maneira e foi porque assim procederam que Homero, Sófocles, Rafael, Shakespeare, podem ser considerados como originais.