Immanuel Kant – Crítica da Razão Pura Professor em Kõnigsberg, Membro da Academia Real das Ciências de Berlim Segunda edição revista e melhorada, 1787. BACO DE VERULAMIO, Instauratio magna. Praefatio. De nobis ipsis silemus: De re autem, quae agitur, petimus: ut homines eam non Opinionem, sed Opus esse cogitent; ac pro certo habeant, non sectae nos alicuius, aut Placiti, sed utilitatis et amplitudinis humanae fundamenta moliri. Deinde ut suis commodis aequi... in commune consulant... et ipsi in partem veniant. Praeterea ut bene sperent, neque Instaurationem nostram ut quiddam infinitum et ultra mortale fingant, et animo concipiant; quum revera sit infiniti erroris finis et terminus legiiimus. À SUA EXCELÊNCIA O SENHOR MINISTRO REAL DE ESTADO BARÃO DE ZEDLITZ Excelentíssimo senhor, Trazer a sua contribuição ao crescimento das ciências significa trabalhar no próprio interesse de Vossa Excelência; pois ambas as coisas acham-se estreitamente ligadas, não somente pelas eminentes funções de um protetor, mas também pela relação muito mais íntima de um amante e de um conhecedor esclarecido. Por isso, sirvo-me também do único meio de certo modo em meu poder para demonstrar a minha gratidão pela benévola confiança com que Vossa Excelência me honra, como se eu possa contribuir com algo para esse propósito. À mesma benigna atenção com que Vossa Excelência honrou a primeira edição desta obra, dedico agora também esta segunda e com ela ao mesmo tempo tudo o mais que se refere à minha missão literária, e sou com o mais profundo respeito de Vossa Excelência o mais humilde e obediente servidor Immanuel Kant. Kõnigsberg, 23 de abril de 1787. ÍNDICE PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO Introdução I - Da distinção entre conhecimento puro e empírico II - Somos possuidores de certos conhecimentos a priori e mesmo o entendimento comum jamais está desprovido deles III - A filosofia precisa de uma ciência que determine a possibilidade, os princípios e o âmbito de todos os conhecimentos a priori IV - Da distinção entre juízos analíticos e sintéticos V - Em todas as ciências teóricas da razão estão contidos, como princípios, juízos sintéticos a priori VI - Problema geral da razão pura VII - Ideia e divisão de uma ciência especial sob o nome de uma Crítica da razão pura I - DOUTRINA TRANSCENDENTAL DOS ELEMENTOS PARTE PRIMEIRA. Estética transcendental Conclusão da estética transcendental PARTE SEGUNDA. Lógica Transcendental Introdução. Ideia de uma lógica transcendental I - Da lógica em geral II. Da lógica transcendental III. Da divisão da lógica geral em analítica e dialética IV. Da divisão da lógica transcendental em analítica transcendental e dialética transcendental Divisão Primeira. Analítica transcendental LIVRO PRIMEIRO. Analítica dos conceitos CAP. I. Do fio condutor para a descoberta de todos os conceitos puros do entendimento CAP. II. Da dedução dos conceitos puros do entendimento Conceito sumário desta dedução LIVRO SEGUNDO. Analítica dos princípios Introdução. Da capacidade transcendental de julgar em geral CAP. I. Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento CAP. II. Sistema de todos os princípios do entendimento puro Nota geral acerca do sistema dos princípios CAP. III. Do fundamento da distinção de todos os objetos em geral em phaenomena e noumena Nota à anfibologia dos conceitos de reflexão Divisão Segunda Introdução I. Da ilusão transcendental II. Da razão pura como sede da ilusão transcendental Da razão em geral Do uso lógico da razão Do uso puro da razão LIVRO PRIMEIRO. Dos conceitos da razão pura LIVRO SEGUNDO. Das inferências dialéticas da razão pura CAP. I. Dos paralogismos da razão pura CAP. II. A antinomia da razão pura Nota final a toda a antinomia da razão pura CAP. III. O ideal da razão pura II. DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO CAP. I. A disciplina da razão pura CAP. II. O cânone da razão pura CAP. III. A arquitetônica da razão pura CAP. IV. A história da razão pura PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO Se a elaboração dos conhecimentos pertencentes ao domínio da razão segue ou não o caminho seguro de uma ciência, isso deixa-se julgar logo a partir do resultado. Quando após muito preparar-se e equipar-se esta elaboração cai em dificuldades tão logo se acerca do seu fim ou se, para alcançá-lo, precisa frequentemente voltar atrás e tomar outro caminho; quando se torna igualmente impossível aos diversos colaboradores porem-se de acordo sobre a maneira como o objetivo comum deve ser perseguido: então se pode estar sempre convicto de que tal estudo acha-se ainda bem longe de ter tomado o caminho seguro de uma ciência, constituindo-se antes um simples tatear; e já é um mérito para a razão descobrir porventura tal caminho, mesmo que se tenha que abandonar como vã muita coisa contida no fim anteriormente proposto sem reflexão. Que a Lógica tenha seguido desde os tempos mais remotos esse caminho seguro depreende-se do fato de não ter podido desde Aristóteles dar nenhum passo atrás, desde que não se considere melhorias a supressão de algumas sutilezas dispensáveis ou a determinação mais clara do exposto o que pertence mais à elegância do que à segurança da ciência. É ainda digno de nota que também ela até agora não tenha podido dar nenhum passo adiante, parecendo, portanto, ao que tudo indica, completa e acabada. Pois quando alguns modernos pensavam ampliá-la, interpolando capítulos seja psicológicos sobre as diversas capacidades de conhecimento (a imaginação, o sentido de humor), seja metafísicos sobre a origem do conhecimento ou sobre os vários modos de certeza conforme a diversidade dos objetos (sobre o idealismo, o ceticismo etc.), seja antropológicos sobre preconceitos (suas causas e seus antídotos), provém da sua ignorância peculiar desta ciência. Não é aumento e sim desfiguração das ciências confundir os limites das mesmas; o limite da Lógica, porém, acha-se determinado bem precisamente por ser uma ciência que expõe detalhadamente e prova rigorosamente nada mais que as regras formais de todo pensamento (seja a priori ou empírico, tenha uma origem ou objeto que quiser, encontre em nossa mente obstáculos acidentais ou naturais). A Lógica deve a vantagem de seu sucesso simplesmente à sua limitação, pela qual está autorizada e mesmo obrigada a abstrair de todos os objetos do conhecimento bem como das suas diferenças, de modo a que nela o entendimento tem que lidar apenas consigo mesmo e com sua forma. Para a razão tinha naturalmente que ser muito mais difícil encetar o caminho seguro da ciência, quando ela precisa ocupar-se não somente consigo mesma, mas também com objetos, por isso, também como propedêutica a Lógica constitui apenas uma espécie de vestíbulo das ciências e, quando fala de conhecimentos, pressupõe-se uma Lógica para julgá-los, mas se tem que procurar adquirir os mesmos nas próprias e objetivamente assim chamadas ciências. Na medida em deve haver razão nas ciências, algo tem de ser conhecido nelas a priori, e o conhecimento da razão pode ser referido de dois modos ao seu objeto: ou meramente para determinar este e seu conceito (que precisa ser dado alhures) ou também para torná-lo real. O primeiro é conhecimento teórico, o outro, conhecimento prático da razão. Não importa quão grande ou pequeno seja o seu conteúdo, a parte pura de ambos, ou seja, aquela em que a razão determina o seu objeto de modo completamente a priori, tem de ser exposta antes sozinha, e aquela que provém de outras fontes não tem que ser mesclada com ela; pois constitui péssima economia gastar cegamente todos os ganhos sem poder distinguir depois, quando ela emperra, qual parte dos rendimentos pode arcar com a despesa e de qual parte tem de cortá-la. Matemática e Física são os dois conhecimentos teóricos da razão que devem determinar os seus objetos a priori, a primeira de modo inteiramente puro, a segunda de modo pelo menos em parte puro, mas tomando ainda como medida outras fontes de conhecimento que não as da razão. A Matemática desde os tempos mais remotos alcançados pela história da razão humana, já com o admirável povo grego, encetou o caminho seguro de uma ciência. Só não se deve pensar que lhe tenha sido tão fácil como à Lógica na qual a razão só se ocupa consigo mesma, encontrar esse caminho imperial ou, mais ainda, traçá-lo para si mesma; muito antes, creio que tenha permanecido por longo tempo (sobretudo entre os egípcios) no tatear, e que essa transformação se deva atribuir a uma revolução, que o lampejo feliz de um único homem realizou, numa tentativa a partir da qual não se podia mais errar a trilha que se tinha de seguir, e assim o caminho seguro de uma ciência estava encetado e traçado para todos os tempos e distâncias infinitas. A história desta revolução na maneira de pensar, aliás muito mais importante do que a descoberta do caminho do famoso Cabo [da Boa Esperança], bem como a da feliz pessoa que a levou a efeito, não chegou até nós. Não obstante, a lenda transmitida a nós por Diógenes Laércio - que nomeia o suposto inventor dos elementos mínimos das demonstrações geométricas, os quais não precisam de nenhuma prova segundo o juízo comum - prova que a lembrança da transformação produzida pelo primeiro passo no descobrimento deste novo caminho tenha parecido extremamente importante aos matemáticos e se tenha tornado por isso inesquecível. Ao primeiro a demonstrar o triângulo equilátero (tenha-se chamado Tales ou como se queira) acendeu-se uma luz, pois achou que não tinha de rastrear o que via na figura ou o simples conceito da mesma e como que aprender disso suas propriedades, mas que tinha de produzir (por construção) o que segundo conceitos ele mesmo introduziu pensando e se apresentou a priori e que, para saber de modo seguro algo a priori, não precisava acrescentar nada à coisa a não ser o que ressaltava necessariamente daquilo que ele mesmo havia posto nela conforme o seu conceito. A Ciência da Natureza procedeu muito mais lentamente até encontrar o largo caminho da ciência, pois faz apenas um século e meio que a proposta do engenhoso Bacon de Verulamo em parte ensejou esta descoberta e em parte a ativou, uma vez que já se andava em seu encalço, e que igualmente só pode ser explicada por uma revolução da maneira de pensar que a precedeu subitamente. Não pretendo considerar aqui senão a Ciência da Natureza, na medida em que está fundada sobre princípios empíricos. Quando Galileu deixou as suas esferas rolar sobre o plano inclinado com um peso por ele mesmo escolhido, ou quando Torricelli deixou o ar carregar um peso de antemão pensado como igualo de uma coluna de água conhecida por ele, ou quando ainda mais tarde Stahal transformou metais em cal e esta de novo em metal retirando-lhes ou restituindo-lhes algo: (Não sigo aqui exatamente o fio da história do método experimental, cujos primórdios também não são bem conhecidos. Nota do Autor) assim acendeu-se uma luz para todos os pesquisadores da natureza. Compreenderam que a razão só discerne o que ela mesmo produz segundo seu projeto, que ela tem de ir à frente com princípios dos seus juízos segundo leis constantes e obrigar a natureza a responder às suas perguntas, mas sem ter de deixar-se conduzir somente por ela como se estivesse presa a um laço; pois do contrário observações casuais, feitas sem um plano previamente projetado, não se interconectariam numa lei necessária, coisa que a razão todavia procura e necessita. A razão tem que ir à natureza tendo numa das mãos os princípios unicamente segundo os quais fenômenos concordantes entre si podem valer como leis, e na outra o experimento que ela imaginou segundo aqueles princípios, na verdade para ser instruída pela natureza, não porém na qualidade de um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, mas na de um juiz nomeado que obriga as testemunhas a responder às perguntas que lhes propõe. E assim até mesmo a Física deve a tão vantajosa revolução na sua maneira de pensar apenas à ideia de procurar na natureza (não lhe imputar), segundo o que a própria razão coloca nela, aquilo que precisa aprender da mesma maneira e sobre o que nada saberia por si própria. Através disso, a Ciência da Natureza foi pela primeira vez levada ao caminho seguro de uma ciência, já que por muitos séculos nada mais havia sido que um simples tatear. A Metafísica, um conhecimento da razão inteiramente isolado e especulativo que através de simples conceitos (não como a Matemática, aplicando os mesmos à intuição), se eleva completamente acima do ensinamento da experiência, na qual portanto a razão deve ser aluna de si mesma, não teve até agora um destino tão favorável que lhe permitisse encetar o caminho seguro de uma ciência, não obstante ser mais antiga do que todas as demais e de que sobreviveria mesmo que as demais fossem tragadas pelo abismo de uma barbárie que a tudo exterminasse. Pois a razão emperra continuamente na Metafísica mesmo quando quer discernir a priori (como se arroga) aquelas leis que a experiência mais comum confirma. Nela se precisa retomar o caminho inúmeras vezes porque se descobre que não leva aonde se quer e, no tocante à unanimidade de seus partidários quanto a afirmações, ela se encontra a tal ponto distante disso, que ela é muito antes um campo de batalha que mui propriamente parece destinado a exercitar suas forças no combate simulado, onde ainda combatente algum conseguiu conquistar para si o menor lugar e fundar uma posse duradoura sobre esta vitória. Não há, pois, dúvida alguma que seu procedimento até agora foi um simples tatear e, o que é pior, entre meros conceitos. A que se deve o fato de não se ter podido aqui encontrar ainda o caminho seguro da ciência? É porventura impossível? Pois de onde a natureza incultou em nossa razão a aspiração incansável de rastreá-lo como uma de suas ocupações mais importantes? Mais ainda, quão pouco motivo temos para confiar em nossa razão quando não só nos abandona num dos aspectos mais importantes da nossa ânsia de saber, mas ainda nos entretém com simulações e por fim nos ludibria. Ou ele até agora somente falhou: que indícios podemos usar para, em renovada tentativa, esperar sermos mais felizes do que outros o foram antes de nós? Eu deveria achar que os exemplos da Matemática e da Ciência da Natureza que se tornaram o que agora são por uma revolução levada a efeito de uma só vez, seriam suficientemente notáveis para fazer meditar acerca do elemento essencial da transformação da maneira de pensar que lhes foi tão vantajosa e, na medida em que o permite sua analogia com a meta física como conhecimentos da razão, para imitá-las nisso ao menos como tentativa. Até agora se supôs que todo nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porém, todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que o nosso conhecimento seria ampliado, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos mesmos que deve estabelecer algo sobre os objetos antes de nos serem dados. O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico que, depois das coisas não quererem andar muito bem com a explicação dos movimentos celestes admitindo-se que todo o exército de astros girava em torno do espectador, tentou ver se não seria mais bem-sucedido se deixasse o expectador mover-se e, em contrapartida, os astros em repouso. Na Metafísica pode-se então tentar algo similar no que diz respeito à intuição dos objetos. Se a intuição tivesse que se regular pela natureza dos objetos, não vejo como se poderia saber algo a priori a respeito da última; se porém o objeto (Gegenstand) (como objeto (objeki) dos sentidos) se regula pela natureza de nossa faculdade de intuição, posso então representar-me muito bem essa possibilidade. Como não posso deter-me nestas intuições caso devam tornar-se conhecimentos, mas preciso referi-las como representações a algo como objeto e determinar este através daquelas, ou posso aceitar que os conceitos através dos quais realizam esta determinação também se regulam pelo objeto, e então me encontro de novo no mesmo embaraço quanto ao modo como posso saber algo a priori a respeito, ou suponho que os objetos ou, o que é o mesmo, a experiência unicamente na qual são conhecidos (como objetos dados), se regula por esses conceitos, assim último caso, vislumbro imediatamente uma saída mais fácil porque a própria experiência é um modo de conhecimento que requer entendimento, cuja regra tenho que pressupor a priori em mim ainda antes de me serem dados objetos e que é expressa em conceitos a priori, pelos quais portanto todos os objetos da experiência necessariamente têm que se regular e com eles concordar. No que concerne aos objetos, na medida em que apenas pensados pela razão, na verdade necessariamente, sem porém (pelo menos do modo como a razão os pensa) poderem de maneira alguma ser dados na experiência, as tentativas de pensá-los (pois tem que ser possível pensá-los) constituirão mais tarde uma esplêndida pedra de toque daquilo que tomamos como o método transformado da maneira de pensar, a saber, que das coisas conhecemos a priori só o que nós mesmos colocamos nelas. (Este método copiado do investigador da natureza consiste, portanto, no seguinte: procurar os elementos da razão pura naquilo que pode ser confirmado ou refutado por um experimento. Ora, não é possível fazer nenhum experimento com os objetos da razão pura (como na Ciência da Natureza) para testar suas proposições, sobretudo quando se arriscam para além de todos os limites da experiência possível: portanto, isso só será factível com conceitos e princípios aceitos por nós a priori na medida em que forem dispostos de tal modo que os mesmos objetos possam ser considerados desde dois aspectos diversos, por um lado como objetos dos sentidos e do entendimento para a experiência, por outro lado porém como objetos apenas pensados, quer dizer, como objetos da razão isolada que aspira elevar-se acima dos limites da experiência. Ora, se ao se considerar as coisas desde aquele duplo ponto de vista ocorrer a concordância com o princípio da razão pura e se desde um só ponto de vista surgir um inevitável conflito da razão consigo mesma, neste caso o experimento decide pela justeza daquela distinção. Nota do Autor) Esta tentativa alcança o êxito desejado e promete à metafísica o caminho seguro de uma ciência na sua primeira parte, na qual se ocupa com conceitos a priori cujos objetos correspondentes podem ser dados adequadamente na experiência. Após esta mudança na maneira de pensar, pode-se com efeito explicar muito bem a possibilidade de um conhecimento a priori e, mais ainda, dotar de provas satisfatórias as leis que subjazem a priori à natureza enquanto conjunto dos objetos da experiência, coisas impossíveis segundo a maneira de proceder adotada até agora. Entretanto, na primeira parte da Metafísica, esta dedução da nossa faculdade de conhecer a priori conduz a um estranho resultado aparentemente muito prejudicial ao inteiro fim da mesma e do qual se ocupa sua segunda parte, a saber, que com esta faculdade jamais podemos ultrapassar os limites da experiência possível, o que é justamente a ocupação desta ciência. Mas aqui reside precisamente o experimento de uma contraprova da verdade do resultado daquela primeira apreciação do nosso conhecimento racional a priori, ou seja, que ele só concerne a fenômenos, deixando ao contrário a coisa em si mesma de lado como real para si, mas não conhecida por nós. Pois o que nos impele necessariamente a ultrapassar os limites da experiência e de todos os fenômenos é o incondicionado o qual, e nas coisas em si mesmas, a razão exige o último necessariamente e com todo o direito para todo o condicionado, e através disso a completude da série das condições. Ora, se quando se admite que o nosso conhecimento de experiência se guie pelo objetos como coisas em si mesmas, ocorre que o incondicionado de maneira alguma pode ser pensado sem contradição; se contrariamente quando se admite que a nossa representação das coisas como nos são dadas se guie não por estas como coisas em si mesmas, mas que estes objetos, como fenômenos, muito antes se guiem pelo nosso modo de representação, ocorre que a contradição desaparece; e que, consequentemente, o incondicionado tem de ser encontrado não em coisas na medida em que as conhecemos (nos são dadas), mas sim nelas na medida em que não as conhecemos, como coisas em si mesmas; então se mostra que é fundado o que inicialmente admitíamos apenas a título de tentativa. (Este experimento da razão pura tem muito em comum com o que os químico chamam frequentemente de ensaio de redução, em geral porém de procedimento sintético. A análise do metafísico separou o conhecimento puro a priori em dois elementos muito desiguais, a saber, o das coisas como fenômenos e o das coisas em si mesmas. A dialética liga de novo ambos para tomá-los unânimes com a ideia racional necessária do incondicionado e descobre que esta unanimidade jamais vem à luz senão através daquela distinção que é, portanto, a verdadeira. Nota do Autor) Após ter sido contestado à razão especulativa todo progresso neste campo do suprassensível, agora ainda nos resta tentar ver se no seu conhecimento prático não se encontram dados para determinar aquele conceito racional transcendente do incondicionado e, deste modo, de acordo com o desejo da Metafísica, conseguir elevar-nos acima dos limites de toda a experiência possível com o nosso conhecimento a priori, mas possível somente com o propósito prático. Com tal procedimento, a razão especulativa ainda assim nos conseguiu pelo menos lugar para tal ampliação, embora tivesse que deixá-lo vazio, e ainda somos por conseguinte livres, e a tanto até exortados por ela, a preenchê-lo, se o pudermos, com dados práticos da mesma. (Desse modo as leis centrais dos movimentos dos corpos celestes proporcionaram certeza manifesta ao que Copérnico tomou inicialmente só como hipótese, provando ao mesmo tempo a força invisível que liga a estrutura do mundo (a atração de Newton), a qual teria permanecido para sempre oculta não houvesse o primeiro ousado, de maneira paradoxal mas verdadeira, procurar os movimentos observados não nos objetos celestes, mas no seu espectador. Neste prefácio, erijo a transformação da maneira de pensar exposta na Critica apenas como hipótese análoga à anterior, embora no tratado mesmo seja provada não hipotética, mas apoditicamente pela natureza tanto das nossas representações do espaço e do tempo quanto dos conceitos elementares do entendimento a fim de chamar a atenção para as primeiras tentativas de uma tal transformação, que são sempre hipotéticas. Nota do Autor) O assunto desta crítica da razão pura especulativa consiste naquela tentativa de transformar o procedimento tradicional da Metafísica e promover através disso uma completa revolução na mesma, segundo o exemplo dos geômetras e investigadores da natureza. É um tratado do método e não um sistema da ciência mesma; não obstante, traça como que todo o seu contorno, tendo em vista tanto os seus limites como também toda a sua estrutura interna. Pois a razão pura especulativa possui a peculiaridade de que pode e deve medir a sua própria faculdade segundo as diversas maneiras de escolher os seus objetos de pensamentos bem como enumerar completamente os vários modos dela se propor tarefas e traçar assim todo o esboço de um sistema da Metafísica. Com efeito, no que diz respeito ao primeiro aspecto, no conhecimento a priori não se pode acrescentar aos objetos nada a não ser o que o sujeito pensante retira de si mesmo e, no que diz respeito ao segundo aspecto, com referência aos princípios do conhecimento, a razão pura especulativa é uma unidade que subsiste por si de um modo bem peculiar e na qual, como num corpo organizado, cada membro existe em função de todos os demais e todos os demais em função dele, e assim nenhum princípio pode ser tomado com segurança numa relação sem ter sido ao mesmo tempo investigado na sua relação universal com todo o uso puro da razão. Para tanto a Metafísica também possui uma rara felicidade da qual não pode participar nenhuma outra ciência da razão que tenha a ver com objetos (pois a Lógica só se ocupa com a forma do pensamento em geral), a saber, que uma vez conduzida por esta Crítica ao caminho seguro de uma ciência, poderá abranger completamente todo o campo dos conhecimentos a ela pertencente e, por conseguinte, concluir sua obra, podendo legá-la à posteridade como um patrimônio utilizável jamais a ser aumentado, pois ela se ocupa somente com princípios e com as limitações do seu uso determinadas por aqueles mesmos princípios. Como ciência fundamental, por conseguinte, também está obrigada a essa completude, e dela deve poder ser dito: nil actom repuntans, si quid superesset agendum. Mas que tesouro é este, perguntar-se-á, que pretendemos legar à posteridade com semelhante metafísica purificada pela crítica e conduzida por esse meio a um estado duradouro? Com um lance superficial de olhos sobre esta obra, acreditar-se-á perceber que sua utilidade seja somente negativa, ou seja, de jamais ousarmos elevar-nos com a razão especulativa acima dos limites da experiência, e esta é, na verdade, sua primeira utilidade. Ela se tornará porém imediatamente positiva se nos dermos conta que os princípios, com os quais a razão especulativa se aventura além dos seus limites, de fato têm como inevitável resultado, se o observarmos mais de perto, não uma ampliação, mas uma restrição do uso da nossa razão na medida em que realmente ameaçam estender sobre todas as coisas os limites da sensibilidade à qual pertencem propriamente, ameaçando assim anular o uso puro (prático) da razão. Por isso, uma crítica que limita a razão especulativa é, nesta medida, negativa; na medida em que ao mesmo tempo elimina com isso um obstáculo que limita ou até ameaça aniquilar o uso prático, de fato possui utilidade positiva muito importante tão logo se esteja convencido de que existe um uso prático absolutamente necessário da razão pura (o moral) no qual esta se estende inevitavelmente acima dos limites da sensibilidade. Embora neste seu uso não necessite nenhuma ajuda da razão especulativa, precisa assegurar-se contra a sua reação para não cair em contradição consigo mesma. Contestar a utilidade positiva desse serviço prestado pela Crítica equivaleria a dizer que a política não possui nenhuma utilidade positiva por ser sua principal ocupação fechar a porta à violência que os cidadãos possam temer uns dos outros, para que cada um possa tratar tranquila e seguramente dos seus afazeres. Na parte analítica da Crítica prova-se que espaço e tempo são apenas formas de intuição sensível, portanto somente condições da existência das coisas como fenômenos, que além disso não possuímos nenhum conceito do entendimento e portanto nenhum elemento para o conhecimento das coisas senão na medida em que a esses conceitos possa ser dada uma intuição correspondente, que por conseguinte não podemos conhecer nenhum objeto como coisa em si mesma, mas somente na medida em que for objeto da intuição sensível, isto é, como fenômeno; disto se segue, é bem verdade, a limitação de todo o possível conhecimento especulativo da razão aos meros objetos da experiência. Todavia, note-se bem, será sempre preciso ressalvar que, se não podemos conhecer esses mesmos objetos como coisas em si mesmas, temos pelo menos que poder pensá-los. (Para conhecer um objeto requerer-se-á que eu possa provar sua possibilidade (seja pelo testemunho da experiência a partir da sua realidade, seja a priori pela razão). Mas posso pensar o que quiser desde que não me contradiga, isto é, quando o meu conceito for apenas um pensamento possível, embora eu não possa garantir se no conjunto de todas as possibilidades lhe corresponde ou não um objeto. Mas para atribuir validade objetiva (possibilidade real, pois a primeira era apenas lógica) a tal conceito requerer-se-á algo mais. Este mais, contudo, não necessita ser procurado justamente nas fontes teóricas do conhecimento, também pode residir nas práticas. Nota do Autor) Do contrário seguir-se-ia a proposição absurda que haveria fenômeno sem que houvesse algo aparecendo. Suponhamos agora que de modo algum se tivesse feito a distinção, tornada necessária pela nossa Crítica, entre as coisas como objetos da experiência e precisamente as mesmas como coisas em si mesmas; neste caso, o princípio de causalidade e, por conseguinte, o mecanismo natural na determinação dessa causalidade teria que valer cabalmente para todas as coisas em geral enquanto causas eficientes. Com respeito a um mesmo ente, por exemplo, a alma humana, eu não poderia portanto dizer que sua vontade é livre e que está ao mesmo tempo submetida à necessidade natural, isto é, não é livre, sem cair numa evidente contradição; porque em ambas as proposições usei a palavra alma exatamente na mesma significação, ou seja, como coisa em geral (como coisa em si mesma), e sem crítica anterior nem sequer podia usá-la diferentemente. Se a crítica, porém, não errou ensinando a tomar o objeto numa dupla significação, a saber, como fenômeno ou como coisa em si mesma; se a dedução dos seus conceitos do entendimento é certa, se por conseguinte o princípio de causalidade só incide sobre coisas tomadas no primeiro sentido, ou seja, na medida em que objetos da experiência, e se as mesmas coisas tomadas contudo na segunda significação não se lhe acham submetidas, então exatamente a mesma vontade será pensada no fenômeno (nas ações visíveis) como necessariamente conforme à lei natural e nessa medida não livre, e por outro lado ainda assim, enquanto pertencente a uma coisa em si mesma, pensada como não submetida à lei natural e portanto como livre, sem que isso ocorra uma contradição. Conquanto não possa conhecer a minha alma, considerada sob este último aspecto, mediante razão especulativa alguma (menos ainda pela observação empírica) e por conseguinte tampouco a liberdade como propriedade de um ente ao qual atribuo efeitos no mundo sensível, pois teria que conhecer um tal ente como determinado em sua existência e todavia como não determinado no tempo (o que é impossível, não podendo eu pôr intuição alguma sob o meu conceito), posso contudo pensar a liberdade, isto é, sua representação não contém pelo menos nenhuma contradição em si desde que ocorra a nossa distinção crítica entre ambos os modos de representação (o sensível e o intelectual) e daí proveniente limitação dos conceitos puros do entendimento e portanto também dos princípios decorrentes dos mesmos. Admitamos agora que a Moral pressuponha necessariamente a liberdade (no sentido mais rigoroso) como propriedade da nossa vontade na medida em que aduz a priori princípios práticos originários sitos em nossa razão como dados da mesma, os quais seriam absolutamente impossíveis sem a pressuposição da liberdade e que não obstante a razão especulativa tivesse provado que a liberdade não é sequer pensável: neste caso, essa pressuposição, ou seja a Moral, teria necessariamente que ceder àquela cujo oposto contém uma notória contradição, e consequentemente a liberdade e com ela a moralidade (pois o seu oposto não contém nenhuma contradição se a liberdade já não for pressuposta) dar lugar ao mecanismo natural. Como para a moral nada mais necessito que a liberdade não se contradiga e portanto seja pelo menos pensável sem necessidade de discerni-la ulteriormente, que portanto não oponha nenhum obstáculo ao mecanismo natural precisamente da mesma ação (tomada em outra relação), assim tanto a doutrina da moralidade como a da natureza mantém o seu lugar, o que porém não ocorreria se a crítica não tivesse antes nos instruído sobre a nossa inevitável ignorância acerca das coisas em si mesmas e limitando a meros fenômenos tudo o que podemos conhecer teoricamente. Precisamente essa discussão sobre a utilidade positiva dos princípios críticos da razão pura pode ser patenteada nos conceitos de Deus e da natureza simples de nossa alma, o que passo por alto para ser breve. Não posso portanto sequer admitir Deus, liberdade e imortalidade com vistas ao uso prático necessário da minha razão sem ao mesmo tempo tirar da razão especulativa sua pretensão a visões exageradas, pois para chegar a estas ela precisa empregar princípios que, estendendo-se de fato apenas a objetos da experiência possível não obstante serem aplicados ao que não pode ser objeto da experiência, na realidade sempre transformam o último em fenômeno e assim declaram impossível toda a ampliação prática da razão pura. Portanto, tive que elevar o saber para obter lugar para a fé, e o dogmatismo da Metafísica, isto é, o preconceito de progredir nela sem crítica da razão pura, é a verdadeira fonte de toda a sempre muito dogmática incredulidade antagonizando a moralidade. - Portanto, se com uma Metafísica sistemática composta segundo o critério da Critica da Razão Pura não pode ser difícil legar algo à posteridade, tal não constitui dádiva de valor desprezível: veja-se apenas a cultura alcançável pela razão através do caminho seguro de uma ciência em geral em comparação com o tatear sem fundamento e o vaguear leviano da razão sem crítica, ou também o emprego melhor do tempo por parte de uma juventude ávida de saber que, no costumeiro dogmatismo, recebe encorajamento para sofismar comodamente sobre coisas das quais nada entende e no qual, tanto quanto ninguém no mundo, jamais chegará a discernir algo, ou até para ter em vista novos pensamentos e opiniões e assim descurar a aprendizagem de ciências meticulosas; em grau máximo, contudo, quando se leva em consideração a inestimável vantagem, para pôr fim, para todo o tempo futuro, a todas as objeções contra a moralidade e a Religião de maneira socrática, isto é, através da prova mais clara da ignorância dos adversários. Com efeito, uma ou outra Metafísica sempre existiu e continuará a existir no mundo, e com ela também uma dialética da razão pura, pois esta lhe é natural. A primeira e mais importante preocupação da filosofia é, pois, afastar de uma vez por todas toda a influência nociva dessa dialética obstruindo a fonte dos erros. Nesta importante mudança no campo da ciência e na perda que a razão especulativa tem que sofrer na posse que até agora se arrogou, tudo o que diz respeito à geral ocupação humana e ao proveito que o mundo tirou das teorias da razão pura permanece no mesmo estado vantajoso de outrora, e a perda atinge só o monopólio das escolas, mas de modo algum o interesse dos homens. Pergunto ao mais inflexível dogmático se a prova da perduração da nossa alma depois a morte pela simplicidade da substância, se a prova da liberdade da vontade contra o mecanismo universal por meio das distinções sutis embora importantes entre necessidade prática subjetiva e objetiva, ou se a prova da existência de Deus pelo conceito de um ente realíssimo (da contingência do mutável e da necessidade de um primeiro motor), depois de terem saído das escolas chegaram a alcançar o público e conseguiram exercer a mínima influência sobre sua convicção? Se isso não aconteceu, e também jamais se pode esperar que aconteça em virtude da inaptidão do entendimento humano comum para a especulação tão sutil; mais ainda, se no referente ao primeiro ponto a notável disposição da natureza de cada homem de jamais poder ser satisfeita pelo temporal (como insuficiente às disposições da sua inteira determinação) teve que provocar totalmente sozinha a esperança numa vida futura, se com relação ao segundo a mera apresentação clara dos deveres em oposição a todas as pretensões das inclinações teve sozinha que fazer nascer a consciência da liberdade, e se finalmente no referente ao terceiro a ordem, beleza e providência magníficas, visíveis por toda a parte na natureza, tiveram por si sós que suscitar a fé num sábio e grande Autor do mundo, convicção esta que se propaga entre o público na medida em que repousa sobre fundamentos racionais, então essa posse não apenas permanece intata, mas antes ganha ainda em prestígio pelo fato das escolas serem doravante instruídas a não se arrogarem, num ponto que diz respeito à geral ocupação humana, nenhum discernimento mais alto e difundido do que aquele que a grande massa (para nós digna de respeito) pode também facilmente alcançar, e se limitarem, por conseguinte, ao cultivo desses argumentos acessíveis a todos e suficientes ao propósito moral. A mudança atinge, portanto, apenas as arrogantes pretensões das escolas que gostariam de se considerar aqui (como com direito em muitos outros pontos) os únicos conhecedores e guardiães de tais verdades, das quais comunicam ao público apenas o uso, conservando porém a chave delas apenas para si (quod mecum nescit, solus vult scire videri). Não obstante, também se cuidou de um reclamo mais justo do filósofo especulativo. Ele permanece sempre o depositário exclusivo de uma ciência útil ao público sem que este o saiba, a saber, de crítica da razão, pois esta jamais poderá tornar-se popular e não tem sequer necessidade de sê-lo. Com efeito, assim como os argumentos finalmente tecidos não querem entrar na cabeça do povo como verdades úteis, assim tampouco lhe chegam a aflorar na mente as objeções exatamente tão sutis contra os mesmos. Em contra partida, como a escola e cada homem que se eleva à especulação caem inevitavelmente em ambos, a crítica se vê obrigada a prevenir de uma vez por todas, através de meticulosas investigações dos direitos da razão especulativa, o escândalo que cedo ou tarde tem que ser provocado mesmo no povo pelas disputas em que os metafísicos (e como tais por fim também os clérigos) se enredam inevitavelmente sem crítica, acabando mesmo depois por falsificar as suas doutrinas. Só mediante essa crítica podem ser cortados pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos livres-pensadores, o fanatismo e a superstição, que podem tornar-se prejudiciais em geral, e por fim também o idealismo e o ceticismo, que são mais perigosos para as escolas e dificilmente passam ao público. Se aos governos apraz ocupar-se dos assuntos dos eruditos, então seria mais adequado à sua sábia solicitude para com as ciências e mesmo para com os homens favorecer a liberdade de tal crítica, unicamente pela qual as elaborações da razão podem ser conduzidas a pisar firmes, em vez de apoiar o despotismo ridículo das escolas, que alardeiam perigo público quando se destrói as suas teias de aranha, das quais o público nunca tomou conhecimento e cuja perda também não pode, portanto, jamais sentir. A crítica não é contraposta ao procedimento dogmático da razão no seu conhecimento puro como ciência (pois esta tem que ser sempre dogmática, isto é, provando rigorosamente a partir de princípios seguros a priori), mas sim ao dogmatismo, isto é, à pretensão de progredir apenas com um conhecimento puro a partir de conceitos (o filosófico) segundo princípios há tempo usados pela razão, sem se indagar contudo de que modo e com que direito chegou a eles. Dogmatismo é, portanto, o procedimento dogmático da razão pura sem uma crítica precedente da sua própria capacidade) Essa oposição da crítica ao dogmatismo não deve por isso defender a causa da superficialidade verbosa, sob o pretenso nome da popularidade, ou mesmo a do ceticismo, que liquida sumariamente toda a Metafísica; a Crítica é antes a instituição provisória necessária para promover uma Metafísica fundamental como ciência que precisa ser desenvolvida de modo necessariamente dogmático e sistemático segundo a mais rigorosa exigência, portanto escolástica (não popular); pois essa exigência à Metafísica é indispensável, já que se compromete a realizar sua obra de modo inteiramente a priori, portanto para a plena satisfação da razão especulativa. Na execução do plano prescrito pela Crítica, isto é, no futuro sistema da Metafísica, temos pois que seguir algum dia o método rigoroso do famoso Wolff, o maior de todos os filósofos dogmáticos. Este deu pela primeira vez o exemplo (e com este exemplo foi o criador do espírito de meticulosidade na Alemanha que até agora ainda não se extinguiu) como se deve tomar o caminho seguro de uma ciência estabelecendo princípios legítimos determinando claramente os conceitos, buscando rigor nas demonstrações, evitando saltos temerários em conclusões. Justamente por isso ele estaria precipuamente apto a colocar uma ciência como a Metafísica nesse caminho caso lhe tivesse ocorrido preparar antes o campo mediante crítica do órgão, ou seja da própria razão pura: deficiência devida não tanto a ele, mas antes à maneira dogmática de pensar de sua época, sobre o que os filósofos tanto do seu tempo quanto de todos tempos passados nada têm a se censurar reciprocamente. Aqueles que rejeitam o seu modo de ensinar e ao mesmo tempo o procedimento da Crítica da razão pura não podem ter em mente outra coisa senão romper as cadeias da ciência e transformar o trabalho em jogo, a certeza em opinião e a filosofia em filodoxia. No que diz respeito a esta segunda edição, como é justo não quis deixar passar a oportunidade para remediar, na medida do possível, as dificuldades e a obscuridade das quais podem ter-se originado muitas interpretações falsas em que, talvez não sem minha culpa, homens perspicazes incidiram ao julgarem este livro. Não encontrei nada para mudar nas próprias proposições e nos seus argumentos, bem como na forma e na completude do plano: o que se deve atribuir em parte ao longo exame a que submeti tudo isso antes de apresentar o livro ao público, em parte à conformação da própria coisa, a saber, à natureza de uma razão pura e especulativa que contém uma verdadeira estrutura articulada onde tudo é órgão, ou seja, onde tudo existe para cada parte e cada parte para todas as outras, portanto onde a menor fragilidade, seja um defeito (erro) ou deficiência, terá que se trair inevitavelmente no uso. Este sistema afirmar-se-á na sua imutabilidade, como o espero, também no futuro. A tal confiança me autoriza não uma presunção, mas apenas a evidência que a experimentação da igualdade do resultado produz, partindo desde os mínimos elementos até o todo da razão pura e retomando desde o todo (pois também este é por si dado no prático por meio do propósito final da razão pura) até cada parte, enquanto a tentativa de modificar o mínimo detalhe ocasiona logo contradições, não só do sistema, mas também da razão humana geral. Já na exposição resta ainda muito a fazer e, neste sentido, nesta edição tentei melhorias para remediar em parte o mal-entendido da Estética, sobretudo o contido no conceito de tempo, em parte a obscuridade na dedução dos conceitos do entendimento em parte a suposta falta de uma evidência suficiente nas provas dos princípios do entendimento puro, em parte finalmente a falsa interpretação dos paralogismos antepostos à psicologia racional. As minhas modificações no modo de exposição estendem-se até aqui (a saber, somente até o fim do primeiro capítulo da dialética transcendental) e não mais adiante, (O único acréscimo propriamente dito que eu poderia mencionar, mas apenas quanto ao modo de provar, consiste numa nova refutação do idealismo psicológico e numa prova rigorosa (a meu ver também a única possível) da realidade objetiva da intuição externa. Por mais inocente que o idealismo possa ser considerado no que tange aos fins essenciais da Metafísica (o que de fato não é), permanece contudo um escândalo da filosofia e da razão humana geral ter que admitir a existência das coisas fora de nós (das quais recebemos todo o material dos conhecimentos mesmo para o nosso sentido interno) com base apenas na fé e, ao ocorrer a alguém colocar essa existência em dúvida, não lhe poder contrapor nenhuma prova satisfatória. Pelo fato de os termos da prova conterem, da terceira à sexta linha, alguma obscuridade, peço que esse período seja mudado como se segue: "Este permanente não pode, porém, ser uma intuição em mim. Com efeito, todos os fundamentos determinantes da minha existência encontráveis em mim são representações e necessitam como tais algo permanente distinto delas, com referência ao qual possa ser determinada a mudança das mesmas e portanto a minha existência no tempo em que elas mudam ". Presumivelmente dir-se-á contra esta prova: sou imediatamente consciente apenas daquilo que existe em mim, isto é, da minha representação de coisas externas: consequentemente, fica sempre ainda incerto se algo fora de mim que lhe corresponda ou não. Todavia, por experiência interna sou consciente da minha existência no tempo (consequentemente também da sua determinabilidade nele), e isso é algo mais que ser meramente consciente da minha representação não obstante ser o mesmo que a consciência empírica da minha existência, a qual só é determinável referindo-se a algo que, ligado à minha existência, é fora de mim. Essa consciência de minha existência no tempo está, portanto, identicamente ligada à consciência de uma relação com algo fora de mim, e é por conseguinte experiência e não ficção, sentido e não imaginação aquilo que conecta inseparavelmente o externo com o meu sentido interno; pois o sentido externo é já em si referência da intuição a algo real fora de mim, e cuja realidade, à diferença da ficção, repousa somente sobre o fato de ser inseparavelmente ligado à própria experiência interna enquanto a condição de sua possibilidade, o que é o caso aqui. Se na representação eu sou, que acompanha todos os meus juízos e ações do entendimento, eu pudesse mediante intuição intelectual ao mesmo tempo ligar uma determinação da minha existência à consciência intelectual da mesma, então a esta determinação não pertenceria necessariamente a consciência de uma relação com algo fora de mim. Na verdade, aquela consciência intelectual é precedente, mas a intuição interna, unicamente na qual minha existência pode ser determinada, é sensível e presa à condição de tempo; essa determinação, porém, portanto a própria experiência interna, depende de algo permanente que não está por conseguinte em mim, mas somente em algo fora de mim e com o que tenho que me considerar em relação. A realidade do sentimento externo está, portanto ligada necessariamente à do sentido interno, para a possibilidade de uma experiência em geral: isto é, sou tão justa e seguramente consciente de que há coisas fora de mim que se referem a meu sentido como sou consciente de que eu mesmo existo determinado no tempo. Mas a que intuições dadas correspondem realmente objetos fora de mim, pertencentes portanto ao sentido externo, ao qual devem ser atribuídas aquela intuições e não à imaginação, isto tem que ser decidido em cada caso particular conforme regras segundo as quais experiência em geral (mesmo a interna) é distinta da imaginação, e a isto sempre subjaz a proposição de que há realmente experiência externa. Pode-se ainda acrescentar a isso a seguinte observação: a representação de algo permanente na existência não é idêntica à representação permanente; pois esta pode ser, como todas as nossas representações e mesmo as da matéria, muito passageira e mutável mesmo se referindo a algo permanente, que portanto tem que ser uma coisa externa e distinta de todas as minhas representações e cuja existência é necessariamente incluída na determinação da minha própria existência, perfazendo com ela uma única experiência que nem ocorreria interiormente se não fosse (em parte) ao mesmo tempo externa. Aqui o como é tampouco melhor explicável quanto em geral pensamos algo persistente no tempo, cuja simultaneidade com o mutável produz o conceito de mudança. Nota do Autor.) pois me faltou tempo e porque, com referência ao restante, não me deparei com nenhum mal-entendido por parte de examinadores competentes e imparciais; sem que eu necessite mencioná-los com o louvor devido, estes encontrarão por si próprios, nos lugares respectivos, a consideração que tomei por suas advertências. Para o leitor, porém, essa correção implica numa pequena perda que não se podia evitar sem tomar o livro demasiado volumoso, a saber, que diversas coisas na realidade não pertencentes essencialmente à completude do todo, mas de que muito leitor não gostaria de prescindir na medida em que podem ser úteis desde outro ponto de vista, precisaram ser supressas ou apresentadas abreviadamente para darem lugar à minha exposição agora mais compreensível, como espero; esta nova exposição não muda no fundo absolutamente nada no tocante às proposições e mesmo aos seus argumentos, mas no tocante ao método da exposição às vezes se afasta a tal ponto da precedente que não era possível intercalá-la na mesma. Essa pequena perda, que por outro lado cada um pode reparar à sua vontade pela comparação com a primeira edição, será preponderantemente compensada, como espero, pela maior compreensibilidade em diversos escritos publicados (seja por ocasião da recensão de muitos livros, seja em tratados especiais), percebi, com grata satisfação, que o espírito de meticulosidade não se extinguiu na Alemanha, mas foi somente sufocado por algum tempo pelo modismo de uma liberdade de pensamento às raias do genial, e que as espinhosas veredas da crítica que conduzem a uma ciência escolástica da razão pura, mas como tal a única duradoura e por isso absolutamente necessária, não impediram as cabeças corajosas e lúcidas de se apoderarem dela. A estes homens beneméritos, que a meticulosidade do discernimento aliam de modo tão feliz o talento de uma exposição luminosa (a qual não me sinto bem consciente de possuir), deixo o encargo de concluir, no tocante ao último ponto, minha elaboração aqui e ali porventura ainda defeituosa; pois o perigo neste caso reside não em ser refutado, mas em não ser compreendido. De minha parte, não posso doravante meter-me em controvérsias, embora atente cuidadosamente a todas as sugestões, sejam de amigos ou de inimigos, para utilizá-las, de acordo com esta propedêutica, na futura execução do sistema. Já que durante estes trabalhos atingi uma idade relativamente avançada (este mês completarei sessenta e quatro anos), se quero executar meu plano de fornecer tanto a Metafísica da Natureza quanto a Metafísica dos Costumes como confirmação da correção da crítica da razão tanto especulativa como prática, tenho que usar com parcimônia o meu tempo como esperar dos homens beneméritos que tomaram a si essa tarefa tanto o esclarecimento das obscuridades inicialmente inevitáveis nesta obra quanto a defesa do todo. Em pontos isolados cada exposição filosófica é vulnerável (pois não pode apresentar-se tão blindada como a exposição matemática). Entretanto, a estrutura do sistema, considerada como unidade, não corre com isso o mínimo perigo; com efeito, só poucos possuem a agilidade de espírito para abranger com a vista o sistema quando este é novo, e menor número ainda tem prazer nisso, pois toda novidade lhes é importuna. Em cada escrito desenvolvido sob forma de livre discurso são pinçáveis aparentes contradições quando se arrancam partes isoladas do seu conjunto e se as compara entre si, contradições essas que aos olhos daquele que se abandona ao julgamento de outros projetam por sua vez uma luz prejudicial sobre esses escritos, mas que se resolvem muito facilmente para aquele que se apoderou da ideia no seu todo. Todavia, quando uma teoria é sólida, tanto a ação quanto a reação que inicialmente a ameaçavam com grande perigo, com o tempo servem somente para aplainar os seus desníveis, e quando homens dotados de imparcialidade, discernimento e verdadeira popularidade ocuparem-se com ela, em pouco tempo servem para proporcionar-lhe também a elegância requerida. Königsberg, no mês de abril de 1787. INTRODUÇÃO I. Da distinção entre conhecimento puro e empírico QUE TODO o nosso conhecimento começa com a experiência, não há dúvida alguma, pois, do contrário, por meio do que a faculdade de conhecimento deveria ser despertada para o exercício senão através de objetos que tocam nossos sentidos e em parte produzem por si próprios representações, em parte põem em movimento a atividade do nosso entendimento para compará-las, conecta-las ou separá-las e, desse modo, assimilar a matéria bruta das impressões sensíveis a um conhecimento dos objetos que se chama experiência? Segundo o tempo, portanto, nenhum conhecimento em nós precede a experiência, e todo ele começa com ela. Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência. Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento de experiência seja um composto daquilo que recebemos por impressões e daquilo que a nossa própria faculdade de conhecimento (apenas provocada por impressões sensíveis) fornece de si mesma, cujo aditamento não distinguimos daquela matéria-prima antes que um longo exercício nos tenha tomado atento a ele e nos tenha tornado aptos à sua abstração. Portanto, é pelo menos uma questão que requer uma investigação mais pormenorizada e que não pode ser logo despachada devido aos ares que ostenta, a saber se há um tal conhecimento independente da experiência e mesmo de todas as impressões dos sentidos. Tais conhecimentos denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a posteriori, ou seja, na experiência. Todavia, aquela expressão não é ainda suficientemente determinada para designar de todo o sentido adequadamente à questão proposta. Com efeito, de muito conhecimento derivado de fontes da experiência costuma-se dizer que somos capazes ou participantes dele a priori porque o derivamos não imediatamente da experiência, mas de uma regra geral que, não obstante, tomamos emprestada da experiência. Assim, diz-se de alguém que solapou os fundamentos de sua casa: ele podia saber a priori que a casa desmoronar-se-ia, quer dizer, não precisava esperar pela experiência de seu desmoronamento efetivo. Contudo, mesmo assim ele não podia sabê-lo inteiramente a priori, pois o fato dos corpos serem pesados e de portanto caírem quando lhes são tirados os sustentáculos, tinha de tornar-se antes conhecido pela experiência. No que se segue, portanto conhecimentos a priori entenderemos não os que ocorrem de modo independente desta ou daquela experiência, mas absolutamente independente de toda a experiência. A eles são contrapostos ou aqueles que são possíveis apenas a posteriori, isto é, por experiência. Dos conhecimentos a priori denominam-se puros aqueles aos quais nada de empírico está mesclado. Assim, por exemplo, a proposição: cada mudança tem sua causa, é uma proposição a priori, só que não pura, pois mudança é um conceito que só pode ser tirado da experiência. II. Somos possuidores de certos conhecimentos a priori e mesmo o entendimento comum jamais está desprovido deles O que importa aqui é um traço pelo qual possamos distinguir de modo seguro um conhecimento puro de um empírico. Na verdade, a experiência nos ensina que algo é constituído deste ou daquele modo, mas não que possa ser diferente. Em primeiro lugar, portanto, se se encontra uma proposição pensada ao mesmo tempo com sua necessidade, então ela é um Juízo a priori; se além disso não é derivada senão de uma válida por sua vez como uma proposição necessária, então ela é absolutamente a priori. Em segundo lugar, a experiência jamais dá aos seus juízos universalidade verdadeira ou rigorosa, mas somente suposta e comparativa (por indução), de maneira que temos propriamente que dizer: tanto quanto percebemos até agora, não se encontra nenhuma exceção desta ou daquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com universalidade rigorosa, isto é, de modo a não lhe ser permitida nenhuma exceção como possível, então não é derivado da experiência, mas vale absolutamente a priori. Logo, a universalidade empírica é somente uma elevação arbitrária da validade, da que vale para a maioria dos casos até a que vale para todos, como por exemplo na proposição: todos os corpos são pesados. Ao contrário, onde a universalidade rigorosa é essencial a um juízo, indica uma fonte peculiar de conhecimento do mesmo, a saber, uma faculdade de conhecimento a priori. Necessidade e universalidade rigorosa são, portanto, seguras características de um conhecimento a priori e também pertencem inseparavelmente uma à outra. Mas como no uso desses critérios é às vezes mais fácil mostrar a limitação empírica dos juízos do que sua contingência, ou às vezes mais convincente fazer ver a universalidade ilimitada que lhe atribuímos do que sua necessidade, é aconselhável servir-se separadamente de ambos os critérios, que são cada um por si infalíveis. Ora, é fácil mostrar que no conhecimento humano realmente há tais juízos necessários e em sentido estrito universais por conseguinte puros a priori. Caso se queira um exemplo das ciências, basta olhar todas as proposições da matemática; caso se queira um do uso mais comum do entendimento, poderá servir a proposição de que toda mudança tem que ter uma causa. Nesta última, o próprio conceito de uma causa contém tão manifestamente o conceito de necessidade da conexão com um efeito e o de uma universalidade rigorosa da regra que se perderia completamente tal conceito de uma causa caso se quisesse derivá-lo como Hume o fez, de uma frequente associação daquilo que acontece com aquilo que o antecede, e do hábito daí decorrente (por conseguinte, de uma necessidade meramente subjetiva) de conectar representações. Também se poderia demonstrar a imprescindibilidade de princípios puros a priori para a possibilidade da experiência sem precisar de semelhantes exemplos para provar sua realidade em nosso conhecimento, portanto de modo a priori. Pois de onde queria a própria experiência tirar sua certeza se todas as regras, segundo as quais progride, fossem sempre empíricas e portanto contingentes? Por isso, dificilmente se pode deixar semelhantes regras valerem como primeiros princípios. Só que aqui podemos nos contentar de haver exposto como um fato o uso puro de nossa faculdade de conhecimento junto com suas características. Não apenas nos juízos, mas também nos conceitos revela-se uma origem a priori de alguns deles. Em vosso conceito de experiência de um corpo, renunciai aos poucos a tudo o que nele é empírico: à cor, à dureza ou à maleabilidade, ao peso e mesmo à impenetrabilidade, mesmo assim resta o espaço que ele (agora completamente desaparecido) ocupou e o qual não podeis suprimir. Da mesma maneira, quando suprimirdes do vosso conceito empírico de um objeto corpóreo ou incorpóreo todas as propriedades ensinadas pela experiência, não podereis tirar-lhe aquela pela qual o pensais como substância ou como aderente a uma substância (não obstante esse conceito conter maior determinação do que a de um objeto em geral). Convencidos pela necessidade com que esse conceito se vos impõe, tereis portanto que confessar que ele tem a sua sede em vossa faculdade de conhecimento a priori. III. A filosofia precisa de uma ciência que determine a possibilidade, os princípios e o âmbito de todos os conhecimentos a priori Muito mais significativo que todo o precedente é o fato de que certos conhecimentos abandonam mesmo o campo de todas as experiências possíveis e parecem estender o âmbito dos nossos juízos acima de todos os limites da experiência mediante conceitos aos quais em parte alguma pode ser dado um objeto correspondente na experiência. E justamente nestes últimos conhecimentos, que se elevam acima do mundo sensível, onde a experiência não pode dar nem guia nem correção, residem as investigações de nossa razão que pela sua importância consideramos muito mais eminentes e pelo seu propósito último muito mais sublimes do que tudo o que o entendimento pode aprender no campo dos fenômenos; mesmo sob o perigo de errar, nisto arriscamos antes tudo a dever desistir de tão importantes investigações por uma razão qualquer de escrúpulo, de menosprezo ou de indiferença. Esses problemas inevitáveis da própria razão pura são Deus, liberdade e imortalidade. A ciência, porém, cujo propósito último está propriamente dirigido com todo o seu aparato só à solução desses problemas denomina-se Metafísica; o procedimento desta é de início dogmático, ou seja, assume confiantemente a sua execução sem um exame prévio da capacidade ou incapacidade da razão para um tão grande empreendimento. Na verdade, parece natural que, tão logo se tenha abandonado o solo da experiência, não se erija imediatamente, com conhecimentos que se possui sem saber de onde e sobre o crédito de princípios de origem desconhecida, um edifício, sem estar antes assegurado dos fundamentos mediante cuidadosas investigações, que antes portanto se tenha há tempo levantado a pergunta de como o entendimento possa chegar a todos esses conhecimentos a priori e que âmbito, validade e valor possam ter. De fato, nada é também mais natural se sob a palavra natural se entender aquilo que equitativa e racionalmente deveria acontecer; mas se por essa palavra se entende aquilo que costumeiramente acontece, então nada é novamente mais natural e concebível do que o fato que essa investigação por muito tempo teve que deixar de efetuar-se. Com efeito, uma parte desses conhecimentos, como os matemáticos, é há muito tempo detentora de confiança e favorece assim a expectativa para outros conhecimentos, embora estes possam ser de natureza bem diversa. Além disso, quando se está acima da esfera da experiência, então se está seguro de não ser contestado pela experiência. O estímulo para ampliar seus conhecimentos é tão grande que só se pode ser detido em seu progresso por uma clara contradição em seu caminho. Esta pode ser contudo evitada se as ficções forem forjadas cautelosamente, sem que por isso deixem de ser ficções. A matemática dá-nos um esplêndido exemplo de quão longe conseguimos chegar no conhecimento a priori independentemente da experiência. Na verdade, a Matemática se ocupa com objetos e conhecimentos apenas na medida em que se deixam apresentar na intuição. Mas essa circunstância é facilmente descurada, porque mesmo tal intuição pode ser dada a priori e, portanto, dificilmente é distinguida de um simples conceito puro. Tornado por tal prova do poder da razão, o impulso de ampliação não vê mais limites. A leve pomba, enquanto no livre voo fende o ar do qual sente a resistência, poderia imaginar-se que seria ainda muito melhor sucedida no espaço sem ar. Do mesmo modo, Platão abandonou o mundo sensível porque este estabelece limites tão estreitos ao entendimento, e sobre as asas das ideias aventurou-se além do primeiro no espaço vazio do entendimento puro. Não observou que por meio de seus esforços não ganhava nenhum terreno, pois não possuía nenhum ponto em que, como uma espécie de base, pudesse apoiar-se e empregar suas forças para fazer o entendimento sair do lugar. Na especulação é, contudo, um destino habitual da razão humana concluir o quanto antes seu edifício e apenas depois investigar se também seu fundamentos está bem assentado. Procurar-se-ão então pretextos de toda espécie para nos consolar da sua solidez ou mesmo para preferivelmente recusar tal exame tardio e perigoso. O que porém durante a construção nos libera de toda a apreensão e suspeita e lisonjeia com aparente meticulosidade é o seguinte. A ocupação da razão consiste, em grande e talvez na maior parte, em desmembramentos dos conceitos que já temos de objetos. Isso nos propicia uma porção de conhecimentos que, embora não passem de esclarecimentos ou elucidações daquilo que já foi pensado (embora de modo confuso) em nossos conceitos, são pelo menos quanto à forma tidos na mesma conta que conhecimentos novos, não obstante não ampliarem, mas só analisarem os conceitos que possuímos quanto à sua matéria ou conteúdo. Ora, já que esse procedimento dá um efetivo conhecimento a priori que toma um incremento seguro e útil, a razão, sem dar-se conta, obtém ilicitamente sob essa miragem afirmações de espécie totalmente diversa acrescentando a conceitos dados outros completamente estranhos, e isso a priori, sem que se saiba como chega a isso e sem deixar que tal questão nem sequer lhe aflore à mente. Por isso, quero logo de início tratar da distinção entre essa dupla espécie de conhecimento. IV. Da distinção entre juízos analíticos e sintéticos Em todos os juízos em que for pensada a relação de um sujeito com o predicado (se considero apenas os juízos afirmativos, pois a aplicação aos negativos é posteriormente fácil), essa relação é possível de dois modos. Ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo contido (ocultamente) nesse conceito A, ou B jaz completamente fora do conceito A, embora esteja em conexão com o mesmo. No primeiro caso denomino o juízo analítico, no outro sintético. Juízos analíticos (os afirmativos) são, portanto, aqueles em que a conexão do predicado com o sujeito for pensada por identidade; aqueles, porém, em que essa conexão for pensada sem identidade, devem denominar-se juízos sintéticos. Os primeiros poderiam também denominar-se juízos de elucidação e os outros juízos de ampliação. Com efeito, por meio do predicado aqueles nada acrescentam ao conceito do sujeito, mas somente o dividem por desmembramento em seus conceitos parciais que já eram (embora confusamente) pensados nele, enquanto os últimos ao contrário acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que de modo algum era pensado nele nem poderia ter sido extraído dele por desmembramento algum. Se por exemplo digo: todos os corpos são extensos, então este é um juízo analítico. De fato, não preciso ir além do conceito que ligo ao corpo para encontrar a extensão enquanto conexa com tal conceito, mas apenas desmembrar aquele conceito, quer dizer, tornar-me apenas consciente do múltiplo que sempre penso nele, para encontrar aí esse predicado; é, pois, um juízo analítico. Do contrário, quando digo: todos os corpos são pesados, então o predicado é algo bem diverso daquilo que penso no mero conceito de um corpo em geral. O acréscimo de tal predicado fornece, portanto, um juízo sintético. Juízos de experiência como tais são todos sintéticos. Com efeito, seria absurdo fundar um juízo analítico sobre a experiência, pois para formar o juízo de modo algum preciso sair do meu conceito nem, portanto, de testemunho algum da experiência. Que um corpo seja extenso, é uma proposição certa a priori e não um juízo de experiência. Pois antes de recorrer à experiência já possuo no conceito todas as condições para o meu juízo, conceito do qual posso extrair o predicado segundo o princípio de contradição e com isso tornar-me ao mesmo tempo consciente da necessidade do juízo, coisa que a experiência nunca me ensinaria. Do contrário, embora já não inclua no conceito de um corpo em geral o predicado peso, esse conceito designa um objeto da experiência mediante uma das partes da mesma, à qual posso acrescentar ainda outras partes da mesma experiência como pertencentes ao primeiro conceito. Posso conhecer antes analiticamente o conceito de corpo pelas características da extensão, da impenetrabilidade, da forma etc., todas pensadas nesse conceito. Mas a seguir estendo o meu conhecimento e, ao lançar um olhar retrospectivo à experiência da qual extraí este conceito de corpo, encontro sempre conectado com as características mencionadas também a de peso e o acrescento, portanto, sinteticamente como predicado àquele conceito. Portanto, é sobre a experiência que se funda a possibilidade da síntese do predicado de peso com o conceito de corpo, pois ambos os conceitos embora na verdade um não esteja contido no outro todavia se pertencem reciprocamente, se bem que de modo apenas contingente, como partes de um todo, a saber, da experiência, que é ela mesma uma ligação sintética das intuições. Mas nos juízos sintéticos a priori falta completamente esse recurso. Se devo sair do conceito A para conhecer outro conceito B como ligado a ele, que coisa é essa sobre a qual me apoio e pela qual a síntese se torna possível, visto que aqui não possuo a vantagem de recorrer ao campo da experiência? Tome-se a proposição: tudo o que acontece tem sua causa. No conceito de algo que acontece penso, na verdade, uma existência à qual precede um tempo etc. e disso é possível extrair juízos analíticos. Mas o conceito de causa jaz completamente fora daquele conceito e indica algo distinto daquilo que acontece; não está, portanto, absolutamente contido nesta última representação. Então como acerca daquilo em geral acontece consigo dizer algo completamente diverso do mesmo e conhecer o conceito de causa, embora não contida naquilo que acontece, como lhe pertencendo e até necessariamente? Que é aqui a incógnita x sobre a qual o entendimento se apoia ao crer descobrir fora do conceito de A um predicado B estranho a esse conceito e não obstante considerado conectado a ele? Não pode ser a experiência, pois o mencionado princípio acrescentou essa segunda representação à primeira não somente com maior generalidade, mas também com a expressão da necessidade, por conseguinte completamente a priori e a partir de simples conceitos. Ora, sobre tais princípios sintéticos, isto é, princípios de ampliação, repousa todo o objetivo último do nosso conhecimento especulativo a priori; os princípios analíticos são, na verdade, altamente importantes e necessários, mas só para chegar àquela clareza dos conceitos exigida para uma síntese segura e vasta em vez de a uma aquisição realmente nova. V. Em todas as ciências teóricas da razão estão contidos, como princípios, juízos sintéticos a priori 1. Juízos matemáticos são todos sintéticos. Embora incontestavelmente certa e muito importante em sua consequência, esta proposição parece ter passado até agora despercebida às observações dos dissecadores da razão humana, parecendo antes justamente opor-se a todas as suas conjeturas. Com efeito, por ter-se descoberto que as inferências dos matemáticos procedem todas segundo o princípio de contradição (o que a natureza de cada certeza apodítica exige), persuadiram-se que também os princípios seriam conhecidos a partir do princípio de contradição. Nisso se enganaram, pois uma proposição sintética pode seguramente ser compreendida segundo o princípio de contradição, mas somente de tal modo que se pressuponha outra proposição sintética da qual a primeira possa ser inferi da, jamais porém em si mesma. Antes de tudo precisa-se observar que proposições matemáticas em sentido próprio são sempre juízos a priori e não empíricos porque trazem consigo necessidade, que não pode ser tirada da experiência. Se não se quer conceder isso, pois bem, então limito minha proposição à matemática pura, cujo conceito já traz consigo que ela não contém conhecimento empírico, mas só conhecimento puro a priori. Na verdade, dever-se-ia de início pensar que a proposição 7 + 5 = 12 é uma proposição meramente analítica que resulta do conceito de uma soma de sete mais cinco, segundo o princípio de contradição. Mas quando se observa mais de perto, descobre-se que o conceito da soma de 7 e 5 nada mais contém que a união de ambos os algarismos num único, mediante o que não é de maneira alguma pensado qual seja este único algarismo que reúne ambos. O conceito de doze não é absolutamente pensado pelo fato de eu apenas pensar aquela união de sete mais cinco, e por mais que eu desmembre o meu conceito de tal possível soma, não encontrarei aí o conceito de doze. É preciso sair desses conceitos tomando como ajuda a intuição correspondente a um deles, por exemplo os seus cinco dedos ou (como Segner na sua Aritmética) cinco pontos, e assim acrescentar sucessivamente as unidades do cinco dado na intuição ao conceito de sete. Com efeito, tomo primeiro o número 7 e, na medida em que para o conceito de cinco recorro ao auxílio dos dedos de minha mão como intuição, ponho agora as unidades que antes reuni para perfazer o número 5 sucessivamente naquela minha imagem acrescentando-as ao número 7, e vejo assim surgir o número 12. Pensei já no conceito de uma soma 7 + 5 que 5 devesse ser acrescentado a 7, mas não que esta soma fosse igual ao número 12. A proposição aritmética é, portanto, sempre sintética; isso se reconhece bem mais claramente quando se tomam números um pouco maiores, já que então fica evidente que, viremos e reviremos os nossos conceitos como quisermos, sem tomar ajuda da intuição jamais poderíamos encontrar a soma pelo simples desmembramento dos nossos conceitos. Tampouco é analítico qualquer princípio da Geometria pura. Que a linha reta seja a mais curta entre dois pontos, é uma proposição sintética, pois o meu conceito de reto não contém nada de quantidade, mas só uma qualidade. O conceito do mais curto é, portanto, acrescentado inteiramente e não pode ser extraído do conceito de linha reta por nenhum desmembramento. Portanto, se tem que recorrer aqui à ajuda da intuição, unicamente pela qual é possível a síntese. Algumas poucas proposições fundamentais pressupostas pelos geômetras são, é verdade, realmente analíticas e repousam sobre o princípio de contradição, mas também só servem, tal como as proposições idênticas, à cadeia do método e não como princípios, por exemplo, a = a, o todo é igual a si mesmo, ou (a + b) a, isto é, o todo é maior do que a sua parte. Embora valham segundo simples conceitos, contudo, mesmo essas proposições são admitidas na Matemática somente porque podem ser apresentadas na intuição. O que nos faz aqui crer comumente que o predicado de tais juízos apodíticos já esteja contido em nosso conceito e que o juízo seja portanto analítico, é simplesmente a ambiguidade da expressão. Isto é, devemos pensar certo predicado acrescido a um conceito dado, e esta necessidade já inere aos conceitos. Mas a questão não é o que devemos pensar acrescido ao conceito dado, mas o que efetivamente pensamos nele, embora de modo apenas obscuro, e com isso se mostra que na verdade o predicado adere àqueles conceitos de maneira necessária, mas não como pensado no próprio conceito, e sim mediante uma intuição que se precisa acrescentar ao conceito. 2. A ciência da Natureza contém em si juízos sintéticos a priori como princípios. A título de exemplo, quero mencionar apenas algumas proposições tais como a seguinte: em todas as mudanças do mundo corpóreo a quantidade da matéria permanece imutável, ou, em toda comunicação de movimento ação e reação têm que ser sempre iguais entre si. Em ambas é clara não apenas a necessidade, por conseguinte a sua origem a priori, mas também o fato de serem proposições sintéticas. Pois no conceito de matéria penso não a permanência, mas somente sua presença no espaço pelo preenchimento do mesmo. Portanto, vou efetivamente além do conceito de matéria para pensar acrescido a priori ao mesmo algo que não pensara nele. A proposição não é portanto analítica, mas sintética e não obstante pensada a priori, e assim nas restantes proposições da parte pura da Ciência da Natureza. 3. Na Metafísica que se encare como uma ciência até agora apenas tentada não obstante indispensável devido à natureza da razão humana, devem estar contidos conhecimentos sintéticos a priori, e de maneira alguma lhe cabe apenas desmembrar conceitos que nos fazemos a priori de coisas e por meio disso elucidá-los analiticamente, mas queremos ampliar o nosso conhecimento a priori; para tanto, temos de servir-nos daqueles princípios que ao conceito dado acrescentam algo não contido nele e que por meio de juízos sintéticos a priori venhamos quiçá a ir tão longe que a própria experiência não pode nos seguir até tal ponto, por exemplo na proposição: o mundo tem de ter um primeiro começo, em outras ocasiões ainda, e destarte a Metafísica pelo menos segundo o seu fim, consiste em meras proposições sintéticas a priori. VI. Problema geral da razão pura Ganha-se muitíssimo quando se pode submeter grande quantidade de investigações à fórmula de um único problema. Pois assim não se facilita só o próprio trabalho na medida em que se o determina exatamente, mas também o juízo de qualquer outra pessoa que quiser examinar se realizamos a contento o nosso propósito ou não. Ora, o verdadeiro problema da razão pura está contido na pergunta: como são possíveis juízos sintéticos a priori? Que até hoje a Metafísica permaneceu numa situação tão vacilante entre incertezas e contradições, deve atribuir-se apenas à causa de não se ter antes deixado vir à mente esse problema e talvez mesmo a diferença entre juízos analíticos e sintéticos. Sobre a solução desse problema ou sobre uma prova satisfatória de que de fato absolutamente não ocorre a possibilidade que a Metafísica exige saber explicada, repousa a ascensão e queda da Metafísica. David Hume, que dentre todos os filósofos mais se aproximou desse problema sem contudo sequer de longe pensá-lo determinado o suficiente e em sua universalidade, mas se detendo apenas na proposição sintética da conexão do efeito com suas causas (principium causalitatis), creu estabelecer que tal proposição a priori fosse inteiramente impossível; segundo suas conclusões, tudo o que denominamos Metafísica desembocaria em mera ilusão de uma pretensa compreensão racional daquilo que de fato foi simplesmente tomado emprestado da experiência e que pelo hábito se revestiu da aparência de necessidade. Se tivesse tido diante dos seus olhos o nosso problema na sua universalidade, jamais teria incidido em semelhante afirmação destruidora de toda filosofia pura, uma vez que teria então compreendido que segundo seu argumento também não poderia haver uma matemática pura, pois esta certamente contém proposições sintéticas a priori, e neste caso o seu bom senso talvez o teria preservado de semelhante afirmação. Na solução do problema precedente está ao mesmo tempo incluída a possibilidade de o uso puro da razão fundar e levar a cabo todas as ciências que contêm um conhecimento teórico a priori de objetos, isto é, responder às perguntas: Como é possível a matemática pura? Como é possível a ciência pura da natureza? Ora, visto que essas ciências são realmente dadas, parece pertinente perguntar como são possíveis, pois que têm que ser possíveis é provado pela sua realidade. (Alguns ainda poderiam duvidar desta última coisa relativa à ciência pura da natureza. Todavia, basta ver as diversas proposições que ocorrem no começo da Física propriamente dita (empírica) - como a da permanência da mesma quantidade de matéria, a da inércia, a da igualdade de ação e reação etc. - para logo se convencer de que perfazem uma physicam puram (ou racional) que, como ciência especial, bem merece ser erigida separadamente em toda a sua extensão, seja esta restrita ou vasta. Nota do Autor.) No que tange à Metafísica, o seu mísero progresso até aqui e o fato de não se poder dizer, com respeito a nenhum dos sistemas até hoje expostos, que realmente exista no que concerne ao seu fim essencial, dão a cada um razões para duvidar de sua possibilidade. Não obstante, essa espécie de conhecimento também pode ser considerada dada em certo sentido, e embora não como ciência, a Metafísica é contudo real como disposição natural (metaphysica naturalis). Com efeito, sem ser movida pela mera vaidade da erudição, mas impelida pela sua própria necessidade, a razão humana progride irresistivelmente até perguntas que não podem ser respondidas por nenhum uso da razão na experiência nem por princípios daí tomados emprestados, e assim alguma metafísica sempre existiu e continuará a existir realmente em todos os homens, tão logo a razão se estenda neles até a especulação. Com respeito a essa metafísica cabe agora a pergunta: como é possível a metafísica como disposição natural? Ou seja, como surgem da natureza da razão humana universal as perguntas que a razão pura levanta para si mesma e que é impelida a responder, tão bem quanto pode, por sua própria necessidade? Já que em todas as tentativas feitas até agora para responder a essas perguntas naturais, por exemplo se o mundo tem um começo ou se é desde toda a eternidade etc. encontram-se sempre inevitáveis contradições, não se pode então contentar-se com a mera disposição natural para a metafísica, isto é, com a própria faculdade pura da razão, da qual sempre resulta alguma meta física (seja qual for), mas com tal disposição tem que ser possível alcançar uma certeza quanto ao saber ou não saber dos objetos, isto é, ou decidir sobre os objetos de suas perguntas ou sobre a capacidade ou a incapacidade da razão julgar algo a respeito deles, portanto ou ampliar com confiança a nossa razão pura ou impor-lhe limites determinados e seguros. Esta última pergunta, decorrente do problema geral precedente, seria com direito a seguinte: como é possível a Metafísica como ciência? Portanto, a crítica da razão conduz por fim necessariamente à ciência; o uso dogmático da razão sem crítica conduz, ao contrário, a afirmações infundadas às quais se pode contrapor outras igualmente aparentes, por conseguinte ao ceticismo. Esta ciência tampouco pode ser de uma vastidão desencorajante, pois tem que lidar não com os objetos da razão, cuja multiplicidade é infinita, mas somente com a própria razão, isto é, com problemas que surgem inteiramente do seu seio e não lhe são propostos pela natureza das coisas, as quais são diferentes dela, mas pela sua própria natureza. Em tal caso, quando a razão aprendeu a conhecer completamente a sua própria faculdade no tocante aos objetos que podem lhe ocorrer na experiência, tem que se tomar fácil determinar completa e seguramente o âmbito e os limites do seu tentado uso acima de todos os limites da experiência. Portanto, todas as tentativas feitas até agora para realizar dogmaticamente uma metafísica podem e têm que ser encaradas como não ocorridas. Com efeito, o que numa ou noutra há de analítico, isto é, um simples desmembramento dos conceitos que residem a priori em nossa razão, não chega a constituir ainda o fim, mas apenas uma promoção com vistas à verdadeira Metafísica, isto é, a ampliar sinteticamente o seu conhecimento a priori; tal desmembramento é imprestável para o último por apenas mostrar o que está contido nestes conceitos, não porém como chegamos a priori a tais conceitos para que segundo isso também podermos determinar o seu uso válido com respeito aos objetos de todo o conhecimento em geral. O abandono de todas essas pretensões também requer pouca abnegação, uma vez que as inegáveis e também inevitáveis contradições da razão consigo mesma no procedimento dogmático privaram há tempo de sua reputação toda metafísica precedente. Será necessária maior firmeza para que a dificuldade interior e a resistência exterior não nos dissuada de finalmente promover, por abordagem completamente oposta a até agora adotada, o crescimento próspero e frutífero de uma ciência indispensável à razão humana, da qual se pode cortar cada ramo despontado, mas não exterminar as raízes. VII. Ideia e divisão de uma ciência especial sob o nome de uma Crítica da razão pura De tudo isso resulta a ideia de uma ciência especial que pode denominar-se Crítica da razão pura. Pois a razão é a faculdade que fornece os princípios do conhecimento a priori. Por isso a razão pura é aquela que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori. Um órganon da razão pura seria um conjunto daqueles princípios segundo os quais todos os conhecimentos puros a priori podem ser adquiridos e efetivamente realizados. A aplicação detalhada de tal órganon proporcionaria um sistema da razão pura. Mas já que isso é pedir muito e que ainda é incerto se também aqui e em que casos chega a ser possível uma ampliação do nosso conhecimento, podemos encarar uma ciência do simples julgamento da razão pura, das suas fontes e seus limites, como a propedêutica ao sistema da razão pura. Tal ciência teria que se denominar não uma doutrina, mas somente Crítica da razão pura, e sua utilidade seria realmente apenas negativa com respeito à especulação, servindo não para a ampliação, mas apenas para a purificação da nossa razão e para mantê-la livre de erros, o que já significaria um ganho notável. Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com nosso modo de conhecimento de objetos na medida em que este deve ser possível a priori. Um sistema de tais conceitos denominar-se-ia filosofia transcendental. Para o início essa filosofia é ainda demasiada. Com efeito, uma vez que tal ciência teria que conter completamente tanto o conhecimento analítico quanto o sintético a priori, no tocante ao nosso propósito ela é de um âmbito demasiado vasto, já que só nos é permitido impulsionar a análise na medida em que é imprescindivelmente necessária para discernir os princípios da síntese a priori em toda a sua extensão, a única coisa que nos interessa. Com essa investigação ocupamo-nos agora. Não podemos denominá-la propriamente doutrina, mas somente crítica transcendental, pois tem como propósito não a ampliação dos próprios conhecimentos, mas apenas sua retificação, devendo fornecer a pedra de toque que decide sobre o valor ou desvalor de todos os conhecimentos a priori. Na medida do possível, por conseguinte, tal crítica é uma preparação para um órganon e, se este não tiver êxito, pelo menos para um cânone dos conhecimentos a priori, segundo o qual talvez possa algum dia ser apresentado tanto analítica quanto sinteticamente o sistema completo da filosofia da razão pura, quer este consista na ampliação, quer na mera limitação de seu conhecimento. Pois que isso seja possível, e inclusive que tal sistema não possa ser de grande âmbito para que se tenha esperanças de levá-lo completamente a termo, pode-se avaliar já antecipadamente pelo fato do objeto não consistir aqui na natureza das coisas, que é inesgotável, mas no entendimento, que julga sobre a natureza das coisas, e este também, por sua vez, só no tocante ao seu conhecimento a priori, pelo fato de não precisarmos procurá-la fora de nós, não pode permanecer oculta e é, segundo todas conjeturas, suficientemente pequena para ser completamente abarcada, julgada conforme a seu valor ou desvalor e submetida a uma avaliação correta. Menos ainda se pode esperar aqui uma crítica dos livros e sistemas da razão pura, mas sim a da própria faculdade da pura razão. Somente sobre a base desta crítica se possui uma pedra de toque segura para avaliar o conteúdo filosófico de obras antigas e novas neste ramos; caso contrário, o historiógrafo e juiz incompetente julga afirmações infundadas de outros mediante suas próprias, que são igualmente infundadas. A filosofia transcendental é a ideia de uma ciência para a qual a Crítica da razão pura deverá projetar o plano completo, arquitetonicamente, isto é, a partir de princípios, com plena garantia da completude e segurança de todas as partes que perfazem este edifício. Ela é o sistema de todos os princípios da razão pura. Que esta Crítica já não se denomina ela mesma filosofia transcendental repousa simplesmente no fato de que, para ser um sistema completo, precisaria conter também uma análise detalhada de todo o conhecimento humano a priori. Ora, é verdade que nossa Crítica certamente tem que pôr diante dos olhos também uma enumeração completa de todos os conceitos primitivos que perfazem o referido conhecimento puro. Só que é dado à Crítica abster-se da análise detalhada desses mesmos conceitos bem como da completa recensão dos daí derivados, em parte porque esse desmembramento não seria conveniente na medida em que não apresenta a dificuldade encontrada na síntese, em vista da qual propriamente existe a Crítica inteira, em parte porque contrariaria a unidade do plano ocupar-se com a responsabilidade da completude de tal análise e derivação, da qual bem se poderia estar dispensado no que tange ao nosso propósito. Essa completude tanto do desmembramento quanto da derivação a partir dos conceitos a priori a serem fornecidos futuramente é, entretanto, fácil de completar, contanto que esses conceitos estejam primeiramente aí como princípios detalhados da síntese e que nada falte com respeito a esse propósito essencial. À Crítica da razão pura pertence, portanto, tudo o que perfaz a filosofia transcendental, e ela é a ideia completa da filosofia transcendental, mas não ainda esta ciência mesma, pois a Crítica avança na análise apenas até o quanto é requerido para o julgamento completo do conhecimento sintético a priori. O principal alvo, na divisão de tal ciência, é que absolutamente nenhum conceito contendo algo empírico seja admitido nela, ou que o conhecimento a priori seja inteiramente puro. Por isso, embora os princípios supremos e os conceitos fundamentais da moralidade sejam conhecimentos a priori, não pertencem à filosofia transcendental porque eles mesmos na verdade não tomam como fundamento dos seus preceitos os conceitos de prazer e desprazer, de desejos e inclinações etc., que são todos de origem empírica, todavia, na composição do sistema da moralidade pura têm necessariamente que envolvê-los no conceito de dever, seja como obstáculo a ser vencido ou seja como estímulo que não deve ser transformado em motivo. A filosofia transcendental é portanto uma sabedoria mundana da razão pura meramente especulativa. Pois todo o prático, na medida em que contém motivos, refere-se a sentimentos, os quais pertencem à fontes empíricas do conhecimento. Se se quiser estabelecer a divisão desta ciência desde o ponto de vista universal de um sistema em geral, então a divisão que agora expomos precisa conter primeiro uma doutrina dos elementos, segundo uma doutrina do método da razão pura. Cada uma dessas partes principais teria sua subdivisão cujas razões ainda não podem, todavia, ser expostas aqui. Como introdução ou advertência parece necessário dizer apenas que há dois troncos do conhecimento humano que talvez brotem de uma raiz comum, mas desconhecida a nós, a saber, sensibilidade e entendimento: pela primeira objetos são-nos dados, mas pelo segundo são pensados. Ora, na medida em que a sensibilidade devesse conter representações a priori, as quais perfazem a condição sob a qual nos são dados objetos, pertenceria à filosofia transcendental. A doutrina transcendental dos sentidos teria que pertencer à primeira parte da ciência dos elementos, pois as condições sob as quais unicamente os objetos do conhecimento humano são dados precedem aquelas sob as quais os mesmos são pensados. I DOUTRINA TRANSCENDENTAL DOS ELEMENTOS PRIMEIRA PARTE DA DOUTRINA TRANSCENDENTAL DOS ELEMENTOS ESTÉTICA TRANSCENDENTAL §1 SEJA DE QUE modo e com que meio um conhecimento possa referir-se a objetos, o modo como ele se refere imediatamente aos mesmos e ao qual todo pensamento como meio tende, é a intuição. Esta, contudo, só ocorre na medida em que o objeto nos for dado; a nós homens pelo menos, isto só é por sua vez possível pelo fato do objeto afetar a mente de certa maneira. A capacidade (receptividade) de obter representações mediante o modo como somos afetados por objetos denomina-se sensibilidade. Portanto, pela sensibilidade nos são dados objetos e apenas ela nos fornece intuições; pelo entendimento, em vez, os objetos são pensados e dele se originam conceitos. Todo pensamento, contudo, quer diretamente (directe), quer por rodeios (indirecte), através de certas características, finalmente tem de referir-se a intuições, por conseguinte em nós à sensibilidade, pois de outro modo nenhum objeto pode ser-nos dado. O efeito de um objeto sobre a capacidade de representação, na medida em que somos afetados pelo mesmo, é sensação. Aquela intuição que se refere ao objeto mediante sensação denomina-se empírica. O objeto indeterminado de uma intuição empírica denomina-se fenômeno. Aquilo que no fenômeno corresponde à sensação denomino sua matéria, aquilo porém que faz que o múltiplo do fenômeno possa ser ordenado em certas relações denomino a forma do fenômeno. Já que aquilo unicamente no qual as sensações podem se ordenar e ser postas em certa forma não pode, por sua vez, ser sensação, então a matéria de todo fenômeno nos é dada somente a posteriori, tendo porém a sua forma que estar toda à disposição a priori na mente e poder ser por isso considerada separadamente de toda a sensação. Denomino puras (em sentido transcendental) todas as representações em que não for encontrado nada pertencente à sensação. Consequentemente, a forma pura de intuições sensíveis em geral, na qual todo o múltiplo dos fenômenos é intuído em certas relações, será encontrada a priori na mente. Essa forma pura da sensibilidade também se denomina ela mesma intuição pura. Assim, quando separo da representação de um corpo aquilo que o entendimento pensa a respeito, tal como substância, força, divisibilidade etc., bem como aquilo que pertence à sensação, tal como impenetrabilidade, dureza, cor etc., para mim ainda resta algo dessa intuição empírica, a saber, extensão e figura. Ambas pertencem à intuição pura, que mesmo sem um objeto real dos sentidos ou da sensação ocorre a priori na mente como uma simples forma da sensibilidade. Denomino estética transcendental uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori. (Os alemães são os únicos a agora usarem a palavra estética para designar o que os outros denominam critica do gosto. Esta denominação funda-se numa falsa esperança, concebida pelo excelente pensador analítico Baumgarten, de submeter a avaliação critica do belo a princípios racionais e de elevar as regras da mesma ciência. Este esforço é, entretanto, vão, pois tais regras ou critérios são, com respeito às suas principais fontes, meramente empíricas e portanto jamais podem servir como leis a priori determinadas pelas quais teria que se regular o nosso juízo de gosto; este último constitui, muito antes, a pedra de toque da correção das primeiras. Em vista disso, aconselha-se deixar por sua vez de lado esta denominação, reservando-a à doutrina que seja verdadeira ciência (deste modo aproximar-nos-emos da linguagem e do sentido dos antigos, para os quais a divisão do conhecimento em ??????????????????? era bastante famosa), ou partilhar tal denominação com a filosofia especulativa e tomar a estética ora em sentido transcendental, ora em significado psicológico. Nota do Autor.) Portanto, tem que haver tal ciência que perfaça a primeira parte da doutrina transcendental dos elementos, em oposição à que contém os princípios do pensamento puro e denominada lógica transcendental. Na Estética Transcendental, por conseguinte, primeiro isolaremos a sensibilidade separando tudo o que o entendimento pensa nela mediante seus conceitos, a fim de que não reste senão a intuição empírica. Em segundo lugar, desta última ainda separaremos tudo o que pertence à sensação, a fim de que nada mais reste senão a intuição pura e mera forma dos elementos, a única coisa que a sensibilidade pode fornecer a priori. No decurso desta investigação, ver-se-á que há duas formas puras da intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori, a saber, espaço e tempo, com o exame das quais nos ocuparemos agora. SEÇÃO PRIMEIRA DA ESTÉTICA TRANSCENDENTAL DO ESPAÇO § 2. Exposição metafísica deste conceito Mediante o sentido externo (uma propriedade da nossa mente) representamo-nos objetos como fora de nós e todos juntos no espaço. Neste são determinadas ou determináveis as suas figura, magnitude e relação recíproca. O sentido interno, mediante o qual a mente intui a si mesma ou o seu próprio estado interno, na verdade não proporciona nenhuma intuição da própria alma como um objeto; consiste apenas numa forma determinada unicamente sob a qual é possível a intuição do seu estado interno, de modo a tudo o que pertence às determinações internas ser representado em relações de tempo. O tempo não pode ser intuído externamente, tampouco quanto o espaço como algo em nós. Que são, porém, espaço e tempo? São entes reais? São apenas determinações ou também relações das coisas, tais porém que dissessem respeito às coisas em si, mesmo que não fossem intuídas? Ou são determinações ou relações inerentes apenas à forma da intuição e, por conseguinte, à natureza subjetiva da nossa mente, sem a qual tais predicados não podem ser atribuídos a coisa alguma? Para nos instruirmos sobre isso, queremos em primeiro lugar expor o conceito de espaço. Por exposição (expositio) entendo a representação clara (ainda que não detalhada) daquilo que pertence a um conceito; essa exposição é, porém, metafísica quando contém aquilo que apresenta o conceito enquanto dado a priori. 1) O espaço não é um conceito empírico abstraído de experiências externas. Pois a representação de espaço já tem de estar subjacente para certas sensações se referirem a algo fora de mim (isto é, a algo num lugar do espaço diverso daquele em que me encontro), e igualmente para eu poder representá-las como fora de mim e uma ao lado da outra e por conseguinte não simplesmente como diferentes, mas como situadas em lugares diferentes. Logo, a representação do espaço não pode ser tomada emprestada, mediante a experiência, das relações do fenômeno externo, mas esta própria experiência externa é primeiramente possível só mediante referida representação. 2) O espaço é uma representação a priori necessária que subjaz a todas as intuições externas. Jamais é possível fazer-se uma representação de que não haja espaço algum, embora se possa muito bem pensar que não se encontre objeto algum nele. Ele é, portanto, considerado a condição da possibilidade dos fenômenos e não uma determinação dependente destes; é uma representação a priori que subjaz necessariamente aos fenômenos externos. 3) O espaço não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal de relações das coisas em geral, mas sim uma intuição pura. Em primeiro lugar, só se pode representar um espaço uno, e quando se fala de muitos espaços entende-se com isso apenas partes de um e mesmo espaço único. Essas partes não podem tampouco preceder o espaço uno, que tudo compreende, como se fossem suas partes componentes (a partir das quais seria possível sua composição), mas só ser pensadas nele. O espaço é essencialmente uno; o múltiplo nele, por conseguinte também o conceito universal de espaços em geral, repousa apenas sobre limitações. Disso segue-se que, no tocante ao espaço, uma intuição a priori (não empírica) subjaz a todos os conceitos do mesmo. Assim todos os princípios geométricos, por exemplo que num triângulo a soma de dois lados é maior do que o terceiro lado, jamais são derivados dos conceitos universais linha e triângulo, mas sim da intuição, e isso a priori com certeza apodítica. 4) O espaço é representado como uma magnitude infinita dada. Ora, é verdade que se precisa pensar cada conceito como uma representação contida num número infinito de diversas representações possíveis (como sua característica comum), portanto contendo sob si tais representações; mas nenhum conceito como tal pode ser pensado como se contivesse em si um número infinito de representações. Não obstante, o espaço é pensado desse modo (pois todas as partes do espaço são simultâneas ao infinito). A representação originária do espaço é, portanto, intuição a priori e não conceito. § 3. Exposição transcendental do conceito de espaço Por exposição transcendental entendo a explicação de um conceito como um princípio a partir do qual se possa compreender a possibilidade de outros conhecimentos sintéticos a priori. Para esse intuito exigir-se-á: 1) que tais conhecimentos efetivamente fluam do conceito dado, 2) que esses conhecimentos sejam possíveis somente pressupondo um modo dado de explicar tal conceito. Geometria é uma ciência que determina sinteticamente e mesmo assim a priori as propriedades do espaço. Que deve ser, pois, a representação do espaço para que seja possível tal conhecimento dele? O espaço tem que ser originariamente intuição, já que de um simples conceito não se podem extrair proposições que ultrapassem o conceito, coisa que acontece na Geometria (Introdução, V). Mas essa intuição tem que ser encontrada em nós a priori, isto é, antes de toda a percepção de um objeto, portanto, tem que ser intuição pura e não empírica. Com efeito, as proposições geométricas são todas apodíticas, isto é, ligadas à consciência da sua necessidade, por exemplo: o espaço tem só três dimensões; mas proposições tais não podem ser juízos empíricos ou de experiência, nem inferidas dos mesmos (Introdução, Il). Ora, como pode estar presente na mente uma intuição externa que precede os próprios objetos e na qual o conceito destes últimos pode ser determinado a priori? De nenhum outro modo, evidentemente, senão na medida em que tem sua sede apenas no sujeito enquanto a disposição formal do mesmo a ser afetado por objetos e para obter assim uma representação imediata, isto é, uma intuição deles, portanto só como forma do sentido externo em geral. Logo, unicamente a nossa explicação torna concebível a possibilidade da Geometria como um conhecimento sintético a priori. Toda maneira de explicar que não fornece isso, embora aparente alguma semelhança com a nossa, pode dela ser distinguida com a maior segurança por essas características. Conclusões a partir dos conceitos acima a) O espaço de modo algum representa uma propriedade de coisas em si, nem tampouco estes em suas relações recíprocas; isto é, não representa qualquer determinação das mesmas que seja inerente aos próprios objetos e permaneça ainda que se abstraia de todas as condições subjetivas da intuição. Com efeito, nem determinações absolutas nem relativas podem ser intuídas antes da existência das coisas às quais dizem respeito, e por conseguinte também não a priori. b) O espaço não é senão a forma de todos os fenômenos dos sentidos externos, isto é, a condição subjetiva da sensibilidade unicamente sob a qual nos é possível intuição externa. Ora, visto que a receptividade do sujeito ser afetado por objetos necessariamente precede toda a intuição destes objetos, compreendem-se como a forma de todos os fenômenos pode ser dada na mente antes de todas as percepções efetivas, por conseguinte a priori, e como ela, enquanto uma intuição pura na qual todos os objetos têm que ser determinados, pode conter, antes de toda a experiência, princípios das relações dos mesmos. Somente desde o ponto de vista humano podemos, portanto, falar do espaço, de entes extensos etc. Se nos afastamos da condição subjetiva unicamente sob a qual podemos obter intuição externa, ou seja, do modo como podemos ser afetados por objetos, então a representação do espaço não significa absolutamente nada. Este predicado só é atribuído às coisas na medida em que nos aparecem, isto é, são objetos da sensibilidade. A forma constante dessa receptividade, denominada sensibilidade, é uma condição necessária de todas as relações em que objetos são intuídos como fora de nós, e quando se abstrai desses objetos é uma intuição pura que leva o nome espaço. Como das condições particulares da sensibilidade não podemos fazer condições da possibilidade das coisas, mas somente dos seus fenômenos, podemos muito bem dizer que o espaço abarca todas as coisas que nos podem aparecer externamente, mas não todas as coisas em si mesmas, possam estas ser intuídas ou não ou também ser intuídas pelo sujeito que se quiser. Relativamente às intuições de outros entes pensantes, com efeito não podemos absolutamente julgar se estão vinculadas às mesmas condições que limitam a nossa intuição e nos são universalmente válidas. Se ao conceito do sujeito acrescentarmos a limitação de um juízo, então este vale incondicionalmente. A proposição: todas as coisas estão justapostas no espaço, vale sobre a limitação de que estas coisas sejam tomadas como objetos da nossa intuição sensível. Se acrescento aqui a condição ao conceito e digo: todas as coisas enquanto fenômenos externos estão justapostas no espaço, então essa regra vale universalmente e sem limitação. Nossas exposições ensinam, portanto a realidade (isto é, a validade objetiva) do espaço no tocante a tudo o que pode nos ocorrer externamente como objeto, mas ao mesmo tempo a idealidade do espaço no tocante às coisas quando ponderadas em si mesmas pela razão, isto é, sem levar em conta a natureza da nossa sensibilidade. Logo, afirmamos a realidade empírica do espaço (com vistas a toda possível experiência externa) e não obstante a sua idealidade transcendental, isto é, que ele nada é tão logo deixemos de lado a condição da possibilidade de toda a experiência e o admitamos como algo subjacente às coisas em si mesmas. Fora do espaço, aliás, não há outra representação subjetiva e referida a algo externo que pudesse a priori chamar-se objetiva. De fato, de nenhuma dessas representações pode-se derivar proposições sintéticas a priori, tal como se pode fazê-lo da intuição no espaço (§ 3). Para falar com precisão, por conseguinte, não se atribui idealidade a nenhuma dessas representações, embora concordem com a representação do espaço no fato de pertencerem apenas à disposição subjetiva do modo dos sentidos serem, por exemplo da visão, do ouvido, do tato mediante as sensações das cores, dos sons e do calor; mas pelo fato de serem só sensações e não intuições, essas representações não dão em si a conhecer, muito menos a priori, objeto algum. Essa observação visa apenas impedir que ocorra a alguém elucidar a afirmada idealidade do espaço mediante exemplos de longe insuficientes, uma vez que cores, gosto etc., não podem com justiça ser considerados disposições das coisas, mas apenas modificações do nosso sujeito que podem até ser diferentes em diferentes homens. Pois neste caso, o que originariamente é apenas fenômeno, por exemplo uma rosa, vale em sentido empírico por uma coisa em si mesma, que com respeito à cor pode aparecer a cada olho de um modo diverso. Diante disso, o conceito transcendental dos fenômenos no espaço é uma advertência crítica de que em geral nada intuído no espaço é uma coisa em si e de que o espaço tampouco é uma forma das coisas que lhes é própria quiçá em si mesmas, mas sim que os objetos em si de modo algum nos são conhecidos e que os por nós denominados objetos externos não passam de meras representações da nossa sensibilidade, cuja forma é o espaço e cujo verdadeiro correlatum, contudo, isto é, a coisa em si mesma, não é nem pode ser conhecida com a mesma e pela qual também jamais se pergunta na experiência. SEÇÃO SEGUNDA DA ESTÉTICA TRANSCENDENTAL DO TEMPO § 4. Exposição metafísica do conceito de tempo 1) O tempo não é um conceito empírico abstraído de qualquer experiência. Com efeito, a simultaneidade ou a sucessão nem sequer se apresentaria à percepção se a representação do tempo não estivesse subjacente a priori. Somente a pressupondo pode-se representar que algo seja num e mesmo tempo (simultâneo) ou em tempos diferentes (sucessivo). 2) O tempo é uma representação necessária subjacente a todas intuições. Com respeito aos fenômenos em geral, não se pode suprimir o próprio tempo, não obstante se possa do tempo muito bem eliminar os fenômenos. O tempo é, portanto, dado a priori. Só nele é possível toda a realidade dos fenômenos. Estes podem todos em conjunto desaparecer, mas o próprio tempo (como a condição universal da sua possibilidade) não pode ser supresso. 3) Sobre essa necessidade a priori também se funda a possibilidade de princípios apodíticos das relações do tempo, ou de axiomas do tempo em geral. Ele possui uma única dimensão: diversos tempos não são simultâneos, mas sucessivos (assim como diversos espaços não são sucessivos, mas simultâneos). Esses princípios não podem ser tirados da experiência, pois esta não forneceria nem universalidade rigorosa nem certeza apodítica. Poderíamos apenas dizer: assim o ensina a percepção comum; não porém: as coisas têm que se passar assim. Esses princípios valem como regras sob as quais em geral são possíveis experiências, e nos instruem antes de tais experiências e não pelas mesmas. 4) O tempo não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal, mas uma forma pura da intuição sensível. Tempos diferentes são apenas partes precisamente do mesmo tempo. A representação que só pode ser dada por um único objeto é, porém, intuição. A proposição de que tempos diferentes não podem ser simultâneos, também não se deixaria derivar de um conceito universal. A proposição é sintética e não pode originar-se unicamente de conceitos. Está, portanto, contida imediatamente na intuição e representação do tempo. 5) A infinitude do tempo nada mais significa senão que toda a magnitude determinada do tempo só é possível mediante limitações de um tempo uno subjacente. A representação originária tempo, portanto, tem que ser dada como ilimitada. Mas onde as próprias partes e cada magnitude de um objeto podem ser representadas determinadamente apenas por limitação, a inteira representação não tem que ser dada por conceitos (pois estes só contém representações parciais), mas tem que lhes subjazer uma intuição imediata. § 5. Exposição transcendental do conceito de tempo Posso a propósito reportar-me ao n° 3, onde, para ser breve, coloquei o que é propriamente transcendental sob o artigo da exposição metafísica. Aqui acrescento ainda que o conceito de mudança e, com ele, o conceito de movimento (como mudança de lugar) só é possível por e na representação de tempo: se essa representação não fosse intuição (interna) a priori, nenhum conceito, seja qual for, poderia tornar compreensível a possibilidade de uma mudança, isto é, de uma ligação de predicados opostos contraditoriamente (por exemplo o ser e o não ser de uma mesma coisa no mesmo lugar) num e mesmo objeto. Somente no tempo, isto é, sucessivamente, duas determinações opostas contraditoriamente podem ser encontradas numa coisa. Nosso conceito de tempo explica, portanto, a possibilidade de tanto conhecimento sintético a priori quando é exposto pela doutrina geral do movimento, a qual não é pouco fecunda. § 6. Conclusões a partir desses conceitos a) O tempo não é algo que subsista por si mesmo ou que adere às coisas como determinação objetiva, e que por conseguinte restaria ao se abstrair de todas as condições subjetivas da intuição das mesmas; pois no primeiro caso, o tempo seria algo real mesmo sem objeto real. No que concerne ao segundo caso, porém, enquanto uma determinação ou ordem aderente às próprias coisas, o tempo não poderia preceder os objetos como sua condição, nem ser conhecido e intuído a priori por proposições sintéticas. Ao contrário, isso pode muito bem ocorrer se o tempo nada mais for senão a condição subjetiva sob a qual podem ocorrer em nós todas as intuições. Pois então essa forma da intuição interna pode ser representada antes dos objetos, por conseguinte a priori. b) O tempo nada mais é senão a forma do sentido interno, isto é, do intuir a nós mesmos e a nosso estado interno. Com efeito, o tempo não pode ser uma determinação de fenômenos externos; não pertencem nem a uma figura ou posição etc., determinando ao contrário a relação das representações em nosso estado interno. E justamente porque essa intuição interna não fornece figura alguma, procuramos também substituir essa carência por analogias e representamos a sucessão temporal por uma linha avançada ao infinito, na qual o múltiplo perfaz uma série de uma única dimensão, e das propriedades dessa linha inferimos todas as propriedades do tempo, excetuando apenas a de que as partes da linha são simultâneas e as partes do tempo sempre sucessivas. Isso aclara também que a representação do próprio tempo é intuição, pois todas as suas relações podem ser expressas numa intuição externa. c) O tempo é a condição formal a priori de todos os fenômenos em geral. Enquanto forma pura de toda intuição externa, como condição a priori o espaço está limitado apenas a fenômenos externos. Diante disso, visto que todas as representações, tenham como objeto coisas externas ou não, em si mesmas, como determinações da mente, pertencem ao estado interno, ao passo que este estado interno subsume-se à condição formal de intuição interna e portanto ao tempo, então o tempo é uma condição a priori de todo o fenômeno em geral, e na verdade a condição imediata dos fenômenos internos (das nossas almas) e por isso mesmo também mediatamente a dos fenômenos externos. Se posso dizer a priori: todos os fenômenos externos são determinados a priori no espaço e segundo as relações do espaço, a partir do princípio do sentido interno posso então dizer universalmente: todos os fenômenos em geral, isto é, todos os objetos dos sentidos, são no tempo e estão necessariamente em relações de tempo. Se abstrairmos do nosso modo de intuirmos internamente a nós mesmos e de mediante tal intuição abarcarmos todas as intuições externas na capacidade de representação, tomando assim os objetos como possam ser em si mesmos, então o tempo não é nada. Possui validade objetiva apenas no tocante aos fenômenos, pois estes já são coisas que assumimos como objetos dos nossos sentidos; mas deixa de ser objetivo quando se abstrai da sensibilidade da nossa intuição, portanto daquele modo de representação que nos é peculiar, e se fala de coisas em geral. Logo, o tempo é simplesmente uma condição subjetiva da nossa (humana) intuição (que é sempre sensível, isto é, na medida em que somos afetados por objetos), e em si, fora do sujeito, não é nada. Não obstante, no que tange a todos os fenômenos e portanto também a todas as coisas que podem nos ocorrer na experiência, o tempo é necessariamente objetivo. Não podemos dizer: todas as coisas são no tempo, pois no conceito de coisas em geral se abstrai de toda espécie de intuição das mesmas, a qual é contudo a verdadeira condição sob a qual o tempo pertence à representação dos objetos. Ora, se a condição for acrescentada ao conceito e se disser: todas as coisas como fenômenos (objetos da intuição sensível) são no tempo, então o princípio possui sua boa correção objetiva e universalidade a priori. Nossas afirmações ensinam, portanto, a realidade empírica do tempo, isto é, validade objetiva com respeito a todos os objetos que possam ser dados aos nossos sentidos. E uma vez que nossa intuição é sempre sensível, na experiência jamais pode nos ser dado um objeto que não estiver submetido à condição do tempo. Contrariamente, contestamos ao tempo todos reclamos de realidade absoluta, como se, também sem tomar em consideração a forma de nossa intuição sensível, fosse absolutamente inerente às coisas como condição ou propriedade. Tais propriedades concernentes às coisas em si jamais podem nos ser dadas pelos sentidos. Nisso consiste, portanto, a idealidade transcendental do tempo, segundo a qual o mesmo é absolutamente nada se se abstrai das condições subjetivas da intuição sensível, não podendo ser incluído nem como subsistindo nem como inerindo aos objetos em si mesmos (sem a sua relação com a nossa intuição). Essa idealidade, todavia, bem como a do espaço, não deve ser comparada às sub-repções da sensação, porque então se pressupõe do próprio fenômeno ao qual inerem esses predicados uma realidade objetiva que no caso do tempo não se verifica absolutamente, a não ser na medida em que ela é meramente empírica, isto é, encara o próprio objeto apenas como fenômeno. Sobre esse ponto convém rever a observação acima na primeira seção. § 7. Esclarecimento Contra esta teoria que concede ao tempo realidade empírica, mas lhe contesta a absoluta e transcendental, ouvi de homens perspicazes uma objeção tão unânime que disso concluo deva apresentar-se naturalmente a cada leitor não familiarizado com estas considerações. Soa assim: mudanças são reais (isto é provado por variarem nossas próprias representações, mesmo que se quisesse negar todos os fenômenos externos junto com suas mudanças). Ora, mudanças só são possíveis no tempo, consequentemente o tempo é algo real. A resposta não contém nenhuma dificuldade. Aceito todo o argumento. Claro que o tempo é algo real, a saber, a forma real da intuição interna. Possui, portanto, realidade subjetiva com vistas à experiência interna, isto é, tenho efetivamente a representação do tempo e das minhas determinações nele. Logo, precisa ser encarado não como objeto, mas como o modo de me representar a mim mesmo como objeto. Mas se eu mesmo ou outro ente pudesse intuir-me sem essa condição da sensibilidade, neste caso as mesmas determinações que agora nos representamos como mudanças dariam um conhecimento em que de modo algum ocorreria a representação do tempo, por conseguinte também não a de mudança. A realidade empírica do tempo permanece, portanto, a condição de todas as nossas experiências. Segundo o referido acima, apenas a realidade absoluta não lhe pode ser concedida. O tempo nada mais é que a forma da nossa intuição interna. (Em verdade, posso dizer: minhas representações sucedem-se umas às outras, mas isto significa apenas que somos conscientes delas como numa sucessão de tempo, isto é, segundo a forma do sentido interno. O tempo não é, por isso, algo em si mesmo, nem uma determinação objetivamente inerente às coisas. Nota do Autor.) Se a condição particular da nossa sensibilidade lhe for suprimida, desaparece também o conceito do tempo, que não adere aos próprios objetos, mas apenas ao sujeito que os intui. A causa, entretanto, pela qual essa objeção é levantada com tanta unanimidade e precisamente pelos que não sabem objetar nada de plausível contra a doutrina da idealidade do espaço, é a seguinte. Não esperavam poder demonstrar apoditicamente a realidade absoluta do espaço porque se lhes contrapõe o idealismo, segundo o qual a realidade de objetos externos não é suscetível de nenhuma prova rigorosa: ao contrário, a realidade do objeto dos nossos sentidos internos (de mim mesmo e do meu estado) é imediatamente clara pela consciência. Aqueles poderiam constituir uma pura ilusão, mas este é, segundo a sua opinião, algo inegavelmente real. Não levaram em conta, todavia, que ambas as espécies de objetos, sem que se necessite contestar sua realidade como representações, pertencem somente ao fenômeno. Este possui sempre dois aspectos: um em que o objeto é considerado em si mesmo (desconsiderando o modo de intuí-lo, mas cuja natureza permanece justamente por isso sempre problemática), o outro em que se vê a forma da intuição desse mesmo objeto. Tal forma precisa ser procurada não no objeto em si mesmo, mas no sujeito ao qual aquele aparece, não obstante diga efetiva e necessariamente respeito ao fenômeno desse objeto. Tempo e espaço são, portanto, duas fontes de conhecimento das quais se pode tirar a priori diferentes conhecimentos sintéticos; sobretudo a Matemática pura fornece um esplêndido exemplo disso no que concerne aos conhecimentos do espaço e das suas relações. Tomados conjuntamente, tempo e espaço são formas puras de toda intuição sensível, e desse modo tornam possíveis proposições sintéticas a priori. Mas essas fontes de conhecimento a priori determinam os próprios limites pelo fato de serem simplesmente condições da sensibilidade, isto é, pelo fato de se referirem a objetos só na medida em que são considerados fenômenos, mas sem apresentarem coisas em si mesmas. O campo da sua validade é constituído unicamente pelos fenômenos, e quando se sai dele não se verifica mais nenhum uso objetivo dos mesmos. Essa realidade do espaço e do tempo deixa, de resto, intata à segurança do conhecimento de experiência: com efeito, estamos seguros dele quer essas formas sejam necessariamente inerentes às coisas em si mesmas, quer apenas à nossa intuição destas coisas. Ao contrário, aqueles que afirmam a realidade absoluta do espaço e do tempo, seja que a aceitem como subsistente ou apenas como inerente, têm que se achar em conflito com os princípios da própria experiência. Com efeito, no caso de se decidirem por uma realidade subsistente (nesta facção incluem-se comumente os investigadores matemáticos da natureza), precisam admitir dois não entes eternos infinitos subsistentes por si (espaço e tempo) que existem (mesmo sem serem algo real) somente para abarcar em si todo o real. Se tomarem o segundo partido (ao qual pertencem alguns teóricos metafísicos da natureza), espaço e tempo lhes valendo como relações (coexistentes ou sucessivas) dos fenômenos abstraídas da experiência e não obstante representadas confusamente naquela abstração, neste caso precisam contestar a validade ou pelo menos a certeza apodítica das doutrinas matemáticas a priori concernentes a coisas reais (por exemplo no espaço) na medida em que esta certeza de modo algum ocorre a posteriori. Segundo esta opinião, os conceitos a priori de espaço e tempo são meras criaturas da imaginação, cuja fonte tem que ser procurada efetivamente na experiência; das relações abstraídas da experiência, a imaginação produziu algo que na verdade contém o geral das mesmas, mas que não pode ocorrer sem as restrições que a natureza conectou com tais relações. Os primeiros possuem a grande vantagem de liberarem o campo dos fenômenos para as asserções matemáticas. Por meio dessas mesmas condições, ao contrário confundem-se muito quando o entendimento quer ultrapassar este campo. Os segundos possuem, com relação aos últimos, a vantagem das representações de espaço e tempo não atravessarem seu caminho quando querem julgar sobre objetos não como fenômenos, mas unicamente na relação com o entendimento; contudo, não podem indicar um fundamento da possibilidade de conhecimentos matemáticos a priori (na medida em que lhes falta uma intuição a priori verdadeira, e objetivamente válida) nem levar proposições da experiência a uma concordância necessária com aquelas afirmações. Em nossa teoria sobre a verdadeira constituição dessas duas formas originárias da sensibilidade, ambas as dificuldades são remediadas. Que enfim a estética transcendental não pode conter mais que estes dois elementos, a saber, espaço e tempo, fica claro pelo fato de todos os outros conceitos pertencentes à sensibilidade, mesmo o de movimento, que reúne ambos os elementos, pressuporem algo de empírico. Com efeito, o movimento pressupõe a percepção de algo móvel. Mas no espaço, considerado em si mesmo, nada é móvel: por conseguinte, o que se move tem que ser algo encontrado no espaço só mediante experiência, portanto, um dado empírico. Do mesmo modo, a estética transcendental não pode contar o conceito de mudança entre os seus dados a priori, pois o próprio tempo não muda, mas sim algo que é no tempo. Logo, para isso requer-se a percepção de alguma existência e da sucessão das suas determinações, por conseguinte experiência. § 8. Observações gerais sobre a estética transcendental I. Em primeiro lugar, será necessário explicar do modo mais claro possível qual a nossa opinião a respeito da natureza fundamental do conhecimento sensível em geral, a fim de evitar todo mal-entendido a respeito. Quisemos, portanto, dizer que toda a nossa intuição não é senão a representação de fenômeno: que as coisas intuímos não são em si mesmas tal qual as que intuímos nem que suas relações são em si mesmas constituídas do modo como nos aparecem e que, se suprimíssemos o nosso sujeito ou também apenas a constituição subjetiva dos sentidos em geral, em tal caso desapareceriam toda a constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo espaço e tempo. Todas essas coisas enquanto fenômenos não podem existir em si mesmas, mas somente em nós. O que há com os objetos em si e separados de toda esta receptividade da nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o nosso modo de percebê-los, o qual nos é peculiar e não tem que concernir necessariamente a todo ente, mas sim a todo homem. Temos a ver unicamente com esse modo de percepção. Espaço e tempo são as suas formas puras, sensação em geral a matéria. Podemos conhecer aquelas unicamente a priori, isto é, antes de toda percepção real, e chama-se por isso intuição pura; a última, porém, é o que em nosso conhecimento a faz chamar-se conhecimento a posteriori, isto é, intuição empírica. Aquelas inerem à nossa sensibilidade de modo absolutamente necessário, seja de que espécie forem nossas sensações; estas podem ser bem diversas. Mesmo se pudéssemos elevar essa nossa intuição ao grau supremo de clareza, com isso não nos aproximaríamos mais da natureza dos objetos em si mesmos. Com efeito, em todo o caso conheceríamos inteiramente apenas o nosso modo de intuição, isto é, a nossa sensibilidade, e está sempre só sob as condições espaço e tempo originariamente inerentes ao sujeito: o que possam ser os objetos em si mesmos jamais se nos tornaria conhecido nem mesmo pelo conhecimento mais esclarecido do seu fenômeno, o qual unicamente nos é dado. Sustentar, a partir disso, que toda a nossa sensibilidade não passa da representação confusa das coisas, a qual contém unicamente o que lhes diz respeito em si mesmas, mas só sob a forma de um conglomerado de características e representações parciais que não distinguimos com consciência uma da outra, constitui uma falsificação do conceito de sensibilidade e de fenômeno, inutilizando e esvaziando toda a doutrina sobre os mesmos. A diferença entre uma representação obscura e uma clara é meramente lógica, e não se refere ao conteúdo. Sem dúvida, o conceito de direito utilizado pelo bom senso contém exatamente o mesmo que a mais sutil especulação pode desenvolver a seu respeito, com a diferença apenas que no uso comum e prático não se está consciente destas múltiplas representações neste pensamento. Por isso, não se pode dizer que o conceito vulgar seja sensível e contenha um mero fenômeno; com efeito, o direito nem pode aparecer, mas o seu conceito jaz no entendimento e representa uma natureza (moral) das ações que lhes convém em si mesmas. Ao contrário, na intuição a representação de um corpo não contém nada do que pudesse ser atribuído a um objeto em si mesmo, mas apenas o fenômeno de algo e o modo como somos afetados por ele. Esta receptividade da nossa capacidade de conhecimento denomina-se sensibilidade, a qual permanece infinitamente distinta do conhecimento do objeto em si mesmo ainda que se pudesse penetrar até o fundo do fenômeno. A filosofia de Leibniz e Wolff indicou, por conseguinte, um ponto de vista inteiramente incorreto sobre a natureza e a origem dos nossos conhecimentos na medida em que considerou meramente lógica a diferença entre a sensibilidade e o intelecto. Esta diferença é, na verdade, transcendental e se refere não apenas à forma da clareza ou obscuridade, mas à origem e ao conteúdo dos conhecimentos, assim que por meio da sensibilidade não conhecemos apenas confusamente a natureza das coisas em si mesmas, mas nem sequer a conhecemos e, tão logo eliminemos a nossa constituição subjetiva, em parte alguma se encontrará nem se poderá encontrar o objeto representado com as propriedades que a intuição sensível lhe atribuía na medida em que justamente esta constituição subjetiva determina a forma de tal objeto como fenômeno. De resto, entre fenômenos distinguimos certamente aquilo que inere essencialmente à sua intuição e vale para todo sentido humano em geral daquilo que pertence à intuição apenas acidentalmente na medida em que não é válido com referência à sensibilidade em geral, mas somente a uma posição ou organização particular deste ou daquele sentido. Diz-se do primeiro conhecimento que ele representa o objeto em si mesmo, do segundo, porém, que representa apenas o seu fenômeno. Esta distinção é, contudo, somente empírica. Se se para neste ponto (como sói acontecer) e não se considera por outro lado (como deveria acontecer) aquela intuição empírica como simples fenômeno, de modo a não se poder encontrar nela nada que diga respeito a qualquer coisa em si mesma, então a nossa distinção transcendental está perdida, e em tal caso cremos conhecer coisas em si, embora por toda a parte (no mundo sensível), mesmo na investigação mais profunda dos objetos deste mundo, não estejamos às voltas senão com fenômenos. Assim, é verdade, diremos que o arco-íris é um mero fenômeno ao ensejo de uma chuva entremeada de sol, mas que esta chuva é a coisa em si mesma, o que também é correto na medida em que compreendemos o conceito de chuva apenas fisicamente como algo que numa experiência geral, segundo todas as diversas situações dos sentidos, é não obstante determinado assim e não de outra maneira na intuição. Tomemos, porém, este empírico em geral e, sem nos preocuparmos com a sua concordância com cada sentido humano, perguntemos se ele também representa um objeto em si mesmo (não as gotas de chuva, pois estas já são, como fenômenos, objetos empíricos); em tal caso, a pergunta da referência da representação ao objeto é transcendental, e não apenas essas gotas são meros fenômenos, mas mesmo a sua figura arredondada e até o próprio espaço em que caem nada são em si mesmos, mas constituem simples modificações ou fundamentos da nossa intuição sensível, permanecendo o objeto transcendental desconhecido a nós. O segundo quesito importante da nossa estética transcendental é que não encontre algum favor somente como hipótese plausível, mas seja tão segura e indubitável como sempre se pode exigir de uma teoria que deve servir de órganon. Para tornar inteiramente evidente tal certeza, escolheremos um caso qualquer a partir do qual a validade de tal órganon possa tornar-se palpável e servir a um maior esclarecimento do que já foi mencionado no § 3. Supondo, portanto, que espaço e tempo sejam em si mesmos objetivos e condições da possibilidade das coisas em si mesmas, então disso se segue, em primeiro lugar, que de ambos procedem a priori proposições apodíticas e sintéticas em grande número, sobretudo do espaço, que por tal motivo investigaremos aqui preferentemente como exemplo. Já que as proposições da Geometria são conhecidas de modo sintético a priori e com certeza apodítica, pergunto: donde tirais tais proposições e sobre o que se apoia o nosso entendimento para alcançar tais verdades absolutamente necessárias e universalmente válidas? Não há outro caminho a não ser mediante conceitos ou intuições; ambos, entretanto, como tais que nos são dados ou a priori ou a posteriori. No caso dos conceitos empíricos e da intuição empírica sobre a qual se fundam, não podem dar proposição sintética alguma a não ser uma que também seja meramente empírica, isto é, uma proposição de experiência, a qual portanto jamais pode conter a necessidade e universalidade absoluta características de todas as proposições da Geometria. No que concerne ao primeiro e único meio de chegar a semelhantes conhecimentos, a saber, através de simples conceitos ou de intuições a priori, resulta claro que a partir de meros conceitos não se pode atingir absolutamente nenhum conhecimento sintético, mas unicamente um conhecimento analítico. Tomai apenas a proposição de que com duas linhas retas não se pode encerrar nenhum espaço e portanto não é possível figura alguma, e tentai derivá-la do conceito de linhas retas e do número dois; ou ainda a proposição de que a partir de três linhas retas é possível uma figura, e tentai o mesmo partindo unicamente destes conceitos. Todo o vosso esforço é vão e ver-vos-eis constrangidos a buscar refúgio na intuição, como faz sempre a Geometria. Dai-vos, portanto, um objeto na intuição; de que espécie é esta, uma intuição pura a priori ou uma intuição empírica? Se se tratasse do último, jamais poderia resultar disso uma proposição válida universalmente e ainda menos uma proposição apodítica, pois a experiência jamais pode fornecer semelhantes proposições. Tereis, portanto, que vos dar o objeto a priori na intuição e sobre ele fundar a vossa proposição sintética. Se uma faculdade de intuir a priori não se encontrasse em vós; se esta condição a priori não fosse, segundo a forma, ao mesmo tempo a condição universal a priori unicamente sob a qual é possível o objeto desta própria intuição (externa); se o objeto (o triângulo) fosse algo em si mesmo sem referência a vosso sujeito: como poderíeis dizer que aquilo que necessariamente se situa em vossas condições subjetivas para construir um triângulo também tem que ser atribuído necessariamente ao triângulo em si mesmo? Com efeito, não poderíeis acrescentar aos vossos conceitos (de três linhas) nada novo (a figura), que em consequência teria que se encontrar necessariamente no objeto, uma vez que este é dado antes e não através do vosso conhecimento. Logo, se o espaço (e assim também o tempo) não fosse uma simples forma da vossa intuição contendo condições a priori unicamente sob as quais coisas podem ser para vós objetos externos que sem estas condições subjetivas não são em si nada, neste caso não poderíeis absolutamente decidir algo, a priori e sinteticamente, a respeito de objetos externos. É, portanto, indubitavelmente certo e não apenas possível ou provável que espaço e tempo, como as condições necessárias de toda experiência (externa e interna), são condições meramente subjetivas de toda a nossa intuição em relação às quais, portanto, todos os objetos são simples fenômenos e não coisas dadas por si deste modo. Devido a isto, pode-se dizer a priori muitas coisas sobre os fenômenos no que concerne à sua forma, mas não se pode dizer o mínimo sobre a coisa em si mesma que quiçá subjaz a esses fenômenos. II. Para confirmar esta teoria da idealidade tanto no sentido externo como do interno, por conseguinte de todos os objetos dos sentidos como simples fenômenos, pode servir egregiamente a observação de que tudo o que em nosso conhecimento pertence à intuição (logo excetuados o sentimento do prazer e do desprazer, e a vontade, que de modo algum são conhecimentos) não contém senão meras relações de lugares numa intuição (extensão), de mudança de lugares (movimento), e leis segundo as quais esta mudança é determinada (forças motoras). Mediante tal, porém, não é dado o que está presente no lugar ou o que, fora da mudança de lugar, opera nas próprias coisas. Ora, mediante simples relações não se conhece uma coisa em si: logo, pode-se bem julgar que, já que pelo sentido externo não nos são dados senão simples representações de relações, este também só possa conter em sua representação a relação de um objeto ao sujeito e não o elemento interior, que concerne ao objeto em si. Com a intuição interna passa-se o mesmo. Não só as representações do sentido externo constituem nela a verdadeira matéria com que preenchemos a nossa mente, mas o tempo, em que colocamos essas representações e que precede mesmo a sua consciência na experiência e que como condição formal subjaz ao modo como pomos as representações na mente, contém já relações de sucessão, de simultaneidade e daquilo que é simultâneo com a sucessão (o permanente). Ora, o que como representação pode preceder toda a ação de pensar alguma coisa é a intuição e, se não contém senão relações, é a forma da intuição. Já que não representa nada a não ser na medida em que algo é posto na mente, esta forma não pode ser senão o modo como a mente é afetada pela própria atividade, a saber, por este pôr sua representação e portanto por si mesma; isto é, segundo a sua forma, não pode ser senão um sentido externo. Tudo o que é representado por um sentido é nesta medida sempre fenômeno; e um sentido interno ou não precisaria absolutamente ser admitido ou o sujeito, que é seu objeto, poderia ser representado pelo mesmo somente como fenômeno, não como julgaria sobre si mesmo se sua intuição fosse simples atividade espontânea, isto é, intelectual. Aqui, toda a dificuldade reside apenas no modo como um sujeito pode intuir internamente a si mesmo; esta dificuldade é, entretanto, comum a toda teoria. A consciência de si mesmo (apercepção) é a representação simples do eu e, se unicamente por esse meio todo o múltiplo fosse dado espontaneamente no sujeito, a intuição interna seria intelectual. No homem, esta consciência requer percepção interna do múltiplo dado anteriormente no sujeito, e o modo como este múltiplo é dado sem espontaneidade na mente precisa, em vista desta diferença, denominar-se sensibilidade. Se a faculdade de tomar-se consciente deve procurar (apreender) aquilo que se encontra na mente, então tem que afetá-la; só assim pode produzir uma intuição de si mesma e cuja forma, previamente subjacente na mente, determina na representação do tempo o modo como o múltiplo coexiste na mente. Com efeito, tal faculdade intui então a si mesma não como representaria a si imediata e espontaneamente, mas segundo o modo como é afetada internamente, consequentemente como aparece a si e não como é. III, Se digo que no espaço e no tempo tanto a intuição dos objetos externos como da própria mente representa ambos segundo o modo como afetam os nossos sentidos, isto é, como aparecem, não quero com isso dizer que esses objetos sejam uma simples ilusão. Com efeito, no fenômeno os objetos, até mesmo as propriedades que lhes atribuímos, são sempre considerados algo realmente dado, com a ressalva de que na medida em que esta propriedade depende só do modo de intuição do sujeito na relação que o objeto dado mantém com ele, este objeto como fenômeno é distinguido de si mesmo como objeto em si. Assim, não digo que os corpos parecem simplesmente estar fora de mim ou que minha alma parece ser dada apenas em minha autoconsciência quando afirmo que a qualidade do espaço e do tempo - conforme à qual, como condição da sua existência, ponho ambos - jaz na minha maneira de intuir e não nestes objetos em si. Seria minha própria culpa se eu transformasse em simples ilusão aquilo que deveria atribuir ao fenômeno. (Os predicados do fenômeno podem ser atribuídos ao próprio objeto em relação ao nosso sentido, por exemplo, à rosa a cor vermelha ou o odor. A ilusão, entretanto, jamais pode ser atribuída como predicado ao objeto, justamente porque atribui ao objeto por si o que concerne a este apenas em relação aos sentidos ou em geral ao sujeito, por exemplo os dois anéis que inicialmente se atribuíam a Saturno. O fenômeno é aquilo que de modo algum pode encontrar-se no objeto em si mesmo, mas sempre na sua relação com o sujeito, sendo inseparável da representação do primeiro. Deste modo, os predicados do espaço e do tempo são com justiça atribuídos aos objetos dos sentidos como tais, e nisto não há nenhuma ilusão. Ao contrário, se atribuo à rosa em si o vermelho, a Saturno os anéis ou a todos os objetos externos em si a extensão, sem atentar para uma determinada relação destes objetos com o sujeito e sem limitar o meu juízo a isso, então primeiramente surge a ilusão. Nota do Autor) Isto não ocorre, porém, segundo o nosso princípio da idealidade de todas as nossas intuições sensíveis; muito antes, se àquelas formas de representação se atribui realidade objetiva, não se pode evitar que através disso tudo seja transformado em simples ilusão. Com efeito, se se considera o espaço e o tempo propriedades que segundo a sua possibilidade teriam que ser encontradas em coisas em si e se reflete em que disparates se incorre então na medida em que duas coisas infinitas - que não têm que ser substâncias nem algo realmente inerente às substâncias, mas contudo algo existente e até mesmo a condição necessária da existência de todas as coisas - restam mesmo se suprimindo todas as coisas existentes: em tal caso não se pode levar a mal o bom Berkeley por ter degradado os corpos a uma simples ilusão; até mesmo a nossa própria existência, que desse modo seria tornada dependente da realidade de um não entre subsistente por si, como o tempo, teria tal que se transformar em pura ilusão: um absurdo de que até agora ninguém ainda deixou se inculpar. IV. Na teologia natural, onde se pensa um objeto que não só para nós não pode ser um objeto da intuição, mas nem sequer para si próprio pode ser de modo algum um objeto da intuição sensível, leva-se cuidadosamente em conta eliminar as condições do tempo e do espaço de toda sua intuição (pois todo o seu conhecimento tem que ser desta espécie e não pensamento, que sempre manifesta limites). Mas com que direito se pode fazer isto se antes se os fez ambos formas das coisas em si mesmas, e em verdade tais que, como condições da existência das coisas a priori, restam mesmo quando as próprias coisas tiverem sido supressas. Efetivamente, como condições de toda a existência em geral também o teriam que ser da existência de Deus. Se daquelas formas não se quiser fazer formas objetivas de todas as coisas, nada mais resta senão torná-las formas subjetivas do nosso modo de intuição tanto externo quanto interno, o qual se chama sensível porque não é originário, ou seja, um modo pelo qual é dada a própria existência do objeto da intuição (e que, o quanto sabemos, só pode ser atribuída ao ente originário), mas depende da existência do objeto, por conseguinte só é possível pelo fato da própria capacidade de representação do sujeito ser afetada por tal objeto. Tampouco é necessário que limitemos o modo de intuição no espaço e no tempo à sensibilidade do homem, e é de se supor que todo ente pensante finito tem nisso que concordar necessariamente com o homem (se bem que nada possamos decidir a respeito); não obstante essa validade universal, nem por isso cessa de ser sensibilidade, justamente por ser derivada (intuitus derivativus) e não originária (intuitus originarius), não sendo portanto intuição intelectual. Pela razão aduzida há pouco, esta última parece atribuível unicamente ao ente originário e jamais a um ente dependente tanto no que concerne à sua existência como à sua intuição (que determina a sua existência com referência a objetos dados); não obstante, a última observação à nossa teoria estética tem que ser considerada apenas como elucidação, e não como argumento. Conclusão da Estética Transcendental Aqui temos uma das partes requeridas para a solução do problema geral da filosofia transcendental: como são possíveis proposições sintéticas a priori: - a saber, intuições puras a priori, espaço e tempo, nos quais, se no juízo a priori quisermos sair do conceito dado, encontramos aquilo que pode ser descoberto a priori não no conceito, mas na intuição que lhe corresponde, e ser ligado sinteticamente àquele. Por esta razão, esses juízos jamais alcançam além de objetos dos sentidos, e só podem valer para objetos de uma experiência possível. SEGUNDA PARTE DA DOUTRINA TRANSCENDENTAL DOS ELEMENTOS LÓGICA TRANSCENDENTAL INTRODUÇÃO Ideia de uma lógica transcendental I. Da lógica em geral NOSSO CONHECIMENTO surge de duas fontes principais da mente, cuja primeira é a de receber as representações (a receptividade das impressões) e a segunda a faculdade de conhecer um objeto por estas representações (espontaneidade dos conceitos); pela primeira um objeto nos é dado, pela segunda é pensado em relação com essa representação (como simples determinação da mente). Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem conceitos sem uma intuição de certa maneira correspondente a eles nem intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento. Ambos são puros ou empíricos. Empíricos se contêm sensação (que supõe a presença real de objeto); puros, se à representação não se mescla nenhuma sensação. A última pode ser denominada matéria do conhecimento sensível. Portanto, a intuição pura contém unicamente a forma sob a qual algo é intuído, e o conceito puro unicamente a forma do pensamento de um objeto em geral. Somente intuições ou conceitos puros são possíveis a priori, intuições ou conceitos empíricos só a posteriori. Se queremos denominar a receptividade de nossa mente a receber representações, na medida em que é afetada de algum modo, de sensibilidade, a faculdade de produzir ela mesma representações, ou a espontaneidade do conhecimento é, contrariamente, o entendimento. A nossa natureza é tal que a intuição não pode ser senão sensível, isto é, contém somente o modo como somos afetados por objetos. Contrariamente a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível é o entendimento. Nenhuma dessas propriedades deve ser preferida à outra. Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas. Portanto, tanto é necessário tornar os conceitos sensíveis (isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) quanto tornar as suas intuições compreensíveis (isto é, pô-las sob conceitos). Estas duas faculdades ou capacidades também não podem trocar as suas funções. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada pensar. O conhecimento só pode surgir da sua reunião. Por isso, não se deve confundir a contribuição de ambos, mas há boas razões para separar e distinguir cuidadosamente um do outro. Consequentemente, distinguimos a ciência das regras da sensibilidade em geral, isto é, a Estética, da ciência das regras do entendimento em geral, isto é, a Lógica. A Lógica, por sua vez, pode ser encetada num duplo propósito, como lógica do uso geral ou como lógica do uso particular do entendimento. A primeira contém as regras absolutamente necessárias do pensamento, sem as quais não ocorre uso algum do entendimento, e diz, portanto, respeito ao último sem levar em conta a diversidade dos objetos aos quais possa estar dirigido. A lógica do uso particular do entendimento contém as regras para pensar corretamente certa espécie de objetos. Aquela pode denominar-se lógica elementar, esta, porém, órganon de tal ou qual ciência. Nas escolas, esta última é o mais das vezes adiantada como propedêutica das ciências, embora segundo o caminho da razão humana constitua o último estádio, primeiramente alcançado por esta quando a ciência já se encontra há tempo acabada e não carece senão do último retoque para sua retificação e perfeição. Com efeito, já se deve conhecer os objetos num grau relativamente elevado, caso se queira fornecer as regras sobre como se pode constituir uma ciência deles. A lógica geral é, por sua vez, pura ou aplicada. Na primeira, abstraímos de todas as condições empíricas sob as quais se exerce o nosso entendimento, por exemplo da influência dos sentidos, do jogo da imaginação, das leis da memória, do poder do hábito, da inclinação etc., por conseguinte também das fontes dos preconceitos e, de um modo geral, de todas as causas das quais nos surgem certos conhecimentos ou às quais estes possam ser imputados, visto que elas concernem apenas ao entendimento sob certas circunstâncias de sua aplicação e que, para conhecer estas, se requer experiências. Uma lógica geral, mas pura, tem portanto de lidar só com princípios a priori e é um cânone do entendimento e da razão, mas apenas com vistas ao formal do seu uso, seja qual for o seu conteúdo (empírico ou transcendental). Uma lógica geral denomina-se, em vez, aplicada quando está dirigida às regras do uso do entendimento sob as condições empíricas subjetivas que a Psicologia nos ensina. Possui, portanto, princípios empíricos, embora seja geral na medida em que se refere ao uso do entendimento sem distinção de objetos. Em vista disso, também não é nem um cânone do entendimento em geral nem um órganon de ciências particulares, mas simplesmente um catártico do entendimento comum. Na lógica geral, portanto, a parte que deve perfazer a doutrina pura da razão precisa ser separada completamente daquela que perfaz a lógica aplicada (embora ainda sempre geral). Somente a primeira é propriamente ciência, não obstante breve e árida como o requer a apresentação escolástica de uma doutrina elementar do entendimento. Nesta, os lógicos têm sempre que ter presente duas regras: 1) Como lógica geral, abstrai de todo o conteúdo do conhecimento do entendimento, bem como da diversidade dos seus objetos, não se ocupando senão com a simples forma do pensamento. 2) Como lógica pura, não possui nenhum princípio empírico, por conseguinte não tira nada (como às vezes se estava persuadido) da Psicologia, a qual portanto não possui nenhuma influência sobre o cânone do entendimento. É uma doutrina demonstrada, e tudo nela precisa ser certo de modo inteiramente a priori. O que denomino lógica aplicada (contra a significação comum desta palavra, segundo a qual deve conter certos exercícios para os quais a lógica pura fornece a regra) é uma representação do entendimento e das regras do seu necessário uso in concreto, a saber, sob as condições acidentais do sujeito que possam impedir ou favorecer este uso e que são dadas todas só empiricamente. Ela trata da atenção, dos seus empecilhos e consequências, da origem do erro, do estado de dívida, de escrúpulo, de convicção etc. A lógica geral e pura se relaciona com ela assim como a moral pura, que contém simplesmente as leis morais necessárias de uma vontade livre em geral, se relaciona com a doutrina da virtude propriamente dita, que pondera estas leis sob os obstáculos dos sentimentos, inclinações e paixões aos quais os homens estão mais ou menos submetidos, jamais podendo fornecer uma ciência verdadeira e demonstrada por necessitar, tanto quanto a lógica aplicada, princípios empíricos e psicológicos. II. Da lógica transcendental A lógica geral abstrai, como provamos, de todo o conteúdo do conhecimento, isto é, de toda a referência do mesmo ao objeto, e só considera a forma lógica na relação dos conhecimentos entre si, isto é, a forma do pensamento em geral. Mas já que há tanto intuições puras como empíricas (como o mostra a estética transcendental), assim também poderia ser encontrada uma distinção entre pensamento puro e empírico dos objetos. Neste caso, haveria uma lógica na qual não se abstrairia de todo o conteúdo do conhecimento, pois a que contivesse simplesmente as regras do pensamento puro de um objeto excluiria todos os conhecimentos que fossem de conteúdo empírico. Referir-se-ia também à origem dos nossos conhecimentos de objetos na medida em que tal origem não pode ser atribuída aos objetos; ao contrário, a lógica geral não tem nada a ver com esta origem do conhecimento, mas considera as representações, sejam dadas originariamente a priori em nós mesmos ou apenas empiricamente, apenas de acordo com as leis segundo as quais o entendimento, quando pensa, as usa umas em relação com as outras. Portanto, a lógica geral trata somente da forma do entendimento que pode ser fornecida às representações, seja qual for a origem destas. E aqui faço uma observação que estende a sua influência a todas as considerações subsequentes e que se precisa ter bem diante dos olhos, a saber, que não cada conhecimento a priori, mas somente aquele pelo qual conhecemos que é como certas representações (intuições ou conceitos) são ampliados ou possíveis unicamente a priori (isto é, a possibilidade do conhecimento ou o uso do mesmo a priori) tem de chamar-se transcendental. Consequentemente, nem o espaço nem qualquer determinação geométrica a priori do mesmo é uma representação transcendental; mas apenas o conhecimento de que estas representações de modo nenhum são de origem empírica, e a possibilidade pela qual podem não obstante se referir a priori a objetos da experiência pode chamar-se transcendental. Da mesma maneira, o uso do espaço com respeito a objetos em geral também seria transcendental; se, entretanto, limitar-se unicamente aos objetos dos sentidos, denominar-se-á empírico. A diferença do transcendental e do empírico pertence, portanto, apenas à crítica dos conhecimentos e não concerne à relação destes com o seu objeto. Na expectativa de que talvez haja conceitos que possam se referir a priori a objetos - não como intuições puras ou sensíveis, mas apenas como ações do pensamento puro, que são por conseguinte conceitos, mas tampouco de origem tanto empírica quanto estética - formamo-nos antecipadamente a ideia de uma ciência relativa ao conhecimento puro do entendimento e da razão mediante a qual pensamos objetos de modo inteiramente a priori. Tal ciência, que determinasse a origem, o âmbito e a validade objetiva de tais conhecimentos, teria que se denominar lógica transcendental porque só se ocupa com as leis do entendimento e da razão, mas unicamente na medida em que é referida a priori a objetos e não, como a lógica geral, indistintamente tanto aos conhecimentos empíricos quanto aos conhecimentos puros da razão. III. Da divisão da lógica geral em analítica e dialética A antiga e famosa pergunta, com a qual se supunha colocar os lógicos em apuros e procurava-se levá-los ao ponto ou de terem que deixar-se surpreender num mísero dialeto ou de confessarem a sua ignorância e por conseguinte a vaidade de toda a sua arte, é esta: Que é verdade? A definição nominal da verdade, a saber, que consiste na concordância do conhecimento com o seu objeto, é aqui concedida e pressuposta; deseja-se, contudo, saber qual o critério geral e seguro da verdade de cada conhecimento. Saber o que se deve perguntar de modo racional é já uma grande e necessária prova de inteligência ou perspicácia. Com efeito, se a pergunta é em si absurda e requer respostas supérfluas, então além de humilhar a quem a propõe possui às vezes ainda a desvantagem de induzir o ouvinte incauto a respostas absurdas e de oferecer o ridículo espetáculo que um (como diziam os antigos) munge o bode e o outro segura por baixo uma peneira. Se verdade consiste na concordância de um conhecimento com o seu objeto, então através disso este objeto tem que ser distinguido de outros. Com efeito, um conhecimento é falso se não concorda com o objeto ao qual se refere, embora contenha algo que poderia valer com respeito a outros objetos. Ora, um critério geral da verdade seria aquele que, sem distinção dos seus objetos, fosse válido para todos os conhecimentos. Já que nesse critério se abstrai de todo conteúdo do conhecimento (referência ao seu objeto) e verdade diz respeito exatamente a este conteúdo, é porém claro que é inteiramente impossível e absurdo perguntar por uma característica da verdade de tal conteúdo dos conhecimentos, e que portanto é impossível apontar um critério suficiente e ao mesmo tempo geral da verdade. Visto termos já acima denominado o conteúdo de um conhecimento a sua matéria, deve-se dizer: por ser contraditório em si mesmo, não se pode pedir nenhum critério geral da verdade do conhecimento da matéria. No que concerne ao conhecimento da simples forma (deixando de lado todo o conteúdo), é igualmente claro que uma lógica, na medida em que expõe as regras universais e necessárias do entendimento, precisa justamente em tais regras apresentar critérios da verdade. Com efeito, o que os contradiz é falso porque em tal caso o entendimento se contrapõe às suas regras universais do pensar, por conseguinte a si mesmo. Esses critérios, porém, referem-se apenas à forma da verdade, isto é, do pensamento em geral, e são nesta medida inteiramente corretos, mas insuficientes. Pois embora um conhecimento possa ser inteiramente conforme à forma lógica, isto é, não se contradiga a si mesmo, pode ainda estar sempre em contradição com o objeto. Logo, o critério meramente lógico da verdade, a saber, a concordância de um conhecimento com as leis universais e formais do entendimento e da razão, é em verdade a conditio sine qua non, por conseguinte a condição negativa de toda verdade: a Lógica não pode ir mais além nem descobrir, através de pedra de toque alguma, o erro que não concerne à forma, mas ao conteúdo. Ora, a lógica geral resolve em seus elementos a completa atividade formal do entendimento e da razão e os apresenta como princípios de toda avaliação lógica do nosso conhecimento. Esta parte da Lógica pode por isso denominar-se analítica, e pela mesma razão constitui pelo menos uma pedra de toque negativa da verdade na medida em que se precisa antes de tudo examinar e avaliar, com base nessas regras, todo o conhecimento quanto à sua forma antes de investigá-lo quanto ao seu conteúdo para estabelecer se contém uma verdade positiva referente ao objeto. Mas já que a simples forma do conhecimento, por mais que concorde com as leis lógicas, é de longe insuficiente para perfazer por isso uma verdade material (objetiva), ninguém pode apenas com a Lógica ousar julgar sobre objetos e afirmar algo sem ter colhido antes, fora da Lógica, uma fundada informação sobre os objetos para tentar em seguida simplesmente a sua utilização e conexão num todo coerente segundo leis lógicas, ou melhor, ainda, apenas para examiná-los segundo essas leis. Não obstante, na posse de uma arte tão enganosa, que consiste em dar a todos os nossos conhecimentos a forma do entendimento mesmo que no tocante ao seu conteúdo se esteja ainda muito vazio e pobre, reside algo tão tentador que aquela lógica geral, que é apenas um cânone para julgamento, foi utilizada como uma espécie de órganon para a produção efetiva pelo menos para a ilusão, de afirmações objetivas; por conseguinte foi de fato mal utilizada. Ora, a lógica geral, como pretenso órganon, denomina-se Dialética. Embora seja diferente a significação em que os antigos usaram esta denominação de uma ciência ou arte, do seu uso real pode-se depreender seguramente que não constituía entre eles senão uma lógica da ilusão. Era uma arte sofística para dar ares de verdade à sua ignorância e ainda às suas construções ilusórias intencionais, a qual imitava o método da meticulosidade que a Lógica em geral prescreve e utilizava a sua tópica para embelezar todo o pretexto vazio. Ora, pode-se observar como advertência segura e útil: considerada como órganon, a lógica geral é sempre uma lógica da ilusão, isto é, dialética, Com efeito, uma vez que nada nos ensina sobre o conteúdo do conhecimento, mas somente sobre as condições formais da concordância com o entendimento que de resto são completamente indiferentes no que tange aos objetos, em tal caso a pretensão de servir-se dela como um instrumento (órganon) para, ao menos pretensamente, ampliar e alargar os seus conhecimentos tem que desembocar em pura verbosidade, consistindo esta em afirmar com certa plausibilidade ou também contestar a bel-prazer tudo o que se quer. Tal instrução não é de modo algum conforme à dignidade da filosofia. Em vista disso, preferiu-se atribuir esta denominação de Dialética à Lógica como uma crítica da ilusão dialética. Neste sentido, queremos também que seja entendida aqui. IV. Da divisão da lógica transcendental em analítica transcendental e dialética transcendental Numa lógica transcendental, isolamos o entendimento (como acima, na estética transcendental, a sensibilidade) e destacamos do nosso conhecimento apenas a parte do pensamento que tem sua origem unicamente no entendimento. O uso deste conhecimento puro repousa, porém, na seguinte condição: de que na intuição nos sejam dados objetos aos quais ele possa ser aplicado. Na ausência de intuição, todo o nosso conhecimento carece de objetos, e então permanece inteiramente vazio. A parte da lógica transcendental, portanto, que expõe os elementos do conhecimento puro do entendimento e os princípios sem os quais um objeto de maneira alguma pode ser pensado, é a analítica transcendental, e ao mesmo tempo uma lógica da verdade. Com efeito, nenhum conhecimento pode contradizê-la sem que ao mesmo tempo perca o seu conteúdo, isto é, toda a referência a qualquer objeto, por conseguinte toda a verdade. Todavia, visto ser muito atraente e sedutor servir-se destes conhecimentos e princípios puros do entendimento sozinhos, e isto inclusive acima dos limites da experiência, unicamente a qual pode nos fornecer a matéria (objetos) à qual aqueles conceitos puros do entendimento podem ser aplicados, o entendimento corre então perigo de, mediante sofismas (Vernunfteleien) vazios fazer um uso material de princípios meramente formais do entendimento puro e julgar indiscriminadamente sobre objetos que não nos são e talvez não possam ser dados de modo algum. Portanto, já que a lógica transcendental deveria propriamente ser apenas um cânone para o julgamento do uso empírico, é mal usada quando se a deixa valer como órganon de um uso geral e ilimitado e se ousa, apenas com o entendimento puro, julgar, afirmar e decidir sinteticamente sobre objetos em geral. Neste caso, o uso do entendimento puro seria dialético. A segunda parte da lógica transcendental precisa, pois, ser uma crítica dessa ilusão dialética e se denomina dialética transcendental, não como arte de suscitar dogmaticamente tal ilusão (uma arte de múltiplas charlatanices metafísicas), infelizmente bastante em voga, mas como uma crítica do entendimento e da razão no tocante ao seu uso hiperfísico, para que se possa descobrir a falsa aparência de tais presunções infundadas e reduzir as suas pretensões de descoberta e ampliação, que ela supõe alcançar unicamente através de princípios transcendentais, à mera avaliação do entendimento puro e sua proteção contra ilusões sofísticas. DIVISÃO PRIMEIRA DA LÓGICA TRANSCENDENTAL ANALÍTICA TRANSCENDENTAL ESTA ANALÍTICA é a decomposição do nosso inteiro conhecimento a priori nos elementos do conhecimento puro do entendimento. Os pontos importantes a este respeito são os seguintes: 1) que os conceitos sejam puros e não empíricos; 2) que pertençam não à intuição e à sensibilidade, mas ao pensamento e ao entendimento; 3) que sejam conceitos elementares e bem distinguidos dos conceitos derivados ou compostos de conceitos; 4) que a sua tábua seja completa e que preencham inteiramente o campo do entendimento puro. Esta completude de uma ciência não pode ser admitida com confiança baseando-se no cálculo aproximativo de um agregado levado a efeito apenas por meio de tentativas; por conseguinte, é possível unicamente mediante uma ideia do todo do conhecimento a priori do entendimento pela divisão, determinada a partir dessa ideia dos conceitos que perfazem tal conhecimento, portanto apenas por meio da sua interconexão num sistema. O entendimento puro distingue-se inteiramente não apenas de todo o empírico, mas até mesmo de toda a sensibilidade. É, portanto, uma unidade subsistente por si, autossuficiente e que não pode ser aumentada por nenhum acréscimo provindo do exterior. O conjunto dos seus conhecimentos perfará por isso um sistema a ser abarcado e determinado sob uma ideia e cuja completude e articulação podem ao mesmo tempo oferecer uma pedra de toque para a correção e genuinidade de todos os elementos do conhecimento que cabem nele. Toda esta parte da lógica transcendental consta de dois livros, o primeiro contendo os conceitos e o segundo os princípios do entendimento puro. LIVRO PRIMEIRO DA ANALÍTICA TRANSCENDENTAL ANALÍTICA DOS CONCEITOS POR ANALÍTICA dos conceitos entendo não a sua análise ou o procedimento costumeiro nas investigações filosóficas, de decompor segundo o seu conteúdo e levar à clareza os conceitos que se oferecem, mas a ainda pouco tentada decomposição da própria faculdade do entendimento, para investigar a possibilidade dos conceitos a priori mediante a sua procura unicamente no entendimento, como lugar do seu nascimento, e a análise do uso puro do entendimento em geral. Esta é, com efeito, a tarefa específica de uma filosofia transcendental; o resto consiste em abordagem lógica dos conceitos na Filosofia em geral. Seguiremos, portanto, os conceitos puros até seus primeiros germes e disposições no entendimento humano em que se encontram prontos, até que sejam enfim desenvolvidos por ocasião da experiência e que liberados das condições empíricas inerentes a eles, sejam apresentados em sua pureza pelo mesmo entendimento. CAPÍTULO PRIMEIRO DA ANALÍTICA DOS CONCEITOS Do fio condutor para a descoberta de todos os conceitos puros do entendimento Quando se põe em jogo uma faculdade de conhecimento, segundo as várias ocasiões distinguem-se diversos conceitos que, após o emprego de uma observação mais demorada e sagaz, o tornam cognoscível e podem ser coletados num tratado mais ou menos detalhado. Segundo este procedimento como que mecânico, jamais se pode determinar com segurança onde esta investigação ficará completa. Do mesmo modo, os conceitos encontrados apenas ocasionalmente não se descobrem numa ordem e unidade sistemática, mas finalmente são acoplados somente segundo semelhanças e postos em séries segundo a magnitude do seu conteúdo, desde o simples ao mais composto. Tais séries não são sistemáticas, embora de certo modo se realizem metodicamente. A filosofia transcendental possui a vantagem, mas também a obrigação, de procurar os seus conceitos segundo um princípio porque se originam de modo puro e não mesclado do entendimento como unidade absoluta, tendo consequentemente de se interconectar segundo um conceito ou uma ideia. Tal interconexão, porém, fornece uma regra pela qual se poderá determinar a priori o lugar de cada conceito puro do entendimento e a completude de todos em conjunto; do contrário, tudo isso dependeria do capricho ou do acaso. SEÇÃO PRIMEIRA DO FIO CONDUTOR TRANSCENDENTAL PARA A DESCOBERTA DE TODOS OS CONCEITOS PUROS DO ENTENDIMENTO DO USO LÓGICO EM GERAL DO ENTENDIMENTO O entendimento foi definido acima, de modo apenas negativo, mediante uma faculdade não sensível de conhecimento. Ora, independente da sensibilidade não podemos participar de nenhuma intuição. Logo, o entendimento não é uma faculdade de intuição. Além da intuição não há, contudo, nenhum outro modo de conhecer senão por conceitos. Portanto, o conhecimento de cada entendimento, pelo menos do humano, é um conhecimento mediante conceitos, não intuitivo, mas discursivo. Todas as intuições enquanto sensíveis repousam sobre afecções e os conceitos, por sua vez, sobre funções. Por função entendo a unidade da ação de ordenar diversas representações sob uma representação comum. Conceitos, portanto, fundam-se sobre a espontaneidade do pensamento, tal como intuições sensíveis sobre a receptividade das impressões. O entendimento não pode fazer outro uso desses conceitos a não ser julgar através deles. Visto que nenhuma representação se refere imediatamente ao objeto, a não ser a intuição, então um conceito jamais é imediatamente referido a um objeto, mas a alguma outra representação qualquer deste (seja ela intuição ou mesmo já conceito). Logo, o juízo é o conhecimento mediato de um objeto, por conseguinte a representação de uma representação do mesmo. Em cada juízo há um conceito válido para muitos e que ainda sob estes muitos concebe uma representação dada que é então referida imediatamente ao objeto. Assim, por exemplo, no juízo: todos os corpos são divisíveis, o conceito do divisível se refere a diversos outros conceitos; dentre estes, porém, se refere particularmente ao conceito de corpo e este, por sua vez, a certos fenômenos! que nos ocorrem. Portanto, estes objetos não representados mediatamente pelo conceito de divisibilidade. Assim, todos os juízos são funções da unidade sob nossas representações, pois para o conhecimento de objeto é utilizada, em vez de uma representação imediata, outra mais elevada que compreende sob si esta e diversas outras, e deste modo muitos conhecimentos possíveis são reunidos num só. Podemos, porém, reduzir todas as ações do entendimento a juízos, de modo que o entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de julgar. Com efeito, segundo o visto acima ele é uma faculdade de pensar. O pensamento é o conhecimento mediante conceitos. Como predicados de juízos possíveis, porém, os conceitos se referem a uma representação qualquer de um objeto ainda indeterminado. Assim o conceito de corpo, por exemplo, de metal significa algo que pode ser conhecido por meio desse conceito. Portanto, só é conceito por nele estarem contidas outras representações pelas quais pode se referir a objetos. Trata-se, por conseguinte, do predicado de um juízo possível, por exemplo de que todo metal é um corpo. As funções do entendimento podem, portanto, ser todas encontradas desde que se possa apresentar completamente as funções da unidade nos juízos. Que isto, porém, é perfeitamente realizável, mostrá-lo-á a próxima seção. SEÇÃO SEGUNDA DO FIO CONDUTOR PARA A DESCOBERTA DE TODOS OS CONCEITOS PUROS DO ENTENDIMENTO § 9. Da função lógica do entendimento em juízos Se abstrairmos de todo o conteúdo de um juízo em geral e se nele prestarmos atenção à simples forma do entendimento, veremos que a função do pensamento nesse juízo pode ser reconduzida a quatro títulos, cada um deles contendo três momentos. Podem muito bem ser representados na seguinte tábua: 1. Quantidade dos juízos Universais Particulares Singulares 2. Qualidade Afirmativos Negativos Infinitos 3. Relação Categórico Hipotéticos Disjuntivos 4. Modalidade Problemáticos Assertóricos Apodíticos Visto que esta divisão parece desviar-se em alguns pontos, embora não essenciais, da técnica habitual dos lógicos, não serão inúteis as seguintes advertências contra o mal-entendido que se possa temer. 1. Os lógicos dizem com razão que no uso dos juízos em silogismos, os juízos singulares podem ser tratados tal como os universais. Com efeito, justamente pelo fato de absolutamente possuírem extensão o seu predicado não pode ser referido apenas a uma parte daquilo que está contido no conceito do sujeito e ser, no entanto, excluído do resto. Portanto, o predicado vale sem exceção para aquele conceito, como se este fosse um conceito universal que tivesse uma extensão de cujo inteiro significado predicado valesse. Ao contrário, se comparamos simplesmente como conhecimento, segundo a quantidade um juízo singular com um universal, o conhecimento do primeiro se relaciona com o do segundo como a unidade com a infinidade e é, portanto, em si mesmo essencialmente diferente do conhecimento do segundo. Portanto, se avalio um juízo singular (iudicium singulare) não apenas segundo a sua validade interna, mas também, como conhecimento em geral, segundo a quantidade que tal juízo possui em comparação com outros conhecimentos, então certamente se distingue de juízos universais (iudicia communia) e merece um lugar especial numa tábua completa dos momentos do pensamento em geral (embora não o mereça, seguramente, na lógica limitada apenas ao uso dos juízos entre si). 2. Do mesmo modo, numa lógica transcendental juízos infinitos precisam ser distinguidos de juízos afirmativos, se bem que na lógica geral sejam incluídos com justiça entre os segundos e não constituam um membro particular da divisão. Com efeito, a lógica geral abstrai de todo o conteúdo do predicado (mesmo se este for negativo) e só cuida se o predicado é atribuído ou oposto ao sujeito. Mas a lógica transcendental considera o juízo também segundo o valor ou conteúdo desta afirmação lógica mediante um predicado meramente negativo, e examina que ganhos proporciona no tocante ao conhecimento total. Se eu tivesse dito da alma que ela não é mortal, por meio de um juízo negativo teria pelo menos evitado um erro. Ora, com a proposição: a alma não é mortal, segundo a forma lógica realmente afirmei algo na medida em que ponho a alma na extensão ilimitada dos entes que não morrem. Visto, porém, que o mortal contém uma parte de toda a extensão de entes possíveis e o não mortal a outra, assim a minha proposição não diz senão que a alma é uma dentre o número infinito de coisas que sobram quando elimino inteiramente o mortal. Desse modo, porém, a esfera infinita de todo o possível é limitada só na medida em que o mortal é separado e a alma colocada na extensão restante do seu espaço. Apesar de tal exclusão, este espaço permanece ainda infinito, podendo ainda outras partes dele serem subtraídas sem que o conceito de alma cresça minimamente com isso e seja determinado afirmativamente. Esses juízos, portanto, infinitos no que tange à extensão lógica, são em realidade meramente limitativos no tocante ao conteúdo do conhecimento em geral, e nesta medida não devem ser omitidos da tábua transcendental de todos os momentos do pensamento nos juízos, pois a função exercida pelo entendimento a esse propósito talvez possa ser importante no campo do seu conhecimento puro a priori. 3. Todas as relações do pensamento nos juízos são: a) do predicado com o sujeito, b) da razão com a consequência, c) do conhecimento dividido e dos membros reunidos da divisão entre si. Na primeira espécie de juízos são considerados somente dois conceitos, na segunda dois juízos, na terceira mais juízos em relação recíproca. A proposição hipotética: se existe uma justiça perfeita então quem persiste no mal é punido, contém propriamente a relação de duas proposições: existe uma justiça perfeita, e quem persiste no mal é punido. Permanece aqui indeciso se ambas essas proposições são em si verdadeiras. Somente a consequência é pensada por esse juízo. Por fim, o juízo disjuntivo contém uma relação de duas ou mais proposições entre si, mas uma relação não de derivação e sim de oposição lógica na medida em que a esfera de uma exclui a da outra e, não obstante, uma relação ao mesmo tempo de comunidade na medida em que aquelas proposições em conjunto preenche a esfera do conhecimento efetivo, por conseguinte uma relação entre as partes da esfera de um conhecimento, já que a esfera de cada parte é complementar à esfera da outra quanto ao conjunto do conhecimento dividido. Por exemplo, o mundo existe ou por um cego acaso, ou por necessidade interna ou por uma causa externa. Cada uma dessas proposições ocupa uma parte da esfera do conhecimento possível sobre a existência de um mundo em geral, e todas juntas ocupam a esfera inteira. Tirar o conhecimento de uma dessas esferas significa pô-lo numa das restantes; ao contrário, pô-lo numa esfera significa tirá-lo das restantes. No juízo disjuntivo há, portanto, certa comunidade de conhecimentos que consiste no fato de se excluírem mutuamente e, não obstante, determinarem no todo o conhecimento verdadeiro na medida em que, tomados em conjunto, perfazem todo o conteúdo de um único conhecimento dado. Esta é a única observação que considero necessária aqui devido ao que se segue. 4. A modalidade dos juízos é uma função bem particular dos mesmos que possui o caráter distintivo de nada contribuir para o conteúdo do juízo (pois além da quantidade, qualidade e relação, nada mais há que constitua o conteúdo de um juízo), mas de dizer respeito apenas ao valor da cópula com referência ao pensamento em geral. Juízos problemáticos são aqueles em que se admite o afirmar ou o negar como meramente possível (arbitrário), juízos assertóricos aqueles em que se o considera real (verdadeiro) e juízos apodíticos aqueles em que se o encara como necessário. (Como se o pensamento fosse, no primeiro caso, uma função do entendimento, no segundo da capacidade de julgar, no terceiro da razão. Uma observação que somente encontrará o seu esclarecimento no que se segue. Nota do Autor.) Desse modo, ambos os juízos, cuja relação constitui o juízo hipotético (antecedens et consequens) e cuja ação recíproca (membros da divisão) constitui ajuízo disjuntivo, são todos somente problemáticos. No exemplo acima, a proposição: existe uma justiça perfeita, não é dita assertoricamente, mas só pensada como um juízo qualquer do qual é possível que seja aceito por alguém, sendo assertórica apenas a consequência. Por isso, tais juízos podem também ser manifestamente falsos e não obstante, tomados problematicamente, serem condições do conhecimento da verdade. Assim, o juízo: o mundo existe por cego acaso, é, no juízo disjuntivo, de significação meramente problemática, a saber, que alguém possa aceitar esta proposição por um instante, e serve entretanto (tal como a indicação do caminho falso dentre o número de todos aqueles que se podem tomar) para encontrar a proposição verdadeira. A proposição problemática é, portanto, aquela que só expressa possibilidade lógica (que não é objetiva), isto é, uma livre escolha de deixar valer tal proposição, uma acolhida meramente arbitrária da mesma no entendimento. A proposição assertórica diz da realidade lógica ou verdade, tal como por exemplo num silogismo hipotético o antecedens ocorre na premissa maior como problemático e na premissa menor como assertórico e indica que a proposição já está ligada ao entendimento segundo suas leis. A proposição apodítica pensa a proposição assertórica como determinada por essas leis do próprio entendimento, e portanto como afirmando a priori, e desse modo exprime necessidade lógica. Ora, já que aqui tudo se incorpora gradualmente ao entendimento de tal modo que primeiro se julga algo problematicamente, a seguir se o aceita assertoricamente como verdadeiro e por fim como ligado inseparavelmente ao entendimento, isto é, o afirma como necessário e apodítico, então essas três funções da modalidade podem também ser denominadas outros tantos momentos do pensamento em geral. SEÇÃO TERCEIRA DO FIO CONDUTOR PARA A DESCOBERTA DE TODOS OS CONCEITOS PUROS DO ENTENDIMENTO § 10. Dos conceitos puros do entendimento ou categorias Como já disse mais vezes, a lógica geral abstrai de todo o conteúdo do conhecimento e espera que em outra parte qualquer lhe sejam dadas representações a fim de primeiramente as transformar em conceitos, isto ocorrendo analiticamente. Ao contrário, a lógica transcendental possui diante de si um múltiplo da sensibilidade a priori, apresentado pela estética transcendental, para dar aos conceitos puros do entendimento uma matéria sem a qual seriam sem conteúdo algum e, por conseguinte, inteiramente vazios. Ora, espaço e tempo contêm um múltiplo da intuição pura a priori e, não obstante, fazem parte das condições da receptividade da nossa mente, unicamente sob as quais esta pode acolher representações de objetos que, portanto, têm sempre que afetar o conceito de tais objetos. Todavia, a espontaneidade do nosso pensamento exige que tal múltiplo seja primeiro e de certo modo perpassado, acolhido e ligado para que se faça disso um conhecimento. Denomino esta ação síntese. Por síntese entendo, no sentido mais amplo, a ação de acrescentar diversas representações umas às outras e de conceber a sua multiplicidade num conhecimento. Tal síntese é pura se o múltiplo não é dado empiricamente, mas a priori (como o múltiplo no espaço e no tempo). As nossas representações precisam nos ser dadas antes de toda a análise delas, e segundo o conteúdo nenhum conceito pode surgir analiticamente. Mas a síntese de um múltiplo (seja dado empiricamente ou a priori) produz primeiro um conhecimento que, é verdade, pode ser de início tosco e confuso e necessita, portanto, da análise, todavia, é a síntese que coleta propriamente os elementos em conhecimentos e os reúne num certo conteúdo, sendo portanto o primeiro a que devemos prestar atenção se quisermos julgar sobre a origem primeira do nosso conhecimento. A síntese geral, como veremos futuramente, é o simples efeito da capacidade da imaginação, uma função cega embora indispensável da alma, sem a qual de modo algum teríamos um conhecimento, mas da qual raramente somos conscientes. Reportar essa síntese a conceitos é, todavia, uma função que cabe ao entendimento e pela qual nos proporciona pela primeira vez o conhecimento em sentido próprio. A síntese pura, representada de modo universal, dá o conceito puro do entendimento. Por síntese pura entendo a que repousa sobre um fundamento da unidade sintética a priori: assim, a nossa ação de enumerar (isso nota-se sobretudo em números maiores) é uma síntese segundo conceitos porque ocorre segundo um fundamento comum da unidade (por exemplo, o da dezena). Sob este conceito, portanto, a unidade torna-se necessária na síntese do múltiplo. Diversas representações são postas, analiticamente sob um conceito (uma tarefa concernente à lógica geral). A lógica transcendental, todavia, ensina a reportar não as representações, mas a síntese pura das mesmas a conceitos. O primeiro elemento que nos tem que ser dado a priori para o conhecimento de todos os objetos é o múltiplo da intuição pura; a síntese deste múltiplo, mediante a capacidade da imaginação, constitui o segundo elemento, mas sem dar ainda um conhecimento. Os conceitos que dão unidade a esta síntese pura, e que consistem apenas na representação desta unidade sintética necessária, constituem o terceiro elemento para o conhecimento de um objeto que aparece, e repousam no entendimento. A mesma função que num juízo dá unidade às diversas representações também dá numa intuição, unidade à mera síntese de diversas representações: tal unidade, expressa de modo geral, denomina-se o conceito puro do entendimento. Assim o mesmo entendimento, e isto através das mesmas ações pelas quais realizou em conceitos a forma lógica de um juízo mediante a unidade analítica, realiza também um conteúdo transcendental em suas representações mediante a unidade sintética do múltiplo na intuição em geral. Por esta razão, tais representações denominam-se conceitos puros do entendimento que se referem a priori a objetos, coisa que a lógica geral não pode efetuar. Desse modo surgem precisamente tantos conceitos puros do entendimento, que se referem a priori a objetos da intuição em geral, quantas eram na tábua anterior as funções lógicas em todos os juízos possíveis. Com efeito, através de tais funções o entendimento é completamente exaurido e sua faculdade inteiramente medida. Seguindo Aristóteles, denominaremos tais conceitos categorias na medida em que nossa intenção, em princípio, identifica-se com a de Aristóteles, se bem que se afaste bastante dele na execução. Tábua das categorias 1. Da quantidade Unidade Pluralidade Totalidade 2. Da qualidade Realidade Negação Limitação 3. Da relação Inerência e subsistência (substantia et accidens) Causalidade e dependência (causa e efeito) Comunidade (ação recíproca entre agente e paciente) 4. Da modalidade Possibilidade - impossibilidade Existência - não ser Necessidade - contingência Este é, pois, o elenco de todos os conceitos puros originários da síntese que o entendimento contém em si a priori e somente devido aos quais ele é, além disso, um entendimento puro, na medida em que unicamente por tais conceitos pode compreender algo do múltiplo da intuição, isto é, pensar um objeto dela. Esta divisão é produzida sistematicamente a partir de um princípio comum, a saber, da faculdade de julgar (que equivale à faculdade de pensar); não surge rapsodicamente de uma procura - empreendida ao acaso - de conceitos puros, de cuja enumeração completa jamais se pode estar seguro por ser inferida só por indução, sem pensar que deste modo jamais se compreenderá por que precisamente esses e não outros conceitos residem no entendimento puro. A procura desses conceitos fundamentais constituiu um plano digno de homem perspicaz como Aristóteles. Entretanto, por não possuir nenhum princípio catou-os como se lhe deparavam, reunindo primeiramente dez, que denominou categorias (predicamentos). A seguir, creu ter encontrado ainda mais cinco conceitos que acrescentou sob a denominação de pós-predicamentos. Não obstante, a sua tábua continuava diferente. Por outro lado, encontram-se nela alguns modos da sensibilidade pura (quando, ubi, situs, igualmente prius, simui) e inclusive um empírico (motus) nenhum deles absolutamente pertencente a este índice genealógico do entendimento: há também conceitos derivados enumerados entre os conceitos originários (actio passio), enquanto alguns destes faltam inteiramente. Quanto aos conceitos originários, cabe ainda observar: como os verdadeiros conceitos primitivos do entendimento puro, as categorias possuem também seus conceitos derivados igualmente puros que de modo algum podem ser descurados num sistema completo da filosofia transcendental. Mas me contentarei, num ensaio meramente crítico, com a sua simples menção. Seja-me permitido denominar estes conceitos puros, mas derivados, do entendimento, predicáveis do entendimento puro (em oposição aos predicamentos). Quando se possui os conceitos originários e primitivos, os derivados e subalternos podem ser acrescentados facilmente e a árvore genealógica do entendimento puro imaginada inteiramente. Já que não tenho em vista aqui a completude do sistema, mas somente os princípios para um sistema, reservo essa complementação para outro trabalho. Tal objetivo pode ser relativamente alcançado se se recorre aos manuais de Ontologia e se subordina à categoria da causalidade os predicáveis de força, ação, paixão; à categoria de comunidade os predicáveis de presença, resistência; aos predicamentos da modalidade os predicáveis de nascimento, perecimento, mudança etc. Ligadas aos modos da sensibilidade pura ou entre si, as categorias fornecem uma grande porção de conceitos a priori derivados; chamar a atenção sobre estes, e, onde possível, elencá-los completamente constituiria um esforço útil e não desagradável, mas dispensável aqui. Neste tratado, dispenso-me propositalmente da definição de tais categorias, conquanto gostaria de estar de sua posse. No que se segue, desmembrarei esses conceitos até o ponto em que for suficiente com referência à doutrina do método que elaboro. Num sistema da razão pura, uma exigência de tais definições seria justa. Aqui, porém, só desviariam os olhos do ponto principal da investigação na medida em que suscitariam dúvidas e objeções que, sem prejuízo do objetivo essencial, podem ser adiadas para um outro trabalho. Todavia, do pouco que aduzi a propósito resulta claro que um dicionário completo, com todas as explicações exigidas para tanto, não só é possível, mas também fácil de realizar. As divisões já existem; basta preenchê-las, e uma tópica sistemática, como a presente, dificilmente se engana sobre o lugar que convém peculiarmente a cada conceito, e ao mesmo tempo nota facilmente o lugar que ainda está vazio. §11 Sobre essa tábua das categorias é possível fazer interessantes observações que talvez possam ter consideráveis consequências no tocante à forma científica de todos os conhecimentos da razão. Com efeito, que na parte teórica da Filosofia esta tábua é extremamente útil e mesmo indispensável para projetar completamente o plano do todo de uma ciência na medida em que repousa sobre conceitos a priori, e para dividi-la matematicamente segundo princípios determinados, se esclarece espontaneamente pelo fato de referida tábua encerrar inteiramente todos os conceitos elementares do entendimento, até mesmo a forma de um sistema completo dos mesmos no entendimento humano e, consequentemente, de instruir sobre todos os momentos de uma projetada ciência especulativa, inclusive sobre a sua ordenação, do que já dei prova em outro lugar. Primeiros Fundamentos Metafísicos da Ciência Natural. Eis agora algumas dessas observações. A primeira é: Esta tábua, que contém quatro classes de conceitos do entendimento, pode primeiramente decompor-se em duas divisões, dirigindo-se a primeira a objetos da intuição (tanto pura como empírica) e a segunda à existência desses objetos (ou em referência uns aos outros ou ao entendimento). Denomino a primeira classe a das categorias matemáticas, a segunda a das categorias dinâmicas. Como se vê, a primeira classe não possui correlatos, encontrados unicamente na segunda. Esta diferença tem que possuir um fundamento na natureza do entendimento. Segunda observação: Em cada classe o número das categorias é sempre igual, a saber três. Isso impele do mesmo modo à reflexão, já que, aliás, toda divisão a priori mediante conceitos precisa ser uma dicotomia. A isso é acrescido que a terceira categoria surge sempre da ligação da segunda com a primeira de sua classe. Assim, a totalidade não é senão a multiplicidade considerada como unidade; a limitação não é senão a realidade ligada à negação; a comunidade é a causalidade de uma substância em determinação recíproca com outra substância, e finalmente a necessidade não é senão a existência dada pela própria possibilidade. Não se pense, porém, que em vista disso a terceira categoria seja um conceito meramente derivado e não um conceito primitivo do entendimento puro. Com efeito, a ligação da primeira categoria com a segunda para produzir o terceiro conceito requer um ato particular do entendimento que não é idêntico ao ato exercido no primeiro e segundo conceitos. Desse modo, o conceito de um número (que pertence à categoria da totalidade) nem sempre é possível onde se apresentam os conceitos de multiplicidade e de unidade (por exemplo, na representação do infinito); ou, pelo fato de eu ligar os conceitos de causa e substância entre si, não pode ainda ser compreendida de imediato a influência, isto é, como uma substância pode tornar-se causa de algo numa outra substância. Disso fica claro que para tanto é requerido um ato particular do entendimento; e o mesmo ocorre nos demais casos. Terceira observação: Uma única categoria, a saber, a de comunidade, que se encontra sob o terceiro título não mostra uma concordância tão evidente como as demais com a forma de um juízo disjuntivo que lhe corresponde na tábua das funções lógicas. Para se assegurar dessa concordância, precisa-se observar que em todos os juízos disjuntivos a esfera (a massa de tudo o que está contido no juízo) é representada como um todo dividido em partes (os conceitos subordinados); por outro lado, visto que uma parte não pode estar contida na outra, são pensadas como coordenadas e não como subordinadas umas às outras, de modo que se determinam entre si não unilateralmente como numa série, mas reciprocamente como num agregado (se um membro da divisão é posto, todos os demais são excluídos e assim inversamente). Ora, semelhante conexão é pensada num todo de coisas onde uma, enquanto efeito, não é subordinada a outra, enquanto causa da sua existência, mas ao mesmo tempo e reciprocamente é coordenada às outras coisas como causa no tocante à sua determinação (por exemplo, num corpo cujas partes se atraem e se repelem mutuamente). Esta espécie de conexão é completamente diversa da que se encontra na simples relação entre causa e efeito (entre razão e consequência) na qual a consequência não determina reciprocamente a razão e por isso não forma com esta (como o criador do mundo com o mundo) um todo. Quando se representa a esfera de um conceito dividido o procedimento observado pelo entendimento é o mesmo de quando pensa uma coisa como divisível; e não obstante se ligam numa esfera, assim na coisa o entendimento se representa as partes de tal modo que a existência delas (enquanto substâncias) convenha a cada uma com exclusão das restantes, e todavia como ligadas num todo. § 12 Não obstante, na filosofia transcendental dos antigos encontra-se ainda um capítulo contendo conceitos puros do entendimento que, embora não sejam contados entre as categorias, deveriam valer, segundo aqueles antigos, como conceitos a priori de objetos; em tal caso, porém, o número das categorias aumentaria, o que não pode ser. Eles são expostos na proposição tão famosa entre os escolásticos: quodlibetens est unum, verun, bonum. Ora, se bem que o uso deste princípio visando inferências (que forneciam puras proposições tautológicas) tenha tido um resultado bastante miserável, a ponto de na época moderna esse princípio ser mencionado na Metafísica quase só por deferência não obstante um pensamento conservado por tão longo tempo, por mais vazio que pareça, merece sempre uma investigação da sua origem e justifica a suposição de que tenha uma regra qualquer do entendimento o seu fundamento, o qual, como ocorre frequentes vezes, apenas foi traduzido falsamente. Tais supostos predicados transcendentais das coisas não são senão exigências e critérios lógicos de todo o conhecimento das coisas em geral, e põem como fundamento de tal conhecimento as categorias da quantidade, a saber, da unidade, da pluralidade e da totalidade. Tais categorias, que propriamente teriam que ser tomadas em sentido material como pertencentes à possibilidade das próprias coisas, foram usadas por eles somente em sentido formal como pertencentes à exigência lógica no tocante a cada conhecimento, fazendo não obstante de tais critérios do pensamento incautamente propriedades das coisas em si mesmas. Em todo conhecimento de um objeto há unidade do conceito, a qual pode ser denominada unidade qualitativa na medida em que nela é pensada só a unidade do enfeixamento do múltiplo dos conhecimentos, tal como aproximadamente a unidade do tema num drama, num discurso, numa fábula. Em segundo lugar, há nele verdade no tocante às consequências. Quanto mais consequências verdadeiras de um conceito dado, tanto mais características da sua realidade objetiva. Isso poderia ser denominado pluralidade qualitativa dos caracteres que pertencem a um conceito como a um fundamento comum (e não são pensados nele como quantidade). Finalmente, em terceiro lugar, há nele perfeição, que inversamente consiste no fato dessa pluralidade em conjunto reconduzir à unidade do conceito, concordando inteiramente com este e com nenhum outro, o que se pode denominar completude qualitativa (totalidade). Disso segue-se que estes critérios lógicos da possibilidade do conhecimento em geral transformam aqui as três categorias da quantidade, nas quais a unidade na produção do quantum tem que ser sempre admitida homogênea, com o único objetivo de conectar numa consciência elementos heterogêneos do conhecimento mediante a qualidade de um conhecimento como princípio. Assim, o critério da possibilidade de um conceito (não de seu objeto) é a definição na qual a unidade do conceito, a verdade de tudo o que possa inicialmente ser derivado dele e enfim a completude daquilo que foi tirado dele perfazem o requerido para a produção do inteiro conceito. Do mesmo modo, também o critério de uma hipótese consiste na compreensibilidade do fundamento explicativo admitido, ou na unidade de tal fundamento (sem hipótese auxiliar), na verdade (concordância consigo mesmo e com a experiência) das consequências daí deriváveis, e enfim na completude do fundamento explicativo de tais consequências, que não reconduzem a nada mais nada menos do que foi admitido na hipótese e fornecem de novo analiticamente a posteriori o que fora pensado sinteticamente a priori, concordando com tal. - Portanto, mediante os conceitos de unidade, verdade e perfeição a tábua transcendental das categorias não é de modo algum completada como se fosse deficiente, mas na medida em que a relação desses conceitos a objetos é posta inteiramente de lado só o procedimento com estes conceitos é submetido a regras lógicas universais da concordância do conhecimento consigo mesmo. CAPÍTULO SEGUNDO DA ANTIGA ANALÍTICA TRANSCENDENTAL Da dedução dos conceitos puros do entendimento SEÇÃO PRIMEIRA § 13. Dos princípios de uma dedução transcendental em geral Quando falam de faculdades (Befugnisse) e usurpações num processo jurídico os juristas distinguem a questão sobre o que é de direito (quid iuris) da que concerne aos fatos (quid facti), e na medida em que exigem provas de ambos os pontos, chamam dedução a primeira prova, que deve demonstrar a faculdade ou também o direito. Sem réplica de ninguém, servimo-nos de uma porção de conceitos empíricos e, mesmo sem dedução, consideramo-nos autorizados a lhes adjudicar um sentido e uma pretensa significação, pois temos sempre à mão a experiência para provar a sua realidade objetiva. Há também, entretanto, conceitos usurpados, quiçá tais como felicidade, destino, que circulam com indulgência quase geral, mas às vezes provocam a questão: quid iuris. Com efeito, devido à sua dedução cai-se então em não pequeno embaraço, não se podendo alegar nenhum claro fundamento de direito, nem a partir da experiência nem a partir da razão, pela qual se tornasse evidente a faculdade do seu uso. Todavia, dentre os vários conceitos que constituem o muito mesclado tecido do conhecimento humano há alguns determinados ao uso puro a priori (inteiramente independente de toda a experiência). Esta sua faculdade requer sempre uma dedução, pois para a legitimidade de tal uso não são suficientes provas da experiência, mas se necessita saber como estes conceitos podem se referir a objetos que não tiram de nenhuma experiência. Por conseguinte, denomino dedução transcendental de conceitos a explicação da maneira como estes podem referir-se a priori a objetos, e distingo-a da dedução empírica que indica a maneira como um conceito foi adquirido mediante experiência e reflexão sobre a mesma, e diz, portanto, respeito não à legitimidade, mas ao fato pelo qual a posse surgiu. Agora já possuímos duas espécies bem diferentes de conceitos que, entretanto, concordam entre si no fato de se referirem inteiramente a priori a objetos, a saber, os conceitos de espaço e tempo, como formas da sensibilidade, e as categorias, como conceitos do entendimento. Querer tentar uma dedução empírica desses conceitos seria um trabalho completamente inútil, visto que aquilo que distingue sua natureza consiste no fato de se referirem aos seus objetos sem terem tomado nada emprestado da experiência para sua representação. Portanto, se uma dedução deles é necessária, terá sempre que ser transcendental. Pode-se, contudo, procurar na experiência, se não o princípio da possibilidade desses conceitos, pelo menos as causas ocasionais de sua produção. Em tal caso, as impressões dos sentidos fornecem o primeiro impulso para lhes abrir a inteira capacidade de conhecimento e constituir a experiência. Esta última contém dois elementos muito heterogêneos, a saber, uma matéria para o conhecimento derivado dos sentidos e certa forma para ordená-la derivada da fonte interna da intuição e do pensamento puros, os quais, por ocasião da matéria, pela primeira vez são postos em exercício e produzem conceitos. É sem dúvida de grande utilidade seguir de tal modo os rastros dos primeiros empenhos de nossa capacidade de conhecimento para se elevar de percepções singulares a conceitos universais, e deve-se agradecer ao famoso Locke ter pela primeira vez aberto o caminho para tanto. Todavia, uma dedução dos conceitos puros a priori jamais se constitui desse modo, pois não se encontra absolutamente nesse caminho; com efeito, em vista do seu uso futuro, que deve ser inteiramente independente da experiência, tais conceitos precisam exibir uma certidão de nascimento completamente diversa da que atesta uma origem em experiências. A esta tentada derivação fisiológica, que por dizer respeito a uma quaestionem facti não pode propriamente denominar-se dedução, quero em consequência disso denominar explicação da posse de um conhecimento puro. É portanto claro que de tais conceitos é possível apenas uma dedução transcendental e de modo algum uma empírica, não passando a última, no tocante aos conceitos puros a priori, de vãs tentativas com as quais só pode se ocupar aquele que não concebeu a natureza inteiramente peculiar desses conhecimentos. Se bem que o único modo admitido de uma possível dedução do conhecimento puro a priori seja o transcendental, disso não resulta ainda que ela seja tão inevitavelmente necessária. Mediante uma dedução transcendental, perseguimos acima até suas fontes os conceitos de espaço e de tempo, explicando e determinando a priori sua validade objetiva. Não obstante, a Geometria percorre o seu seguro caminho mediante meros conhecimentos a priori sem precisar pedir à Filosofia um atestado concernente à descendência pura e legítima do seu conceito fundamental de espaço. No entanto, nesta ciência o uso do conceito refere-se apenas ao mundo sensível externo, do qual o espaço é a forma pura de sua intuição e no qual portanto todo conhecimento geométrico possui evidência imediata por se fundar sobre intuição a priori, sendo os objetos dados a priori (segundo a forma) na intuição pelo próprio conhecimento. Ao contrário, com os conceitos puros do entendimento começa a inevitável necessidade de procurar a dedução transcendental não somente deles próprios, mas também do espaço. Com efeito, visto que tais conceitos puros falam de objetos não mediante predicados da intuição e da sensibilidade, mas do pensamento puro a priori, referem-se universalmente a objetos sem quaisquer condições da sensibilidade. Além disso, visto que não se fundam sobre a experiência, não podem também apresentar na intuição a priori nenhum objeto sobre o qual fundar a sua síntese antes de toda a experiência; consequentemente, não apenas despertam suspeita devido à validade objetiva e limites do seu uso, mas ainda tomam ambíguo aquele conceito de espaço pelo fato de se inclinarem a usa-lo acima das condições da intuição sensível, o que acima tornou necessária uma dedução transcendental também a seu respeito. Desse modo, antes de ter dado um único passo no campo da razão pura o leitor tem que ser convencido da necessidade incontornável de tal dedução transcendental; pois do contrário procede cegamente e, após ter errado diversamente em torno, precisa retomar novamente à ignorância da qual partiu. Mas ele também precisa compreender claramente e com antecedência a inevitável dificuldade para não se queixar de obscuridade onde a própria coisa se encontra profundamente oculta, nem deve se cansar muito cedo da remoção dos empecilhos. Com efeito, trata-se ou de desistir completamente de todas as pretensões a discernimentos da razão pura como o campo mais ambicionado, a saber, o de ultrapassar os limites de toda experiência possível, ou de levar esta investigação crítica ao seu acabamento. Com leve esforço, conseguimos acima tomar compreensível como os conceitos de espaço e tempo, enquanto conhecimentos a priori, tem não obstante que se referir necessariamente a objetos e tornaram possível, independente de toda a experiência, um conhecimento sintético dos mesmos. Com efeito, já que unicamente mediante tais formas puras da sensibilidade um objeto pode nos aparecer, isto é, ser um objeto da intuição empírica, então espaço e tempo são intuições puras que contêm a priori a condição da possibilidade dos objetos como fenômenos, e a sua síntese nos mesmos possui validade objetiva. Ao contrário, as categorias do entendimento não nos apresentam absolutamente as condições sob as quais objetos são dados na intuição; por conseguinte, objetos podem chegar a nos aparecer sem precisarem necessariamente se referir a funções do entendimento, e este, portanto, conter as condições a priori dos mesmos. Por isso, surge aqui uma dificuldade que não encontráramos no campo da sensibilidade, a saber, como condições subjetivas do pensamento devam possuir validade objetiva, isto é, fornecer condições da possibilidade de todo o conhecimento dos objetos: pois sem funções do entendimento fenômenos podem seguramente ser dados na intuição. Tomo, por exemplo, o conceito de causa, que significa um modo particular de síntese, já que com base em algo A é posto, conforme uma regra, algo bem diverso B. Não é claro a priori por que fenômenos deveriam conter algo semelhante (com efeito, não se podem alegar experiências como provas por que a validade objetiva deste conceito tem que poder ser demonstrada a priori), e por conseguinte é a priori duvidoso se um conceito de tal espécie não é porventura vazio e não encontra em parte alguma um objeto entre os fenômenos. Com efeito, que objetos da intuição sensível têm que estar conforme as condições formais da sensibilidade situadas a priori na mente resulta do fato de que o contrário não seriam objetos para nós; todavia, a conclusão de que além disso tais objetos precisam estar conformes às condições requeridas pelo entendimento para o conhecimento sintético do pensamento não é alcançável com a mesma facilidade. Com efeito, poderia perfeitamente haver fenômenos constituídos de tal modo que o entendimento não os achasse conformes às condições de sua unidade, e tudo se encontrasse em tal confusão que, por exemplo, na sequência da série dos fenômenos nada se oferecesse capaz de fornecer uma regra de síntese e, portanto, correspondesse ao conceito de causa e efeito, sendo este conceito com isso inteiramente nulo e sem significação. Nem por isso os fenômenos deixariam de oferecer objetos à nossa intuição, pois esta de maneira alguma precisa das funções do pensamento. Poder-se-ia pensar em se desembaraçar da fadiga destas investigações dizendo: a experiência oferece incessantes exemplos de uma regularidade dos fenômenos tal que dão suficiente motivo para abstrair daí o conceito de causa e mediante tal comprovar ao mesmo tempo a validade objetiva de tal conceito; neste caso não se nota que deste modo o conceito de causa não pode absolutamente surgir, mas que tem que estar fundado inteiramente a priori no entendimento ou ser completamente abandonado como simples quimera. Com efeito, este conceito exige de modo absoluto que algo A seja de espécie tal que alguma outra coisa B resulte disso necessariamente e segundo uma regra absolutamente universal. Os fenômenos oferecem casos a partir dos quais é possível uma regra segundo a qual alguma coisa acontece habitualmente, mas sendo o resultado jamais necessário: em vista disso, à síntese de causa e efeito inere uma dignidade que não pode absolutamente se expressar empiricamente, a saber, o que o efeito não é apenas acrescido à causa, mas é posto por ela e dela resulta. A universalidade rigorosa da regra também não é absolutamente uma propriedade de regras empíricas, as quais não podem obter pela indução senão uma universalidade comparativa, isto é, uma utilidade alargada. Ora, o uso dos conceitos puros do entendimento alterar-se-ia completamente caso se quisesse manejá-los apenas como produtos empíricos. § 14. Passagem à dedução transcendental das categorias São possíveis apenas dois casos em que representação sintética e seus objetos podem coincidir, referir-se necessariamente um ao outro e como que se encontrar ou quando só o objeto torna possível a representação ou quando só esta torna possível aquele. No primeiro caso, a relação é apenas empírica e a representação jamais é possível a priori. E isto é o caso com fenômenos no tocante ao que neles pertencente à sensação. No segundo caso, se bem que a representação em si mesma (pois não se trata aqui da causalidade mediante a vontade) não produza o seu objeto segundo a existência, não obstante a representação é a priori determinante no tocante ao objeto quando apenas por ela é possível conhecer algo como um objeto. Há, porém, duas condições unicamente sob as quais o conhecimento de um objeto é possível: primeiro intuição, pela qual é dado o objeto, mas só como fenômeno; segundo conceito, pelo qual é pensado um objeto correspondente a essa intuição. Do que se disse acima, no entanto, resulta claro que a primeira condição, unicamente sob a qual podem ser intuídos objetos, de fato subjaz aos objetos, segundo a forma, a priori na mente. Todos os fenômenos concordam, portanto, necessariamente com esta condição formal da sensibilidade, pois somente mediante esta aparecem, isto é, podem ser intuídos e dados empiricamente. Ora pergunta-se se conceitos a priori não são também antecedentes como condições unicamente sob as quais algo, embora não intuído, é todavia pensado como objeto em geral; com efeito, então todo conhecimento empírico dos objetos é necessariamente conforme tais conceitos porque, sem a sua pressuposição, nada é possível como objeto da experiência. Ora, além da intuição dos sentidos pela qual algo é dado toda a experiência ainda contém um conceito de um objeto que é dado na intuição ou aparece; logo, conceitos de objetos em geral subjazem a todo conhecimento de experiência como condições a priori. Por isso, a validade objetiva das categorias enquanto conceitos a priori repousa sobre o fato de que a experiência (segundo a forma do pensamento) é possível unicamente por seu intermédio. Com efeito, então as categorias se referem necessariamente e a priori a objetos da experiência, porque só mediante elas podem chegar a ser pensado um objeto qualquer da experiência. A dedução transcendental de todos os conceitos a priori possui, portanto, um princípio ao qual tem que se dirigir toda a investigação, a saber, que eles precisam ser conhecidos como condições a priori da possibilidade da experiência (seja da intuição, que é encontrada nela, seja do pensamento). Conceitos que fornecem o fundamento objetivo da possibilidade da experiência são necessários justamente por isso. Mas o desenvolvimento da experiência na qual são encontrados não é a sua dedução (mas sim ilustração) porque nela os conceitos seriam apenas casuais. Sem esta referência originária à experiência possível, na qual ocorrem todos os objetos do conhecimento, absolutamente não poderia ser concebida a referência de tais conceitos a um objeto qualquer. Por falta destas considerações e por ter encontrado conceitos puros do entendimento na experiência, o famoso Locke derivou tais conceitos da experiência procedendo tão inconsequentemente que com isso ousou tentar conhecimentos que vão muito além de todos os limites da experiência. David Hume reconheceu que, para tal ser possível, esses conceitos tinham que ter sua origem a priori. Todavia, visto que absolutamente não sabia explicar como é possível que o entendimento precisava pensar como necessariamente ligados no objeto aqueles conceitos que em si não são ligados no entendimento, e visto que não lhe veio à mente que mediante esses conceitos o próprio entendimento possa talvez ser autor da experiência em que seus objetos são encontrados, premido pela necessidade derivou-os então da experiência (a saber de uma necessidade subjetiva surgida mediante uma frequente associação na experiência e que por fim é falsamente tornada como objetiva, isto é, do hábito), mas procedeu a seguir muito consequentemente ao declarar impossível ultrapassar os limites da experiência com esses conceitos e os princípios por eles ocasionados. Por outro lado, a derivação empírica que veio à mente de ambos não pôde ser posta de acordo com a realidade dos conhecimentos científicos a priori que possuímos, ou seja, da matemática pura e da ciência universal da natureza, sendo portanto refutada pelo fato. O primeiro destes dois homens ilustres abriu as portas à extravagância da fantasia porque a razão, quando uma vez possui a seu lado direitos, não se deixa mais aprisionar por vagas recomendações de moderação; o segundo rendeu-se completamente ao ceticismo, visto crer ter descoberto uma ilusão tão geral, e tida como razão, da nossa faculdade de conhecimento. Estamos agora prestes a tentar se não é possível guiar a razão humana incólume entre esses dois escolhos, indicar-lhe determinados limites e não obstante lhe manter aberto o inteiro campo de atividade que lhe convém. Antes quero apenas adiantar a explicação das categorias. São conceitos de um objeto em geral mediante os quais a sua intuição é considerada determinada no tocante a uma das funções lógicas de juízos. Assim, a função do juízo categórico era a da relação do sujeito com o predicado, por exemplo todos os corpos são divisíveis. No que tange ao uso meramente lógico do entendimento, permaneceu contudo indeterminado a qual dos conceitos se quer dar a função de sujeito e a qual a de predicado. Com efeito, se pode também dizer: alguma coisa divisível é um corpo. Mas se lhe submeto o conceito de corpo, mediante a categoria de substância fica determinado que sua intuição empírica tem que ser considerada na experiência sempre sujeito, jamais simples predicado; o mesmo ocorre nas demais categorias. SEÇÃO SEGUNDA DA DEDUÇÃO DOS CONCEITOS PUROS DO ENTENDIMENTO DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL DOS CONCEITOS PUROS DO ENTENDIMENTO § 15. Da possibilidade de uma ligação em geral O múltiplo das representações pode ser dado numa intuição meramente sensível, quer dizer, que nada mais é senão receptividade, podendo a forma dessa intuição residir a priori em nossa faculdade de representação sem ser outra coisa senão a maneira como o sujeito é afetado. Todavia, a ligação (coniunctio) de um múltiplo em geral jamais pode nos advir dos sentidos e, por conseguinte, tampouco estar ao mesmo tempo contida na forma pura da intuição sensível; pois tal ligação é um ato da espontaneidade da capacidade de representação e, visto que se tem que denominar a esta entendimento para diferenciá-la da sensibilidade, toda ligação - quer possamos ser conscientes dela quer não, quer seja uma ligação do múltiplo da intuição ou de vários conceitos e, na primeira, de uma intuição sensível ou não - é uma ação do entendimento que designaremos com o nome geral de síntese para, mediante isso, ao mesmo tempo observar que não podemos nos representar nada ligado no objeto sem o termos nós mesmos ligado antes, sendo dentre todas as representações a ligação a única que não pode ser dada por objetos, mas constituída unicamente pelo próprio sujeito por ser um ato de sua espontaneidade. Descobre-se aqui facilmente que esta ação precisa ser originalmente una e equivalente para toda a ligação, e que a decomposição, a análise, que parece ser seu contrário, sempre a pressupõe. Com efeito, onde o entendimento nada ligou antes não pode também decompor nada, pois somente pelo entendimento algo pôde ser dado como ligado à capacidade de representação. Mas além do conceito de múltiplo e de sua síntese, o conceito de ligação traz ainda consigo o conceito da unidade dele, ligação é a representação da unidade sintética do múltiplo. (Não se toma aqui em consideração se as representações mesmas são idênticas, logo se uma pode ser pensada analiticamente mediante a outra. Na medida em que se fala do múltiplo, a consciência de uma representação deve ser distinguida sempre da consciência da outra. Aqui se trata somente da síntese dessa consciência (possível). Nota do Autor.) A representação desta unidade não pode, portanto, surgir da ligação; muito antes, pelo fato de ser acrescida à representação do múltiplo, a representação de tal unidade possibilita primeiramente o conceito de ligação. Esta unidade, que precede a priori todos os conceitos de ligação, não é aquela categoria da unidade (§ 10), pois todas as categorias fundam-se sobre funções lógicas em juízos, mas nestes já é pensada a ligação e por conseguinte a unidade de conceitos dados. Portanto, a categoria já pressupõe a ligação. Consequentemente, precisamos procurar esta unidade (como qualitativa, § 12) mais acima ainda, a saber, naquilo que propriamente contém o fundamento da unidade de diversos conceitos em juízos, portanto da possibilidade do entendimento, até mesmo em seu uso lógico. § 16. Da unidade sintética originária da apercepção O eu penso tem que poder acompanhar todas as minhas representações; pois do contrário, seria representado em mim algo que não poderia de modo algum ser pensado, o que equivale a dizer que a representação seria impossível ou, pelo menos para mim, não seria nada. A representação que pode ser dada antes de todo o pensamento denomina-se intuição. Portanto, todo o múltiplo da intuição possui uma referência necessária ao eu penso, no mesmo sujeito em que este múltiplo é encontrado. Esta representação, porém, é um ato de espontaneidade, isto é, não pode ser considerada pertencente à sensibilidade. Chamo-a apercepção pura para distingui-la da empírica, ou ainda apercepção originária por ser aquela autoconsciência que ao produzir a representação eu penso que tem que poder acompanhar todas as demais e é una e idêntica em toda consciência, não pode jamais ser acompanhada por nenhuma outra. Denomino também sua unidade de unidade transcendental da autoconsciência, para designar a possibilidade do conhecimento a priori a partir dela. Com efeito, as múltiplas representações que são dadas numa certa intuição não seriam todas representações minhas se não pertencessem todas a uma autoconsciência, isto é, como representações minhas (se bem que eu não seja consciente delas como tais) precisam conformar-se à condição unicamente sob a qual podem reunir-se numa autoconsciência universal, pois do contrário não me pertenceriam sem exceção. Dessa ligação originária pode-se inferir muitas coisas. A saber, esta identidade completa da apercepção de um múltiplo dado na intuição contém uma síntese de representações, e só é possível pela consciência dessa síntese. Pois a consciência empírica que acompanha diferentes representações é em si dispersa e sem referência à identidade do sujeito. Esta referência não ocorre pelo simples fato de eu acompanhar com consciência toda representação, mas de eu acrescentar uma representação à outra e de ser consciente da sua síntese. Portanto, somente pelo fato de que posso, numa consciência, ligar um múltiplo de representações dadas é possível que eu mesmo me represente, nessas representações, a identidade da consciência, isto é, a unidade analítica da apercepção só é possível pressupondo alguma unidade sintética qualquer. (A unidade analítica da consciência inere a todos os conceitos comuns como tais, por exemplo, quando penso o vermelho em geral, represento-me através disso uma propriedade encontrada (como característica) em algum lugar qualquer ou que pode estar ligada a outras representações; portanto, só em virtude de uma previamente pensada unidade sintética possível posso representar-me a unidade analítica. Uma representação que deve ser pensada como comum a diversas outras é encarada como pertencente a representações tais que possuam, além dela, ainda algo diverso; logo, precisa ser previamente pensada em unidade sintética com outras representações (embora apenas possíveis) antes que eu possa pensar nela a unidade analítica da consciência, que a torna um conceptus communis. E assim a unidade sintética da apercepção é o ponto mais alto na qual se tem que prender todo o uso do entendimento, mesmo a Lógica inteira e, depois dela, a filosofia transcendental; essa faculdade é o próprio entendimento. Nota do Autor.) O pensamento: estas representações dadas na intuição pertencem todas a mim, significa, de acordo com isso, que as reúno numa autoconsciência ou que posso pelo menos reuni-las nela, se bem que tal pensamento mesmo não seja ainda a consciência da síntese das representações, pressupõe todavia a possibilidade desta última; isto é, somente pelo fato de eu poder conceber numa consciência o múltiplo das representações denomino todas de minhas representações, pois do contrário teria um eu mesmo tão multicolor e diverso quanto tenho representações das quais sou consciente. Enquanto dada a priori a unidade sintética do múltiplo das intuições é portanto o fundamento da identidade da própria apercepção, que precede a priori todo o meu pensamento determinado. A ligação não se encontra, porém, nos objetos e não podem ser quiçá tirada dos mesmos pela percepção e deste modo primeiramente acolhida no entendimento, mas é unicamente uma operação do entendimento, que nada mais é senão a faculdade de ligar a priori e de submeter o múltiplo das representações dadas à unidade da apercepção. Este é o princípio supremo de todo conhecimento humano. Este princípio da unidade necessária da apercepção é na verdade idêntico, por conseguinte uma proposição analítica, mas declara como necessária uma síntese do múltiplo dado numa intuição, síntese sem a qual aquela identidade completa da autoconsciência não pode ser pensada. Com efeito, nenhum múltiplo é dado mediante o eu como representação simples; só pode ser dado na intuição, que é diferente do eu, e por ligação pode ser pensado numa consciência. Um entendimento, no qual todo o múltiplo fosse ao mesmo tempo dado pela autoconsciência, intuiria; o nosso só pode pensar e precisa procurar a intuição nos sentidos. Sou, portanto, consciente de mim mesmo idêntico com referência ao múltiplo das representações dadas a mim numa intuição, pois denomino minhas todas as representações em conjunto que perfazem uma só. Isto equivale, porém, a dizer que sou consciente de uma síntese necessária delas a priori que se chama a unidade sintética originária da apercepção, sob a qual se encontram todas as representações dadas a mim, mas sob a qual foram postas por uma síntese. § 17. A proposição fundamental da unidade sintética da apercepção é o princípio supremo de todo o uso do entendimento O princípio supremo da possibilidade de toda a intuição com referência à sensibilidade, segundo a estética transcendental, era: todo o múltiplo da intuição está submetido às condições formais do espaço e do tempo. Com referência ao entendimento, o princípio supremo da mesma é: todo o múltiplo da intuição está submetido às condições da unidade sintética originária da apercepção. (O espaço, o tempo e todas as suas partes são intuições, por conseguinte representações singulares com o múltiplo que contêm em si (ver a Estética Transcendental); logo, não são simples conceitos pelos quais precisamente a mesma consciência é encontrada como contida em muitas representações, mas muitas representações são encontradas como contidas numa só e na consciência desta, por conseguinte como compostas; consequentemente, através delas a unidade da consciência é encontrada como sintética, mas mesmo assim como originária. Esta sua singularidade é importante na aplicação (ver § 25). Nota do Autor) Na medida em que nos são dadas todas as múltiplas representações da intuição estão submetidas ao primeiro princípio; na medida em que têm que poder ser ligadas numa consciência, todas essas mesmas representações estão submetidas ao segundo princípio. Com efeito, sem isso nada pode ser pensado ou conhecido, pois as representações dadas não teriam em comum o ato da apercepção eu penso, e desse modo não seriam reunidas numa autoconsciência. Falando de modo geral, entendimento é a faculdade de conhecimentos. Estes consistem na referência determinada de representações dadas a um objeto. Objeto, porém, é aquilo em cujo conceito é reunido o múltiplo de uma intuição dada. Ora, toda reunião das representações requer a unidade da consciência na síntese delas. Consequentemente, a unidade da consciência é aquilo que unicamente perfaz a referência das representações a um objeto, por conseguinte a sua validade objetiva e portanto que se tomem conhecimentos, e sobre o que enfim repousa a própria possibilidade do entendimento. Portanto, o primeiro conhecimento puro do entendimento, sobre o qual se funda todo o seu uso restante e que ao mesmo tempo é inteiramente independente de todas as condições da intuição sensível, é o princípio da unidade sintética originária da apercepção. Deste modo, a mera forma da intuição sensível externa, o espaço, não é ainda absolutamente um conhecimento; apenas dá o múltiplo da intuição a priori para um conhecimento possível. Todavia, para conhecer uma coisa qualquer no espaço, por exemplo uma linha, preciso traçá-la, e, portanto, realizar sinteticamente uma determinada ligação do múltiplo dado, de modo que a unidade desta ação é ao mesmo tempo, a unidade da consciência (no conceito de uma linha) e através disso um objeto (um determinado espaço) é primeiramente conhecido. A unidade sintética da consciência é, portanto, uma condição objetiva de todo o conhecimento, de que preciso não apenas para mim a fim de conhecer um objeto, mas sob qual toda intuição tem que estar a fim de tornar-se objeto para mim, pois de outra maneira e sem essa síntese o múltiplo não se reuniria numa consciência. Embora tome a unidade sintética condição de todo pensamento, esta última proposição é ela mesma como ficou dito, analítica. Com efeito, não afirma senão que, em qualquer intuição dada, todas as minhas representações têm que se submeter à condição unicamente sob a qual posso atribuí-las, como representações minhas, ao próprio eu idêntico e por conseguinte, enquanto ligadas sinteticamente numa apercepção, enfeixá-las mediante a expressão universal eu penso. Essa proposição fundamental não é contudo um princípio para todo entendimento possível em geral, mas somente para aquele ao qual, mediante sua apercepção pura na representação eu sou, ainda não foi dado absolutamente nada de múltiplo. Um entendimento, mediante cuja autoconsciência o múltiplo da intuição fosse ao mesmo tempo dado e mediante cuja representação os objetos desta ao mesmo tempo existissem, para a unidade da consciência não necessitaria um ato particular da síntese do múltiplo, mas a qual é necessitada pelo entendimento humano, que apenas pensa e não intui. Para o entendimento humano, tal ato é inevitavelmente o primeiro princípio, a ponto de não poder fazer-se menor ideia de outro entendimento possível, seja de um que intuísse ele mesmo, seja de um que, embora possuísse como fundamento uma intuição sensível, esta fosse de tipo diverso da que se encontra no espaço e no tempo. § 18. O que é unidade objetiva da autoconsciência A unidade transcendental da apercepção é aquela pela qual todo o múltiplo dado numa intuição é reunido num conceito do objeto. Em vista disso, denomina-se objetiva e tem que ser distinguida da unidade subjetiva da consciência, que é uma determinação do sentido interno, mediante o qual aquele múltiplo da intuição é dado empíricamente para tal ligação. Depende de circunstâncias ou de condições empíricas se posso ser empiricamente consciente do múltiplo como simultâneo ou sucessivo. Eis por que a unidade empírica da consciência, mediante a associação das representações, concerne ela mesma a um fenômeno e é inteiramente contingente. Diante disso, a forma pura da intuição no tempo, simplesmente como intuição em geral que contém um múltiplo dado, está sob a unidade originária da consciência simplesmente mediante a referência necessária do múltiplo da intuição ao um: eu penso; portanto mediante a síntese pura do entendimento, que subjaz a priori à síntese empírica. Somente aquela unidade é válida objetivamente; a unidade empírica da apercepção, que aqui não consideramos e que além disso só é derivada da primeira sob condições dadas in concreto, possui apenas validade subjetiva. Uma pessoa liga a representação de certa palavra a uma coisa, a outra a uma coisa; a unidade da consciência naquilo que é empírico, no tocante ao que é dado, não é válida necessária e universalmente. § 19. A forma lógica de todos os juízos consiste na unidade objetiva da apercepção dos conceitos contidos neles Jamais pude satisfazer-me com a explicação que os lógicos dão a respeito de um juízo em geral: o juízo é, como dizem, a representação de uma relação entre dois conceitos. Embora deste equívoco da lógica tenham resultado muitas consequências importunas, não quero querelar aqui com eles sobre o caráter defeituoso da explicação, a saber, que atende quando muito aos juízos categóricos, mas não aos hipotéticos e disjuntivos (que como tais contêm uma relação não de conceitos e sim de juízos). (A prolixa doutrina das quatro figuras silogísticas diz respeito somente aos silogismos categóricos. Embora não passe de um subterfúgio para, mediante ocultamento de conclusões imediatas (consequentiae immediatae) sob as premissas de um silogismo puro, obter a aparência de um número maior de modos de concluir do que os da primeira figura, não teria logrado apenas através disso nenhuma sorte particular se não tivesse conseguido elevar os juízos categóricos a uma autoridade exclusiva como aqueles aos quais têm que ser referíveis todos os demais, o que porém, de acordo com o § 9, é falso. Nota do Autor.) Observo apenas que aqui não fica determinado em que consiste tal relação. Todavia, se investigo mais exatamente a relação de conhecimentos dados em cada juízo e, enquanto pertencentes ao entendimento, os distingo da relação segundo leis da imaginação reprodutiva (que possui somente validade subjetiva), vejo que um juízo não é senão o modo de levar conhecimentos dados à unidade objetiva da apercepção. Nos juízos, a partícula relacional é visa distinguir a unidade objetiva de representações dadas da unidade subjetiva. Com efeito, tal palavrinha designa a referência dessas representações à apercepção originária e à sua unidade necessária, embora o próprio juízo seja empírico e por conseguinte contingente, por exemplo os corpos são pesados. Com isto não quero, na verdade, dizer que na intuição empírica tais representações pertençam necessariamente umas às outras, mas que na síntese das intuições pertencem umas às outras em virtude da unidade necessária da apercepção, isto é, segundo princípios da determinação objetiva de todas as representações, na medida em que disso possa resultar um conhecimento, princípios todos derivados da proposição fundamental da unidade transcendental da apercepção. Somente através disso resulta de tal relação um juízo, isto é, uma relação que é objetivamente válida e se distingue suficientemente da relação destas mesmas representações na qual há validade meramente subjetiva, por exemplo segundo leis da associação. Segundo as últimas, eu só poderia dizer: quando carrego um corpo, sinto uma pressão de peso; não porém: ele, o corpo, é pesado. A última expressão significa precisamente que ambas essas representações estão ligadas no objeto, isto é, sem distinção do estado do sujeito, e não apenas juntas na percepção (por mais que também possa ser repetida). § 20 Todas as intuições sensíveis estão sob as categorias, como condições unicamente sob as quais o múltiplo delas pode reunir-se numa consciência O dado múltiplo fornecido numa intuição sensível está necessariamente submetido à unidade sintética originária da apercepção, pois unicamente mediante esta é possível a unidade da intuição (§ 17). Mas a ação do entendimento, pela qual o múltiplo de representações dadas (que podem ser tanto intuições como conceitos) é submetido a uma apercepção em geral, é a função lógica dos juízos (§ 19). Portanto, na medida em que é dado numa só intuição empírica, todo o múltiplo é determinado com respeito a uma das funções lógicas para julgar, pela qual, a saber, é conduzido a uma consciência em geral. As categorias, entretanto, não são senão justamente essas funções para julgar, na medida em que o múltiplo de uma intuição dada é determinado com respeito a elas (§ 13).1 Portanto, numa intuição dada também o múltiplo está necessariamente sob categorias. § 21. Observação Um múltiplo contido numa intuição que chamo minha é representado, mediante a síntese do entendimento, como pertencente à unidade necessária da autoconsciência, e isto ocorre mediante a categoria. Esta indica, portanto, que a consciência empírica de um múltiplo dado de uma só intuição está sob uma autoconsciência pura a priori do mesmo modo como uma intuição empírica está sob uma intuição sensível pura, que ocorre igualmente a priori. - Na proposição acima deu-se, portanto, início a uma dedução dos conhecimentos puros dos conceitos puros do entendimento na qual, já que as categorias surgem só no entendimento independente da sensibilidade, preciso ainda abstrair do modo como o múltiplo é dado a uma intuição empírica, para me ater somente à unidade que o entendimento acrescenta à intuição mediante a categoria. No que segue (§ 26), a partir da maneira como a intuição empírica é dada na sensibilidade mostrar-se-á que a sua unidade não é senão a que a categoria, segundo o anterior (§ 20), prescreve ao múltiplo de uma intuição dada em geral, e que pela explicação da validade a priori das categorias no tocante a todos a todos os objetos dos nossos sentidos é pela primeira vez inteiramente alcançado o propósito da dedução. Na prova acima, só não pude abstrair de uma parte a saber, de que o múltiplo da intuição tem que ser dado ainda antes e independente da síntese do entendimento; de que modo, porém, fica aqui indeterminado. Com efeito, se eu quisesse pensar um entendimento que intuísse ele mesmo (como por exemplo um entendimento divino, que não se representasse objetos dados, mas mediante cuja representação os próprios objetos fossem ao mesmo tempo dados ou produzidos), então as categorias não teriam significação alguma no tocante a um tal conhecimento. São apenas regras para um entendimento cuja inteira faculdade consiste no pensar, isto é, na ação de conduzir à unidade da apercepção a síntese do múltiplo que lhe foi dado alhures na intuição; portanto num entendimento que por si não conhece absolutamente nada, mas apenas liga e ordena a matéria do conhecimento, a intuição, que lhe precisa ser dada pelo objeto. Nenhum fundamento pode ser fornecido seja para a peculiaridade do nosso entendimento realizar a priori a unidade da apercepção apenas mediante as categorias e precisamente através dessa espécie e desse número delas, seja por que temos justamente essas e não outras funções para julgar ou por que tempo e espaço são as únicas formas de nossa intuição. § 22. Para o conhecimento das coisas, a categoria não possui nenhum outro uso além de sua aplicação a objetos da experiência Pensar um objeto e conhecer um objeto não é, portanto, a mesma coisa. O conhecimento requer dois elementos: primeiro o conceito pelo qual em geral um objeto é pensado (a categoria), e em segundo a intuição pela qual é dado. Com efeito, se ao conceito não pudesse ser dada uma intuição correspondente, seria um pensamento segundo a forma mas sem nenhum objeto, através dele não sendo absolutamente possível conhecimento algum de qualquer coisa porque, por mais que eu soubesse, nada haveria nem poderia haver ao qual pudesse ser aplicado meu pensamento. Ora, toda intuição possível a nós é sensível (Estética); portanto, o pensamento de um objeto em geral mediante um conceito puro do entendimento pode tornar-se conhecimento em nós somente na medida em que tal conceito for referido a objetos dos sentidos. Intuição sensível é ou intuição pura (espaço e tempo) ou intuição empírica daquilo que, mediante a sensação, é representado imediatamente como real no espaço e no tempo. Pela determinação da primeira podemos obter conhecimentos a priori de objetos (na Matemática), mas somente segundo a sua forma, como fenômenos; permanece, entretanto, indecidido se pode haver coisas que precisem ser intuídas nessa forma. Consequentemente, todos os conceitos matemáticos não são por si conhecidos, a não ser na medida em que se pressuponha haver coisas que nos possam se apresentar somente conforme a forma daquela intuição sensível pura. Coisas no espaço e no tempo são, porém, dadas somente na medida em que são percepções (representações acompanhadas de sensação), por conseguinte por representação empírica. Consequentemente, mesmo quando aplicados a intuições a priori (como na Matemática), os conceitos puros do entendimento produzem conhecimento só na medida em que tais intuições, por conseguinte através delas também os conceitos puros do entendimento, puderem ser aplicadas a intuições empíricas. Por isso, mediante a intuição as categorias não nos fornecem também conhecimento algum das coisas senão apenas através da sua aplicação à intuição empírica, isto é, servem só à possibilidade do conhecimento empírico. Este chama-se, porém, experiência. Por conseguinte, as categorias não possuem nenhum outro uso para o conhecimento das coisas senão apenas na medida em que estas forem admitidas como objetos de experiência possível. § 23 A proposição acima é de grande importância, pois determina tanto os limites do uso dos conceitos puros do entendimento no tocante aos objetos quando a estética transcendental determinou os limites do uso da forma pura de nossa intuição sensível. Enquanto condições da possibilidade como objetos podem nos ser dados, espaço e tempo não valem mais que para objetos dos sentidos, por conseguinte da experiência. Além desses limites, espaço e tempo não representam absolutamente nada, pois estão apenas nos sentidos e fora destes não possuem realidade alguma. Os conceitos puros do entendimento estão livres dessa limitação e se estendem a objetos da intuição em geral, seja esta semelhante à nossa ou não. Contanto apenas que seja sensível e não intelectual. Esta ulterior extensão dos conceitos para além da nossa intuição sensível não nos serve a nada. Com efeito, trata-se então de conceitos vazios de objetos dos quais não podemos de modo algum julgar, mediante tais conceitos, se são alguma vez possíveis ou não; trata-se de simples formas de pensamento sem realidade objetiva, pois não dispomos de nenhuma intuição à qual pudesse ser aplicada a unidade sintética da apercepção que unicamente aqueles conceitos contêm, de modo que lhes fosse possível determinar um objeto. Somente nossa intuição sensível e empírica pode proporcionar-lhes sentido e significado. Portanto, admitindo-se um objeto de uma intuição não sensível como dado, pode-se muito bem representá-lo através de todos os predicados que jazem já na pressuposição de que nada pertence à intuição sensível lhe diz respeito: portanto, que não seja extenso, ou não esteja no espaço, que a sua duração não seja temporal, que nele não se encontre nenhuma mudança (sucessão de determinações no tempo) etc. Todavia, não é um conhecimento propriamente dito apenas indicar como a intuição do objeto não é, sem poder dizer o que está contido nela. Com efeito, então de modo algum representei a possibilidade de um objeto para o meu conceito puro do entendimento porque não pude dar nenhuma intuição correspondente a tal conceito, mas pude apenas dizer que a nossa não vale para ele. Mas o principal consiste aqui no fato de que a semelhante algo jamais poderia ser aplicada uma única categoria. Tome-se, por exemplo, o conceito de substância, isto é, de algo que pode existir como sujeito, mas jamais como simples predicado. Com respeito a isso, de modo algum sei se poderia haver uma coisa qualquer que correspondesse a essa determinação do pensamento, se a intuição empírica não me desse o caso para aplicação. Mas sobre isso direi mais no que se segue. § 24. Da aplicação das categorias a objetos dos sentidos em geral Mediante o mero entendimento os conceitos puros do entendimento se referem a objetos da intuição em geral, ficando indeterminado se se trata de nossa intuição ou de outra qualquer, contanto que seja sensível, conceitos que justamente por isso são meras formas do pensamento mediante as quais nenhum objeto determinado é conhecido. A síntese ou ligação do múltiplo nos mesmos referiu-se apenas à unidade da apercepção, e foi desse modo o fundamento da possibilidade do conhecimento a priori na medida em que repousa sobre o entendimento, por conseguinte não somente transcendental, mas também puramente intelectual. Todavia, visto que nos subjaz certa forma da intuição sensível a priori que repousa sobre a receptividade da capacidade de representações (sensibilidade), enquanto espontaneidade o entendimento pode então determinar o sentido interno pelo múltiplo de representações dadas conforme a unidade sintética da apercepção do múltiplo da intuição sensível, considerando tal unidade a condição sob a qual têm necessariamente que estar todos os objetos da nossa (humana) intuição. Mediante tal, enquanto simples formas de pensamento as categorias podem adquirir realidade objetiva, isto é, aplicação a objetos que nos podem ser dados na intuição, mas só como fenômenos; com efeito, só com respeito a estes somos capazes a priori de intuição. Esta síntese do múltiplo da intuição sensível, a priori possível e necessária, pode denominar-se figurada (synthesis speciosa) para distingui-la daquela que seria pensada na mera categoria com respeito ao múltiplo de uma intuição em geral, e que se chama ligação do entendimento (synthesis intellectualis); ambas são transcendentais, não apenas porque elas mesmas procedem a priori, mas também porque andam a priori a possibilidade de outro conhecimento. Todavia, quando concerne apenas à unidade sintética originária da apercepção, isto é, a esta unidade transcendental pensada nas categorias, a síntese figurada, precisa em distinção à ligação meramente intelectual, denominar-se síntese transcendental da capacidade da imaginação. Capacidade da imaginação é a faculdade de representar um objeto também sem a sua presença na intuição. Ora, visto que toda a nossa intuição é sensível, devido à condição subjetiva unicamente sob a qual pode dar uma intuição correspondente aos conceitos do entendimento, a capacidade da imaginação pertence à sensibilidade. Entretanto, na medida em que a sua síntese é um exercício de espontaneidade que é determinante e não, como o sentido, meramente determinável, que por conseguinte pode determinar a priori sentido segundo a sua forma e de acordo com a unidade da apercepção, em tal caso a capacidade da imaginação é nesta medida uma faculdade de determinar a priori a sensibilidade, e a sua síntese das intuições, conforme às categorias, tem que ser a síntese transcendental da capacidade da imaginação; isto é um efeito do entendimento sobre a sensibilidade e a primeira aplicação do mesmo (ao mesmo tempo o fundamento de todas as demais) a objetos da intuição possível a nós. Enquanto figurada, tal síntese distingue-se da intelectual, sem qualquer capacidade da imaginação e apenas pelo entendimento. Na medida em que a capacidade da imaginação é espontaneidade, às vezes também a denomino capacidade produtiva da imaginação, distinguindo-a desse modo da reprodutiva, cuja síntese está subordinada simplesmente a leis empíricas, ou seja, as da associação, e que portanto em nada contribui para a explicação da possibilidade do conhecimento a priori, em vista disso não pertencendo à filosofia transcendental, mas à Psicologia. Este é agora o lugar para tornar compreensível o paradoxo que deve ter dado na vista de qualquer um durante a exposição da forma do sentido interno (§ 6): a saber, de que modo este nos representa à consciência somente como nos aparecemos, não como somos em nós mesmos, pois nos intuímos apenas como somos internamente afetados, e isto parece contraditório na medida em que teríamos que nos comportar como passivos diante de nós mesmos; por isso, nos sistemas de Psicologia costuma-se de preferência fazer o sentido interno passar por idêntico à faculdade de apercepção (que nós distinguimos cuidadosamente). O que determina o sentido interno é o entendimento e sua faculdade originária de ligar o múltiplo da intuição, isto é, de submetê-la a uma apercepção (como aquilo sobre o qual se funda a sua própria possibilidade). Ora, já que em nós homens o entendimento não é uma faculdade de intuições e, embora estas fossem dadas na sensibilidade, não poderia acolhê-las dentro de si como que para ligar o múltiplo da sua própria intuição, então a síntese do entendimento considerado isoladamente não é senão a unidade da ação da qual como tal é consciente também sem sensibilidade e mediante a qual ele próprio é capaz de determinar internamente a sensibilidade com vistas ao múltiplo, que lhe pode ser dado segundo a forma de sua intuição. Sob o nome de síntese transcendental da capacidade da imaginação, portanto, o entendimento exerce sobre o sujeito passivo, cuja faculdade ele é, aquela ação da qual dizemos, com direito, que o sentido interno é afetado por ela. A apercepção e a sua unidade sintética de modo algum é tão idêntica ao sentido interno; muito antes, enquanto fonte de toda ligação aquela se dirige ao múltiplo das intuições em geral e sob o nome de categorias, antes de toda intuição sensível, a objetos em geral. Ao contrário, o sentido interno contém a mera forma da intuição, mas sem ligação do múltiplo na mesma, por conseguinte não contém ainda nenhuma intuição determinada, a qual só é possível mediante a consciência da determinação do sentido interno pela ação transcendental da capacidade da imaginação (influência sintética do entendimento sobre o sentido interno), ação que denominei síntese figurada. Isso também sempre percebemos em nós. Não podemos pensar linha alguma sem a traçar em pensamento, pensar círculo algum sem o descrever, de modo algum representar as três dimensões do espaço sem pôr, a partir do mesmo ponto, três linhas perpendiculares entre si, nem mesmo representar o tempo sem, durante o traçar de uma linha reta (que deve ser a representação externa figurada do tempo), prestarmos atenção meramente à ação da síntese do múltiplo pela qual determinamos sucessivamente o sentido interno, e desse modo à sucessão desta determinação no mesmo. O movimento, enquanto ação do sujeito (não enquanto determinação de um objeto), (O movimento de um objeto no espaço não pertence a uma ciência pura, consequentemente também não à Geometria, Com efeito, que uma coisa seja móvel não pode ser conhecido a priori, mas somente pela experiência, Todavia, como descrição de um espaço o movimento é um ato puro da síntese sucessiva do múltiplo na intuição externa em geral mediante a capacidade da imaginação produtiva, pertencendo não somente à Geometria, mas até mesmo à filosofia transcendental. Nota do Autor.) consequentemente a síntese do múltiplo no espaço, caso abstraiamos deste e prestemos atenção apenas à ação pela qual determinamos o sentido interno conforme sua forma, produz pela primeira vez o conceito de sucessão. Portanto, no sentido interno o entendimento não encontra já tal ligação do múltiplo, mas a produz ao afetá-la. A questão, porém, de saber como o eu, ou eu penso, se distingue do eu que intui a si mesmo (na medida em que posso me representar ainda outro modo de intuição pelo menos, como possível) e não obstante se identifica com este último como o mesmo sujeito, portanto de como posso dizer: enquanto inteligência e sujeito pensante, eu conheço a mim mesmo enquanto o objeto pensado na medida em que me sou além disso dado na intuição, mas igualmente a outros fenômenos não como sou diante do entendimento, mas como me apareço, não contém dificuldade maior nem menor do que a questão de como posso ser em geral um objeto para mim mesmo, e isto para a intuição e percepções internas. Mas que tem realmente que ser assim pode, caso se deixe o espaço valer como uma simples forma pura dos fenômenos dos sentidos externos, ser claramente provado pelo fato de que não podemos nos representar o tempo, que de maneira alguma é um objeto da intuição externa, senão sob a imagem de uma linha na medida em que a traçamos. Sem esse modo de apresentação, não poderíamos absolutamente conhecer a unidade da dimensão do tempo, do mesmo modo como precisamos tirar a determinação da duração do tempo ou também de suas posições para todas as percepções internas sempre daquilo que as coisas externas nos apresentam como mutável. Por isso, temos que ordenar as determinações do sentido interno, como fenômenos no tempo, exatamente da mesma maneira como ordenamos no espaço as determinações dos sentidos externos; por conseguinte, se dos últimos concedemos que por eles conhecemos objetos somente na medida em que somos afetados externamente, também temos que conceder, quanto ao sentido interno, que mediante o mesmo só intuímos a nós mesmos tal como somos afetados internamente por nós mesmos, isto é, no que concerne à intuição interna conhecemos nosso próprio sujeito somente como fenômeno, mas não segundo o que é em si mesmo. (Não vejo como se possa encontrar tanta dificuldade no fato do sentido interno ser afetado por nós mesmos. Todo ato de atenção pode nos fornecer um exemplo disso, Em tal ato o entendimento determina sempre de acordo com a ligação que ele pensa, o sentido interno para a intuição interna que corresponde ao múltiplo na síntese do entendimento. O quanto a mente é comumente afetada por isso, cada um poderá perceber em si mesmo. Nota do Autor.) § 25 Ao contrário da síntese transcendental do múltiplo das representações em geral, por conseguinte na unidade sintética originária da apercepção, sou consciente de mim mesmo não como me apareço nem como sou em mim mesmo, mas somente que sou. Esta representação é um pensar, não um intuir. Ora, visto que para o conhecimento de nós mesmos é requerido, além da ação de pensar que leva o múltiplo de toda intuição possível à unidade da apercepção, ainda uma determinada espécie de intuição pela qual esse múltiplo é dado, então a minha própria existência não é um fenômeno (muito menos uma simples ilusão), mas a determinação da minha existência só pode ocorrer, (O eu penso expressa o ato de determinar minha existência. Através disso, portanto, a existência já é dada, mas mediante tal ainda não é dada a maneira pela qual devo determiná-la, isto é, pôr em mim o múltiplo pertencente a ela. Para tanto requer-se auto-intuição à qual subjaza uma forma dada li priori, isto é, o tempo, que é sensível e pertence à receptividade do determinável. Ora, se não tenho ainda uma outra auto-intuição que dê o determinante em mim, de cuja espontaneidade sou apenas consciente, antes do ato de determinar do mesmo modo como o tempo dá o determinável, então não posso determinar minha existência como um ente espontâneo, mas apenas me represento a espontaneidade de meu pensar, isto é, ao determinar, permanecendo minha existência sempre determinável apenas sensivelmente, isto é, como a existência de um fenômeno. Tal espontaneidade faz, todavia, com que me denomine inteligência. Nota do Autor.) conforme a forma do sentido interno, segundo o modo particular como é dado na intuição interna o múltiplo que ligo; logo, não possuo nenhum conhecimento de mim como sou, mas apenas de como apareço a mim mesmo. Apesar de todas as categorias que perfazem o pensamente, de um objeto em geral mediante a ligação do múltiplo numa apercepção, a consciência de si mesmo está por isso bem longe de ser um conhecimento de si mesmo. Do mesmo modo como, para o conhecimento de um objeto diferente de mim, além do pensamento de um objeto em geral (na categoria) necessito ainda uma intuição pela qual determino aquele conceito universal, assim também, para o conhecimento de mim mesmo. Além da consciência ou o fato de me pensar necessito ainda uma intuição do múltiplo em mim pela qual determino tal pensamento. Portanto, existo como inteligência consciente meramente da sua faculdade de ligar; mas com respeito ao múltiplo que precisa ligar, tal inteligência está subordinada a uma condição limitadora denominada sentido interno, condição de tornar aquela ligação intuível somente segundo relações de tempo, as quais se encontram completamente fora dos conceitos próprios do entendimento. Por isso, tal inteligência só pode conhecer-se a si mesma como, com respeito a uma intuição (que não pode ser intelectual, nem ser dada pelo próprio entendimento), meramente se aparece e não como se conheceria se sua intuição fosse intelectual. § 26. Dedução transcendental do uso universal possível na experiência dos conceitos puros do entendimento Na dedução metafísica foi posta em evidência a origem das categorias a priori em geral mediante o seu pleno acordo com as funções lógicas universais do pensamento, mas na dedução transcendental apresentada a sua possibilidade como conhecimentos a priori de objetos de uma intuição em geral (§§ 20,21). Agora deve ser explicada a possibilidade de conhecer a priori, mediante categorias, os objetos que sempre podem ocorrer só aos nossos sentidos, e isto não segundo a forma de sua intuição, mas segundo as leis de sua ligação, portanto [a possibilidade de] prescrever a lei à natureza e até mesmo torná-la possível. Com efeito, sem esta prestabilidade das categorias não se aclararia como tudo o que venha a ocorrer aos nossos sentidos tenha que estar sob as leis que se originam a priori unicamente do entendimento. Antes de tudo, observo que por síntese da apreensão entendo aquela composição do múltiplo numa intuição empírica mediante a qual torna possível a percepção, isto é, a consciência empírica de tal intuição (como fenômeno). Nas representações de espaço e tempo, possuímos a priori formas tanto da intuição sensível interna ou externa, e a síntese da apreensão tem sempre que ser conforme a essas formas, pois só pode ocorrer segundo as mesmas. Todavia, espaço e tempo são representados a priori não apenas como formas da intuição sensível, mas mesmo como intuições (que contém um múltiplo), portanto com a determinação da unidade desse múltiplo neles (ver estética transcendental). (Representado como objeto (como realmente se requer na Geometria), o espaço contém mais do que a simples forma da intuição, a saber, a compreensão do dado múltiplo segundo a forma da sensibilidade numa representação intuitiva, de modo que a forma da intuição dá somente o múltiplo, mas a intuição formal a unidade da representação. Na estética, enumerei essa unidade meramente como pertencente à sensibilidade para apenas observar que precede todo o conceito, não obstante pressuponha uma síntese que não pertence aos sentidos, mas mediante a qual lodos os conceitos de espaço e tempo tornam-se primeiramente possíveis. Com efeito, visto que mediante tal síntese (na medida em que o entendimento determina a sensibilidade) o espaço ou o tempo são pela primeira vez dados como intuições, então a unidade desta intuição a priori pertence ao espaço e ao tempo, e não ao conceito do entendimento (§ 24). Nota do Autor.) Portanto, já com (não em) tais intuições são ao mesmo tempo dadas a priori, como condições da síntese de toda apreensão, a unidade da síntese do múltiplo fora de nós ou em nós, por conseguinte também uma ligação à qual tem que ser conforme tudo o que deve ser representado determinadamente no espaço ou no tempo. Essa unidade sintética, contudo, não pode ser senão a da ligação, numa consciência originária e conforme as categorias, do múltiplo de uma dada intuição em geral, mas aplicada somente à nossa intuição sensível. Consequentemente, toda síntese pela qual se torna possível mesmo a percepção está sob as categorias e, visto que a experiência é conhecimento mediante percepções conectadas, as categorias são condições da possibilidade da experiência, e portanto valem também a priori para todos os objetos da experiência. Portanto se por exemplo elevo a uma percepção a intuição empírica de uma casa mediante a apreensão do múltiplo dessa intuição, então tenho como fundamento a unidade necessária do espaço e da intuição sensível externa em geral, e conforme essa unidade sintética do múltiplo no espaço como que esboço a sua figura. Mas se abstraio da forma do espaço, justamente a mesma unidade sintética reside no entendimento, e é a categoria da síntese do homogêneo numa intuição em geral, isto é, a categoria da quantidade, à qual tem que estar inteiramente conforme aquela síntese da apreensão, isto é, a percepção. (Dessa maneira fica provado que a síntese da apreensão, que é empírica, tem necessariamente que estar conforme à síntese da apercepção, que é intelectual e está contida inteiramente a priori na categoria. É uma única e mesma espontaneidade que introduz, lá sob o nome de capacidade da imaginação e aqui de entendimento, a ligação no múltiplo da intuição. Nota do Autor.) Se (num outro exemplo) percebo o congelamento da água, apreendo então dois estados (do líquido e do sólido) como tais que estão entre si numa relação de tempo. Mas tempo que torno subjacente como intuição interna ao fenômeno, represento-me necessariamente unidade sintética do múltiplo sem a qual aquela relação não poderia ser dada determinadamente (com respeito à sucessão temporal) numa intuição. Ora, se todavia abstraio da forma constante de minha intuição interna, do tempo, como condição a priori sob a qual ligo o múltiplo de uma intuição em geral tal unidade sintética é a categoria de causa, pela qual se a aplico à minha sensibilidade, determino no tempo em geral, segundo a sua relação, tudo o que acontece. Portanto, a apreensão encontra-se num tal evento, por conseguinte este mesmo, segundo a percepção possível, sob o conceito de relação entre efeitos e causas, ocorrendo o mesmo em todos os demais casos. Categorias são conceitos que prescrevem leis a priori aos fenômenos, por conseguinte à natureza como conjunto de todos os fenômenos (natura materialiter spectata). Visto que tais categorias não são derivadas da natureza e não se regulam por ela com seu modelo (pois então seriam meramente empíricas), pergunta-se agora como se pode compreender que a natureza tenha que se regular por elas, isto é, como podem determinar a priori a ligação do múltiplo da natureza sem a tirar desta. Aqui se encontra a solução deste enigma. Ora o modo como as leis dos fenômenos da natureza têm que concordar com o entendimento e sua forma a priori, isto é, com sua faculdade de ligar o múltiplo em geral, não é mais estranho do que o modo como os próprios fenômenos têm que concordar com a forma da intuição sensível a priori. Com efeito, nem as leis existem nos fenômenos, mas só relativamente no sujeito ao qual os fenômenos inerem na medida em que possui entendimento, nem os fenômenos existem em si, mas só relativamente aquele mesmo ente na medida em que possui sentidos. Coisas em si mesmas teriam sua conformidade a leis de modo necessário, mesmo independente de um entendimento que as conhecesse. Fenômenos, todavia, são somente representações de coisas que existem não conhecidas segundo o que possam ser em si mesmas. Como simples representações não estão sob nenhuma lei de conexão como aquela que a faculdade conectante prescreve. Ora, aquilo que conecta o múltiplo da intuição sensível é a capacidade da imaginação, que depende do entendimento quanto à unidade de sua síntese intelectual e da sensibilidade quanto à multiplicidade da apreensão. Entretanto, já que toda percepção possível depende da síntese da apreensão e que esta mesma síntese empírica depende da transcendental, por conseguinte das categorias, então todas as percepções possíveis, portanto também tudo o que possa sempre alcançar a consciência empírica, isto é, todos os fenômenos da natureza, segundo à sua ligação estão sob as categorias, das quais depende a natureza (considerada apenas como natureza em geral) como fundamento originário da conformidade da natureza a leis (como natura formaliter spectata). Todavia, além das leis sobre as quais se funda uma natureza em geral enquanto conformidade a leis dos fenômenos no espaço e no tempo, nem mesmo a faculdade pura do entendimento basta para, mediante simples categorias, prescrever a priori leis aos fenômenos. Por concernirem a fenômenos determinados empiricamente, leis particulares não podem ser derivadas inteiramente das categorias, não obstante estejam todas em conjunto sob as mesmas. Para conhecer tais leis é preciso acrescentar experiência; mas somente aquelas leis a priori instruem sobre a experiência em geral e sobre o que possa ser conhecido como objeto da mesma. § 27. Resultado desta dedução dos conceitos do entendimento Não podemos pensar objeto algum senão mediante categorias; não podemos conhecer objeto pensado algum senão mediante intuições correspondentes àqueles conceitos. Ora, todas as nossas intuições são sensíveis, e tal conhecimento, na medida em que o seu objeto é dado, é empírico. Conhecimento empírico, porém, é experiência. Consequentemente, não nos é possível nenhum conhecimento a priori senão unicamente com respeito a objetos de experiência possível. (Para que não nos oponhamos apressadamente às consequências inquietantes e prejudiciais dessa proposição, quero apenas recordar que no pensamento as categorias não são limitadas pelas condições de nossa intuição sensível, mas possuem um campo ilimitado; somente o conhecimento daquilo que pensamos, a determinação do objeto, requer intuição. Na carência desta, o pensamento do objeto pode de resto ter sempre ainda suas consequências verdadeiras e úteis para o uso da razão do sujeito. Mas visto que não está dirigido sempre à determinação do objeto, portanto ao conhecimento, mas também à do sujeito e de sua vontade, tal uso não pode ainda ser exposto aqui. Nota do Autor.) Todavia, este conhecimento, limitado meramente a objetos da experiência, não é por isso extraído todo da experiência, mas tanto as intuições puras como os conceitos puros do entendimento são elementos do conhecimento encontrados a priori em nós. Ora, há apenas dois caminhos sobre os quais pode ser pensada uma concordância necessária da experiência com os conceitos de seus objetos: ou a experiência torna possível esses conceitos ou esses conceitos tornam possível a experiência. O primeiro caso não se verifica com respeito às categorias (e também não com respeito à intuição sensível pura); com efeito, são conceitos a priori, por conseguinte independentes da experiência (a afirmação de uma origem empírica seria uma espécie de generatio aequivoca). Logo, só resta o segundo caso (por assim dizer um sistema da epigênese da razão pura): a saber que as categorias contêm, por parte do entendimento, os fundamentos da possibilidade de toda experiência em geral. Mas como elas tornam possível a experiência e que princípios de sua possibilidade fornecem em sua aplicação aos fenômenos, mostrá-lo-á mais amplamente o capítulo seguinte sobre o uso transcendental da capacidade de julgar. Se alguém ainda quisesse propor um caminho intermediário entre os dois únicos mencionados, a saber, que tais categorias não fossem nem princípios primeiros a priori de nosso conhecimento pensados espontaneamente nem criadas a partir da experiência, mas disposições subjetivas para pensar implantadas em nós simultaneamente com nossa existência, e arranjadas pelo nosso Autor de tal modo que seu uso concordasse exatamente com as leis da natureza nas quais se desenrola a experiência (uma espécie de sistema de preformação da razão pura), então (excluindo o fato de que numa tal hipótese não se descortinaria nenhum fim, por mais longe que se quisesse impelir a pressuposição de disposições predeterminadas a juízos futuros) seria decisivo, contra o referido caminho intermediário, o seguinte: em tal caso as categorias careceriam da necessidade que pertence essencialmente ao seu conceito. Com efeito, por exemplo o conceito de causa, que afirma a necessidade de um resultado sob uma pressuposta condição, seria falso caso repousasse apenas sobre uma em nós implantada necessidade subjetiva arbitrária de ligar certas representações empíricas segundo uma tal regra de relação. Eu não poderia dizer: o efeito está ligado à causa no objeto (isto é, necessariamente), mas eu sou apenas disposto de modo tal a não poder pensar esta representação senão como conectada assim. Isso é precisamente o que o cético mais deseja. Com efeito, em tal caso todo o nosso conhecimento, mediante a presumida validade objetiva de nossos juízos, não é senão pura ilusão, e não faltariam mesmo pessoas que por si não admitiriam tal necessidade subjetiva (que deve ser sentida); muito menos se poderia brigar com alguém sobre aquilo que repousa apenas no modo como o seu sujeito está organizado. Conceito sumário desta dedução E a apresentação dos conceitos puros do entendimento (e com eles de todo o conhecimento teórico a priori) como princípios da possibilidade da experiência, desta porém como determinação dos fenômenos no espaço e no tempo em geral - por fim desta determinação a partir do princípio da unidade sintética originária da apercepção enquanto a forma do entendimento com referência a espaço e tempo, como formas originárias da sensibilidade. Só até aqui considero necessária a divisão em parágrafos, pois tínhamos que ver com os conceitos elementares. Agora que queremos tornar compreensível o uso desses conceitos, a exposição poderá progredir, sem a mesma divisão, num nexo contínuo. LIVRO SEGUNDO DA ANALÍTICA TRANSCENDENTAL ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS A LÓGICA GERAL está construída sobre um plano que concorda exatamente com a divisão das faculdades superiores de conhecimento. Estas são: entendimento, capacidade de julgar e razão. Na sua analítica, aquela doutrina trata, por conseguinte, de conceitos, juízos e inferências precisamente conforme as funções e a ordem daquelas capacidades da mente que se compreendem sob a denominação vaga de entendimento em geral. Já que a referida lógica meramente formal abstrai de todo o conteúdo do conhecimento (seja puro ou empírico) e se ocupa apenas com a forma do pensamento (do conhecimento discursivo) em geral em sua parte analítica pode abranger também o cânone da razão, cuja forma possui a sua prescrição segura que, sem tomar em consideração a natureza particular do conhecimento nela usado, pode ser compreendido a priori mediante o simples desmembramento das ações da razão em seus momentos. Já que está limitada a um determinado conteúdo, ou seja, somente dos conhecimentos puros a priori, a lógica transcendental não pode imitar a lógica geral nesta divisão. Com efeito, mostra-se que o uso transcendental da razão de modo algum é objetivamente válido, por conseguinte não pertence à lógica da verdade, isto é à analítica, mas como uma lógica da ilusão requer uma parte especial no sistema escolástico sob o nome de dialética transcendental. Logo, entendimento e capacidade de julgar possuem na lógica transcendental o seu cânone do uso objetivamente válido, por conseguinte verdadeiro, pertencendo por isso à sua parte analítica. Só que, em suas tentativas de estabelecer algo a priori sobre objetos e de estender o conhecimento acima dos limites da experiência possível, a razão é inteiramente dialética e suas afirmações ilusórias não se conformam de modo algum a um cânone semelhante ao que a analítica deve conter. A analítica dos princípios será, portanto, somente um cânone para a capacidade de julgar, instruindo-a a aplicar aos fenômenos os conceitos do entendimento que contém a condição para regras a priori. Por causa disso, ao tomar como tema os princípios do entendimento propriamente ditos servir-me-ei da denominação de doutrina da capacidade de julgar, pela qual é designada esta tarefa com maior precisão. INTRODUÇÃO Da capacidade transcendental de julgar em geral Se o entendimento em geral é definido como a faculdade das regras, então capacidade de julgar é a faculdade de subsumir sob regras, isto é, de distinguir se algo está sob uma regra dada (casus datae legis) ou não. A lógica geral absolutamente não contém nem pode conter prescrições para a capacidade de julgar. Com efeito, já que abstrai de todo o conteúdo do conhecimento, só lhe resta como tarefa elucidar analiticamente a simples forma do conhecimento em conceitos, juízos e inferências e constituir assim regras formais de todo o uso do entendimento. Ora, se quisesse mostrar universalmente como se deveria subsumir sob essas regras, isto é, distinguir se algo está ou não sob as mesmas, isso não poderia ocorrer de outra maneira senão novamente por uma regra. Mas, justamente por ser uma regra, esta requer por sua vez uma instrução da capacidade de julgar, e assim fica claro que o entendimento é capaz de ser instruído e abastecido por regras, mas que a capacidade de julgar é um talento particular que não pode ser ensinado, mas somente exercitado. A capacidade de julgar, por conseguinte, é também o específico do assim chamado senso comum, cuja falta nenhuma escola pode remediar. Com efeito, se bem que a escola possa oferecer abundantemente e como que inocular num entendimento limitado regras tomadas emprestadas de outros, ainda assim a capacidade de servir-se corretamente delas deve pertencer ao próprio aprendiz, e nenhuma regra que lhe possa ser prescrita para este propósito estará segura de abuso quando faltar um tal dote natural. (A carência da capacidade de julgar é o que propriamente se denomina estultícia, e contra tal debilidade não há remédio algum. Uma cabeça obtusa ou limitada, não carente de nada a não ser de um grau devido de entendimento e dos seus conceitos, pode pelo ensino muito bem dotar-se deles até o ponto da erudição. Mas como em tal caso este defeito acompanha também o outro (secunda Petri), não é raro encontrar homens muito eruditos que no uso da sua ciência deixam frequentemente ã mostra tal defeito incorrigível. Nota do Autor,) Por isso, um médico, um juiz ou um político pode ter na cabeça muitas e belas regras patológicas, jurídicas ou políticas, a ponto de poder ser professor meticuloso das mesmas; mas na aplicação ainda assim infringi-las-á facilmente, quer porque lhe falte capacidade natural de julgar (se bem que não entendimento), podendo na verdade compreender o universal in abstracto, mas sem conseguir distinguir se um caso pertence in concreto ao mesmo, quer porque não se tenha adestrado suficientemente para esses juízos através de exemplos e atividades concretas. Esta, é também a única e grande utilidade dos exemplos, a saber, que aguçam a capacidade de julgar. Com efeito, no que concerne à correção e precisão da compreensão pelo entendimento, os exemplos costumam antes prejudicar porque só raramente preenchem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e, além disso, enfraquecem frequentemente o esforço do entendimento para compreender, quanto à sua suficiência, as regras em geral e independente das circunstâncias particulares da experiência, habituando por fim a usar tais regras mais como fórmulas do que como princípios. Os exemplos são assim o andador da capacidade de julgar, o qual jamais pode ser dispensado por aquele ao qual falte talento natural para tal capacidade. Ora, se bem que a lógica geral não possa dar nenhuma prescrição à capacidade de julgar, as coisas andam bem diferentes quanto à transcendental, a ponto de até parecer que esta última possui a incumbência específica de corrigir e garantir, mediante regras determinadas, a capacidade de julgar no uso do entendimento puro. De fato, para proporcionar ao entendimento uma aplicação no campo dos conhecimentos puros a priori, portanto como doutrina, a Filosofia parece simplesmente desnecessária ou antes mal aplicada, pois se ganhou pouco ou simplesmente nenhum terreno com todas as tentativas precedentes. Mas como crítica, para prevenir os passos em falso da capacidade de julgar (lapsus iudicií) no uso dos poucos conceitos puros do entendimento que possuímos, a Filosofia é empregada (se bem que a utilidade seja em tal caso somente negativa) em toda a sua agudeza e habilidade examinadora. A filosofia transcendental possui a peculiaridade de que, além da regra (ou antes, a condição universal de regras) dada no conceito puro do entendimento, pode ao mesmo tempo indicar a priori o caso ao qual deve ser aplicada. A causa de sua preeminência, neste ponto, sobre todas as outras ciências didáticas (com exceção da Matemática) reside no fato de tratar de conceitos que devem se referir a priori a seus objetos; por conseguinte, a validade objetiva de tais conceitos não pode ser provada a posteriori, por isso deixaria totalmente intocada a sua dignidade. A filosofia transcendental ao mesmo tempo tem antes que expor, segundo características universais mas suficientes, as condições sob as quais objetos podem ser dados em concordância com aqueles conceitos; do contrário, seriam sem nenhum conteúdo, portanto simples formas lógicas e não conceitos puros do entendimento. Esta doutrina transcendental da capacidade de julgar conterá dois capítulos: o primeiro tratará da condição sensível unicamente sob a qual podem ser utilizados os conceitos puros do entendimento, isto é, do esquematismo do entendimento puro; o segundo, porém, daqueles juízos sintéticos que emanam, sob estas condições a priori, de conceitos puros do entendimento e subjazem a todos os restantes conhecimentos a priori, isto é, dos princípios do entendimento puro. CAPÍTULO PRIMEIRO DA DOUTRINA TRANSCENDENTAL DA CAPACIDADE DE JULGAR (OU ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS) Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento Em todas as subsunções de um objeto a um conceito, a representação do primeiro deve ser homogênea à do segundo, isto é, o conceito precisa conter o que é representado no objeto a ser subsumido a ele, pois justamente isto significa a expressão: um objeto está contido sob um conceito. Desse modo, o conceito empírico de um prato possui homogeneidade com o conceito geométrico puro de um círculo na medida em que a rotundidade, que no primeiro é pensada, no último pode ser intuída. Todavia, os conceitos puros do entendimento são completamente heterogêneos em confronto com as intuições empíricas (até com as intuições sensíveis em geral) e não podem ser jamais encontrados em qualquer intuição. Ora, como é possível a subsunção das intuições aos conceitos, por conseguinte a aplicação da categoria a fenômenos, já que ninguém dirá que esta, por exemplo a causalidade, possa também ser intuída pelos sentidos e esteja contida no fenômeno? Esta tão natural e relevante questão é propriamente a causa da necessidade de uma doutrina transcendental da capacidade de julgar, a saber, para mostrar a possibilidade de como conceitos puros do entendimento podem ser aplicados a fenômenos em geral. Em todas as demais ciências, em que os conceitos pelos quais o objeto é pensado universalmente não são tão heterogêneos e diversos daqueles que representam este objeto in concreto tal como é dado, é desnecessária uma exposição especial quanto à aplicação de uns aos outros. Ora, é claro que precisa haver um terceiro elemento que seja homogêneo, de um lado, com a categoria e, de outro, com o fenômeno, tornando possível a aplicação da primeira ao último. Esta representação mediadora deve ser pura (sem nada de empírico) e não obstante de um lado intelectual, e de outro sensível. Tal representação é o esquema transcendental. O conceito do entendimento contém a unidade sintética pura do múltiplo em geral. Como a condição formal do múltiplo do sentido interno, por conseguinte da conexão de todas as representações, o tempo contém na intuição pura um múltiplo a priori. Ora, uma determinação transcendental do tempo é homogênea à categoria (que constitui a unidade de tal determinação) na medida em que é universal e repousa numa regra a priori. Por outro lado, a determinação do tempo é homogênea ao fenômeno, na medida em que o tempo está contido em toda a representação empírica do múltiplo. Logo, será possível uma aplicação da categoria a fenômenos mediante a determinação transcendental do tempo que, como o esquema dos conceitos do entendimento, media a subsunção dos fenômenos à primeira. Depois do que foi mostrado na dedução das categorias, espera-se que ninguém esteja em dúvida quanto a se decidir sobre a questão se tais conceitos puros do entendimento são de uso meramente empírico ou também transcendental, isto é, se enquanto condições de uma experiência possível simplesmente se referem a priori a fenômenos ou se enquanto condições da possibilidade das coisas em geral podem ser estendidos a objetos em si mesmos (sem nenhuma restrição à nossa sensibilidade). Com efeito, em tal dedução vimos que os conceitos são inteiramente impossíveis e não podem ter nenhuma significação onde não for dado um objeto a eles mesmos ou pelo menos aos elementos dos quais consistem, não podendo portanto dizer respeito a coisas em si (sem considerar se e como possam nos ser dadas); que além disso a modificação de nossa sensibilidade é o único modo pelo qual objetos nos são dados; que por fim os conceitos puros a priori, além da função do entendimento na categoria, ainda precisam conter a priori condições formais da sensibilidade (nomeadamente do sentido interno) que contêm a condição universal unicamente sob a qual a categoria pode ser aplicada a um objeto qualquer. Queremos denominar esta condição formal e pura da sensibilidade, à qual o conceito do entendimento está restringido em seu uso, o esquema desse conceito do entendimento, e o procedimento do entendimento com estes esquemas, esquematismo do entendimento puro. O esquema é em si mesmo sempre só um produto da capacidade de imaginação. Todavia, na medida em ,que a síntese desta não tem por objetivo uma intuição singular, mas só a unidade na determinação da sensibilidade, o esquema distingue-se da imagem. Assim, se ponho cinco pontos um após o outro....., isto é uma imagem do número cinco. Ao contrário, se apenas penso um número em geral, que pode ser cinco ou cem, então este pensamento é mais a representação de um método de representar uma quantidade (por exemplo mil) numa imagem, conforme um certo conceito do que essa própria imagem que eu, no último caso, dificilmente poderia abranger com a vista e comparar com o conceito. Ora, denomino tal representação de um procedimento universal da capacidade de imaginação, o de proporcionar a um conceito sua imagem, o esquema deste conceito. De fato, a nossos conceitos sensíveis puros não subjazem imagens dos objetos, mas esquemas. Nenhuma imagem de um triângulo em geral seria jamais adequada ao seu conceito. Com efeito, não alcançaria a universalidade do conceito, a qual faz com que este valha para todos os triângulos, retângulos, isósceles etc., mas se restringiria sempre só a uma parte desta esfera. O esquema do triângulo não pode existir em nenhum outro lugar a não ser no pensamento, e significa uma regra de síntese da capacidade de imaginação com vistas a figuras puras no espaço. Muito menos ainda um objeto da experiência ou imagem dele chega a alcançar o conceito empírico, mas este sempre se refere imediatamente ao esquema da capacidade de imaginação como uma regra da determinação de nossa intuição, conforme certo conceito universal. O conceito de cão significa uma regra segundo a qual minha capacidade de imaginação pode traçar universalmente a figura de um animal quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular que a experiência me oferece ou também a qualquer imagem possível que posso representar in concreto. No tocante aos fenômenos e à sua mera forma, este esquematismo de nosso entendimento é uma arte oculta na profundezas da alma humana cujo verdadeiro manejo dificilmente arrebataremos algum dia à natureza, de modo a poder apresentá-la sem véu. Podemos dizer apenas o seguinte: a Imagem é um produto da faculdade empírica da capacidade produtiva de imaginação; o esquema dos conceitos sensíveis (como figuras no espaço) é um produto e como que um monograma da capacidade pura a priori de imaginação pelo qual e segundo o qual as imagens tornam-se primeiramente possíveis, mas as quais têm sempre que ser conectadas ao conceito somente mediante o esquema ao qual designam, e em si não são plenamente congruentes com o conceito. Ao contrário, o esquema de um conceito puro do entendimento é algo que não pode ser levado a nenhuma imagem, mas é somente a síntese pura conforme uma regra da unidade, segundo conceitos em geral que expressa a categoria e é um produto transcendental da capacidade de imaginação que concerne à determinação do sentido interno em geral, segundo condições de sua forma (o tempo), com vistas a todas as representações na medida em que estas deveriam interconectar-se a priori num conceito conforme a unidade da apercepção. Sem nos determos numa árida e monótona decomposição do que é requerido para os esquemas transcendentais em geral de conceitos puros do entendimento preferimos apresentá-los segundo a ordem das categorias e em conexão com elas. A imagem pura de todas as quantidades (quantorum) ante o sentido externo é o espaço; mas de todos os objetos dos sentidos em geral, o tempo. O esquema puro da quantidade (quantitatis) como conceito do entendimento é contudo o número, que é uma representação que enfeixa a sucessiva adição de um a um (homogêneos). Portanto, o número não é senão a unidade da síntese do múltiplo de uma intuição homogênea em geral, mediante o fato de que produzo o próprio tempo na apreensão da intuição. No conceito puro do entendimento a realidade é aquilo que corresponde a uma sensação em geral; é, portanto, aquilo cujo conceito indica em si mesmo um ser (no tempo). A negação é aquilo cujo conceito representa um não ser (no tempo). Logo, a contraposição de ambos ocorre na distinção do mesmo tempo enquanto preenchido ou vazio. Já que o tempo é somente a forma da intuição, por conseguinte dos objetos enquanto fenômenos, então aquilo que neles corresponde à sensação é a matéria transcendental de todos os objetos enquanto coisas em si (a coisalidade, realidade). Ora, toda sensação possui um grau ou quantidade pela qual pode preencher mais ou menos o mesmo tempo, isto é, o sentido interno no tocante à mesma representação de um objeto, até que termine em nada (= O = negatio). Por isso, o que toma toda realidade representável como um quantum é uma relação e interconexão ou antes uma passagem da realidade à negação; e o esquema de uma realidade, enquanto quantidade de algo na medida em que preenche o tempo, é justamente esta produção contínua e uniforme de realidade no tempo na medida em que no tempo se desce da sensação, que possui um certo grau, até o seu desaparecimento, ou em que se sobe gradualmente da negação até a quantidade da sensação. O esquema da substância é a permanência do real no tempo, isto é, a representação do real como um substrato da determinação empírica temporal em geral, substrato portanto que permanece na medida em que tudo o mais muda. (Não é o tempo que passa, mas nele passa a existência do mutável. Ao tempo, portanto, que é ele mesmo imutável e permanente, corresponde no fenômeno o imutável na existência, isto é, a substância, e somente nesta a sucessão e simultaneidade dos fenômenos podem ser determinados segundo o tempo.) O esquema da causa e da causalidade de uma coisa em geral é o real ao qual, se é posto a bel-prazer, segue sempre algo diverso. Consiste, portanto, na sucessão do múltiplo na medida em que está sujeito a uma regra. O esquema da comunidade (reciprocidade de ação), ou da causalidade recíproca das substâncias no que toca seus acidentes, é a simultaneidade das determinações de uma com as da outra, segundo uma regra universal. O esquema da possibilidade é a concordância da síntese de diversas representações com as condições do tempo em geral (já que, por exemplo, o oposto numa coisa não pode ser simultâneo, mas somente sucessivo), portanto a determinação da representação de uma coisa em qualquer tempo. O esquema da realidade é a existência num tempo determinado. O esquema da necessidade é a existência de um objeto em todo o tempo. Disso tudo se vê que o esquema de cada categoria contém e faz representar uma determinação de tempo: o esquema da quantidade contém e faz representar a produção (síntese) do próprio tempo na apreensão sucessiva de um objeto; o esquema da qualidade contém e faz representar a síntese da sensação (percepção) com a representação do tempo ou o preenchimento do tempo; o esquema da relação contém e faz representar a relação das percepções entre si em todo o tempo (isto é, segundo uma regra de determinação do tempo); enfim, o esquema da modalidade e de suas categorias contém e faz representar o próprio tempo como o correlato da determinação de se e como um objeto pertence ao tempo. Os esquemas não são, por isso, senão determinações a priori de tempo segundo regras, e estas se referem, segundo a ordem das categorias, à série do tempo, ao conteúdo do tempo, à ordem do tempo, enfim ao conjunto do tempo no tocante a todos os objetos possíveis. Disso fica claro que o esquematismo do entendimento mediante a síntese transcendental da capacidade de imaginação não deságua senão na unidade de todo o múltiplo da intuição no sentido interno e assim, indiretamente, na unidade da apercepção como função que corresponde ao sentido interno (de uma receptividade). Portanto, os esquemas dos conceitos puros do entendimento são as verdadeiras e únicas condições para proporcionar a estes uma referência a objetos, por conseguinte uma significação. Por isso, as categorias não possuem, ao fim, nenhum outro uso a não ser um empírico possível na medida em que servem meramente para, mediante fundamentos de uma unidade necessária a priori (devido à reunião necessária de toda a consciência numa apercepção originária), submeter os fenômenos a regras universais da síntese, tomando-os assim apropriados para a conexão completa numa experiência. Mas é no conjunto de toda a experiência possível que residem todos os nossos conhecimentos, e é na referência universal a tal experiência que consiste a verdade transcendental que precede e toma possível toda a verdade empírica. Todavia, conquanto os esquemas da sensibilidade realizem primeiramente as categorias, salta aos olhos de que não obstante também as restringem, isto é, limitam-nas a condições que jazem fora do entendimento (a saber, na sensibilidade). Consequentemente, o esquema é propriamente só o fenômeno ou o conceito sensível de um objeto em concordância com a categoria (numerus est quantitas phaenomenon, sensatio realistas phaenomenon, constans et perdurabile rerum substantía phaenomenon - aeternitas, necessitas phaenomena etc.). Ora, se suprimirmos uma condição restritiva, então ampliamos, como parece, o conceito anteriormente limitado. Deste modo, em sua significação pura, independente de todas as condições da sensibilidade, as categorias deveriam valer para todas as coisas em geral como são, em vez dos esquemas das categorias representarem estas coisas somente como aparecem; portanto, as categorias possuem uma significação muito mais extensa e independente de todos os esquemas. Na realidade, mesmo após a abstração de toda a condição empírica os conceitos puros do entendimento mantêm a significação apenas lógica da simples unidade das representações, mas às quais não é dado nenhum objeto, por conseguinte também nenhum significado, que possa fornecer um conceito do objeto. Assim, por exemplo, caso se suprimisse a determinação sensível da permanência, a substância não significaria senão um algo que pode ser pensado como sujeito (sem ser um predicado de algo diverso). Desta representação não posso fazer nada na medida em que de modo algum me indica que determinações tem a coisa que deve valer como tal primeiro sujeito. Portanto, sem esquemas as categorias são apenas funções do entendimento para conceitos, mas não representam objeto algum. Esta significação lhes advém da sensibilidade, que realiza o entendimento na medida em que ao mesmo tempo o restringe. CAPITULO SEGUNDO DA DOUTRINA TRANSCENDENTAL DA CAPACIDADE DE JULGAR (OU ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS) Sistemas de todos os princípios do entendimento puro No capítulo anterior, ponderamos a capacidade transcendental de julgar apenas segundo as condições universais unicamente sob as quais está autorizada a usar os conceitos puros do entendimento para juízos sintéticos. Agora a nossa tarefa consiste em expor em ligação sistemática os juízos que o entendimento, submetido a esta precaução crítica, realmente constitui a priori; para isso, a nossa tábua das categorias tem que nos fornecer, sem dúvida, a orientação natural e segura. Com efeito, é precisamente a referência das categorias à experiência possível que precisa perfazer todo o conhecimento puro a priori do entendimento, e é a sua relação com a sensibilidade em geral que mostrará por isso, de modo completo e num sistema, todos os princípios transcendentais do uso entendimento. Os princípios a priori levam este nome não só porque contêm em si os fundamentos de outros juízos, mas porque eles mesmos não se fundam em nenhum conhecimento mais alto e geral. Esta propriedade, todavia, não os dispensa sempre de uma prova. Com efeito, embora esta não possa ser conduzida objetivamente mais adiante, subjazendo antes a todo o conhecimento do seu objeto, isto não impede que seja possível e mesmo necessário providenciar uma prova a partir das fontes subjetivas da possibilidade de um conhecimento do objeto em geral, pois do contrário a proposição atrairia sobre si a maior suspeita de ser uma afirmação meramente sub-reptícia. Em segundo lugar, limitar-nos-emos meramente aqueles princípios que se referem às categorias. Os princípios da estética transcendental, segundo os quais espaço e tempo são as condições da possibilidade de todas as coisas como fenômenos, e igualmente a restrição desses princípios, a saber, que não podem ser referidos a coisas em si mesmas, não pertencem portanto ao nosso campo demarcado de investigação. Do mesmo modo, os princípios matemáticos não constituem parte alguma deste sistema, pois só são extraídos da intuição e não do conceito puro do entendimento; todavia, pelo fato de serem não obstante juízos sintéticos a priori, a possibilidade de tais princípios encontrará aqui necessariamente um lugar, na verdade não para provar a sua correção e certeza apodítica, da qual simplesmente não carecem, mas só para tornar compreensível e deduzir a possibilidade de tais conhecimentos evidentes a priori. Entretanto, também teremos que falar do princípio dos juízos analíticos, e isto em oposição ao dos juízos sintéticos com os quais propriamente nos ocupamos, pois justamente esta contraposição livra a teoria dos últimos de todo o equívoco, pondo-os claramente diante dos olhos em sua natureza peculiar. SEÇÃO PRIMEIRA DO SISTEMA DOS PRINCÍPIOS DO ENTENDIMENTO PURO DO PRINCÍPIO SUPREMO DE TODOS OS JUÍZOS ANALÍTICOS Seja qual for o conteúdo do nosso conhecimento e como este possa referir-se ao objeto, constitui todavia a condição universal, se bem que apenas negativa, de todos os nossos juízos em geral que não contradizem a si próprios, caso contrário tais juízos (mesmo sem consideração do objeto) em si mesmos não são nada. Mas mesmo que no nosso juízo não haja contradição alguma, pode não obstante ligar conceitos de um modo diverso do trazido consigo pelo objeto, ou também sem nos ser dado um fundamento a priori ou a porteriori que autorize tal juízo, e assim, mesmo livre de toda a contradição interna, um juízo pode ser falso ou infundado. Ora, a proposição: a nenhuma coisa convém um predicado que a contradiga, chama-se princípio de contradição, e é um critério universal, se bem que meramente negativo, de toda a verdade; por isso pertence apenas à Lógica, pois, vale para conhecimentos simplesmente como conhecimentos em geral desconsiderando seu conteúdo, e diz que a contradição os destrói e suprime inteiramente. Da mesma proposição entretanto também se pode fazer um uso positivo, isto é, não apenas para banir a falsidade e o erro (na medida em que pousa sobre contradição), mas também para conhecer a verdade. Com efeito, se o juízo é analítico, seja negativo ou afirmativo, segundo o princípio de contradição a sua verdade tem que poder ser sempre conhecida suficientemente. Com efeito, o oposto daquilo que já se encontra e é pensado como conceito no conhecimento de um objeto é sempre corretamente negado, enquanto o conceito mesmo precisa ser necessariamente afirmado dele porque o contrário de tal conceito contradiria o objeto. Por isso, também temos de deixar o princípio de contradição valer como o princípio universal e inteiramente suficiente de todo o conhecimento analítico, mas a sua autoridade e utilidade não vão além de um critério suficiente da verdade. Com efeito, o fato de que nenhum conhecimento pode se lhe opor sem aniquilar-se a si mesmo, faz desta proposição a conditio sine qua non da verdade de nosso conhecimento, mas não o seu fundamento determinante. Ora, visto que propriamente só temos a ver com a parte sintética do nosso conhecimento, teremos sempre cuidado em jamais transgredir este princípio inviolável; no que conceme à verdade de tal espécie de conhecimento, contudo, jamais podemos esperar dele algum esclarecimento. Mas há uma fórmula deste princípio renomado, se bem que despojado de todo o conteúdo e meramente formal, a qual contém uma síntese introduzida nele por descuido e de modo completamente desnecessário. Soa assim: é impossível que algo seja e não seja simultaneamente. Além do fato de aqui ter sido ajuntada superfluamente a certeza apodítica (mediante a palavra impossível) que deve poder ser compreendida por si a partir do princípio, este é afetado pela condição do tempo, como que dizendo: uma coisa = A que é algo = B não pode ser, ao mesmo tempo, non B; mas pode muito bem ser ambas as coisas (tanto B como non B) sucessivamente. Por exemplo, um homem jovem não pode ser ao mesmo tempo velho, mas o mesmo pode muito bem ser num tempo jovem e noutro não jovem, isto é, velho. Ora, enquanto princípio meramente lógico, o princípio de contradição não tem de modo algum que limitar suas declarações a relações de tempo, e por isso tal fórmula contraria completamente a sua intenção. O equívoco provém simplesmente do fato de que primeiramente se separa o predicado de uma coisa do conceito da mesma e depois se conecta com este predicado seu oposto, o que jamais fornece uma contradição com o sujeito, mas somente com o seu predicado que foi ligado sinteticamente ao sujeito, e isto só quando o primeiro e o segundo predicados são postos ao mesmo tempo. Se digo: um homem, que é inculto, não é culto, devo acrescentar a condição: ao mesmo tempo, pois quem é inculto num tempo pode muito bem ser culto num outro. Se digo, porém: nenhum homem inculto é culto, então a proposição é analítica porque a característica (da incultura) doravante constitui o conceito do sujeito, e então a proposição negativa fica imediatamente clara a partir do princípio de contradição sem se precisar acrescentar a condição: ao mesmo tempo. Tal é também a causa por que acima mudei a fórmula do princípio, de modo a que assim fosse expressa claramente a natureza de uma proposição analítica. SEÇÃO SEGUNDA DO SISTEMA DOS PRINCÍPIOS DO ENTENDIMENTO PURO DO PRINCÍPIO SUPREMO DE TODOS OS JUÍZOS SINTÉTICOS A explicação da possibilidade dos juízos sintéticos é uma tarefa com a qual a lógica geral não tem nada a ver, que até nem precisa chegar a conhecer seu nome. Mas numa lógica transcendental é a tarefa mais importante e mesmo a única se se fala da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, bem como das condições e do âmbito de sua validade. Com efeito, após ter completado tal tarefa, a lógica transcendental poderá satisfazer inteiramente o seu fim, a saber, determinar o âmbito e os limites do entendimento puro. No juízo analítico, atenho-me ao conceito dado para estabelecer algo a seu respeito. Se o juízo deve ser afirmativo, então junto a este conceito só o que já era pensado nele; se deve ser negativo, então excluo dele só o contrário daquilo que nele era pensado. Nos juízos sintéticos, porém, devo sair do conceito dado para considerar em relação com ele algo completamente diferente do que aí era pensado; por isso, não se trata aqui de uma relação de identidade nem de contradição, e neste caso não se pode reconhecer, no juízo em si mesmo, nem a verdade nem o erro. Admitindo, portanto, que se precisa sair de um conceito dado para compará-lo sinteticamente com outro, então requer-se um terceiro termo unicamente no qual pode surgir a síntese dos dois conceitos. Ora, que é este terceiro termo enquanto meio de todos os juízos sintéticos? É somente um conjunto em que estão contidas todas as nossas representações a saber, o sentido interno e sua forma a priori, o tempo. A síntese das representações repousa na capacidade de imaginação, mas a sua unidade sintética (requerida para o juízo) na unidade da apercepção. Portanto, aqui deve ser procurada a possibilidade dos juízos sintéticos e também, visto que todos os três elementos contêm as fontes de representações a priori, a possibilidade de juízos sintéticos puros; a partir de tais fundamentos estes últimos juízos antes serão mesmo necessários, caso deva se constituir um conhecimento de objetos que repouse unicamente sobre a síntese das representações. Se um conhecimento deve ter realidade objetiva, isto é, referir-se a um objeto e ter significação e sentido nele, então o objeto tem que poder ser dado de algum modo. Sem isso, os conceitos são vazios; na verdade, pensou-se através deles, mas sem ter de fato conhecido algo através desse pensamento, mas apenas jogado com representações. Dar um objeto - se por sua vez isto não deve ser entendido apenas mediatamente, mas significa apresentar imediatamente na intuição - não é outra coisa senão referir sua representação à experiência (seja real ou possível). Por mais puros de todo o empírico que sejam esses conceitos e por mais certo que seja que são representados inteiramente a priori na mente, mesmo o espaço e o tempo não teriam validade objetiva nem sentido e significação se o seu uso necessário não fosse mostrado nos objetos da experiência; a representação deles é antes um simples esquema que se refere sempre à capacidade reprodutiva de imaginação, a qual suscita os objetos da experiência e sem a qual não teriam nenhuma significação, e assim ocorre com todos os conceitos sem distinção. A possibilidade da experiência é, portanto, o que dá realidade objetiva a todos os nossos conhecimentos a priori. Ora, a experiência repousa na unidade sintética dos fenômenos, isto é, numa síntese segundo conceitos do objeto dos fenômenos em geral, sem a qual a experiência nem chegaria a ser conhecimento, mas uma rapsódia de percepções que não se conformariam a nenhum contexto segundo regras de uma consciência (possível) universalmente conectada, e portanto tampouco à unidade transcendental e necessária da apercepção. Logo, à experiência subjazem princípios da sua forma a priori a saber, regras universais da unidade na síntese dos fenômenos cuja realidade objetiva, como condições necessárias, pode ser sempre mostrada na experiência, antes mesmo, na possibilidade desta. Sem esta referência, porém, as proposições sintéticas a priori são inteiramente impossíveis por não possuírem nenhum terceiro termo, a saber, um objeto em que a unidade sintética dos seus conceitos possa evidenciar uma realidade objetiva. Consequentemente, se bem que acerca do espaço em geral ou das figuras que a capacidade produtiva de imaginação traça nele conheçamos a priori tantas coisas em juízos sintéticos, de modo a não precisarmos para isso realmente de nenhuma experiência, tal conhecimento não seria absolutamente nada, a não ser ocupação com uma simples quimera, se o espaço não pudesse ser considerado como condição dos fenômenos que perfazem a matéria para a experiência externa; por isso, aqueles juízos sintéticos puros se referem, embora apenas mediatamente, a uma experiência possível ou antes à sua própria possibilidade, e unicamente sobre tal fundam a validade objetiva da sua síntese. Portanto, visto que enquanto síntese empírica a experiência é na sua possibilidade a única espécie de conhecimento que dá realidade a toda a outra síntese, como conhecimento a priori esta então só possui verdade (concordância com o objeto) pelo fato de nada mais conter senão o necessário à unidade sintética da experiência em geral. Portanto, O princípio supremo de todos os juízos sintéticos é que todo objeto está sob as condições necessárias da unidade sintética do múltiplo da intuição numa experiência possível. Deste modo, juízos sintéticos a priori são possíveis se referirmos as condições formais da intuição a priori, a síntese da capacidade de imaginação e a unidade necessária de tal síntese numa apercepção transcendental a um possível conhecimento em geral de experiência e dissermos: as condições da possibilidade da experiência em geral são ao mesmo tempo condições da possibilidade dos objetos da experiência e possuem, por isso, validade objetiva num juízo sintético a priori. SEÇÃO TERCEIRA DO SISTEMA DOS PRINCÍPIOS DO ENTENDIMENTO PURO REPRESENTAÇÃO SISTEMÁTICA DE TODOS OS PRINCÍPIOS SINTÉTICOS DO MESMO O fato de em geral ocorrerem princípios em qualquer lugar deve ser atribuído unicamente ao entendimento puro, que não é somente a faculdade das regras no tocante ao que acontece, mas mesmo a fonte dos princípios segundo a qual tudo (que pode aparecer-nos como objeto) está necessariamente sob regras, pois sem tais o conhecimento de um objeto correspondente aos fenômenos jamais poderia dizer respeito a estes últimos. Quando consideradas princípios do uso empírico do entendimento, mesmo as leis da natureza trazem ao mesmo tempo consigo uma expressão de necessidade, por conseguinte pelo menos a suposição de uma determinação a partir de fundamentos a priori e válidos antes de toda a experiência. Entretanto, todas as leis da natureza, sem distinção, estão submetidas a princípios superiores do entendimento na medida em que só aplicam estes princípios a casos particulares do fenômeno. Portanto, só estes princípios dão o conceito, que contém a condição e como que o expoente para uma regra em geral; a experiência, porém, dá o caso que está sob a regra. O fato de que se considere apenas os princípios empíricos como princípios do entendimento puro ou também o contrário, não oferece propriamente nenhum perigo, pois tal equívoco pode ser facilmente evitado pela necessidade segundo conceitos, a qual caracteriza os princípios do entendimento puro e cuja falta se percebe facilmente em toda proposição empírica, por mais geral que seja sua validade. Há porém, princípios puros a priori que, não obstante, não gostaria de atribuir ao entendimento puro por não serem extraídos de conceitos puros, mas de intuições puras (se bem que mediante o entendimento). O entendimento é, porém, a faculdade dos conceitos. A Matemática possui semelhantes princípios, mas sua aplicação à experiência, por conseguinte sua validade objetiva, ou antes, a possibilidade de tal conhecimento sintético a priori (a sua dedução), funda-se sempre no entendimento puro. Por isso, entre os meus princípios não incluirei os da Matemática, mas sim aqueles sobre os quais se funda a possibilidade e validade objetiva a priori de tais princípios matemáticos, que portanto têm que ser encarados como princípios destes últimos e que partem de conceitos à intuição e não da intuição a conceitos. Na aplicação dos conceitos puros do entendimento a uma experiência possível, o uso de sua síntese é matemático ou dinâmico: tal síntese vai em parte à intuição, e em parte à existência de um fenômeno em geral. Mas no tocante a uma experiência possível as condições a priori da intuição são inteiramente necessárias, ao passo que as da existência dos objetos de uma intuição empírica possível em si apenas contingentes. Por isso, os princípios do uso matemático soam de modo incondicionalmente necessário, isto é, apodítico, ao passo que os princípios do uso dinâmico na verdade também apresentam o caráter de uma necessidade a priori, mas só sob a condição do pensamento empírico numa experiência, por conseguinte só mediata e indiretamente; em consequência disso, não contém aquela evidência imediata (se bem que sem prejuízo da sua certeza universalmente referida à experiência) peculiar aos primeiros. Isto poderá ser melhor julgado na conclusão deste sistema de princípios. A tábua das categorias nos dá a indicação completamente natural para a tábua dos princípios, pois estes nada mais são senão regras do uso objetivo das primeiras. Assim todos os princípios do entendimento puro são: 1. Axiomas da intuição 2. Antecipações da percepção 3. Analogias da experiência 4. Postulados do pensamento empírico em geral Escolhi com cuidado essas denominações para não deixar passar despercebidas as diferenças com respeito à evidência e à aplicação de tais princípios. Mas logo se tornará claro que no concernente tanto à evidência quanto à determinação a priori dos fenômenos segundo as categorias da quantidade e da qualidade (se se prestar atenção apenas à forma destas), os seus princípios distinguem-se consideravelmente das duas restantes na medida em que os primeiros são capazes de uma certeza intuitiva, mas estes de uma certeza meramente discursiva, embora ambos sejam capazes de uma plena certeza. Por isso, denominarei aqueles princípios matemáticos, estes dinâmicos. Todavia, notar-se-á bem que aqui não tenho ante os olhos os princípios da Matemática num caso, tampouco quanto os princípios da dinâmica geral (Física) no outro, mas apenas os princípios do entendimento puro em relação com o sentido interno (sem distinção das representações dadas nele) mediante os quais efetivamente aqueles adquirem todos a sua possibilidade. Portanto, denomino-os considerando mais a sua aplicação do que o seu conteúdo, e passo agora a examiná-los na mesma ordem em que são representados na tábua. 1. Axiomas da intuição O seu princípio é: Todas as intuições são quantidades extensivas. Prova Todos os fenômenos contêm, segundo a forma, uma intuição no espaço e no tempo que subjaz a todos a priori. Portanto, não podem ser apreendidos, isto é, acolhidos numa consciência empírica, senão mediante a síntese do múltiplo pela qual são produzidas as representações de um espaço ou tempo determinado, isto é, mediante a composição do homogêneo e a consciência da unidade sintética deste múltiplo (homogêneo). Ora, a consciência do homogêneo múltiplo na intuição em geral, na medida em que mediante tal é primeiramente possível a representação de um objeto, é o conceito de uma quantidade (quanti). Portanto, mesmo a percepção de um objeto enquanto fenômeno só é possível mediante a mesma unidade sintética do múltiplo da intuição sensível dada pela qual a unidade da composição do homogêneo múltiplo é pensada no conceito de uma quantidade; isto é, os fenômenos são todos quantidades, aliás quantidades extensivas, porque devem ser representadas como intuições no espaço ou no tempo mediante a mesma síntese pela qual são determinados espaço e tempo em geral. Denomino quantidade extensiva aquela na qual a representação das partes toma possível a representação do todo (e portanto necessariamente precede esta). Não posso me representar linha alguma, por pequena que seja, sem a traçar em pensamentos, isto é, desde um ponto gerar pouco a pouco todas as partes e assim primeiramente esboçar esta intuição. O mesmo ocorre com todo tempo, inclusive com a sua menor parte. No tempo penso apenas a progressão sucessiva de um instante a outro, mediante cujas partes de tempo e seu acréscimo é finalmente produzida uma determinada quantidade de tempo. Já que a simples intuição em todos os fenômenos é o espaço ou o tempo, então todo o fenômeno enquanto intuição é uma quantidade extensiva na medida em que só pode ser conhecido através de uma síntese sucessiva (de parte em parte) na apreensão. De acordo com isso, todos os fenômenos são já intuídos com agregados (porções de partes anteriormente dadas), o que não ocorre com toda espécie de quantidades, mas somente com aquelas que são por nós representadas e apreendidas como extensivas enquanto tais. Sobre essa síntese sucessiva da capacidade produtiva de imaginação na produção de figuras funda-se a matemática da extensão (Geometria) com os seus axiomas, que expressam as condições da intuição sensível a priori unicamente sob as quais pode ser constituído o esquema de um conceito puro do fenômeno externo. Por exemplo, entre dois pontos só é possível uma linha reta; duas linhas retas não encerram nenhum espaço etc. Estes são os axiomas que propriamente só dizem respeito a quantidades (quanta) enquanto tais. Mas no que diz respeito à quantidade (quantitas), isto é, à resposta dada à questão: quão grande é algo?, não existe nenhum axioma em sentido próprio, não obstante diversas dessas proposições serem sintéticas e imediatamente certas (indemonstrabilia). Com efeito, que quantidades iguais acrescidas a iguais ou subtraídas de iguais dão quantidades iguais, eis proposições analíticas na medida em que sou imediatamente consciente da identidade entre uma e outra produção de quantidade: axiomas, porém, devem ser proposições sintéticas a priori. Diante disso, é claro que as proposições evidentes da relação entre números são sintéticas, mas não universais como as da Geometria, e precisamente por isso também não podem ser chamadas axiomas, mas sim fórmulas numéricas. Que 7 + 5 seja = 12 não é uma proposição analítica. Com efeito, não penso o número 12 na representação de 7 nem na de 5, nem ainda na composição de ambos (aqui não se trata do fato de que eu devesse pensar este número na adição de ambos, pois na proposição analítica trata-se apenas da questão se realmente penso o predicado na representação do sujeito). Embora sintética, tal proposição é somente singular. Na medida em que aqui se enfoca apenas a síntese do homogêneo (das unidades), esta pode ocorrer de uma única maneira, embora o uso de tais números seja posteriormente universal. Se digo que é possível traçar um triângulo com três linhas das quais duas tomadas em conjunto são maiores que a terceira, então tenho aqui a mera função da capacidade produtiva de imaginação, que pode traçar linhas maiores e menores bem como fazê-las se encontrarem segundo vários ângulos a gosto. Ao contrário, o número 7 só é possível de um único modo, e assim também o número 12, que é produzido através da síntese do primeiro com o 5. Proposições tais têm que ser chamadas não axiomas (senão haveria um número infinito delas), mas fórmulas numéricas. Este princípio transcendental da matemática dos fenômenos fornece uma grande ampliação ao nosso conhecimento a priori. Com efeito, se trata do único princípio que toma a matéria pura aplicável em sua inteira precisão a objetos da experiência o que sem tal princípio não ficaria por si mesmo claro, antes dando azo a várias contradições. Fenômenos não são coisas em si mesmas. A intuição empírica só é possível através da intuição pura (do espaço e do tempo); portanto o que a Geometria diz desta também vale incontestavelmente para aquela, e precisa se eliminar as escapatórias, como se os objetos dos sentidos não necessitassem se conformar às regras da construção no espaço (por exemplo, à regra da divisibilidade infinita das linhas ou dos ângulos). Deste modo, efetivamente nega-se validade objetiva ao espaço e, com ele, ao mesmo tempo a toda a Matemática, não mais se sabendo por que e até que ponto possa ser aplicada aos fenômenos. A síntese dos espaços e dos tempos, como a forma essencial de toda a intuição, é o que toma ao mesmo tempo possível a apreensão do fenômeno, por conseguinte toda experiência externa e também todo o conhecimento dos objetos da mesma, e o que a Matemática no uso puro prova acerca daquela síntese também vale necessariamente para o conhecimento dos objetos da experiência. Todas as objeções em contrário são somente chicanas de uma razão falsamente instruída, que erroneamente pensa depreender os objetos dos sentidos da condição formal de nossa sensibilidade e, embora se trate de simples fenômenos, os representa como objetos em si mesmos dados ao entendimento. Neste caso, certamente não se podia conhecer absolutamente nada de tais objetos, nem a priori nem portanto mediante conceitos puros do espaço, e a própria ciência que determina tais conceitos, a saber, a Geometria, seria impossível. 2. Antecipações da percepção O seu princípio é: Em todos os fenômenos, o real, que é um objeto da sensação, possui quantidade intensiva, isto é um grau. Prova A percepção é a consciência empírica, isto é, uma consciência em que há simultaneamente sensação. Enquanto objetos da percepção, os fenômenos não são intuições puras (meramente formais) tais como espaço e tempo (pois estes não podem em si ser de modo algum percebidos). Portanto, além da intuição contém ainda as matérias para um objeto qualquer em geral (pelo qual é representado algo existente no espaço ou no tempo), isto é, o real da sensação como representação meramente subjetiva, da qual só se pode se tomar consciente que o sujeito é afetado e que é referida a um objeto em geral, em si. Ora, é possível uma passagem gradual da consciência empírica à pura, visto que o real dela desaparece completamente, restando uma consciência meramente formal (a priori) do múltiplo no espaço e no tempo: portanto, é também possível uma síntese da produção da quantidade de uma sensação desde o seu início, a intuição pura = O, até uma quantidade arbitrária dela. Ora, já que a sensação não é em si de modo algum uma representação objetiva, não se encontrando nela nem a intuição do espaço nem a do tempo, claro que não lhe convirá uma quantidade extensiva, mas não obstante uma quantidade (e isto mediante a apreensão da quantidade, na qual a consciência empírica pode crescer, num certo tempo, de nada = O à sua medida dada), portanto uma quantidade intensiva, correspondente à qual tem que ser atribuída quantidade intensiva, isto é, um grau na influência sobre o sentido, a todos os objetos da percepção na medida em que esta contém sensação. Todo o conhecimento, pelo qual posso conhecer e determinar a priori o que pertence ao conhecimento empírico, pode ser denominado antecipação. Com esta significação, sem dúvida, usou Epicuro sua expressão ?????????. Mas já que nos fenômenos há algo, a saber, a sensação (enquanto matéria da percepção), que não é jamais conhecido a priori e que portanto perfaz propriamente a diferença entre empírico e o conhecimento a priori, segue-se que a sensação é propriamente aquilo que de modo algum pode ser antecipado. Frente a isto, no que conceme tanto à figura quanto à quantidade, as determinações puras no espaço e no tempo poderiam ser chamadas antecipações dos fenômenos, pois representam a priori o que sempre pode ser dado a posteriori na experiência. Mas posto que se encontrasse algo que em toda sensação pudesse ser conhecido a priori como sensação em geral (sem que fosse dada uma sensação particular), então mereceria ser chamado antecipação em sentido eminente, pois parece estranho antecipar a experiência naquilo que diz respeito exatamente à sua matéria e que só pode ser tirado dela. Aqui se passa realmente assim. A apreensão pela simples sensação preenche só um instante (a saber, se não considero a sucessão de muitas sensações). Enquanto algo no fenômeno cuja apreensão não é uma síntese sucessiva que progride das partes à representação total, a sensação não tem portanto quantidade extensiva alguma; a falta da sensação no mesmo instante representaria a este como vazio, por conseguinte = O. Ora, o que na intuição empírica corresponde à sensação é realidade (realitas phaenomenon), o que corresponde à falta dela, negação = O. Ora toda sensação é capaz de uma diminuição, de modo a poder decrescer e aos poucos desaparecer. Consequentemente, entre realidade no fenômeno e negação é possível uma interconexão contínua de muitas sensações intermediárias possíveis, e a diferença entre as mesmas sendo sempre menor do que a diferença entre a sensação dada e o zero, ou a negação total. Isto é: o real no fenômeno tem sempre uma quantidade que, entretanto, não é encontrada na apreensão na medida em que esta ocorre mediante a simples sensação num instante e não através da síntese sucessiva de muitas sensações, e portanto não procede das partes ao todo; por conseguinte, o real tem uma quantidade, mas não extensiva. Ora, denomino quantidade intensiva aquela quantidade que só é apreendida como unidade e na qual a pluralidade só pode ser representada mediante aproximação à negação = O. Portanto, toda realidade no fenômeno tem quantidade intensiva, isto é, um grau. Caso se considere esta realidade causa (seja da sensação ou de outra realidade no fenômeno, por exemplo de uma mudança), então o grau da realidade enquanto causa é denominado um momento, por exemplo o momento do peso, e isto porque o grau designa apenas a quantidade cuja apreensão não é sucessiva, mas instantânea. Aqui toco isto apenas de passagem, pois por enquanto ainda não estou às voltas com a causalidade. De acordo com isso, toda sensação, por conseguinte também toda realidade no fenômeno por pequena que seja, possui um grau, isto é, uma quantidade intensiva que sempre ainda pode ser diminuída, e entre realidade e negação existe uma interconexão contínua de realidades possíveis e de menores percepções possíveis. Toda cor, por exemplo a vermelha, tem um grau que, por pequeno que seja, não é jamais o menor, ocorrendo o mesmo em geral com o calor, com o momento do peso etc. A propriedade das quantidades segundo a qual nenhuma parte é nelas a menor possível (nenhuma parte é simples) chama-se continuidade das quantidades. Espaço e tempo são quanta continua porque não pode ser dada nenhuma parte dos mesmos sem a encerrar entre limites (pontos e instantes), por conseguinte só de modo tal que esta parte seja por sua vez um espaço ou um tempo. Portanto, o espaço consiste só em espaços, e o tempo em tempos. Pontos e instantes são apenas limites, isto é, simples posições que restringem o espaço e o tempo; posições, porém, pressupõem sempre aquelas intuições que elas devem limitar ou determinar. Espaço e tempo não podem ser compostos nem de simples posições nem de elementos que pudessem ser dados anteriormente ao espaço ou ao tempo. Semelhantes quantidades podem também ser denominadas fluidas, pois na sua produção a síntese (da capacidade produtiva de imaginação) é uma progressão no tempo cuja continuidade costuma ser designada particularmente pela expressão do fluir (transcorrer). Por conseguinte, todos os fenômenos em geral são quantidades contínuas, tanto segundo a sua intuição, enquanto quantidades extensivas, quanto segundo a simples percepção (sensação e, portanto, realidade), enquanto quantidades intensivas. Se a síntese do múltiplo do fenômeno é interrompida, então se tem um agregado de muitos fenômenos e não propriamente um fenômeno com um quantum, que não é produzido pelas simples continuação da síntese produtiva de certa espécie, mas pela repetição de uma síntese sempre truncada. Se chamo 13 táleres um quantum de dinheiro, o estou denominando corretamente na medida em que com isso entendo o valor de um marco de prata fina; esta é obviamente uma quantidade contínua na qual nenhuma parte é a menor, mas cada uma poderia constituir uma moeda que por sua vez conteria sempre matéria para partes ainda menores. Mas se sob aquela denominação entendo 13 táleres redondos como outras tantas moedas (seja qual for o seu teor de prata), então a designação de um quantum de táleres é imprópria, e tenho antes que chamá-los um agregado, isto é, um número de moedas. Ora, visto que a todo número tem que subjazer uma unidade, então o fenômeno como unidade é um quantum, e como tal sempre um contínuo. Ora, admitindo que todos os fenômenos, considerados tanto extensiva quanto intensivamente, sejam, quantidades contínuas, então a proposição: toda a mudança (passagem de uma coisa de um estado para outro) é também contínua, poderia ser provada aqui facilmente e com evidência matemática se a causalidade de uma mudança em geral não se situasse completamente fora dos limites de uma filosofia transcendental e pressupusesse princípios empíricos. Com efeito, que seja possível uma causa capaz de mudar o estado das coisas, isto é, de determiná-las para o contrário de certo estado dado, a isto o entendimento a priori não nos dá acesso algum, não só porque não compreende a sua possibilidade (pois em diversos conhecimentos a priori carecemos de tal compreensão), mas também porque a mutabilidade só incide sobre certas determinações dos fenômenos que unicamente a experiência pode ensinar, não obstante o fato de que a sua causa se encontre no imutável. Mas por não possuirmos diante de nós nada de que nos passamos servir, senão conceitos fundamentais puros de toda a experiência possível, sob os quais de modo algum pode haver algo empírico sem ferir a unidade do sistema, não podemos antecipar a ciência universal da natureza, construída sobre certas experiências fundamentais. Apesar disso, não nos faltam provas da grande influência que tal princípio possui para antecipar percepções, e até mesmo para completar sua falta na medida em que se fecham as portas a todas as conclusões falsas que poderiam ser tiradas daí. Se toda a realidade possui na percepção um grau entre o qual e a negação ocorre uma sequência gradual infinita de graus sempre menores, e se não obstante todo sentido tem que possuir certo grau de receptividade das sensações, não é possível nenhuma percepção, por conseguinte tampouco uma experiência, que prove seja imediata seja mediatamente (seja pelos rodeios no inferir que se quiser) uma falta completa de todo o real no fenômeno, isto é, da experiência jamais pode ser tirada uma prova do espaço vazio ou de um tempo vazio. Com efeito, a falta completa de real na intuição sensível em primeiro lugar não pode ser ela mesma percebida, em segundo lugar não pode ser derivada de um fenômeno e da diferença de grau da sua realidade, nem pode ser jamais admitida para a explicação de tal fenômeno. Pois embora a intuição total de um espaço ou tempo determinado seja completamente real, isto é, nenhuma parte dele seja vazia, tem que haver graus infinitamente diversos com os quais espaço e tempo sejam preenchidos, pois toda realidade possui o seu grau que pode decrescer até o nada (o vazio) permanecendo invariadas as quantidades extensivas do fenômeno, e as quantidades intensivas nos diversos fenômenos podem ser menores ou maiores, embora a quantidade extensiva da intuição seja a mesma. Daremos um exemplo a respeito. Pelo fato de perceberem (seja através do momento da gravidade ou do peso, seja através do momento da resistência contra outras matérias em movimento) uma grande diferença de quantidade na matéria de espécie diferente, permanecendo o volume idêntico, quase todos os teóricos da natureza concluem disso unanimamente: este volume (quantidade do fenômeno) tem que ser vazio em todas as matérias, embora em medida diferente. Mas a quem jamais poderia ter ocorrido pensar que estes pesquisadores da natureza, na maior parte matemáticos e mecânicos, fundaram esta sua conclusão unicamente sobre uma pressuposição meta física que tanto alegam evitar? Pois ao admitirem que o real no espaço (não desejo chama-lo aqui impenetrabilidade ou peso, porque estes são conceitos empíricos) é por toda a parte a mesma coisa e só pode ser distinguido pela quantidade extensiva, isto é, pelo número. A esta pressuposição, para a qual não podiam ter nenhum fundamento na experiência e que é portanto meramente metafísica, contraponho uma prova transcendental que em verdade não deve explicar a diferença no preenchimento dos espaços, mas suprime inteiramente a pretensa necessidade daquela pressuposição poder explicar a mencionada diferença assumindo espaços vazios, e tem o mérito de dar ao entendimento pelo menos a liberdade de pensar também de outro modo aquela diferença no caso da explicação da natureza tornar necessária uma hipótese qualquer a respeito. Com efeito, embora espaços idênticos possam ser inteiramente preenchidos por matérias diferentes a ponto de não existir em nenhum deles um ponto onde não se encontre a presença de tais matérias, vemos que todo real da mesma qualidade possui o grau desta (de resistência ou de peso), grau que, sem diminuição da quantidade extensiva ou do número, pode ser infinitamente menor antes de passar ao vazio e desaparecer. Assim, uma irradiação que preenche um espaço, por exemplo o calor, e igualmente toda outra realidade (no fenômeno) pode, sem deixar nem um pouco vazia a menor parte deste espaço, decrescer em seus graus até o infinito e não obstante preencher com tais graus menores o espaço tão bem como um outro fenômeno com graus maiores. A minha intenção aqui não é de modo algum que isso se passe realmente assim com respeito à diversidade de matérias segundo o seu peso específico, mas antes de pôr à mostra, a partir de um princípio do entendimento puro, que a natureza de nossas percepções torna possível um tal modo de explicação e que falsamente se admite o real do fenômeno como idêntico segundo o seu grau e como diverso somente segundo a agregação e a sua quantidade extensiva, afirmando isso até a priori mediante o pretenso uso de um princípio do entendimento. Esta antecipação da percepção possui, todavia, algo estranho para um pesquisador habituado à reflexão transcendental e tomado por isso cauteloso, provocando alguma dúvida sobre o fato de que o entendimento [possa antecipar] uma proposição sintética tal como a do grau de todo o real nos fenômenos e, por conseguinte, da possibilidade da diferença interna da própria sensação quando se abstrai de sua qualidade empírica. Portanto, ainda é uma questão não indigna de solução: como o entendimento pode a este respeito pronunciar-se sinteticamente sobre os fenômenos, antecipando-os mesmo naquilo que é própria e simplesmente empírico, ou seja, no que diz respeito à sensação? A qualidade da sensação é sempre meramente empírica, não podendo de modo algum ser representada a priori (por exemplo cores, gosto etc.). Mas o real que corresponde às sensações em geral, em oposição à negação = O, só representa algo cujo conceito contém em si um ser, e não significa senão a síntese numa consciência empírica em geral. No sentido interno, a saber, a consciência empírica pode se elevar de O até um grau qualquer mais elevado a ponto de a mesma quantidade extensiva da intuição (por exemplo uma superfície iluminada) suscitar uma sensação tão grande como a de um agregado de muitas outras superfícies em conjunto (menos iluminadas). Portanto, pode-se abstrair inteiramente da quantidade extensiva do fenômeno e contudo apresentar-se num momento, na simples sensação, uma síntese da elevação uniforme de O até uma consciência empírica dada. Por isso, todas as sensações enquanto tais são em verdade dadas só a priori, mas sua propriedade de possuírem um grau pode ser conhecida a priori. É digno de nota que nas quantidades em geral só podemos conhecer a priori uma única qualidade, a saber, a continuidade, ao passo que em toda a qualidade (o real dos fenômenos) não podemos conhecer a priori senão a quantidade intensiva dos fenômenos, a saber, o fato de possuírem um grau; todo o mais é deixado à experiência. 3. Analogias da experiência O princípio das mesmas é: A experiência só é possível mediante a representação de uma conexão necessária das percepções. Prova Experiência é um conhecimento empírico, isto é, um conhecimento que determina um objeto mediante percepções. Portanto, é uma síntese das percepções que não está por sua vez contida na percepção, mas contém numa consciência a unidade sintética do múltiplo das percepções, unidade que perfaz o essencial de um conhecimento dos objetos dos sentidos, isto é, a experiência (não apenas da intuição ou da impressão dos sentidos). Ora, é claro que na experiência as percepções se juntam umas às outras apenas acidentalmente, de modo que das percepções mesmas não resulta nem pode resultar necessidade alguma da sua conexão. Com efeito, a apreensão é só uma reunião do múltiplo da intuição empírica, mas nela não se encontra nenhuma representação da necessidade da existência ligada dos fenômenos que ela reúne no espaço e no tempo. Mas visto que a experiência é um conhecimento de objetos mediante percepções e que nela consequentemente a relação na existência do múltiplo deve ser representada não como é reunida no tempo, mas como é objetivamente no tempo, sem contudo que o tempo mesmo possa ser percebido, então a determinação da existência dos objetos no tempo só pode acontecer através da sua ligação no tempo em geral, por conseguinte através de conceitos que conectem a priori. Ora, tendo em vista que estes sempre trazem consigo a necessidade, a experiência só é possível mediante uma representação da conexão necessária das percepções. Os três modi do tempo são permanência, sucessão e simultaneidade. Em consequência disso, três regras de todas as relações de tempo dos fenômenos, segundo as quais a existência de todo fenômeno pode ser determinada no tocante à unidade de todo o tempo, precederão toda a experiência e a tornarão primeiramente possível. O princípio universal de todas as três analogias se assenta sobre a unidade necessária da apercepção com respeito a toda a consciência empírica possível (da percepção) em todo tempo e consequentemente, já que tal unidade subjaz a priori, sobre a unidade sintética de todos os fenômenos segundo a sua relação no tempo. Com efeito, a apercepção originária refere-se ao sentido interno (o conjunto de todas as representações), e na verdade a priori à forma do mesmo, isto é, à relação da consciência empírica múltipla no tempo. Todo este múltiplo deve ser ora reunido na apercepção originária segundo suas relações de tempo, pois isto, é o que diz a unidade transcendental a priori da apercepção, sob a qual está tudo o que deve pertencer ao meu (isto é, ao meu unitário) conhecimento, que pode portanto tornar-se um objeto para mim. Tal unidade sintética na relação temporal de todas as percepções, a qual é determinada a priori, é portanto a lei de que todas as determinações empíricas de tempo têm que estar sob regras da determinação universal de tempo, as analogias da experiência, das quais queremos agora tratar, têm que ser regras de tal espécie. Estes princípios possuem em si a peculiaridade de não considerarem os fenômenos e a síntese de sua intuição empírica, mas simplesmente a existência dos fenômenos e a sua relação recíproca no tocante a tal existência. Ora, a maneira como algo é apreendido no fenômeno pode ser determinada a priori de modo tal que a regra de sua síntese possa ao mesmo tempo dar esta intuição a priori em todo o exemplo empírico que se apresente, isto é, possa constituí-la a partir disso. No entanto, a existência dos fenômenos não pode ser conhecida a priori e, embora pudéssemos por este caminho chegar a inferir alguma existência, não a conheceríamos determinadamente, isto é, não poderíamos antecipar aquilo pelo qual a sua intuição empírica se distingue de outras. Os dois princípios precedentes, que chamei matemáticos em consideração ao fato de que autorizavam aplicar a Matemática a fenômenos, referiam-se a fenômenos segundo a sua mera possibilidade e ensinavam como os mesmos, seja de acordo com sua intuição ou segundo o real da sua percepção, poderiam ser produzidos segundo regras de uma síntese matemática. Por isso, tanto para a intuição como para a percepção podem ser usadas as quantidades numéricas e, com elas, a determinação do fenômeno como quantidade. Assim, por exemplo, com cerca de 200 000 iluminações lunares poderei compor o grau das sensações da luz solar e dá-lo determinadamente a priori, isto é, construí-lo, Consequentemente, aqueles primeiros princípios podemos chamar constitutivos. Algo totalmente diverso tem que se passar com os princípios que devem pôr a priori sob regras a existência dos fenômenos. Com efeito, já que esta não se deixa construir, tais princípios se referem apenas à relação da existência, não podendo fornecer nenhum outro princípio senão regulativos. Portanto, não é o caso de pensar aqui nem em axiomas nem em antecipações; mas quando uma percepção nos é dada numa relação de tempo com outra (se bem que indeterminada), então não poderá ser dito a priori: qual outra e quão grande percepção, mas como segundo a existência ela está, neste modo do tempo, necessariamente ligada à primeira. Na filosofia, as analogias significam algo muito diferente do que na Matemática. Nesta última, trata-se de fórmulas que estabelecem a igualdade de duas relações de quantidades e que são sempre constitutivas, de modo que quando são dados três termos da proporção, também o quarto será desse modo dado, isto é, pode ser construído. Na Filosofia, porém, a analogia não consiste na igualdade de duas relações quantitativas, mas sim qualitativas, em que a partir de três termos dados posso conhecer e dar a priori só a relação com um quarto, mas não este quarto termo, mesmo possuindo todavia uma regra para procurá-lo na experiência e uma característica para encontrá-lo na mesma. Uma analogia da experiência será, portanto, somente uma regra segundo a qual a partir de percepções deve surgir unidade da experiência (não como surge a própria percepção, enquanto intuição empírica em geral), e valerá como princípio para os objetos (fenômenos) não constitutiva, mas só regulativamente. Justamente o mesmo valerá para os postulados do pensamento empírico em geral que concernem conjuntamente à síntese da simples intuição (da forma da intuição), da percepção (da sua matéria) e da experiência (da relação dessas percepções), a saber, que são princípios meramente regulativos distinguindo-se em verdade dos matemáticos, que são constitutivos, não pela certeza, que em ambos é estabelecida a priori, mas pelo modo de evidência, isto é, pelo intuitivo dos princípios matemáticos (por conseguinte também pela demonstração). Mas o que foi recordado a respeito de todos os princípios sintéticos e aqui precisa ser o principalmente observado, é o seguinte: estas analogias possuem sua única significação e validade enquanto princípio não do uso transcendental, mas simplesmente do uso empírico do entendimento, podendo portanto também ser provadas só enquanto tais consequentemente, os fenômenos têm que ser subsumidos não pura e simplesmente às categorias, mas só aos esquemas delas. Com efeito, se os objetos aos quais estes princípios devem ser referidos fossem coisas em si mesmas, seria completamente impossível conhecer de modo sintético a priori alguma coisa a respeito deles. Ora, não são senão fenômenos cujo inteiro conhecimento, em que finalmente todos os princípios a priori têm sempre que desembocar, é a experiência possível. Por conseguinte, aqueles princípios não podem ter como objetivo senão simplesmente as condições da unidade do conhecimento empírico na síntese dos fenômenos; esta, porém, é pensada unicamente no esquema do conceito puro do entendimento de cuja unidade, enquanto uma síntese em geral, a categoria contém a função não restringida com condição sensível alguma. Portanto, somente segundo uma analogia esses princípios nos autorizam a compor os fenômenos com a unidade lógica e universal dos conceitos; logo, no princípio mesmo autorizam-nos a nos servir da categoria, mas na execução (na aplicação aos fenômenos) e pôr no lugar dos princípios o esquema da categoria enquanto chave do seu uso, ou antes a pôr ao lado da categoria o seu esquema enquanto condição restritiva denominada fórmula do princípio. A. PRIMEIRA ANALOGIA Princípio da permanência da substância Em toda a variação dos fenômenos permanece a substância, e o quantum da mesma não é nem mesmo aumentado nem diminuído na natureza. Prova Todos os fenômenos são no tempo, no qual, como substrato (como forma permanente da intuição interna), podem unicamente ser representadas tanto a simultaneidade como a sucessão. Portanto, o tempo, no qual toda a variação dos fenômenos deve ser pensada, permanece e não muda porque é aquilo em que a sucessão ou simultaneidade só podem ser representadas como determinações dele. Ora, o tempo não pode ser percebido por si. Logo tem que ser encontrado nos objetos da percepção, isto é, nos fenômenos, o substrato que representa o tempo em geral e no qual toda à variação ou simultaneidade pode ser percebida na apreensão através da relação dos fenômenos com tal substrato. Mas o substrato de todo o real, isto é, do pertencente à existência das coisas, é a substância, na qual tudo o que pertence à existência só pode ser pensado como determinação. Por conseguinte, o permanente, unicamente em relação com o qual podem ser determinadas todas as relações de tempo dos fenômenos, é a substância no fenômeno, isto é, o real dele que enquanto substrato de toda a variação permanece sempre o mesmo. Portanto, visto que a substância não pode mudar na existência, o seu quantum não pode também nem aumentar nem diminuir na natureza. A nossa apreensão do múltiplo dos fenômenos é sempre sucessiva, e portanto sempre variável. Por isso, apenas com ela não podemos jamais determinar se esse múltiplo enquanto objeto da experiência é simultâneo ou sucessivo caso não lhe subjaza algo que sempre é, isto é, algo estável e permanente, do qual toda a variação e simultaneidade não são senão outros tantos modos (modi do tempo) do permanente existir. Só no permanente são possíveis relações de tempo (pois simultaneidade e sucessão são as únicas relações no tempo), isto é, o permanente é o substrato da representação empírica do próprio tempo e unicamente nele é possível toda determinação do tempo. A permanência expressa em geral o tempo como o correlato constante de toda a existência dos fenômenos, de toda a variação e concomitância. Com efeito, a variação não atinge o próprio tempo, mas apenas os fenômenos no tempo (assim como a simultaneidade não é um modus do próprio tempo, pois nenhuma de suas partes é simultânea, mas todas são sucessivas). Se se quisesse atribuir ao próprio tempo uma sucessão, ter-se-ia que pensar ainda outro tempo no qual fosse possível tal sucessão. Unicamente através do permanente a existência adquire, em diferentes partes da série temporal, uma quantidade que se denomina duração. Com efeito, na mera sucessão a existência está sempre em vias de desaparecer e começar, não possuindo a menor quantidade. Sem este permanente não há, portanto, nenhuma relação de tempo. Ora, o tempo não pode ser percebido em si mesmo; logo, este permanente nos fenômenos é o abstrato de toda a determinação de tempo, por conseguinte também a condição da possibilidade de toda a unidade sintética das percepções, isto é, da experiência, em tal permanente podendo toda a existência e toda a variação no tempo ser encarada apenas como um modus da existência daquilo que fica e permanece. Portanto, em todos os fenômenos o permanente é o objeto mesmo, isto é a substância (phaenomenon), mas tudo que muda ou pode mudar pertence somente à maneira como esta substância ou estas substâncias existem, por conseguinte às suas determinações. Creio que em todos os tempos não somente o filósofo, mas mesmo o entendimento comum pressupôs esta permanência como um substrato de toda a variação dos fenômenos e também sempre o admitirá como indubitável, apenas com a diferença de que o filósofo se exprime mais determinadamente a respeito ao dizer que em todas as mudanças no mundo a substância permanece e apenas os acidentes variam. Todavia, não encontro em parte alguma nem uma simples tentativa de prova desta proposição tão sintética; antes, só raramente se encontra, como lhe seria contudo devido, no vértice das leis da natureza, que são puras e subsistem inteiramente a priori. De fato, é tautológica a proposição de que a substância é permanente. Com efeito, esta permanência é a única razão pela qual aplicamos ao fenômeno a categoria da substância, e ter-se-ia que provar que em todos os fenômenos há algo permanente no qual o mutável não passa de determinação da sua existência. Todavia, visto que semelhante prova jamais poderá ser levada a cabo dogmaticamente, isto é, a partir de conceitos, pelo fato de dizer respeito a uma proposição sintética a priori, e de jamais se ter pensado que semelhantes proposições são válidas só com referência à experiência possível, por conseguinte também só podem ser provadas por uma dedução da possibilidade da última: então não é de espantar que tal proposição estivesse subjacente a toda a experiência (porque no conhecimento empírico se sente a sua necessidade), mas jamais foi provada. Perguntou-se a um filósofo: quanto pesa a fumaça? Respondeu: subtrai da lenha queimada o peso da cinza que restou e terás o peso da fumaça. Portanto, pressupôs incontestável que mesmo no fogo a matéria (substância) não se destrói, mas somente a sua forma sofre uma alteração. Do mesmo modo a proposição: do nada não surge nada, foi somente outra conclusão a partir do princípio da permanência, ou antes, da existência contínua do sujeito propriamente dito nos fenômenos. Com efeito, se aquilo que no fenômeno é denominado substância deve ser o verdadeiro substrato de toda a determinação de tempo, então toda a existência, tanto no tempo passado como no futuro, tem que poder ser determinada única e exclusivamente na substância. Por isso só podemos dar a um fenômeno o nome de substância porque pressupomos a sua existência em todo o tempo, o que de resto nem é bem expresso pela palavra permanência na medida em que esta diz mais respeito ao tempo futuro. Não obstante, a necessidade interna de permanecer está indissoluvelmente ligada à necessidade de ter sempre sido, e a expressão pode portanto ficar. Gigni de nihilo nihil, in nihilum nil posse reverti, foram duas proposições que os antigos jamais separaram, e que hoje por mal-entendido às vezes são separadas porque se crê que digam respeito a coisas em si mesmas e que a primeira possa ser contrária ao mundo depender de uma causa suprema (até mesmo segundo a substância do mundo); preocupação essa que é desnecessária na medida em que aqui se fala só de fenômenos no campo da experiência, cuja unidade jamais seria possível se quiséssemos fazer surgir coisas novas (segundo a substância). Em tal caso, efetivamente, seria supresso aquilo que unicamente pode representar a unidade do tempo, a saber, a identidade do substrato entendido como aquilo no qual toda a variação pode unicamente ter uma unidade completa. Esta permanência, todavia, não é outra coisa senão o modo de nos representar a existência das coisas (no fenômeno). As determinações de uma substância, que não são outra coisa senão modos particulares dela existir, denominam-se acidentes. São sempre reais porque concernem à existência da substância (negações são apenas determinações que expressam o não ser de algo na substância). Se agora a este real na substância se atribui uma existência particular (por exemplo do movimento enquanto acidente da matéria), então se denomina tal existência inerência, em distinção à existência da substância que se denomina subsistência. Todavia, disso surgem muitas interpretações errôneas, e se fala mais exata e corretamente se se designar os acidentes somente pelo modo como é positivamente determinada a existência de uma substância. Não obstante, em virtude das condições do uso lógico do nosso entendimento é inevitável separar por assim dizer aquilo que na existência de uma substância pode mudar, enquanto a substância persiste, e considerá-lo em relação com o propriamente permanente e radical. Por isso, com efeito, esta categoria está sob o título das relações, mais como sua condição do que ela mesma contendo uma relação. Ora, sobre essa permanência funda-se também a correção do conceito de mudança. Surgir e perecer não são mudanças daquilo que surge ou perece. A mudança é um modo de existir que resulta num outro modo de existir precisamente do mesmo objeto. Por isso, tudo o que muda é estável, e somente o seu estado varia. Portanto, visto que esta variação toca apenas as determinações que podem cessar ou também começar, numa expressão aparentemente um tanto paradoxal podemos dizer: só o permanente (a substância) muda, o instável não sofre nenhuma mudança mas uma variação, visto que algumas determinações cessam e outras começam. Por conseguinte, a mudança só pode ser percebida em substâncias e o surgir ou perecer pura e simplesmente, sem concernir apenas a uma determinação do permanente, não pode constituir de modo algum uma percepção possível, pois justamente esse permanente torna possível a representação da passagem de um estado a outro o de não ser ao ser, que portanto só podem ser conhecidos empiricamente enquanto determinações variáveis daquilo que persiste. Se admitis que alguma coisa começa pura e simplesmente a ser, tereis que possuir um instante em que não era. Mas a que quereis ligar tal instante senão ao que já existe? Com efeito, um tempo vazio precedente não é um objeto da percepção. Mas se vinculais esse surgir a coisas que antes eram e perduraram até o momento em que esta surge, então a última é somente uma determinação das primeiras entendidas como o permanente. O mesmo ocorre também com o perecer: este, com efeito, pressupõe a representação empírica de um tempo em que um fenômeno não é mais. As substâncias (no fenômeno) são os substratos de todas as determinações de tempo. O surgir de algumas substâncias e o perecer de outras suprimiria a única condição da unidade empírica do tempo, e os fenômenos referir-se-iam então a duas espécies de tempos nos quais a existência decorreria paralelamente, o que é um absurdo. De fato, há só um tempo no qual todos os tempos diferentes têm que ser postos não como simultâneos, mas sucessivamente. A permanência é por isso uma condição necessária unicamente sob a qual os fenômenos são determináveis, enquanto coisas ou objetos, numa experiência possível. Mas o que seja o critério empírico desta permanência necessária e com ela da substancialidade dos fenômenos, o que se segue fornecer-nos-á a ocasião para as observações necessárias. B. SEGUNDA ANALOGIA Princípio da sucessão temporal segundo a lei da causalidade Todas as mudanças acontecem segundo a lei da conexão de causa e efeito. Prova (O princípio precedente pôs às claras que os fenômenos da sucessão temporal são todos somente mudanças, isto é, um sucessivo ser e não ser das determinações da substância que permanece, consequentemente que não ocorre um ser da própria substância o qual suceda ao seu não ser, em outras palavras, que não ocorre o surgir ou perecer da própria substância. Este princípio também poderia ter sido expresso da seguinte maneira: Toda a variação (sucessão) dos fenômenos é só mudança. Com efeito, o surgir ou perecer da substância não é uma mudança da mesma, pois o conceito de mudança pressupõe o mesmo sujeito com duas determinações contrapostas enquanto existente, por conseguinte enquanto permanente. - Após esta advertência, segue-se a prova.) Percebo que fenômenos se sucedem, isto é, que num tempo há um estado de coisas contrário ao objeto que havia no estado precedente. Portanto, conecto propriamente duas percepções no tempo. Ora, a conexão não é uma obra do simples sentido e da intuição, mas é aqui o produto de uma faculdade sintética da capacidade de imaginação que determina o sentido interno com respeito à relação de tempo. Tal conexão, porém, pode ligar de duas maneiras os dois referidos estados, de modo que um ou outro preceda no tempo: pois o tempo não pode ser percebido em si mesmo, nem em referência a ele se pode determinar, por assim dizer empiricamente no objeto, o que precede e o que sucede. Sou, portanto, somente consciente que minha imaginação põe um estado antes e outro depois, e não que no objeto um estado preceda outro; ou, em outras palavras, pela mera percepção fica indeterminada a relação objetiva dos fenômenos que se sucedem. Ora, para ser conhecida como determinada, a relação entre os dois estados precisa ser pensada de tal modo que através dela fique necessariamente determinado qual deles deva ser posto antes e qual depois, e não vice-versa. Mas o conceito que traz consigo uma necessidade da unidade sintética pode ser apenas um conceito puro do entendimento que não jaz na percepção, e é aqui o conceito da relação de causa e efeito, pelo qual a primeira determina o segundo no tempo como aquilo que sucede e não como algo que pudesse preceder meramente na imaginação (ou não pudesse ser percebido simplesmente de modo algum). Portanto, só enquanto subordinamos a sucessão dos fenômenos e portanto toda a mudança à lei da causalidade, é possível a experiência, isto é, o conhecimento empírico dos fenômenos; por isso, enquanto objetos da experiência estes só são possíveis segundo precisamente aquela lei. A apreensão do múltiplo do fenômeno é sempre sucessiva. As representações das partes sucedem umas às outras. A questão se também se sucedem no objeto, concerne a um segundo ponto da reflexão não contido no primeiro. Ora, pode-se chamar objeto tudo e mesmo toda a representação na medida em que se é consciente dela; só que o que esse termo deve significar nos fenômenos, não na medida em que estes (como representações) são objetos, mas apenas designam um objeto, é de se investigar mais profundamente. Na medida em que os fenômenos só como representações são ao mesmo tempo objetos da consciência, não se distinguem de modo algum da apreensão, isto é, do acolhimento na síntese da capacidade de imaginação, devendo-se portanto dizer: o múltiplo dos fenômenos é sempre produzido sucessivamente na mente. Se os fenômenos fossem coisas em si mesmas, a partir da sucessão das representações nenhum homem poderia julgar como o múltiplo está ligado no objeto. Com efeito, temos a ver somente com nossas representações; saber como possam ser as coisas em si mesmas (sem consideração das representações pelas quais nos afetam), está completamente fora da nossa esfera de conhecimento. Ora, embora sem ser coisas em si mesmas os fenômenos sejam não obstante o único que pode ser dado ao nosso conhecimento, devo indicar que ligação no tempo deva ser atribuída ao múltiplo nos fenômenos, já que a representação do múltiplo na apreensão é sempre sucessiva. Assim, por exemplo, a apreensão do múltiplo no fenômeno de uma casa que está diante de mim é sucessiva. Ora, a questão é se o múltiplo desta mesma casa é também em si sucessiva, o que certamente ninguém concederá. Por outro lado, tão logo elevo meus conceitos de um objeto à significação transcendental, a casa não é absolutamente uma coisa em si mesma, mas só um fenômeno, isto é, uma representação cujo objeto transcendental é desconhecido. Que entendo, portanto, com a pergunta: como pode o múltiplo ser ligado no próprio fenômeno (que não é nada em si mesmo)? Aquilo que se encontra na apreensão sucessiva é aqui considerado representação; mas o fenômeno que me é dado, embora não seja senão um conjunto dessas representações, é considerado o objeto da representação com o qual deve concordar meu conceito, que extraio das representações da apreensão. Já que a concordância do conhecimento com o objeto é a verdade, vê-se logo que aqui só pode ser perguntado pelas condições formais da verdade empírica e que o fenômeno, em contraposição às representações da apreensão, só pode ser representado como objeto distinto das mesmas se está sob uma regra que o distingue de qualquer outra apreensão e torna necessário um modo de ligação do múltiplo. O objeto é aquilo que no fenômeno contém a condição dessa regra necessária da apreensão. Deixai que agora nos acerquemos de nosso problema. Que algo aconteça, isto é, se torne algo ou um estado que antes não era, não pode ser percebido empiricamente se não preceder um fenômeno que não contenha em si esse estado. Com efeito, uma realidade que sucede a um tempo vazio, por conseguinte um surgir ao qual não precede nenhum estado de coisas, pode ser apreendido tampouco como o próprio tempo vazio. Portanto, toda apreensão de um dado é uma percepção que sucede a outra. Mas visto que em toda a síntese da apreensão as coisas se passam como mostrei acima no fenômeno de uma casa então por isso a apreensão ainda não se distingue das outras. Não obstante, observe ainda que, se um fenômeno que contém um acontecimento denomino A o estado precedente da percepção e B o estado seguinte, B só pode suceder A na apreensão, porém a percepção A não pode suceder a B, mas precedê-la. Por exemplo, vejo um navio descendo a corrente. A minha percepção da sua posição mais abaixo sucede a percepção da sua posição mais acima no curso do rio, e é impossível que na apreensão deste fenômeno o navio devesse ser percebido primeiro mais abaixo, porém depois mais acima da corrente. Portanto a ordem na sucessão das percepções na apreensão é aqui determinada, e a apreensão está vinculada a tal ordem. No exemplo anterior de uma casa, as minhas percepções podiam começar na apreensão do teto e terminar no seu chão, mas também começar embaixo e terminar em cima, do mesmo modo como podiam apreender à direita ou à esquerda o múltiplo da intuição empírica. Na série dessas percepções não havia, portanto, nenhuma ordem determinada que tornasse necessário onde eu teria que começar na apreensão para ligar empiricamente o múltiplo. Esta regra, porém, encontrar-se-á sempre na percepção daquilo que acontece, e ela torna necessária a ordem das percepções que se sucedem (na apreensão deste fenômeno). Em nosso caso, portanto, terei que derivar a sucessão subjetiva da apreensão da sucessão objetiva dos fenômenos, pois do contrário aquela seria inteiramente indeterminada e não distinguiria nenhum fenômeno de outro. Por si só, a primeira sucessão nada prova sobre a conexão do múltiplo no objeto, pois é completamente arbitrária. Logo, a segunda consistirá na ordenação do múltiplo do fenômeno conforme à qual a apreensão de uma coisa (que acontece) sucede à de outra (que precede) segundo uma regra. Só assim posso estar autorizado a dizer do fenômeno, e não apenas da minha apreensão, que nele se encontra uma sucessão; o que significa que não posso organizar a apreensão de outro modo senão precisamente nesta sucessão. Segundo tal regra, portanto, naquilo que em geral precede um evento tem que residir a condição de uma regra segundo a qual este evento sucede sempre e necessariamente; mas inversamente não o posso retroceder do evento e determinar (pela apreensão) aquilo que precede. Com efeito, do instante que sucede, nenhum fenômeno retrocede ao anterior, mas não obstante se refere a um instante anterior qualquer; de um tempo dado, ao contrário, a progressão ao tempo posterior determinado é necessária. Por isso, visto existir algo que sucede, preciso necessariamente referi-lo a algo diverso em geral que precede e ao qual segundo uma regra, isto é, necessariamente, de modo que enquanto condicionado o evento remete seguramente a uma condição qualquer, esta contudo determinando o acontecimento. Supondo-se que um evento não seja precedido por nada a que deva seguir segundo uma regra, então toda a sucessão da percepção é determinada meramente na apreensão, isto é, apenas subjetivamente; com isso, porém, não se determinaria de modo algum objetivamente qual teria propriamente que ser o precedente e qual o consequente nas percepções. Dessa maneira, teríamos somente um jogo de representações que não se referiria simplesmente a objeto algum, isto é segundo a relação de tempo nenhum fenômeno se distinguiria mediante nossa percepção de todo outro fenômeno. Com efeito, a sucessão no apreender é sempre indiferente, e portanto nada há no fenômeno que o determine de modo a assim tornar objetivamente necessária uma certa sucessão. Portanto, não direi que no fenômeno dois estados sucedem um ao outro, mas que uma apreensão sucede a outra, o que é algo meramente subjetivo e não determina objeto algum, não podendo portanto valer como conhecimento de qualquer objeto (nem mesmo no fenômeno). Portanto, se experimentamos que algo acontece, pressupomos sempre que precede alguma coisa qualquer à qual aquilo segue segundo uma regra. Com efeito, sem isso eu não diria do objeto que ele sucede, pois a simples sucessão em minha apreensão, se não é determinada mediante uma regra com referência a um antecedente, não justifica sucessão alguma no objeto. Portanto, é sempre considerando uma regra, segundo a qual os fenômenos são determinados pelo estado anterior em sua sucessão, isto é, do modo como acontecem, que tomo objetiva a minha síntese subjetiva (da apreensão), e é unicamente sob esta pressuposição que é possível a experiência de algo que acontece. Na verdade, isso parece contradizer todas as observações que sempre se fizeram sobre o andamento do uso de nosso entendimento, segundo as quais só mediante a percepção e comparação de muitos eventos que sucedem em concordância com fenômenos precedentes fomos primeiramente guiados a descobrir uma regra conforme à qual certos eventos sucedem sempre a certos fenômenos, e assim primeiro induzidos a nos formar o conceito de causa. Sobre tal base este conceito seria empírico, e a regra fornecida por ele, de que tudo o que acontece tem uma causa, seria tão contingente como a própria experiência: a universidade e necessidade deste conceito seriam então somente fictícias e não possuiriam nenhuma verdadeira validade universal por não estarem fundadas a priori, mas apenas na indução. Aqui se passa o mesmo que com outras representações puras a priori (por exemplo espaço e tempo), que podemos extrair da experiência como conceitos claros só porque os pusemos na mesma e portanto a constituímos primeiramente mediante tais conceitos. Claro que a clareza lógica desta representação de uma regra determinante, enquanto conceito de causa, da série dos eventos só é possível se tivermos feito uso dela na experiência; por outro lado, uma consideração dela como condição da unidade sintética dos fenômenos no tempo, foi o fundamento da experiência mesma e portanto a precedeu a priori. Trata-se, portanto, de mostrar através de exemplo que na experiência jamais atribuímos ao objeto a sucessão (de um evento já que acontece algo que anteriormente não era) e a distinguimos da sucessão subjetiva da nossa apreensão apenas quando lhe subjaz uma regra que nos obriga a observar esta ordem das percepções antes que uma outra, que esta obrigatoriedade é até o que propriamente toma primeiro possível a representação de uma sucessão no objeto. Temos em nós representações das quais também podemos nos tornar conscientes. Por mais extensa, exata ou pontual que esta consciência seja, trata-se sempre de representações, isto é, de determinações internas da nossa mente nesta ou naquela relação de tempo. Como chegamos, porém, ao fato de que pomos um objeto para essas representações, ou que além da sua realidade subjetiva, enquanto modificações lhe atribuímos ainda uma não sei qual realidade objetiva? Significação objetiva não pode consistir na referência outra representação (daquilo que se queria chamar objeto), pois do contrário se renova a pergunta: como esta representação sai de novo de si mesma e obtém significação objetiva, além da subjetiva que lhe é própria como determinação do estado da mente? Se investigamos que nova propriedade a referência a um objeto confere às nossas representações e que dignidade estas alcançam através disso, descobrimos que tal referência não faz senão tornar de certo modo necessária a ligação das representações, submetendo-as a uma regra; e que, inversamente, só mediante o fato de que é necessária uma certa ordem na relação de tempo das nossas representações lhes é conferida uma significação objetiva. Na síntese dos fenômenos, o múltiplo das representações é sempre sucessivo. Ora, através disso não é de modo algum representado um objeto, porque através dessa sucessão, comum a todas as apreensões, nenhuma coisa distinguir-se-á de outra. Mas tão logo percebo ou presumo que em tal sucessão haja uma referência ao estado anterior do qual a representação resulta segundo uma regra, então algo é representado como evento ou que acontece aí, isto é, conheço um objeto que preciso pôr no tempo num certo lugar determinado e que, segundo estado anterior, não lhe pode ser conferido de outra maneira. Portanto, se percebo que alguma coisa acontece, então nesta representação está contido o fato de que algo precede, pois justamente com referência a talo fenômeno obtém sua relação de tempo, a saber, de existir segundo um tempo precedente no qual tal fenômeno não era. Nessa relação, entretanto, este pode obter o seu lugar determinado no tempo só pelo fato de que no estado precedente é pressuposto algo ao qual ele sucede sempre, isto é, segundo uma regra. Disso resulta, efetivamente, primeiro que não posso inverter a série, nem pôr aquilo que acontece antes daquilo ao qual sucede; segundo, que se o estado precedente é posto, tal evento determinado segue inevitável e necessariamente. Com isso acontece que em nossas representações se estabelece uma ordem na qual aquilo que é presente (na medida em que se tornou) acena a um estado precedente qualquer como um correlato, embora ainda indeterminado, deste evento que é dado. Tal correia to refere-se a este evento determinando-o como sua consequência e conecta esta última necessariamente consigo mesmo na série temporal. Ora, se é uma condição formal de todas as percepções que o tempo anterior determine necessariamente aquele que o segue (enquanto não posso chegar ao seguinte senão mediante o precedente), então é também uma indispensável lei da representação empírica da série temporal que os fenômenos do tempo passado determinem toda existência do tempo subsequente e que estes fenômenos, enquanto eventos, não ocorram senão na medida em que aqueles determinam a sua existência no tempo, isto é, a estabelecem segundo uma regra. Com efeito, só nos fenômenos podemos conhecer empiricamente esta continuidade na interconexão dos tempos. A toda a experiência e à sua possibilidade pertence entendimento, e a primeira coisa que este faz para tanto não é tornar clara a representação dos objetos, mas tornar possível a representação de um objeto em geral. Ora, isto ocorre pelo fato de ele transferir a ordem temporal aos fenômenos e sua existência ao conceder a cada um deles, como sucessão, uma posição no tempo determinada a priori com respeito aos fenômenos precedentes sem a qual não concordariam com o próprio tempo que determina a priori a posição a todas as suas partes. Ora, esta determinação da posição não pode ser tomada da relação dos fenômenos com o tempo absoluto (que não é, efetivamente, um objeto da percepção), mas inversamente os fenômenos têm que determinar uns aos outros suas posições no tempo e torná-las necessárias na ordem temporal, isto é, o que sucede ou acontece tem que seguir segundo uma regra universal ao que estava contido no estado precedente. Disso resulta uma série de fenômenos que, mediante o entendimento, produz e torna necessária, na série das percepções possíveis, precisamente a mesma ordenação e interconexão contínua encontrada a priori na forma da intuição interna (o tempo), na qual todas as percepções teriam que ter o seu lugar. Portanto, que algo acontece é uma percepção pertencente a uma experiência possível que se torna real quando encaro o fenômeno como determinado no tempo segundo a sua posição, conseguinte como objeto que pode sempre ser encontrado segundo uma regra no contexto das percepções. A regra, porém, para determinar algo segundo a sucessão temporal é esta: a condição sob a qual segue sempre (isto é, necessariamente) o evento deve ser encontrado naquilo que precede. Portanto, o princípio de razão suficiente é o fundamento da experiência possível, a saber, do conhecimento objetivo dos fenômenos no tocante às suas relações na série sucessiva do tempo. O argumento dessa proposição repousa apenas sobre os seguintes momentos. Para todo o conhecimento empírico requer-se a síntese do múltiplo pela capacidade de imaginação, que é sempre sucessiva; isto é, as representações sucedem-se sempre nela. Na capacidade de imaginação, porém, a sucessão não é de modo algum determinada segundo a ordem (o que deve anteceder e o que deve seguir), e a série das representações sucessivas pode ser tomada tanto regressiva como progressivamente. Todavia, se se tratar de uma síntese da apreensão (do múltiplo de um fenômeno dado), então a ordem é determinada no objeto ou, para falar mais precisamente, na apreensão há uma ordem da síntese sucessiva que determina um objeto e segundo a qual algo tem necessariamente que preceder, de modo que se este é posto a outra tem necessariamente que seguir. Portanto, se a minha percepção deve conter o conhecimento de um evento, a saber, de algo que realmente acontece, então precisa ser um juízo empírico no qual se pensa que a sucessão seja determinada, isto é, que tal evento pressuponha, segundo o tempo, outro fenômeno ao qual segue necessariamente ou segundo uma regra. Em caso contrário, se posto o antecedente o evento não sucedesse necessariamente e, eu teria que considerar a minha percepção um mero jogo subjetivo da minha imaginação, e se não obstante representasse nela algo objetivo, deveria chamá-la um puro sonho. Portanto, a relação dos fenômenos (como percepções possíveis) segundo a qual o consequente (o que acontece) é quanto à existência determinado necessariamente por algum antecedente, por conseguinte a relação de causa e efeito, é a condição da validade objetiva de nossos juízos empíricos com vistas à série das percepções, isto é, da verdade empírica de tais juízos e portanto da experiência. Por isso, o princípio da relação causal na sucessão dos fenômenos vale também antes de todos os objetos da experiência (sob as condições da sucessão), pois ele mesmo é o fundamento da possibilidade de tal experiência. Aqui, porém, se externa ainda uma dificuldade que deve ser eliminada. O princípio da conexão causal sob os fenômenos limita-se, em nossa fórmula, à série sucessiva dos mesmos já que no uso de tal princípio se descobre que ele se adapta também à concomitância dos fenômenos e que causa e efeito podem ser simultâneos. Por exemplo, no quarto há calor que não pode ser encontrado ao ar livre. Olho em torno de mim procurando a causa, e encontro uma estufa acesa. Ora, esta enquanto é causa é simultânea com o seu efeito, o calor do quarto. Portanto, segundo o tempo não há aqui série sucessiva alguma entre causa e efeito, mas ambos são simultâneos e não obstante a lei é válida. A maior parte das causas atuantes na natureza é simultânea aos seus efeitos, e a sucessão temporal dos últimos é devida somente ao fato de que a causa não pode produzir o seu efeito completo num único instante. Mas no instante em que o efeito surge pela primeira vez, é sempre simultâneo com a causalidade de sua causa, pois se esta tivesse cessado um instante antes, o efeito não teria surgido. Aqui se deve observar bem que se considera a ordem do tempo e não o seu decorrer; a relação permanece, mesmo que não tenha decorrido tempo algum. O tempo entre a causalidade da causa e o seu efeito imediato pode ser evanescente (causa e efeito, portanto, podem ser simultâneos), mas a relação de uma com outro continua não obstante sempre determinável segundo o tempo. Se considero causa uma esfera que se encontra sobre um travesseiro cheio e nele imprime uma covinha, então a causa é simultânea com o efeito. Distingo-os, todavia, entre si mediante a relação temporal da conexão dinâmica de ambos. Com efeito, quando deito a esfera sobre o travesseiro, então à sua figura plana sucede uma covinha; se, porém, o travesseiro tem (não sei de onde) uma covinha a isso não se segue uma esfera de chumbo. Por isso a sucessão temporal é certamente o único critério empírico do efeito com referência a causalidade da causa que precede. O copo é a causa da água elevar-se acima de sua superfície horizontal, se bem que ambos sejam simultâneos. Com efeito, tão logo tiro com o copo a água de vaso maior, resulta algo, a saber, a mudança do estado horizontal que a água possuía antes, num estado côncavo que ela assume no copo. Esta causalidade leva ao conceito de ação, esta ao conceito de força e deste modo ao conceito de substância. Já que não quero misturar a minha tarefa crítica, que se volta unicamente para as fontes do conhecimento sintético a priori, com decomposições concernentes apenas à elucidação (não à ampliação) dos conceitos, remeto a um futuro sistema da razão pura a discussão detalhada de tais conceitos; se bem que uma tal análise já se encontre em grande medida nos até agora conhecidos manuais desta espécie. Não posso, todavia, deixar intocado o critério empírico de uma substância na medida em que parece se manifestar pela permanência do fenômeno, mas melhor e mais facilmente pela ação. Onde há ação, por conseguinte atividade e força, aí há também substância, e unicamente nesta deve ser procurada a sede daquela fecunda fonte dos fenômenos. Isto está muito bem dito: mas quando se quer esclarecer o que se entende por substância e aí evitar o círculo vicioso, então não é tão fácil encontrar uma resposta. Como se pode a partir da ação inferir imediatamente a permanência do agente, que é uma característica tão essencial e peculiar da substância (phaenomenon)? No entanto, pelo que disse anteriormente a solução da questão não contém semelhante dificuldade, conquanto seja completamente insolúvel segundo o modo comum de proceder (só analiticamente, com os nossos conceitos). A ação significa já a relação do sujeito da causalidade com o efeito. Ora, visto que todo efeito consiste naquilo que acontece, por conseguinte no mutável designado segundo o tempo da sucessão, assim o sujeito último dele é o permanente enquanto substrato de todo o variável, isto é a substância. Com efeito, segundo o princípio da causalidade as ações são sempre o primeiro fundamento de toda a variação dos fenômenos e não podem, portanto, residir num sujeito que muda ele mesmo, pois do contrário seriam requeridas outras ações e outro sujeito que determinasse esta variação. Ora, em virtude disso, como critério empírico suficiente a ação prova a substancialidade sem que eu tenha a necessidade de primeiro procurar, mediante percepções comparadas, a permanência do sujeito, o que por este caminho não poderia aliás ocorrer com o detalhamento requerido para a extensão e validade universal rigorosa do conceito. Com efeito, que o primeiro sujeito da causalidade de todo o surgir e perecer não possa ele mesmo surgir e perecer (no campo dos fenômenos), eis uma conclusão segura que deságua na necessidade empírica e na permanência na existência, por conseguinte no conceito de uma substância como fenômeno. Quando algo acontece, então o simples surgir um objeto de investigação é já em si mesmo, sem consideração daquilo que surge. A passagem do não ser de um estado a este estado, mesmo admitindo que este não contivesse ainda nenhuma qualidade no fenômeno, requer já por si só uma investigação. Como foi mostrado no parágrafo A, este surgir não concerne à substância (pois esta não surge), mas ao seu estado. Portanto, é simples mudança, e não origem do nada. Se esta origem é encarada como efeito de uma causa estranha, então se chama criação. Esta não pode ser admitida entre os fenômenos como um evento na medida em que a sua simples possibilidade já suprimiria a unidade da experiência, se bem que, se olho todas as coisas não como fenômenos mas como coisas em si e como objetos do simples entendimento então mesmo sendo substâncias elas podem ser consideradas como dependentes, quanto à sua existência, de uma causa estranha. Tal ponto de vista, acarretaria às palavras, no entanto, uma significação completamente diferente e não se adaptaria aos fenômenos enquanto objetos possíveis da experiência. Ora, não possuímos o mínimo conceito a priori de como em geral algo possa ser mudado, de como seja possível que a um estado num instante de tempo possa suceder um estado contrário noutro instante. Para tanto é requerido o conhecimento de forças reais que só podem ser dadas empiricamente, por exemplo das forças motrizes ou, o que é indiferente, de certos fenômenos sucessivos (enquanto movimentos) que tais forças indicam. Mas a forma de toda mudança, a condição sob a qual unicamente pode ocorrer como surgir de outro estado (seja qual for o seu conteúdo, isto é, o estado que é mudado), por conseguinte a sucessão dos próprios estados (o acontecido), pode não obstante ser ponderado a priori segundo a lei da causalidade e as condições do tempo. (Observe-se bem que não falo da mudança de certas relações em geral, mas de mudança do estado. Por isso, quando um corpo se move uniformemente, não muda o seu estado (de movimento); muda-o, contudo, quando o seu movimento aumenta ou diminui. Nota do Autor) Quando uma substância passa de um estado A a outro B, o instante de tempo do segundo estado é diferente do instante de tempo do primeiro e o segue. Do mesmo modo, enquanto realidade (no fenômeno) o segundo estado é diferente do primeiro no qual não existia tal realidade, assim como B é diferente de zero; isto é, se o estado B difere do estado A somente pela quantidade, então a mudança é um surgir de B-A, coisa que não era no estado anterior e com respeito a ele é = 0. Pergunta-se, portanto, como uma coisa passa de um estado = A a um outro = B. Entre dois instantes há sempre um tempo, e entre estados sempre uma diferença, que possui uma quantidade (pois todas as partes dos fenômenos são sempre de novo quantidades). Portanto, toda passagem de um instante a outro acontece num tempo contido entre dois instantes, dos quais o primeiro determina o estado do qual a coisa procede e o segundo o estado ao qual chega. Ambos são, portanto, limites do tempo de uma mudança, por conseguinte do estado intermediário entre dois estados, e enquanto tais co-pertencem à mudança inteira. Ora, toda mudança tem uma causa que prova a sua causalidade durante todo tempo em que ocorre. Portanto, esta causa não produz a sua mudança de repente (de uma vez ou num instante), mas num tempo e de modo tal que, assim como o tempo cresce do instante inicial a até sua conclusão em B, também a quantidade da realidade (B-A) é produzida através de todos os graus menores contidos entre o primeiro e o último. Por isso, toda mudança só é possível através de uma ação contínua da causalidade, que enquanto é homogênea se chama um momento. A mudança não é constituída de momentos, mas produzida através deles como o seu efeito. Ora, essa é a lei da continuidade de todas as mudanças, cujo fundamento é o seguinte: nem o tempo nem tampouco o fenômeno no tempo consiste de partes que sejam as menores possíveis, e não obstante em sua mudança o estado da coisa passa por todas estas partes enquanto elementos a um segundo estado. Não há nenhuma diferença do real no fenômeno, assim como nenhuma diferença na quantidade dos tempos, que seja a menor possível. Desse modo, o novo estado da realidade emerge a partir do primeiro, em que não era, através de todos os graus infinitos dela, cujas diferenças entre si são todas menores do que a diferença entre zero e A. Não nos toca aqui saber qual a utilidade dessa proposição na pesquisa da natureza. Mas saber como é possível inteiramente a priori tal proposição que parece ampliar a tal ponto o nosso conhecimento da natureza, requer um exame demasiado de nossa parte, não obstante a aparência a prove real e correta e que, portanto, a gente se possa crer dispensado de responder à pergunta de como foi possível tal proposição. Com efeito, há tão inúmeras pretensões infundadas de ampliar o nosso conhecimento através da razão pura que se precisa assumir, como princípio universal, ser por isso inteiramente desconfiado e não crer ou aceitar nada semelhante, mesmo com base na mais clara prova dogmática, sem documentos que possam fornecer uma dedução meticulosa. Todo o crescimento do conhecimento empírico e cada crescimento da percepção não é senão uma ampliação da determinação do sentido interno, isto é, uma progressão no tempo, sejam quais forem os objetos, fenômenos ou intuições puras. Esta progressão no tempo determina tudo e não é em si mesma determinada por mais nada; isto é, as suas partes são dadas só no tempo e através de uma síntese, porém não antes do tempo. Em virtude disso, toda passagem na percepção a algo que sucede no tempo é uma determinação do tempo mediante a produção desta percepção; e visto que o tempo é sempre e em todas as suas partes uma quantidade, aquela passagem é a produção de uma percepção como quantidade através de todos os graus, nenhum dos quais o menor, desde zero até o seu grau determinado. Ora, disso resulta clara a possibilidade de conhecer a priori, segundo a sua forma, uma lei das mudanças. Só antecipamos nossa própria percepção, cuja condição formal tem certamente que poder ser conhecida a priori por residir em nós antes de todo o fenômeno dado. Consequentemente, assim como o tempo contém a condição sensível a priori da possibilidade de uma progressão contínua daquilo que existe àquilo que segue, mediante a unidade da apercepção o entendimento é a condição a priori da possibilidade de uma determinação contínua de todas as posições dos fenômenos neste tempo, através da série de causas e efeitos, cujas primeiras acarretam inevitavelmente a existência dos seus segundos e desse modo tornam válido para todo o tempo (universalmente), por conseguinte objetivamente, o conhecimento empírico das relações de tempo. C. TERCEIRA ANALOGIA Princípio da simultaneidade segundo a lei da ação recíproca ou comunidade Na medida em que podem ser percebidas no espaço como simultâneas, todas as substâncias estão em constante ação recíproca. Prova Coisas são simultâneas quando, na intuição empírica, a percepção de uma pode suceder reciprocamente à percepção de outra (o que não pode acontecer na sucessão temporal dos fenômenos, como foi mostrado no segundo princípio). Assim, posso iniciar minha percepção primeiro na lua e depois na terra, ou também ao contrário primeiro na terra e depois na lua, e porque as percepções destes objetos podem suceder uma à outra reciprocamente, afirmo que existem simultaneamente. Ora, a simultaneidade é a existência do múltiplo no mesmo tempo. Entretanto, não podemos perceber o próprio tempo para do fato das coisas serem postas no mesmo tempo depreender que as percepções das mesmas podem suceder uma à outra reciprocamente. Portanto, a síntese da capacidade de imaginação indicaria na apreensão apenas uma de cada destas percepções como tal que está no sujeito quando a outra não está e reciprocamente, mas não que os objetos são simultâneos, isto é, que quando um é num tempo o outro também é no mesmo tempo, e que isto é necessário para que as percepções possam suceder uma às outras reciprocamente. Por consequência, um conceito do entendimento é exigido pela sucessão recíproca das determinações destas coisas que existem simultaneamente umas fora das outras para dizer que a sucessão recíproca das percepções está fundada no objeto e representa assim a simultaneidade como objetiva. Ora, a relação das substâncias, na qual uma contém determinações donde o fundamento está contido na outra, é a relação da influência e, quando esta contém reciprocamente o fundamento das determinações na outra, a relação da comunidade ou ação recíproca. A simultaneidade das substâncias no tempo não pode ser conhecida na experiência senão sob a pressuposição de uma ação recíproca das mesmas entre si; esta é, pois, também a condição da possibilidade das próprias coisas como objetos de experiência. Coisas são simultâneas na medida em que existem num só e mesmo tempo. Em que se conhece, entretanto, que são num só e mesmo tempo? Quando a ordem na síntese da apreensão deste múltiplo é indiferente, isto é, pode ir de A através de B, C, O até E ou também ao contrário, de E até A. Pois se esta ordem fosse sucessiva no tempo (na ordem que começa por A e acaba em E), seria impossível começar por E a apreensão na percepção e remontar a A, porque A pertence ao tempo passado e não pode mais ser objeto da apreensão. Admitindo que numa multiplicidade de substâncias como fenômenos cada uma delas fosse totalmente isolada, isto é, nenhuma atuasse sobre a outra nem reciprocamente sofreria influências da mesma eI\tão afirmo que a simultaneidade das mesmas não seria objeto de uma percepção possível e que a existência de uma não poderia conduzir por nenhum caminho da síntese empírica à existência da outra. Pois quando pensais que estariam separadas por um espaço totalmente vazio, então a percepção que progride de uma à outra no tempo determinaria sem dúvida sua existência mediante uma percepção ulterior, mas não poderia distinguir se o fenômeno segue objetivamente a primeira ou se lhe é antes simultâneo. Portanto, além da simples existência tem que existir algo pelo qual A determine a B sua posição no tempo, e também ao contrário B a A, pois somente sob esta condição as substâncias mencionadas podem ser representadas empiricamente como existindo simultaneamente. Ora, só determina ao outro seu lugar no tempo, aquilo que é a causa dele ou de suas determinações. Portanto, toda substância precisa (já que só pode ser consequência com respeito a suas determinações) conter a causalidade de certas determinações nas outras e simultaneamente os efeitos da causalidade das outras em si, isto é, precisam estar em comunidade dinâmica (imediata ou mediatamente) caso a simultaneidade deva ser conhecida numa experiência possível qualquer. Ora, tudo isto é necessário no tocante aos objetos da experiência, sem o que a experiência destes mesmos objetos seria impossível. Portanto, a todas as substâncias no fenômeno, na medida em que simultâneas, é necessário estar em constante comunidade da ação recíproca umas com as outras. A palavra comunidade tem dois sentidos em nossa língua e pode significar tanto communio como commercium. Utilizando-nos dela aqui no segundo sentido, como uma comunidade dinâmica sem a qual mesmo a local (communio spatil) jamais poderia ser conhecida empiricamente. Em nossas experiências é fácil notar que só as influências contínuas em todos os lugares do espaço podem dirigir nosso sentido de um objeto a outro, que a luz que brinca entre nosso olho e os corpos do mundo pode efetivar uma comunidade mediata entre nós e estes, provando assim a simultaneidade dos últimos, que não podemos mudar empiricamente de lugar (perceber esta mudança) sem que por toda a parte a matéria nos torne possível a percepção de nosso lugar, e que só por intermédio de sua influência recíproca a matéria pode provar sua simultaneidade e assim a coexistência dos objetos (se bem que mediatamente), mesmo dos mais remotos. Sem comunidade, toda percepção (do fenômeno no tempo) está separada das outras e a cadeia de representações empíricas, isto é, experiência, reiniciaria tudo a partir de um novo objeto sem que a anterior pudesse ter qualquer interconexão ou estar em relação de tempo com isto. Não quero refutar com isto o espaço vazio, pois ele pode sempre estar onde não chega nenhuma percepção e onde portanto não ocorre nenhum conhecimento empírico da simultaneidade; mas tal espaço de modo algum é objeto para toda nossa experiência possível. O que vem a seguir pode servir de esclarecimento. Em nossa mente é preciso que todos os fenômenos, como contidos numa experiência possível, estejam em comunidade (communio) da apercepção, e na medida em que os objetos devem ser representados como conectados existindo simultaneamente têm que determinar seu lugar reciprocamente num tempo e através disto perfazer um todo. Se esta comunidade subjetiva deve repousar num fundamento objetivo ou ser referida a fenômenos como substâncias, então é necessário que a percepção de um torne possível, como fundamento, a percepção do outro e assim reciprocamente, para que a sucessão, que está sempre como apreensão nas percepções, não seja atribuída aos objetos, mas que estes possam ser representados como simultaneamente existentes. Mas esta é a influência recíproca, isto é, uma comunidade real (commercium) das substâncias, sem a qual portanto a relação empírica da simultaneidade não poderia acontecer na experiência. Por este commercium os fenômenos constituem um composto (compositum reale) na medida em que estão fora uns dos outros e mesmo assim em conexão, e semelhantes composita tornam-se possíveis de diversas maneiras. As três relações dinâmicas das quais surgem todas as demais são, pois, as de inerência, consequência e composição. Estas são, portanto, as três analogias da experiência. Não são senão princípios da determinação da existência dos fenômenos no tempo segundo todos os três modos das mesmas, a relação com o próprio tempo como uma quantidade (a quantidade da existência, isto é, a duração), a relação no tempo como uma série (uma após a outra), finalmente também nela como uma suma de toda a existência (simultaneamente). Esta unidade da determinação temporal é inteiramente dinâmica, isto é, o tempo não é considerado aquilo no qual a experiência determinaria imediatamente a cada existência sua posição, o que é impossível porque o tempo absoluto não é um objeto da percepção com o qual os fenômenos poderiam ser reunidos; mas a regra do entendimento, unicamente através da qual a existência dos fenômenos pode receber unidade sintética segundo relações de tempo, determina a cada um deles seu lugar no tempo, por conseguinte a priori, sendo válida para todo e qualquer tempo. Por natureza (no sentido empírico) entendemos a interconexão dos fenômenos quanto à sua existência, segundo regras necessárias, isto é, segundo leis. Portanto, há certas leis, e isto a priori, que tornam primeiro possível uma natureza: as empíricas só podem acontecer e ser encontradas por meio da experiência, e isto em consequência daquelas leis originárias segundo as quais a própria experiência é primeiramente possível. Nossas analogias apresentam, pois, propriamente a unidade da natureza em interconexão com todos os fenômenos sob certos exponentes, os quais nada mais expressam senão a relação do tempo (na medida em que abarca em si toda a existência) com a unidade da apercepção, a qual só pode ocorrer na síntese segundo regras. Em conjunto dizem: todos os fenômenos estão numa natureza e devem estar nela porque sem esta unidade a priori não seria possível unidade alguma de experiência, por conseguinte tampouco uma determinação dos objetos da mesma. Mas sobre o modo de provar do qual nos utilizamos nestas leis transcendentais da natureza e sobre a peculiaridade da mesma, é necessário fazer uma observação que deve ser ao mesmo tempo muito importante como prescrição para cada outra tentativa de provar a priori proposições intelectuais e ao mesmo tempo sintéticas. Se tivéssemos desejado provar estas analogias dogmaticamente, isto é, a partir de conceitos, a saber, que tudo o que existe só é encontrado no permanente, que todo o evento pressupõe no estado precedente algo ao qual sucede em virtude de uma regra, enfim que no múltiplo que é simultâneo os estados em relação uns com os outros são simultâneos segundo uma regra (estão em comunidade), então todo o esforço teria sido completamente em vão. Com efeito, de um objeto e de sua existência é absolutamente impossível ir à existência de outro ou à sua maneira de existir mediante simples conceitos destas coisas, qualquer que seja a maneira de desmembra-los. O que nos restou então? A possibilidade da experiência como um conhecimento no qual todos os objetos têm finalmente que poder nos ser dados caso sua representação deva ter realidade objetiva para nós. Ora, nesta terceira analogia, cuja forma essencial consiste na unidade sintética da apercepção de todos os fenômenos, encontramos condições a priori da determinação temporal universal e necessária de toda a existência no fenômeno sem a qual mesmo a determinação temporal empírica seria impossível, e encontramos regras da unidade sintética a priori mediante as quais pudemos antecipar a experiência. Na carência deste método e na ilusão de querer provar dogmaticamente proposições sintéticas recomendadas pelo uso empírico do entendimento como seus princípios, aconteceu que foi tentada uma prova do princípio da razão suficiente com muita frequência mas sempre em vão. Nas duas analogias restantes ninguém pensou, mesmo que se as tenha utilizado tacitamente, (A unidade do universo, no qual devem estar conectados todos os fenômenos, é manifestamente uma simples consequência do tacitamente admitido princípio da comunidade de todas as substâncias que são simultâneas: pois se estas fossem isoladas enquanto partes não perfariam um todo, e se a sua conexão (ação recíproca do múltiplo) já não fosse necessária em virtude da simultaneidade desta última enquanto uma simples relação ideal não se poderia inferir aquela enquanto uma relação real. Não obstante, mostramos no lugar devido que a comunidade é propriamente o fundamento da possibilidade de um conhecimento empírico da coexistência, e que portanto somente desta propriamente se retroinfere aquela como sua condição. Nota do Autor.) porque faltava o fio condutor das categorias, o único capaz de descobrir e tornar notada cada lacuna do entendimento, tanto nos conceitos quanto nos princípios. 4. Os postulados do pensamento empírico em geral 1. Aquilo que concorda com as condições formais da experiência (segundo a intuição e os conceitos) é possível. 2. Aquilo que se interconecta com as condições materiais da experiência (de sensação) é efetivo. 3. Aquilo cuja interconexão com o real está determinada segundo condições gerais da experiência é (existe) necessariamente. Elucidação As categorias da modalidade contêm em si algo de particular: como determinação do objeto, não aumentam nem um pouco o conceito ao qual são acrescentadas como predicado, mas exprimem apenas a relação com a faculdade de conhecimento. Quando o conceito de uma coisa já é totalmente completo, ainda assim posso perguntar deste objeto se é apenas possível ou também efetivo, ou, se o último for o caso, se é também necessário? Com isto mais nenhuma determinação é pensada no próprio objeto, mas se pergunta como este se comporta (juntamente com todas as suas determinações) diante do entendimento e seu uso empírico, a capacidade empírica de julgar e à razão (na sua aplicação à experiência)? Justamente por isso os princípios de modalidade não são senão explicações dos conceitos de possibilidade, efetividade e necessidade em seu uso empírico, e com isto ao mesmo tempo restrições de todas as categorias ao simples uso empírico, sem admitir ou permitir o transcendental. Pois, se estas não devem ter uma significação simplesmente lógica e exprimir a forma do pensamento analiticamente, mas devem concernir a coisas e sua possibilidade, efetividade ou necessidade, então é necessário que se voltem para a experiência possível e sua unidade sintética unicamente na qual são dados objetos do conhecimento. O postulado da possibilidade das coisas exige, pois, que o conceito das mesmas concorde com as condições formais de uma experiência em geral. Mas esta, a saber, a forma objetiva da experiência em geral, contém toda a síntese exigida para o conhecimento do objeto. Um conceito que abarca em si uma síntese deve ser considerado vazio e não se refere a nenhum objeto caso esta síntese não pertença à experiência ou enquanto tomada emprestada da mesma, e então se chama conceito empírico, ou enquanto condição a priori sobre a qual repousa a experiência em geral (a forma da mesma), e então é um conceito puro que ainda assim pertence à experiência porque seu objeto só pode ser encontrado nela. Pois de onde tirar o caráter da possibilidade de um objeto, pensado a priori por um conceito sintético, senão da síntese que perfaz a forma do conhecimento empírico dos objetos? Que em tal conceito não deva estar contida nenhuma contradição é uma condição lógica necessária, mas de modo algum suficiente para a realidade objetiva do conceito, isto é, da possibilidade de um objeto tal como pensado pelo conceito. Assim, no conceito de uma figura contida em duas linhas retas não há contradição, pois os conceitos de duas linhas retas e de sua colisão não contêm negação alguma da figura; a impossibilidade não repousa no conceito em si mesmo, mas na construção do mesmo no espaço, isto é, nas condições do espaço e da determinação do mesmo, mas estas têm por sua vez sua realidade objetiva, isto é, referem-se a coisas possíveis porque contêm em si a priori a forma da experiência geral. Mostraremos agora a utilidade e a influência difundidas deste postulado da possibilidade. Quando me represento uma coisa que é permanente de tal maneira que tudo o que aí muda pertence apenas a seu estado, só a partir de tal conceito não posso nunca conhecer que semelhante coisa é possível. Ou me represento qualquer coisa que deve ser constituída de maneira tal que, quanto posta, outra coisa a sucede sempre e inevitavelmente, e então isto pode certamente ser pensado sem contradição; mas com isso não pode ser julgado se tal propriedade (como causalidade) é encontrada numa coisa possível qualquer. Finalmente, posso representar-me diferentes coisas (substâncias) constituídas de tal modo que o estado de uma acarreta uma consequência no estado da outra e isto reciprocamente; mas que semelhante relação possa ser atribuída a coisas quaisquer não pode ser absolutamente depreendido destes conceitos, os quais contêm uma síntese meramente arbitrária. Portanto, é só no fato destes conceitos expressarem as relações das percepções em toda experiência que se conhece a sua realidade objetiva, isto é, sua verdade transcendental, e isto claro que independente da experiência, mas não independente de toda referência à forma de uma experiência em geral e a unidade sintética unicamente na qual os objetos podem ser conhecidos empiricamente. Mas se quiséssemos formar conceitos inteiramente novos de substâncias, de forças, de ações recíprocas com a matéria que a percepção nos fornece, sem retirar da própria experiência o exemplo de sua conexão, cairíamos em puras quimeras que não apresentam sinal algum de sua possibilidade pois não tomamos aí como mestra a experiência nem retiramos dela estes conceitos. Semelhantes conceitos imaginários não podem adquirir o caráter de sua possibilidade como as categorias, a priori como condições das quais depende toda a experiência, mas apenas a posteriori como dados pela própria experiência, e sua possibilidade tem que ser conhecida a posteriori e empiricamente ou então não pode sequer ser conhecida. Uma substância que estivesse permanentemente presente no espaço mas sem preenchê-lo (como aquele meio-termo entre matéria e ente intelectual que alguns quiseram introduzir), ou uma capacidade fundamental particular de nossa mente intuir de antemão o futuro (e não apenas inferi-lo), ou finalmente uma faculdade da mesma estar em comunidade de pensamentos com outros homens (tão distantes quanto possam estar), estes são conceitos cuja possibilidade é inteiramente sem fundamento porque não pode ser fundada na experiência nem em suas leis conhecidas, e sem ela há uma ligação arbitrária de pensamentos que, apesar de não conter nenhuma contradição, não pode reivindicar realidade objetiva nem tampouco, por conseguinte, a possibilidade de um objeto tal como o queremos pensar aqui. No que tange à realidade, pode-se dizer que é impossível conceber uma tal realidade in concreto sem recorrer à ajuda da experiência, pois só pode referir-se à sensação enquanto matéria de experiência e não à forma da relação com a qual poderíamos sempre jogar com ficções. Mas deixo de lado tudo aquilo cuja possibilidade só pode ser tomada da efetividade na experiência e pondero apenas a possibilidade das coisas mediante conceitos a priori, dos quais continuo a afirmar que não podem ocorrer a partir de tais conceitos por si sós, mas sempre só como condições formais e objetivas de uma experiência em geral. Parece, é verdade, que a possibilidade de um triângulo pode ser conhecida a partir de seu conceito em si mesmo (que é certamente independente da experiência), pois é certo que podemos dar-lhe inteiramente a priori um objeto, isto é, construí-lo. Mas como isto é apenas a forma do objeto, ele permaneceria sempre apenas um produto da imaginação e a possibilidade do objeto deste produto ficaria duvidosa porque exigiria outra coisa, a saber, que esta figura fosse pensada apenas sob condições sobre as quais repousam todos os objetos da experiência. Ora, é somente porque o espaço é uma condição formal a priori das experiências exteriores que a síntese figurativa, pela qual construímos um triângulo na imaginação, é inteiramente idêntica àquela que exercemos na apreensão de um fenômeno para fazermos disso um conceito de experiência, que nos é possível conectar com este conceito a representação da possibilidade de tal coisa. E assim a possibilidade de quantidades contínuas e mesmo de quantidades em geral, pois que os conceitos disto são todos sintéticos, jamais é clara a partir dos próprios conceitos, mas primeiro a partir deles enquanto condições formais da determinação dos objetos na experiência em geral; e onde mais se poderia pretender procurar objetos que correspondessem aos conceitos senão na experiência, unicamente pela qual nos são dados os objetos? Sem recorrer anteriormente à própria experiência, podemos todavia conhecer e caracterizar a possibilidade das coisas simplesmente com referência às condições formais sob as quais qualquer coisa em geral é determinada como objeto na experiência, por conseguinte inteiramente a priori, mas sempre apenas com referência à mesma e dentro de seus limites. O postulado para conhecer a efetividade das coisas exige percepção, por conseguinte sensação da qual se é consciente, e isto não imediatamente do próprio objeto cuja existência deve ser conhecida, mas sim a interconexão do mesmo com qualquer percepção efetiva segundo as analogias da experiência, as quais expõem toda a conexão real numa experiência em geral. No simples conceito de uma coisa não pode ser encontrado nenhum caráter de sua existência. Com efeito, mesmo que este conceito seja totalmente completo de maneira que não falte nem o mínimo para pensar uma coisa que todas as suas determinações internas, a existência nada tem a ver com tudo isso, mas apenas com a pergunta: se tal coisa nos é dada de maneira que a percepção da mesma possa em todo caso preceder o conceito. Com efeito, o fato do conceito preceder a percepção significa sua simples possibilidade: porém a percepção que fornece a matéria para o conceito é o único caráter da efetividade. Mas também antes da percepção da coisa, por consequência comparativamente a priori, se pode conhecer a existência da mesma quando pelo menos se interconecta com algumas percepções segundo os princípios da conexão empírica das mesmas (as analogias). Pois só então a existência da coisa se interconecta com nossas percepções numa experiência possível e podemos, seguindo o fio condutor daquelas analogias, chegar de nossa percepção da limalha de ferro raiado, conhecemos a existência de uma matéria magnética que pervade todos os corpos, embora uma percepção imediata desta matéria nos seja impossível pela constituição de nossos órgãos. Com efeito, segundo as leis da sensibilidade e segundo o contexto de nossas percepções, numa experiência também tropeçaríamos na intuição imediata empírica da mesma se nossos sentidos fossem mais sutis, mas sua grosseria não diz respeito à forma da experiência em geral. Portanto, aonde alcança a percepção e o que dela depende segundo leis empíricas, até lá chega também nosso conhecimento da existência das coisas. Se não começarmos da experiência ou se não procedermos segundo leis da interconexão empírica dos fenômenos, nos vangloriamos em vão de querer adivinhar ou procurar a existência de qualquer coisa. Mas o idealismo faz uma poderosa objeção a estas regras para provar mediatamente a existência e é naturalmente aqui que se faz necessária a refutação do mesmo. REFUTAÇÃO DO IDEALISMO O idealismo (entendo aqui o material) é a teoria que declara a existência dos objetos no espaço fora de nós ou simplesmente duvidosa e indemonstrável ou falsa e impossível: o primeiro é o idealismo problemático de Descartes, que declara indubitável apenas uma afirmação empírica (assertio), a saber, eu sou; o segundo é o idealismo dogmático de Berkeley que declara o espaço, com todas as coisas às quais adere como condição inseparável, algo impossível em si mesmo e por isso mesmo também considera as coisas no espaço como simples ficções. O idealismo dogmático é inevitável quando se encara o espaço como propriedade que deve ser atribuída às coisas em si mesmas; com efeito, assim junto com tudo ao qual serve de condição ele é um não ser. Mas afastamos o fundamento deste idealismo na estética transcendental. O idealismo problemático, que não afirma nada a respeito disto, mas alega a incapacidade em mediante experiência imediata provar uma existência fora da nossa, é racional e está de acordo com uma maneira filosófica de pensar bastante meticulosa, a saber, não permitir juízo decisivo algum sem que antes tenha sido encontrada uma prova suficiente. A prova exigida tem portanto que pôr à mostra que das coisas externas possuímos também experiência e não só imaginação, o que com certeza não poderá acontecer senão quando pudermos provar que mesmo nossa experiência interna, indubitável para Descartes, só é possível pressupondo uma experiência externa. Teorema A simples consciência, mas empiricamente determinada, de minha própria existência prova a existência de objetos no espaço fora de mim. Prova Estou consciente de minha existência como determinada no tempo. Toda a determinação temporal pressupõe algo permanente na percepção. Mas este permanente não pode ser algo em mim, pois precisamente minha existência no tempo pode ser pela primeira vez determinada por este permanente. Portanto, a percepção deste permanente só é possível por uma coisa fora de mim e não pela mera representação de uma coisa fora de mim. Por consequência, a determinação de minha existência no tempo só é por meio da existência de coisas reais que percebo fora de mim. Ora, a consciência no tempo está necessariamente ligada à consciência da possibilidade desta determinação temporal, logo também está necessariamente ligada à existência das coisas fora de mim como condição da determinação temporal, isto é, a consciência de minha própria existência é simultaneamente uma consciência imediata da existência de outras coisas fora de mim. Observação 1. Na prova precedente, notar-se-á que o jogo do idealismo voltou-se contra ele mesmo com muita razão. Este admitia que a única experiência imediata é a interna e partir dela apenas inferimos coisas externas, mas isto só de maneira incerta como em todos os casos em que a partir de efeitos dados se infere causas determinadas, pois em nós mesmos pode residir a causa das representações que atribuímos, talvez erroneamente, às coisas externas. Só que aqui é provado que a experiência externa é propriamente imediata, (A consciência imediata da existência de coisas externas não é pressuposta, mas provada no presente teorema, quer nos demos conta ou não da possibilidade dessa consciência. A questão acerca desta possibilidade seria de saber se possuímos SÓ um sentido interno, mas nenhum externo, e sim apenas uma imaginação externa. Por outro lado, é claro que para sequer nos imaginarmos algo como externo, isto é, para apresentar este algo ao sentido na intuição, é preciso que já tenhamos um sentido externo e que mediante tal temos que distinguir imediatamente entre a simples receptividade de uma intuição externa e a espontaneidade que caracteriza toda a imaginação. Com efeito, o simples imaginar-se um sentido externo anularia mesmo a faculdade de intuição, a qual deve ser determinada pela capacidade de imaginação. Nota do Autor.) que só por seu intermédio é possível não a consciência de nossa própria existência, mas a determinação da mesma no tempo, isto é, experiência interna. Seguramente a representação eu sou, que expressa a consciência que pode acompanhar todo o pensamento, é o que contém imediatamente em si a existência de um sujeito, mas ainda nenhum conhecimento do mesmo, portanto também não algum empírico, isto é, experiência; com efeito, além do pensamento de algo existente, para isto é necessária intuição e aqui interna no tocante à qual, isto é, ao tempo, tem que ser determinado o sujeito, para o que são perfeitamente exigidos objetos externos de tal maneira que, por consequência, a própria experiência interna só é possível mediante e por meio da externa. Observação 2. Com isto concorda inteiramente todo o uso experimental de nossa faculdade de conhecimento em determinação do tempo. Não só pelo fato de podermos perceber toda a determinação de tempo apenas pela mudança nas relações externas (o movimento) com referência ao permanente no espaço (por exemplo, o movimento do sol com vistas aos objetos da terra) não temos mesmo nada de permanente que pudéssemos pôr como intuição sob o conceito de uma substância a não ser simplesmente a matéria e mesmo esta permanência não é tirada da experiência externa, mas esta permanência é pressuposta a priori como condição necessária de toda a determinação temporal, por conseguinte também como determinação do sentido interno no tocante à nossa própria existência pela existência de coisas externas. A consciência de mim mesmo na representação eu não é uma intuição, mas uma representação meramente intelectual da espontaneidade de um sujeito pensante. Por isso, este eu tampouco tem o mínimo predicado da intuição que, enquanto permanente, pudesse servir de correlato à determinação temporal no sentido interno, tal como a impenetrabilidade serve à matéria enquanto intuição empírica. Observação 3. Do fato de ser exigida a existência de objetos externos para a possibilidade de uma consciência determinada de nós mesmos, não resulta que toda representação intuitiva de coisas externas contenha simultaneamente a existência das mesmas, pois aquela pode muito bem ser o simples efeito da capacidade de imaginação (tanto em sonhos como na loucura); ela o é, porém, apenas pela reprodução de antigas percepções externas que, como foi mostrado, só são possíveis pela realidade de objetos externos. Aqui deveria ter sido apenas provado que a experiência interna em geral só é possível pela experiência externa em geral. Quanto a saber se esta ou aquela pretensa experiência não é simples imaginação, é o que é necessário descobrir segundo suas determinações particulares e pelo seu acordo com os critérios de toda a experiência real. Finalmente, no que concerne ao terceiro postulado, se refere à necessidade material na existência e não à necessidade simplesmente formal e lógica em conexão dos conceitos. Ora, como nenhuma existência dos objetos dos sentidos pode ser conhecida inteiramente a priori, mas sim comparativamente a priori relativamente a outra existência já dada, e como todavia só se pode chegar sempre apenas àquela existência que precisa estar contida em algum lugar no contexto da experiência da qual a percepção dada é uma parte; assim, a necessidade da existência nunca pode ser conhecida a partir de conceitos, mas sempre a partir da conexão com aquilo que é percebido segundo leis universais da experiência. Aqui não há, pois nenhuma existência que pudesse ser conhecida como necessária sob a condição de outros fenômenos dados, a não ser a existência de efeitos a partir de causas dadas segundo leis da causalidade. Podemos, portanto, conhecer a necessidade não da existência das coisas (substâncias), mas de seu estado, e isto a partir de outros estados dados na percepção segundo leis empíricas da causalidade. Daqui se segue que o critério da necessidade está unicamente na lei da experiência possível, que tudo o que acontece é determinado a priori por causa no fenômeno. Assim, conhecemos somente a necessidade dos efeitos na natureza cujas causas nos são dadas, e o sinal da necessidade na existência não alcança além do campo da experiência possível e mesmo neste não vale para a existência das coisas como substâncias, pois nunca podem ser encarados como efeitos empíricos ou algo que acontece e surge. A necessidade refere-se, portanto, apenas às relações dos fenômenos segundo a lei dinâmica da causalidade e à possibilidade nela fundada de a partir e uma dada existência qualquer (de uma causa) inferir a priori uma outra existência (do efeito). Tudo o que acontece é hipoteticamente necessário; este é um princípio que submete a mudança no mundo a uma lei, isto é, a uma regra da existência necessária sem a qual nem mesmo a natureza ocorreria. É por isso que a proposição: nada acontece por cego acaso (in mundo non datur casus), é uma proposição a priori de natureza, da mesma forma que: nenhuma necessidade na natureza é cega, mas condicionada, por conseguinte necessidade inteligível (non datur fatum). Ambas são leis pelas quais o jogo das mudanças é submetido a uma natureza das coisas (como fenômenos) ou, o que é o mesmo, à unidade do entendimento unicamente no qual podem pertencer a uma experiência como à unidade sintética dos fenômenos. Estes dois princípios pertencem aos dinâmicos. O primeiro é propriamente uma consequência do princípio de causalidade (entre as analogias da experiência). O segundo pertence aos princípios da modalidade, que à determinação causal ainda acrescenta o conceito de necessidade, mas que está sob uma regra do entendimento. Na série dos fenômenos (mudanças), o princípio da continuidade proibiu todo o salto (in mundo non datur saltus), mas no conjunto de todas as intuições empíricas no espaço também toda a lacuna ou hiato entre dois fenômenos (non datur hiatus); com efeito, assim se pode expressar a proposição: na experiência não pode entrar nada que demonstre um vacum, nem sequer que o permita como uma parte da síntese empírica. Pois no que diz respeito ao vazio que se pode pensar fora do campo da experiência possível (do mundo), não pertence à jurisdição do simples entendimento, o qual só decide sobre as questões que concernem à utilização de fenômenos dados para o conhecimento empírico, e é uma tarefa para a razão idealista que ainda vai além da esfera de uma experiência possível e quer julgar a respeito do que a circunda e limita; tem, portanto, que ser examinado na dialética transcendental. Segundo sua ordem, estas quatro proposições (in mundo non datur hiatus, non datur saltus, non datur casus, non datur fatum) poderiam ser representadas facilmente, assim como todos os princípios de origem transcendental conforme a ordem das categorias e demonstrar a cada uma sua posição, só que o leitor experimentado fará isto por si só ou descobrirá com facilidade o fio condutor para tal. Estas proposições unem-se unicamente com o intuito de impedir na síntese empírica tudo o que pudesse causar quebra ou dano ao entendimento e à interconexão contínua de todos os fenômenos, isto é, da unidade de seus conceitos. Pois é somente nele que se torna possível a unidade da experiência, na qual todas as percepções precisam ter suas posições. Quanto a saber se o campo de possibilidade é maior que o campo que contém todo o real, e se este por sua vez é maior que a multitude daquilo que é necessário, são questões delicadas de solução sintética, mas que também caem sob a jurisdição da razão; com efeito, querem significar o seguinte: se todas as coisas enquanto fenômenos pertencem todas ao conjunto e ao contexto de uma única experiência da qual cada percepção dada é uma parte, que portanto não pode ser ligada a nenhum outro fenômeno, ou se minhas percepções podem pertencer a mais de uma experiência possível (em sua interconexão universal). O entendimento fornece a priori à experiência em geral apenas a regra segundo as condições subjetivas e formais tanto da sensibilidade como da apercepção, que a tornam unicamente possível. Outras formas da intuição (como espaço e tempo) bem como outras formas do entendimento (como a discursiva do pensamento ou o conhecimento por conceitos), embora possíveis, não podemos de modo algum pensá-las ou torná-las compreensíveis, mas se o pudéssemos não pertenceriam à experiência como único conhecimento no qual objetos nos são dados. Se podem ocorrer outras percepções do que em geral as que pertencem a toda nossa experiência possível, e portanto campo completamente diferente da matéria, isto não pode ser decidido pelo entendimento, ele só tem a ver com a síntese do que é dado. Além disso, salta aos olhos a miséria de nossas conclusões costumeiras pelas quais produzimos um grande reino da possibilidade do qual todo o real (todo o objeto da experiência) é apenas uma pequena parte. Todo o real é possível; segundo as regras lógicas da conversão, disso segue-se naturalmente a proposição meramente particular: alguma coisa possível é real, o que parece significar tanto quanto: muita coisa, que não é real, é possível. Parece, é verdade, que se poderia assim colocar o número do possível além do real, porque algo deve ser acrescentado àquele para constituir este. Só que não conheço esta adição ao possível. Com efeito, o que devesse ser ainda acrescentado além do possível seria impossível. Fora da concordância com as condições formais da experiência, ao meu entendimento pode ser acrescentado somente algo, a saber, a conexão com uma percepção qualquer; mas o que com ela é conectado segundo leis empíricas é real, embora não seja percebido imediatamente. Mas que na interconexão completa com o que me é dado na percepção seja possível outra série de fenômenos, por conseguinte mais que uma experiência única que tudo abarca, é o que não se pode inferir a partir do que é dado e ainda menos sem que qualquer coisa seja dada, pois pode ser pensado em parte alguma sem matéria. O que só é possível sob condições que são elas mesmas meramente possíveis não o é sob todos os pontos de vista. Assim surge uma pergunta quando se quer saber se a possibilidade das coisas se estende além do que a experiência pode alcançar. Mencionei esta pergunta apenas para não deixar nenhuma lacuna naquilo que, segundo a opinião comum, pertence aos conceitos do entendimento. Na verdade, porém, a possibilidade absoluta (válida em todos os sentidos) não é um simples conceito do entendimento e não pode de modo algum ser de uso empírico, mas pertence unicamente à razão que ultrapassa todo o uso empírico possível do entendimento. Assim, temos que nos contentar aqui com uma observação meramente crítica, deixando a coisa na obscuridade até um procedimento futuro satisfatório. Como quero concluir agora este quarto número e com ele ao mesmo tempo o sistema de todos os princípios do entendimento puro, preciso indicar a razão pela qual dominei os princípios da modalidade justamente postulados. Não quero tomar esta expressão no sentido que lhe deram algum autores filosóficos modernos contra o sentido dos matemáticos aos quais pertence na verdade, a saber, que postular deve significar tanto quanto fazer uma proposição passar por imediatamente certa sem justificação nem prova; pois se devemos conceder que proposições sintéticas, por evidentes que sejam, possam sem dedução e sob as vistas de sua própria exigência comportar uma adesão absoluta, toda a crítica do entendimento estaria perdida e, como não há falta de pretensões audazes às quais não se nega nem a fé comum (que não é, porém, carta de fiança), nosso entendimento estará aberto a todas as opiniões sem poder recusar seu assentimento às sentenças que, embora ilegítimas, exigirão ser admitidas exatamente com o mesmo tom de confiança que os axiomas reais. Portanto, quando uma determinação a priori é acrescentada sistematicamente ao conceito de uma coisa, é irremissivelmente necessário juntar a tal proposição senão uma prova, pelo menos uma dedução da legitimidade de sua afirmação. Os princípios da modalidade não são objetivamente sintéticos porque os predicados de possibilidade, efetividade e necessidade não aumentam nem um pouco o conceito do qual são ditos pelo fato de ainda acrescentarem algo à representação do objeto. Mas como são não obstante sempre sintéticos, o são apenas subjetivamente, isto é, ao conceito de uma coisa (real) da qual do contrário nada dizem, juntam a capacidade de conhecimento onde tem a sua origem e seu lugar, de modo que se apenas está em conexão com as condições formais da experiência no entendimento, seu objeto se chama possível; se está em interconexão com a percepção (sensação como matéria dos sentidos) e determinado pela mesma mediante o entendimento, então o objeto é efetivo; se é determinado pela interconexão das percepções segundo conceitos, então o objeto se chama necessário. Portanto, os princípios da modalidade não dizem de um conceito outra coisa senão a ação da faculdade de conhecimento pela qual é produzido. Ora, na Matemática um postulado significa uma proposição prática que contém apenas a síntese pela qual primeiro nos damos um objeto e produzimos seu conceito, por exemplo, a partir de um ponto numa superfície descrever um círculo com uma linha dada, e tal proposição não pode ser provada porque o procedimento que exige é justamente aquele pelo qual produzimos primeiro o conceito de tal figura. De acordo com isto, podemos postular com os mesmos direitos os princípios da modalidade, pois não aumentam (Mediante a efetividade de uma coisa certamente ponho mais do que a possibilidade, mas não na coisa, pois esta jamais pode conter na realidade mais do que estava contido na sua possibilidade completa. No entanto, visto que a possibilidade era simplesmente uma posição da coisa com referência ao entendimento (ao seu uso empírico), a efetivamente é ao mesmo tempo uma conexão da coisa com a percepção. Nota do Autor.) seu conceito das coisas em geral, mas indicam apenas a maneira como é ligado à capacidade de conhecimento. NOTA GERAL ACERCA DO SISTEMA DOS PRINCÍPIOS É algo digno de nota o fato de não podermos perceber nenhuma coisa segundo a simples categoria, mas de precisarmos ter sempre em mãos uma intuição para pôr em evidência a realidade objetiva do conceito puro do entendimento. Tome-se por exemplo as categorias da relação. A partir de simples conceitos não se pode absolutamente compreender: 1) como algo só pode existir como sujeito, não como uma simples determinação de outras coisas, isto é, ser substância; 2) como pelo fato de algo ser outra coisa também tenha que ser, por conseguinte como algo em geral pode ser causa; 3) como, quando diversas coisas existem, do fato de uma delas existir segue-se algo para as restantes e assim reciprocamente, e como deste modo pode realizar-se uma comunidade de substâncias. A mesma coisa vale também para as demais categorias, por exemplo como uma coisa pode ser idêntica a muitas outras, isto é, ser uma quantidade. Enquanto faltar a intuição, não se saberá se se pensa um objeto mediante as categorias e se mesmo um objeto qualquer pode convir-lhes de algum modo, e assim fica comprovado que elas não são por si absolutamente um conhecimento, mas simples formas de pensamento para de intuições dadas formar conhecimentos. - Justamente por isso, a partir de simples categorias também não se pode constituir nenhuma proposição sintética. Por exemplo, em toda a existência há substância, isto é, algo que pode existir somente como sujeito e não como simples predicado; ou cada coisa é um quantum etc., onde nada há que nos pudesse servir para ir além de um conceito dado e conectar outro com ele. Por isso, nunca foi possível provar uma proposição sintética a partir de simples conceitos puros do entendimento, por exemplo a proposição: tudo que existe contingentemente tem uma causa. Não se pôde nunca ir além de provar que, sem esta referência, não concebemos de modo algum a existência do contingente, isto é, não poderíamos conhecer a priori pelo entendimento a existência de tal coisa; daí não se segue, porém que ela seja também a condição da possibilidade das próprias coisas. Assim, se queremos reportar-nos à nossa prova do princípio da causalidade, notaremos que só o pudemos provar para objetos da experiência possível: tudo que acontece (todo evento) pressupõe uma causa e de tal maneira que só o podemos provar como princípio da possibilidade da experiência, por conseguinte do conhecimento de um objeto dado na intuição empírica, e não a partir de simples conceitos. Não obstante, não se pode negar que a proposição: todo o contingente tem que ter uma causa, é claramente evidente a cada um a partir de simples conceitos; mas o conceito de contingente é de tal maneira constituído que contém não a categoria da modalidade (como algo cujo não ser pode ser pensado) mas a da relação (como algo que só pode existir enquanto consequência de outro), e aqui há certamente uma proposição idêntica: o que só pode existir como consequência tem sua causa. De fato, quando devemos dar exemplos da existência contingente servimo-nos sempre de mudanças e não simplesmente da possibilidade do pensamento do contrário: (O não ser da matéria pode ser facilmente pensado, mas os antigos de modo algum inferiram dessa possibilidade a sua contingência. Por si só a alternância entre o ser e o não ser de um estado de uma coisa, em que consiste toda a mudança, não prova absolutamente a contingência deste estado como que a partir da realidade do seu contrário. Por exemplo, o repouso de um corpo que sucede ao movimento não prova ainda a contingência do seu movimento pelo fato do seu repouso ser O contrário do movimento. Com efeito, este contrário é contraposto aqui ao outro apenas logicamente e não realiter. Para provar a contingência do movimento do corpo, ter-se-ia que provar que no instante precedente, em vez de estar em movimento, fosse possível que o corpo estivesse então em repouso, e não que o estivesse posteriormente; neste último caso, efetivamente, ambos os contrários podem muitíssimo bem coexistir. Nota do Autor.) Mudanças, porém, é evento que, enquanto tal, só é possível mediante uma causa: o não ser de tal evento é, portanto, por si possível. Assim se reconhece a contingência pelo fato de que algo só pode existir como efeito de uma causa; se em consequência disso uma coisa é admitida como contingente, então dizer que possui uma causa é uma proposição analítica. Mais digno de nota ainda é o fato de que, para compreender a possibilidade das coisas segundo as categorias e portanto evidenciar a realidade objetiva destas, necessitamos não simplesmente intuições, mas inclusive sempre intuições externas. Se, por exemplo, tomamos os conceitos puros da relação, descobrimos o seguinte: em primeiro lugar, para fornecer na intuição algo permanente que corresponda ao conceito de substância (e para demonstrar através disso a realidade objetiva deste conceito) necessitamos uma intuição no espaço (da matéria) porque unicamente o espaço é permanente, ao passo que o tempo, portanto tudo o que está no sentido interno, flui constantemente. Em segundo lugar, para apresentar a mudança como intuição correspondente ao conceito de causalidade temos que tomar por exemplo o movimento como mudança no espaço, até mesmo unicamente assim podemos tornar intuível para nós as mudanças cuja possibilidade nenhum entendimento puro pode compreender. Mudança é ligação, na existência de uma só e mesma coisa, de determinações opostas contraditoriamente entre si. Ora, o modo como é possível que de um estado dado de uma coisa siga-se o estado contrário da mesma não só nenhuma razão pode tornar compreensível para si mesma sem exemplos, mas nem sequer tornar inteligível sem intuição. Esta intuição é a do movimento de um ponto no espaço cuja existência em diversos lugares (enquanto sucessão de determinações contrapostas) unicamente nos torna primeiro intuível a mudança. Com efeito, para fazer depois com que mesmo mudanças internas se nos tornem pensáveis, temos que tornar concebível figuradamente o tempo como forma do sentido interno mediante uma linha, e a mudança interna mediante o traçar desta linha (movimento), por conseguinte a existência sucessiva de nós mesmos em diversos estados mediante a intuição externa. O verdadeiro fundamento disto é que toda mudança, mesmo para ser percebida meramente enquanto tal, pressupõe algo permanente na intuição, embora no sentido interno não seja encontrada absolutamente nenhuma intuição permanente. - Finalmente, segundo a sua possibilidade a categoria da comunidade não pode absolutamente ser compreendida pela simples razão, e portanto a realidade objetiva desse conceito não pode ser conhecida sem intuição, e, aliás, externa no espaço. Pois como se pode pensar a possibilidade de que, se existem mais substâncias, da existência de uma possa derivar algo (como efeito) para a existência de outra e vice-versa, e que portanto pelo fato de haver algo na primeira também nas outras tem que haver algo que não pode ser entendido unicamente a partir da existência destas? Pois isto é requerido para a comunidade e não é absolutamente compreensível em meio a coisas que se isolam cada uma inteiramente mediante sua subsistência. Por isso Leibniz, ao atribuir uma comunidade às substâncias do mundo, tal como unicamente o entendimento as pensa, precisou da mediação de uma divindade, pois a partir apenas da sua existência elas lhe parecem, com direito, incompreensíveis. Todavia, podemos muito bem nos tornar concebível a possibilidade da comunidade (das substâncias como fenômenos) se a representamos a nós mesmos no espaço, portanto na intuição externa. Com efeito, a priori o espaço contém já em si relações formais externas como condições da possibilidade das relações reais (de ação e reação, portanto da comunidade). - Do mesmo modo, pode ser facilmente demonstrado que a possibilidade das coisas como quantidades, e portanto a realidade objetiva da categoria da quantidade, também só pode ser exposta na intuição externa, e só mediante ela igualmente pode ser aplicada ao sentido interno. No entanto, para não ser prolixo devo deixar os exemplos correspondentes para a reflexão do leitor. Esta inteira observação é de grande importância não só para confirmar nossa precedente refutação do idealismo, mas muito mais ainda, caso se trate do autoconhecimento a partir da simples consciência interna e da determinação de nossa natureza sem a ajuda de intuições sensíveis externas, para nos indicar os limites da possibilidade de tal conhecimento. A última conclusão desta inteira seção é, portanto, a seguinte: todos os princípios do entendimento puro não são senão princípios a priori da possibilidade da experiência, e unicamente a esta se referem também todas as proposições sintéticas a priori, até a sua possibilidade se funda totalmente sobre esta referência. CAPÍTULO TERCEIRO DA DOUTRINA TRANSCENDENTAL DA CAPACIDADE DE JULGAR (OU ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS) DO FUNDAMENTO DA DISTINÇÃO DE TODOS OS OBJETOS EM GERAL EM PHAENOMENA E NOUMENA Agora não somente percorremos o domínio do entendimento puro, examinando cuidadosamente cada parte dele, mas também o medimos e determinamos o lugar de cada coisa nele. Este domínio, porém, é uma ilha fechada pela natureza mesmo dentro de limites imutáveis. É a terra da verdade (um nome sedutor), circundada por um vasto e tempestuoso oceano, que é a verdadeira sede da ilusão, onde nevoeiro espesso e muito gelo, em ponto de liquefazer-se dão a falsa impressão de novas terras e, enquanto enganam com vãs esperanças o navegador errante a procura de novas descobertas, envolvem-no em aventuras, das quais não poderá jamais desistir e tampouco levá-las a termo. Entretanto, antes de arriscarmo-nos a esse mar para explora-lo em toda a sua amplidão, e de assegurarmo-nos se se pode esperar encontrar aí alguma coisa, será útil lançar ainda antes um olhar sobre o mapa da terra que precisamente queremos deixar, para perguntar, primeiro, se não poderíamos porventura contentar-nos com o que ela contém, ou também se não teríamos que contentar-nos com isso por necessidade, no caso em que em parte alguma fosse encontrado um terreno sobre o qual pudéssemos edificar; segundo, sob que título possuímos essa terra e podemos considerar-nos assegurados contra todas as pretensões hostis. Se bem que já respondemos suficientemente a essas questões no curso da Analítica, uma recapitulação sumária das suas soluções pode fortalecer a convicção, enquanto reúne em um ponto os momentos da mesma. Vimos, com efeito, que tudo o que o entendimento tira de si mesmo, sem o tomar emprestado da experiência, não o possui para nenhum outro fim, a não ser unicamente para o uso da experiência. Os princípios do entendimento puro, quer sejam constitutivos a priori (como os matemáticos) quer simplesmente regulativos (como os dinâmicos), não contêm outra coisa senão, por assim dizer, o esquema puro para a experiência possível; esta, com efeito, recebe a sua unidade somente da unidade sintética, que o entendimento confere originária e espontaneamente à síntese da capacidade de imaginação, em relação com a apercepção, e com a qual os fenômenos, enquanto dados para um conhecimento possível, devem já estar a priori em relação e concordância. Se bem que estas regras do entendimento sejam não somente verdadeiras a priori, mas mesmo a fonte de toda a verdade - isto é, da concordância do nosso conhecimento com objetos, em virtude de possuírem o fundamento da possibilidade da experiência, como conjunto de todo o conhecimento, em que possam ser dados objetos - assim não nos parece bastar expor simplesmente o que é verdadeiro, mas também o que se deseja saber. Portanto, se através desta investigação crítica não aprendemos nada mais do que teríamos espontaneamente aplicado no uso simplesmente empírico do entendimento mesmo sem pesquisa tão sutil, então parece que a vantagem tirada dela não mereça a despesa e o aparato. Na verdade, a isso pode-se responder que nenhuma curiosidade é mais prejudicial à ampliação do nosso conhecimento do que aquela que quer saber sempre de antemão a utilidade, antes que alguém se empenhe na investigação e antes ainda que alguém possa formar um conceito mínimo dessa utilidade, mesmo que ela lhe fosse posta diante dos olhos. Há, não obstante, uma vantagem capaz de fazer-se compreensível e ao mesmo tempo atraente, inclusive para o aprendiz mais lento e obstinado de tal investigação transcendental, a saber, que o entendimento que se ocupa unicamente com o seu uso empírico e não reflete sobre as fontes do seu próprio conhecimento pode muito bem progredir, mas uma coisa não pode absolutamente realizar, ou seja, determinar para si mesmo os limites do seu uso e saber o que pode situar-se dentro ou fora de sua esfera total. Para isso, com efeito, são requeridas justamente as profundas investigações que estabelecemos. Se o entendimento não pode, porém, distinguir se determinadas questões encontram-se ou não em seu horizonte, então ele jamais está seguro das suas pretensões e da sua posse, mas deve somente esperar para si reiteradas e humilhantes repreensões, se ultrapassa incessantemente os limites de sua área (como é inevitável) e perde-se em ilusões e quimeras. Portanto, a proposição que o entendimento só pode fazer dos seus princípios a priori ou de todos os seus conceitos um uso empírico e jamais um uso transcendental, quando pode ser conhecida com convicção conduz a importantes consequências. O uso transcendental de um conceito, em qualquer princípio, consiste no fato de ser referido a coisas em geral e em si mesmas; o uso empírico, porém, consiste em ser referido meramente a fenômenos, isto é, a objetos de uma experiência possível. Que, em todo caso, apenas o último possa ocorrer, vê-se do que se segue. Para todo conceito requer-se, em primeiro lugar, a forma lógica, de um conceito (do pensamento) em geral e, em segundo lugar, também a possibilidade de dar-lhe um objeto ao qual se refira. Sem esse objeto, o conceito não possui nenhum sentido e é inteiramente vazio de conteúdo, se bem que possa sempre conter a função lógica de fazer de eventuais dados um conceito. Ora, o objeto não pode ser dado a um conceito de outro modo a não ser na intuição, e embora uma intuição pura seja possível a priori ainda antes do objeto, ela mesma também só pode obter o seu objeto, por conseguinte a validez objetiva, mediante a intuição empírica, da qual é a simples forma. Portanto, todos os conceitos, e com eles todos os princípios - não obstante possam também ser possíveis a priori - referem-se a intuições empíricas, isto é, a dados para a experiência possível, Sem isso, não possuem absolutamente nenhuma validez objetiva, mas são um simples jogo, seja da capacidade de imaginação, seja do entendimento, com as suas respectivas representações. Tomem-se como exemplo apenas os conceitos da Matemática e, na verdade, em primeiro lugar, nas suas intuições puras. O espaço tem três dimensões, entre dois pontos pode haver só uma linha reta etc. Se bem que todos estes princípios, e a representação do objeto com o qual aquela ciência se ocupa, sejam produzidos inteiramente a priori na mente, não significariam absolutamente nada se não pudéssemos sempre mostrar a sua significação nos fenômenos (objetos empíricos). Por isso se requer também tornar sensível um conceito abstrato, isto é, mostrar na intuição o objeto correspondente a ele, porque, sem isso, o conceito permaneceria (como se diz) privado de sentido, isto é, de significação. A Matemática preenche este requisito pela construção da figura, que é um fenômeno presente nos sentidos (se bem que, na verdade, realizado de modo a priori). Na mesma ciência, o conceito de magnitude procura seu apoio e sentido no número, este, porém, nos dedos, nos corais das tábuas de calcular ou nos traços e pontos postos diante dos olhos. O conceito permanece sempre produzido a priori, em conjunto com todos os princípios sintéticos ou todas as fórmulas produzidas a partir de tais conceitos: mas o seu uso e a sua relação com eventuais objetos não podem, enfim, ser procurados em nenhum outro lugar a não ser na experiência, cuja possibilidade (segundo a forma) aqueles conceitos contêm a priori. Que este seja também o caso de todas as categorias e dos princípios derivados delas, torna-se claro pelo seguinte. Não podemos definir de modo real nenhuma categoria, isto é, tornar compreensível a possibilidade de seu objeto sem descer imediatamente às condições da sensibilidade, por conseguinte à forma dos fenômenos, aos quais, como seus únicos objetos, elas devem consequentemente limitar-se, porque se esta condição é eliminada, desaparece toda significação, isto é, a relação com o objeto, e mediante nenhum exemplo podemos compreender que espécie de coisa é propriamente entendida com tais conceitos. Ninguém pode explicar o conceito de magnitude em geral, senão aproximadamente da seguinte maneira: ela é a determinação de uma coisa, pela qual se pode pensar quantas vezes a unidade é posta nela. Este "quantas vezes", entretanto, funda-se sobre a repetição sucessiva, por conseguinte sobre tempo, e a síntese (do homogêneo) nela. A realidade, em oposição à negação, só pode ser esclarecida se se pensa um tempo (como o conjunto de todo o ser), que seja ou pleno de ser ou vazio. Se deixo de lado a permanência (que é uma existência em todo o tempo), não me resta para o conceito de substância senão a representação lógica do sujeito, a qual suponho realizar, enquanto me represento algo que pode ter lugar simplesmente como sujeito (sem ser predicado de qualquer coisa). Todavia, eu não somente não conheço absolutamente as condições sob as quais esta prerrogativa lógica seja própria a qualquer coisa, mas, além disso, não posso fazer nada com ela e não posso tirar dela a menor consequência, porque deste modo não é determinado absolutamente nenhum objeto para uso desse conceito, e, portanto, não se sabe sequer, se ele significa alguma coisa. Do conceito de causa (se deixo de lado o tempo, no qual alguma coisa sucede a outra segundo uma regra) não encontrarei na categoria nada a não ser que se trata de algo a partir do qual se pode concluir a existência de outra coisa; deste modo não somente será impossível distinguir causa e efeito entre si, mas, visto que esta capacidade de concluir requer sem dúvida condições das quais nada sei, assim o conceito não terá determinação alguma de como possa adaptar-se ao objeto. O pretenso princípio, de que todo o contingente tem uma causa, apresenta-se, na verdade, bastante solene, como se tivesse em si a sua própria dignidade. Entretanto, pergunto: que entendeis por contingente? E respondeis: aquilo cujo não ser é possível. Assim eu gostaria de saber em que quereis reconhecer esta possibilidade do não ser, se não vos representais, na série dos fenômenos, uma sucessão, e nesta uma existência, que suceda ao não ser (ou inversamente), por conseguinte, se não vos representais uma variação. Com efeito, que o não ser de uma coisa não se contradiga a si mesmo, é um apelo viciado a uma condição lógica que, na verdade, é necessária para o conceito, mas não é nem de longe suficiente para a possibilidade real; do mesmo modo posso eliminar em pensamento toda substância existente sem contradizer-me a mim próprio, mas nem por isso de modo algum concluir a contingência objetiva da sua existência, isto é, a possibilidade do seu não ser em si mesmo. Com respeito ao conceito de comunidade, pode-se facilmente afirmar que, visto que as categorias puras, seja de substância seja de causalidade, não admitem nenhuma explicação determinante do objeto, tampouco pode admiti-la a causalidade recíproca das substâncias entre si (commercium). Sempre que se quis extrair a definição de possibilidade, existência e necessidade unicamente do entendimento puro, ninguém pôde explicá-las de outro modo a não ser mediante uma evidente tautologia. Com efeito, a ilusão de tomar a possibilidade lógica do conceito (já que ele não se contradiz a si mesmo) pela possibilidade transcendental das coisas (já que ao conceito corresponde um objeto), pode enganar e contentar somente pessoas inexperientes. (Numa palavra todos esses conceitos não podem ser documentados, e assim não podem demonstrar a sua possibilidade real se é eliminada toda a intuição sensível (a única que possuímos); e com isso só nos resta ainda a possibilidade lógica, isto é, que o conceito (pensamento) é possível, mas não é disto que se fala, mas sim se o conceito se refere a um objeto e se portanto significa alguma coisa. Nota do Autor.) Ora, disso decorre incontestavelmente que os conceitos puros do entendimento jamais poderão ter um uso transcendental, mas sempre e somente um uso empírico, e que os princípios do entendimento puro somente em relação com as condições universais de uma experiência possível podem referir-se a objetos dos sentidos, jamais a coisas em si mesmas (sem tomar em consideração o modo como possamos intuí-las). A Analítica Transcendental possui, pois, este importante resultado, a saber, que o entendimento a priori jamais pode fazer mais do que antecipar a forma de uma experiência possível em geral e, visto que o que não é fenômeno não pode ser objeto algum da experiência, que o entendimento não pode jamais ultrapassar os limites da sensibilidade, dentro dos quais unicamente podem ser-nos dados objetos. As suas proposições fundamentais são meramente princípios da exposição dos fenômenos, devendo o soberbo nome de ontologia - a qual se arroga o direito de fornecer em uma doutrina sistemática conhecimentos sintéticos sobre coisas em geral (por exemplo, o princípio de causalidade) - ceder lugar ao modesto nome de uma simples analítica do entendimento puro. O pensamento é a ação de referir uma intuição dada a um objeto. Se o modo desta intuição não é dado de maneira alguma, o objeto é simplesmente transcendental e o conceito do entendimento não possui nenhum outro uso além do transcendental, ou seja a unidade do pensamento de um múltiplo em geral. Ora, mediante uma categoria pura - na qual se abstrai de toda a condição da intuição sensível, como a única possível a nós - não é, portanto, determinado um objeto, mas somente expresso em vários modi o pensamento de um objeto em geral. Ora, o uso de um conceito requer ainda uma função da capacidade de julgar, pela qual um objeto é sob ela subsumido, por conseguinte, a condição pelo menos formal sob a qual algo pode ser dado na intuição. Se falta esta condição da capacidade de julgar (esquema), então fica suprimida toda a subsunção, pois nada que não possa ser subsumido sob o conceito é dado. Logo, o uso meramente transcendental das categorias não é na realidade uso algum e não possui um objeto determinado e nem mesmo determinável segundo a forma. Disso segue-se que a categoria pura não basta sequer para um princípio sintético a priori e que os princípios do entendimento puro possuem somente um uso empírico e jamais em uso transcendental, não podendo dar-se de modo algum além do campo da experiência possível, um princípio sintético a priori. Por isso pode ser aconselhável expressar-se da seguinte maneira: as categorias puras sem as condições formais da sensibilidade possuem uma significação meramente transcendental, mas nenhum uso transcendental, porque este é em si mesmo impossível, enquanto faltam às categorias todas as condições para qualquer uso (nos juízos), a saber, as condições formais para a subsunção de qualquer eventual objeto sob esses conceitos. Visto, pois, que elas (enquanto categorias simplesmente puras) não devem possuir nenhum uso empírico e não podem possuir nenhum uso transcendental, assim não possuem elas absolutamente nenhum uso, quando são separadas de toda a sensibilidade, isto é, não podem absolutamente ser aplicadas a nenhum eventual objeto; tais categorias são, muito antes, meramente a forma pura do uso do entendimento com respeito aos objetos em geral e ao pensamento. As categorias mediante tal forma apenas não podem pensar ou determinar qualquer objeto. Entretanto, encontra-se aqui a fundamento uma ilusão dificilmente evitável. As categorias, segundo a sua origem, não se fundam sobre a sensibilidade como as formas da intuição espaço e tempo, parecendo, portanto, admitirem uma aplicação ampliada para além de todos os objetos dos sentidos. Não obstante, elas não passam, por sua vez, de simples formas de pensamento, que possuem apenas a faculdade lógica de reunir em uma consciência a priori o dado múltiplo na intuição. Em tal faculdade, se lhes é tirada a única intuição possível a nós, possuem elas uma significação menor ainda do que aquelas formas sensíveis puras, pelas quais pelo menos é dado um objeto. Se ao modo de conjunção do múltiplo peculiar ao nosso entendimento não for acrescida aquela intuição em que o múltiplo unicamente pode ser dado, ela não significa absolutamente nada. - Todavia, já está no nosso conceito que - quando denominamos certos objetos, como fenômenos, de entes dos sentidos (phaenomena), distinguindo o nosso modo de intuí-los de sua natureza em si - contrapomos a estes entes dos sentidos quer os mesmos objetos em sua natureza em si (conquanto nela não os intuamos), quer outras coisas possíveis que não sejam objetos do nosso sentido (enquanto objetos pensados apenas pelo entendimento) chamando-os entes do pensamento (noumena). Ora, pergunta-se se os nossos conceitos puros do entendimento não possuem nenhuma significação com respeito a estes entes do entendimento e se não poderiam construir um modo de conhecimento dos mesmos. Porém logo de início mostra-se aqui uma ambiguidade, que pode dar ensejo a um grande mal-entendido, a saber: visto que o entendimento, quando em uma relação denomina um objeto de fenômeno, forma-se ao mesmo tempo, fora dessa relação, ainda uma representação de um objeto em si mesmo, e por isso se representa que possa formar-se conceitos de tais objetos; e, visto que o entendimento não fornece senão a categoria, o objeto nesta última significação deve pelo menos poder ser pensado mediante estes conceitos puros do entendimento. Através disso, contudo, é seduzido a tomar o conceito totalmente indeterminado de um ente do entendimento - enquanto um algo em geral fora da nossa sensibilidade - por um conceito determinado de um ente, que poderíamos conhecer de algum modo pelo entendimento. Se por noumenon entendemos uma coisa enquanto não é objeto de nossa intuição sensível, na medida em que abstraímos do nosso modo de intuição dela, então se trata de um noumenon em sentido negativo. Se, todavia, entendemos por ele um objeto de uma intuição não sensível, então admitimos um modo peculiar de intuição, a saber, a intelectual, que, porém, não é a nossa e da qual tampouco podemos entrever a possibilidade. Este seria o noumenon em significação positiva. Ora, a doutrina da sensibilidade é ao mesmo tempo a doutrina dos noumena em sentido negativo, isto é, de coisas que o entendimento deve pensar sem esta relação com o nosso modo de intuição, por conseguinte, não simplesmente como fenômenos, mas como coisas em si mesmas. Com esta separação, porém, o entendimento, ao mesmo tempo compreende, com respeito a tais coisas - neste modo de considerá-las - que não pode fazer nenhum uso das suas categorias, porque estas possuem significação somente em relação com a unidade das intuições no espaço e no tempo, podendo também determinar a priori esta unidade, mediante conceitos universais de conjunção, somente em virtude da simples idealidade do espaço e do tempo. Onde não puder ser encontrada esta unidade de tempo, por conseguinte no noumenon, cessa inteiramente todo o uso, antes, mesmo toda a significação das categorias, pois nem mesmo se pode entrever de modo algum a possibilidade das coisas que devem corresponder às categorias. Por esta razão só posso reportar-me ao que disse logo de início na observação geral ao capítulo anterior. Ora, a possibilidade de uma coisa não pode jamais ser provada a partir da não contradição de um conceito, mas somente e enquanto este é documentado mediante uma intuição que lhe corresponda. Portanto, se quiséssemos aplicar as categorias a objetos não considerados como fenômenos, deveríamos pôr a fundamento outra intuição em vez da sensível, e então seria o objeto um noumenon em significação positiva. Ora, visto que tal intuição, a saber, a intelectual, encontra-se simplesmente fora do nosso poder de conhecimento, não pode também o uso das categorias de modo algum estender-se para além dos limites dos objetos da experiência. Aos entes dos sentidos, na verdade, correspondem certamente entes do entendimento; mas, mesmo que haja entes do entendimento, com os quais o nosso poder sensível de intuição não possui absolutamente nenhuma relação, os nossos conceitos do entendimento, enquanto simples formas do pensamento para a nossa intuição sensível, não se estendem minimamente para além desta. O que, portanto, é por nós denominado noumenon, deve ser entendido, enquanto tal, somente em significação negativa. Se elimino de um conhecimento empírico todo o pensamento (mediante categorias), não resta simplesmente nenhum conhecimento de qualquer objeto, pois mediante a mera intuição não é pensado absolutamente nada, e o fato de esta modificação da sensibilidade estar em mim não constitui nenhuma relação de uma representação de tal espécie com qualquer objeto. Se, ao contrário, deixo de lado toda a intuição, permanece ainda apesar disso a forma do pensamento, isto é, o modo de determinar um objeto para o múltiplo de uma intuição possível. Por isso as categorias de certa maneira estendem-se mais além da intuição sensível, porque pensam objetos em geral, sem considerar ainda o modo particular (da sensibilidade) em que estes possam ser dados. Todavia, elas não determinam com isso uma esfera maior de objetos, pois não se pode admitir que tais objetos possam ser dados, sem pressupor a possibilidade de um outro modo de intuição além do sensível, para o que não somos de maneira alguma autorizados. Denomino problemático um conceito que não contenha nenhuma contradição e que além disso - como uma limitação de conceitos dados - ligue-se a outros conhecimentos, cuja realidade objetiva, porém, não possa de modo algum ser conhecida. O conceito de um noumenon, isto é, de uma coisa que não deve absolutamente ser pensada como objeto dos sentidos, mas como coisa em si mesma (unicamente por um entendimento puro), não é de modo algum contraditório, pois não se pode afirmar que a sensibilidade seja o único modo possível de intuição. Tal conceito é, além disso, necessário para não estender a intuição sensível até as coisas em si mesmas e, portanto, para restringir a validez objetiva do conhecimento sensível (pois as demais coisas, que a intuição sensível não alcança, são denominadas noumena, para com isso indicar que aqueles conhecimentos não podem estender a sua região a tudo o que o entendimento pensa). Em conclusão, porém, não se pode absolutamente entrever a possibilidade de tais noumena, e o âmbito além da esfera dos fenômenos é (para nós) vazio, isto é, nós possuímos um entendimento que se estende problematicamente para além daquela esfera, mas não possuímos nenhuma intuição, antes, nem sequer o conceito de uma possível intuição, pela qual nos sejam dados objetos fora do campo da sensibilidade e o entendimento possa ser utilizado assertoriamente para além desta. Portanto, o conceito de um noumenon é simplesmente um conceito limite para restringir a pretensão da sensibilidade, sendo portanto de uso meramente negativo. Tal conceito não é, entretanto, inventado arbitrariamente, mas se conecta com a restrição da sensibilidade, sem contudo poder colocar algo positivo fora do âmbito da mesma. Em significação positiva, portanto, a divisão dos objetos em phaenomena e noumena, e do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não pode absolutamente ser admitida, se bem que uma divisão dos conceitos em conceitos sensíveis e conceitos intelectuais possa sê-lo. Com respeito aos conceitos intelectuais, efetivamente, não se pode determinar nenhum objeto e, portanto, tampouco fazê-los passar por objetivamente válidos. Se se prescinde dos sentidos, como se pode querer tornar compreensível que as nossas categorias (que seriam os únicos conceitos a permanecer para os noumena) tenham ainda de algum modo uma significação, já que para a sua relação com um objeto qualquer deve ser dado ainda algo mais do que a simples unidade do pensamento, a saber uma intuição possível, à qual aquelas possam ser aplicadas? Não obstante, o conceito de noumenon, tomado em sentido meramente problemático, permanece não somente admissível, mas mesmo inevitável enquanto conceito que põe limites à sensibilidade. Deste modo, porém, não é ele um peculiar objeto inteligível para o nosso entendimento; mas um entendimento que o possuísse como tal seria mesmo um problema, ou seja um poder de conhecer - não discursivamente mediante categorias, mas intuitivamente em uma intuição não sensível - o seu objeto, de cuja possibilidade, contudo, não poderíamos formar-nos a mínima representação. Ora, o nosso entendimento obtém deste modo uma ampliação negativa, isto é, ele não é limitado pela sensibilidade, mas, antes, a limita, enquanto denomina noumena as coisas em si mesmas (não consideradas como fenômenos). Mas ele põe imediatamente limites a si mesmo, que lhe impedem de conhecer os noumena mediante qualquer categoria e, por conseguinte, de pensá-las sob o simples nome de um algo desconhecido. Nos escritos dos modernos encontro, todavia, um uso diferente das expressões mundus sensibilis e mundus inieligibilis, (Em vez dessa expressão, não se tem que usar a de um mundo intelectual, como geralmente se costuma fazer na língua alemã, pois só os conhecimentos são intelectuais ou sensíveis. O que em vez pode ser apenas um objeto (Gegenstand) de um ou de outro modo de intuição, portanto os objetos (Objekte), tem que se denominar (malgrado a dureza do som) inteligível ou sensível. Nota do Autor.) que se afasta completamente do sentido dos antigos. Nisso não se encontra seguramente nenhuma dificuldade, mas também nada mais do que uma vazia verbosidade. Segundo tal uso, aprouve a alguns denominar o conjunto dos fenômenos, enquanto é intuído, mundo dos sentidos, enquanto, porém a sua conexão é pensada segundo leis universais do entendimento, mundo do entendimento. A astronomia teórica, que expõe a simples observação do céu estrelado, tornaria representável o primeiro desses mundos; a astronomia contemplativa (explicada segundo o sistema do mundo de Copérnico ou simplesmente segundo as leis de gravitação de Newton), ao contrário, tornaria representável o segundo deles, a saber, um mundo inteligível. Mas tal deturpação de palavras é um mero subterfúgio sofístico para esquivar-se de uma questão incômoda, desvalorizando-lhe o sentido para a sua própria comodidade. Entendimento e razão podem com certeza ser usados com respeito aos fenômenos; pergunta-se, todavia, se eles possuem ainda algum uso, quando o objeto não é fenômeno (e sim noumenon), e neste sentido ele é tomado, quando é pensado em si mesmo como meramente inteligível, isto é, como dado unicamente ao entendimento e de modo algum aos sentidos. Trata-se, portanto, da questão, se além daquele uso empírico do entendimento (mesmo na representação newtoniana da estrutura do mundo) seja ainda possível um uso transcendental, que se refira ao noumenon como um objeto. A esta questão respondemos negativamente. Se, pois, dizemos: os sentidos representam-nos os objetos como aparecem, o entendimento, porém, como são, a última expressão deve ser tomada não em sentido transcendental, mas simplesmente empírico, a saber, como eles, enquanto objetos da experiência têm que ser representados na conexão universal dos fenômenos, e não como possam ser fora da relação com a experiência possível e, consequentemente, com os sentidos em geral, logo, enquanto objetos do entendimento puro. Isto, com efeito, nos permanecerá sempre desconhecido, pelo menos como um conhecimento que se submete às nossas categorias habituais, permanece até desconhecido se tal conhecimento transcendental (excepcional) é em geral possível. Somente ligados entendimento e sensibilidade podem determinar objetos em nós. Se os separamos, possuímos intuições sem conceitos ou conceitos sem intuições, em ambos os casos, porém, representações que não podem referir-se a nenhum objeto determinado. Se após todos estes esclarecimentos alguém ainda hesitar em renunciar ao uso meramente transcendental das categorias, então faça com elas uma tentativa em qualquer afirmação sintética. Com efeito, uma proposição analítica não faz o entendimento progredir, e, já que ele está ocupado somente com o que já é pensado no conceito, deixa irresolvido se o conceito possui em si mesmo relação com objetos ou se significa apenas a unidade do pensamento em geral (a qual abstrai inteiramente do modo como um objeto possa ser dado). Ao entendimento basta saber o que se encontra em seu conceito, sendo-lhe indiferente a que o conceito mesmo possa referir-se. Tente, portanto, com algum princípio sintético e pretensamente transcendental, como: tudo o que existe, existe como substância ou como uma determinação inerente a ela; todo o contingente existe, como efeito de outra coisa, a saber, de sua causa etc. Ora, eu pergunto: donde quer ele tirar essas proposições sintéticas, uma vez que os conceitos devem valer não para a experiência possível, mas para coisas em si mesmas (noumena)? Onde está aqui o terceiro termo, requerido sempre para uma proposição sintética, com o fim de conectar entre si conceitos que não possuem absolutamente nenhum parentesco lógico (analítico)? Ele jamais provará sua proposição, e mais não poderá uma única vez justificar para si a possibilidade de tal afirmação pura, sem tomar em consideração o uso empírico do entendimento, e deste modo renunciar inteiramente ao juízo puro e independente dos sentidos. Assim, pois, o conceito de objetos puros e meramente inteligíveis é totalmente vazio de todos os princípios de sua aplicação, pois não se pode imaginar nenhum modo como devessem ser dados e o pensamento problemático que não obstante deixa um lugar aberto para tais objetos, serve somente como um espaço vazio para limitar os princípios empíricos, sem todavia conter em si e indicar qualquer outro objeto do conhecimento fora da esfera das últimas proposições. APÊNDICE Da anfibologia dos conceitos de reflexão através da confusão do uso empírico do entendimento com o uso transcendental A reflexão (reflexio) não tem nada a ver com objetos mesmos, para obter diretamente conceitos deles, mas é o estado da mente em que nos dispomos inicialmente a descobrir condições subjetivas sob as quais podemos chegar a conceitos. É a consciência da relação de representações dadas às nossas diversas fontes de conhecimento, mediante a qual unicamente pode ser determinada corretamente a sua relação entre si. Antes de todo o posterior tratamento das nossas representações, a primeira pergunta é a seguinte: a que poder de conhecimento pertencem todas elas em conjunto? Aquilo, ante o qual elas são conectadas ou comparadas, é o entendimento ou são os sentidos? Vários juízos são admitidos pelo hábito ou ligados por inclinação; visto, porém, que esses juízos não são precedidos por nenhuma reflexão ou pelo menos não seguem criticamente a ela, devem ser considerados como tendo obtido a sua origem no entendimento. Nem todos os juízos necessitam uma investigação, isto é, uma atenção sobre os fundamentos da verdade, pois, se são imediatamente certos - por exemplo, entre dois pontos pode haver somente uma linha reta - não pode ser indicada a seu respeito nenhuma característica mais imediata da verdade além da que eles mesmos expressam. Entretanto, todos os juízos, antes, todas as comparações necessitam uma reflexão, isto é, uma distinção da capacidade de conhecimento à qual pertençam os conceitos dados. O ato pelo qual aproximo a comparação das representações em geral com a capacidade de conhecimento, em que aquele é instituído, e pelo qual distingo se tais representações são comparadas entre si como pertencentes ao entendimento puro ou à intuição sensível, denomino-o reflexão transcendental. A relação, porém, na qual os conceitos podem co-pertencer-se em um estado da mente é a da identidade e diversidade, da concordância e oposição, do interno e externo, e finalmente do determinável e da determinação (matéria e forma). A correta determinação dessa relação depende de saber em que capacidade de conhecimento - na sensibilidade ou no entendimento - os conceitos pertencem subjetivamente uns aos outros. Com efeito, a diferença entre entendimento e sensibilidade constitui uma grande diferença no modo como se deva pensar tais conceitos. Antes de todos os juízos objetivos, comparamos os conceitos para chegar à identidade (de muitas representações sob um conceito) com vista aos juízos universais, ou à diversidade de tais representações para a produção de juízos particulares; à concordância, da qual podem formar-se juízos afirmativos, e à oposição, da qual podem formar-se juízos negativos etc. Por esta razão deveríamos, como parece, denominar conceitos comparativos (conceptus comparationis) os conceitos indicados. Todavia, visto que, quando se trata não da forma lógica, mas do conteúdo dos conceitos - isto é, se as coisas mesmas são idênticas ou diversas, concordantes ou opostas etc. -, as coisas podem ter uma dupla relação com a nossa capacidade de conhecimento, a saber, com a sensibilidade e o entendimento. E visto que, por outro lado, o modo como devem pertencer umas às outras depende desta posição, assim a reflexão transcendental - isto é, a relação das representações dadas como um ou outro modo de conhecimento - poderá unicamente determinar a relação recíproca de tais representações. Se as coisas, além disso, são idênticas ou diversas, concordantes ou opostas etc., não poderá ser estabelecido imediatamente a partir dos conceitos mesmos, mediante simples comparação (compara tio), mas antes de tudo pela distinção do modo de conhecimento ao qual pertencem e mediante uma reflexão (reflexio) transcendental. Portanto, se poderia, em verdade, dizer que a reflexão lógica seja uma simples comparação, pois nela se abstrai totalmente da capacidade de conhecimento à qual pertencem as representações dadas. Estas, em virtude da sua sede na mente, devem ser tratadas como homogêneas. A reflexão transcendental (que se refere aos objetos mesmos) contém, entretanto, o fundamento da possibilidade da comparação objetiva das representações entre si, sendo muito diversa da anterior, porque a capacidade de conhecimento, à qual as representações pertencem, não é precisamente a mesma. Esta reflexão transcendental é um dever, do qual ninguém pode dispensar-se se quiser julgar a priori sobre as coisas. Queremos agora tratar dela e extrairemos disso não pouca luz para a determinação da verdadeira tarefa do entendimento. 1. Identidade e diversidade. Se um objeto nos é apresentado diversas vezes, cada vez, porém, com as mesmas determinações internas (qualitas et quantitas), então ele - se vale como objeto do entendimento puro - é sempre e precisamente o mesmo, e não muitas coisas, mas uma única só (numerica identitas); se ele porém, é fenômeno, então não se trata absolutamente de comparação de conceitos, mas, seja quão idêntico possa tudo ser com vista a esses conceitos, é a diversidade de lugares deste fenômeno um fundamento suficiente da diversidade numérica do próprio objeto (dos sentidos). Assim, com respeito a duas gotas d'água, pode-se abstrair inteiramente de toda a sua diversidade interna (da qualidade e quantidade) e basta que sejam ao mesmo tempo intuídas em lugares diversos, para as considerar numericamente diversas. Leibniz tomou os fenômenos por coisas em si mesmas, por conseguinte, por intelligibilia, isto é, objetos do entendimento puro (embora as designasse por fenômenos, por causa da confusão das suas representações), e assim o seu princípio da indiscernibilidade (principium identitatis indescernibilium) não podia certamente ser contestado. Visto, porém, que os fenômenos são objetos da sensibilidade e que o entendimento não pode ter com respeito a eles um uso puro, mas simplesmente empírico, assim a pluralidade e diversidade numérica são já indicadas pelo espaço mesmo, enquanto condição dos fenômenos externos. Com efeito, uma parte do espaço, se bem que em verdade possa ser inteiramente semelhante e igual à outra parte, é todavia fora dela justamente por isso uma parte diferente da primeira, à qual é acrescentada para constituir um espaço maior, devendo isto valer com respeito a tudo o que é simultâneo nos vários pontos do espaço, seja quão semelhante e igual possa ser sob outro aspecto. 2. Concordância e oposição. Se a realidade é representada somente pelo entendimento puro (realitas noumenon), não se pode pensar nenhuma oposição entre as realidades, isto é, uma relação em que cada uma das realidades conjuntas em um sujeito suprima o efeito da outra, e tenha-se 3 - 3 = 0. Ao contrário, o real no fenômeno (realitas phaenomenon) pode certamente conter oposições e, reunida no mesmo sujeito, pode uma realidade anular total ou parcialmente o efeito da outra, como duas forças motoras sobre a mesma linha reta, enquanto puxam ou impelem um ponto em direção contrária, ou também como um prazer contrabalança a dor. 3. Interno e externo. Num objeto do entendimento puro é interno somente o que não possui absolutamente nenhuma relação (segundo a existência) com qualquer coisa diversa dele. Ao contrário, as determinações internas de uma substância phaenomenon no espaço não são senão relações, e ela mesma é um complexo de simples relações. Conhecemos a substância no espaço somente mediante forças que atuam nele, quer atraindo outras para ele (atração), quer impedindo-as de penetrar nele (repulsão e impenetrabilidade); não conhecemos outras propriedades constituintes do conceito de substância, que aparece no espaço e denominamos matéria. Como objeto do entendimento puro, toda substância deve, ao contrário, possuir determinações internas e forças, que se refiram à realidade interna. Entretanto, que acidentes internos posso pensar em mim, além dos que o meu sentido interno me oferece, a saber, o que é pensamento ou o que é análogo a ele? Por isso Leibniz, pelo fato de representar-se todas as substâncias como noumena, fez de todas elas - mesmo dos elementos da matéria, depois de ter-lhes tirado em pensamento tudo o que pudesse significar relação externa, por conseguinte também a composição - sujeitos simples dotados de capacidade representativa, em uma palavra, mônadas. 4. Matéria e forma. Trata-se de dois conceitos postos a fundamento de toda a outra reflexão, seja quão inseparavelmente conjungidos estejam com todo o uso do entendimento. O primeiro significa o determinável em geral, o segundo a sua determinação (ambos em sentido transcendental, já que se abstrai de toda a diferença do que é dado e do modo como é determinado). Os lógicos denominaram antigamente matéria o universal e forma a diferença específica. Em todo juízo, podem-se denominar matéria lógica (para o juízo) os conceitos dados, e forma do juízo a relação dos conceitos (mediante a cópula). Em todo ente, os seus elementos (essentialia) constituem a matéria; e o modo como esses elementos são conectados em uma coisa constitui a forma essencial. Com respeito às coisas em geral, considerou-se ainda a realidade ilimitada como a matéria de toda a possibilidade, e a limitação de tal realidade (negação) como a sua forma pela qual uma coisa distingue-se de outras segundo conceitos transcendentais. O entendimento, na verdade, exige antes de tudo que algo seja dado (pelo menos em conceitos), para poder determina-lo de certa maneira. No conceito do entendimento puro, em consequência, a matéria precede a forma; em vista disso admitiu Leibniz primeiro coisas (mônadas), e internamente uma capacidade representativa das coisas, para a seguir fundar sobre isso a relação externa delas e a comunidade dos seus estados (a saber, das representações). Por isso espaço e tempo eram possíveis, aquele somente mediante a relação das substâncias, este mediante a conexão das determinações delas entre si como fundamentos e consequências. Assim teria que ser, de fato se o entendimento puro pudesse referir-se imediatamente a objetos e se espaço e tempo fossem determinações das coisas em si mesmas. Se, porém, são somente intuições sensíveis, nas quais determinamos todos os objetos meramente como fenômenos, então a forma da intuição (enquanto disposição subjetiva da sensibilidade) precede toda a matéria (as sensações), por conseguinte, espaço e tempo precedem todos os fenômenos e todos os dados da experiência e, antes, tornam esta pela primeira vez possível. O filósofo intelectualista não podia admitir que a forma devesse preceder as próprias coisas e determinar a sua possibilidade; tal censura era totalmente justa, ao admitir que intuímos as coisas (se bem que com representação confusa). Todavia, visto que a intuição sensível é uma condição subjetiva totalmente peculiar que se encontra a priori a fundamento de toda a percepção, e cuja forma é originária, assim a forma é dada por si só, e a matéria (ou as coisas mesmas que aparecem) encontra-se tão longe de constituir o fundamento (como se deveria julgar segundo simples conceitos), que a sua possibilidade, antes, pressupõe uma intuição formal (espaço e tempo) como dada. NOTA À ANFIBOLOGIA DOS CONCEITOS DE REFLEXÃO Seja-me permitido denominar lugar transcendental a posição que conferimos a um conceito, quer na sensibilidade quer no entendimento puro. Deste modo a determinação dessa posição que convém a todo conceito segundo a diversidade de seu uso e a indicação para conferir, segundo regras, este lugar a todos os conceitos, constituiriam a tópica transcendental. Esta é uma doutrina que preservaria solidamente de sub-repções do entendimento puro e de ilusões daí derivantes, distinguindo sempre a que capacidade cognitiva pertencem propriamente os conceitos. Todo conceito, todo o título, sob o qual se recolham muitos conhecimentos, pode ser denominado lugar lógico. Sobre isso funda-se a tópica lógica de Aristóteles, da qual puderam servir-se professores e oradores, para examinar sob certos títulos do pensamento o que melhor se adaptasse à matéria em questão, e para sofismar ou tagarelar verbosamente a respeito com uma aparência de profundidade. A tópica transcendental, ao contrário, não contém senão os quatro indicados títulos de toda a comparação e distinção, diferenciando-se das categorias pelo fato que mediante eles não é apresentado o objeto segundo o que constitui o seu conceito (quantidade, realidade), mas somente, em toda a sua variedade, a comparação das representações que precede o conceito de coisas. Esta comparação, entretanto, requer antes de tudo uma reflexão, isto é, uma determinação do lugar a que pertençam as representações das coisas que são comparadas, quer sejam pensadas pelo entendimento, quer sejam dadas no fenômeno pela sensibilidade. Os conceitos podem ser comparados logicamente sem que se deva preocupar-se a que lugar pertencem os seus objetos, se como noumena ao entendimento ou como phaenomena à sensibilidade. Todavia, se com esses conceitos quisermos referir-nos a objetos, será antes de tudo necessária uma reflexão transcendental, quer devam eles ser objetos da capacidade cognitiva do entendimento puro, quer da sensibilidade. Sem tal reflexão, farei um uso muito inseguro desses conceitos, dando origem a pretensos princípios sintéticos que a razão crítica não pode reconhecer e que se fundam sobre uma anfibologia transcendental, isto é, sobre uma confusão entre o objeto puro do entendimento e o fenômeno. Na falta de tal tópica transcendental e, por conseguinte, enganado pela anfibologia dos conceitos de reflexão, construiu o célebre Leibniz um sistema intelectual do mundo ou, muito antes, creu conhecer a natureza íntima das coisas, enquanto comparou todos os objetos apenas com o entendimento e com os conceitos abstratos e formais do seu pensamento. A nossa tábua dos conceitos de reflexão proporciona-nos a inesperada vantagem de pôr a claro o caráter distintivo da doutrina de Leibniz em todas as suas partes e ao mesmo tempo o princípio diretor dessa sua peculiar maneira de pensar, o qual não se fundava senão sobre um mal-entendido. Ele comparou todas as coisas entre si simplesmente mediante conceitos e não descobriu, como era natural, nenhuma outra diferença, além daquela pela qual o entendimento distingue os seus conceitos uns dos outros. Não considerou originárias as condições da intuição sensível, que trazem consigo as suas próprias diferenças; com efeito, a sensibilidade era para ele somente um modo confuso de representação e nenhuma fonte peculiar de representações; o fenômeno era para ele a representação da coisa em si mesma, embora tal representação seja distinta, segundo a forma lógica, do conhecimento pelo entendimento, uma vez que o fenômeno, pela falta habitual de análise, introduz no conceito de coisa certa mistura de representações acessórias que o entendimento sabe eliminar. Em uma palavra: Leibniz intelectualizou os fenômenos, assim como Ladre sensualizou todos os conceitos do entendimento segundo o seu sistema da noogonia (se me for permitido usar esta expressão), isto é, fê-los passar por simples conceitos de reflexão, empíricos ou abstratos. Em vez de procurar no entendimento e na sensibilidade duas fontes totalmente diversas de representações que, porém, só em conexão poderiam julgar objetivamente sobre coisas, ateve-se cada um desses dois grandes homens apenas a uma de ambas as fontes, que segundo a sua opinião referia-se imediatamente a coisas em si, enquanto a outra não fazia senão confundir ou ordenar as representações da primeira. Logo, Leibniz comparou entre si - simplesmente no entendimento - os objetos dos sentidos como coisas em geral: Em primeiro lugar, enquanto tais objetos devem ser julgados pelo entendimento como idênticos ou como diversos. Ele tinha em vista meramente os conceitos de tais objetos e não a sua posição na intuição, unicamente na qual os objetos podem ser dados, deixando totalmente de considerar o lugar transcendental desses conceitos (se o objeto deve ser enumerado entre os fenômenos ou entre as coisas em si mesmas). Portanto, não poderia deixar de ocorrer que ele estendesse o seu princípio de indiscernibilidade - que vale simplesmente com respeito a conceitos de coisas em geral - também aos objetos dos sentidos (mundus phaenomenon), com isso ele creu ter conseguido uma não pequena ampliação do conhecimento da natureza. Certamente, se conheço uma gota d'água - segundo todas as suas determinações internas - como uma coisa em si mesma, então não poderei admitir nenhuma gota d'água como diferente das outras se o inteiro conceito dela for idêntico com a primeira. Entretanto, se a gota d'água é um fenômeno no espaço, então ela possui o seu lugar não simplesmente no entendimento (entre os conceitos), mas na intuição sensível externa (no espaço); aí os lugares físicos são totalmente indiferentes com respeito às determinações internas das coisas: um lugar = b pode tanto admitir uma coisa inteiramente semelhante e igual à outra em um lugar = a, por maior que seja a diferença interna de ambas. A diversidade de lugares por si só já torna não somente possível mas também necessária - sem ulteriores condições - a pluralidade e distinção dos objetos como fenômenos. Portanto, aquela lei ilusória não é nenhuma lei da natureza. É somente uma regra analítica ou uma comparação das coisas mediante simples conceitos. Em segundo lugar, o princípio de que as realidades (enquanto simples afirmações) jamais se opõem logicamente entre si é uma proposição totalmente verdadeira sobre a relação dos conceitos, mas não significa nada, nem com vista à natureza, nem em parte alguma com vista a qualquer coisa em si mesma (desta não possuímos nenhum conceito). Com efeito, a oposição real realiza-se em toda a parte onde A - B = 0, isto é, onde uma realidade se ligue com outra em um sujeito e elimine uma o efeito da outra; isto põe incessantemente ante os olhos todos os obstáculos e reações na natureza, que, todavia, por basearem-se sobre as forças, têm que denominar-se realitates phaenomena. A mecânica geral pode até indicar, em uma regra a priori, a condição empírica dessa oposição, enquanto se refere à contraposição das direções: condição de que o conceito transcendental de realidade não sabe absolutamente nada. Se bem que o senhor Von Leibniz não anunciasse essa proposição precisamente com a mesma pompa de um novo princípio, serviu-se dela para afirmações novas e os seus seguidores introduziram-na expressamente no seu sistema leibniziano-wolffiano. Segundo esse princípio, todos os males - por exemplo - não são senão efeitos dos limites das crianças, isto é, negações, porque estas são a única oposição da realidade (no simples conceito de uma coisa em geral é também efetivamente assim, não porém no conceito das coisas como fenômeno). Do mesmo modo como os partidários de Leibniz consideraram não apenas possível, mas também natural, reunir em um único ente toda a realidade, sem se preocupar com alguma oposição, porque não conhecem outra além da de contradição (pela qual o próprio conceito de uma coisa é supresso), não porém, a da anulação recíproca, já que um fundamento real suprime o efeito de outro, e para o que encontramos somente na sensibilidade as condições para nos reapresentarmos uma tal oposição. Em terceiro lugar, a Monadologia de Leibniz não possui simplesmente nenhum outro fundamento a não ser o fato que este filósofo representou a diferença do interno e do externo meramente na relação com o entendimento. As substâncias em geral têm que ter algo interno, que seja livre de todas as relações externas, consequentemente também da composição. O simples é, portanto, o fundamento do interno das coisas em si mesmas. Por outro lado, o interno do seu estado não pode consistir em lugar, figura, contato ou movimento (estas determinações são todas relações externas), e não podemos por isso atribuir às substâncias nenhum outro estado interno a não ser aquele pelo qual nós próprios determinamos internamente o nosso sentido, a saber, o estado das representações. Assim tiveram o seu acabamento as mônadas, que devem constituir a matéria-prima do inteiro universo e cuja força ativa consiste somente em representações pelas quais operam propriamente só em si mesmas. Justamente em virtude disso também o seu principium da possível comunidade das substâncias entre si tinha que ser uma harmonia preestabelecida e não um influxo físico. Visto, pois, que tudo é somente interno, isto é, está ocupado com suas representações, o estado das representações de uma substância não podia absolutamente ligar-se ativamente com o estado das representações de outra, mas uma terceira causa qualquer que influísse sobre todas em conjunto, tinha que fazer corresponder entre si os seus estados, na verdade, não através de uma assistência ocasional e aplicada especialmente a cada caso singular (sistema assistentiae) mas mediante a unidade da ideia de uma causa válida para todas as substâncias. Em tal causa todas as substâncias em conjunto têm que obter - segundo leis universais - a sua existência e permanência, por conseguinte, também a sua correspondência recíproca. Em quarto lugar, a célebre doutrina de Leibniz sobre o tempo e o espaço, na qual intelectualizou essas formas da sensibilidade, surgiu unicamente da mesma ilusão da reflexão transcendental. Quando quero representar-me, através do simples entendimento, relações externas das coisas, isto só pode acontecer mediante um conceito de seu efeito recíproco; e se devo conectar um estado de uma coisa com outro estado da mesma coisa, isto só pode acontecer segundo a ordem de fundamentos e consequências. Assim, portanto, pensou Leibniz o espaço como certa ordem na comunidade das substâncias e o tempo como a sucessão dinâmica dos seus estados. No entanto, a peculiaridade e independência das coisas que espaço e tempo parecem ter em si foram atribuídas por Leibniz à confusão destes conceitos, que fazia com que o mesmo, que é uma simples forma de relações dinâmicas, fosse tomado por uma intuição por si subsistente e precedente às próprias coisas. Logo, espaço e tempo eram a forma inteligível da conexão das coisas (substâncias e seus estados) em si mesmas. As coisas, porém, eram substâncias inteligíveis (substantiae noumena). Não obstante, quis ele considerar esses conceitos como fenômenos, porque não admitiu nenhum modo de intuição próprio da sensibilidade, mas procurou toda a representação dos objetos, mesmo a empírica, no entendimento, não deixando aos sentidos senão a desprezível tarefa de confundir e deformar as representações do mesmo. Mas se nós, por meio do entendimento puro, pudéssemos também dizer algo sintético sobre as coisas em si mesmas (o que, entretanto, é impossível), isto não poderia de modo algum referir-se aos fenômenos, que não representam coisas em si mesmas. Neste último caso, portanto, terei sempre que comparar os meus conceitos na reflexão transcendental somente sob as condições da sensibilidade, e assim espaço e tempo não serão representações das coisas em si, mas dos fenômenos: o que as coisas em si possam ser, não o sei, nem necessito sabê-lo, porque uma coisa jamais pode aparecer-me de outro modo a não ser no fenômeno. Do mesmo modo procedo com respeito aos demais conceitos de reflexão. A matéria é substantia phaenomenon. O que lhe pertence internamente, procuro-o em todas as partes do espaço que ela ocupa e em todos os efeitos que ela exerce e que certamente só podem ser sempre fenômenos dos sentidos externos. Portanto, não possuo nada de absolutamente interno, mas só comparativamente interno, que por sua vez consiste de relações externas. Antes, o que é absolutamente interno à matéria segundo o entendimento puro, é também uma simples extravagância. Com efeito, a matéria não é em parte alguma um objeto do entendimento puro, ao passo que o objeto transcendental que pode ser o fundamento deste fenômeno por nós denominado matéria, é um simples algo que jamais compreenderíamos o que seja, mesmo que alguém pudesse no-lo dizer. De fato, não podemos compreender senão o que uma coisa correspondente às nossas palavras traz consigo na intuição. Se as queixas: não entrevemos absolutamente o interno das coisas devem significar que não concebemos pelo entendimento puro o que as coisas que nos aparecem possam ser em si mesmas, então são elas totalmente injustas e irracionais, pois querem que se possa conhecer e, portanto, intuir coisas sem os sentidos, consequentemente que possuamos uma faculdade de conhecimento totalmente distinta da humana, não simplesmente segundo o grau, mas até segundo a intuição e a natureza; logo que devamos ser não homens, mas entes dos quais não podemos dizer se são sequer possíveis e muito menos como são constituídos. A observação e decomposição dos fenômenos penetra no interno da natureza e não se pode saber até que ponto chegará esta penetração com o passar do tempo. Mesmo que nos fosse desvelada toda a natureza, não poderíamos jamais dar uma resposta para aqueles problemas transcendentais que ultrapassam a natureza, visto não nos ser uma só vez concedido observar a nossa própria mente com uma intuição diversa da do nosso sentido interno. Neste, encontra-se, com efeito, o segredo da origem de nossa sensibilidade. A sua relação com um objeto e a natureza do fundamento transcendental desta unidade encontra-se sem dúvida por demais ocultas para que nós - que até a nós próprios conhecemos somente mediante o sentido interno, por conseguinte, como fenômeno - pudéssemos usar para isso um instrumento de investigação tão inadaptado para descobrir algo que não fenômenos, cuja causa não sensível, no entanto, gostaríamos de investigar. O que toma extremamente útil esta crítica das conclusões a partir das simples ações da reflexão é o fato de ela demonstrar claramente a nulidade de todas as conclusões sobre objetos comparadas entre si unicamente no entendimento e de ao mesmo tempo confirmar o que principalmente destacamos: que, conquanto os fenômenos não sejam compreendidos entre os objetos do entendimento puro como coisas em si mesmas, elas todavia são os únicos nos quais o nosso conhecimento pode ter realidade objetiva, a saber, onde uma intuição corresponde aos conceitos. Quando refletimos apenas logicamente somente comparamos entre si os nossos conceitos de entendimento, para ver se dois conceitos contêm precisamente a mesma coisa, se se contradizem ou não, se algo é contido internamente no conceito ou lhe é acrescido, e qual de ambos é dado, qual, porém, deve valer apenas como um modo de pensar os conceitos dados. Mas, se aplico estes conceitos a um objeto em geral (em sentido transcendental) sem determinar ulteriormente se é um objeto da intuição sensível ou intelectual, mostram-se imediatamente limitações (para não ultrapassar esse conceito) que transtornam todo o uso empírico de tais conceitos e justamente deste modo provam que a representação de um objeto como coisa em si mesma não é simplesmente insuficiente, mas, sem uma determinação sensível da representação e independentemente de condição empírica, é em si mesma contraditória. Provam, portanto, ou que se tem de abstrair (na Lógica) de todo o objeto, ou - se se admite um - se tem de pensá-lo sob as condições da intuição sensível. Provam, consequentemente, que o inteligível requereria uma intuição totalmente peculiar que não possuímos, na falta da qual ele não é nada para nós e, por outro lado, nem os fenômenos podem ser objetos em si mesmos. Com efeito, se penso simplesmente coisas em geral, então a diversidade das relações externas certamente não pode constituir uma diversidade das coisas mesmas, mas pressupõe estas, e, se o conceito de uma coisa não é de modo algum internamente diferente do conceito de outra, então ponho uma única e mesma coisa em relações diversas. Além disso, pelo acréscimo de uma simples afirmação (realidade) a outra o positivo é, antes, aumentado, não sendo dele nada tirado ou suprimido; por isso o real nas coisas em geral não pode ser contraditório etc. Por certa falsa interpretação, os conceitos da reflexão - como mostramos - possuem tal influência sobre o uso do entendimento, que foram capazes de seduzir um dos mais penetrantes filósofos a um pretenso sistema de conhecimento intelectual que se empenha em determinar os seus objetos sem a intervenção dos sentidos. Justamente por isso a explicação das causas enganosas da anfibologia destes conceitos - produzindo falsos princípios - é de grande utilidade para determinar e assegurar firmemente os limites do entendimento. Na verdade, se tem que dizer: o que convém ou contradiz universalmente a um conceito, convém ou contradiz também todo o particular contido sob aquele conceito (dictum de omni et nullo). Seria, porém, absurdo modificar este princípio lógico de modo que soasse assim: o que não está contido em um conceito universal, não o está também nos conceitos particulares subordinados a ele. Estes, com efeito, são conceitos particulares precisamente por conterem em si mais do que é pensado no conceito universal. Ora, o completo sistema intelectual de Leibniz está realmente edificado sobre este último princípio; ele cai, portanto, simultaneamente com tal princípio e com toda a equivocidade dele decorrente no uso do entendimento. O princípio da indiscernibilidade fundava-se propriamente sobre a pressuposição: se no conceito de uma coisa em geral não se encontra uma certa distinção, então não pode ela tampouco ser encontrada nas coisas mesmas; consequentemente, são inteiramente idênticas (numero eadem) todas as coisas que já no seu conceito (segundo a qualidade ou quantidade) não se distinguem entre si. Todavia, visto que no simples conceito de uma coisa qualquer abstraiu-se de várias condições necessárias de uma intuição, deste modo, por uma estranha precipitação, toma-se aquilo de que se abstrai por uma coisa que não pode ser encontrada em parte alguma e não se concede às coisas senão o que está contido em seu conceito. O conceito de um pé cúbico de espaço - posso pensá-lo onde e tão frequentemente como quiser - é em si inteiramente idêntico. No entanto, dois pés cúbicos diferenciam-se no espaço simplesmente por seus lugares (numero diversa); estas são condições da intuição em que é dado o objeto desse conceito, não pertencendo elas ao conceito, mas contudo à inteira sensibilidade. Do mesmo modo não há absolutamente nenhuma oposição no conceito de uma coisa, desde que algo negativo não tenha sido ligado com algo afirmativo, e conceitos meramente afirmativos não podem produzir pela ligação absolutamente nenhuma anulação. Entretanto, na intuição sensível, em que a realidade (por exemplo, o movimento) é dada, encontram-se condições (direções contrapostas) das quais se abstraíra no conceito de movimento em geral, e que tornam possível uma oposição - que certamente não é lógica - a saber, um zero = O a partir daquilo que é meramente positivo. Não se poderia pois dizer que toda a realidade esteja em concordância recíproca pelo fato de entre seus conceitos não ser encontrada nenhuma oposição. (Se se quisesse recorrer aqui ao subterfúgio comum de que pelo menos as realitates noumena não podem agir uma contra a outra, então se teria contudo que citar um exemplo de tal realidade pura e independente dos sentidos para que se compreendesse se ela em geral representa algo ou absolutamente nada. Mas nenhum exemplo pode ser tomado de qualquer outro lugar senão da experiência, que nunca apresenta algo mais do que phaenomena. E assim, essa proposição significa apenas que o conceito que contém meras afirmações, não contém nada de negativo, proposição da qual jamais duvidamos. Nota do Autor.) Sobre a base de simples conceitos, o interno é o substrato de toda a relação ou determinações externas. Portanto, se abstraio de todas as condições da intuição e atenho-me unicamente ao conceito de uma coisa em geral, posso abstrair de toda a relação externa, tendo que, entretanto, restar um conceito daquilo que não signifique absolutamente nenhuma relação, mas simplesmente determinações internas. Ora, disso parece seguir-se que em toda coisa (substância) haja algo que seja absolutamente interno e preceda todas as determinações externas, enquanto as torna pela primeira vez possíveis; por conseguinte, que esse substrato seja algo de natureza tal que não contenha em si mais nenhuma relação externa, quer dizer, seja simples (pois as coisas corpóreas são sempre unicamente relações pelo menos das partes externas umas às outras); e, visto não conhecermos nenhuma determinação absolutamente interna a não ser aquelas que se realizam mediante o nosso sentido interno, assim tal substrato não somente é simples, mas também (segundo a analogia com o nosso sentido interno) determinado através de representações, isto é, todas as coisas seriam propriamente mônadas ou entes simples dotados de representações. Tudo isto seria correto se nada mais do que o conceito de uma coisa em geral pertencesse às condições sob as quais unicamente podem ser-nos dados objetos da intuição externa e das quais o conceito puro abstrai. Com isso mostra-se, efetivamente, que um fenômeno permanente no espaço (extensão impenetrável) pode conter puras relações e absolutamente nada de interno e, não obstante, possa ser o primeiro substrato de toda a percepção externa. Mediante simples conceitos não posso certamente pensar algo externo sem algo interno, justamente porque conceitos de relação pressupõem coisas puras e simplesmente dadas e sem estas não são possíveis. Todavia, visto que na intuição está contigo algo que de modo algum se encontra no simples conceito de uma coisa em geral e que esta fornece o substratum que de modo algum seria conhecido através de simples conceitos, a saber, um espaço, que, com tudo o que contém, consiste em meras relações formais ou também reais, deste modo não posso dizer: já que sem algo pura e simplesmente interno nenhuma coisa pode ser representada mediante simples conceitos, não há também nas próprias coisas contidas sob esses conceitos e na sua intuição, nada externo que não tenha por fundamento algo pura e simplesmente interno. Com efeito, quando tivermos abstraído de todas as condições da intuição não nos restarão certamente no simples conceito mais do que o interno em geral e a relação entre as suas partes, pela qual unicamente o externo é possível. Todavia, esta necessidade que se funda meramente sobre a abstração, não se encontra entre coisas - que são dadas na intuição com determinações tais que exprimam simples relações sem possuírem algo interno como fundamento - pelo fato de não serem coisas em si mesmas, mas unicamente fenômenos. Tudo o que conhecemos na matéria reduz-se a meras relações (o que chamamos determinações internas delas é interno apenas comparativamente) entre elas há, todavia, relações independentes e permanentes pelas quais é dado um objeto determinado. O fato de eu, se abstraio dessas relações, não possuir ulteriormente absolutamente nada para pensar não suprime o conceito de uma coisa como fenômeno, nem o de um objeto in abstracto, mas suprime seguramente toda a possibilidade de um objeto tal que seja determinável segundo simples conceitos, isto é, de um noumenon. Certamente surpreende ouvir que uma coisa deva consistir completamente em relações, mas tal coisa é também simples fenômenos e não pode absolutamente ser pensada mediante categorias puras; ela mesma consiste na simples relação de algo em geral com os sentidos. Do mesmo modo - se se começa por simples conceitos - não se pode pensar as relações das coisas in abstracto de nenhuma outra maneira a não ser que uma coisa seja a causa de determinações na outra; tal é, com efeito, o nosso conceito intelectual das próprias relações! Todavia, visto que neste caso abstraímos de toda a intuição, elimina-se um modo completo pelo qual os elementos do múltiplo podem determinar reciprocamente o seu lugar, a saber, a forma da sensibilidade (o espaço), que precede toda a causalidade empírica. Se por objetos simplesmente inteligíveis entendemos aquelas coisas que são pensadas mediante categorias puras sem todo o esquema da sensibilidade, então tais objetos são impossíveis. Com efeito, a condição de uso objetivo de todos os nossos conceitos intelectuais é simplesmente o modo da nossa intuição sensível pela qual os objetos nos são dados, e, se abstraímos dessa intuição, não possuem tais conceitos absolutamente nenhuma relação com qualquer objeto. Antes, se se quisesse admitir ainda um modo de intuição diverso desta nossa intuição sensível, as nossas funções para pensar não teriam então absolutamente nenhum significado com respeito a tal intuição. Se por objetos inteligíveis entendemos somente objetos de uma intuição não sensível, com relação aos quais as nossas categorias certamente não são válidas, e dos quais, portanto, jamais poderemos ter absolutamente nenhum conhecimento (nem intuição nem conceito), então os noumena, neste sentido meramente negativo, têm que ser sem dúvida admitidos. Tais noumena, com efeito, não significam senão que o nosso modo de intuição não se refere a todas as coisas, mas simplesmente a objetos dos nossos sentidos, consequentemente, que a sua validez objetiva é limitada, e, logo, que resta um lugar tanto para outra espécie qualquer de intuição quanto para coisas enquanto objetos dela. Em tal caso, porém, o conceito de noumenon é problemático, isto é, a representação de uma coisa com respeito à qual não podemos dizer nem que seja possível nem que seja impossível, enquanto não conhecemos nenhuma outra espécie de intuição a não ser a nossa intuição sensível e nenhuma espécie de conceitos senão as categorias, não sendo, contudo, nenhuma delas apropriada para um objeto suprassensível. Por isso não podemos estender positivamente o campo dos objetos de nosso pensamento para além das condições de nossa sensibilidade e admitir ainda, fora dos fenômenos, objetos do pensamento puro, isto é noumena, pois estes objetos não podem oferecer nenhuma significação positiva. Com efeito, precisa-se confessar relativamente às categorias, que elas por si só não bastam para o conhecimento das coisas em si mesmas e, sem os dados da sensibilidade, seriam meras formas subjetivas da unidade do entendimento, mas sem objeto. O pensamento, em verdade, não é em si nenhum produto dos sentidos e como tal tampouco é limitado por eles, mas nem por isso possui imediatamente - sem a adesão da sensibilidade - um uso próprio e puro, pois do contrário não tem nenhum objeto. O noumenon, por outro lado, não pode ser chamado tal objeto, pois ele significa justamente o conceito problemático de um objeto de uma intuição totalmente diversa da nossa e de um entendimento totalmente diverso do nosso que é, por conseguinte, ele mesmo um problema. Logo, o conceito de noumenon não é o conceito de um objeto, mas constitui o problema - inevitavelmente vinculado com a limitação de nossa sensibilidade - se pode haver objetos totalmente independentes da intuição sensível. Esta questão pode ser respondida só indeterminadamente, a saber: visto que a intuição sensível não se refere a todas as coisas indistintamente, resta um lugar para objetos ulteriores e diversos, de modo que estes não podem ser pura e simplesmente negados, mas, na falta de um conceito determinado (já que nenhuma categoria é apta para isso), tampouco podem ser afirmados como objetos do nosso entendimento. O entendimento, portanto, limita à sensibilidade, sem com isso ampliar o seu próprio campo, e, advertindo-a a não pretender referir-se a coisas em si mesmas, mas unicamente a fenômenos, pensa um objeto em si mesmo, mas somente como objeto transcendental, que é a causa do fenômeno (por conseguinte, não sendo ele mesmo fenômeno), e não pode ser pensado nem como magnitude, nem como realidade, nem como substância etc. (porque estes conceitos requerem sempre formas sensíveis nas quais determinam um objeto). Portanto, ignoramos completamente se esse objeto transcendental encontra-se em nós ou também fora de nós; se é suprimido simultaneamente com a sensibilidade ou se, eliminando a sensibilidade, ele ainda permaneceria. Se quisermos denominar noumenon tal objeto pelo fato de sua representação não ser sensível, somos livres para fazê-lo, Todavia, visto que não podemos aplicar a ele nenhum dos conceitos do nosso entendimento, essa representação permanece vazia para nós e não serve para nada a não ser para traçar os limites do nosso conhecimento sensível e deixar vazio um espaço que não podemos preencher nem pela experiência possível nem pelo entendimento puro. A crítica deste entendimento puro não lhe permite, pois, procurar um novo campo de objetos fora daqueles que podem apresentar-se a ele como fenômenos e divagar em mundos inteligíveis, nem sequer no conceito destes. O erro que trai aqui da maneira mais manifesta e sem dúvida desculpa, embora não possa ser justificado, encontra-se no fato que contrariamente à destinação do entendimento se faça dele um uso transcendental, e que os objetos, isto é, as intuições possíveis, têm que orientar-se por conceitos, não porém os conceitos por intuições possíveis (sobre as quais unicamente repousa a sua validez objetiva). A causa disso é por sua vez o fato que a apercepção - e com ela o pensamento - preceda toda a possível ordem determinada das representações. Portanto, pensamos uma coisa em geral e determinamo-la por um lado sensivelmente, distinguindo, entretanto, desse modo de intuir o objeto, o objeto geral representado in abstracto; ora, aí resta uma maneira de determiná-lo simplesmente pelo pensamento, a qual, na verdade, é uma simples forma lógica sem conteúdo, mas, contudo, parece a nós ser uma maneira pela qual o objeto existe em si mesmo (noumenon), sem considerar a intuição, que é limitada aos nossos sentidos. Antes de deixarmos a analítica transcendental, temos ainda que acrescentar algo que, embora não sendo em si de particular relevo, poderia parecer necessário para a completude do sistema. O mais alto conceito, com o qual se costuma começar uma filosofia transcendental consiste comumente na divisão em possível e impossível. Todavia, visto que toda a divisão pressupõe um conceito dividido, tem que ser indicado um conceito ainda mais alto, e este é o conceito de um objeto em geral (tomado problematicamente e sem decidir se é alguma coisa ou nada). Já que as categorias são os únicos conceitos que se referem a objetos em geral, procede a distinção, se um objeto é alguma coisa ou nada, segundo a ordem e indicação das categorias. 1) Aos conceitos de todo, muitos e uno, opõe-se aquele que suprime tudo, isto é, nenhuma coisa; e assim o objeto de um conceito para o qual não se pode obter absolutamente nenhuma intuição correspondente é = nada, isto é, um conceito sem objeto, como os noumena, que não podem ser contados entre as possibilidades, embora nem por isso tenha que fazer-se passar por impossíveis (ens raiiones), ou como porventura certas novas forças fundamentais, que são pensadas, em verdade sem contradição, mas também sem exemplo da experiência, não podendo por isso ser contadas entre as possibilidades. 2) A realidade é alguma coisa; a negação é nada, a saber, um conceito da falta de um objeto, como a sombra, o frio (nihil privativum). 3) A simples forma da intuição sem substância não é em si mesma nenhum objeto, mas a condição meramente formal do mesmo (enquanto fenômeno), como o espaço puro e o tempo puro, que na verdade são alguma coisa como formas de intuir, mas não são elas mesmas objetos, que sejam intuídos (ens imaginarium). 4) O objeto de um conceito que se contradiz é nada, pois o conceito é nada, é o impossível, como, por exemplo, a figura retilínea de dois lados (nihil negativum). A tábua desta divisão do conceito de nada (pois a divisão - paralela a este - de alguma coisa segue-se por si) teria por isso que ser disposta da seguinte maneira: Nada como 1. Conceito vazio sem objeto ens rationis 2. Objeto vazio de um conceito nihil privativum 3. Intuição vazia sem objeto ens imaginarium 4. Objeto vazio sem conceito nihil negativum Vê-se, que o ente de razão (n° 1) distingue-se do não ente (n° 4) pelo fato que o primeiro não pode ser contado entre as possibilidades, porque é simples ficção (conquanto não contraditória), enquanto o segundo se opõe à possibilidade, uma vez que o conceito anula inclusive a si próprio. Ambos, porém, são conceitos vazios. Ao contrário, o nihil privativum (nº 2) e o ens imaginarium (n° 3) são dados vazios para conceitos. Se a luz não tivesse sido dada aos sentidos, não se poderia também representar-se nenhuma treva, e se entes extensos não fossem percebidos não se poderia representar nenhum espaço. Sem um real, tanto a negação quanto a simples forma da intuição não são objetos. DIVISÃO SEGUNDA DA LÓGICA TRANSCENDENTAL DIALÉTICA TRANSCENDENTAL Introdução I. Da ilusão transcendental Chamamos acima a dialética em geral de uma lógica da ilusão. Isto não significa que ela seja uma doutrina da verossimilhança; pois esta é verdade, mas conhecida através de fundamentos insuficientes, cujo conhecimento, portanto, é realmente defeituoso mas nem por isso enganoso, não tendo, logo, que ser separado da parte analítica da Lógica. Menos ainda podem fenômeno e ilusão ser tomados por idênticos. Com efeito, verdade ou ilusão não estão no objeto, enquanto é intuído, mas no juízo sobre ele, enquanto é pensado. Portanto, pode-se em verdade dizer corretamente que os sentidos não erram, não, porém, porque eles sempre julguem corretamente, mas porque eles não julgam de modo algum. Consequentemente, tanto a verdade quanto o erro, portanto, também a ilusão, enquanto induz ao último, podem encontrar-se somente no juízo, isto é, na relação do objeto com o nosso entendimento. Num conhecimento que concorda universalmente com as leis do entendimento, não há erro algum. Tampouco há algum erro numa representação dos sentidos (porque ela não contém nenhum juízo). Nenhuma força da natureza pode, porém, desviar-se espontaneamente das suas próprias leis. Por isso nem o entendimento (sem influência de outra causa) nem o sentido erram por si sós; porque quando o primeiro age meramente segundo as suas leis, o efeito (o juízo) deve necessariamente concordar com elas. Na concordância com as leis do entendimento consiste, porém, o formal de toda a verdade. Nos sentidos não há juízo algum, nem verdadeiro nem falso. Ora, visto que além dessas duas fontes de conhecimento não possuímos nenhuma outra, segue-se que o erro somente atua sobre o entendimento mediante a influência despercebida da sensibilidade, pela qual ocorre que os fundamentos subjetivos do juízo confundem-se com os fundamentos objetivos, fazendo estes desviarem-se da sua destinação. (A sensibilidade, posta sob o entendimento como o objeto ao qual este aplica sua função, é a fonte de conhecimentos reais. Mas a mesma, na medida em que influi sobre a própria ação do entendimento e o determina a julgar, é o fundamento do erro. Nota do Autor.) Do mesmo modo um corpo em movimento manteria por si a linha reta sempre na mesma direção; esta linha contudo é modificada num movimento curvilíneo se uma outra força influi ao mesmo tempo sobre ela numa direção diferente. Para distinguir a ação peculiar do entendimento da força que se mescla a ela, torna-se consequentemente necessário considerar o juízo errôneo como a diagonal entre duas forças, as quais determinam o juízo segundo duas direções diferentes que incluem por assim dizer um ângulo - e resolvem aquele efeito composto nos efeitos simples do entendimento e da sensibilidade. Isto tem que acontecer, nos juízos puros a priori, mediante a reflexão transcendental pela qual (como foi mostrado) é indicada para cada representação o seu lugar na capacidade cognitiva correspondente e é distinguida a influência de tal capacidade sobre a respectiva representação. Nossa tarefa aqui não consiste em tratar da ilusão empírica (por exemplo, óptica), que se encontra no uso empírico de regras, aliás, justas do entendimento, e pela qual a capacidade de juízo é desviada pela influência da imaginação, e sim em tratar unicamente da ilusão transcendental, que influi sobre princípios cujo uso jamais se apoia na experiência - caso este em que teríamos pelo menos uma pedra de toque de sua correção - mas, contra todas as advertências da Crítica, conduz-nos inteiramente para além do uso empírico das categorias e entretém-nos com a fantasmagoria de uma ampliação do entendimento puro. Queremos denominar imanentes os princípios cuja aplicação se mantém completamente nos limites de uma experiência possível; transcendentes, porém, aqueles princípios que devem sobrepassar tais limites. Por estes não entendo o uso ou abuso transcendental das categorias, que é um simples erro da capacidade de julgar que não é refreada convenientemente pela crítica e que não presta suficientemente atenção aos únicos limites de terreno em que é permitido o jogo do entendimento puro; mas entendo por eles princípios efetivos que nos impelem a derrubar aquelas barreiras e a atrever-se a um terreno completamente novo que em geral não conhece nenhuma demarcação. Por isso transcendental e transcendente não são idênticos. Os princípios do entendimento puro, por nós expostos acima, devem ser de uso meramente empírico e não de uso transcendental, isto é, que ultrapasse os limites da experiência. Um princípio, porém, que elimina esses limites, antes, ordene ultrapassa-los, denomina-se transcendente. Se a nossa crítica pode chegar ao ponto de descobrir a ilusão destes pretensos princípios, então aqueles princípios do uso meramente empírico poderão denominar-se, em oposição aos últimos, princípios imanentes do entendimento puro. A ilusão lógica, que consiste na simples imitação da forma da razão (a ilusão dos silogismos sofísticos), surge unicamente de uma falta de atenção à regra lógica. Por isso, tão logo esta é concentrada sobre o caso em questão, a ilusão desaparece completamente. A ilusão transcendental, ao contrário, não cessa, embora tenha já sido descoberta e sua nulidade tenha sido claramente discernida pela crítica transcendental. (Por exemplo, a ilusão na proposição: o mundo tem que ter um começo no tempo.) A causa disso é que em nossa razão (considerada subjetivamente como uma faculdade cognitiva humana) encontram-se regras fundamentais e máximas do seu uso, as quais possuem completamente o aspecto de princípios objetivos e pelos quais acontece que a necessidade subjetiva de certa conexão de nossos conceitos em benefício do entendimento é tomada por uma necessidade objetiva da determinação das coisas em si mesmas. Trata-se de uma ilusão que de modo algum pode ser evitada, assim como tampouco podemos evitar que o mar pareça mais alto no meio que na praia porque no primeiro caso vemo-lo mediante raios luminosos mais altos que no segundo, ou mais ainda, assim como o próprio astrônomo não pode evitar que a lua ao surgir pareça maior, se bem que ele não seja enganado por esta ilusão. A dialética transcendental contentar-se-á, portanto, em descobrir a ilusão dos juízos transcendentes e ao mesmo tempo impedir que ela engane. Porém, a dialética transcendental jamais poderá conseguir que tal ilusão desapareça (como a ilusão lógica) e cesse de ser uma ilusão. Com efeito, temos a ver com uma ilusão natural e inevitável que se funda sobre princípios subjetivos, fazendo-os passar por objetivos; a dialética lógica, ao invés, ao resolver os raciocínios sofísticos, tem a ver somente com o erro na aplicação dos princípios ou com uma ilusão artificiosa na sua imitação. Existe, portanto, uma dialética natural e inevitável da razão pura; não uma dialética em que um ignorante porventura incorra por falta de conhecimento ou que um sofista qualquer engenhou artificiosamente para confundir pessoas racionais, mas uma dialética que é incindivelmente inerente à razão humana e que, mesmo depois de termos descoberto o seu caráter ilusório, não cessará de engodá-la e de precipitá-la incessantemente em momentâneas confusões, que precisarão cada vez ser eliminadas. II. Da razão pura como sede da ilusão transcendental A. Da razão em geral Todo o nosso conhecimento parte dos sentidos, vai daí ao entendimento e termina na razão, acima da qual não é encontrado em nós nada mais alto para elaborar a matéria da intuição e levá-la à suprema unidade do pensamento. Visto que devo dar agora uma explicação desta suprema capacidade de conhecimento, encontro-me em certo embaraço. Da razão como do entendimento há um uso meramente formal, isto é, lógico, uma vez que a razão abstrai de todo o conteúdo do conhecimento; mas há também um uso real da mesma, uma vez que contém a origem de certos conceitos e princípios que não toma emprestados nem dos sentidos nem do entendimento. Ora, a primeira destas faculdades foi com certeza há tempo explicada pelos lógicos como a faculdade de concluir mediatamente (à diferença das conclusões imediatas, consequentiis imediatis); a segunda, porém, que produz conceitos, não é ainda considerada através disso. Ora, visto que aqui se verifica uma divisão da razão em uma faculdade lógica e uma faculdade transcendental, assim tem que ser procurado um conceito superior desta fonte de conhecimento que compreende sob si ambos os conceitos. Todavia, segundo a analogia com os conceitos do entendimento, podemos esperar que o conceito lógico forneça ao mesmo tempo a chave para o conceito transcendental, e que a tábua das funções dos conceitos do entendimento forneça ao mesmo tempo a linha genealógica dos conceitos da razão. Na primeira parte de nossa lógica transcendental explicamos o entendimento como faculdade das regras; aqui distinguimos dele a razão, denominando-a faculdade dos princípios. A expressão princípios é ambígua, e significa comumente apenas um conhecimento que pode ser usado como princípios, se bem que em si mesmo e segundo a sua origem não seja nenhum principium. Toda proposição geral, mesmo que seja tirada da experiência (por indução), pode servir como premissa maior em um silogismo, todavia, nem por isso ela é um principium. Os axiomas matemáticos (por exemplo, entre dois pontos pode haver só uma linha reta) são, ao invés, conhecimentos universais a priori e são por isso com justiça denominados princípios relativamente aos casos que podem ser subsumidos sob eles. Entretanto, nem por isso posso dizer que conheço esta propriedade das linhas retas, em geral e em si, a partir de princípios, mas somente na intuição pura. Em consequência disso, denominaria conhecimento a partir de princípios aquele em que conheço o particular no universal mediante conceitos. Assim é pois todo silogismo uma forma da dedução de um conhecimento a partir de um princípio. Com efeito, a premissa maior fornece sempre um conceito que faz com que tudo o que é subsumido sob sua condição seja conhecido a partir dele segundo um princípio. Ora, visto que todo conhecimento geral pode servir de premissa maior em um silogismo e que o entendimento oferece proposições universais a priori de tal espécie, podem também estes ser denominados princípios com respeito ao seu uso possível. Contudo, se consideramos estes princípios do entendimento puro em si mesmos, segundo a sua origem, então não são menos que conhecimentos a partir de conceitos. Com efeito, eles não seriam possíveis a priori, se não fizéssemos intervir a intuição pura (na Matemática) ou as condições de uma experiência possível em geral. Que tudo o que acontece tem uma causa não pode ser concluído a partir do conceito do que em geral acontece; muito antes, tal princípio mostra de que modo, daquilo que acontece, pode-se pela primeira vez obter um determinado conceito de experiência. Portanto, o entendimento não pode de modo algum fornecer conhecimentos sintéticos a partir de conceitos; estes são propriamente o que chamo simplesmente princípios. No entanto, todas as proposições gerais podem chamar-se em geral princípios comparativos. É um desejo antigo, que - ninguém o sabe quando - talvez algum dia se cumpra, que se possa enfim descobrir, em lugar da infinita multiplicidade de leis civis, os seus princípios, pois nisto unicamente, pode consistir o segredo para simplificar, como se diz, a legislação. Mas as leis são também aqui somente limitações da nossa liberdade sob condições pelas quais ela concorda completamente consigo mesma; elas, por conseguinte, referem-se a algo que é inteiramente obra nossa e do que podemos ser a causa mediante aqueles conceitos. Como, porém, objetos em si mesmos ou a natureza das coisas estejam subordinados a princípios e devam ser determinados segundo simples conceitos, se não é algo impossível, é pelo menos uma pretensão muito paradoxal. Seja como for (pois sobre isso temos a investigação ainda pela frente), deduz-se pelo menos daí que o conhecimento a partir de princípios (em si mesmos) é algo completamente diverso do simples conhecimento intelectual, que na verdade pode, sob a forma de um princípio, preceder também outros conhecimentos, mas em si mesmo (enquanto é sintético) não se funda sobre o simples pensamento, nem contém em si um universal segundo conceitos. Se o entendimento é uma faculdade da unidade dos fenômenos mediante regras, a razão é a faculdade da unidade das regras do entendimento sob princípios. Portanto, ela jamais se refere imediatamente à experiência ou a qualquer objeto, mas ao entendimento, para dar aos seus múltiplos conhecimentos unidade a priori mediante conceitos, a qual pode denominar-se unidade da razão e é de natureza completamente diferente da que pode ser produzida pelo entendimento. Este é o conceito geral da faculdade da razão, na medida em que pôde ser tornado compreensível ante a falta completa de exemplos (que só deverão ser dados no que se segue). B. Do uso lógico da razão Faz-se uma distinção entre o que é conhecido imediatamente e o que é somente inferido. Que numa figura delimitada por três linhas retas haja três ângulos, é conhecido imediatamente; que, porém, esses ângulos tomados em conjunto sejam iguais a dois retos, é apenas inferido. Visto que necessitamos constantemente inferir e que por fim nos acostumamos inteiramente com isso, acabamos não notando mais essa diferença, e tomamos frequentemente, como no chamado engano dos sentidos, por imediatamente percebido algo que, ao invés, apenas inferimos. Em toda inferência há uma proposição que se encontra a fundamento, e outra, a saber a consequência, que é tirada dessa, e finalmente a sucessão inferencial (consequência), segundo a qual a verdade da última proposição é inevitavelmente conectada com a verdade da primeira. Se o juízo inferido encontra-se já na primeira, de modo a poder ser deduzido sem mediação de uma terceira representação, a inferência chama-se imediata (consequentia immediata); prefiro denominá-la inferência do entendimento. Se, contudo, além do conhecimento posto a fundamento, é ainda necessário outro juízo para produzir a conclusão, a inferência chama-se inferência da razão (silogismo), Na proposição todos os homens são mortais encontram-se já as proposições: alguns homens são mortais, alguns mortais são homens, nada do que é imortal é homem; estas, portanto, são consequências imediatas da primeira proposição. Ao contrário, no referido juízo não se encontra a proposição: todos os doutos são mortais (pois o conceito de douto não se apresenta nele), e ela só pode ser deduzida daquele através de um juízo intermediário. Em todo silogismo, penso em primeiro lugar uma regra (maior) pelo entendimento. Em segundo lugar, subsumo um conhecimento sob a condição da regra (minor) mediante a capacidade de julgar. Finalmente, determino o meu conhecimento pelo predicado da regra (conclusio), por conseguinte a priori pela razão. A relação, portanto, que a premissa maior como regra representa entre um conhecimento e sua condição, constitui os diversos modos de silogismos. Estes são, portanto, de três espécies - assim como todos os juízos em geral, enquanto se distinguem pelo modo como expressam a relação de conhecimento no entendimento - a saber: silogismos categóricos, hipotéticos ou disjuntivos. Se, como acontece frequentemente, a conclusão é proposta como um juízo para ver se não decorre de juízos já dados pelos quais é pensado um objeto completamente diferente, então investigo no entendimento se a asserção desta conclusão não se encontra nele sob certas condições segundo uma regra universal. Ora, se encontro semelhante condição e o objeto da conclusão deixa-se subsumir sob a condição dada, então a conclusão é derivada da regra, que vale também para outros objetos do conhecimento. Vê-se a partir disso que a razão, ao inferir, procura reduzir a grande multiplicidade do conhecimento do entendimento ao número mínimo de princípios (condições universais), e deste modo produzir a sua suprema unidade. C. Do uso puro da razão Pode-se isolar a razão, e é então ela ainda uma fonte peculiar de conceitos e juízos, que surgem unicamente dela, e pelos quais se refere a objetos, ou é ela uma faculdade simplesmente subalterna de fornecer a conhecimentos dados certa forma, denominada lógica, e pela qual os conhecimentos do entendimento são somente subordinados uns aos outros, e regras inferiores subordinadas a outras superiores (cuja condição abrange em sua esfera a condição das regras inferiores) de acordo com o que pode ser realizado pela comparação de tais conhecimentos e regras? Esta é a questão com que agora nos ocupamos apenas preliminarmente. Na realidade a multiplicidade das regras e a unidade dos princípios é uma exigência da razão para levar o entendimento a um acordo completo consigo mesmo assim como o entendimento submete a conceitos o múltiplo da intuição e deste modo a leva a uma conexão. Todavia, um princípio de tal espécie não prescreve aos objetos nenhuma lei e não contém o fundamento da possibilidade de conhecê-los e determiná-los, em geral, enquanto tais, mas é simplesmente uma lei subjetiva de economia com respeito às provisões do nosso entendimento, para, mediante comparação dos seus conceitos, reduzir o uso geral dos mesmos ao seu número mínimo possível, sem que sejamos por isso autorizados a exigir dos objetos mesmos uma uniformidade tal que favoreça a comodidade e a extensão do nosso entendimento e a dar ao mesmo tempo uma validez objetiva a tal máxima. Em uma palavra, a questão é, se a razão em si, isto é, a razão pura a priori, contém princípios sintéticos e regras, e em que podem consistir estes princípios. O procedimento formal e lógico da razão nos silogismos instrui-nos já suficientemente com respeito ao fundamento sobre o qual repousará o princípio transcendental da razão no conhecimento sintético mediante a razão pura. Em primeiro lugar, o silogismo não se refere a intuições para subordiná-las a regras (como o faz o entendimento com suas categorias), mas a conceitos e juízos. Se, portanto, a razão pura refere-se também a objetos, não possui nenhuma relação imediata com eles e com sua intuição, mas somente com o entendimento e seus juízos, os quais voltam-se diretamente aos sentidos e sua intuição para determinar o seu objeto. A unidade da razão não é, portanto, unidade de uma experiência possível, mas é essencialmente distinta desta, que é a unidade do entendimento. Que tudo o que acontece tem uma causa, não é de modo algum um princípio conhecido e prescrito pela razão. Ele torna possível a unidade da experiência e não toma nada emprestado da razão, a qual, sem esta relação com a experiência possível, não teria podido, a partir de simples conceitos, impor nenhuma unidade sintética de tal espécie. Em segundo lugar, a razão procura, no seu uso lógico, a condição universal de seu juízo (conclusão), e o silogismo mesmo não é senão um juízo mediante a subsunção de sua condição sob uma regra geral (premissa maior). Ora, visto que esta regra está por sua vez exposta à mesma tentativa da razão, e deste modo se deve procurar até onde for possível (mediante um pró-silogismo), a condição da condição, vê-se bem que o princípio peculiar da razão em geral (no uso lógico) é: encontrar para o conhecimento condicionado do entendimento o incondicionado, pelo qual é completada a unidade de tal conhecimento. Esta máxima lógica não pode, porém, tornar-se um princípio da razão pura senão enquanto se admite: se o condicionado é dado, é também dada (isto é, é contida no objeto e na sua conexão) a série total das condições subordinadas entre si, a qual é, por conseguinte, incondicionada. Um tal princípio da razão pura é, porém, evidentemente sintético, pois o condicionado refere-se analiticamente, é verdade, a alguma condição qualquer, mas não ao incondicionado. Além disso, de tal princípio têm que, originar-se também diversas proposições sintéticas das quais o entendimento puro nada sabe, enquanto tem a ver somente com objetos de uma experiência possível cujo conhecimento e síntese são sempre condicionados. Porém, se o incondicionado efetivamente ocorre, pode ser considerado especialmente segundo todas as determinações que o distinguem de todo condicionado e deste modo tem que oferecer matéria para várias proposições sintéticas a priori. As proposições fundamentais, oriundas deste princípio supremo da razão pura, serão, entretanto, transcendentes, com respeito a todos os fenômenos, isto é, de tal princípio jamais poderá ser feito um uso empírico adequado. Ele distingue-se, portanto, completamente de todas as proposições fundamentais do entendimento (cujo uso é inteiramente imanente, enquanto possuem por tema somente a possibilidade da experiência). Ora, se aquele princípio - que a série das condições (na síntese dos fenômenos ou ainda do pensamento das coisas em geral) estende-se até o incondicionado - possui sua exatidão objetiva ou não; que consequências decorrem disso com respeito ao uso empírico do entendimento; ou se, antes, em geral, não existe nenhuma proposição racional de tal espécie objetivamente válida, mas uma prescrição meramente lógica de aproximar-se, no elevar-se a condições sempre mais altas, à completude destas e deste modo trazer ao nosso conhecimento a mais alta unidade da razão possível a nós; se - digo eu - esta necessidade da razão foi por equívoco considerada um princípio transcendental da razão pura, princípio este que apressadamente postula tal completude ilimitada da série das condições nos objetos mesmos; que mal-entendidos e ilusões podem ainda insinuar-se nos silogismos, cuja premissa maior foi tomada da razão pura (premissa que é talvez mais uma petição do que um postulado), e que se elevam da experiência até suas condições: esta será nossa tarefa na dialética transcendental, a qual queremos agora desenvolver a partir de suas fontes que se encontram profundamente ocultas na razão. Dividi-la-emos em duas partes, devendo a primeira tratar dos conceitos transcendentes da razão pura, e a segunda dos silogismos transcendentes e dialéticos da razão pura. LIVRO PRIMEIRO DA DIALÉTICA TRANSCENDENTAL DOS CONCEITOS DA RAZÃO PURA INDEPENDENTEMENTE de que peculiaridades tenha a possibilidade dos conceitos a partir da razão pura, trata-se de conceitos não simplesmente refletidos, mas inferidos. Também os conceitos do entendimento são pensados a priori antes da experiência e com vista a ela, estes, contudo, não contêm senão a unidade da reflexão sobre os fenômenos enquanto devem necessariamente pertencer a uma consciência empírica possível. Somente através deles tornam-se possíveis o conhecimento e a determinação de um objeto. Eles, portanto, fornecem primeiramente matéria para a inferência e não são precedidos por conceitos a priori de objetos, dos quais pudessem ser inferidos. A sua realidade objetiva, ao contrário, funda-se unicamente no fato que - constituindo eles a forma intelectual de toda a experiência - a sua aplicação tem que sempre poder ser mostrada na experiência. A denominação de conceito da razão, entretanto, mostra já preliminarmente que ele não quer deixar-se limitar pelo âmbito da experiência, porque concerne a um conhecimento, do qual cada conhecimento empírico - e talvez o todo da experiência possível ou da sua síntese empírica -, é somente uma parte e para o qual, na verdade, nenhuma experiência efetiva jamais basta plenamente. Os conceitos da razão servem para conceber, assim como os do entendimento para compreender (as percepções). Se os primeiros contêm o incondicionado, então dizem respeito a algo ao qual toda a experiência é subordinada, mas que não é ele mesmo jamais objeto de experiência: algo ao qual a razão conduz em suas inferências a partir da experiência e conforme ao qual avalia e mede o grau de seu uso empírico, sem contudo constituir jamais um membro da síntese empírica. Se apesar disso, tais conceitos possuem validez objetiva, podem denominar-se conceptus ratiocinati (conceitos corretamente inferidos); se não a possuem, são pelo menos obtidos artificiosamente mediante uma ilusão da inferência e podem denominar-se conceptus ratiocinantes (conceitos sofísticos). Entretanto, já que isto só pode ser acertado no capítulo sobre as inferências dialéticas da razão pura, não podemos considera-lo ainda, mas, preliminarmente, assim como denominamos os conceitos puros do entendimento de categorias, imporemos aos conceitos da razão pura um novo nome e chamá-los-emos ideias transcendentais. Elucidaremos e justificaremos agora esta denominação. SEÇÃO PRIMEIRA DO LIVRO PRIMEIRO DA DIALÉTICA TRANSCENDENTAL DAS IDEIAS EM GERAL Não obstante a grande riqueza de nossas línguas, o pensador encontra-se frequentemente confuso à procura de uma expressão que se adapte exatamente ao seu conceito, e na falta da qual não pode fazer-se entender corretamente nem a outros e nem mesmo a si próprio. Forjar novas palavras constitui pretensão de legislar em línguas, que raramente é bem-sucedida. Antes de recorrer-se a este meio, é aconselhável ver se numa língua morta e erudita já não se encontra tal conceito juntamente com sua expressão adequada. E se o uso antigo de tal expressão por inadvertência dos seus autores se tivesse tornado um tanto vacilante, é sempre melhor consolidar a significação que preeminentemente lhe convinha (mesmo que devesse permanecer também duvidoso se outrora se tinha exatamente a mesma em mente), do que arruinar o seu negócio somente pelo fato de ter-se tornado incompreensível. Em vista disso, se para certo conceito só se encontrasse uma única palavra, que na sua significação já vigente adapta-se exatamente a esse conceito, cuja distinção de outros conceitos afins é de grande importância, em tal caso é aconselhável não proceder prodigamente com a mesma ou apenas para variar usá-la como sinônimo em vez de outras, mas conservar cuidadosamente sua significação peculiar. Do contrário ocorrerá facilmente que depois de a expressão já não prender particularmente a atenção, e de perder-se na multidão das outras expressões de significação bem divergente, perca-se também o pensamento, que unicamente ela teria podido conservar. Platão serviu-se da expressão ideia de modo tal, que se via bem que por ela entendeu algo que não somente é jamais tomado emprestado dos sentidos, mas que ultrapassa de longe os próprios conceitos do entendimento com os quais Aristóteles se ocupava, na medida em que na experiência não é encontrado nada congruente com ela. Para Platão as ideias são arquétipos das próprias coisas e não como as categorias meramente chaves para experiências possíveis. Na sua opinião, elas emanaram da razão suprema, desde a qual tornaram-se partícipes da razão humana, a qual, todavia, não mais se encontra no seu estado originário mas com esforço tem que reevocar, mediante a recordação (denominada Filosofia), as antigas ideias agora muito obscurecidas. Não quero meter-me aqui em nenhuma investigação literária para estipular o sentido que o sublime filósofo ligou a sua expressão. Observo apenas que não é nada insólito, tanto na conversação comum como nos escritos, pela comparação dos pensamentos externados pelo autor sobre seu objeto, entendê-lo inclusive melhor do que ele mesmo se entendeu na medida em que não determinou suficientemente o seu conceito e deste modo por vezes falou ou até pensou de encontro à sua própria intenção. Platão observou muito bem que a nossa capacidade cognitiva sente uma necessidade bem mais alta do que simplesmente soletrar fenômenos segundo uma unidade sintética para poder lê-los como experiência, e que a nossa razão eleva-se naturalmente a conhecimentos, que transcendem de muito a capacidade de qualquer objeto, proporcionável pela experiência, de jamais congruir com os mesmos. Tais conhecimentos possuem apesar disso a sua realidade e de modo algum são simples quimeras. Platão encontrou suas ideias predominantemente em tudo o que é pratico, (Ele certamente estendeu o seu conhecimento também aos conhecimentos especulativos, conquanto fossem dados só de modo puro e a priori, e estendeu-o mesmo à Matemática, se bem que esta possua o seu objeto somente e na experiência possível. Nisso não posso segui-lo aqui, tampouco na dedução mística dessas ideias ou nos exageros pelos quais por assim dizer as hipostasiava, apesar da elevada linguagem de que se servia nesse campo prestar-se muito bem a uma interpretação mais moderada e adequada à natureza das coisas. Nota do Autor.) isto é, no que se funda sobre a liberdade, a qual por sua vez faz parte de conhecimentos que são um produto peculiar da razão. Quem quisesse tirar os conceitos de virtude da experiência e quisesse constituir como modelo da fonte de conhecimento (como muitos realmente o fizeram) o que quando muito pode servir somente de exemplo para uma elucidação imperfeita, esse faria da virtude um equívoco não ente, variável segundo o tempo e as circunstâncias e imprestável como regra. Ao contrário, cada um dá-se conta, quando alguém lhe é apresentado como modelo de virtude, de possuir sempre o verdadeiro original apenas em sua própria cabeça com ele comparando e por ele unicamente avaliando esse pretenso modelo. Tal original é, porém, a ideia de virtude, com vista à qual todos os objetos possíveis da experiência na verdade servem como exemplos (provas da factibilidade daquilo que em certo grau é requerido pelo conceito da razão), mas não como arquétipos. O fato de que um homem jamais agirá adequadamente ao que a ideia pura da virtude contém de modo algum prova algo quimérico neste pensamento. Com efeito, todo o juízo sobre o valor ou o desvalor moral é, não obstante, possível somente através dessa ideia; por conseguinte, ela encontra-se necessariamente a fundamento de toda aproximação da perfeição moral, por mais distantes que possam manter-nos desta perfeição os obstáculos presentes na natureza humana e não determináveis em seu grau. A República platônica tornou-se proverbial como um pretenso exemplo, que salta aos olhos, de perfeição quimérica que só pode ter sua sede no cérebro do pensador ocioso; e Brucker acha ridícula a afirmação do filósofo, de que um príncipe jamais regeria bem se não participasse das ideias. Investigando mais este pensamento e (onde o esmerado homem nos deixa sem ajuda) colocando-o à luz mediante novos esforços proceder-se-ia contudo melhor do que sob os muito míseros e prejudiciais pretextos de impraticabilidade, pondo-o de lado como inútil. Uma constituição da máxima liberdade humana, segundo leis que façam com que a liberdade de cada um possa coexistir com a liberdade dos outros (não uma constituição da máxima felicidade, pois esta seguir-se-á já espontaneamente), é pelo menos uma ideia necessária, que tem de ser posta a fundamento não somente do primeiro projeto de uma constituição política, mas também de todas as leis, e em que inicialmente se tem que abstrair dos obstáculos presentes, que talvez possam originar-se não tanto inevitavelmente da natureza humana quanto do desleixo das autênticas ideias na legislação. Com efeito, não se pode encontrar algo mais prejudicial e mais indigno de um filósofo do que o apelo vulgar a uma experiência pretensamente contraditória, que simplesmente não existiria se no tempo oportuno fossem encontradas aquelas instituições segundo as ideias e se no seu lugar conceitos rudes justamente por terem sido tirados da experiência não tivessem frustrado toda a boa intenção. Quanto mais a legislação e o governo fossem estabelecidos conformes com esta ideia, tanto mais raras seriam com certeza as penas; e é, pois, perfeitamente racional pensar (como Pia tão afirma) que numa perfeita ordenação da legislação e do governo nenhuma pena seria necessária. Ora se bem que este último caso jamais possa vir a ocorrer, é não obstante inteiramente certa a ideia, que apresenta este maximum como arquétipo para, segundo ele, aproximar sempre mais a constituição jurídica humana da maior perfeição possível. Com efeito, ninguém pode e deve determinar qual seja o grau supremo em que a humanidade tenha que deter-se e quão grande seja a distância que necessariamente reste entre a ideia e sua execução, porque precisamente a liberdade pode exceder todo limite invocado. Mas Platão, com justiça, vê claras provas da origem a partir de ideias não somente naquilo em que a razão humana mostra verdadeira causalidade e onde ideias tornam-se causas eficientes (das ações e dos seus objetos), a saber, no campo ético, mas também com respeito à própria natureza. Uma planta, um animal, a ordenação regular do sistema cósmico (provavelmente também a completa ordem natural) mostram claramente: que são possíveis somente segundo ideias; que na verdade nenhuma única criatura sob as condições singulares de sua existência jamais é adequada à ideia do que há de mais perfeito em sua espécie (assim como tampouco o homem é adequado à ideia de humanidade que ele próprio traz em sua alma como arquétipo de suas ações) que aquelas ideias, todavia, no entendimento supremo estão individual, imutável e inteiramente determinadas e são as causas originárias das coisas sendo apenas o todo da ligação das coisas no universo plenamente adequado àquela ideia. Uma vez que se abstraia do exagero contido na expressão, o ímpeto espiritual do filósofo de elevar-se da observação da cópia do que é físico na ordem do mundo à conexão arquitetônica da mesma segundo fins, isto é, segundo ideias, é um esforço merecedor de respeito e imitação; já com respeito aos princípios da moralidade, da legislação e da religião, onde as ideias tornam a experiência mesma (o bem) pela primeira vez possível, conquanto jamais possam ser expressas inteiramente nelas, as ideias possuem um mérito peculiaríssimo, que só não é reconhecido por ser julgado segundo regras empíricas, cuja validez enquanto princípios devia justamente ter sido suprimida pelas ideias. Com efeito, relativamente à natureza a experiência fornece-nos a regra e é a fonte da verdade; porém, no que concerne às leis morais, a experiência é (infelizmente) a mãe da ilusão; e é sumamente reprovável tirar as leis sobre o que devo fazer daquilo que é feito ou querer limitar a primeira coisa pela segunda. Em vez de todas estas considerações, cujo conveniente desenvolvimento de fato constitui a dignidade peculiar da Filosofia, ocupar-nos-emos agora com um trabalho não tão brilhante, mas nem por isso desmerecedor, a saber, de aplainar e consolidar o terreno para aqueles majestosos edifícios morais nos quais se encontra toda a espécie de galerias de toupeira, cavadas por uma razão à procura inútil, mas bem-intencionada, de tesouros e que tornam insegura aquela construção. O conhecimento exato do uso transcendental da razão pura, dos seus princípios e das suas ideias é a tarefa que agora nos cumpre desempenhar para poder determinar e avaliar convenientemente a influência e o valor da razão pura. Todavia, antes de deixar esta introdução preliminar, peço àqueles que trazem a Filosofia sobre o coração (com o que se diz mais do que é comumente verdadeiro) - se encontrarem-se convencidos do que foi dito e do que se seguirá - de tomarem sob sua proteção a expressão ideia na sua significação original, para que futuramente não caia entre as demais expressões com as quais é costumeiramente designada em despreocupada desordem toda sorte de representações e para que não se perca com isso a ciência. Entretanto, não nos faltam denominações que são convenientemente adequadas a toda espécie de representação, sem que tenhamos necessidade de intervir na propriedade de uma outra. Eis uma escala de tais denominações: O gênero é a representação em geral (repraesentatio). Sob ele está a representação com consciência (perceptio). Uma percepção que se refere unicamente ao sujeito enquanto modificação do seu estado é sensação (sensatio); uma percepção objetiva é conhecimento (cognitivo). Este é ou intuição ou conceito (intuitus vel conceptus). A primeira refere-se imediatamente ao objeto e é singular; o segundo refere-se mediatamente a ele, mediante um traço que pode ser comum a mais coisas. O conceito é ou empirico ou puro, e enquanto tem sua origem unicamente no entendimento (não na imagem pura da sensibilidade) denomina-se notio. Um conceito a partir de noções, que ultrapassa a possibilidade da experiência, é a ideia ou o conceito racional. Para aquele que uma vez se acostumou com esta distinção tem que tornar-se insuportável ouvir chamar de ideia a representação da cor roxa. Esta representação não pode sequer ser chamada noção (conceito intelectual). SEÇÃO SEGUNDA DO LIVRO PRIMEIRO DA DIALÉTICA TRANSCENDENTAL DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS A analítica transcendental deu-nos um exemplo de como a simples forma lógica do nosso conhecimento pode conter a priori a origem de conceitos puros, que representam objetos anteriormente a toda a experiência ou, antes, indicam a unidade sintética que unicamente torna possível um conhecimento empírico de objetos. A forma dos juízos (convertida num conceito da síntese das intuições) produziu categorias, que dirigem todo o uso do entendimento na experiência. Do mesmo modo podemos esperar que a forma dos silogismos, se for aplicada à unidade sintética das intuições segundo a norma das categorias, conterá a priori a origem de certos conceitos que podemos denominar conceitos puros da razão ou ideias transcendentais e que determinarão segundo princípios o uso do entendimento na totalidade da experiência. A função da razão nas suas inferências consiste na universalidade do conhecimento por conceitos, e o próprio silogismo é um juízo, que é determinado a priori na extensão total de sua condição. A proposição - Caio é mortal - poderia também ser extraída por mim da experiência simplesmente mediante o entendimento. Todavia, procuro um conceito que contém a condição sob a qual é dado o predicado (asserção em geral) deste juízo (isto é, aqui o conceito de homem); e depois de ter subsumido o predicado sob essa condição, tomada em toda a sua extensão (todos os homens são mortais), determino a seguir o conhecimento de meu objeto (Caio é mortal). Por isso na conclusão de um silogismo restringimos um predicado a certo objeto, depois de o termos pensado na premissa maior em toda a sua extensão sob certa condição. Esta magnitude inteira da extensão em relação com tal condição denomina-se universalidade (universalitas). A esta corresponde na síntese das intuições a totalidade! (universitas) das condições. Portanto, o conceito transcendental da razão não é senão o da totalidade das condições para um condicionado dado. Ora, visto que unicamente o incondicionado torna possível a totalidade das condições e que inversamente a totalidade das condições é sempre incondicionada, um conceito racional puro em geral pode ser explicado mediante o conceito de incondicionado enquanto contém um fundamento da síntese do condicionado. Ora, tantas quantas são as espécies de relação que o entendimento se representa mediante as categorias, serão também os conceitos puros da razão. Portanto, dever-se-á procurar em primeiro lugar um incondicionado da síntese categórica em um sujeito, em segundo lugar um incondicionado da síntese hipotética dos membros de uma série, em terceiro lugar um incondicionado da síntese disjuntiva das partes em um sistema. Tantas são de fato as espécies de silogismos, cada um dos quais progride mediante pró-silogismos para o incondicionado: um para o sujeito que não é mais ele mesmo predicado; o outro para a pressuposição que não pressupõe nenhuma outra coisa; o terceiro para um agregado de membros da divisão, para os quais não se requer nada ulterior para completar a divisão de um conceito. Portanto, os conceitos racionais puros da totalidade na síntese das condições são necessários pelo menos como problemas para fazer progredir a unidade do conhecimento se possível até o incondicionado e são fundados na natureza da razão humana, embora de resto tais conceitos transcendentais possam carecer de um uso adequado in concreto e, por conseguinte, não possuem nenhuma outra utilidade que a de conduzir o entendimento em direção à qual o seu uso enquanto é ampliado ao máximo possível é ao mesmo tempo posto em perfeito acordo consigo mesmo. Todavia, enquanto tratamos aqui da totalidade das condições e do incondicionado, como título comum a todos os conceitos da razão, tropeçamos de novo com uma expressão que não podemos dispensar e, não obstante, não podemos usar com segurança em virtude da ambiguidade inerente a ela por um longo abuso. O termo absoluto é uma das poucas palavras que na sua significação primitiva foram adequadas a um conceito, ao qual não se adapta perfeitamente nenhuma outra palavra da mesma língua. A perda de tal termo - ou, o que é equivalente, o seu uso vacilante - implica também necessariamente a perda do próprio conceito, e na verdade de um conceito do qual, pelo fato de ocupar muitíssimo a razão, não se pode prescindir sem grande prejuízo de todas as avaliações transcendentais. O termo absoluto passa agora a ser mais frequentemente usado para indicar simplesmente que algo é considerado com respeito a uma coisa em si mesma e que, portanto, possui um valor intrínseco. Nesta significação, absolutamente possível significaria o que é possível em si mesmo (internamente) e isto na realidade é o mínimo que se pode dizer sobre um objeto. Esta expressão, ao contrário, é por vezes usada também para indicar que algo é válido em toda a relação (ilimitadamente; por exemplo, a soberania absoluta). Nesta significação, absolutamente possível significaria o que é possível em todos os sentidos e sob todas as relações, e isto por sua vez é o máximo que posso dizer sobre a possibilidade de uma coisa. Ora, na verdade essas significações frequentemente coincidem. Assim, por exemplo, o que é internamente impossível é também em toda a relação, por conseguinte, absolutamente impossível. Mas na maioria dos casos tais significações estão separadas por uma distância infinita e não posso de maneira alguma concluir que pelo fato de algo ser em si mesmo possível, seja-o também em toda a relação, por conseguinte, absolutamente. No que se segue mostrarei que a necessidade absoluta de modo algum depende em todos os casos da necessidade interna e que, portanto, não tem que ser considerada equivalente a esta. Se o contrário de uma coisa é internamente impossível, tal contrário é certamente impossível também sob todos os aspectos, por conseguinte, tal coisa é ela mesma absolutamente necessária. Mas não posso concluir inversamente que o contrário do que é absolutamente necessário seja internamente impossível, isto é, que a absoluta necessidade das coisas seja uma necessidade interna, pois esta necessidade interna é em certos casos uma expressão totalmente vazia com a qual não podemos ligar o mínimo conceito; ao contrário, a expressão necessidade de uma coisa em todas as relações (com respeito a todo o possível) implica determinações inteiramente peculiares. Ora, visto que a perda de um conceito de grande aplicação na sabedoria especulativa do mundo não pode jamais ser indiferente ao filósofo, espero que não lhe seja tampouco indiferente a determinação e cuidadosa conservação da expressão à qual o conceito é inerente. Servir-me-ei, pois, da palavra absoluto nesta significação ampliada e opô-la-ei ao que é válido apenas comparativamente ou sob um aspecto particular, pois este está restringido a condições, aquele, porém, vale sem restrição. Ora, o conceito transcendental da razão sempre se refere apenas à totalidade absoluta na síntese das condições e jamais termina senão no absolutamente incondicionado - isto é, incondicionado em toda relação. Com efeito, a razão pura deixa tudo ao encargo do entendimento, que se refere imediatamente aos objetos da intuição ou, antes, à sua síntese na capacidade de imaginação. A razão reserva para si somente a totalidade absoluta no uso dos conceitos do entendimento e procura conduzir a unidade sintética, que é pensada na categoria, até o absolutamente incondicionado. Por isso se pode denominar esta de unidade da razão com respeito aos fenômenos, assim como aquela que é expressa pela categoria, de unidade do entendimento. Deste modo, portanto, a razão relaciona-se somente com o uso do entendimento, e na verdade não enquanto este contém o fundamento da experiência possível (pois a totalidade absoluta das condições não é nenhum conceito utilizável em uma experiência, já que nenhuma experiência é incondicionada), mas somente para prescrever a tal uso uma direção rumo a certa unidade da qual o entendimento não possui nenhum conceito e que tende a recolher todas as ações do entendimento, com respeito a cada objeto, em um todo absoluto. O uso objetivo dos conceitos puros da razão é, em vista disso, sempre transcendente, enquanto dos conceitos puros do entendimento tem que ser, segundo a sua natureza, sempre imanente, na medida em que se limita simplesmente à experiência possível. Por ideia entendo um conceito necessário da razão ao qual não pode ser dado nos sentidos nenhum objeto congruente. Portanto, os nossos conceitos racionais puros ora considerados são ideias transcendentais. Eles são conceitos da razão pura, pois consideram todo o conhecimento empírico como determinado por uma absoluta totalidade das condições. Não são inventados arbitrariamente, mas propostos pela natureza da razão mesma, relacionando-se por isso necessariamente ao uso total do entendimento. São, por fim, transcendentes e ultrapassam os limites de toda a experiência, na qual, consequentemente, não poderá jamais apresentar-se um objeto que seja adequado à ideia transcendental. Quando se nomeia uma ideia, diz-se com respeito ao objeto (enquanto objeto do entendimento puro) muitíssimo, mas com respeito ao sujeito (isto é, com respeito à sua realidade sob a condição empírica) pouquíssimo, porque ela, como conceito de um maximum, não poderá jamais ser dada congruentemente in concreto. Ora, visto que no uso meramente especulativo da razão este último constitui propriamente o inteiro objetivo e que a aproximação a um conceito, que na prática, porém, não será jamais alcançado, equivale a falhar totalmente, então com respeito a tal conceito se diz: ele é somente uma ideia. Deste modo poder-se-ia dizer: a totalidade absoluta dos fenômenos é somente uma ideia; com efeito, visto que jamais podemos projetar na imagem tal totalidade, permanece ela um problema sem solução. Ao contrário, visto que no uso prático do entendimento tem-se a ver unicamente com uma prática segundo regras, pode a ideia da razão prática ser sempre realmente dada in concreto, se bem que apenas parcialmente; antes, ela é a condição indispensável de todo o uso prático da razão. A realização da ideia é sempre limitada e defeituosa, mas sob limites indetermináveis, portanto, sempre sob a influência do conceito de uma completude absoluta. Consequentemente, a ideia prática é sempre sumamente fecunda e, com respeito às ações reais, incontestavelmente necessária. Nela a razão pura possui até causalidade para produzir efetivamente o que o seu conceito contém. Por isso não se pode dizer - como que depreciativamente - da sabedoria: ela é somente uma ideia. Mas justamente por ser uma ideia da unidade necessária de todos os fins possíveis, a sabedoria tem que servir de regra originária - pelo menos restritiva - para todo o prático. Ora, conquanto tenhamos que dizer, com respeito aos conceitos transcendentais da razão: eles são somente ideias, não os consideraremos de modo algum como supérfluos e nulos. Com efeito, se mediante eles já não pode ser determinado nenhum objeto, eles, não obstante, podem, no fundo e sem que se perceba, servir ao entendimento como cânone para o seu uso ampliado e coerente, pelo qual, na verdade, não conhece mais nenhum objeto como os que ele conheceria pelos seus conceitos, mas, não obstante, é guiado melhor e adiante nesse conhecimento. Cala-se com isso o fato que tais conceitos transcendentais da razão tomem talvez possível uma passagem dos conceitos naturais aos conceitos práticos e deste modo possam fornecer às ideias morais mesmas consistência e conexão com conhecimentos especulativos da razão. Sobre tudo isso deve-se esperar o esclarecimento no que se segue. De acordo, porém, com o nosso objetivo, aqui deixamos de lado as ideias práticas e consideramos, por conseguinte, a razão somente no uso especulativo e dentro deste, num uso ainda mais restrito, a saber, no transcendental. Ora, aqui temos que empreender o mesmo caminho tomado acima na dedução das categorias, a saber, examinar a forma lógica do conhecimento da razão e ver se desse modo também a razão não se toma porventura uma fonte de conceitos para tratar de objetos em si mesmos como determinados sinteticamente a priori com respeito a uma ou outra função da razão. A razão, considerada como faculdade de certa forma lógica do conhecimento, é a faculdade de inferir, isto é, de julgar mediatamente (mediante a subsunção da condição de um juízo possível sob a condição de um juízo dado). O juízo dado é a regra universal (premissa maior, maior). A subsunção da condição de outro juízo possível sob a condição da regra é a premissa menor (minor). O juízo real, que expressa a asserção da regra no caso subsumido, é a conclusão (conclusio). A regra expressa algo universalmente sob certa condição. Ora, a condição da regra verifica-se em um caso concreto. Logo, o que sob aquela condição valia universalmente é também considerado válido no caso concreto (que implica esta condição). Vê-se facilmente que a razão chega a um conhecimento mediante ações do entendimento que constituem uma série de condições. Se chego à proposição: todos os corpos são mutáveis, somente mediante o fato que começo do conhecimento mais remoto (em que ainda não se apresenta o conceito de corpo, embora contenha a condição de tal conceito): todo o composto é mutável; e se dessa procedo a uma proposição mais próxima submetida à condição da primeira os corpos são compostos; e se a partir desta proposição pela primeira vez chego a uma terceira, que doravante conecta o conhecimento remoto (mutável) com o presente: logo os corpos são mutáveis; então cheguei a um conhecimento (conclusão) mediante uma série de condições (premissas). Ora, toda série cujo expoente (o juízo categórico ou hipotético) é dado pode ser continuada; por conseguinte, a mesma ação da razão conduz à ratiocinatio polysyllogistica, a qual é uma série de silogismos, que pode ser continuada indefinidamente, ou do lado das condições (per prosyllogismos) ou do lado do condicionado (per episyllogismos). Mas bem depressa dar-nos-emos conta de que a cadeia ou série dos pró-silogismos, isto é, dos conhecimentos derivados do lado dos fundamentos ou das condições para um conhecimento dado, com outras palavras, que a série ascendente dos silogismos tem que comportar-se em confronto com a faculdade da razão de modo diverso da série descendente, isto é, do progresso da razão do lado do condicionado mediante epi-silogismos. Com efeito, visto que no primeiro caso o conhecimento (conclusio) só é dado como condicionado, não se pode chegar a ele pela razão senão, pelo menos, sob a pressuposição de que todos os membros da série do lado das condições são dados (totalidade na série das premissas), porque somente sob a sua pressuposição o juízo em questão é possível a priori; ao contrário, do lado do condicionado ou das consequências, é pensada somente uma série em devir e não já uma série totalmente pressuposta ou dada, por conseguinte, somente um progresso potencial. Por isso, se um conhecimento é considerado como condicionado, a razão é obrigada a considerar a série das condições em linha ascendente como completa e como dada em sua totalidade. Se, porém, o mesmo conhecimento for simultaneamente considerado como condição de outros conhecimentos que entre si constituem uma série de consequências em linha descendente, em tal caso a razão pode ser totalmente indiferente até que ponto este progresso se estenda “a parte posteriori", e se a totalidade desta série é de algum modo possível ou não; ela efetivamente, não necessita de tal série para a conclusão que se encontra diante de si, na medida em que esta, “a parte priori", já está suficientemente determinada e assegurada pelos seus fundamentos. Na verdade, quer do lado das premissas a série das condições possua como condição suprema um primeiro termo, quer não, e, portanto, seja “a parte priori" sem limites, ela tem que conter uma totalidade de condições, posto que jamais chegássemos a abarcá-la, e a série total das condições tem que ser incondicionalmente verdadeira se o condicionado - que é considerado uma consequência surgida dela - deve valer como verdadeiro. Isto é uma exigência da razão, que determina o seu conhecimento como a priori e anuncia-o como necessário ou em si mesmo, e então não necessita de nenhum fundamento, ou - se é derivado - como um membro de uma série de fundamentos, que é ela mesma incondicionalmente verdadeira. SEÇÃO TERCEIRA DO LIVRO PRIMEIRO DA DIALÉTICA TRANSCENDENTAL SISTEMA DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS Não nos ocupamos aqui com uma dialética lógica, que abstrai de todo o conteúdo do conhecimento e descobre unicamente a falsa aparência na forma dos silogismos, mas com uma dialética transcendental, que deve conter inteiramente a priori a origem de certos conhecimentos a partir da razão pura, e de certos conceitos inferidos, cujo objeto não pode de modo algum ser dado empiricamente e que, portanto, se encontram totalmente fora da faculdade do entendimento puro. Da relação natural que o uso transcendental do nosso conhecimento tanto em silogismo quanto em juízos tem que ter com o uso lógico, concluímos que haverá somente três modos de inferências dialéticas que se relacionam com as três espécies de inferências pelas quais a razão pode chegar a conhecimentos a partir de princípios e que a tarefa da razão consiste sempre em ascender da síntese condicionada, à qual o entendimento permanece sempre ligado, à incondicionada, que ele jamais pode alcançar. Ora, o universal de toda a relação que as nossas representações podem ter, consiste: 1. na relação com o sujeito, 2. na relação com os objetos, e, na verdade, ou como fenômenos ou como objetos do pensamento em geral. Se se liga esta subdivisão com a precedente, então a relação das representações de que podemos formar um conceito ou uma ideia é de três espécies: 1. a relação com sujeito, 2. com o múltiplo do objeto no fenômeno, 3. com todas as coisas em geral. Ora, todos os conceitos puros em geral têm a ver com a unidade sintética das representações e os conceitos da razão pura (ideias transcendentais), por sua vez, com a unidade sintética incondicionada de todas as condições em geral. Consequentemente, todas as ideias transcendentais podem reduzir-se a três classes, cuja primeira contém a unidade absoluta (incondicionada) do sujeito pensante, a segunda, a unidade absoluta da série das condições do fenômeno, a terceira, a unidade absoluta da condição de todos os objetos do pensamento em geral. O sujeito pensante é o objeto da Psicologia; o conjunto de todos os fenômenos (o mundo), o objeto da Cosmologia; e a coisa, que contém a condição suprema da possibilidade de tudo o que pode ser pensado (o ente de todos os entes), o objeto da Teologia. Portanto, a razão pura fornece a ideia para uma doutrina transcendental da alma (psychologia rationalis), para uma ciência transcendental do mundo (cosmologia rationalis), finalmente também para um conhecimento transcendental de Deus (theologia transcendentalis). Mesmo o simples projeto de uma ou outra dessas ciências não provém absolutamente do entendimento, ainda que ele estivesse ligado ao uso lógico supremo da razão - isto é, a todos os silogismos imagináveis, com o fim de proceder de um objeto de tal uso (fenômenos) a todos os outros, até os membros mais remotos da síntese empírica - mas é unicamente um produto puro e autêntico ou problema da razão pura. Quais modi dos conceitos puros da razão estão compreendidos sob esses três títulos de todas as ideias transcendentais será exposto inteiramente no próximo capítulo. Tais modi seguem o fio condutor das categorias. Com efeito, a razão pura jamais se refere imediatamente a objetos, mas aos conceitos intelectuais dos mesmos. Do mesmo modo só na abordagem completa esclarecer-se-á como a razão - unicamente mediante o uso sintético da mesma função da qual se serve para o silogismo categórico - tenha que chegar necessariamente ao conceito da unidade absoluta do sujeito pensante; como procedimento lógico nos silogismos hipotéticos tenha que implicar ideias do absolutamente incondicionado em uma série de condições dadas; finalmente, como a simples forma do silogismo disjuntivo tenha que implicar o conceito racional supremo de um ente de todos os entes; um pensamento que à primeira vista parece ser extremamente paradoxal. Destas ideias transcendentais não é possível propriamente nenhuma dedução objetiva como a que pudemos fornecer com respeito às categorias, pois elas de fato não possuem nenhuma relação com qualquer objeto que pudesse ser-lhes dado congruentemente e isso justamente por serem somente ideias. Mas pudemos empreender uma derivação) subjetiva de tais ideias a partir da natureza da nossa razão e esta foi também realizada no presente capítulo. Vê-se facilmente que a razão pura não possui nenhum outro objetivo a não ser o da totalidade absoluta da síntese do lado das condições (seja de inerência, de dependência, ou de concorrência), e que com a absoluta completude do lado do condicionado ela não consegue nada. Com efeito, a razão necessita unicamente a primeira totalidade para pressupor a série total das condições e deste modo fornecê-la a priori ao entendimento. Se, porém, existe alguma condição dada inteiramente (e condicionalmente), então não se precisa mais de um conceito da razão para prosseguir a série, pois o entendimento faz por si todo passo para baixo, da condição ao condicionado. Deste modo as ideias transcendentais servem somente para ascender, na série das condições, até o incondicionado, isto é, até os princípios. Todavia, com respeito ao descer ao condicionado, há um uso lógico bastante extenso que nossa razão faz das leis do entendimento, mas nenhum uso transcendental; e, se nos formamos uma ideia da absoluta totalidade de tal síntese (do progressus), por exemplo, da série total de todas as mudanças futuras do mundo, trata-se então de um ente de pensamento (ens rationis), que é pensado só arbitrariamente e não pressuposto necessariamente pela razão. Com efeito, para a possibilidade do condicionado é, na verdade, pressuposta a totalidade de suas condições, mas não de suas sucessões. Consequentemente, tal conceito não é nenhuma ideia transcendental, com a qual unicamente nos ocupamos aqui. Por fim, também nos damos conta de que entre as próprias ideias transcendentais transparece certa conexão e unidade e de que a razão pura, mediante elas, conduz todos os seus conhecimentos a um sistema. O proceder do conhecimento de si mesmo (da alma) ao conhecimento do mundo e, mediante este, ao ente originário, é um progresso tão natural, que parece semelhante ao progresso lógico da razão desde as premissas até a conclusão. (A metafísica tem por fim próprio da sua investigação apenas três ideias: Deus, liberdade e imortalidade, de modo que o segundo conceito ligado ao primeiro deve conduzir ao terceiro como conclusão necessária. Tudo aquilo com o que esta ciência se ocupa além disso, serve-lhe simplesmente como meio para alcançar essas ideias e a sua realidade. Necessita-as, não para os fins da Ciência Natural, mas para ultrapassar a natureza. O conhecimento das mesmas faria a Teologia, a Moral e pela ligação de ambas a Religião, por conseguinte, os fins supremos da nossa existência, dependerem meramente da faculdade especulativa da razão e de nada mais. Numa representação sistemática daquelas ideias, a referida ordem seria, enquanto sintética, a mais conveniente; mas na elaboração que necessariamente precisa precedê-la, a ordem analítica, que inverte a anterior, será mais adequada ao fim de realizar completamente o nosso grande projeto, na medida em que daquilo que a experiência fornece-nos imediatamente, a doutrina da alma, progredimos à doutrina do mundo e desta ao conhecimento de Deus. Nota do Autor.) Ora, se aqui efetivamente subjaz escondida uma afinidade da mesma espécie que entre os procedimentos lógico e transcendental, é também uma das questões por cuja solução se tem que esperar no curso destas investigações. Por ora já alcançamos o nosso objetivo, visto que conseguimos tirar desta ambígua situação os conceitos transcendentais da razão, que do contrário, na teoria dos filósofos, misturam-se habitualmente com outros conceitos, sem serem uma só vez distinguidos convenientemente por eles dos conceitos do entendimento; conseguimos indicar a sua origem, e assim ao mesmo tempo o seu número determinado - que não pode ter mais nenhum acima de si - representando-os em uma conexão sistemática por meio da qual é assinalado e delimitado um campo peculiar da razão pura. LIVRO SEGUNDO DA DIALÉTICA TRANSCENDENTAL DAS INFERÊNCIAS DIALÉTICAS DA RAZÃO PURA PODE-SE DIZER que o objeto de uma simples ideia transcendental seja algo de que não se possui nenhum conceito, conquanto ela tenha sido produzida na razão de modo totalmente necessário segundo as suas leis originárias. Com efeito, de um objeto que deva ser adequado à exigência da razão também é impossível qualquer conceito intelectual, isto é, um conceito que possa ser mostrado e tornado intuível em uma experiência possível. Entretanto, expressar-nos-íamos melhor e com menor perigo de mal-entendido se disséssemos que não podemos ter nenhum conhecimento do objeto que corresponde a uma ideia, embora possamos ter um conceito problemático a seu respeito. Ora, pelo menos a realidade transcendental (subjetiva) dos conceitos puros da razão repousa sobre o fato de que somos levados a tais ideias mediante um silogismo necessário. Há, portanto, silogismos que não contêm nenhuma premissa empírica e mediante os quais, a partir de algo que conhecemos, inferimos algo diverso, do qual não possuímos, todavia, nenhum conceito e ao qual, não obstante, por uma inevitável ilusão, fornecemos realidade objetiva. Tais inferências devem, com respeito ao seu resultado, ser denominadas antes sofismas que silogismos; se bem que, em virtude de sua origem, possam trazer o último nome, pois não foram inventados nem surgiram por acaso, mas se originaram da natureza da razão. Trata-se de sofisticações, não dos homens, mas da própria razão pura, das quais nem o mais sábio entre eles poderá libertar-se. Poderá talvez, em verdade após muito esforço, evitar o erro, mas jamais desvencilhar-se inteiramente da ilusão, que incessantemente o importuna e escarnece. Há portanto, somente três espécies desses silogismos dialéticos, ou seja, tantas quantas são as ideias nas quais terminam as suas conclusões. No silogismo da primeira classe, concluo do conceito transcendental do sujeito, o qual não contém nada de múltiplo, à absoluta unidade desse mesmo sujeito, do qual não possuo deste modo absolutamente nenhum conceito. Chamarei a esta inferência dialética de paralogismo transcendental. A segunda classe de inferências sofísticas funda-se sobre o conceito transcendental da totalidade absoluta da série das condições para um fenômeno dado em geral e do fato que de um lado possuo sempre um conceito em si mesmo contraditório da unidade sintética incondicionada da série, concluo a legitimidade da unidade contraposta, da qual, não obstante, não possuo nenhum conceito. Chamarei ao estado da razão nessas inferências dialéticas de antinomia da razão pura. Finalmente concluo, de acordo com a terceira espécie de inferências sofísticas, da totalidade das condições para pensar objetos em geral, enquanto podem ser-me dados, à absoluta unidade sintética de todas as condições da possibilidade das coisas em geral, isto é, de coisas que não conheço no seu simples conceito transcendental, a um ente de todos os entes que conheço ainda menos através de um conceito transcendental e de cuja necessidade incondicionada não posso formar-me nenhum conceito. Chamarei a este silogismo dialético de ideal da razão pura. CAPÍTULO PRIMEIRO DO LIVRO SEGUNDO DA DIALÉTICA TRANSCENDENTAL Dos paralogismos da razão pura O paralogismo lógico consiste na falsidade de um silogismo quanto à forma, seja qual possa ser, de resto, o seu conteúdo. Um paralogismo transcendental tem, contudo, um fundamento transcendental, a saber, de inferir falsamente quanto à forma. Deste modo tal inferência errônea terá o seu fundamento na natureza da razão humana e trará consigo uma inevitável - se bem que não insolúvel - ilusão. Volvemo-nos agora para um conceito não incluído acima na lista geral dos conceitos transcendentais, mas que, não obstante tem que ser contado entre eles, sem com isso mudar minimamente aquela tábua e declará-la como falha. Trata-se do conceito, ou, se se preferir, do juízo: eu penso. Vê-se, porém, facilmente que ele é o veículo de todos os conceitos em geral e, por conseguinte, também dos transcendentais, sendo sempre compreendido entre os mesmos e por isso sendo igualmente transcendental, sem todavia poder possuir um título particular, porque serve somente para representar todo o pensamento como pertencente à consciência. Entretanto, por puro que ele seja de todo o empírico (da impressão dos sentidos), serve para distinguir duas espécies de objetos extraídos da natureza da nossa capacidade de representação. Eu, como pensante, sou um objeto do sentido interno e denomino-me alma. Aquilo que é um objeto dos sentidos externos denomina-se corpo. Portanto, a expressão "eu", como um ente pensante, significa já o objeto da Psicologia, que pode denominar-se doutrina racional da alma, se não pretendo saber da alma nada além do que possa ser inferido do conceito eu, independentemente de toda a experiência, enquanto tal conceito apresenta-se em todo o pensamento. Ora, a doutrina racional da alma é realmente um empreendimento dessa espécie. Com efeito, se o mínimo de empírico do meu pensamento - uma percepção particular qualquer do meu estado interno - ainda se mesclasse entre os fundamentos cognitivos desta ciência, então ela não seria mais uma doutrina racional - mas empírica - da alma. Portanto, temos já diante de nós uma pretensa ciência, construída sobre a única proposição: eu penso, e cujo fundamento, ou cuja falta de fundamento, podemos investigar aqui de modo totalmente conveniente e conformemente à natureza de uma filosofia transcendental. Não se deve escandalizar-se pelo fato de que com respeito a esta proposição, que expressa a percepção de si, eu contudo possuo uma experiência interna, e que, por conseguinte, a doutrina racional da alma, fundada sobre tal proposição, jamais é pura, mas se funda em parte sobre um princípio empírico. Com efeito, essa percepção interna não é nada mais do que a simples apercepção: eu penso, a qual torna possível todos os conceitos transcendentais, nos quais se diz; eu penso a substância, a causa etc. Com efeito, a experiência interna em geral e a sua possibilidade ou a percepção em geral e a sua relação com outra percepção, sem que sejam dadas uma diferença particular qualquer e sua determinação, não pode ser considerada um conhecimento empírico, mas tem que ser considerada um conhecimento do empírico em geral e pertence à investigação sobre a possibilidade de toda a experiência, a qual é sem dúvida transcendental. O menor objeto da percepção (por exemplo, somente o prazer ou a dor) que fosse acrescentado à representação universal da autoconsciência, converteria imediatamente a psicologia racional numa psicologia empírica. O eu penso é, pois, o único texto da psicologia racional a partir do qual ela deve desenvolver a sua inteira sabedoria. Vê-se facilmente que tal pensamento, se deve ser referido a um objeto (a mim mesmo), não pode conter nenhuma outra coisa a não ser predicados transcendentais do mesmo; o mínimo predicado empírico perverteria a pureza racional e a independência da ciência de toda a experiência. Temos, porém, de seguir aqui apenas o fio condutor das categorias, com a diferença apenas de que, tendo sido dada aqui antes de tudo uma coisa - eu como ente pensante - não mudaremos em verdade a ordem anterior das categorias assim como é representada em sua tábua, mas começaremos pela categoria da substância, mediante a qual é representada uma coisa em si mesma, e seguiremos retroativamente a série das categorias. A tópica da doutrina racional da alma, da qual deve ser derivado tudo o que ela, de resto, possa conter, é então a seguinte: 1. A alma é substância 2. Segundo sua qualidade, simples 3. Segundo os tempos diversos em que ela existe, numericamente idêntica, isto é, unidade (não pluralidade) 4. Em relação com os objetos possíveis no espaço (O leitor, que devido à sua abstração transcendental não adivinhará facilmente o sentido psicológico dessas expressões nem porque o último atributo da alma pertence à categoria da existência, no que se segue verá tudo isto suficientemente esclarecido e justificado. De resto, em virtude das expressões latinas que, ao invés das equivalentes alemãs, são introduzidas contra o gosto do bom estilo, tenho que me desculpar, tanto com vistas a esta seção quanto à obra inteira, pelo fato de ter preferido sacrificar algo da elegância da linguagem a dificultar o uso escolástico pela mínima incompreensão. Nota do Autor) Desses elementos originam-se, unicamente pela composição, todos os conceitos da doutrina pura da alma, sem reconhecer minimamente outro princípio. Esta substância, simplesmente como objeto do sentido interno, fornece o conceito de imaterialidade; como substância simples, o conceito da incorruptibilidade; a sua identidade como substância intelectual fornece a personalidade; todos esses três elementos em conjunto, a espiritualidade; a relação com os objetos no espaço fornece o commercium com os corpos. Por conseguinte, esta substância representa a substância pensante como o princípio da vida na matéria, isto é, como alma (anima) e como o fundamento da animalidade; esta, limitada pela espiritualidade, fornece a imortalidade. Ora, a estes conceitos referem-se quatro paralogismos de uma doutrina transcendental da alma que é tomada falsamente por uma ciência da razão pura sobre a natureza do nosso ente pensante. Como fundamento de tal doutrina não podemos pôr senão a representação simples eu, para si própria totalmente vazia de conteúdo, e com respeito à qual não se pode nunca dizer que seja um conceito, porém uma mera consciência que acompanha todos os conceitos. Mediante este eu, ou ele, ou aquilo (a coisa) que pensa, não é representado mais do que um sujeito transcendental dos pensamentos = x, que é conhecido somente, pelos pensamentos que são seus predicados, e do qual, separadamente, não podemos ter o mínimo conceito. Em torno de tal sujeito giramos em um constante círculo, na medida em que sempre já temos de servir-nos de sua representação para julgar qualquer coisa a seu respeito; um inconveniente, que é inseparável disso, porque a consciência em si não é tanto uma representação que distingue um objeto particular, mas uma forma da representação em geral, na medida em que deva ser denominada um conhecimento; só com respeito a este posso efetivamente dizer que penso algo através dela. Logo de início deve, porém, parecer estranho que a condição sob a qual eu em geral penso e que por conseguinte é uma simples propriedade do meu sujeito, deva ao mesmo tempo valer para tudo o que pensa, e que podemos presumir de fundar um juízo apodítico e universal sobre uma proposição aparentemente empírica, a saber: tudo o que pensa é constituído de tal modo como o declara em mim a voz da autoconsciência, A causa disto reside, porém, no fato de que temos de atribuir necessariamente a priori às coisas todas as propriedades que constituem as condições sob as quais unicamente as pensamos. Ora, com respeito a um ente pensante não posso ter a mínima representação mediante a experiência externa, mas somente mediante a autoconsciência. Portanto, tais objetos não passam de uma transposição desta minha consciência a outras coisas que somente deste modo são representadas como entes pensantes. A proposição: eu penso, todavia, é tomada aqui só problematicamente, não enquanto ela possa conter uma percepção de uma existência (o cartesiano: cogito, ergo sum), mas segundo a sua simples possibilidade, para ver que propriedades possam decorrer dessa proposição tão simples ao sujeito dela (quer ele exista ou não). Se a fundamento do nosso conhecimento racional puro do ente pensante em geral se encontrasse algo mais do que o cogito; se recorrêssemos à ajuda das observações sobre o jogo dos nossos pensamentos e às leis naturais da personalidade pensante que se podem extrair daí: então surgiria uma psicologia empírica, que seria uma espécie de fisiologia do sentido interno, e poderia servir talvez para explicar os fenômenos do mesmo, jamais, porém, para descobrir propriedades que de modo algum pertencem à experiência possível (como a do simples), nem para ensinar apoditicamente algo concernente à natureza do ente pensante em geral; não seria, portanto, nenhuma psicologia racional. Ora, visto que a proposição: eu penso (tomada problematicamente), contém a forma de todo juízo do entendimento em geral e acompanha todas as categorias como seu veículo, então é claro que as inferências a partir de tal proposição podem conter um uso meramente transcendental do entendimento; tal uso exclui toda mistura de experiência, e a respeito do seu progresso, já não podemos - depois do que mostramos acima - formar-nos de antemão nenhum conceito favorável. Queremos por isso seguir tal uso - mediante todos os predicamentos da doutrina pura da alma - com um olho crítico. No entanto, por amor à brevidade, faremos avançar o exame deles em uma interconexão ininterrupta. A seguinte observação geral pode, antes de mais nada, aguçar a nossa atenção sobre essa espécie de inferência. Mediante o fato do simples pensar não conheço qualquer objeto, mas somente posso conhecê-lo enquanto determino uma intuição dada com vista à unidade da consciência, na qual consiste todo o pensamento. Portanto, conheço a mim mesmo, não pelo fato de que sou consciente de mim como pensante, mas na medida em que sou consciente da intuição de mim mesmo, enquanto determinada com respeito a função do pensamento. Por isso todos os modi da autoconsciência do pensamento não são em si ainda conceitos intelectuais de objetos (categorias), mas simples funções lógicas que não dão a conhecer ao pensamento - por conseguinte, tampouco a mim mesmo enquanto objeto - absolutamente nenhum objeto. O objeto consiste não na consciência do sujeito (Selbst) determinante, mas somente na consciência do sujeito determinável, isto é, da minha intuição interna (enquanto o seu múltiplo pode ser ligado conformemente à condição universal da unidade da apercepção no pensamento). 1) Em todos os juízos sou sempre o sujeito (Subjekt) determinante da relação que constitui o juízo. Que, entretanto, eu, que penso, sempre tenha que valer no pensamento como sujeito e como algo que não pode ser considerado simplesmente como predicado inerente ao pensamento, é uma proposição apodítica e mesmo idêntica; mas ela não significa que eu, enquanto objeto, seja um ente subsistente para mim mesmo, ou uma substância. A última afirmação vai muito longe e por isso também requer dados que não se encontram de modo algum no pensamento e que talvez (se considero simplesmente o sujeito pensante como tal) sejam em número maior do que se possa jamais encontrar nele. 2) Por conseguinte, que o eu da apercepção seja em todo o pensamento algo singular que não pode ser dissolvido em uma pluralidade de sujeitos e que, portanto, designa um sujeito logicamente simples, encontra-se já no conceito do pensamento, constituindo, pois, uma proposição analítica; mas isto não significa que o eu pensante seja uma substância simples, o que constituiria uma proposição sintética. O conceito de substância refere-se sempre a intuições, que em mim não podem ser senão sensíveis e que, por conseguinte, se encontram totalmente fora do campo do entendimento e do seu pensamento, que é, todavia, o único do qual propriamente se fala aqui quando se diz que o eu no pensamento é simples. Seria surpreendente se me fosse dado diretamente - na mais pobre das representações, como que por uma revelação - aquilo que, do contrário, requer tanto esforço para distinguir, no que a intuição apresenta, o que nela seja substância; mais ainda, se esta também pode ser simples (como com respeito às partes da matéria). 3) A proposição da identidade de mim mesmo em todo o múltiplo do qual sou consciente é igualmente uma proposição fundada nos conceitos mesmos, por conseguinte analítica; mas esta identidade do sujeito, da qual posso tornar-me consciente em todas as suas representações não concerne à intuição do sujeito pela qual é dado como objeto, e por isso pode tampouco significar a identidade da pessoa pela qual é entendida a consciência da identidade da substância própria de cada um, como um ser pensante, em toda a variação dos estados. Para demonstrar tal identidade, não serviria para nada a simples análise da proposição: eu penso mas se requereriam diversos juízos sintéticos fundados sobre a intuição dada. 4) Eu distingo a minha própria existência, como um ente pensante, de outras coisas fora de mim (entre as quais se inclui também o meu corpo). Esta é igualmente uma proposição analítica; as outras coisas, com efeito, são aquelas que penso como distintas de mim. Todavia, mediante tal proposição não sei absolutamente se esta consciência de mim mesmo é possível sem coisas fora de mim pelas quais me são dadas as representações e, portanto, se posso existir simplesmente como ente pensante (sem ser homem). Consequentemente, através da análise da consciência de mim mesmo, no pensamento em geral, não se ganha nada com respeito ao conhecimento de mim mesmo como objeto. A exposição lógica do pensamento em geral é tomada falsamente por uma determinação metafísica do objeto. Constituiria uma grande, antes, a única pedra de escândalo contra a nossa inteira Crítica, se houvesse uma possibilidade de provar a priori que todos os entes pensantes são em si substâncias simples, que como tais, portanto (o que é uma consequência do mesmo argumento), trazem inseparavelmente consigo uma personalidade e são conscientes da sua existência separada de toda a matéria. Em tal caso, com efeito, teríamos dado um passo além do mundo sensível, penetrando no campo dos noumena; e doravante ninguém poderia negar-nos o direito de avançar adiante nesse campo, de edificar nele e, de acordo com os auspícios da estrela de cada um, de tomar posse dele. De fato, a proposição "todo ente pensante como tal é uma substância simples" é uma proposição sintética a priori, porque ela, em primeiro lugar, ultrapassa o conceito posto a seu fundamento, acrescentando ao pensamento em geral o modo da existência e, em segundo lugar acrescenta àquele conceito um predicado (da simplicidade), que não pode absolutamente ser dado em nenhuma experiência. Portanto, as proposições sintéticas a priori não são realizáveis e admissíveis somente, como afirmamos, em relação com objetos da experiência possível- e na verdade como princípios da possibilidade da experiência mesma - mas podem também referir-se a coisas em geral e em si mesmas. Tal consequência poria fim a esta inteira Crítica e imporia contentarmo-nos com a maneira antiga de pensar. O perigo, no entanto, não é tão grande, se se aborda a questão mais de perto. O procedimento da psicologia racional é dominado por um paralogismo apresentado pelo seguinte silogismo: O que não pode ser pensado de outro modo a não ser como sujeito não existe também de outro modo a não ser como sujeito e é, portanto, substância. Ora, um ente pensante, considerado meramente como tal, não pode ser pensado de outro modo a não ser como sujeito. Logo, ele existe também somente como tal, isto é, como substância. Na premissa maior, fala-se de um ente que pode ser pensado em geral sob todo aspecto, consequentemente também segundo o modo como pode ser dado na intuição. Mas na premissa menor fala-se de um tal ente somente enquanto ele considera a si mesmo sujeito unicamente em relação com o pensamento e a unidade da consciência, não, porém, ao mesmo tempo em relação com a intuição, pela qual é dado como objeto ao pensamento. Logo, a conclusão é deduzida per sophisma figurae dictionis, isto é, mediante uma inferência sofistica. (Em ambas as premissas o pensamento é tomado numa significação totalmente diferente: na premissa maior segundo o modo como se refere a um objeto em geral (por conseguinte, segundo o modo como possa ser dado na intuição); na premissa menor, todavia, apenas segundo o modo como subsiste com referência à autoconsciência, caso em que portanto não é pensado absolutamente objeto algum, mas apenas representada a referência a Si como sujeito (enquanto forma do pensamento). Na primeira proposição fala-se de coisas que não podem ser pensadas senão como sujeitos; na segunda, porém, não de coisas, mas do pensamento (ao se abstrair de todos os objetos), no qual o eu serve sempre como sujeito da consciência. Por isso, na conclusão não pode seguir-se: eu não posso existir de nenhum outro modo senão como sujeito; mas somente: no pensamento da minha existência eu só posso utilizar-me como sujeito do juízo, o que é uma proposição idêntica que não manifesta absolutamente nada sobre o modo da minha existência. Nota do Autor.) Que esta resolução do célebre argumento em um paralogismo seja totalmente justa ver-se-á claramente quando se revisar a observação geral sobre a representação sistemática dos princípios e a seção sobre os noumena. Nesta provou-se que o conceito de uma coisa que pode existir para si mesma como sujeito e não como simples predicado não envolve ainda nenhuma realidade objetiva; isto é, que não se pode saber se a tal conceito pode ser atribuído qualquer objeto já que não se vislumbra a possibilidade de tal modo de existir; por conseguinte, que ele não proporciona nenhum conhecimento. Logo, se tal conceito sob o nome de substância deve indicar um objeto que pode ser dado; se ele deve tornar-se um conhecimento; então à sua base deve ser posta uma intuição permanente como condição indispensável da realidade objetiva de um conceito, ou seja aquilo pelo qual unicamente o objeto é dado. No entanto, na intuição interna não possuímos absolutamente nada de permanente, pois o eu é somente a consciência do meu pensamento; por conseguinte, se nos atemos meramente ao pensamento, falta-nos também uma condição necessária para aplicar a si mesmo como ente pensante o conceito de substância, isto é, de um sujeito subsistente por si. E a simplicidade ligada à substância fica totalmente supressa juntamente com a realidade objetiva desse conceito, convertendo-se numa unidade meramente lógica e qualitativa da autoconsciência no pensamento em geral, quer o sujeito seja composto, quer não. REFUTAÇÃO DA PROVA DE MENDELSSOHN SOBRE A PERMANÊNCIA DA ALMA Este agudo filósofo notou depressa, no argumento habitual com o qual se deve provar que a alma (se se admite que seja um ente simples) não pode cessar de ser mediante decomposição, uma falha com respeito ao objetivo de assegurar-lhe a sobrevivência necessária, visto que, se poderia ainda admitir um término da sua existência por extinção. No seu Fédon ele procurou excluir tal corruptibilidade que seria um verdadeiro aniquilamento, crendo provar que um ente simples não pode absolutamente cessar de ser, porque - não podendo de modo algum ser diminuído e, pois, perder sucessivamente algo de sua existência, e ser assim aos poucos convertido em nada (enquanto não possui em si nenhuma parte, portanto, tampouco uma pluralidade) - não se encontraria absolutamente nenhum tempo entre um instante em que ele é, e outro em que não é mais, o que é impossível. - Entretanto, não considerou que, embora concedamos à alma esta natureza simples, pela qual não contém nenhuma multiplicidade de partes externas umas às outras, por conseguinte, nenhuma quantidade extensiva - não se pode, todavia, negar a ela como a qualquer existente uma quantidade intensiva, isto é, um grau de realidade com respeito a todas as suas faculdades, antes, em geral, com respeito a tudo o que constitui a sua existência. Tal grau poderá diminuir através de um número infinito de graus menores, e assim a pretensa substância (a coisa, cuja permanência afora isso não se encontra estabelecida) poderá converter-se em nada, se não por decomposição, todavia por gradual relaxamento (remissio) das suas forças (logo, por enlanguescimento, se me é lícito servir-me desta expressão). Com efeito, mesmo a consciência possui constantemente um grau, que sempre pode ainda ser diminuído, (A clareza não é, como os lógicos dizem, a consciência de uma representação; com efeito, mesmo em minhas representações obscuras tem que se encontrar um certo grau de consciência, que porém, não basta para a recordação, pois sem consciência alguma não estabeleceríamos nenhuma diferença ao ligarmos representações obscuras, o que podemos fazer pelas notas de vários conceitos (como os de direito e equidade, e os do músico, quando ao improvisar toca simultaneamente muitas notas). Ao contrário, clara é uma representação cuja consciência é suficiente para a consciência da sua diferença de outras representações. Em verdade, se a consciência fosse suficiente para a distinção mas não para a consciência da diferença, então a representação teria ainda que ser denominada obscura. Logo, há infinitamente muitos graus de consciência até a extinção. Nota do Autor.) o mesmo ocorre com a faculdade de ser consciente de si e com todas as demais faculdades. - Portanto, a permanência da alma como simples objeto do sentido interno permanece indemonstrada e mesmo indemonstrável conquanto a sua permanência na vida, onde o ente pensante (como homem) é simultaneamente para si um objeto dos sentidos externos - seja por si clara. Mas o psicólogo racional não se dá por isto como achado e procura demonstrar a partir de simples conceitos a permanência absoluta da alma além da vida. (Aqueles que, para encaminharem uma possibilidade nova, creem ter feito já o suficiente quando se jactam do fato de não se poder apontar nenhuma contradição nos seus pressupostos (como todos aqueles que creem entrever a possibilidade do pensamento mesmo após o término deste, embora tenham um exemplo dele apenas nas intuições empíricas da vida humana), mediante outras possibilidades nem um pouco mais ousadas, podem ser levados a grande embaraço. Tal é o caso da possibilidade de uma substância simples em varias substâncias, e inversamente da confluência (coalizão) de várias substâncias numa simples. Com efeito, se bem que a divisibilidade pressuponha um composto, nem por isso requer absoluta e necessariamente um composto de substâncias, mas simplesmente de graus (das diversas faculdades) de uma e mesma substância. Ora, do mesmo modo como se pode pensar reduzidas à metade todas as forças e faculdades da alma, mesmo a da consciência, de forma que sempre restasse ainda uma substância, assim também se pode sem contradição representar-se esta parte extinta como conservada, mas não na alma, e sim fora dela; e visto que aqui tudo o que nela é sempre real e consequentemente possui um grau, por conseguinte, a sua existência inteira, foi reduzido à metade sem que falte algo, pode-se representar-se que então surgiria fora dela uma substância particular. Com efeito, a pluralidade que foi dividida já existia antes, não contudo como pluralidade das substâncias, mas de toda a realidade como quantum da existência nela, e a unidade da substância era só um modo de existir que unicamente mediante esta divisão foi transformado numa pluralidade de subsistência. Assim também várias substâncias simples poderiam por sua vez confluir numa só em que nada se perdesse, a não ser a pluralidade da subsistência, na medida em que uma contivesse conjuntamente em si o grau de realidade de todas as precedentes; e talvez as substâncias simples que nos fornecem o fenômeno de uma única matéria (certamente não mediante uma influência recíproca mecânica ou química, mas mediante uma influência desconhecida a nós, da qual aquela seria somente o fenômeno), pudessem mediante análoga divisão dinâmica das almas dos pais, como quantidades intensivas, produzir almas de criança na medida em que aquelas por sua vez completassem a sua perda mediante coalizão com uma nova matéria da mesma espécie. Estou longe de conceder o mínimo valor ou a mínima validade a quimeras de tal espécie, também os acima referidos princípios da Analítica incutiram suficientemente que não se faça nenhum outro uso das categorias (como da de substância) a não ser o uso empírico. Todavia, se a partir da simples faculdade de pensar e sem qualquer intuição permanente, pela qual um objeto seria dado, o raciona lista é suficientemente ousado para formar um ente por si subsistente simplesmente porque a unidade da apercepção no pensamento não lhe permite nenhuma explicação a partir do composto, quando ao invés procederia melhor confessando que não sabe explicar a possibilidade de uma natureza pensante, por que o materialista, embora tampouco possa aduzir experiência em favor das suas possibilidades, não deve ser autorizado a idêntica audácia de servir-se do seu princípio para o uso oposto, conservando a unidade formal do primeiro? Nota do Autor.) Se ora considerarmos as nossas precedentes proposições em interconexão sintética do modo pelo qual elas, enquanto válidas para todos os entes pensantes, também têm que ser consideradas como um sistema na psicologia racional; e se desde a categoria de relação - com a proposição: todos os entes pensantes são como tais substâncias - percorremos retroativamente toda a série das categorias até que o círculo se feche, encontramos por fim a existência de tais entes, da qual eles nesse sistema não só são conscientes independentemente das coisas externas, mas podem também determiná-la (com respeito à permanência, que pertence necessariamente ao caráter da substância) a partir de si mesmos. Disto segue-se, porém, que o idealismo - pelo menos o problemático - neste mesmo sistema racionalista é inevitável e que se a existência de coisas externas não é requerida para a determinação da nossa própria existência no tempo, então aquela é admitida de modo totalmente gratuito, sem que se possa jamais fornecer uma prova a respeito. Se ao contrário, seguimos o procedimento analítico ao qual subjaz o eu penso - entendido como uma proposição que já contém uma existência como dada - e portanto a modalidade; e se decompomos tal proposição para conhecer o seu conteúdo, ou seja, para saber se e como este eu determina simplesmente sobre essa base a sua existência no espaço ou no tempo; em tal caso as proposições da doutrina racional da alma começarão não com o conceito de um ente pensante em geral, mas com uma realidade, e a partir do modo como esta for pensada - depois de ter sido separado tudo o que nela é empírico - deduzir-se-á o que concerne a um ente pensante em geral, como o mostra a seguinte tábua: 1. Eu penso 2. como sujeito 3. como sujeito simples 4. como sujeito idêntico, em cada estado do meu pensamento Ora, visto que aqui na segunda proposição não é determinado se eu posso existir e ser pensado somente como sujeito e não também como predicado de outro, o conceito de sujeito não é tomado aqui só logicamente, ficando indeterminado se com ele deve entender-se uma substância ou não. Na terceira proposição, todavia, a unidade absoluta da apercepção, o eu simples, na representação à qual se refere toda a ligação ou separação que constitui o pensamento, por si torna-se também importante, conquanto eu ainda não tenha estabelecido nada sobre a natureza ou subsistência do sujeito. A apercepção é algo real e a simplicidade dela encontra-se já na sua possibilidade. Ora, no espaço não há real que seja simples; com efeito, os pontos (que constituem o único simples no espaço) são simplesmente limites e não, porém, algo que sirva como parte para formar o espaço. Disto segue-se, portanto, a impossibilidade de explicar com base no materialismo a minha natureza como sujeito meramente pensante. Visto, porém, que na primeira proposição a minha existência é considerada como dada - enquanto não se diz: todo ente pensante existe (com o que se afirmaria ao mesmo tempo uma necessidade absoluta e, portanto, demasiado relativamente a tais entes) mas somente: eu existo pensando - então aquela proposição é empírica e contém a determinabilidade da minha existência simplesmente com respeito às minhas representações no tempo. Mas visto que para isso necessito antes algo permanente e que nada de semelhante me é dado na intuição interna enquanto penso a mim mesmo, assim mediante esta simples autoconsciência é absolutamente impossível determinar o modo como eu existo, se como substância ou como acidente. Logo, se o materialismo é incapaz de explicar a minha existência, o espiritualismo é igualmente insuficiente a este respeito; e a conclusão é que não podemos conhecer de maneira alguma seja o que for sobre a natureza da nossa alma, relativamente à possibilidade da sua existência separada em geral. De resto, como seria possível ultrapassar a experiência (a nossa existência na vida) mediante a unidade da consciência, a qual conhecemos somente pelo fato de que necessitamos dela imprescindivelmente para a possibilidade da experiência, e mesmo estender o nosso conhecimento até a natureza de todos os entes pensantes em geral mediante a proposição empírica - eu penso - mas indeterminada com respeito a toda espécie de intuição? Por isso, não há nenhuma psicologia racional como doutrina que aumente o nosso autoconhecimento, mas somente como disciplina que neste campo põe insuperáveis limites à razão especulativa, de um lado para que ela não se lance no seio de um materialismo sem alma, e de outro para que não se perca vagando num espiritualismo sem base para nós na vida; tal disciplina, muito antes, recorda-nos que consideremos esta recusa da nossa razão a fornecer uma resposta satisfatória às questões indiscretas que nos impelem para além desta vida, como uma sua advertência a que voltemos o conhecimento de nós mesmos de uma infecunda e extravagante especulação para a sua aplicação num fecundo uso prático. Tal uso, embora se dirija sempre a objetos da experiência, toma de uma origem mais alta os seus princípios e determina o comportamento, como se o nosso destino se estendesse infinitamente para além da experiência, e por conseguinte para além desta vida. De tudo isso vê-se que a psicologia racional tem a sua origem num simples equívoco. A unidade da consciência que subjaz às categorias é tomada aqui por uma intuição do sujeito enquanto objeto, aplicando-se-lhe a categoria da substância. A unidade da consciência, todavia, é somente a unidade no pensamento, pela qual não é dado nenhum objeto e à qual, portanto, não pode ser aplicada a categoria da substância, que pressupõe sempre uma intuição dada; tal sujeito, por conseguinte, não pode absolutamente ser conhecido. O sujeito das categorias pelo fato de pensá-las não pode, portanto, obter um conceito de si mesmo como um objeto das categorias. Com efeito, para pensar estas o sujeito precisa pôr a fundamento a própria autoconsciência, que ao invés devia ser explicada. Do mesmo modo o sujeito, no qual a representação do tempo tem originariamente o seu fundamento, não pode determinar mediante ela a sua existência no tempo; e se esta última coisa é impossível, tampouco a primeira como determinação de si (como um ente pensante em geral) mediante categorias pode ocorrer. (O "eu penso", como já se disse, é uma proposição empírica e contém em si a proposição "eu existo". Todavia não posso dizer: tudo o que pensa existe; com efeito, neste caso a propriedade de pensar tomaria todos os entes que a possuíssem entes necessários. Por isso também a minha existência não pode ser encarada como inferida da proposição "eu penso", tal como o julgou Descartes (porque do contrário a premissa maior "tudo o que pensa existe" teria que precedê-la), mas é idêntica com tal proposição. Esta expressa uma intuição empírica indeterminada, isto é, uma percepção (por conseguinte prova que já a sensação que consequentemente pertence à sensibilidade, subjaz a tal proposição existencial), mas precede a experiência que deve determinar o objeto da percepção mediante a categoria na tocante ao tempo. A existência neste caso não é ainda uma categoria, a qual não possui referência a um objeto dado indeterminadamente, mas só a um objeto do qual se tenha um conceito e sobre o qual se quer saber se é posto também fora deste conceito ou não. Uma percepção indeterminada significa aqui apenas algo real que foi dado, mas só ao pensamento em geral, portanto não como fenômeno e tampouco como coisa em si mesma (noumenon), mas sim como algo que efetivamente existe e que na proposição "eu penso" é designado como tal. Com efeito, deve-se observar que, denominando a proposição "eu penso" uma proposição empírica, não quero com isso dizer que o tu em tal proposição seja uma representação empírica; é antes puramente intelectual porque pertence ao pensamento em geral. No entanto, sem qualquer representação empírica, que fornece a matéria do pensamento, o ato "eu penso" absolutamente não ocorreria, e o eu empírico é apenas a condição da aplicação ou do uso da faculdade intelectual pura. Nota do Autor.) Deste modo a tentativa de obter acima dos limites da experiência possível um conhecimento que não obstante concerne ao interesse supremo da humanidade, dissolve-se - ao menos no que se deve à filosofia especulativa - em uma esperança ilusória. Todavia, o rigor da crítica ao demonstrar simultaneamente a impossibilidade de estabelecer dogmaticamente além dos limites da experiência algo a respeito de um objeto desta, presta à razão, com respeito a esse seu interesse, o serviço não irrelevante de pô-la em segurança contra todas as possíveis afirmações do contrário. Isto pode acontecer somente se se demonstra apoditicamente a própria proposição ou, não se conseguindo tal, se se procura as fontes desta incapacidade, as quais no caso de encontrarem-se nos limites necessários da nossa razão deverão submeter todo opositor precisamente à mesma lei de renúncia a todas as pretensões de afirmação dogmática. Com isso, todavia, não se perde nada do que concerne ao direito, antes, à necessidade da aceitação de uma vida futura segundo princípios do uso prático da razão ligados ao seu uso especulativo. Com efeito, a demonstração meramente especulativa jamais pôde, aliás, exercer qualquer influência sobre a razão humana comum. Essa demonstração está posta de modo tal sobre a ponta de um cabelo, que as próprias escolas podem mantê-la aí somente pelo tempo em que a deixam girar incessantemente sobre si mesma como um pião; e aos próprios olhos deles, portanto, ela não fornece nenhum fundamento estável sobre o qual algo possa ser construído. As demonstrações que são úteis para o mundo mantêm todo o seu indiminuto valor e, mediante a supressão daquelas pretensões dogmáticas lucram, antes, em clareza e convicção natural, enquanto situam a razão na sua esfera peculiar, a saber, na ordem dos fins, que é ao mesmo tempo uma ordem da natureza. Em tal caso, a razão como faculdade em si mesma prática sem ser limitada às condições da ordem natural está ao mesmo tempo autorizada a estender a ordem dos fins, e com ela a nossa própria existência, além dos limites da experiência e da vida. Segundo a analogia com a natureza dos seres vivos neste mundo, com respeito aos quais a razão tem que necessariamente admitir como princípio que nenhum órgão, nenhum poder, nenhum impulso, portanto, nada do que pode encontrar-se neles é supérfluo ou desproporcionado ao seu uso, portanto, não conforme a um fim, mas que tudo é proporcionado exatamente à sua destinação na vida - o homem, que unicamente pode conter o objetivo final de tudo isso, teria de ser a única criatura a fazer exceção a tudo isso. Com efeito, as suas disposições naturais não meramente para fazer uso delas segundo os talentos e impulsos, mas sobretudo a lei moral nele, ultrapassam a tal ponto toda a utilidade e vantagem que poderia tirar delas nesta vida, que esta lei moral ensina, antes, a apreciar mais do que qualquer outra coisa a simples consciência da retidão da intenção, mesmo na falta de todas as vantagens e do próprio fantasma da fama póstuma; e ele sente-se interiormente chamado a fazer-se, mediante o seu comportamento neste mundo e com a renúncia a muitas vantagens, cidadão de um melhor que ele possui na ideia. Este poderoso e jamais refutável argumento, acompanhado pelo conhecimento incessantemente crescente de uma conformidade a fins em tudo o que vemos diante de nós, e pela contemplação da imensidade da criação, e, por conseguinte, também pela consciência de certa ilimitação na possível ampliação dos nossos conhecimentos, juntamente com um impulso correspondente, permanece sempre ainda válido, mesmo que tenhamos de renunciar a estabelecer, a partir do conhecimento meramente teórico de nós mesmos, uma continuação necessária da nossa existência. CONCLUSÃO DA SOLUÇÃO DO PARALOGISMO PSICOLÓGICO A ilusão dialética na psicologia racional repousa sobre a confusão de uma ideia da razão (de uma inteligência pura) com o conceito - em todas as suas partes indeterminado - de um ente pensante em geral. Eu penso a mim mesmo com vistas a uma experiência possível enquanto abstraio ao mesmo tempo de toda a experiência real e disso concluo que posso ser consciente da minha existência também fora da experiência e das suas condições empíricas. Consequentemente, confundo a abstração possível da minha existência determinada empiricamente com a pretensa consciência de uma separada existência possível do meu sujeito (Selbst) pensante e creio conhecer como sujeito (Subjekt) transcendental o que é substancial em mim, enquanto possuo em pensamento meramente a unidade da consciência, que subjaz a toda a determinação como simples forma do conhecimento. A tarefa de explicar a comunidade de alma e corpo não pertence propriamente àquela psicologia da qual se fala aqui, pelo fato de ela ter por objetivo provar a personalidade da alma mesmo fora desta comunidade (após a morte) e é, portanto, transcendente em sentido próprio, conquanto se ocupe com um objeto da experiência mas só enquanto cessa de ser um objeto da experiência. No entanto, também a isso pode ser dada uma resposta satisfatória com a nossa doutrina. A dificuldade que esta tarefa provoca consiste, como se sabe, na pressuposta heterogeneidade entre o objeto do sentido interno (da alma) e os objetos dos sentidos externos, visto que ao primeiro é inerente apenas o tempo como condição formal da sua intuição, e ao segundo também o espaço. Todavia, se se considera que as duas espécies de objetos distinguem-se aqui entre si não internamente, mas somente enquanto um aparece externamente ao outro, e que, por conseguinte, o que como coisa em si mesma subjaz ao fenômeno da matéria talvez não seja tão heterogêneo, então aquela dificuldade desaparece e não resta senão esta, de como em geral é possível uma comunidade de substâncias. A solução desta dificuldade encontra-se totalmente fora do campo da Psicologia e - como o leitor, após o que foi dito na Analítica sobre capacidades fundamentais e faculdades, julgará facilmente - encontra-se também sem dúvida alguma fora do campo de todo o conhecimento humano. NOTA GERAL ACERCA DA PASSAGEM DA PSICOLOGIA RACIONAL À COSMOLOGIA A proposição: eu penso, ou eu existo pensando, é uma proposição empírica. A tal proposição subjaz, porém, uma intuição empírica e consequentemente também o objeto pensado como fenômeno; assim parece como se, segundo a nossa teoria, a alma, mesmo no pensamento, se convertesse totalmente em fenômeno e deste modo a nossa própria consciência como uma simples ilusão tivesse que, na realidade, referir-se a nada. O pensamento, tomado por si, é meramente a função lógica, por conseguinte, a pura espontaneidade da ligação do múltiplo de uma intuição somente possível e não apresenta de maneira alguma o sujeito da consciência como fenômeno simplesmente pelo fato de ele não tomar em consideração o modo da intuição, isto é, se esta é sensível ou intelectual. Pelo pensamento não represento a mim mesmo nem como sou nem como apareço a mim, mas me penso somente como um objeto qualquer em geral, de cujo modo de intuição abstraio. Se me represento aqui com sujeito dos pensamentos ou também como fundamento do pensamento, estão estes modos de representação não significam as categorias de substância ou de causa, pois estas são aquelas funções do pensamento (do julgar) aplicadas já à nossa intuição sensível, a qual certamente seria requerida se eu quisesse conhecer a mim mesmo. Ora, eu quero ser consciente de mim, mas somente como pensamento; deixo de lado o modo como este meu próprio eu é dado na intuição, e poderia acontecer que para mim que penso mas não enquanto penso fosse simplesmente um fenômeno; na consciência de mim mesmo no simples pensamento eu sou o ente mesmo; mas com isso certamente ainda não é dado nada desse ente ao pensamento. Entretanto, a proposição: eu penso, enquanto equivale a: eu existo pensando, não é uma simples função lógica, mas determina o sujeito (que, com efeito, é ao mesmo tempo objeto) com respeito à existência, e não pode ocorrer sem o sentido interno, cuja intuição fornece sempre o objeto, não como coisa em si mesma, mas simplesmente como fenômeno. Em tal proposição, portanto, não há mais uma simples espontaneidade do pensamento, mas também uma receptividade da intuição, isto é, o pensamento de mim mesmo aplicado à intuição empírica do mesmo sujeito. Ora, nesta intuição o sujeito pensante teria efetivamente que procurar as condições do uso das suas funções lógicas como categorias da substância, da causa etc. não somente para designar-se como objeto em si mesmo meramente mediante o eu, mas também para determinar o modo da própria existência, isto é, para conhecer a si mesmo como noumenon. Isto, porém, é impossível, enquanto a intuição empírica interna é sensível e não fornece senão dados (data) do fenômeno, que não pode fornecer nada ao objeto da consciência pura para o conhecimento da sua existência separada, mas pode somente servir de ajuda à experiência. No entanto, posto que a seguir se encontrasse - não na experiência, mas em certas (regras já não meramente lógicas, mas) leis do uso puro da razão, válidas a priori e concernentes à nossa existência - uma ocasião para pressupor-nos inteiramente a priori, como legisladores com respeito à nossa própria existência e também determinando esta mesma existência, então se descobriria através disso uma espontaneidade pela qual a nossa realidade seria determinável sem necessitar das condições da intuição empírica; e então dar-nos-íamos conta de que na consciência da nossa existência está contido a priori algo que pode servir para determinar a nossa existência - determinável completamente, aliás, somente de modo empírico - com respeito à certa faculdade interna, que se refere a um mundo inteligível (certamente apenas pensado). Mas isto não faria avançar minimamente todas as tentativas da psicologia racional. Com efeito, mediante aquela admirável faculdade que me é revelada antes de tudo pela consciência da lei moral, eu teria em verdade um princípio puramente intelectual para determinação da minha existência. Mas através de que predicados? Por nenhum outro senão os que têm que ser-me dados na intuição sensível; assim eu voltaria ao ponto em que me encontrava na psicologia racional, a saber, na necessidade de intuições sensíveis para conferir significação aos seus conceitos intelectuais de substância, causa etc., pelos quais unicamente posso ter um conhecimento de mim; tais intuições, no entanto, jamais poderão auxiliar-me além do campo da experiência. Todavia, com respeito ao uso prático, que está sempre orientado a objetos da experiência, eu estaria autorizado a usar esses conceitos - em conformidade com a significação analógica que eles possuem no uso teórico - para a liberdade e para o seu sujeito, enquanto por aqueles conceitos entendo simplesmente as funções lógicas do sujeito e do predicado, do fundamento e da consequência, de acordo com as quais as ações ou os efeitos são determinados sempre segundo aquelas leis de modo tal que - simultaneamente com as leis da natureza - possam ser explicados sempre segundo as categorias de substância e de causa, conquanto derivem de um princípio totalmente diverso. Isto precisou ser dito somente para prevenir o mal-entendido a que está facilmente exposta a doutrina da nossa auto-intuição como fenômenos. No que se segue ter-se-á ocasião de utilizar tais considerações. LIVRO SEGUNDO DA DIALÉTICA TRANSCENDENTAL CAPÍTULO SEGUNDO A Antinomia da Razão Pura NA INTRODUÇÃO a esta parte da nossa obra mostramos que toda a ilusão transcendental da razão pura repousa sobre inferências dialéticas, cujo esquema é fornecido pela Lógica nas três espécies formais de silogismos em geral, mais ou menos como as categorias encontram o seu esquema lógico nas quatro funções de todos os juízos. A primeira espécie destas inferências sofísticas referiu-se à unidade incondicionada das condições subjetivas de todas as representações em geral (do sujeito ou da alma) em correspondência com os silogismos categóricos, cuja premissa maior, como princípio, afirma a relação de um predicado com um sujeito. Por isso a segunda espécie de argumento dialético tomará como seu conteúdo - segundo a analogia com os silogismos hipotéticos - a unidade incondicionada das condições objetivas no fenômeno, assim como a terceira espécie, que se apresentará no próximo capítulo, tem como tema a unidade incondicionada das condições objetivas da possibilidade dos objetos em geral. É, entretanto, digno de nota que o paralogismo transcendental havia produzido uma ilusão meramente unilateral com respeito à ideia do sujeito no nosso pensamento e que não se pode encontrar, a partir de conceitos da razão, a mínima ilusão para a afirmação do contrário. A vantagem está totalmente do lado do pneumatismo, conquanto este não possa negar o vício de origem, de - com toda a ilusão a seu favor - dissolver-se em simples fumaça ante a prova da crítica. Algo totalmente diverso ocorre quando aplicamos a razão à síntese objetiva dos fenômenos, onde ela pensa fazer valer, na verdade com muita ilusão, o seu princípio da unidade incondicionada, envolvendo-se, porém, depressa em contradições tais, que é forçada, do ponto de vista cosmológico, a renunciar à sua pretensão. Isto é, aqui se mostra um fenômeno novo da razão humana, a saber, uma antitética totalmente natural, na qual ninguém necessita fazer investigações sutis ou montar armadilhas sofísticas, mas na qual a razão cai espontaneamente e, na verdade, inevitavelmente. Certamente, deste modo a razão é preservada de adormecer em uma convicção fictícia produzida por uma ilusão meramente unilateral, mas ao mesmo tempo é levada à tentação de abandonar-se a um desespero cético ou a assumir uma atitude de obstinação dogmática e enrijecer em certas afirmações, sem dar ouvidos e fazer justiça às razões do contrário. Ambos os casos constituem a morte de uma sã Filosofia, conquanto o primeiro pudesse talvez ser chamado ainda a eutanásia da razão pura. Antes de fazer ver as cenas de discórdia e de confusão que este conflito das leis (antinomia) da razão pura provoca, queremos fornecer certos esclarecimentos que possam ilustrar e justificar os métodos dos quais nos servimos no tratamento do nosso objeto. Denomino todas as ideias transcendentais, enquanto concernem à totalidade absoluta na síntese dos fenômenos, conceitos cósmicos; em parte devido justamente a esta totalidade incondicionada sobre a qual se funda também o conceito do universo, que é somente uma ideia, e em parte porque elas se referem unicamente à síntese dos fenômenos, por conseguinte, à síntese empírica, enquanto a totalidade absoluta na síntese das condições de todas as coisas possíveis em geral produzirá, ao contrário, um ideal da razão pura, que é totalmente distinto do conceito cósmico, conquanto se encontre em relação com ele. Por isso, do mesmo modo como os paralogismos da razão pura estabeleciam o fundamento para uma psicologia dialética, assim a antinomia da razão pura colocará diante dos olhos os princípios transcendentais de uma pretensa cosmologia pura (racional), não com o fim de considerá-la válida e apropriar-se dela, mas - como já é indicado pela denominação de conflito da razão - para expô-la, em toda a sua deslumbrante mas falsa ilusão, como uma ideia inconciliável com os fenômenos. SEÇÃO PRIMEIRA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA SISTEMA DAS IDEIAS COSMOLÓGICAS Para podermos ora enumerar estas ideias com precisão sistemática e segundo um princípio temos em primeiro lugar que observar que unicamente do entendimento podem surgir conceitos puros e transcendentais e que a razão propriamente não produz conceito algum, mas quando muito liberta o conceito do entendimento das inevitáveis limitações de uma experiência possível, procurando, portanto, estendê-lo além dos limites do empírico e, não obstante, em conexão com o mesmo. Isto ocorre pelo fato de que a razão exige uma totalidade absoluta para um condicionado dado do lado das condições (às quais, enquanto unidade sintética, o entendimento submete todos os fenômenos). Deste modo ela torna as categorias ideias transcendentais com o fim de dar uma completude absoluta à síntese empírica através do seu progresso até o incondicionado (que não é jamais encontrado na experiência, mas somente na ideia). A razão exige essa completude com base no princípio: se o condicionado é dado, então também é dada a soma total das condições e, por conseguinte, o absolutamente incondicionado, mediante o qual unicamente era possível aquele condicionado. Em primeiro lugar, portanto, as ideias transcendentais não são propriamente senão categorias ampliadas até o incondicionado, podendo ser dispostas em uma tábua que é ordenada de acordo com os títulos das categorias. Em segundo lugar, porém, nem todas as categorias prestam-se para isso, mas somente aquelas em que a síntese constitui uma série, e, na verdade, uma série das condições subordinadas umas às outras com vista a um condicionado e não coordenadas. A totalidade absoluta é requerida pela razão somente enquanto concerne à série ascendente das condições para um condicionado dado e não, por conseguinte, quando se trata da linha descendente das consequências, como tampouco do agregado de condições coordenadas para essas consequências. De fato, com respeito ao condicionado dado, as condições já são pressupostas e devem ser consideradas como dadas também com ele, enquanto no progresso para as consequências (ou no descer da condição dada para o condicionado), na medida em que as consequências não tornam possíveis as suas condições, mas antes as pressupõem, pode-se ser indiferente se a série cessa ou não, não sendo em geral o problema da sua totalidade absolutamente nenhuma pressuposição da razão. Deste modo pensa-se necessariamente um tempo inteiramente decorrido até o momento dado também como dado (se bem que não determinável por nós). Todavia, no que concerne ao tempo futuro, já que ele não é a condição para se chegar ao presente, para concebê-lo é totalmente indiferente o modo como o consideramos - se o fazemos cessar em certo ponto ou se o deixamos transcorrer até o infinito. Seja a série m, n, o, em que n é dado como condicionado com respeito a m, mas ao mesmo tempo como condição de o; seja a série ascendente do condicionado n para m (l, k, i etc.), e igualmente descendente da condição n para o condicionado o (p, q, r etc.): em tal caso tenho que pressupor a primeira série para considerar n como dado, e n, segundo a razão (a totalidade das condições), é possível somente mediante aquela série enquanto a sua possibilidade não se funda sobre a série seguinte o, p, q. r, a qual por isso não pode ser considerada como dada, mas somente como dabilis. Quero chamar de síntese regressiva à síntese de uma série do lado das condições, que, portanto, procede da condição mais próxima ao fenômeno dado até as condições mais remotas e de síntese progressiva aquela que do lado do condicionado procede da consequência mais próxima até as mais remotas. A primeira procede in antecedentia, a segunda in consequentia. As ideias cosmológicas ocupam-se, por conseguinte, com a totalidade da síntese regressiva e procedem in antecedentia e não in consequentia. Se ocorre o último caso, trata-se de um problema arbitrário e não de um problema necessário da razão pura, pois para a perfeita inteligibilidade que é dado no fenômeno necessitamos de fundamentos, não porém de consequências. Para agora estabelecer a tábua das ideias segundo a tábua das categorias, tomamos em primeiro lugar os dois quanta originários de toda a nossa intuição, espaço e tempo. O tempo é em si mesmo uma série (e a condição formal de todas as séries), e por isso nele devem distinguir-se a priori, com respeito a um presente dado, os antecedentia como condições (o passado) dos consequentia (do futuro). Logo, a ideia transcendental da totalidade absoluta da série das condições para um condicionado dado refere-se somente a todo o tempo passado. O inteiro tempo decorrido, enquanto condição do instante dado, é pensado necessariamente segundo a ideia da razão como dado. Contudo, no espaço tomado em si mesmo não há nenhuma diferença entre progresso e regresso, porque, na medida em que as suas partes são todas em conjunto simultâneas, ele constitui um agregado, mas nenhuma série. Com respeito ao tempo passado, posso considerar o instante presente somente como condicionado e jamais como condição dele, porque este instante surge pela primeira vez somente mediante o tempo decorrido (ou, antes, mediante o decorrer do tempo precedente). Todavia, visto que as partes do espaço não são subordinadas umas às outras, mas coordenadas entre si, uma parte não é a condição da possibilidade da outra e não constitui em si mesma uma série como o tempo. Não obstante, a síntese das múltiplas partes no espaço pela qual o apreendo é sucessiva, portanto, acontece no tempo e contém uma série. E, visto que nessa série dos espaços agregados (por exemplo, de pés em uma vara) os espaços acrescidos um a um pelo pensamento, a partir de um espaço dado, são sempre a condição do limite dos espaços precedentes, assim a mensuração de um espaço deve ser também considerada como síntese de uma série de condições para um condicionado dado, com a diferença apenas de que a parte das condições não se distingue em si mesma da parte segundo a qual é disposto o condicionado, por conseguinte, que no espaço regresso e progresso parecem ser idênticos. Todavia, visto que uma parte do espaço não é dada pela outra, mas somente limitada por ela, temos que considerar todo espaço limitado como condicionado, enquanto ele pressupõe outro espaço como a condição do seu limite e assim por diante. Com respeito à limitação, portanto, o progresso no espaço é também um regressus e a ideia transcendental da totalidade absoluta da síntese na série das condições concerne também ao espaço, podendo eu perguntar tanto pela totalidade absoluta do fenômeno no espaço como do fenômeno no tempo decorrido. Determinar-se-á, contudo se a tal questão é também possível uma resposta. Em segundo lugar, a realidade no espaço, isto é a matéria, é um condicionado cujas condições internas são as suas partes e as partes das partes as condições remotas, de modo que aqui ocorre uma síntese regressiva cuja totalidade absoluta é requerida pela razão. Tal síntese não pode ocorrer senão mediante uma divisão completa pela qual a realidade da matéria desaparece no nada ou no que não é mais matéria, a saber, no simples. Por conseguinte, aqui há também uma série de condições e um progresso para o incondicionado. Em terceiro lugar, no que concerne às categorias da relação real entre os fenômenos, a categoria da substância com os seus acidentes não se adapta a uma ideia transcendental; isto é a razão não possui com respeito a ela nenhum fundamento para proceder regressivamente às condições. Com efeito, os acidentes (enquanto são inerentes a uma mesma substância) são coordenados entre si e não constituem uma série. Eles contudo, não são subordinados à substância, mas constituem o modo de existir da substância mesma. O que a propósito ainda poderia parecer uma ideia da razão transcendental seria o conceito do substancial. No entanto, visto que este não significa outra coisa que o conceito de objeto em geral, que subsiste enquanto nele se pensa meramente o sujeito transcendental independentemente de todo o predicado, e que aqui, porém, se trata somente do incondicionado na série dos fenômenos, fica claro que o substancial não pode constituir nenhum elo na série. O mesmo vale com respeito a substâncias numa comunidade, que são simplesmente agregados e não possuem nenhum expoente de uma série, enquanto não são subordinados umas às outras como condições de sua possibilidade, o que se pode bem dizer com respeito aos espaços, cujo limite jamais era determinado em si mesmo, mas sempre mediante um outro espaço. Resta, pois, somente a categoria da causalidade, que oferece uma série de causas para um efeito dado e na qual se pode ascender do último como condicionado àquelas como condições e responder à questão da razão. Em quarto lugar, os conceitos de possível, de real e de necessário não conduzem a nenhuma série, a não ser enquanto o contingente na existência tem que ser considerado sempre como condicionado e acena com base numa regra do entendimento a uma condição que torna necessária a sua referência a uma condição mais alta, até que a razão encontre somente na totalidade desta série a necessidade incondicionada. Em consequência disso, não há mais do que quatro ideias cosmológicas, segundo os quatro títulos das categorias, se se escolhem aquelas que comportam necessariamente uma série na síntese do múltiplo. 1. A completude absoluta da composição do total dado de todos os fenômenos 2. A completude absoluta da divisão de um total dado no fenômeno 3 A completude absoluta da gênese de um fenômeno em geral 4. A completude absoluta da dependência da existência do mutável no fenômeno Em primeiro lugar, deve-se observar a propósito que a ideia da totalidade absoluta não diz respeito senão à exposição dos fenômenos, e não, pois, ao conceito puro do entendimento com vista a um todo de coisas em geral. Os fenômenos, portanto, são considerados aqui como dados e a razão exige a completude absoluta das condições de sua possibilidade, na medida em que estas constituem uma série, por conseguinte, uma síntese absolutamente (isto é, sob todo o aspecto) completa, mediante a qual o fenômeno possa ser exposto segundo leis do entendimento. Em segundo lugar, o que a razão procura nesta síntese serial e regressiva das condições é propriamente só o incondicionado: algo como a completude absoluta na série das premissas, que conjuntamente não pressupõe mais nenhuma outra. Ora, tal incondicionado está sempre contido na totalidade absoluta da série, quando se representa esta totalidade na imaginação. No entanto, essa síntese absolutamente acabada é por sua vez somente uma ideia, pois não se pode saber pelo menos previamente se ela é também possível nos fenômenos. Se se representa tudo mediante simples conceitos puros do entendimento, independentemente das condições da intuição sensível, então se pode verdadeiramente dizer que para um condicionado dado é dada também a série total das condições subordinadas umas às outras: aquele, de fato, é dado somente mediante estas. Todavia, nos fenômenos se encontra uma particular limitação do modo pelo qual as condições são dadas, isto é, elas são dadas mediante a síntese sucessiva do múltiplo da intuição, que no regresso deve ser completa. Se esta completude é empiricamente possível, é ainda um problema. Não obstante, a ideia dessa completude encontra-se na razão, independentemente da possibilidade ou impossibilidade de conectar adequadamente a ela conceitos empíricos. Portanto, visto que na totalidade absoluta da síntese regressiva do múltiplo no fenômeno (conformemente à instrução das categorias, que a representam como uma série de condições para um condicionado dado) o incondicionado está necessariamente contido, mesmo que não fique estabelecido se e como essa totalidade possa ser realizada, a razão procede aqui a partir da ideia de totalidade, conquanto tenha propriamente como objetivo final o incondicionado, quer da série completa quer de uma parte dela. Ora, tal incondicionado pode ser pensado de dois modos: ou ele consistiria simplesmente na série total, na qual, pois, todos os elementos sem exceção seriam condicionados e somente o todo dela seria absolutamente incondicionado, e em tal caso o regresso chama-se infinito; ou o absolutamente incondicionado é somente uma parte da série à qual os elementos restantes são subordinados, e a qual mesma não está submetida a nenhuma outra condição. (O todo absoluto da série de condições para um condicionado dado é sempre incondicionado, porque fora dela não há mais condições com respeito às quais o todo possa ser condicionado. Todavia, este todo absoluto de tal série é só uma ideia, ou antes um conceito problemático, cuja possibilidade tem que ser investigada, e isto com referência ao modo como nele possa estar contido o incondicionado enquanto a verdadeira ideia transcendental que importa. Nota do Autor.) No primeiro caso a série é sem limites a parte priori (sem início), isto é, infinita e, embora seja totalmente dada, o regresso nela não é jamais acabado, podendo apenas potencialmente ser chamado infinito. No segundo caso há um termo primeiro da série, que com respeito ao tempo decorrido denomina-se inicio do mundo; com respeito ao espaço, limite do mundo; com respeito às partes de um total dado dentro dos seus limites, o simples; com respeito às causas, auto-atividade absoluta (liberdade); com respeito à existência de coisas mutáveis, necessidade natural absoluta. Nós possuímos duas expressões: mundo e natureza, que às vezes coincidem. A primeira significa o total matemático de todos os fenômenos e a totalidade da sua síntese tanto no grande como no pequeno, isto é, no progresso de tal síntese quer mediante composição quer mediante divisão. O mesmo mundo é, porém, denominado natureza (A natureza, tomada adjective (formaliter), significa a interconexão das determinações de uma coisa segundo um princípio interno da causalidade. Contrariamente a isso, entende-se por natureza tomada substantive (materialiter) o conjunto dos fenômenos, na medida em que estes se interconectam universalmente em virtude de um princípio interno da causalidade. No primeiro sentido fala-se da natureza da matéria fluida, do fogo, etc., e utiliza-se esta palavra apenas adjective; quando se fala das coisas da natureza, ao contrário, tem-se em mente um todo subsistente. Nota do Autor.) enquanto é considerado como um total dinâmico e quando se tem em mira já não a agregação no espaço ou no tempo para constituir o mundo como magnitude, mas a unidade na existência dos fenômenos. Ora, neste caso a condição do que acontece denomina-se causa e a causalidade incondicionada da causa no fenômeno denomina-se liberdade; a causa condicionada, ao contrário, denomina-se num sentido mais restrito causa natural. O condicionado na existência em geral chama-se contingente e o incondicionado chama-se necessário. A necessidade incondicionada dos fenômenos pode ser denominada necessidade natural. As ideias com as quais nos ocupamos agora denominei acima ideias cosmológicas, em parte porque por mundo entende-se o conjunto de todos os fenômenos e porque as nossas ideias também se referem somente ao incondicionado entre os fenômenos, e em parte também porque o termo mundo em sentido transcendental significa a totalidade absoluta do conjunto das coisas existentes e voltamos o nosso olhar unicamente à completude da síntese (se bem que propriamente só no regresso às condições). Em vista do fato de que, além disso, essas ideias são todas transcendentes e que conquanto em realidade não ultrapassem, quanto à espécie, o objeto, isto é, os fenômenos, mas têm a ver unicamente com o mundo sensível (não com noumena), impelindo contudo a síntese até um grau que transcende toda a experiência possível, assim sou de opinião que se possa bem convenientemente chamá-las todas conceitos cósmicos. No entanto, com respeito à diferença entre incondicionado matemático e incondicionado dinâmico a que todo o regresso tende, chamaria as duas primeiras ideias num sentido mais restrito de conceitos cósmicos (do mundo no grande e no pequeno) e as duas restantes de conceitos naturais transcendentes. Por enquanto esta distinção ainda não é de particular relevo, mas pode tornar-se mais importante no que se segue. SEÇÃO SEGUNDA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA ANTITÉTICA DA RAZÃO PURA Se tética é todo conjunto de doutrinas dogmáticas, entendo por antitética não asserções dogmáticas do contrário, mas o conflito entre conhecimentos aparentemente dogmáticos (thesin cúm antithes), sem que se atribua a um mais que a outro um direito superior a assentimento. Portanto, a antitética não se ocupa absolutamente com asserções unilaterais, mas considera conhecimentos universais da razão somente segundo o conflito deles entre si e as suas causas. A antitética transcendental é uma investigação sobre a antinomia da razão pura, sobre as suas causas e sobre o seu resultado. Se para o uso dos princípios do entendimento não aplicamos a nossa razão meramente a objetos da experiência, mas nos aventuramos a estendê-la além dos limites desta, então surgem proposições dogmáticas pseudo-racionais, que da experiência não podem nem esperar confirmação nem temer refutação. Cada uma dessas proposições não somente é isenta de contradição em si mesma, mas encontra na própria natureza da razão condições da sua necessidade, só que infelizmente a asserção do contrário possui do seu lado fundamentos igualmente válidos e necessários. As questões que se apresentam face a uma tal dialética da razão pura são, pois: 1. em que proposições propriamente a razão pura está inevitavelmente sujeita a uma antinomia; 2. sobre que causas repousa tal antinomia; 3. se e de que modo, todavia, sob essa contradição permanece aberto à razão um caminho para a certeza. Uma proposição dogmática dialética da razão pura, portanto, tem que ter como característica que a distinga de todas as outras proposições sofísticas o fato de ela não dizer respeito a uma questão gratuita, que não se levanta senão para certo escopo arbitrário, mas a uma questão contra a qual no seu progresso toda razão humana necessariamente tem que tropeçar; em segundo lugar, com a sua asserção contrária, tal proposição traz consigo não simplesmente uma ilusão artificiosa, que ao ser conhecida imediatamente desapareça, mas uma ilusão natural e inevitável que, mesmo quando não se é mais enganado por ela, ilude sempre, embora não chegue a enredar, podendo, pois, ser tornada inofensiva, mas jamais exterminada. Tal dialética não se refere à unidade do entendimento nos conceitos de experiências, mas à unidade da razão nas simples ideias. As condições de tal doutrina - enquanto deve ser congruente, como síntese segundo regras, primeiramente com o entendimento e ao mesmo tempo, como unidade absoluta de tal síntese, com a razão - serão muito grandes para o entendimento quando a doutrina for adequada à unidade da razão, e muito pequenas para a razão quando a doutrina for adequada ao entendimento. Disso terá que emergir um inevitável conflito, faça-se o que se quiser. Essas asserções pseudo-racionais abrem, portanto, uma arena dialética, onde se sobrepõe a parte com permissão para atacar, e onde sucumbe também seguramente a parte forçada a proceder apenas defensivamente. Por isso também os cavaleiros vigorosos - quer combatam pela causa boa, quer pela má - estão seguros de levar o louro da vitória, desde que cuidem ter o privilégio de desfechar o último ataque, sem serem constrangidos a sofrer um novo ataque do adversário. Pode-se imaginar facilmente que desde os tempos mais remotos essa arena foi bastante frequentemente percorrida, de modo que muitas vitórias foram conquistadas por ambas as partes, cuidando-se, porém, sempre que a última e decisiva vitória fosse reservada unicamente ao defensor da boa causa mediante a proibição ao adversário de continuar com as armas na mão. Como juízes imparciais da luta devemos pôr totalmente de lado a questão se os digladiantes combatem pela causa boa ou pela má e deixar que eles a decidam primeiramente entre si. Talvez, após terem mais cansado do que prejudicado um ao outro, percebam espontaneamente a futilidade da sua contenda e separem-se como bons amigos. Este método de assistir ou, antes, de provocar um conflito de asserções - não para finalmente decidir em benefício de uma ou de outra parte mas para investigar se o objeto dele não consiste porventura numa simples ilusão, da qual cada um corre inutilmente atrás e com respeito à qual não poderia ganhar nada, mesmo que não se oferecesse absolutamente nenhuma resistência - pode ser denominado método cético. Ele distingue-se totalmente do ceticismo, isto é, de um princípio de uma ignorância técnica e científica que mina os fundamentos de todo o conhecimento para, se possível, não deixar em parte alguma segurança e certeza a seu respeito. O método cético efetivamente tende à certeza, porque procura descobrir o ponto do equívoco num tal conflito, por ambas as partes honestamente entendido e inteligentemente conduzido, para - como sábios legisladores o fazem - do embaraço dos juízes no processo trazer para si um ensinamento com respeito ao que é defeituoso, e não determinado precisamente nas suas leis. A antinomia que se revela na aplicação das leis é em face do nosso limitado saber o melhor critério da nomotética, para que a razão, que na especulação abstrata não se dá facilmente conta dos seus passos falsos, desse modo se concentre nos momentos da determinação dos seus princípios. Esse método cético, porém, é essencialmente próprio somente da filosofia transcendental, podendo talvez ser dispensado em todo outro campo de investigações, menos neste. Na Matemática o seu uso seria absurdo, uma vez que nela nenhuma proposição falsa pode ocultar-se e tornar-se invisível, na medida em que as demonstrações devem sempre ter continuidade ao longo do fio da intuição pura e, na verdade, mediante uma síntese sempre evidente. Na Filosofia experimental uma dúvida suspensiva certamente pode ser útil; todavia é impossível qualquer mal-entendido que não possa ser facilmente removido; e os últimos meios para decidir a disputa, quer sejam encontrados cedo ou tarde, têm que enfim situar-se na experiência. A Moral pode fornecer todos os seus princípios, juntamente com as suas consequências práticas, também in concreto ou pelo menos em experiências possíveis, e deste modo evitar o equívoco da abstração. Ao contrário, as asserções transcendentais, que pretendem chegar a conhecimentos que se estendam além do campo de todas as experiências possíveis, não se encontram no caso em que a sua síntese abstrata pudesse ser dada em qualquer intuição a priori, nem são constituídas de modo que o equívoco pudesse ser descoberto através de qualquer experiência. A razão transcendental, portanto, não admite outra pedra de comparação afora a tentativa da conciliação das suas asserções entre si próprias e, por conseguinte, primeiramente da disputa livre e desimpedida das mesmas entre si. Esta tentativa queremos agora fazer. (As antinomias sucedem-se umas às outras segundo uma ordem das ideias transcendentais acima aduzidas. Nota do Autor.) ANTINOMIA DA RAZÃO PURA PRIMEIRO CONFLITO DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS Tese O mundo tem um início no tempo e é também quanto ao espaço encerrado dentro de limites. Prova Com efeito, admita-se que quanto ao tempo o mundo não tenha nenhum início. Neste caso, até cada instante dado decorreu uma eternidade e, por conseguinte, transcorreu uma série infinita de estados sucessivos das coisas no mundo. Ora, a infinitude de uma série consiste precisamente no fato de ela jamais poder ser acabada mediante uma síntese sucessiva. Logo, uma transcorrida série cósmica infinita é impossível e um início do mundo é, pois, uma condição necessária da sua existência. Este era o primeiro ponto a ser demonstrado. Com respeito ao segundo, suponha-se por outro lado o contrário. Em tal caso o mundo será um total infinito dado de coisas existindo simultaneamente. Ora, nós de modo algum podemos pensar a magnitude de um quantum que não seja dado dentro de certos limites de toda a intuição (Podemos intuir um quantum indeterminado como um todo, se está encerrado dentro de limites, sem ter necessidade de construir a sua totalidade mediante mensuração, isto é, a síntese sucessiva das suas partes. Com efeito, os limites determinam já a completude ao excluírem tudo o mais. Nota do Autor.) a não ser mediante a síntese das partes; e só podemos pensar a totalidade de um quantum mediante a síntese completa ou mediante o repetido acréscimo da unidade a si mesma. (Neste caso, o conceito de totalidade nada mais é que a representação da síntese completa das suas partes, pois uma vez que o conceito não pode ser abstraído da intuição do todo (a qual neste caso é impossível), podemos captá-lo, pelo menos na ideia, só mediante a síntese das partes até a completude do infinito. Nota do Autor.) Consequentemente, para pensar como um todo o mundo que preencha todos os espaços ter-se-ia que considerar a síntese sucessiva das partes de um mundo infinito como acabada, isto é, na enumeração de todas as coisas existentes ter-se-ia que considerar um tempo infinito como transcorrido; o que é impossível. Por isso um agregado infinito de coisas reais não pode ser considerado como um todo dado, e, portanto, tampouco como um todo dado simultaneamente. Consequentemente o mundo quanto à extensão no espaço não é infinito, mas limitado. Este era o segundo ponto. Antítese O mundo não possui um início nem limites no espaço, mas é infinito tanto com respeito ao tempo quanto com respeito ao espaço. Prova Com efeito, suponha-se que ele tenha um início. Visto que o início é uma existência à qual precede um tempo no qual a coisa não é, deve ter precedido um tempo em que o mundo não era, ou seja, um tempo vazio. Ora, num tempo vazio é impossível o surgimento de qualquer coisa, porque nenhuma parte de tal tempo possui em si, preferencialmente a outra, uma condição distintiva da existência antes que a do não ser (quer se admita que tal condição surja por si mesma ou através de outra causa). Logo, no mundo diversas séries de coisas podem realmente ter início, mas o mundo mesmo não pode ter nenhum início, e é por isso infinito com respeito ao tempo passado. No que concerne ao segundo ponto, admita-se antes de tudo o contrário, a saber, que o mundo seja finito e limitado quanto ao espaço. Em tal caso, o mundo encontra-se num espaço vazio, que não é limitado. Dever-se-ia por isso encontrar não somente uma relação das coisas no espaço, mas também das coisas com o espaço. Ora, visto que o mundo é um todo absoluto, fora do qual não se encontra nenhum objeto da intuição e, por conseguinte, nenhum correlato do mundo com o qual esteja em relação, assim a relação do mundo com o espaço vazio não seria uma relação com objeto algum. Porém tal relação e, por conseguinte, também a limitação do mundo por espaço vazio, não é nada. Logo, o mundo não é limitado quanto ao espaço, isto é, com respeito à extensão ele é infinito. (O espaço é simplesmente a forma da intuição externa (intuição formal), mas não um objeto real que possa ser intuído externamente. Prévio a todas as coisas que o determinam (preenchem ou limitam) ou que antes dão uma intuição empírica conforme â sua forma, o espaço, sob a denominação de espaço absoluto, não é outra coisa a não ser a simples possibilidade de fenômenos externos na medida em que existem em si, ou que podem ainda ser acrescidos a fenômenos dados. Portanto, a intuição empírica não é composta de fenômenos e do espaço (da percepção e da intuição vazia). Um não é correlatum do outro na síntese, mas apenas ligado numa e mesma intuição empírica como matéria e forma da mesma. Se se quiser colocar uma destas duas partes fora da outra (o espaço fora dos fenômenos), então surgem disso todo tipo de determinações vazias da intuição externa, as quais de modo algum são percepções possíveis. Por exemplo, o movimento ou o repouso do mundo no espaço vazio infinito: uma determinação da relação de ambos entre si que jamais pode ser percebida, por conseguinte, também sendo o predicado de um simples ente de razão. Nota do Autor.) NOTA À PRIMEIRA ANTINOMIA I. À Tese Nestes argumentos contrastantes entre si não procurei fantasmagorias para conduzir (como se diz) uma prova mais ou menos cavilosa, que desfrute em benefício próprio a falta de cautela do opositor e compraza-se em permitir que ele apele a uma lei mal-entendida, com o fim de fundar sobre a refutação dessa lei as suas próprias pretensões ilegítimas. Cada uma dessas demonstrações foi tirada da natureza da coisa, pondo-se de lado a vantagem que poderiam oferecer-nos as falsas inferências dos dogmáticos de ambos os lados. Eu poderia também ter provado a tese, aparentemente, pondo à frente da infinitude de uma magnitude dada, segundo o hábito dos dogmáticos, um conceito defeituoso. Infinita é uma magnitude sobre a qual não é possível nenhuma maior (isto é, maior do que o número de uma unidade dada, contida nela). Ora, nenhum número é o maior, porque sempre ainda podem ser-lhe acrescentadas uma ou mais unidades. Logo, uma magnitude infinita dada, por conseguinte, também um mundo infinito (tanto com respeito à série transcorrida como com respeito à extensão) é impossível: ela é de ambos os lados limitada. Eu poderia ter conduzido a minha prova desse modo; todavia, este conceito não concorda com o que se entende por um todo infinito. Assim não é representado quão grande ele é, por conseguinte, o seu conceito tampouco é o conceito de um maximum, mas através dele é pensada somente a sua relação com uma unidade qualquer, com respeito à qual ele é maior do que todo o número. Ora, depois que se tome a unidade como maior ou menor, o infinito resultará maior ou menor. A infinitude, todavia, pelo fato de consistir simplesmente na relação com essa unidade dada, permanecerá sempre a mesma, conquanto deste modo certamente a magnitude absoluta do todo não chegue a ser conhecida, do que tampouco não se trata aqui. O verdadeiro (transcendental) conceito da infinitude é que a síntese sucessiva da unidade na mensuração de um quantum não pode jamais ser acabada. (Este quantum contém assim uma quantidade (de unidades dadas) maior que todo o número, e que é o conceito matemático do infinito. Nota do Autor.) Disto segue-se com toda a segurança que não pode ter transcorrido uma eternidade de estados reais e sucessivos uns aos outros até um instante dado (o presente); logo, segue-se que o mundo não tem que ter um início. Com respeito à segunda parte da tese, na verdade, a dificuldade relativa a uma série infinita e, não obstante, transcorrida desaparece, pois o múltiplo de um modo infinito é, quanto à extensão, dado simultaneamente. Todavia, já que para pensar a totalidade de tal conjunto não podemos recorrer a limites que constituam por si só essa totalidade na intuição, temos que prestar conta do nosso conceito, que em tal caso não pode ir do todo ao conjunto determinado das partes, mas tem que demonstrar a possibilidade de um todo mediante a síntese sucessiva das partes. Ora, visto que tal síntese teria de constituir uma série que jamais se completaria, não se pode pensar uma totalidade antes dela e nem, pois, mediante ela. Com efeito, o conceito de totalidade é neste caso a representação de uma síntese completa das partes, e esta perfeição da síntese, por conseguinte, também o seu conceito é impossível. II. À Antítese A demonstração da infinitude da série cósmica dada e do conjunto do mundo funda-se no fato de que em caso contrário o limite do mundo teria que ser constituído por um tempo vazio e por um espaço vazio. Ora, não me é desconhecido o fato de que se procuram subterfúgios contra essa consequência, afirmando: um limite do mundo segundo o tempo e o espaço é inteiramente possível, sem que nos seja permitido admitir precisamente um tempo absoluto antes do início do mundo ou um espaço absoluto que se estenda para fora do mundo real, o que é impossível. Com a última parte desta opinião dos filósofos, da escola de Leibniz estou inteiramente de acordo. O espaço é simplesmente a forma da intuição externa, mas nenhum objeto real que possa ser intuído externamente, e nenhum correlato dos fenômenos, mas a forma dos próprios fenômenos. Por isso o espaço não pode apresentar-se na existência das coisas de modo absoluto (por si só) como algo determinante, por não ser ele absolutamente objeto algum, mas somente a forma de objetos possíveis. Logo, as coisas enquanto fenômenos certamente determinam o espaço, isto é, fazem com que entre todos os predicados possíveis dele (magnitude e relação) este ou aquele pertença à realidade; inversamente, porém, o espaço enquanto algo subsistente por si não pode determinar a realidade das coisas quanto à magnitude ou figura, porque ele em si mesmo não é algo real. Um espaço (quer seja pleno ou vazio) (Nota-se facilmente que com isto se quer dizer: o espaço vazio, na medida em que limitado por fenômenos e portanto o espaço dentro do mundo, pelo menos não contradiz os princípios transcendentais, e pode pois ser concedido com respeito a estes (sem que com isto a sua possibilidade seja imediatamente afirmada). Nota do Autor.) pode bem, portanto, ser limitado por fenômenos; fenômenos, contudo, não podem ser limitados por um espaço vazio fora deles. O mesmo vale também com respeito ao tempo. Ora, mesmo que se conceda tudo isso, é, todavia, incontestável que, se se admite um limite do mundo, quer quanto ao tempo, quer quanto ao espaço, se tenha de admitir estes dois não entes: o espaço vazio fora do mundo e o tempo vazio antes do mundo. Com efeito, quanto à escapatória pela qual se procura evitar a consequência, segundo a qual dizemos que, se o mundo possui limites (no espaço e no tempo), o vazio infinito terá que determinar a existência das coisas reais quanto à sua magnitude; ela no fundo consiste somente no fato de pensar-se, ao invés de um mundo dos sentidos, um mundo inteligível, não se sabe qual; ao invés de um primeiro início (uma existência precedida por um tempo do não ser), em geral uma existência que não pressupõe nenhuma outra condição no mundo; e, ao invés dos limites da extensão, barreiras do universo, e deste modo se desembaraça do tempo e do espaço. Aqui, todavia, se trata somente do mundus phaenomenon e da sua magnitude, no qual de modo algum se pode abstrair das referidas condições da sensibilidade sem suprimir a essência de tal mundo. Se o mundo sensível é limitado, situa-se necessariamente no vazio infinito. Se se quiser eliminar a priori este último e, por conseguinte, o espaço em geral como condição da possibilidade dos fenômenos, então o inteiro mundo sensível desaparece. Em nosso problema somente este mundo nos é dado. O mundus intelligibilis não é senão o conceito universal de um mundo em geral, no qual se abstrai de todas as condições da sua intuição e com respeito ao qual, consequentemente, não é possível absolutamente, nenhuma proposição sintética, quer afirmativa, quer negativa. SEGUNDO CONFLITO DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA Tese Toda substância composta no mundo consta de partes simples e por toda parte nada existe a não ser o simples ou o que é composto dele. Prova Com efeito, admiti vós que as substâncias compostas não constassem de partes simples. Em tal caso, quando toda a composição fosse suprimida com o pensamento, não restaria nenhuma parte composta e - visto não haver partes simples - também nenhuma parte simples. Por conseguinte, não restaria absolutamente nada, e nenhuma substância seria dada. Por isso, ou é impossível suprimir com o pensamento toda a composição ou após a sua supressão deve restar algo que exista sem nenhuma composição, isto é, o simples. No primeiro caso, contudo, o composto não constaria por sua vez de substâncias (porque nestas a composição é somente uma relação contingente das substâncias, sem a qual estas têm que subsistir como entes por si constantes). Ora, visto que este caso contradiz a pressuposição, resta somente o segundo, a saber, que o composto substancial no mundo consta de partes simples. Disso segue-se imediatamente que as coisas do mundo são todas entes simples, que a composição é somente um estado externo delas e que, conquanto não possamos jamais isolar inteiramente as substâncias elementares e subtraí-las desse estado de ligação, a razão, contudo, tem que pensá-las como os sujeitos primeiros de toda a composição e, por conseguinte, antes dela como entes simples. Antítese Nenhuma coisa composta no mundo consta de partes simples e por toda parte nada simples existe nele. Prova Supondo que uma coisa composta (como substância) conste de partes simples. Visto que toda a relação externa, por conseguinte, também toda a composição de substâncias somente é possível no espaço, assim de tantas partes quantas constituem o composto também tem que constar o espaço que tal composto ocupa. Ora, o espaço não consta de partes simples, mas de espaços. Logo, toda parte do composto tem que ocupar um espaço. As partes absolutamente primeiras de todo o composto, entretanto, são simples. Logo, o simples ocupa um espaço. Ora, visto que todo o real que ocupa um espaço compreende em si uma multiplicidade de partes externas umas às outras e, por conseguinte, é composto e, na verdade, como um composto real não de acidentes (pois estes sem a substância não podem ser externos uns aos outros) e sim de substâncias: em tal caso o simples seria um composto substancial; o que se contradiz. A segunda proposição da antítese, segundo a qual não existe no mundo nada de simples, deve significar aqui somente que a existência do absolutamente simples não pode ser provada a partir de nenhuma experiência ou percepção, quer externa quer interna, e que o absolutamente simples é, portanto, uma simples ideia cuja realidade objetiva jamais pode ser provada em qualquer experiência possível e não pode, pois, encontrar na exposição dos fenômenos nenhuma aplicação e nenhum objeto. Admitamos que se pudesse encontrar um objeto da experiência para essa ideia transcendental; em tal caso a intuição empírica de qualquer objeto teria que ser conhecida como uma que não contivesse absolutamente nenhum múltiplo externo um ao outro e ligado numa unidade. Ora, visto que da não consciência de tal múltiplo não é válido inferir a total impossibilidade do mesmo em qualquer intuição de um objeto, o qual, porém, é inteiramente necessário para a simplicidade absoluta, segue-se que a simplicidade absoluta não pode ser inferida de nenhuma percepção, seja qual for. Portanto, já que em qualquer experiência possível jamais pode ser dado algo como um objeto absolutamente simples e que o mundo sensível, contudo, tem que ser considerado como conjunto de todas as experiências possíveis, assim em nenhuma parte do mundo dos sentidos é dado algo simples. Essa segunda proposição da antítese vai muito mais longe do que a primeira, que bane o simples somente da intuição do composto; a segunda, ao invés, elimina-o da natureza inteira; por isso não pode também ser demonstrada a partir do conceito de um objeto dado da intuição externa (do composto), mas a partir da relação de tal conceito com uma experiência possível em geral. NOTA À SEGUNDA ANTINOMIA I. À Tese Quando falo de um modo que consta necessariamente de partes simples, entendo por tal somente um todo substancial como o compositum verdadeiro e próprio, isto é, como a unidade contingente do múltiplo, o qual, dado separadamente (pelo menos no pensamento), é posto numa ligação recíproca e deste modo constitui uma unidade. O espaço deveria ser chamado propriamente não de compositum mas de totum, porque as suas partes são possíveis somente no todo e não o todo é possível mediante as partes. Talvez pudesse ser chamado de compositum ideale, mas não de compositum reale. Isto, todavia, é somente uma sutileza. Já que o espaço não é nenhum composto de substâncias (nem de acidentes reais), assim, se nele suprimo toda a composição, não tem que restar nada nem sequer o ponto; pois este é possível somente como o limite de um espaço (por conseguinte, de um composto). Espaço e tempo, portanto não constam de partes simples. O que pertence somente ao estado de uma substância, se bem que possua uma magnitude (por exemplo, a mudança), não consta tampouco do simples, isto é, certo grau da mudança não surge mediante uma adição de muitas mudanças simples. A nossa inferência do composto ao simples é válida somente para coisas subsistentes por si próprias. Os acidentes do estado, porém, não subsistem por si próprios. Portanto, a prova da necessidade do simples enquanto parte constitutiva de todo o composto substancial e com ela a tese como um todo podem fracassar, se se estende demais a prova e se quer fazê-la valer para todo o composto sem distinção, como efetivamente já aconteceu mais vezes. De resto, falo aqui do simples somente enquanto é necessariamente dado no composto e na medida em que este pode ser decomposto em suas partes constitutivas. A significação própria da palavra monas (no uso de Leibniz) deveria referir-se somente ao simples, que é dado imediatamente como substância simples (por exemplo, na autoconsciência) e não como elemento do composto, o qual seria melhor denominar-se de atomus. E já que quero demonstrar as substâncias simples somente como elementos do composto, poderia denominar a tese da segunda antinomia de atomística transcendental. Todavia, visto que esta palavra já há muito tempo foi usada para designar um modo peculiar de explicação de fenômenos corpóreos (moleculae) e, portanto, pressupõe conceitos empíricos, é preferível denominar a tese de princípio dialético da monadologia. I. À Antítese Contra essa asserção de uma divisão infinita da matéria, cujo argumento é meramente matemático, os monadistas levantam algumas objeções que se tornam suspeitas já pelo fato de não quererem admitir as mais claras demonstrações matemáticas como conhecimentos sobre a natureza do espaço, enquanto este na realidade é a condição formal da possibilidade de toda a matéria, mas as consideram somente como inferências de conceitos abstratos, porém arbitrários, os quais não poderiam ser referidos a coisas reais. Como se fosse possível excogitar outra espécie de intuição diversa da que é dada na intuição originária do espaço e as determinações a priori do espaço não dissessem ao mesmo tempo respeito a tudo o que é possível unicamente pelo fato de que preenche este espaço! Se se dá atenção a eles, ter-se-ia que pensar, além do ponto matemático que é simples, mas não é nenhuma parte e sim meramente o limite de um espaço, ainda pontos físicos que na verdade são também simples mas possuindo a vantagem de como partes do espaço preenchê-lo pela sua simples agregação. Ora, sem repetir aqui as refutações comuns e claras dessa absurdidade, que se encontram em grande número - como de resto é totalmente inútil querer mediante simples conceitos discursivos sofismar contra a evidência da Matemática - observo apenas que quando a Filosofia faz chicanas à Matemática isto ocorre porque ela esquece que nesta questão se trata somente de fenômenos e da sua condição. Aqui, todavia, não basta encontrar o conceito simples para o conceito intelectual puro do composto mas, antes, de encontrar a intuição do simples para a intuição do composto (da matéria) e isto é totalmente impossível segundo as leis da sensibilidade e, por conseguinte, também nos objetos dos sentidos. Portanto, com respeito a um todo de substâncias que é pensado meramente pelo entendimento puro pode valer sempre que antes de toda a composição desse todo temos que possuir o simples; isso não vale, contudo, com respeito ao totum substanciale phaenomenon, o qual, como intuição empírica no espaço, traz a propriedade necessária de que nenhuma parte dele é simples, pelo fato de que nenhuma parte do espaço é simples. Não obstante, os monadistas foram suficientemente perspicazes para contornar essa dificuldade ao pressuporem não o espaço como uma condição da possibilidade dos objetos da intuição externa (corpos), mas estes objetos e a relação dinâmica das substâncias em geral como a condição da possibilidade do espaço. Ora, nós temos um conceito de corpos somente como fenômenos; enquanto tais, contudo, pressupõem necessariamente o espaço como a condição da possibilidade de todo o fenômeno externo. A escapatória é pois inútil, como, aliás, já foi suficientemente interceptada acima na Estética Transcendental. Se fossem coisas em si mesmas, a demonstração dos monadistas seria válida. A segunda asserção dialética possui a peculiaridade de ter contra si uma asserção dogmática, que entre todas as asserções pseudo-racionais é a única que se empenha em provar palpavelmente num objeto da experiência a realidade do que atribuímos acima meramente às ideias transcendentais, a saber, a simplicidade absoluta da substância, ou seja, que objeto do sentido interno - o eu que aí pensa - seja uma substância absolutamente simples. Sem me ocupar agora com a questão (pois ela foi examinada mais pormenorizadamente acima), observo somente o seguinte: Se algo é pensado meramente como objeto, sem acrescentar qualquer determinação sintética de sua intuição (como efetivamente acontece mediante a representação totalmente nua: eu), então certamente em tal representação nada de múltiplo e nenhuma composição podem ser percebidas. Visto, além disso, que os predicados pelos quais penso esse objeto são simples intuições do sentido interno, neles então não pode ocorrer nada que prove um múltiplo externo ao outro e, por conseguinte, uma composição real. Somente a autoconsciência é, pois, constituída de modo tal que pelo fato de o sujeito que pensa ser simultaneamente seu próprio objeto não pode dividir-se a si mesma (conquanto possa dividir as determinações que lhe são inerentes). Com efeito, relativamente a si mesmo todo objeto é unidade absoluta. Não obstante, se este sujeito é considerado externamente como um objeto da intuição, ele certamente mostrará em si uma composição no fenômeno. E ele precisa ser sempre visto deste modo se se quer saber se um múltiplo externo ao outro está contido nele ou não. TERCEIRO CONFLITO DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA Tese A causalidade segundo leis da natureza não é a única da qual possam ser derivados os fenômenos do mundo em conjunto. Para explicá-los é necessário admitir ainda uma causalidade mediante liberdade. Prova Admita-se que não exista nenhuma outra causalidade além da causalidade segundo leis da natureza. Em tal caso, tudo o que acontece pressupõe um estado antecedente, ao qual sucede inevitavelmente segundo uma regra. No entanto, o próprio estado antecedente tem que ser algo que aconteceu (veio a ser no tempo, já que precedentemente não era), pois, se tivesse sido sempre, a sua consequência não teria também surgido pela primeira vez, mas teria sido sempre. Logo, a causalidade da causa pela qual algo acontece é ela mesma algo acontecido que segundo as leis da natureza pressupõe novamente um estado precedente e sua causalidade; este estado, por sua vez, pressupõe um estado ainda mais antigo, e assim por diante. Portanto, se tudo acontece segundo simples leis da natureza, sempre haverá somente um início subalterno e jamais um primeiro início; consequentemente, jamais haverá uma completude da série do lado das causas procedentes umas das outras. Ora, a lei da natureza consiste precisamente em que nada acontece sem uma causa suficientemente determinada a priori. Logo, a proposição segundo a qual toda a causalidade é possível somente conforme a lei da natureza contradiz a si mesma em sua ilimitada universalidade, e por isso não pode ser admitida como a única causalidade. Consequentemente, tem que ser admitida uma causalidade pela qual algo acontece sem que a causa disso seja ainda determinada ulteriormente segundo leis necessárias por outra causa precedente. Isto é, tem que ser admitida uma espontaneidade absoluta das causas, que dê início de si a uma série de fenômenos precedentes segundo leis da natureza, por conseguinte, uma liberdade transcendental, sem a qual mesmo no curso da natureza a série sucessiva dos fenômenos do lado das causas não é jamais completa. Antítese Não há liberdade alguma, mas tudo no mundo acontece meramente segundo leis da natureza. Prova Suponde que haja uma liberdade em sentido transcendental como uma espécie particular de causalidade segundo a qual pudessem ser produzidos os eventos do mundo, ou seja, um poder de começar absolutamente um estado, e, por conseguinte, também uma série de consequências do mesmo. Em tal caso terá absolutamente início não somente uma série mediante essa espontaneidade, mas a determinação dessa própria espontaneidade para a produção da série, isto é, a causalidade, de modo que não precede nada pelo qual essa ação ocorrida seja determinada segundo leis constantes. Todo início, entretanto, para agir pressupõe um estado de causa ainda não eficiente; e um primeiro início dinâmico da ação pressupõe um estado que não possua absolutamente nenhum nexo causal com o estado antecedente da mesma causa, ou seja, que de modo algum resulte desse estado. A liberdade transcendental, portanto, opõe-se à lei causal e tal ligação dos estados sucessivos de causas eficientes - segundo a qual não é possível nenhuma unidade da experiência, e unidade esta que não se encontra também em nenhuma experiência - é, por conseguinte, um vazio ente do pensamento. Não possuímos, portanto, senão a natureza, na qual temos que procurar a interconexão e a ordem dos eventos no mundo. A liberdade (independência) das leis da natureza, na verdade, é uma libertação da coerção, mas também do fio condutor de todas as regras. Com efeito, não se pode dizer que ao invés das leis da natureza intervenham na causalidade do curso do mundo leis da liberdade, porque se a liberdade fosse determinada segundo leis não seria liberdade mas nada mais que natureza. Natureza e liberdade transcendental distinguem-se, pois, como conformidade a leis e ausência de leis. A natureza, é verdade, importuna o entendimento com a dificuldade de procurar sempre mais alto na série das causas a origem dos eventos, porque a causalidade neles é sempre condicionada, mas, em compensação, promete a unidade - universal e conforme as leis - da experiência; a ilusão da liberdade ao contrário, promete paz ao entendimento inquiridor na cadeia das causas enquanto o conduz a uma causalidade incondicionada que começa a agir de si, mas que, por ser ela mesma cega, rompe o fio condutor das regras, pelo qual unicamente é possível uma experiência completamente coerente. NOTA À TERCEIRA ANTINOMIA I. À Tese A ideia transcendental de liberdade, na verdade está longe de constituir o conteúdo total do conceito psicológico deste nome, o qual é em grande parte empírico; ela, antes, constitui somente o conteúdo da espontaneidade absoluta da ação como o fundamento próprio da imputabilidade da mesma, sendo no entanto a verdadeira pedra de escândalo para a Filosofia, que encontra dificuldades insuperáveis para conceder uma tal espécie de causalidade incondicionada. O que, portanto, na questão da liberdade da vontade desde os tempos mais remotos colocou a razão especulativa em tão grande embaraço é propriamente apenas algo transcendental e reporta-se unicamente ao seguinte: se tem que ser admitida uma faculdade de iniciar espontaneamente uma série de coisas sucessivas ou de estados. A questão de como tal faculdade é possível não requer tão necessariamente uma solução, visto que na causalidade segundo leis naturais igualmente temos que contentar-nos com conhecer a priori que tal causalidade tem de ser pressuposta, conquanto de modo algum concebamos como é possível que mediante certa existência seja posta a existência de outra coisa, e que em virtude disso tenhamos de ater-nos unicamente à experiência. Ora, em verdade provamos esta necessidade de um primeiro início de uma série de fenômenos a partir da liberdade propriamente só na medida em que é requerido para tornar concebível uma origem do mundo; todos os estados sucessivos, ao invés, podem ser tomados como uma sucessão segundo simples leis naturais. Todavia, visto que deste modo foi enfim provada (conquanto não visualizada) a faculdade de começar de modo inteiramente espontâneo uma série no tempo, assim doravante é também permitido fazer começar diversas séries dentro do curso do mundo e de modo totalmente espontâneo quanto à causalidade, atribuindo às substâncias uma faculdade de agir a partir da liberdade. Não nos deixemos, porém, deter agora por um equívoco, a saber, que durante o curso do mundo não seja possível nenhum início absolutamente primeiro da série pelo fato de que uma série sucessiva no mundo pode ter um primeiro início apenas comparativamente enquanto no mundo sempre existe um estado precedente das coisas. Com efeito, falamos aqui do início absolutamente primeiro, não quanto ao tempo, mas quanto à causalidade. Se agora (por exemplo) me levanto da minha cadeira de modo inteiramente livre e sem a influência necessariamente determinante das causas naturais, então neste evento inicia-se absolutamente uma nova série juntamente com as suas consequências naturais até o infinito, se bem que quanto ao tempo esse evento seja somente a continuação de uma série precedente. Pois esta resolução e esta ação, absolutamente não se encontram na sequência de simples efeitos naturais, e não são uma simples continuação deles; antes, as causas naturais determinantes cessam completamente com respeito a esse evento, antes de tal resolução: tal evento, de fato, segue-se àquelas causas, mas não resulta delas, e em virtude disso tem que ser denominado - na verdade não quanto ao tempo, mas com respeito à causalidade - um início absolutamente primeiro de uma série de fenômenos. A confirmação da necessidade da razão de, na série das causas naturais, recorrer a um início primeiro a partir da liberdade se esclarece amplamente pelo fato de que (excetuada a escola epicúria) todos os filósofos da antiguidade, para explicação dos movimentos do mundo, viram-se constrangidos a admitir um primeiro motor, isto é, uma causa agente livre que tenha iniciado pela primeira vez e espontaneamente essa série de estados. Eles com efeito não ousaram tornar concebível um primeiro início a partir da simples natureza. II. À Antítese O defensor da onipotência da natureza (fisiocracia transcendental) contra a doutrina da liberdade afirmaria do seguinte modo a sua proposição, contra as inferências pseudo-racionais desta: Se não admitis no mundo nada de matematicamente primeiro quanto ao tempo, não tereis também necessidade de procurar algo dinamicamente primeiro quanto à causalidade. Quem vos autorizou a inventar um estado absolutamente primeiro do mundo, por conseguinte, um início absoluto da série dos fenômenos decorrendo pouco a pouco, e a pôr limites à natureza ilimitada, para poderdes proporcionar um ponto de repouso à vossa imaginação? Visto que as substâncias existiram sempre no mundo - a unidade da experiência pelo menos torna necessária tal pressuposição - não há também nenhuma dificuldade em admitir que a variação dos seus estados, isto é, uma série das suas mudanças, tenha existido sempre e que, por conseguinte, não seja preciso procurar nenhum primeiro início, quer matemático quer dinâmico. A possibilidade de tal derivação infinita não pode tornar-se concebível sem um primeiro termo com respeito ao qual todo o restante seja simplesmente subsequente. Mas, se por isso quereis desembaraçar-vos de tais enigmas da natureza, então vos vereis constrangidos a rejeitar muitas propriedades sintéticas fundamentais (forças fundamentais) que tampouco podeis compreender, a ponto de mesmo a possibilidade de uma mudança em geral deve escandalizar-vos. Com efeito, se não descobrísseis pela experiência que a mudança é real, jamais poderíeis excogitar a priori de que modo tal sucessão incessante de ser e não ser seja possível. Todavia, mesmo concedendo-se uma faculdade transcendental da liberdade para iniciar as mudanças do mundo, tal faculdade teria que pelo menos ser somente extrínseca ao mundo (se bem que permaneça uma pretensão temerária admitir fora do conjunto de todas as intuições possíveis ainda um objeto, que não possa ser dado em nenhuma percepção possível). Entretanto, jamais poderá ser permitido atribuir às substâncias no mundo mesmo tal faculdade, porque neste caso desapareceria na maior parte a interconexão dos fenômenos determinado-se mútua e necessariamente segundo leis universais - conexão que se chama natureza - e com ela quase desapareceria o critério da verdade empírica, que distingue a experiência do sonho. Com efeito, ao lado de tal faculdade alegal (gesetzloses) da liberdade, é difícil pensar ainda a natureza, porque as leis desta seriam modificadas incessantemente pelas influências da liberdade e o jogo dos fenômenos, que segundo a simples natureza seria regular e uniforme, tornar-se-ia assim confuso e desconexo. QUARTO CONFLITO DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA Tese Ao mundo pertence algo que, ou como sua parte ou sua causa, é um ente absolutamente necessário. Prova O mundo dos sentidos como o todo dos fenômenos contém uma série de mudanças ao mesmo tempo. Com efeito, sem estas não nos seria dada a representação da série temporal como condição da possibilidade do mundo dos sentidos. (Como condição formal da possibilidade das mudanças, o tempo na verdade precede objetivamente a estas; só que subjetivamente e na realidade da consciência, esta representação, assim como qualquer outra, é dada só por ocasião das percepções. Nota do Autor.) Entretanto toda mudança está submetida à sua condição temporalmente precedente, e sob a qual é necessária. Ora, todo condicionado que é dado pressupõe com respeito à sua existência uma série completa de condições até o absolutamente incondicionado, o qual, somente, é absolutamente necessário. Logo, tem que existir algo absolutamente necessário, se existe uma mudança como sua consequência. Este mesmo ente necessário, porém, pertence ao mundo dos sentidos. Com efeito, suponde que ele seja externo a este mundo; em tal caso, a série das mudanças do mundo derivaria dele o seu início, sem que, contudo, essa própria causa necessária pertencesse ao mundo dos sentidos. Ora, isto é impossível. Com efeito, visto que o início de uma série temporal só pode ser determinado mediante o que precede no tempo, a condição suprema do início de uma série de mudanças tem que existir no tempo, já que ela ainda não era (pois o início é uma existência à qual precede um tempo em que a coisa que começa ainda não era). Logo, a causalidade da causa necessária das mudanças e, por conseguinte, também a própria causa pertence ao tempo, portanto, ao fenômeno (no qual o tempo, como a sua forma, unicamente é possível) e por isso não pode ser pensada separadamente do mundo dos sentidos, como o conjunto de todos os fenômenos. Logo, no mundo está contido algo absolutamente necessário (quer seja ele a série total do mundo, ou uma parte dela). Antítese Não existe em parte alguma um ente absolutamente necessário, nem no mundo nem fora dele, como sua causa. Prova Suponde que o próprio mundo seja ou que nele haja um ente necessário; então na série das suas mudanças haveria um início que seria incondicionadamente necessário, por conseguinte, sem causa, o que contradiz as leis dinâmicas da determinação de todos os fenômenos no tempo; ou a própria série seria sem nenhum início e, não obstante, contingente e condicionada em todas as suas partes, no todo, contudo, absolutamente necessária e incondicionada, o que se auto-contradiz, porque a existência de uma quantidade não pode ser necessária se nenhuma parte dela possui uma existência em si necessária. Suponde, ao contrário, que fora do mundo haja uma causa absolutamente necessária; então essa causa como o membro supremo na série das causas das mudanças do mundo pela primeira vez daria início à existência das últimas e à existência das últimas e à sua série. (O termo "iniciar" é tomado numa significação: a primeira é ativa, visto que a causa inicia (infit) uma série de estados como seu efeito; a segunda é passiva, visto que a causalidade inicia (fit) na própria causa. Infiro aqui da primeira à segunda. Nota do Autor.) Ora, em tal caso ela também teria que começar a agir e a sua causalidade pertenceria ao tempo e, por isso mesmo, ao conjunto dos fenômenos, isto é, ao mundo; consequentemente, a própria causa não estaria fora do mundo, o que contradiz a pressuposição. Logo, não há necessariamente nem no mundo nem fora dele (mas em ligação causal com ele) um ente absolutamente necessário. NOTA À QUARTA ANTINOMIA I. À Tese Para demonstrar a existência de um ente necessário não me cabe usar nenhum outro argumento a não ser um cosmológico, ou seja, que ascende do condicionado no fenômeno ao incondicionado no conceito enquanto este é considerado a condição necessária da totalidade absoluta da série. A tentativa de demonstração a partir da simples ideia de um ente supremo com relação a todos os entes em geral pertence a outro princípio da razão. Por isso tal prova tem que efetuar-se de maneira particular. Ora, a pura prova cosmo lógica não pode provar a existência de um ente necessário senão enquanto deixa ao mesmo tempo irresolvido se ele é o mundo mesmo ou uma coisa distinta dele. Com efeito, para decidir esta última questão requerer-se-ão princípios que não são mais cosmológicos e que não progridem na série dos fenômenos mas são conceitos de entes contingentes em geral (enquanto considerados simplesmente como objetos do entendimento); e requerer-se-á um princípio para mediante simples conceitos conectar tais entes com um ente necessário. Tudo isto pertence a uma filosofia transcendente, que não cabe ainda abordar aqui. Todavia, se uma vez se inicia cosmologicamente a demonstração enquanto se põe como fundamento a série de fenômenos e o regresso nela segundo leis empíricas da causalidade, então posteriormente não se pode afastar-se dela e passar a algo que de modo algum pertence à série como um seu membro. Com efeito, algo tem que ser considerado como condição justamente na mesma significação em que a relação do condicionado à sua condição foi tomada na série que deveria conduzir a esta última condição mediante um progresso contínuo. Ora, se essa relação é sensível e pertence ao uso empírico do entendimento, então a condição ou causa suprema pode concluir o regresso somente segundo leis da sensibilidade, por conseguinte, somente enquanto tal regresso pertence à série temporal, e o ente supremo tem que ser considerado o membro supremo da série do mundo. Não obstante, alguns tomaram a liberdade de fazer um salto (????????????????????). Das mudanças no mundo conclui-se à contingência empírica, isto é, à dependência do mundo de causas empiricamente determinantes e obteve-se uma série ascendente de condições empíricas, o que de resto era totalmente correto. Todavia, visto que aqui não se podia encontrar nenhum primeiro início e nenhum membro supremo, abandonou-se bruscamente o conceito empírico de contingência e tomou-se a categoria pura. Esta então proporcionava uma série meramente inteligível, cuja completude fundava-se sobre a existência de uma causa absolutamente necessária que, não estando mais atada a nenhuma condição sensível, livrou-se também da condição temporal para ela própria dar início à sua causalidade. Tal procedimento, porém, é totalmente ilegítimo, como se pode concluir do seguinte. Contingente no sentido puro da categoria é aquilo cujo oposto contraditório é possível. Ora, a partir da contingência empírica não se pode absolutamente inferir a contingência inteligível. O oposto daquilo que muda (o oposto do seu estado) é real num outro tempo, por conseguinte, também possível. Logo, este estado não é o oposto contraditório do estado antecedente, para o que se requer que no mesmo tempo em que o estado antecedente era, o oposto teria podido ser em seu lugar; isto de modo algum pode ser inferido da mudança. Um corpo que estava em movimento (= A) passa ao repouso (= non A). Ora, a partir do fato de que um estado oposto ao estado A siga a este não se pode absolutamente inferir que o oposto contraditório de A seja possível, e, por conseguinte, que A seja contingente. Pois, para tanto requerer-se-ia que no mesmo tempo em que havia movimento houvesse, ao invés dele, repouso. Ora, não sabemos senão que o repouso no estado seguinte era real e, por conseguinte, também possível. Mas movimento em um tempo e repouso em outro não se opõem contraditoriamente entre si. Logo, a sucessão de determinações opostas, isto é, a mudança de modo algum prova a contingência segundo conceitos do entendimento puro e tampouco pode conduzir à existência de um ente necessário segundo conceitos puros do entendimento. A mudança prova somente a contingência empírica, isto é, que com base na lei da causalidade, o novo estado não teria podido ocorrer sem uma causa pertencente ao estado anterior. Assim esta causa, mesmo que seja admitida como absolutamente necessária, tem que ser encontrada no tempo e pertencer à série dos fenômenos. II. À Antítese Se ao elevar-se na série dos fenômenos se crê encontrar dificuldades contra a existência de uma causa suprema absolutamente necessária, então essas dificuldades não têm que se fundar no simples conceito da existência necessária de uma coisa em geral e, pois, ser dificuldades ontológicas, mas provir da ligação causal com uma série de fenômenos com o fim de admitir para a mesma uma condição incondicionada; consequentemente, têm que ser dificuldades cosmológicas e derivadas segundo leis empíricas. Ou seja, tem que se mostrar que a ascensão na série das causas (no mundo dos sentidos) jamais pode terminar numa condição empiricamente incondicionada e que o argumento cosmológico - fundado sobre a contingência dos estados do mundo, como fica evidenciado pelas suas mudanças - exclui a admissão de uma causa primeira que inicie de modo absolutamente originário a série. Nesta antinomia, contudo, revela-se um estranho contraste, a saber, que com base no mesmo argumento com que na tese foi inferida a existência de um ente originário, na antítese deduz-se com o mesmo rigor o não ser deste ente. Primeiro se disse: Há um ente necessário, porque a soma total do tempo passado compreende em si a série de todas as condições e com elas, portanto, também o incondicionado (o necessário). Agora se diz: Não há um ente necessário, precisamente porque a soma total do tempo decorrido compreende em si a série de todas as condições (que por isso são por sua vez todas condicionadas). A causa disso é a seguinte: o primeiro argumento considera somente a totalidade absoluta da série das condições, cada uma das quais determina a outra no tempo, e deste modo obtém um incondicionado e necessário. O segundo argumento, ao contrário, toma em consideração a contingência de tudo o que é determinado na série temporal (porque cada estado é precedido por um tempo, no qual a própria condição por sua vez tem que ser determinada como condicionada) e deste modo ficam supressos completamente todo o incondicionado e toda a necessidade absoluta. Entretanto, em ambos os casos o modo de inferência é perfeitamente conforme à própria razão humana comum, à qual frequentemente ocorre cair em conflito consigo mesma ao considerar o seu objeto desde dois pontos de vista diferentes. O senhor de Mairan considerou a disputa entre dois célebres astrônomos, que surgiu de uma dificuldade semelhante sobre a escolha do ponto de vista, como um fenômeno suficientemente digno de nota para escrever um tratado especial a respeito. Um desses astrônomos argumentava assim: a lua gira em torno do seu eixo porque ela volta constantemente o mesmo lado para a terra. E o outro argumentava: a lua não gira em torno do seu eixo, porque ela volta constantemente o mesmo lado para a terra. Ambas as inferências eram corretas, de acordo com o ponto de vista que se adotou, desde o qual se queria observar o movimento da lua. SEÇÃO TERCEIRA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA DO INTERESSE DA RAZÃO NESTE SEU CONFLITO Temos agora diante de nós o inteiro jogo dialético das ideias cosmológicas. Elas não permitem absolutamente que em qualquer experiência possível lhes seja dado um objeto congruente, nem sequer que a razão as pense de acordo com leis universais da experiência. Essas ideias, apesar disso, não são inventadas arbitrariamente. No progresso contínuo da síntese empírica, a razão é conduzida necessariamente a elas quando quer libertar de toda a condição e compreender em sua totalidade incondicionada aquilo que segundo regras da experiência sempre pode ser determinado só condicionadamente. Estas afirmações sofísticas são outras tantas tentativas de resolver quatro problemas naturais e inevitáveis da razão. O seu número é precisamente este, não podendo ser maior ou menor, porque não há mais séries de pressuposições sintéticas que limitem a priori a síntese empírica. As brilhantes pretensões da razão, que estende o seu domínio acima de todos os limites da experiência, foram representadas por nós somente através de secas fórmulas que contêm simplesmente o fundamento das suas legítimas reivindicações e foram despidas de todo o seu elemento empírico - como convém a uma filosofia transcendental - se bem que somente em ligação com ele as afirmações da razão podem reluzir em todo o seu esplendor. Todavia, nesta aplicação e progressiva ampliação do uso da razão, enquanto é parte do campo da experiência e eleva-se progressivamente até essas sublimes ideias, a Filosofia revela uma dignidade, que, se pudesse manter as suas pretensões, superaria de longe o valor de toda outra ciência humana. A Filosofia, com efeito, promete fornecer o fundamento para as nossas maiores expectativas e esperanças com vista aos fins últimos, nos quais todos os esforços da razão finalmente têm que se reunir. Se o mundo tem um início e um limite qualquer na sua extensão no espaço; se algures e talvez no meu eu pensante há uma unidade indivisível e indestrutível ou se há somente o divisível e passageiro; se sou livre em minhas ações ou, como outros entes, guiado pelo fio da natureza e do destino; finalmente se há uma causa suprema do mundo ou se as coisas da natureza e a sua ordem constituem o objeto último em que tenhamos de deter nossas considerações: todas essas são questões, para cuja solução o matemático de boa vontade daria em troca a sua ciência. Esta, com efeito, não poderá proporcionar nenhuma satisfação com respeito ao fim mais alto e mais ambicionado da humanidade. Visto que a Matemática (este orgulho da razão humana) dirige a razão na compreensão da natureza, tanto no grande como no pequeno, em sua ordem e regularidade da mesma forma que na unidade digna de admiração das forças que a movem, ultrapassando todas as expectativas da Filosofia fundada sobre a experiência comum, a dignidade dessa própria ciência repousa sobre o fato de que mediante tal ela dá ensejo e encorajamento a um uso da razão ampliado para além de toda a experiência, do mesmo modo que provê a Filosofia, igualmente ocupada com isso com os materiais mais excelentes a fim de apoiar, tanto quanto a natureza desta o permite, a sua investigação com intuições adequadas. Infelizmente para a especulação (mas felizmente talvez para a determinação prática do homem), a razão em meio às suas maiores expectativas vê-se embaraçada a tal ponto por argumentos pró e contra, que tanto pela sua honra quanto pela sua segurança não lhe é factível retroceder e assistir indiferentemente a essa dissensão como se se tratasse de um mero combate simulado para jogo, e menos ainda ordenar simplesmente a paz, porque o objeto da disputa é de grande interesse, não lhe restando senão meditar sobre a origem dessa desavença da razão consigo mesma, para ver se a culpa disso não reside num simples mal-entendido, após cuja elucidação talvez cessassem de ambos os lados as orgulhosas pretensões, mas em compensação teria início um reinado duradouro e pacífico da razão sobre o entendimento e os sentidos. Por ora queremos adiar ainda um pouco esta elucidação minuciosa e considerar antes de que lado preferiríamos colocar-nos se porventura fôssemos obrigados a tomar partido. Visto que neste caso consultamos simplesmente o nosso interesse e não o critério lógico da verdade, assim conquanto tal investigação nada decida sobre o discutível direto de ambas as partes, contudo, possui a utilidade de tornar concebível por que os participantes dessa disputa preferiram pôr-se de um lado ao invés de outro, sem que a causa disso fosse um conhecimento melhor do objeto; do mesmo modo explicará outras coisas secundárias, por exemplo, o ardor fanático de uma parte e a afirmação fria de outra e, ainda, por que uns aplaudem alegremente um partido e contra o outro nutrem preconceitos implacáveis. Algo, porém, neste julgamento provisório determina o ponto de vista a partir do qual unicamente aquele pode ser feito com conveniente profundidade: este algo consiste na comparação dos princípios a partir dos quais ambas as partes se movem. Entre as asserções da antítese observa-se uma perfeita uniformidade de mentalidade e uma inteira unidade da máxima, ou seja, um princípio do empirismo puro não apenas na explicação dos fenômenos no mundo, mas também na solução das ideias transcendentais do próprio universo. Ao contrário, as asserções da tese, além do modo empírico de explicação dentro da série dos fenômenos, põem ainda como fundamento inícios intelectuais, e a máxima em tal caso não é simples. Denomino-as, porém, com base no seu caráter distintivo essencial, de dogmatismo da razão pura. Do lado do dogmatismo, na determinação das ideias cosmológicas da razão, ou do lado da tese, mostra-se portanto: Em primeiro lugar, certo interesse prático, do qual participa de coração toda pessoa bem-intencionada quando compreende sua verdadeira vantagem. Que o mundo tenha um início, que o meu sujeito pensante seja de natureza simples e, por isso, incorruptível, que ele nas ações de seu arbítrio ao mesmo tempo seja livre e eleve-se sobre a coerção da natureza e que, enfim, a ordem total das coisas que constituem o mundo origine-se de um ente primeiro - do qual tudo tira a sua unidade e conexão conforme a fins - são outras tantas pedras fundamentais da moral e da religião. A antítese rouba-nos ou pelo menos parece roubar-nos todos esses apoios. Em segundo lugar, também deste lado manifesta-se um interesse especulativo da razão. Com efeito, quando se admite e se usa de tal modo as ideias transcendentais pode-se abarcar de maneira inteiramente a priori a cadeia total das condições e conceber a dedução do condicionado enquanto se começa pelo incondicionado. Isto não pode ser desempenhado pela antítese, que deste modo encontra-se em séria desvantagem pelo fato de não poder dar nenhuma resposta sobre a questão das condições da sua síntese que não levasse a uma renovação infinita da pergunta. De acordo com a antítese, de um início dado se tem que ascender a um ainda mais alto, cada parte conduz a uma parte ainda menor, cada evento possui sempre ainda outro evento acima de si como causa, e as condições da existência em geral por sua vez apoiam-se sempre em condições, sem jamais obter firmeza incondicionada e apoio em uma coisa por si subsistente como ente originário. Em terceiro lugar, o lado da tese possui ainda a vantagem da popularidade, que certamente não constitui a parte mínima pela qual se recomenda. O entendimento comum não encontra a menor dificuldade nas ideias do início incondicionado de toda a síntese, porque afora isso ele está mais acostumado a descer às consequências do que ascender aos fundamentos; e nos conceitos do absolutamente primeiro (sobre cuja possibilidade ele não elucubra) ele possui uma comodidade e ao mesmo tempo um ponto firme para ligar a ele o fio condutor dos seus passos, já que do contrário, na ascensão sem descanso do condicionado à condição e sempre com um pé no ar, ele não pode encontrar nenhum agrado. Do lado do empirismo, na determinação das ideias cosmológicas, ou da antítese, não se encontra em primeiro lugar nenhum interesse prático de tal espécie a partir de princípios puros da razão, como o trazem a moral e a religião. Antes, parece que o simples empirismo elimina toda a força e influência de ambas. Se não há nenhum ente primordial diferente do mundo, se o mundo é sem início e, portanto, também seu autor, se a nossa vontade não é livre e a alma possui uma divisibilidade e corruptibilidade igual à da matéria, então também as ideias e os princípios morais perdem toda a validez e caem com as ideias transcendentais, que constituem os seus suportes teóricos. Em compensação, o empirismo oferece ao interesse especulativo da razão vantagens que são muito atraentes e sobrepujam amplamente as que o doutrinador dogmático das ideias da razão pode prometer. De acordo com o empirismo, o entendimento encontra-se sempre no seu solo verdadeiro e próprio, a saber, no campo de genuínas experiências possíveis, cujas leis pode perseguir e por meio das quais pode estender infinitamente o seu conhecimento seguro e claro. Aqui ele pode e deve apresentar o objeto - tanto em si mesmo como em suas relações - na intuição, ou senão em conceitos cuja imagem possa ser apresentada clara e distintamente em semelhantes intuições dadas. Não se trata somente do fato de que o entendimento não tenha necessidade de abandonar essa cadeia da ordem natural para prender-se a ideias cujos objetos não conhece, porque enquanto entes de pensamento não podem jamais ser dados; mas não lhe é uma só vez permitido abandonar a sua tarefa e sob o pretexto de que foi levado a termo elevar-se ao domínio da razão idealizante e a conceitos transcendentes, onde não mais precise observar e investigar conformemente às leis da natureza, mas somente pensar e inventar, seguro de que não pode ser refutado mediante fatos da natureza, precisamente porque não está ligado ao seu testemunho, mas pode descuidar-se deles ou até subordina-los a uma autoridade superior, ou seja, da razão pura. Por isso o empirismo jamais permitirá que qualquer época da natureza seja admitida como absolutamente primeira ou que qualquer limite da sua perspectiva no âmbito da natureza seja considerado como extremo, ou que dos objetos da natureza - que ele pode analisar pela observação e pela Matemática e determinar sinteticamente na intuição (o extenso) - passe àqueles que nem o sentido, nem a capacidade de imaginação podem jamais representar in concreto (o simples). O empirista tampouco concederá que na natureza seja posta como fundamento uma faculdade de atuar independentemente de leis da natureza (liberdade), e que deste modo a tarefa do entendimento seja a reduzida a perseguir sob o fio condutor de regras necessárias o surgimento dos fenômenos; nem finalmente concederá que por qualquer motivo se procure a causa fora da natureza (ente originário), pois não conhecemos nada mais que esta enquanto unicamente ela nos oferece objetos e pode instruir-nos acerca das suas leis. Na verdade, se com sua antítese o filósofo empírico não possui nenhum outro objetivo do que suprimir a curiosidade indiscreta e o atrevimento da razão que desconhece a sua verdadeira determinação e que se gaba de conhecimento e de saber onde propriamente conhecimento e saber cessam, e que quer fazer passar por uma promoção do interesse especulativo o que é considerado válido com vista ao interesse prático para romper o fio das investigações físicas onde for conveniente à sua comodidade e, com uma pretensão de ampliação do conhecimento, ligá-lo a ideias transcendentais, pelas quais propriamente só se conhece que não se sabe nada; se, digo, o empirista se satisfizesse com isso, então o seu princípio seria uma máxima da moderação em pretensões, da modéstia em asserções, e ao mesmo tempo da extensão máxima possível do nosso entendimento mediante o mestre propriamente proposto a nós, a saber, a experiência. Com efeito, em tal caso não nos seriam tirados os pressupostos intelectuais e a fé no que concerne ao nosso interesse prático; apenas não se poderia deixá-lo s aparecer sob o título e a pompa de ciência e de compreensão racional, pois o verdadeiro e próprio saber especulativo não pode encontrar em parte alguma outro objeto senão o da experiência e, se se ultrapassam os seus limites, a síntese que procura conhecimentos novos e independentes dela não possui nenhum substrato da intuição sobre o qual possa ser exercitada. Mas quando o próprio empirismo torna-se dogmático com respeito às ideias (como frequentemente acontece) e afoitamente nega o que sobrepassa a esfera dos seus conhecimentos intuitivos, então ele mesmo cai no erro da imodéstia, que é aqui ainda mais censurável porque deste modo causa-se um prejuízo insubstituível ao interesse prático da razão. Essa é a oposição do epicurismo contra o platonismo. (Todavia, continua sendo uma questão se Epicuro expôs alguma vez esses princípios como afirmações objetivas. Se porventura não passaram de máximas do uso especulativo da razão, então mostrou com isto um espírito filosófico mais autêntico que qualquer outro filósofo da antiguidade. Os fatos de que na explicação dos fenômenos se tem que proceder como se o campo da investigação não fosse interceptado por nenhum limite ou início do mundo, de que se deve admitir a matéria do mundo como ela tem que ser se quisermos ser instruídos sobre ela pela experiência, de que não precisam ser utilizadas outra produção de eventos senão tal como determinados por leis imutáveis da natureza e finalmente nenhuma causa distinta do mundo, são todos ainda hoje princípios muito corretos, mas pouco observados, para ampliar a filosofia especulativa bem como também para descobrir os princípios da Moral independente de fontes auxiliares estranhas. Mas nem por isso aquele que exige ignorar tais proposições dogmáticas, pelo tempo em que nos ocupamos com a simples especulação, pode ser culpado de querer negá-las. Nota do Autor.) Um e outro dizem mais do que sabem, mas enquanto o primeiro estimula e promove o saber, conquanto em prejuízo do prático, o segundo fornece certamente excelentes princípios para o prático, mas precisamente por isso permite à razão, com respeito a tudo aquilo em que nos é concedido um saber especulativo, entregar-se a explicações idealistas dos fenômenos da natureza, descuidando-se da investigação física a respeito. Enfim, no que concerne ao terceiro momento a ser considerado na escolha provisória entre as duas partes conflitantes, é sumamente estranho que o empirismo seja totalmente impopular, conquanto se devesse crer que o entendimento comum acolhesse sofregamente um projeto que não promete satisfazê-lo senão mediante conhecimentos da experiência e a sua interconexão racional, enquanto a dogmática transcendental constrange-o a elevar-se a conceitos que ultrapassam de longe o conhecimento e a faculdade racional das cabeças mais exercitadas no pensar. Mas tal é precisamente a motivação do entendimento comum. Este, com efeito, encontra-se numa posição em que nem o mais douto pode tirar qualquer vantagem sobre ele. Se compreende pouco ou nada disso, nem por isso alguém pode vangloriar-se de compreender muito mais; e, conquanto não possa falar sobre isso em termos de escola como outros, pode contudo sofismar infinitamente mais, porque se move em torno de puras ideias sobre as quais se é o mais eloquente precisamente porque não se sabe nada delas; sobre a investigação na natureza, ao invés, teria que emudecer totalmente e confessar sua ignorância. Comodidade e vaidade, portanto, contribuem já fortemente para recomendar tais princípios. Além disso, se bem que a um filósofo seja muito difícil admitir algo como princípio sem poder prestar contas a si mesmo ou absolutamente introduzir conceitos cuja realidade objetiva não possa ser conhecida, assim para o entendimento comum, por sua vez, não há nada mais rotineiro. Ele quer ter algo com que possa iniciar confiantemente. A dificuldade até de conceber tal pressuposto não o inquieta, pois (sem saber o que significa conceber) nem sequer lhe ocorre e ele toma por conhecido aquilo que pelo uso mais frequente lhe é familiar. Por fim todo o interesse especulativo desaparece nele ante o interesse prático e imagina-se entrever e saber aquilo para o qual as suas apreensões e esperanças impelem-no a aceitar ou a crer. Deste modo o empirismo da razão transcendental-idealizante priva-se inteiramente de toda a popularidade e, por mais dano que possa conter contra os supremos princípios práticos, não se deve absolutamente temer que ultrapasse alguma vez os confins da escola e conquiste uma autoridade relativamente considerável entre o público e um certo favor na massa. A razão humana é por natureza arquitetônica, isto é, considera todos os conhecimentos como pertencentes a um sistema possível e por isso permite também somente aqueles princípios que pelo menos não tornem um conhecimento projetado incapaz de coexistir, em qualquer sistema, com outros conhecimentos. As proposições da antítese, porém, são de natureza tal que tornam totalmente impossível o acabamento de um edifício de conhecimentos. De acordo com elas, sobre cada estado do mundo há sempre um mais antigo, em cada parte sempre outras partes por sua vez divisíveis, antes de cada evento outro que por sua vez foi do mesmo modo produzido noutra parte, e na existência em geral tudo sempre condicionado, sem que se possa reconhecer qualquer existência incondicionada e primeira. Portanto, visto que a antítese em parte alguma admite um ente primeiro e um início que pudesse servir absolutamente de fundamento à construção, assim sobre a base de tais pressuposições um edifício completo do conhecimento é totalmente impossível. Em virtude disso, o interesse arquitetônico da razão (que requer, não uma unidade empírica, mas uma unidade pura a priori da razão) traz consigo uma recomendação natural em favor das asserções da tese. Mas se alguém pudesse renunciar a todo o interesse e, indiferente contra todas as consequências, considerar as asserções da razão simplesmente segundo o conteúdo dos seus argumentos, então ele - posto que não soubesse sair de outro modo do aperto, senão confessando-se a favor de uma ou de outra das doutrinas conflitantes - encontrar-se-ia numa posição incessantemente vacilante. Hoje se apresentaria a ele como convincente que a vontade humana é livre; amanhã, quando considerasse a indissolúvel cadeia natural, admitiria que a liberdade não é senão a auto-ilusão e que tudo é meramente natureza. Quando então se tratasse de operar e agir, esse jogo da razão simplesmente especulativa desapareceria como silhuetas de um sonho e ele escolheria os seus princípios meramente segundo o interesse prático. Todavia, a um ente que reflete e indaga convém dedicar certo tempo unicamente ao exame da sua própria razão, despedindo-se inteiramente de toda a parcialidade, e submetendo as suas observações publicamente ao julgamento dos outros. Do mesmo modo ninguém pode ser reprovado e menos ainda impedido de fazer comparecer as suas proposições e contraposições, assim como podem defender-se sem se atemorizarem por nenhuma ameaça, diante de jurados da sua própria condição (a saber da condição de fracos seres humanos). SEÇÃO QUARTA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA DOS PROBLEMAS TRANSCENDENTAIS DA RAZÃO PURA NA MEDIDA EM QUE TÊM DE ABSOLUTAMENTE PODER SER RESOLVIDOS Querer resolver todos os problemas e responder a todas as perguntas constituiria uma insolente fanfarronice e uma tão extravagante presunção, que por elas se faria perder imediata e necessariamente toda a confiança. Não obstante, há ciências a cuja natureza é inerente que cada questão que nelas se apresente tem que absolutamente poder ser respondida a partir daquilo que se sabe, porque a resposta tem que surgir das mesmas fontes das quais surge a questão e aí de modo algum é permitido invocar uma ignorância inevitável, mas a solução pode ser exigida. Tem de poder-se saber com base na regra o que em todos os casos possíveis é justo ou injusto, porque se refere à nossa obrigação e nós não possuímos nenhuma obrigação para com o que não podemos saber. Na explicação dos fenômenos da natureza, contudo, muitas coisas têm que permanecer-nos incertas e muitas questões insolúveis, porque o que sabemos sobre a natureza está longe de em todos os casos ser suficiente com relação ao que devemos explicar. Pergunta-se, ora se na filosofia transcendental alguma questão concernente a um objeto proposto à razão seja irrespondível precisamente pela mesma razão pura e se se tem o direito de subtrair-se à sua resposta decisiva, pelo fato de ser incluída como absolutamente incerta (com base em tudo o que possamos conhecer) entre aquilo do qual na verdade possuímos tantos conceitos para levantar uma questão, mas nos faltam absolutamente os meios ou a faculdade para jamais a responder. Ora, eu afirmo que a filosofia transcendental possui a peculiaridade entre todo o conhecimento especulativo de que nenhuma questão concernente a um objeto dado à razão pura é insolúvel para a mesma razão humana, e que nenhum pretexto de uma ignorância irremediável e de uma profundidade insondável do problema pode dispensar-nos da obrigação de dar uma resposta fundada e completa sobre a questão. Com efeito, o mesmo conceito que nos põe em condições de perguntar também tem que tornar-nos inteiramente capazes de responder a essa questão na medida em que o objeto (como no caso do justo e injusto) não é absolutamente encontrado fora do conceito. Na filosofia transcendental, contudo, somente das questões cosmológicas pode-se com justiça exigir uma resposta satisfatória relativa à natureza do objeto, sem que ao filósofo seja permitido subtrair-se a ela mediante a alegação de obscuridade impenetrável. Tais questões podem dizer respeito somente a ideias cosmológicas. Com efeito, o objeto tem que ser dado empiricamente, e a questão concerne somente à sua conformidade com uma ideia. Se o objeto é transcendental e, portanto, desconhecido, por exemplo, se o algo cujo fenômeno (em nós mesmos) é o pensamento (alma), é um ente simples em si, se há uma causa absolutamente necessária de todas as coisas em conjunto etc., então devemos procurar para a nossa ideia um objeto do qual possamos confessar que nos é desconhecido mas nem por isso impossível. (Na verdade, não se pode dar uma resposta à questão sobre qual a natureza de um objeto transcendental, isto é, que coisa ele seja mas se pode bem dizer que a própria questão nada é pelo fato de não lhe ser dado objeto algum. Com isso, todas as questões da doutrina transcendental da alma também podem receber e efetivamente recebem uma resposta. Pois concernem ao sujeito transcendental de todos os fenômenos internos, o qual não é ele mesmo fenômeno e portanto não é dado como objeto, e com respeito ao qual nenhuma das categorias (para as quais propriamente é posta a questão) encontra condições de sua aplicação. Este é pois o caso em que vale a expressão comum de que a ausência de resposta é também uma resposta, a saber, de que é totalmente nula e vazia uma questão sobre a natureza daquele algo que não pode ser pensado mediante nenhum predicado determinado por ser posto totalmente fora da esfera dos objetos que nos podem ser dados. Nota do Autor.) Somente as ideias cosmológicas possuem a peculiaridade de poderem pressupor como dados o seu objeto e a síntese empírica requerida para o seu conceito. A questão que decorre delas concerne somente ao progresso dessa síntese na medida em que ele deve conter uma totalidade absoluta, a qual por fim não é mais nada empírico enquanto não pode ser dada em nenhuma experiência. Ora, visto que aqui se trata meramente de uma coisa como objeto de uma experiência possível e não como uma coisa em si mesma, assim a resposta à questão cosmológica transcendente não pode encontrar-se em nenhum outro lugar além da ideia, pois não se refere a nenhum objeto em si mesmo; e com respeito à experiência possível não se pergunta pelo que pode ser dado in concreto em qualquer experiência, mas pelo que se encontra na ideia, da qual a síntese empírica deva meramente aproximar-se. Logo, a questão tem que poder ser resolvida unicamente desde a ideia. Com efeito, a ideia é a uma simples criação da razão, a qual, portanto, não pode repelir a responsabilidade e atribuí-la ao objeto desconhecido. Não é tão extraordinário como inicialmente parece o fato de que uma ciência possa exigir e esperar somente soluções certas com respeito a todas as questões pertencentes ao seu domínio (questiones domesticae), embora de momento ainda não tenham sido encontradas. Além da filosofia transcendental, há ainda duas ciências puras da razão, possuindo uma delas conteúdo meramente especulativo e outra conteúdo prático: matemática pura e moral pura. Por acaso ouviu-se já alguma vez que devido por assim dizer a uma ignorância necessária das condições, fez-se passar por inseguro qual é com precisão em número racionais ou irracionais a relação do diâmetro com o círculo? Visto que tal relação não pode ser dada congruentemente pelos números racionais e que pelos irracionais ainda não foi encontrada, então se julga que pelo menos a impossibilidade de tal solução possa ser conhecida com segurança, e Lambert forneceu uma prova a respeito. Nos princípios universais dos costumes nada pode ser inseguro, porque as proposições ou são total e absolutamente nulas e vazias de sentido ou têm que derivar simplesmente dos conceitos da nossa razão. No conhecimento da natureza, ao contrário, há uma infinidade de suposições com relação às quais jamais pode esperar-se uma certeza, porque os fenômenos da natureza são objetos dados a nós independentemente dos nossos conceitos; por isso a chave para a sua solução não se encontra em nós e no nosso pensamento, mas fora de nós, e precisamente por isso em muitos casos não pode ser encontrada, não podendo, por conseguinte, esperar-se um esclarecimento seguro a seu respeito. Não me refiro aqui às questões da Analítica Transcendental, que dizem respeito à dedução do nosso conhecimento puro, porque agora tratamos somente da certeza dos juízos com vista aos objetos e não com vista à origem dos nossos conceitos mesmos. Não podemos fugir da obrigação de uma solução pelo menos crítica para as questões da razão apresentadas levantando lamentos sobre os limites estreitos da nossa razão e confessando, com a aparência de um humilíssimo conhecimento de nós mesmos, que esteja acima da nossa razão estabelecer se o mundo existe desde a eternidade ou se tem um início; se o espaço cósmico é repleto de entes até o infinito ou se está encerrado dentro de certos limites; se no mundo algo é simples ou se tudo tem que ser dividido até o infinito; se há uma geração e produção a partir da liberdade ou se tudo está ligado à cadeia da ordem natural; finalmente, se há algum ente totalmente incondicionado e necessário em si ou se tudo é condicionado quanto à sua existência e, por conseguinte, externamente dependente e contingente em si. Com efeito, todas essas questões dizem respeito a um objeto que não pode ser dado em nenhum outro lugar a não ser em nosso pensamento, a saber, a totalidade absolutamente incondicionada da síntese dos fenômenos. Se a partir dos nossos conceitos não podemos dizer e estabelecer nada seguro a respeito, nem por isso nos é permitido atribuir a culpa à coisa que se oculta a nós. Com efeito, semelhante coisa (por não se encontrar em lugar nenhum fora da nossa ideia) não pode absolutamente ser dada, mas temos que procurar a causa da incerteza na nossa própria ideia, a qual é um problema que não permite nenhuma solução e com relação à qual obstinadamente admitimos que lhe corresponda um objeto real. Uma clara exposição da dialética que se encontra no nosso próprio conceito levar-nos-ia depressa à plena certeza relativamente ao que devemos julgar sobre tal questão. À vossa desculpa de incerteza com respeito a esses problemas pode-se contrapor primeiramente a seguinte questão, à qual tendes que responder pelo menos claramente: Donde vos provêm as ideias cuja solução vos enreda aqui em tal dificuldade? Trata-se porventura de fenômenos de cuja explicação careceis e com respeito aos quais, em consequência dessas ideias, precisais procurar somente os princípios ou a regra da sua exposição? Admiti que a natureza esteja completamente descoberta diante de vós e que a vossos sentidos e à consciência não ficou oculto nada de tudo o que foi apresentado à vossa intuição; em tal caso, todavia, não podereis conhecer in concreto mediante nenhuma experiência o objeto das vossas ideias (pois além dessa intuição completa requerer-se-ão ainda uma síntese acabada e a consciência da sua totalidade absoluta, o que de modo algum é possível mediante qualquer conhecimento empírico). Logo, a vossa questão de modo algum pode ser necessária à explicação de qualquer fenômeno que se apresente e nem pois ser como que imposta pelo próprio objeto. Com efeito, o objeto não vos pode jamais aparecer, porque ele não pode ser dado mediante nenhuma experiência possível. Permaneceis sempre com todas as percepções possíveis prisioneiros sob condições, quer no tempo ou no espaço, e não alcançais nenhum incondicionado para estabelecer se esse incondicionado deve ser posto num início absoluto da síntese ou numa totalidade absoluta da série sem início algum. O todo, porém, na sua significação empírica é sempre apenas comparativo. O todo absoluto da magnitude (o universo), da divisão, da derivação, da condição da existência em geral, juntamente com todas as questões deve realizar-se mediante uma síntese finita ou uma síntese progredindo até o infinito, não tem nada a ver com qualquer experiência possível. Vós, por exemplo, não poderíeis esclarecer minimamente, ou mesmo apenas de outro modo os fenômenos de um corpo se admitísseis que ele conste de partes simples ou sempre sem exceção de partes compostas. Com efeito, jamais pode aparecer-vos um fenômeno simples e tampouco uma condição infinita. Os fenômenos requerem uma explicação somente na medida em que as condições dela são dadas na percepção; mas tudo o que alguma vez possa ser dado a essas condições quando é tomado conjuntamente num todo absoluto não é ele próprio uma percepção. Porém, é propriamente desse todo que se requer uma explicação nos problemas transcendentais da razão. Portanto, a solução desses problemas jamais pode apresentar-se na experiência. Assim não podeis dizer que resulta incerto que coisa deve ser atribuída aqui ao objeto. Pois o vosso objeto encontra-se apenas no vosso cérebro e não pode ser dado fora dele. Em virtude disso, deveis cuidar somente de ser coerentes convosco mesmos, evitando a anfibologia que transforma a vossa ideia numa pretensa representação de um objeto dado empiricamente e, portanto, cognoscível também segundo leis da experiência. Logo, a solução dogmática, se não é incerta, é pelo menos impossível. A solução crítica, contudo, que pode ser inteiramente certa, não considera absolutamente a questão segundo o ponto de vista da objetividade mas segundo o fundamento do conhecimento, sobre o qual a questão está baseada. SEÇÃO QUINTA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA REPRESENTAÇÃO CÉTICA DAS QUESTÕES COSMOLÓGICAS ATRAVÉS DE TODAS AS QUATRO IDEIAS TRANSCENDENTAIS Renunciaríamos de boa vontade à exigência de ver respondidas dogmaticamente as nossas questões se compreendêssemos já previamente que, seja qual fosse a resposta, ela somente aumentaria a nossa ignorância e precipitar-nos-ia de uma incompreensibilidade a outra, de uma obscuridade a outra ainda maior, e talvez mesmo em contradições. Se a nossa questão comporta meramente afirmação ou negação, então se age com prudência quando se deixam momentaneamente de lado os prováveis fundamentos da resposta e se considera antes de tudo que se ganharia se a resposta resultasse favorável a uma parte, ou se ela resultasse favorável à outra parte. Ora, se se verifica que em ambos os casos se chega a um resultado privado de sentido (nonsens), então possuímos um fundado motivo para examinar criticamente a nossa questão e ver se ela não repousa sobre uma pressuposição infundada, ou se não joga com uma ideia que trai melhor a sua falsidade na aplicação e mediante as suas consequências do que na representação isolada. Esta é a grande utilidade de que é possuidor o modo cético no tratar as questões que a razão pura põe à razão pura; mediante ele e com pouco esforço podemos desembaraçar-nos de um grande deserto dogmático e substituí-lo por uma sóbria crítica, que, como um verdadeiro catártico, eliminará felizmente a ilusão presunçosa juntamente com o que a acompanha, a polimatia. Se, pois, com respeito a uma ideia cosmológica eu pudesse entrever antecipadamente que, qualquer parte do incondicionado da síntese regressiva dos fenômenos que ela abraçasse, ela, contudo, seria para todo conceito do entendimento ou grande demais ou pequena demais, então eu compreenderia que ela - tendo a ver somente com um objeto da experiência, o qual deve ser adequado a um possível conceito do entendimento - terá que ser totalmente vazia e sem significação, porque o objeto, seja de que modo eu queira acomoda-lo à ideia, não se adapta à mesma. E este é realmente o caso de todos os conceitos cósmicos, os quais por isso envolvem também a razão, enquanto se liga aos mesmos, em uma inevitável antinomia. Com efeito, admiti em primeiro lugar que o mundo não tenha um inicio; em tal caso ele é grande demais para o vosso conceito; pois este, que consiste num regresso sucessivo, não pode jamais alcançar a inteira eternidade decorrida. Suponde que ele tenha um inicio, então ele, por sua vez, é pequeno demais para o conceito do vosso entendimento no necessário regresso empírico. Pois, já que o início pressupõe sempre ainda um tempo que antecede, ele não é ainda incondicionado e a lei do uso empírico do entendimento impõe-vos de perguntar adiante por uma condição temporal mais alta; o mundo, portanto, é manifestamente pequeno demais para essa lei. O mesmo ocorre com respeito à dupla resposta à questão sobre a magnitude do mundo segundo o espaço. Com efeito, se o mundo é infinito e ilimitado, então é grande demais para todo o possível conceito empírico. Se ele é finito e limitado, então perguntareis ainda com direito: que determina esses limites? O espaço vazio não é correia to das coisas subsistentes por si, nem pode ser uma condição na qual possais ficar parados, muito menos ainda pode ser uma condição empírica que constituísse uma parte de uma experiência possível. (Com efeito, quem pode ter uma experiência do absolutamente vazio?) Todavia, para a totalidade absoluta da síntese empírica requerer-se-á sempre que o incondicionado seja um conceito de experiência. Logo, um mundo limitado é pequeno demais para o vosso conceito. Em segundo lugar, se todo fenômeno no espaço (matéria) consta de um número infinito de partes, então o regresso da divisão é grande demais para o vosso conceito; e, se a divisão do espaço deve cessar em algum membro qualquer dela (no simples), então ele é pequeno demais para a ideia do incondicionado. Tal membro, com efeito, deixa ainda sempre aberto um regresso a mais partes contidas nele. Em terceiro lugar, admiti que em tudo o que acontece no mundo não haja nada que não seja uma consequência segundo leis da natureza; então a causalidade da causa sempre é por sua vez algo que acontece e que torna necessário o vosso regresso em direção a uma causa ainda mais alta e, por conseguinte, o prolongamento indefinido da série de condições a parte priori. A simples natureza eficiente, portanto, é grande demais para todo o vosso conceito na síntese dos eventos do mundo. Se escolheis aqui e acolá eventos produzidos espontaneamente, por conseguinte, uma geração a partir da liberdade, em tal caso o porquê vos persegue segundo uma inevitável lei da natureza e constringe-vos a ultrapassar este ponto segundo uma lei causal da experiência. Encontrais então que semelhante totalidade da conexão é pequena demais para o vosso necessário conceito empírico. Em quarto lugar, se admitis um ente absolutamente necessário (quer seja ele o mundo ou algo no mundo ou a causa do mundo), ponde-o então num tempo infinitamente distante de todo instante dado, pois do contrário ele dependeria de outra existência mais antiga. Em tal caso, entretanto, esta existência é inacessível ao vosso conceito empírico, e grande demais para que possais alcançá-la mediante qualquer regresso continuado. Se, todavia, segundo a vossa opinião tudo o que pertence ao mundo (quer como condicionado ou como condição) é contingente, então toda existência dada a vós é pequena demais para o vosso conceito. Ela, efetivamente, vos constringe a procurar ainda sempre outra existência da qual dependa. Em todos esses casos dissemos que a ideia do mundo é ou grande demais ou ainda pequena demais para o regresso empírico, por conseguinte, para todo o conceito possível do entendimento. Por que não nos expressamos inversamente e dissemos que no primeiro caso o conceito empírico é sempre pequeno demais, no segundo, porém, grande demais para a ideia e que, por conseguinte, a culpa é atribuída ao regresso empírico, ao invés de acusar a ideia cosmológica de por excesso ou por falta desviar-se do seu fim, a saber, da experiência possível? A razão disto foi a seguinte: a experiência possível é a única que pode dar realidade aos nossos conceitos; sem ela todo conceito é somente uma ideia privada de verdade e de relação com um objeto. Por isso o conceito empírico possível era a única medida segundo a qual a ideia tinha que ser julga da: se é uma simples ideia e um ente de pensamento, ou se encontra o seu objeto no mundo. Com efeito, que uma coisa seja grande demais ou pequena demais com respeito a alguma outra coisa, diz-se somente do que é admitido em vista desta última, e a ela tem que ser endereçado. Aos passatempos da antiga escola dialética pertencia também esta questão: se uma esfera não passa através de um buraco dever-se-á dizer que a esfera é demasiado grande, ou que o buraco é demasiado pequeno? Neste caso é indiferente como queirais expressar-vos, pois não sabeis qual de ambas as coisas existe em vista da outra. Ao contrário, não direis: o homem é demasiado longo para o seu traje, e sim: o traje é demasiado curto para o homem. Portanto, pelo menos fomos conduzidos à fundada suspeita de que às ideias cosmológicas e com elas a todas as asserções sofísticas postas em conflito entre si talvez subjaza um conceito vazio e simplesmente imaginário do modo como nos é dado o objeto das ideias. E esta suspeita já pode guiar-nos ao rastro certo para descobrir a ilusão que nos desencaminhou por tão longo tempo. SEÇÃO SEXTA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA O IDEALISMO TRANSCENDENTAL COMO CHAVE PARA A SOLUÇÃO DA DIALÉTICA COSMOLÓGICA Demonstramos suficientemente na Estética Transcendental que tudo o que é intuído no espaço ou no tempo, portanto, todos os objetos de uma experiência possível para nós, não passam de fenômenos, isto é, meras representações, que, tal qual são representados, como entes extensos ou séries de mudanças, não possuem uma existência fora de nossos pensamentos e fundada em si. Denomino este conceito doutrinal de idealismo transcendental. (Também o chamei às vezes de idealismo formal para distingui-lo do material, isto é, do comum, que duvida da existência das próprias coisas exteriores ou a nega. Em certos casos, parece aconselhável utilizar preferentemente esta expressão do que a acima, a fim de evitar qualquer falsa interpretação. Nota do Autor.) O realista no significado transcendental faz destas modificações de nossa sensibilidade coisas subsistentes em si, tratando, por conseguinte, meras representações como coisas em si mesmas. Cometer-se-ia contra nós uma injustiça se nos fosse atribuído o já há tanto tempo tão mal-afamado idealismo empírico, o qual, enquanto aceita a realidade própria do espaço, nega, ou pelo menos considera duvidosa, a existência dos entes extensos no mesmo, e que neste particular não concede nenhuma diferença suficientemente demonstrável entre o sonho e a verdade. No que se refere aos fenômenos do sentido interno no tempo, enquanto coisas reais, o idealismo empírico não encontra nenhuma dificuldade; chega até a afirmar que única e exclusivamente esta experiência interna demonstra suficientemente a existência real de seu objetivo (em si mesmo, com toda esta determinação temporal). O nosso idealismo transcendental, em contra partida, permite que os objetos de uma intuição externa realmente sejam tal qual intuídos no espaço, e que todas as mudanças no tempo sejam tal qual o sentido interno as representa. Pois já que o espaço é uma forma daquela intuição que denominamos a externa, e que, sem objetos neste espaço, nem haveria qualquer representação empírica, então podemos e temos que nele admitir entes extensos como reais; e exatamente o mesmo também ocorre com o tempo. No entanto, aquele espaço mesmo mais este tempo e, juntamente com ambos, todos os fenômenos não são, em si mesmos, coisas; nada mais são que representações, não podendo, de modo algum, existir fora de nossa mente. Mesmo a intuição interna e sensível de nossa mente (enquanto objeto da consciência), cuja determinação é representada através da sucessão de diversos estados no tempo, não é o verdadeiro eu tal qual existe em si, ou sujeito transcendental, mas sim unicamente um fenômeno que foi dado à sensibilidade deste ente desconhecido para nós. A existência deste fenômeno interno, enquanto uma coisa assim existente em si, não pode ser admitida, visto que a sua condição é o tempo, o qual não pode ser a determinação de qualquer coisa em si mesma. No espaço e no tempo, no entanto, a verdade empírica dos fenômenos está suficientemente assegurada, bem como suficientemente distinguida do parentesco com o sonho, caso ambos [a verdade e os sonhos] se interconectem correta e universalmente numa experiência segundo leis empíricas. Em decorrência disto, os objetos da experiência jamais são dados em si mesmos, mas somente na experiência, não existindo absolutamente fora da mesma. Que possa haver habitantes na lua, embora nenhum ser humano jamais os tenha percebido, corretamente tem que ser admitido. Mas isto significa tão somente que poderíamos nos deparar com eles no possível progresso da experiência; pois tudo o que está num contexto com uma percepção segundo as leis do progresso empírico é real. Eles são reais, portanto, se estão numa interconexão empírica com a minha consciência real, mesmo que justamente por isto eles não sejam reais em si, isto é, fora deste progresso da experiência. Nada mais nos é realmente dado que a percepção e o progresso empírico desta a outras percepções possíveis. Pois em si mesmos os fenômenos, enquanto meras representações, só são reais na percepção, a qual, de fato, não é outra coisa que a realidade de uma representação empírica, isto é, fenômeno. Denominar um fenômeno de coisa real antes da percepção ou significa que temos que encontrar tal percepção no progresso da experiência ou não possui nenhum significado. Pois que ele exista em si mesmo, sem relação com os nossos sentidos e experiência possível, certamente poderia ser dito caso se estivesse falando de uma coisa em si mesma. Referimo-nos, no entanto, simplesmente a um fenômeno no espaço e no tempo, não sendo nenhum destes últimos uma determinação das coisas em si mesmas, mas sim unicamente de nossa sensibilidade. É por isto que aquilo que é no espaço e no tempo (os fenômenos) não é, em si, algo; consiste, ao contrário, em meras representações que, se não são dadas em nós (na percepção), em parte alguma podem ser encontradas. A faculdade de intuição sensível só é, propriamente, uma receptividade para ser afetada, de certo modo, por representações cuja relação recíproca consiste numa intuição pura do espaço e do tempo (puras formas de nossa sensibilidade) e as quais, na medida em que são conectadas e determináveis nesta relação (no espaço e no tempo) segundo as leis da unidade da experiência, se intitulam objetos. A causa não sensível destas representações nos é totalmente desconhecida, e por isto não podemos intuí-la como objeto; pois um objeto semelhante teria que ser representado nem no espaço nem no tempo (enquanto simples condições da representação sensível), condições sem as quais não podemos pensar nenhuma intuição. Enquanto isto, podemos denominar a causa unicamente inteligível dos fenômenos em geral de objeto transcendental, e isto só a fim de que tenhamos algo correspondente à sensibilidade enquanto uma receptividade. A este objeto transcendental podemos atribuir toda a extensão e interconexão de nossas percepções possíveis e dizer que ele é dado em si mesmo antes de toda a experiência. Por outro lado, os fenômenos não são, de acordo com ele, dados em si, mas sim somente nesta experiência, pois eles são meras representações que significam um objeto real somente enquanto percepções, a saber, quando esta percepção se interconecta com todas as demais segundo as regras da unidade da experiência. Pode-se dizer, assim, que as coisas reais do tempo passado são dadas no objeto transcendental da experiência; mas para mim elas só são objetos e reais no tempo passado na medida em que me represento que uma série regressiva de percepções possíveis (seja no fio condutor da história ou nas pegadas das causas e efeitos) segundo leis empíricas, numa palavra o curso do mundo, conduz a uma série decorrida de tempo como condição do tempo presente, o qual por sua vez, só é representado como real na interconexão de uma experiência possível, e não em si mesmo. Desta maneira todos os acontecimentos ocorridos no tempo imemorial que precedeu a minha existência não significam outra coisa que a possibilidade de prolongar a cadeia da experiência a partir da percepção presente até atingir as condições que determinam, segundo o tempo, esta última. Por conseguinte, se me represento conjuntamente todos os objetos existentes dos sentidos em todo tempo e em todos os espaços, então não os ponho dentro destes dois antes da experiência, mas esta representação não é outra coisa que o pensamento de uma experiência possível em sua completude absoluta. Unicamente nela aqueles objetos (que nada mais são que meras representações) são dados. Dizer, porém, que eles existem antes de toda a minha experiência significa tão somente que eles podem ser encontrados naquela parte da experiência para a qual, partindo da percepção, tenho, antes de tudo, que progredir. A causa das condições empíricas deste progresso, portanto, que membros posso encontrar ou, também, até que ponto posso encontrar algum membro no regresso, é transcendental e por isto, necessariamente desconhecida a mim. Entretanto, não é disto que se trata, porém unicamente da regra do progresso da experiência na qual me são dados os objetos, ou seja os fenômenos. Quanto ao resultado, tanto faz, também, se afirmo que no progresso empírico no espaço eu posso encontrar estrelas que estão uma centena de vezes mais distantes do que as mais longínquas que vejo, ou se digo que talvez possam ser encontradas tais no universo, mesmo que jamais um ser humano as percebeu ou venha a perceber. Com efeito, mesmo que elas fossem dadas em geral como coisas em si mesmas, sem relação a uma experiência possível, ainda elas nada são para mim; portanto, também não são objetos, a não ser enquanto contidas na série do regresso empírico. Só numa outra relação, quando justamente estes fenômenos devem ser utilizados para a ideia cosmológica de um todo absoluto e quando se trata pois de uma questão que ultrapassa os limites da experiência possível, a distinção do modo pelo qual se toma a realidade dos objetos pensados dos sentidos é de relevo, a fim de evitar uma ilusão enganadora que tem inevitavelmente que se originar da falsa interpretação de nossos próprios conceitos empíricos. SEÇÃO SÉTIMA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA DECISÃO CRÍTICA DO CONFLITO COSMOLÓGICO DA RAZÃO CONSIGO MESMA Toda a antinomia da razão pura repousa sobre o seguinte argumento dialético: se o condicionado é dado, então a série inteira de todas as condições do mesmo também é dada; ora, os objetos dos sentidos nos são dados como condicionados, logo etc. Através deste silogismo, cuja premissa maior parece tão natural e evidente, são agora introduzidas, segundo a diversidade das condições (na síntese dos fenômenos), na medida em que perfazem uma série, exatamente tantas ideias cosmológicas quantas postulam a totalidade absoluta destas séries e que, justamente devido a isto, põem a razão inevitavelmente em conflito consigo mesma. Mas antes que revelemos o que há de enganoso neste argumento racionalizante, temos que nos preparar para tal mediante a correção e a determinação de certos conceitos que nele ocorrem. Em primeiro lugar, a seguinte proposição é clara e indubitavelmente certa: que, se o condicionado é dado, nos é imposto, exatamente por isto um regresso na série de todas as condições para o mesmo; com efeito, o conceito do condicionado já implica que, mediante tal, algo é referido a uma condição, e quando esta por sua vez também é condicionada, algo é referido a uma condição mais remota e assim através de todos os membros da série. Esta proposição é, pois, analítica, não tendo nada a temer de uma crítica transcendental. Trata-se de um postulado lógico da razão: perseguir mediante o entendimento e estender, tanto quanto possível, aquela conexão de um conceito que já decorre dele mesmo com as suas condições. Além disso: se tanto o incondicionado quanto a sua condição são coisas em si mesmas, então, se o primeiro foi dado, não só o regresso à segunda é imposto, mas este já é realmente dado junto com isto; e já que isto vale para todos os membros da série, então a série completa das condições, portanto, também o incondicionado, é concomitantemente dada mediante tal, ou antes pressuposta pelo fato de que o condicionado, o qual só era possível através daquela série, é dado. Aqui a síntese do condicionado com a sua condição é uma síntese do mero entendimento, o qual representa as coisas tais quais são sem se preocupar com se e como podemos atingir o conhecimento das mesmas. Em contra partida, se estou às voltas com fenômenos, os quais, enquanto simples representações, de modo algum são dados se não atinjo o seu conhecimento (isto é eles mesmos, pois eles não são nada mais que conhecimentos empíricos), então não posso dizer, com exatamente este significado, que, se o condicionado é dado, então todas as condições (enquanto fenômenos) para o mesmo também são dadas, e de modo algum posso, portanto, inferir a totalidade absoluta da série das mesmas. Pois na apreensão os fenômenos não são propriamente outra coisa que uma síntese empírica (no espaço e no tempo), e somente nesta eles são dados. De modo algum segue-se disto que, se o condicionado é dado (no fenômeno), também a síntese, que perfaz a sua condição empírica, seja pressuposta e dada juntamente com tal; pelo contrário, esta ocorre, antes de mais nada, no regresso e nunca sem o mesmo. Num caso tal, no entanto, se pode dizer que um regresso às condições, isto é, uma síntese empírica continuada, seja prescrito ou imposto sob este aspecto, e que não possam faltar condições a serem dadas mediante este regresso. Disto se torna claro que a premissa maior do silogismo cósmico toma o condicionado no significado transcendental de uma categoria pura, ao passo que a premissa menor o toma no significado empírico de um conceito do entendimento aplicado a meros fenômenos; consequentemente, detecta-se aqui aquela falácia dialética que se denomina sophisma figurae dictionis. Não se trata, porém, de um engano elaborado artificialmente, mas sim de uma ilusão completamente natural da razão comum. Com efeito, através desta ilusão nós pressupomos (na premissa maior), caso algo seja dado como condicionado, as condições e a sua série, como que não examinadas, já que isto não é outra coisa que a exigência lógica de aceitar premissas completas para uma conclusão dada; neste caso não é possível encontrar uma ordenação temporal na conexão do condicionado com a sua condição, pois ambos são pressupostos em si como simultaneamente dados. Além disso, é tão natural (na premissa menor) encarar fenômenos como coisas em si e, exatamente da mesma forma, como objetos dados ao mero entendimento quanto ocorreu com a premissa maior, visto que abstraí de todas as condições da intuição, exclusivamente sob as quais objetos podem ser dados. Tínhamos, no entanto, deixado passar despercebida aqui uma diferença digna de nota entre os conceitos. A síntese do condicionado com a sua condição e toda a série das últimas (na premissa maior) não portava consigo nada quanto a uma limitação pelo tempo, bem como nenhum conceito de sucessão. Frente a isso, a síntese empírica e a série de condições no fenômeno (que é subsumida à premissa menor) são necessariamente sucessivas e dadas uma após a outra somente no tempo; por conseguinte, neste caso eu não poderia pressupor a totalidade absoluta da síntese e da série mediante tal representada tão bem quanto na premissa maior, porque lá todos os membros da série são dados em si (sem condição temporal), sendo possíveis na menor, no entanto, unicamente por intermédio de um regresso sucessivo que só é dado através do fato de que realmente seja levado a cabo. Após a demonstração de tal erro, e do argumento comumente subjacente (às afirmações cosmológicas), ambas as partes conflitantes podem com direito ser rejeitadas enquanto fundam a sua exigência sobre um motivo não fundante. Através disto, porém, a sua discórdia não está terminada no sentido de que houvessem sido convencidas que ambas, ou uma das duas, não tivessem razão quanto àquilo que ela afirma (na conclusão) caso não soubesse, em seguida, erigi-lo sobre um fundamento com força demonstrativa. Não obstante, nada parece mais claro que das duas alternativas - das quais uma afirma que o mundo possui um início e a outra que o mundo não possui um início, sendo, ao contrário, desde a eternidade - uma teria que ter razão. Mesmo que seja assim, entretanto, tal ocorre porque a clareza é igual em ambos os lados, sendo por sua vez impossível descobrir qual dos dois é o correto; e o conflito perdura como dantes, não obstante os partidos terem sido constrangidos à calma no tribunal da razão. Não resta, pois, nenhum outro meio para pacificar a contenda em seus fundamentos e para a satisfação de ambas as partes do que convencê-las, já que podem tão bem refutar-se mutuamente, de que a briga é por nada e que certa aparência transcendental fê-las ver uma realidade onde nenhuma pode ser encontrada. Este caminho de apaziguamento de um conflito desafiador de qualquer tentativa de decisão é o que agora pretendemos encetar. Zenão de Eléia, um dialético sutil, já foi muito criticado por Platão como um sofista malévolo devido ao fato de que, para mostrar a sua arte, procurava demonstrar qualquer proposição por meio de argumentos aparentes para, logo a seguir, derrubá-la por intermédio de outros igualmente fortes. Zenão afirmava que Deus (provavelmente nada mais que o mundo para ele) não é nem finito nem infinito, nem em movimento nem em repouso, nem semelhante nem dessemelhante a qualquer outra coisa. Àqueles que o julgavam quanto a isto, parecia que ele pretendera negar completamente duas proposições mutuamente contraditórias, o que é absurdo. Só que eu não creio que isto possa ser-lhe imputado com justiça. Logo a seguir iluminarei mais de perto a primeira destas proposições. No que tange às restantes, se sob a palavra Deus ele compreendeu o universo, então certamente ele teria que dizer que este nem está persistentemente presente em seu lugar (em repouso) nem modifica o mesmo (se move), pois todos os lugares estão unicamente no universo e este mesmo, portanto, não está em nenhum lugar. Se o universo compreende em si tudo o que existe, então também nesta medida ele não é nem semelhante nem dessemelhante a qualquer outra coisa, já que fora dele não existe nenhuma outra coisa com a qual pudesse ser comparado. Quando dois juízos mutuamente contrapostos pressupõem uma condição inadmissível, então ambos ficam suprimidos, não obstante o seu conflito (que não é, contudo, uma contradição própria), pois fica suprimida a condição exclusivamente sob a qual deveria valer cada uma destas proposições. Se alguém dissesse que todo o corpo ou cheira bem ou não cheira bem, então ocorre uma terceira alternativa, ou seja que ele de modo algum cheira (emite odores), e deste modo ambas as proposições conflitantes podem ser falsas. Dizendo que ele ou é aromático ou não é aromático (vel suaveolens vel non suaveolens), então ambos os juízos se contrapõem um ao outro por contradição e somente o primeiro é falso, pois o seu oposto contraditório, ou seja, que alguns corpos não são aromáticos, também compreende em si os corpos que não cheiram de modo algum. Na oposição anterior (per disparata), a condição contingente do conceito de corpo (o cheiro) ainda permaneceu junto ao juízo conflitante e não foi pois, suprida por este; por isto este último não era o oposto contraditório do primeiro. Dizendo, conforme tal, que segundo o espaço o mundo ou é infinito ou não é infinito (non est infinitus), então, se a primeira proposição é falsa, a sua oposta contraditória, a de que o mundo não é infinito, tem que ser verdadeira. Com isto eu somente suprimiria um mundo infinito sem pôr outro, ou seja, o finito. Se se dissesse, porém, que o mundo é ou infinito ou finito (não infinito), então ambas poderiam ser falsas. Com efeito, então eu encaro o mundo enquanto determinado, em si mesmo, segundo a sua magnitude, na medida em que na oposição não só suprimo a infinitude e com ela, talvez, toda a sua existência distinta, mas também acrescento uma determinação ao mundo enquanto uma coisa real em si mesma; isto pode igualmente ser falso caso o mundo de modo algum seja dado como uma coisa em si, portanto também não segundo a sua magnitude, quer como infinito quer ainda como finito. Que me seja permitido denominar as contraposições deste tipo de oposição dialética, ao passo que as de contradição se chamam de oposição analítica. Logo, dois juízos contrapostos dialeticamente um ao outro podem ser ambos falsos devido ao fato de que um não só contradiz o outro, mas também diz algo mais do que o exigido para a contradição. Se se encara estas duas proposições, a de que o mundo é infinito segundo a magnitude e a de que o mundo é finito segundo a sua magnitude, como mutuamente contrapostas por contradição, então se admite que o mundo (a série total dos fenômenos) seja uma coisa em si mesma. Pois ele permanece, mesmo que eu queira suprimir o regresso infinito ou finito na série de seus fenômenos. Se rejeito, entretanto, este pressuposto ou esta aparência transcendental, negando que se trate de uma coisa em si mesma, então o conflito contraditório entre ambas as afirmações se transforma num meramente dialético, e já que o mundo de modo algum existe em si (independentemente da série regressiva de minhas representações), não existe ele nem como um todo infinito em si nem como um todo finito em si. De modo algum é ele encontrável como algo em si mesmo, mas sim tão somente no regresso empírico da série de fenômenos. Devido a isto, se esta série é sempre condicionada, então ela jamais é totalmente dada e o mundo não é, pois, um todo incondicionado, logo também não existe como tal, quer com magnitude infinita quer finita. O que aqui se disse a respeito da primeira ideia cosmológica, qual seja a da totalidade absoluta da magnitude no fenômeno, também vale para todas as demais. A série de condições só pode ser encontrada na própria síntese regressiva, mas não no fenômeno em si e como uma coisa própria dada antes de todo o regresso. Por isso também terei que dizer: a quantidade de partes num fenômeno dado não é em si nem finita nem infinita, já que o fenômeno não é nada existente em si mesmo e que as partes são primeiramente dadas através do e no regresso da síntese decomponente, regresso este que jamais é dado a um modo absolutamente total, quer como finito quer como infinito. O mesmo vale para a série das causas superpostamente ordenadas ou que procede da existência condicionada até a incondicionalmente necessária; esta série jamais pode ser encarada, em si e em sua totalidade, nem como finita nem como infinita, pois enquanto série de representações subordinadas ela consiste unicamente no regresso dinâmico, não podendo, porém, de modo algum existir em si mesma antes deste regresso, e enquanto série de coisas subsistentes por si. Em decorrência disto, a antinomia da razão pura em suas ideias cosmológicas se desvanece pelo fato de que se mostra ser ela meramente dialética e um conflito devido a uma ilusão, conflito que se origina da aplicação da ideia de totalidade absoluta, que só vale como uma condição das coisas em si mesmas, a fenômenos que só existem na representação e, no caso de perfazerem uma série, no regresso sucessivo, mas de nenhum outro modo. Inversamente, porém, desta antinomia também se pode tirar um proveito verdadeiro, claro que não dogmático, mas crítico e doutrinal: qual seja, demonstrar indiretamente através disto a idealidade transcendental dos fenômenos caso alguém não estivesse satisfeito com a demonstração direta na estética transcendental. A demonstração consistiria no seguinte dilema. Se o mundo é um todo existente em si, então ele é o finito ou infinito. Ora, tanto o primeiro como o segundo são falsos (conforme as demonstrações, acima arroladas, da antítese, de um lado, e da tese, do outro). Logo também é falso que o mundo (o conjunto de todos os fenômenos) seja um todo existente em si. Disto decorre, então, que os fenômenos em geral não são nada, afora as nossas representações, o que há pouco pretendíamos expressar com idealidade transcendental dos mesmos. Esta observação é importante. Vê-se daí que as provas anteriores da antinomia quádrupla não eram ilusões, mas sim fundamentadas, caso se pressupusesse que os fenômenos ou um mundo dos sentidos, que os incorpora totalmente, fossem coisas em si mesmas. O conflito das proposições disto inferidas revela, no entanto, que no pressuposto há uma falsidade, e mediante tal fato nos conduz à descoberta da verdadeira natureza das coisas como objetos dos sentidos. A Dialética Transcendental de forma alguma favorece o ceticismo, mas sim o método cético, o qual pode apontá-la como exemplo de sua grande utilidade, caso se permita que os argumentos da razão se ponham frente a frente em sua máxima liberdade; estes argumentos, mesmo não se revelando, por fim, como aquilo que se procurava, sempre fornecerão algo útil e que servirá para a correção de nossos juízos. SEÇÃO OITAVA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA PRINCÍPIO REGULATIVO DA RAZÃO PURA COM RESPEITO ÀS IDEIAS COSMOLÓGICAS Já que mediante o princípio cosmológico da totalidade não é dado, num mundo dos sentidos, enquanto uma coisa em si mesma, nenhum máximo da série de condições, mas sim que este pode meramente ser imposto no regresso desta mesma série, o referido princípio da razão pura preserva, não obstante, em seu significado desta forma corrigido, a sua validez; claro que a mantém não como um axioma segundo o qual se pensa a totalidade no objeto enquanto real, mas sim como um problema para o entendimento, logo para o sujeito, a fim de realizar e continuar, de acordo com a completude na ideia, o regresso na série das condições para um condicionado dado. Com efeito, na sensibilidade, isto é, no espaço e no tempo, toda a condição que podemos atingir na exposição de dados fenômenos é, por sua vez, condicionada; isto ocorre porque estes fenômenos não são objetos em si mesmos nos quais, em todos os casos, se pudesse encontrar o absolutamente incondicionado, mas sim meramente representações empíricas que sempre têm que encontrar na intuição aquela condição que os determina segundo o espaço ou o tempo. Logo o princípio da razão é, propriamente, só uma regra que prescreve, na série de condições dos fenômenos dados, um regresso ao qual jamais é permitido se deter num absolutamente incondicionado. Ele não é, pois, um principium da possibilidade da experiência e do conhecimento empírico dos objetos dos sentidos, portanto, nenhum princípio do entendimento, pois toda a experiência está confinada a seus próprios limites (conforme a intuição dada); também não se trata de um princípio constitutivo da razão que nos permite ampliar o conceito de mundo dos sentidos para além de toda a experiência possível, mas sim de um princípio da continuação e ampliação maior possíveis da experiência e segundo o qual nenhum limite empírico deve valer como o absoluto. E, pois, um princípio da razão que, enquanto regra, postula o que devemos fazer no regresso, mas que não antecipa o que no objeto é dado em si, antes de todo o regresso. Devido a isto o intitulo um princípio regulativo da razão, já que, ao contrário, o princípio da totalidade absoluta da série de condições enquanto dado em si mesmo no objeto (nos fenômenos), seria um princípio cosmológico constitutivo. Pretendi indicar a nulidade deste último exatamente mediante esta distinção; também tencionei evitar que se atribua realidade objetiva a uma ideia que serve unicamente como regra, atribuição que de outro modo acontece inevitavelmente (através de uma sub-repção transcendental). A fim de determinar propriamente o sentido desta regra da razão pura temos que observar primeiramente que ela não pode nos dizer o que o objeto é, mas sim como se deve executar o regresso empírico para atingir o conceito completo do objeto. Pois, caso ocorresse a primeira alternativa, esta regra seria um principium constitutivo, coisa que jamais é possível a partir da razão pura. De modo algum, pois, pode se ter o propósito de com isto dizer que a série das condições para um condicionado dado seja em si ou finita ou infinita; com efeito, mediante tal asserção uma simples ideia da totalidade absoluta, a qual é unicamente produzida nesta mesma ideia, pensaria um objeto que não pode ser dado em nenhuma experiência, na medida em que então seria conferida uma realidade objetiva, independente da síntese empírica, a uma série de fenômenos. Somente à síntese regressiva na série de condições, pois, a ideia da razão prescreverá uma regra; segundo esta última, a síntese procederá do condicionado, mediante todas as condições subordinadas uma à outra, ao incondicionado, mesmo que este jamais seja alcançado. Pois o absolutamente incondicionado de modo algum é encontrado na experiência. Com vistas a tal objetivo, deve-se determinar com exatidão, em primeiro lugar, a síntese de uma série na medida em que esta nunca é completa. Com este propósito empregam-se comumente duas expressões que devem distinguir algo quanto a esta questão, sem que se saiba bem indicar a razão desta distinção. Os matemáticos falam simplesmente de um progressus in infinitum. Os investigadores de conceitos (filósofos) pretendem, ao invés disto, manter unicamente a validez da expressão progressus in indefinitum. Sem me deter nem no exame dos escrúpulos que recomendaram tal distinção nem no emprego útil ou infrutífero da mesma, procurarei determinar acuradamente estes conceitos em relação ao meu propósito. Pode-se com direito afirmar de uma linha reta que ela pode ser prolongada ao infinito; neste caso, a distinção de um infinito e de um progresso indeterminavelmente longo (progressus in indefinitum) constituiria uma sutileza vazia. Com efeito, quando se diz a alguém para traçar uma linha é certamente mais correto completar tal ordem com um in indefinitum do que com um in infinitum, visto que o primeiro nada mais significa do que prolongá-la tanto quanto se queira, ao passo que o segundo indicada que jamais se deve parar de prolongá-la (justamente o que aqui não é tencionado); pois, quando se fala unicamente do poder, a primeira expressão é totalmente correta, já que a linha é sempre factível de ser prolongada ao infinito. E a mesma coisa também ocorre em todos os casos em que se trata somente do progressus, isto é, do avanço da condição ao condicionado; na série de fenômenos, este progresso possível marcha ao infinito. A partir de um par de genitores é possível progredir sem fim na linha descendente de geração, bem como também conceber que esta linha realmente progride assim no mundo. Com efeito, neste caso a razão nunca requer uma totalidade absoluta da série porque ela não pressupõe uma tal totalidade como condição e como dada (datum), mas sim unicamente como algo condicionado que só é dável (dabile) e que é adicionado sem fim. Acontece algo totalmente diverso com a seguinte tarefa: até que ponto se estende o regresso que ascende, numa série, do condicionado dado às suas condições; se posso dizer que se trata de um regresso ao infinito ou só de um regresso que se estende de um modo indeterminavelmente longo (in indefinitum), e logo se, a partir dos seres humanos que ora vivem, posso ascender ao infinito na série dos seus ancestrais; ou se pode unicamente ser dito que, por mais que tenhamos regredido, jamais se encontra um fundamento empírico para considerar a série limitada de algum modo, de forma que se justifique e ao mesmo tempo se esteja obrigado a procurar, além disto, os progenitores de cada ancestral, apesar de que certamente nem se justifique sem se esteja obrigado a pressupô-los. Em decorrência disto, afirmo que, se o todo foi dado na intuição empírica, então o regresso na série das suas condições internas se estende ao infinito; se, no entanto, só foi dado um membro da série a partir do qual o regresso deve primeiramente progredir para a totalidade absoluta, então só ocorre um regresso de uma extensão indeterminada (in indefinitum). Desta maneira, tem que se dizer que a divisão de uma matéria (de um corpo) dada em seus limites próprios se estende ao infinito. Com efeito, esta matéria é dada como um todo; consequentemente, é dada na intuição empírica com todas as suas partes possíveis. Ora, já que a condição deste todo é a sua parte e a condição desta parte a parte da parte etc., e já que neste regresso da decomposição jamais é encontrado um membro (indivisível) incondicionado desta série de condições, então não só é impossível descobrir um fundamento empírico para cessar a divisão, mas também os membros restantes da divisão a continuar são eles mesmos empiricamente dados antes desta continuação da divisão, ou seja, a divisão se estende ao infinito. Diante disso, a série de ancestrais de um homem dado não é dada, em sua totalidade absoluta, em nenhuma experiência possível; o regresso, no entanto, vai de cada membro desta geração a um mais elevado, de forma que não pode ser encontrado um limite empírico que apresente um membro como absolutamente incondicionado. Mas já que também os membros que poderiam fornecer a condição para tanto não estão contidos, já antes do regressus, na intuição empírica do todo, este regressus não se estende ao infinito (na divisão do dado), mas sim a uma extensão indeterminável, procurando membros adicionais aos dados, os quais, por sua vez, sempre são só condicionadamente dados. Em nenhum dos dois casos, tanto no regressus in infinitum quanto no in indefinitum, a série de condições é vista como dada infinitamente no objeto. Não se trata de coisas que são em si mesmas, mas sim unicamente de fenômenos que, enquanto condições um do outro, só são dados no próprio regresso. A pergunta não se refere mais, pois, a quão grande esta série de condições é em si mesma, se finita ou infinita, pois ela nada é em si mesma, mas sim a como devemos levar a cabo o regresso empírico e até onde devemos prosseguir com o mesmo. E aqui existe uma diferença considerável no que toca à regra deste progresso. Se o todo for dado empiricamente, então é possível regredir ao infinito na série das suas condições internas; em contrapartida, se aquele não foi dado, devendo, pois, ser primeiramente dado através de um regresso empírico, então só posso dizer que é possível ao infinito progredir a condições ainda mais elevadas da série. No primeiro caso, pude afirmar que sempre existem mais membros, e empiricamente dados, do que atinjo mediante o regresso (da decomposição); no segundo, entretanto, que no regresso posso ainda seguir sempre mais longe, já que nenhum membro é empiricamente dado como absolutamente incondicionado, o que admite, pois, um membro ainda mais elevado como possível e, portanto, a perquirição pelo mesmo como necessária. No primeiro caso era necessário encontrar mais membros da série, mas aqui é sempre necessário perguntar pelos mesmos, já que nenhuma experiência é absolutamente limitada. Com efeito, ou não tendes uma percepção a limitar absolutamente o vosso regresso empírico, e então não deveis considerar o vosso regresso como completo, ou então tendes tal percepção a limitar a vossa série, e neste caso esta percepção não pode ser uma parte da série que percorrestes (porque aquilo que limita tem que ser diverso daquilo que é limitado mediante tal), e em vosso regresso tereis, pois, que prosseguir também a esta condição, e assim por diante. Por intermédio de sua aplicação, estas observações serão postas em sua luz adequada na seção seguinte. SEÇÃO NONA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA DO USO EMPÍRICO DO PRINCÍPIO REGULATIVO DA RAZÃO COM RESPEITO A TODAS AS IDEIAS COSMOLÓGICAS Já que inexiste, como apontamos diversas vezes, um emprego transcendental de conceitos puros tanto do entendimento quanto da razão, já que a totalidade absoluta das séries de condições no mundo dos sentidos repousa exclusivamente sobre um emprego transcendental da razão, a qual exige esta completude incondicionada daquilo que ela pressupõe como uma coisa em si mesma, e já que, no entanto, o mundo dos sentidos não contém esta completude, então jamais se pode falar, no que tange à magnitude absoluta das séries no mundo sensível, em termos da alternativa de se ela é limitada ou ilimitada em si, mas sim unicamente até que pontos devemos regredir no regresso empírico quando nos remontamos da experiência às suas condições, a fim de que nos fixemos, segundo a regra da razão, em nenhuma outra resposta às questões da mesma que não a adequada ao objeto. Resta-nos, pois, exclusivamente a validez do princípio da razão enquanto a de uma regra para a continuação e a magnitude de uma experiência possível, e isto depois que se demonstrou suficientemente a sua invalidade como um princípio constitutivo dos fenômenos em si mesmos. Caso possamos, sem sombra de dúvida, manter aquela conclusão em vista, também o conflito da razão consigo mesma cessará de todo; pois não só mediante esta solução crítica ficará suprimida a aparência que fez com que a razão se desaviesse consigo mesma, mas também se desvendará, em seu lugar, o sentido segundo o qual ela concorda consigo mesma e cuja falsa interpretação foi a fonte exclusiva da disputa. Um princípio que de outro modo é dialético se transforma, então, num princípio doutrinal. De fato, se este princípio pode ser confirmado como determinado, segundo o seu significado subjetivo e em adequação aos objetos da experiência, o emprego maior possível do entendimento na experiência, então isto seria exatamente como se ele sob a forma de um axioma (o que é impossível a partir da razão pura) determinasse a priori os objetos em si mesmos; com efeito, com referência aos objetos da experiência, também isso não poderia exercer um influxo maior sobre a ampliação e a correção de nosso conhecimento do que provando a sua efetividade no emprego empírico mais amplo possível de nosso entendimento. I. Solução da ideia cosmo lógica da totalidade da composição dos fenômenos de um todo cósmico Tanto aqui quanto nas outras questões cosmológicas, o fundamento do princípio regulativo da razão é a seguinte proposição: no regresso empírico nenhuma experiência de um limite absoluto pode ser encontrada, e, portanto, nenhuma experiência de uma condição que seja absolutamente incondicionada empiricamente. A razão disto é que tal experiência teria que conter uma limitação dos fenômenos pelo nada ou pelo vazio, e que o regresso continuado poderia topar com esta limitação por intermédio de uma percepção, o que é impossível. Ora, esta proposição cujo conteúdo consiste no mesmo que dizer que no regresso empírico sempre atinjo unicamente uma condição que deve ela mesma ser encarada, por sua vez, como empiricamente condicionada, contém a regra in terminis de que, por mais que eu tenha com isto avançado na série ascendente, sempre terei que indagar por um membro mais elevado da série, quer este se me torne conhecido através da experiência quer não. Ora, para a solução da primeira tarefa cosmológica nada mais é necessário do que ainda descobrir-se, no regresso à magnitude incondicionada do todo cosmológico (segundo o tempo e o espaço), esta ascensão nunca limitada pode ser chamada de um regresso ao infinito ou só de um regresso indeterminavelmente continuado (in indefinitum). A mera representação geral da série de todos os estados passados do mundo, tanto quanto a das coisas que coexistem no espaço cósmico, propriamente nada mais é do que um regresso empírico possível que penso para mim, embora de um modo geral ainda indeterrninado, e exclusivamente através do qual pode surgir o conceito de tal série de condições para a percepção dada. (Esta série cósmica também não pode portanto ser nem maior nem menor que o regresso empírico possível unicamente sobre o qual repousa o seu conceito. E já que este pode dar um infinito determinado tampouco quanto um determinantemente finito (absolutamente limitado), segue-se disto com clareza que não podemos admitir a magnitude do mundo nem como finita nem como infinita, visto que o regresso (mediante o qual aquela é representada) não permite nenhuma das suas alternativas. Nota do Autor.) Ora, sempre tenho o todo cósmico somente no conceito, mas de modo algum (como um todo) na intuição. Logo não posso inferir a magnitude do regresso a partir da magnitude do todo cósmico e determinar aquela de acordo com esta última; pelo contrário, primeiro tenho que me formar um conceito da magnitude do mundo mediante a magnitude do regresso empírico. Deste último, no entanto, o máximo que posso saber é que de todo membro dado da série de condições sempre tenho que progredir empiricamente para um membro ainda mais elevado (mais distante). Através disto, pois, a magnitude do todo dos fenômenos de modo algum está absolutamente determinada; portanto também não se pode dizer que este regresso segue ao infinito. Este último procedimento anteciparia os membros que o regresso ainda não atingiu e os representaria tão numerosos que seria impossível a qualquer síntese atingi-los; consequentemente, determinar-se-ia (ainda que só negativamente) a magnitude do mundo antes do regresso, o que é impossível. Pois de modo algum o mundo me é dado (segundo a sua totalidade) por meio de uma intuição, portanto, também a sua magnitude não o é antes do regresso. Em decorrência disto, nada podemos dizer da magnitude em si do mundo, também não que nele ocorra um regressus in infinitum; ao contrário, só temos que procurar o conceito de sua magnitude segundo a regra que nele determina o regresso empírico. Esta regra nada mais diz, no entanto, que, por mais que tenhamos progredido na série das condições empíricas, em parte alguma devemos admitir um limite absoluto, mas sim que devemos subordinar todo o fenômeno, enquanto condicionado, a um outro, enquanto a sua condição, e que logo temos que progredir, além disto, em direção a esta última; este é o regressus in indefinitum, o qual pode ser distinguido com suficiente clareza do regresso in infinitum devido ao fato de não determinar qualquer magnitude ao objeto. Em consequência disto, não posso dizer que o mundo é infinito segundo o tempo passado ou segundo o espaço. Com efeito, tal conceito de magnitude, enquanto o de uma infinitude dada, é empiricamente, portanto, também com respeito ao mundo enquanto um objeto dos sentidos, absolutamente impossível. Também não direi que o regresso desde uma percepção dada até tudo aquilo que limita esta última numa série, tanto no espaço como no tempo pretérito, segue ao infinito, pois isto pressuporia a magnitude infinita do mundo; também não afirmarei que ele é finito, pois o limite absoluto é, da mesma forma, empiricamente impossível. Consequentemente, nada poderei dizer do objeto da experiência em sua totalidade (o mundo dos sentidos); ao contrário, só poderei afirmar algo da regra segundo a qual a experiência, em adequação ao seu objeto, deve ser levada a cabo e continuada. Assim, a primeira resposta à pergunta cosmológica que se refere à magnitude do mundo, é negativa: o mundo não possui nem um primeiro início segundo o tempo nem um limite extremo segundo o espaço. Com efeito, no caso oposto o mundo seria limitado, de um lado, pelo tempo vazio e, de outro, pelo espaço vazio. Ora, já que, enquanto fenômeno, o mundo não pode possuir em si mesmo nenhum destes limites, pois um fenômeno não é uma coisa em si mesma, então deveria ser possível uma percepção da limitação por parte de um tempo ou de um espaço absolutamente vazios, percepção mediante a qual estes limites do mundo seriam dados numa experiência possível. Mas tal experiência, enquanto completamente destituída de conteúdo, é impossível. Logo um limite absoluto do mundo é empiricamente e, portanto, também absolutamente impossível. (Observar-se-á que aqui a prova foi apresentada de um modo completamente diverso da prova dogmática arrolada na antítese da primeira antinomia. Lá permitimos que o mundo dos sentidos valesse, segundo o modo comum e dogmático de representação, como uma coisa dada em si mesma, antes de todo o regresso e segundo a sua totalidade; também lhe negamos, de um modo geral, qualquer localização determinada no espaço e no tempo, caso não ocupasse inteiramente ambos. Em virtude disto, também a conclusão foi diversa que aqui, a saber, inferiu-se a infinitude real do mundo sensível. Nota do Autor.) Com efeito, disto segue-se simultaneamente a resposta afirmativa: o regresso na série dos fenômenos cósmicos, enquanto uma determinação da magnitude do mundo, se estende in indefinitum. Isto equivale a dizer que o mundo dos sentidos não possui uma magnitude absoluta, mas sim que o regresso empírico (exclusivamente mediante o qual ela pode ser dada do lado de suas condições) tem a sua regra, qual seja, a de sempre progredir de cada um dos membros da série, enquanto condicionado, para um ainda mais remoto (seja através da própria experiência, ou do fio condutor da história, ou da cadeia dos efeitos e de suas causas) e de em parte alguma se furtar à ampliação do emprego empírico possível do entendimento, o que também é, afinal, a ocupação única e própria da razão com referência aos seus princípios. Esta regra não prescreve um regresso empírico determinado que procedesse sem cessar num certo tipo de fenômenos, por exemplo, que a partir de um homem vivo sempre tenha que se ascender numa série de antepassados sem esperar encontrar um primeiro par, ou que na série dos corpos cósmicos se proceda sem admitir um sol extremo. Ao contrário, a única coisa que se requer é o progresso de fenômenos a fenômenos: pois mesmo que estes não forneçam uma percepção real (caso eles sejam para a nossa consciência muito fracos quanto ao grau para se tornarem experiência), eles ainda pertencem, não obstante isto, à experiência possível. Todo o início está no tempo e todo o limite do extenso se situa no espaço. O espaço e o tempo, porém, só são no mundo dos sentidos. Portanto, unicamente fenômenos no mundo são de um modo condicionado; o mundo mesmo, no entanto, não é nem condicionado nem limitado de um modo incondicionado. Exatamente devido a isto e já que tanto o mundo quanto a própria série das condições para um condicionado dado, enquanto série cósmica, jamais podem ser dados completamente, o conceito da magnitude do mundo só é dado mediante o regresso e não numa intuição coletiva anterior ao mesmo. Aquele regresso, no entanto, sempre consiste unicamente no determinar a magnitude, não dando, pois, qualquer conceito determinado. Consequentemente, também não dá um conceito de uma magnitude que seria infinita conforme certa medida, bem como não segue, pois, ao infinito (como que dado), mas sim a uma extensão indeterminada, a fim de dar uma magnitude (da experiência) que se torna primeiramente real mediante este regresso. II. Solução da ideia cosmológica de totalidade da divisão de um todo dado na intuição Quando divido um todo dado na intuição, procedo de um condicionado às condições de sua possibilidade. A divisão das partes (subdivisio ou decompositio) é um regresso na série destas condições. A totalidade absoluta desta série só seria dada caso o regresso pudesse atingir partes simples. Mas se todas as partes numa decomposição que progride continuamente sempre são, por sua vez, divisíveis, então a divisão, isto é, o regresso, procede in infinitum do condicionado às suas condições; isto ocorre porque as condições (as partes) estão contidas no próprio condicionado, e já que este é integralmente dado numa intuição encerrada dentro de seus limites próprios, todas aquelas partes também são dadas juntamente com o condicionado. O regresso não pode, pois, ser denominado meramente um regresso in indefinitum, como unicamente a ideia cosmológica anterior o permitiu, e na qual eu deveria progredir do condicionado às suas condições, as quais, enquanto exteriores ao mesmo, não foram dadas nem mediante nem ao mesmo tempo que o condicionado, mas sim primeiramente adicionadas no regresso empírico. Não obstante isto, de tal todo divisível até o infinito de modo algum é permitido dizer que ele consiste de infinitas partes. Com efeito, embora todas as partes estejam contidas na intuição do todo, ainda assim não está nela contida toda a divisão, a qual consiste unicamente na decomposição progressiva ou no próprio regresso que primeiramente torna real a série. Ora, por ser infinito este regresso, todos os membros (partes) que este atinge estão contidos como agregados no todo dado; tal não ocorre, no entanto, com toda a série da divisão, a qual é sucessivamente infinita e jamais todo, não podendo, consequentemente, fazer as vezes nem de uma quantidade infinita nem de uma reunião da mesma num todo. De início esta advertência geral pode muito facilmente ser aplicada ao espaço. Todo o espaço intuído em seus limites é um todo tal que, em toda a decomposição, as suas partes sempre são, por sua vez, espaços; em decorrência disto, todo o espaço limitado é divisível ao infinito. Disto também se segue, de um modo totalmente natural, a segunda aplicação: a um fenômeno externo (corpo) encerrado em seus limites. A divisibilidade daquele funda-se sobre a divisibilidade do espaço, o qual constitui a possibilidade do corpo enquanto um todo extenso. Este é, pois, divisível ao infinito, sem ainda consistir, devido a isto, em infinitamente muitas partes. Certamente parece que, já que um corpo tem que ser representado como uma substância no espaço, este mesmo corpo, no que se refere à lei da divisibilidade do espaço, diferirá do mesmo. Com efeito, em todos os casos pode-se muito bem admitir que a decomposição jamais possa remover toda a composição, na medida em que então até todo o espaço, que de outro modo nada tem de subsistente, cessaria de ser (o que é impossível). Por outro lado, que nada devesse restar caso toda a composição da matéria fosse suprimida em pensamento, parece não ser compatível com o conceito de uma substância que deveria propriamente ser o sujeito de toda a composição e teria que permanecer em seus elementos, mesmo que fosse suprimida a conexão dos mesmos no espaço, conexão mediante a qual perfazem um corpo. É claro que com aquilo que se chama de substância no fenômeno não ocorre o mesmo que bem se pensaria, mediante conceitos puros do entendimento, de uma coisa em si mesma. Aquela primeira não é um sujeito absoluto, mas sim uma imagem permanente da sensibilidade e nada mais que uma intuição na qual, em toda parte, nada de incondicionado é encontrado. Ora, mesmo que esta regra do progresso ao infinito na subdivisão de um fenômeno, enquanto um mero preenchimento do espaço, ocorra sem sombra de dúvidas, não pode ela valer caso também pretendamos estendê-la à quantidade de partes já distinguidas de certo modo no todo dado a ponto de perfazerem um quantum discretum. A suposição de que em qualquer todo articulado (organizado) cada parte é, por sua vez, articulada, e que, deste modo, mediante a decomposição das partes ao infinito, são encontrados sempre novos arranjos (Kunsteille) numa palavra, a suposição de que o todo é articulado ao infinito de modo algum é pensável, mesmo que fosse possível articular as partes da matéria em sua decomposição ao infinito. Com efeito, a infinitude da divisão de um fenômeno dado no espaço se funda exclusivamente no fato de que, mediante esta infinitude, só é dada a divisibilidade, ou seja, uma quantidade de partes absolutamente indeterminada em si; estas próprias partes, no entanto, somente são dadas e determinadas através da subdivisão. Em suma, o todo não está já dividido em si mesmo. Em decorrência disto, a divisão pode determinar no todo uma quantidade de partes que dependerá do quanto se pretende progredir no regresso da divisão. Por outro lado, no caso de um corpo orgânico articulado ao infinito, o todo já é representado, exatamente através deste conceito, como dividido, podendo uma quantidade de partes determinada em si mesma, se bem que infinita, ser nele encontrada antes de todo o regresso da divisão; com isto contradizemos a nós mesmos, enquanto encaramos esta involução infinita tanto como uma série jamais a completar (infinita) quanto ainda como uma série completa numa reunião. A divisão infinita designa unicamente o fenômeno como um quantum continuum, sendo inseparável do preenchimento do espaço justamente porque no mesmo se encontra o fundamento da divisibilidade infinita. Mas tão logo algo seja admitido como um quantum discretum, a quantidade de unidade em tal está determinada e também é, consequentemente, sempre igual a um número. Somente a experiência pode descobrir, pois, até onde a organização pode ir num corpo articulado; mesmo que a experiência não venha a atingir com certeza uma parte inorgânica, algumas tais têm que estar situadas pelo menos na experiência possível. Até que ponto, no entanto, se estende a divisão transcendental de um fenômeno em geral, não é uma questão da experiência; trata-se de um principium da razão, na decomposição do extenso, jamais considerar o regresso empírico, de acordo com a natureza deste fenômeno, como absolutamente completo. Nota final à solução das ideias matemático-transcendentais e advertência preliminar com vistas à solução das ideias dinâmico-transcendentais Ao representarmos numa tabela a antinomia da razão pura através de todas as ideias transcendentais, momento em que indicamos tanto a razão deste conflito quanto o único meio capaz de removê-lo, o qual consistiu em declarar falsas ambas as afirmações contraditórias, representamos as condições, por toda a parte, como pertencentes ao seu condicionamento segundo relações do espaço e do tempo; tal é o pressuposto usual do entendimento humano comum e sobre o qual também repousava totalmente aquele conflito. Levando isto em conta, também todas as representações dialéticas da totalidade, na série das condições para um condicionado dado, eram de ponta a ponta do mesmo gênero. Tratava-se sempre de uma série na qual a condição e o condicionado, enquanto membros da mesma, se conectavam e eram, devido a isto, homogêneos; pois numa tal série o regresso jamais é pensado completamente, ou então, caso isto devesse ocorrer, um membro condicionado em si teria que ser falsamente admitido como um primeiro, e, portanto, como incondicionado. Por toda a parte, pois, não o objeto, isto é, o condicionado, mas sim a série de condições para o mesmo seria ponderada meramente segundo a sua magnitude; e então a dificuldade que não poderia ser suprimida por qualquer acordo, mas sim exclusivamente pelo seccionamento cabal do nó, consistia em que a razão tornava a série ou muito longa ou muito curta para o entendimento, de forma que este nunca podia igualar-se à ideia adequada. Entretanto, não reparamos aqui numa diferença essencial reinante entre aqueles objetos, isto é, conceitos do entendimento, que a razão aspira elevar a ideias: a saber que, segundo a nossa tabela supra das categorias, duas das mesmas significam uma síntese matemática dos fenômenos, ao passo que as duas restantes significam uma síntese dinâmica dos fenômenos. Até aqui isto também podia muito bem ocorrer, enquanto, da mesma forma que na representação universal de todas as ideias transcendentais sempre permanecemos tão somente adstritos a condições no fenômeno, também nas duas ideias matemático-transcendentais não tínhamos qualquer outro objeto do que o no fenômeno. Agora, no entanto, que passamos a considerar os conceitos dinâmicos do entendimento, na medida em que devem ajustar-se à ideia da razão, aquela distinção torna-se importante e nos descortina uma perspectiva totalmente nova com referência ao litígio em que a razão está emaranhada. Este último foi anteriormente rejeitado por estar assentado sobre pressupostos que eram falsos de ambos os lados; mas desde que a antinomia dinâmica talvez ocorra um pressuposto que possa subsistir compativelmente com a pretensão da razão, e desde que o juiz complemente à escassez de razão dos argumentos que ambas as partes aduziram falsamente como fundando o próprio ponto de vista, a disputa pode ser assim levada a um compromisso que satisfaça ambos os contendores, coisa impossível de fazer-se com respeito ao conflito na antinomia matemática. As séries das condições são certamente todas homogêneas, na medida em que se vê, simplesmente quanto à sua extensão, se elas são adequadas à ideia ou se esta é muito grande ou muito pequena para aquelas. Mas o conceito do entendimento que subjaz a estas ideias contém ou simplesmente uma síntese do homogêneo (o qual é pressuposto em qualquer magnitude, tanto na composição quanto na divisão da mesma) ou também do heterogêneo, o qual pelo menos ser admitido na síntese dinâmica, tanto na conjunção causal quanto na conjunção do necessário com o contingente. Disto provém o fato de que, na conexão matemática das séries de fenômenos, nenhuma outra condição que não uma sensível, isto é, uma que é ela mesma parte da série, pode ser introduzida. Em contrapartida, a série dinâmica de condições sensíveis ainda assim admite uma condição heterogênea que não é parte da série, mas que, enquanto puramente inteligível, está fora da mesma; mediante tal a razão se satisfaz e o incondicionado é anteposto aos fenômenos, sem com isso confundir a série dos últimos, enquanto sempre condicionados, nem a romper e assim violar os princípios do entendimento. Mediante o fato de que as ideias dinâmicas admitem uma condição dos fenômenos que esteja fora da série dos mesmos, isto é, uma condição que não é ela mesma um fenômeno, ocorre algo que é de todo diverso do resultado da antinomia. Esta última, a saber, nos obrigou a denunciar a falsidade de ambas as afirmações dialéticas opostas. Por outro lado, o universalmente condicionado das séries dinâmicas, o qual é inseparável das séries enquanto fenômenos, conecta-se à condição empiricamente incondicionada, mas também não sensível, de satisfazer ao entendimento de um lado e à razão de outro. (Com efeito, entre fenômenos o entendimento não admite nenhuma condição que seja empiricamente incondicionada. Mas se fosse possível conceber uma condição inteligível, portanto que não pertencesse como um membro à série dos fenômenos, para um condicionado (no fenômeno) sem com isto romper no mínimo a série de condições empíricas, então se poderia admitir tal condição como empiricamente incondicionada, de forma que com isto de modo algum se interrompesse a continuidade do regresso empírico. Nota do Autor.) Enquanto ficam suprimidos os argumentos dialéticos que procuravam, de um modo ou de outro, uma totalidade incondicionada em meros fenômenos, as proposições da razão podem ao contrário, no significado desta maneira corrigido, ser ambas verdadeiras. Isto jamais poderia ocorrer com as ideias cosmológicas que só se referem a uma unidade matematicamente incondicionada, pois nestas ideias não pode ser encontrada uma única condição da série dos fenômenos que também não seja, ela mesma, um fenômeno e, como tal, um membro da série. III. Solução das ideias cosmo lógicas da totalidade da derivação dos eventos do mundo a partir de suas causas Com respeito ao que acontece, só se pode conceber dois tipos de causalidade: ou segundo a natureza ou a partir da liberdade. O primeiro tipo consiste na conexão, no mundo sensível, de um estado com um estado anterior do qual aquele decorre segundo uma regra. Ora, já que a causalidade dos fenômenos repousa sobre condições temporais, e já que o estado anterior, caso ele sempre tivesse existido, também não teria produzido um efeito que primeiramente surge no tempo, segue-se que a causalidade da causa daquilo que acontece ou surge também surgiu, necessitando ela mesma, segundo o princípio do entendimento, por sua vez, de uma causa. Em contrapartida, entendo por liberdade, no sentido cosmológico, a faculdade de iniciar por si mesmo um estado, cuja causalidade, pois, não está por sua vez, segundo a lei da natureza, sob outra causa que a determinou quanto ao tempo. Neste significado a liberdade é uma ideia transcendental pura, que, em primeiro lugar, não contém nada emprestado da experiência e cujo objeto, em segundo lugar, também não pode ser dado determinadamente em nenhuma experiência; pois é uma lei geral da própria possibilidade de toda a experiência que tudo o que ocorre tem que possuir uma causa, portanto também a causalidade da causa, ela mesma ocorrida ou surgida necessita, por sua vez, de uma causa. Através disto, com efeito, todo o campo da experiência, por mais que se estenda, é transformado num conjunto de mera natureza. Mas já que desta maneira não é possível obter uma totalidade absoluta das condições na relação causal, a razão cria para si mesma a ideia de uma espontaneidade que pode, por si mesma, iniciar uma ação sem que seja necessário antepor-lhe outra causa que, por sua vez, a determine para a ação segundo a lei da conexão causal. É sobremaneira digno de nota que o conceito prático de liberdade se funde sobre esta ideia transcendental da mesma e que esta última constitua naquela o momento próprio das dificuldades que desde sempre envolveram a questão sobre a sua possibilidade. A liberdade no sentido prático é a independência do arbítrio da coerção por impulsos da sensibilidade. Com efeito, um arbítrio é sensível na medida em que é afetado patologicamente (por motivações da sensibilidade); denominase animal (arbitrium brutum) quando ele pode ser patologicamente necessitado. O arbítrio humano é na verdade um arbitrium sensitivum mas não brutum e sim liberum, pois ao homem é inerente uma faculdade de determinar-se por si mesmo, independentemente da coerção por impulsos sensíveis. Vê-se facilmente que, caso toda a causalidade no mundo dos sentidos fosse meramente natureza, cada evento seria determinado segundo leis necessárias, por outro no tempo; consequentemente, já que os fenômenos, na medida em que determinam o arbítrio, teriam que tornar necessária toda a ação do arbítrio com o seu resultado natural, a supressão da liberdade transcendental aniquilaria, concomitantemente, toda a liberdade prática. Com efeito, esta última pressupõe que, mesmo que não tenha ocorrido algo, deveria ocorrer, logo que a sua causa no fenômeno não era tão determinante a ponto de que não houvesse em nosso arbítrio uma causalidade capaz de produzir, independentemente daquelas causas naturais e mesmo contra o seu poder e influência, algo determinado na ordem temporal de acordo com as leis empíricas, podendo ela, portanto, iniciar inteiramente de si mesma uma série de eventos. Aqui ocorre, pois, a mesma coisa que costuma em geral acontecer no conflito de uma razão que se aventura para além dos limites de uma experiência possível: a tarefa não é propriamente fisiológica, mas transcendental. Em decorrência disto, mesmo que a questão da possibilidade da liberdade na verdade diz respeito à Psicologia, todavia, já que repousa sobre argumentos dialéticos da simples razão pura, apenas da filosofia transcendental tem que se ocupar dela e de sua solução. Mas antes de pôr esta última em condições de fornecer uma resposta satisfatória para este problema, coisa que ela não pode recusar, tenho que procurar antes determinar mais de perto, mediante uma observação, o seu procedimento nesta tarefa. Se fenômenos fossem coisas em si mesmas, e, portanto, espaço e tempo formas da existência das coisas em si mesmas, então as condições e o condicionado sempre pertenceriam, como membros, a uma e mesma série; e a partir disto emergiria, também no caso presente, a antinomia que é comum a todas as ideias transcendentais, qual seja, a de que esta série teria inevitavelmente que resultar ou muito grande ou muito pequena para o entendimento. Entretanto, os conceitos dinâmicos da razão com os quais lidamos nesta e na seguinte seção possuem a seguinte peculiaridade: já que eles não se ocupam de um objeto considerado como magnitude, mas unicamente de sua existência, também é possível abstrair da magnitude da série de condições, pois eles levam tão somente em consideração a relação dinâmica da condição com o condicionado. E fazem isto de um modo tal que na questão referente à natureza e à liberdade já nos deparamos com a dificuldade, se a liberdade em geral somente é possível de e se, caso ela o seja, ela possa coexistir com a universalidade da lei natural da causalidade. Portanto também se coloca o problema de se a afirmação de que todo o efeito no mundo deve se originar ou a partir da natureza ou a partir da liberdade é uma proposição verdadeiramente disjuntiva, ou antes se ambas as coisas podem ocorrer, numa relação diversa, concomitantemente num e no mesmo evento. A correção daquele enunciado que reza que todos os eventos do mundo dos sentidos se interconectam universalmente segundo leis imutáveis da natureza já estabelecida, como um princípio, na analítica transcendental e não sofre qualquer exceção. Trata-se, pois, unicamente da questão de se, no que se refere exatamente ao mesmo efeito e não obstante estar este determinado segundo a natureza, também é possível ocorrer a liberdade, ou se esta está completamente excluída por aquela regra inviolável. E aqui aquela comum porém enganadora pressuposição da realidade absoluta dos fenômenos imediatamente mostra o seu influxo prejudicial no sentido de confundir a razão. Com efeito, se os fenômenos são coisas em si mesmas, então não é possível salvar a liberdade. Neste caso, a natureza é a causa completa e suficientemente determinante em si de todo o evento; a condição deste último está sempre contida somente na série dos fenômenos que, juntamente com o seu efeito, são necessários de acordo com a lei natural. Ao contrário, se os fenômenos por nada mais são tomados do que por aquilo que de fato são, ou seja por meras representações interconectadas segundo leis empíricas e não por coisas em si, então eles mesmos têm que ter fundamentos que não são fenômenos. No que tange à sua causalidade, no entanto, tal causa inteligível não é determinada por fenômenos, apesar de que os seus efeitos se manifestem e possam, deste modo, ser determinados por outros fenômenos. Ela está, pois, juntamente com a sua causalidade, fora da série, ao passo que os seus efeitos são encontrados na série das condições empíricas. Em consequência, o efeito pode ser encarado, ao mesmo tempo, como livre no que se refere à sua causa inteligível e como um resultado de fenômenos segundo a necessidade da natureza no que se refere aos fenômenos; trata-se de uma distinção que, quando exposta deste modo geral e totalmente abstrato, tem que parecer extremamente sutil e obscura, mas que se aclarará em sua aplicação. Aqui tão somente pretendi fazer a seguinte observação: já que, num contexto da natureza, a interconexão universal de todos os fenômenos é uma lei inflexível, esta última teria que deixar por terra necessariamente toda a liberdade caso pretendêssemos obstinadamente aderir à realidade dos fenômenos. Devido a isto, também aqueles que nisto seguem a opinião comum jamais conseguiram chegar ao ponto de conciliarem a natureza com a liberdade. Possibilidade da causalidade mediante liberdade, em união com a lei universal da necessidade natural Denomino inteligível aquilo que num objeto dos sentidos não é propriamente fenômeno. Consequentemente, se aquilo que no mundo dos sentidos tem que ser encarado como fenômeno também possui, em si mesmo, um poder que não é objeto da intuição sensível, mas que mediante esta, não obstante, pode ser a causa de fenômenos, então se pode considerar a causalidade deste ente sob dois aspectos: como inteligível quanto à sua ação, como a de uma coisa em si mesma, e como sensível quanto aos seus efeitos, como os de um fenômeno no mundo dos sentidos. Por conseguinte, formar-nos-íamos tanto um conceito empírico quanto um conceito intelectual da causalidade da faculdade de tal sujeito, sendo que ocorrem juntos num e mesmo efeito. Tal maneira dupla de pensar a faculdade de um objeto dos sentidos não contradiz a qualquer dos conceitos que temos que nos formar com respeito a fenômenos e a uma experiência possível. Com efeito, já que estes, pelo fato de em si não serem coisas, deve subjazer um objeto transcendental que os determine como meras representações, nada impede que a este objeto transcendental, afora a propriedade mediante a qual ele aparece, também atribuamos uma causalidade que não é um fenômeno, não obstante o seu efeito ainda assim se encontrar no fenômeno. No entanto, cada uma das causas eficientes tem que possuir um caráter, isto é, uma lei de sua causalidade, sem a qual de modo algum ela seria uma causa. E neste caso teríamos, num sujeito do mundo dos sentidos primeiramente um caráter empírico mediante o qual as suas ações, enquanto fenômenos, se interconectariam completamente com outros fenômenos segundo leis constantes da natureza e poderiam ser derivadas destes, enquanto eles são as suas condições, constituindo, pois, em conjunção com os mesmos, membros de uma única série da ordem natural. Em segundo lugar, ter-se-ia que lhe conceder ainda um caráter inteligível mediante o qual aquele sujeito é a causa daquelas ações enquanto fenômenos, ele mesmo, no entanto, não se subordinando a quaisquer condições da sensibilidade e não sendo, pois, um fenômeno. Ao primeiro também se poderia chamar de caráter de tal coisa no fenômeno, e ao segundo de caráter da coisa em si mesma. Este sujeito agente não estaria, segundo o seu caráter inteligível, sob condições temporais, pois o tempo é tão somente a condição dos fenômenos, mas não das coisas em si mesmas. Nele nem surgiria nem cessaria qualquer ação; em consequência, ele também não estaria sujeito à lei de toda a determinação temporal e de todo o mutável: a de que tudo o que ocorre encontra as suas causas nos fenômenos (do estado precedente). Numa palavra, na medida em que é intelectual, a causalidade deste sujeito agente de modo algum se situaria na série das condições empíricas que tornam necessário o evento no mundo dos sentidos. É verdade que este caráter inteligível jamais poderia ser conhecido imediatamente, pois nada podemos perceber a não ser enquanto aparece; entretanto, ele teria que ser pensado conformemente ao caráter empírico, da mesma forma como, de um modo geral, temos que idear um objeto transcendental como o fundamento dos fenômenos, mesmo que nada saibamos sobre o que ele é em si mesmo. Conforme o seu caráter empírico, pois, enquanto fenômeno este sujeito estaria submetido à ligação causal segundo todas as leis da determinação, e nesta medida nada mais seria do que uma parte do mundo dos sentidos cujos efeitos efluiriam ininterruptamente da natureza tanto quanto qualquer outro fenômeno. Assim como fenômenos externos influiriam sobre ele e como seu caráter empírico, isto é, a lei de sua causalidade, seria conhecido por experiência, todas as suas ações teriam que ser explicáveis segundo leis naturais e todos os requisitos para uma determinação perfeita e necessária das mesmas teriam que ser encontrados numa experiência possível. Entretanto, segundo o seu caráter inteligível (embora na verdade não possamos possuir a propósito senão o seu conceito universal) o mesmo sujeito teria que ser absorvido tanto de todo o influxo da sensibilidade quanto de toda a determinação por fenômenos; e já que, na medida em que é noumenon, nele nada ocorre, não é encontrada qualquer mudança, que reclama uma determinação dinâmica de tempo, portanto nenhuma conexão com fenômenos enquanto causas, então este ente atuante seria independente e livre, em suas ações, de toda a necessidade natural, como a que é encontrada unicamente no mundo dos sentidos. Dele dir-se-ia assaz acertadamente que inicia por si mesmo os seus efeitos no mundo dos sentidos, sem que a ação comece nele mesmo. E isto seria válido sem que os efeitos no mundo dos sentidos devam por isso iniciar por si mesmos, porque neles eles sempre estão predeterminados por condições empíricas no tempo pretérito, ainda que só por intermédio do caráter empírico (que só é o fenômeno do inteligível), e são possíveis unicamente como uma continuação da série de causas naturais. Assim, pois, liberdade e natureza, cada qual em seu significado pleno, seriam encontradas, ao mesmo tempo e sem qualquer conflito, exatamente nas mesmas ações, conformemente as comparamos com sua causa inteligível ou sensível. Elucidação da ideia cosmológica de uma liberdade em ligação com a necessidade universal da natureza Considerei de bom alvitre esboçar primeiro o perfil da solução de nosso problema transcendental, a fim de que melhor se abranja, mediante tal, a caminhada da razão na solução do mesmo. Levando em consideração cada um em particular, pretendemos agora discutir os momentos de sua decisão, coisa que propriamente nos interessa. A lei natural, de que tudo o que acontece tem uma causa; de que a causalidade desta causa, isto é a ação - visto que ela precede no tempo e com respeito a um efeito que aí surgiu ela mesma não pode ter sido sempre, mas tem que ter ocorrido - também tem a sua causa entre os fenômenos, pela qual é determinada; e de que pois todos os eventos são determinados empiricamente em uma ordem natural; esta lei, pela qual fenômenos pela primeira vez podem constituir uma natureza e fornecer objetos a uma experiência, é uma lei do entendimento, da qual sob nenhum pretexto é permitido excetuar qualquer fenômeno, porque do contrário ele seria posto de toda experiência possível, através do que porém seria distinguido de todos os objetos de experiência possível e convertido num simples ente de pensamento e numa quimera. Apesar de que aqui pareça haver simplesmente uma cadeia de causas que de modo algum admite uma totalidade absoluta no regresso às suas condições, de maneira alguma somos detidos por esta incerteza, com efeito, ela já foi suprimida na avaliação geral da antinomia da razão, na qual esta última cai quando, na série dos fenômenos, procede em direção ao incondicionado. Se pretendermos ceder à ilusão do realismo transcendental, então não restam nem natureza nem liberdade. Trata-se aqui unicamente da seguinte questão: caso se reconheça uma pura necessidade natural em toda a série de todos os eventos, é possível encarar exatamente esta série como um mero efeito natural sob um aspecto e como efeito da liberdade sob outro aspecto, ou se dá uma contradição direta entre estes dois tipos de causalidade? Dentre as causas no fenômeno é certo que nada pode existir que pudesse iniciar uma série absolutamente por si mesmo. Toda ação enquanto fenômeno, na medida em que produz um evento também é ela mesma em evento ou acontecimento que pressupõe outro estado no qual se encontra a sua causa, desta forma tudo o que ocorre é somente uma continuação da série, sendo impossível, nesta última, qualquer início que ocorra por si mesmo. Logo todas as ações das causas naturais também são, por sua vez, efeitos na sucessão temporal, os quais da mesma forma pressupõem suas causas na série temporal. Uma ação originária, mediante a qual ocorra algo que antes não existia, não pode ser esperada da conexão causal dos fenômenos. Todavia, é também necessário que, caso os efeitos sejam fenômenos, que a causalidade de sua causa, que também é fenômeno, tenha que ser exclusivamente empírica? Mesmo que para todo o efeito no fenômeno se exija uma conexão com a sua causa segundo as leis da causalidade empírica, não é antes possível que ainda assim esta mesma causalidade empírica, sem interromper no mínimo a sua interconexão com as causas naturais, possa ser um efeito de uma causalidade não empírica, mas sim inteligível, isto é, de uma ação originária de uma causa com respeito aos fenômenos, a qual, portanto, enquanto não é fenômeno, mas sim inteligível quanto a este poder, embora de resto, como um membro da cadeia natural, tenha de ser incluída inteiramente no mundo dos sentidos? Necessitamos do princípio da causalidade dos fenômenos entre si a fim de podermos procurar, bem como indicar, condições naturais, isto é, causas no fenômeno, de eventos naturais. Caso isto seja concedido e não debilitado por qualquer exceção, então o entendimento, que em seu emprego empírico não só nada mais vê do que a natureza em todos os acontecimentos mas também está autorizado para tal, vê satisfeitas todas as suas exigências, e as explicações físicas progridem sem obstáculo em sua senda. Ora, isto não o prejudica no mínimo, posto que de resto também seja tão só fictivamente elaborada a suposição de que dentre as causas naturais também existem algumas que possuem um poder que é unicamente inteligível enquanto a determinação do mesmo para a ação jamais repousa sobre condições empíricas, mas sim sobre simples fundamentos do entendimento de modo tal que a ação desta causa no fenômeno seja conforme com todas as leis da causalidade empírica. Com efeito, desta forma o sujeito agente, enquanto causa phaenomenon, estaria encadeado com a natureza numa inseparável dependência de todas as suas ações, e somente o phaenomenon deste sujeito (com toda a sua causalidade no fenômeno) conteria certas condições que teriam que ser encaradas como puramente inteligíveis, caso pretendêssemos nos alçar do objeto empírico ao transcendental. Pois se seguimos a regra natural tão somente naquilo que pode, dentre os fenômenos, ser a causa, então podemos nos despreocupar quanto a que tipo de fundamento destes fenômenos e de sua interconexão é pensado no sujeito transcendental, o qual nos é empiricamente desconhecido. Este fundamento inteligível de modo algum se refere às questões empíricas, mas concerne unicamente ao pensamento no entendimento puro; apesar de que os efeitos deste pensamento e desta ação do entendimento puro sejam encontrados nos fenômenos, estes últimos têm que não menos ser completamente explicáveis, segundo leis naturais, a partir de sua causa no fenômeno. Isto deve ser feito enquanto se toma o seu caráter estritamente empírico como o fundamento supremo da explicação, deixando totalmente de lado, como desconhecido, o caráter inteligível que é a causa transcendental do caráter empírico, a não ser na medida em que aquele é indicado unicamente por este enquanto constitui o seu sinal sensível. Seja-nos permitido aplicar isto à experiência. O ser humano é um dos fenômenos do mundo dos sentidos, e nesta medida também uma das causas naturais cuja causalidade tem que estar sob leis empíricas. Como todas as outras coisas naturais, ele, enquanto tal, também tem, consequentemente, que possuir um caráter empírico. Notamos este último através das forças e do poder que ele externa em seus efeitos. Na natureza inanimada ou meramente animal não encontramos qualquer fundamento para pensar uma faculdade como condicionada de outro modo que não o meramente sensível. Exclusivamente o homem, que de outra maneira conhece toda a natureza somente através dos sentidos, se conhece a si mesmo também mediante uma pura apercepção, e isto em ações e determinações internas que ele de modo algum pode contar como impressões dos sentidos; para si mesmo, ele certamente é, de uma parte, fenômeno, mas de outra, ou seja, no que se refere a certas faculdades, um objeto puramente inteligível porque a sua ação de modo algum pode ser computada na receptividade da sensibilidade. Denominamos estas faculdades de entendimento e razão. Em particular a última se distingue, de uma forma bem própria e especial, de todas as forças empiricamente condicionadas, já que ela pondera os seus objetos somente segundo ideias, determinando, a partir disto, o entendimento a então fazer uso empírico de seus conceitos também puros. Dos imperativos que impomos, em tudo o que tange às questões práticas, como regras às forças que as executam, segue-se claramente ou que esta razão possui uma causalidade ou que, pelo menos, a representamos para nós como possuindo tal causalidade. O dever expressa um tipo de necessidade e de conexão com fundamentos que não ocorre alhures com toda a natureza. Desta o entendimento só pode conhecer o que está aí, ou o que foi, ou o que será. É impossível que, na natureza, algo deva ser de outro modo do que de fato é em todas estas relações temporais; o dever não tem qualquer significado quando se tem diante dos olhos unicamente o curso da natureza. O que deve acontecer na natureza, e tampouco que propriedades deve possuir um círculo, são perguntas que de modo algum podemos fazer; só é lícito, ao contrário, indagar sobre o que ocorre na natureza ou que propriedades o círculo possui. Ora, este dever exprime uma ação possível cujo fundamento nada mais é do que um simples conceito, ao passo que o fundamento de uma simples ação natural tem que ser sempre um fenômeno. E claro que a ação tem que ser possível sob condições naturais, caso o dever esteja orientado para elas; mas estas condições naturais não concernem à determinação do próprio arbítrio e sim unicamente ao efeito e à consequência do mesmo fenômeno. Por maior que seja o número dos fundamentos naturais e dos impulsos que me incitem ao querer, não podem eles produzir o dever, mas sim unicamente um querer que, longe de ser necessário, é sempre condicionado; o dever expresso pela razão contrapõe a este querer uma medida e uma meta, mais ainda, uma proibição e uma autoridade. Que se trate de um objeto da mera sensibilidade (o agradável) ou também da razão pura (o bem), a razão nem cede àquele fundamento que é empiricamente dado, nem segue a ordem das coisas tal qual estas se apresentam no fenômeno; pelo contrário, com toda a espontaneidade ela se constrói uma ordem própria segundo ideias, à qual adapta as condições empíricas e segundo a qual declara necessárias até as ações que ainda não ocorreram e que talvez nem venham a ocorrer. Apesar disto, a razão pressupõe poder ter uma causalidade com relação a todas estas ações; com efeito, de nenhum outro modo nenhum efeito na experiência poderia ser esperado de suas ideias. Agora permita-se que aqui nos detenhamos e admitamos pelo menos como possível que a razão realmente possua uma causalidade com referência aos fenômenos. Neste caso, por mais que também seja razão, ela ainda assim tem que exibir um caráter empírico, pois toda a causa pressupõe uma regra de acordo com a qual certos fenômenos se seguem como efeitos; além disto, toda regra exige uma uniformidade de efeitos que funda o conceito de causa (enquanto uma faculdade). Na medida em que tem que ser aclarado a partir de meros fenômenos, este conceito de causa pode ser chamado de caráter empírico; este caráter é permanente enquanto os seus efeitos aparecem sob formas mutáveis segundo a diversidade das condições acompanhantes e em parte limitadoras. Desta maneira, pois, o arbítrio de todo homem possui um caráter empírico que nada mais é do que certa causalidade de sua razão na medida em que indica, em seus efeitos no fenômeno, uma regra segundo a qual é possível coligir, segundo o seu modo e os seus graus, os fundamentos e as ações da razão e julgar os princípios subjetivos de seu arbítrio. Visto que este mesmo caráter empírico tem que ser inferido a partir dos fenômenos enquanto seus efeitos e a partir da regra que a experiência indica como a eles se referindo, todas as ações do homem no fenômeno estão determinadas, segundo a ordem da natureza, por seu caráter empírico e por todas as outras causas coatuantes; e se fosse possível perscrutar até o fundo todos os fenômenos do arbítrio humano, não haveria sequer uma ação humana que não fosse possível de ser predita com certeza e de ser reconhecida como necessária a partir de suas condições precedentes. No que diz respeito a este caráter empírico, pois, não há qualquer liberdade, e é exclusivamente segundo este caráter que podemos considerar o homem quando simplesmente o observamos e quando, tal qual ocorre na Antropologia, pretendemos investigar fisiologicamente as causas de suas ações. Mas se ponderarmos justamente estas mesmas ações com relação à razão, e não à especulativa a fim de explicar aquelas segundo a sua origem, mas sim exclusivamente na medida em que a razão é a causa de sua produção, numa palavra, se compararmos estas ações com a razão tendo em vista um propósito prático, então encontraremos uma regra e uma ordem que são totalmente diversas da ordem da natureza. Com efeito, neste caso talvez não deveria ter ocorrido tudo aquilo que ocorreu de acordo com o curso da natureza e que teria inevitavelmente de ocorrer segundo os seus fundamentos empíricos. Às vezes, no entanto, achamos, ou pelo menos acreditamos achar, que as ideias da razão realmente demonstraram ter uma causalidade com respeito às ações do homem enquanto fenômenos, e que esta sobrevieram devido ao fato de que estavam determinadas não por causas empíricas, mais sim por fundamentos da razão. Posto, pois, ser possível dizer que a razão possui uma causalidade com respeito ao fenômeno, a ação da mesma poderia muito bem ser denominada livre, já que ela é necessária e determinada assaz precisamente no seu caráter empírico (modo de sentir). Este, por sua vez, é determinado no caráter inteligível (modo de pensar). Mas não conhecemos este último, pois o indicamos através de fenômenos que dão propriamente a conhecer de uma forma imediata só o modo de sentir (caráter empírico). (Em consequência, a moralidade própria das ações (mérito e culpa), mesmo a de nosso próprio comportamento, permanece-nos totalmente oculta. As nossas responsabilidades só podem ser referidas ao caráter empírico. Mas quanto disto se deve imputar ao efeito puro da liberdade, quanto à simples natureza e quanto ao defeito de temperamento do qual não se é culpado, ou à natureza feliz (merito fortunae) do mesmo, eis algo que ninguém pode perscrutar e, consequentemente, também não julgar (richten) com toda a justiça. Nota do Autor.) Ora, na medida em, que é atribuível ao modo de pensar enquanto a sua causa, a ação ainda assim de modo algum resulta disto segundo leis empíricas, isto é, de uma forma tal que as condições da razão pura a precedam, mas sim unicamente que a precedam os efeitos desta última no fenômeno do sentido interno. Enquanto uma faculdade puramente inteligível, a razão pura não está submetida à forma temporal, e portanto também não às condições da sucessão temporal. A causalidade da razão no caráter inteligível não surge, nem começa por voltas de certo tempo a fim de produzir um efeito. Pois, do contrário ela mesma ficaria submetida à lei natural dos fenômenos, na medida em que esta determina séries causais segundo o tempo; então a causalidade seria natureza, e não liberdade. Logo é possível dizer que, se a razão pode possuir uma causalidade com respeito aos fenômenos, então ela é um poder através do qual começa, primeiramente, a condição sensível de uma série empírica de efeitos. Pois a condição que se encontra na razão não é sensível, e logo ela mesma não começa. Em decorrência disto, ocorre então aquilo por cuja falta demos em todas as séries empíricas: que a condição de uma série sucessiva de eventos poderia ela mesma ser empiricamente incondicionada. Com efeito, aqui a condição está fora da série dos fenômenos (no inteligível), não estando, portanto, submetida a nenhuma condição sensível e a nenhuma determinação temporal por causas precedentes. Numa outra relação não obstante, exatamente a mesma causa também pertence à série dos fenômenos. O próprio ser humano é um fenômeno. O seu arbítrio possui um caráter empírico que constitui a causa (empírica) de todas as suas ações. Nenhuma das condições que determinam o homem de acordo com este caráter deixa de estar contida na série dos eventos naturais e de obedecer à lei da mesma; segundo esta lei, não é encontrada nenhuma causalidade empiricamente incondicionada daquilo que ocorre no tempo. Devido a isto, nenhuma ação dada pode começar de um modo absolutamente espontâneo (pois ela só pode ser percebida como um fenômeno). Da razão não se pode dizer, no entanto, que àquele estado no qual ela determina o arbítrio preceda outro no qual se determina este mesmo estado. Com efeito, já que a razão não é propriamente um fenômeno não está submetida a quaisquer condições da sensibilidade, nela não ocorre, mesmo no concernente à sua causalidade, uma sucessão temporal; logo não se pode lhe aplicar a lei dinâmica da natureza que determina, segundo regras, a sucessão temporal. A razão é pois, a condição permanente de todas as ações de arbítrio sob as quais se manifesta o homem. Antes mesmo que ocorra, cada uma delas está predeterminada no caráter empírico do ser humano. Tendo em vista o caráter inteligível, do qual o empírico é só o esquema sensível, não vale qualquer antes ou depois; sem levar em conta a relação temporal na qual está com outros fenômenos, cada ação consiste no efeito imediato do caráter inteligível da razão pura, a qual, portanto, age de um modo livre sem estar dinamicamente determinada, na cadeia das causas naturais, por fundamentos externos e internos, porém precedentes segundo o tempo. Esta sua liberdade não pode ser encarada, de um modo exclusivamente negativo, como uma independência frente a condições empíricas (pois mediante tal a faculdade da razão cessaria de ser uma causa dos fenômenos), mas ela também pode ser indica da positivamente por uma faculdade de iniciar espontaneamente uma série de eventos. Deste modo, nada começa na própria razão, mas ela, enquanto condição incondicionada de toda a ação de arbítrio, não admite quaisquer condições precedentes segundo o tempo como instância superior; pois o seu efeito começa na série dos fenômenos, mas jamais pode constituir um início absolutamente primeiro na mesma. A fim de explanar o princípio regulativo da razão mediante um exemplo retirado de seu emprego empírico e não confirma-lo (pois demonstrações deste gênero são imprestáveis para afirmações transcendentais), tome-se uma ação de arbítrio, por exemplo, uma mentira maldosa mediante a qual um homem trouxe certa confusão à sociedade. Seja examinada, em primeiro lugar, quanto às motivações a partir das quais emergiu e, em seguida, julga-se como ela pode ser imputada ao agente juntamente com as suas consequências. Com o primeiro propósito, remonta-se o seu caráter empírico às suas fontes, as quais serão detectadas numa educação defeituosa, em más companhias, em parte também na malignidade de uma índole insensível à vergonha; em parte estas fontes também são atribuídas à leviandade e à irreflexão, sem contudo negligenciar as causas ocasionais que a tal ato deram azo. Em tudo isto procede-se, de um modo geral, da mesma forma que na investigação da série de causas que determinam um efeito natural dado. Apesar de se crer que a ação esteja determinada mediante tal, nem por isto admoesta-se menos o agente, nem por sua índole infeliz nem pelas circunstâncias que sobre ele influíram, e muito menos devido ao modo como anteriormente conduziu a sua vida pois pressupõe-se que é possível pôr totalmente de lado a natureza de sua conduta anterior, bem como encarar, de um lado, a série decorrida de condições como não ocorrida e, de outro, este ato como totalmente incondicionado, considerando o estado anterior, como se o agente com isto iniciasse, de todo espontaneamente, uma série de consequências. Esta admoestação se funda sobre uma lei da razão por meio da qual se encara esta última como uma causa que, sem levar em conta todas as condições empíricas mencionadas, poderia e deveria determinar diversamente o comportamento do homem. E se vê a causalidade da razão não como simplesmente concorrendo para aquela conduta, mas em si mesma como completa, apesar de que as motivações sensíveis antes se lhe oponham do que a favoreçam. A ação é atribuída ao caráter inteligível do homem, e agora, no momento em que mente, ele é totalmente culpado; portanto, desconsiderando todas as condições empíricas do ato, a razão era integralmente livre, e a mentira é de todo imputável à sua omissão. Tem-se em mente neste juízo de atribuição, e é fácil notá-lo, que a razão de modo algum é afetada por toda aquela sensibilidade, que ela não muda (mesmo que se alterem os seus fenômenos, ou seja, o modo pelo qual ela se manifesta em seus efeitos) e que nela não ocorre um estado anterior que determine o subsequente; por conseguinte, a razão de modo algum pertence à série das condições sensíveis que tornam os fenômenos necessários segundo leis da natureza. A razão está presente e é sempre a mesma em todas as ações do homem em todas as circunstâncias temporais, mas ela mesma não é no tempo nem atinge um novo estado no qual antes não estava; com referência a este novo estado, ela é determinante, mas não determinável. Consequentemente, não se pode indagar por que a razão não se determinou de outro modo, mas sim unicamente por que, mediante a sua causalidade, ela não determinou diversamente os fenômenos. A isto, no entanto, qualquer resposta é impossível. Com efeito, outro caráter inteligível teria dado outro caráter empírico; e quando dizemos que, sem levar em conta todo o modo anterior de conduzir a sua vida, o agente poderia não ter mentido? Então isto só significa que a ação se encontra imediatamente sob o poder da razão, e que esta última, em sua causalidade, não está submetida a quaisquer condições do fenômeno e do curso temporal. Mas a diferença de tempo, embora capital no que tange às relações recíprocas dos fenômenos entre si, já que em si mesmos os fenômenos não são nem coisas nem causas, não pode fazer qualquer diferença para a relação que se estabelece entre a ação e a razão. Com respeito à sua causalidade, no julgamento de ações livres só podemos chegar até a causa inteligível, mas não ir além da mesma; podemos conhecer que ela é livre, isto é, determinada independentemente da sensibilidade, e que deste modo ela pode ser a condição dos fenômenos que não é condicionada pelos sentidos dos fenômenos. Mas porque o caráter inteligível resulta, nas circunstâncias existentes, exatamente nestes fenômenos e neste caráter empírico é uma questão que ultrapassa tão de longe a faculdade de nossa razão para responder, e até todo o direito de ela sequer perguntar, como se se indagasse por que o objeto transcendental de nossa intuição sensível externa só dá uma intuição no espaço e não qualquer outro tipo de intuição. Só a tarefa que tínhamos a solver de modo algum nos obriga a tanto. Tratava-se unicamente de saber se a liberdade conflita, numa e na mesma ação, com a necessidade natural; respondemos suficientemente tal questão ao mostrarmos que, já que na primeira é possível uma relação a um gênero de condições totalmente diverso do que na última, a lei desta não afeta anterior, e que, portanto, ambas podem ocorrer independentemente uma da outra e sem interferências recíprocas. É recomendável observar que no acima dito não tivemos a pretensão de expor a realidade efetiva da liberdade enquanto uma das faculdades que contém a causa dos fenômenos do nosso mundo sensível. Com efeito, além de que isto de modo algum constituiria uma consideração transcendental a trabalhar exclusivamente com conceitos, também não seria possível concretar tal meta na medida em que a partir da experiência jamais podemos inferir algo que de modo algum pode ser pensado segundo leis da experiência. Além disto, também de maneira alguma intentamos demonstrar sequer a possibilidade da liberdade; pois tal empreitada também não teria sido exitosa, já que em geral não podemos conhecer, a partir de puros conceitos a priori, a possibilidade de qualquer fundamento real ou de qualquer causalidade. A liberdade é aqui tratada unicamente como uma ideia transcendental mediante a qual a razão pensa iniciar absolutamente a série das condições no fenômeno através daquilo que não é condicionado pelos sentidos, enredando-se assim numa antinomia com aquelas mesmas leis que ela prescreve ao uso empírico do entendimento. Mostrar que esta antinomia repousa sobre uma simples aparência e que a natureza pelo menos não conflita com a causalidade a partir da liberdade era a única coisa que podíamos fazer e também aquela que única e exclusivamente nos interessava. IV. Solução da ideia cosmo lógica da totalidade da dependência dos fenômenos, segundo a sua existência em geral Na subseção precedente consideramos as mudanças do mundo dos sentidos em sua série dinâmica, cada uma delas estando subordinada a outra enquanto a sua causa. Empregaremos agora esta série de estados unicamente com o fito de que nos conduza a uma existência que possa ser condição suprema de todo o mutável, ou seja, ao ente necessário. Não se trata da causalidade incondicionada, mas sim da existência incondicionada da própria substância. Logo a série que temos diante de nós é propriamente constituída só de conceitos e não de intuições na medida em que uma é a condição da outra. Vê-se facilmente, no entanto, que em parte alguma da série da existência dependente pode haver, já que tudo é mutável no conjunto dos fenômenos e, portanto, condicionado na existência, qualquer membro incondicionado cuja existência fosse absolutamente necessária. Consequentemente, se os fenômenos fossem coisas em si mesmas e se exatamente devido a isto a sua condição sempre pertencesse a uma e à mesma série de intuições que o condicionado, jamais poderia existir um ente necessário enquanto a condição da existência dos fenômenos do mundo sensível. O regresso dinâmico, no entanto, traz em si o seguinte traço característico que o distingue do regresso matemático: já que este último lida propriamente só com a composição das partes num todo ou com a decomposição de um todo em suas partes, as condições desta série têm que ser encaradas como partes da mesma, portanto, como homogêneas e, consequentemente, como fenômenos. Ao invés disto, no regresso dinâmico a condição não perfaz necessariamente uma série empírica com o condicionado, visto que não se trata nem da possibilidade de um todo incondicionado a partir de partes dadas nem da de uma parte incondicionada para um todo dado, mas sim da derivação ou de um estado a partir de sua causa ou da existência contingente da própria substância a partir da existência necessária. Nesta aparente antinomia que jaz diante de nós, resta-nos ainda uma saída, já que ambas as proposições mutuamente conflitantes podem, numa relação diversa, ser verdadeiras ao mesmo tempo. Tanto todas as coisas do mundo dos sentidos podem ser totalmente contingentes, e, portanto, também possuir uma existência que é sempre tão só empiricamente condicionada, quanto também pode ocorrer uma condição não empírica de toda a série, ou seja, um ente incondicionadamente necessário. Com efeito, este último, enquanto condição inteligível, de modo algum pertenceria à série como um seu membro (nem mesmo como membro supremo) nem tornaria empiricamente incondicionado qualquer membro da série; ao contrário, permitiria que todo o mundo dos sentidos seguisse existindo do modo empiricamente condicionado que perpassa todos os seus membros. No que concerne a tal questão, este modo de pôr uma existência incondicionada como o fundamento dos fenômenos distinguir-se-ia da causalidade empiricamente incondicionada (da liberdade), vista no artigo anterior, no seguinte: na liberdade, a própria coisa, enquanto causa (substantia phaenomenon), ainda assim pertenceria à série de condições, e somente a sua causalidade seria pensada como inteligível, ao passo que aqui o ente necessário teria que ser pensado como totalmente fora da série do mundo sensível (enquanto ens extramundanum) e como puramente inteligível. Somente através deste procedimento é possível evitar que este ente mesmo seja submetido à lei da contingência e da dependência de todos os fenômenos. No que se refere a esta nossa tarefa, pois, o princípio regulativo da razão consiste em que tudo no mundo dos sentidos tenha uma existência empiricamente condicionada e que em parte alguma haja uma necessidade incondicionada com respeito a qualquer uma de suas propriedades, bem como que não exista qualquer membro da série de condições do qual não se tenha sempre que esperar, e procurar na medida do possível, a condição empírica numa experiência possível; além disto nada nos autoriza a derivar qualquer existência a partir de uma condição exterior à série empírica, bem como também considerá-la como absolutamente independente e autônoma na própria série. Mediante tal, no entanto, este princípio de modo algum desmente a asserção de que toda a série possa estar fundada sobre algum ente inteligível (e que, devido a isto, está livre de toda a condição empírica, contendo antes o fundamento da possibilidade de todos estes fenômenos). Entretanto, não temos aqui a intenção de demonstrar a existência incondicionadamente necessária de um ente, ou de sequer nisto fundamentar a possibilidade de uma condição puramente inteligível da existência dos fenômenos do mundo sensível; tanto quanto restringimos a razão para que ela não abandone o fio das condições empíricas nem se perca em fundamentos de explicação que são transcendentes e incapazes de qualquer apresentação in concreto, trata-se tão somente de também cercear, por outro lado, a lei do uso meramente empírico do entendimento no sentido de que nem decida sobre a possibilidade das coisas em geral nem declare o inteligível como impossível simplesmente porque este não é utilizado por nós na explicação dos fenômenos. Mediante tal, pois, só se mostra que a contingência universal de todas as coisas naturais, bem como de todas as suas condições (empíricas), pode muito bem coexistir com o pressuposto arbitrário de uma condição necessária, embora puramente inteligível; e como não é possível encontrar qualquer contradição verdadeira entre estas afirmações, ambas podem ser verdadeiras. Por mais que tal ente absolutamente necessário do entendimento seja em si impossível, isto de modo algum pode ser inferido nem a partir da contingência e dependência universais de tudo o que pertence ao mundo dos sentidos, nem a partir do princípio que nos impede tanto de nos determos em qualquer um dos membros do mundo dos sentidos, enquanto contingente, quanto de nos reportarmos a uma causa exterior ao mundo. A razão segue a sua trilha no uso empírico e a sua trilha particular no uso transcendental. O mundo dos sentidos nada mais contém do que fenômenos; estes, no entanto, são meras representações que são sempre, por sua vez, condicionadas de um modo sensível. E já que aqui jamais temos coisas em si mesmas como nossos objetos, não é de admirar que nunca estejamos autorizados a dar um salto para além do conteúdo da sensibilidade ao tratarmos de um membro das séries empíricas, seja ele qual for, como se estivéssemos lidando com coisas em si mesmas que existissem fora de seu fundamento transcendental e que se poderia abandonar para, fora delas, procurar a causa de sua existência; é certo que isto teria que finalmente ocorrer com as coisas contingentes, mas não com meras representações de coisas cuja própria contingência só é fenômeno, e pode exclusivamente conduzir àquele regresso que determina os fenômenos, isto é, que é empírico. Por outro lado, pensar um fundamento inteligível dos fenômenos, isto é, do mundo dos sentidos, e pensá-lo como liberto da contingência dos fenômenos, não é contrário nem a um regresso empírico irrestrito na série dos fenômenos nem à contingência universal dos mesmos. Isto, no entanto, também é a única coisa que tínhamos a fazer para suprimir a aparente antinomia, e só poderia ser feita desta maneira. Com efeito, se a respectiva condição para todo o condicionado (segundo a existência) é sensível, exatamente devido a isto pertencente à série, então ela mesma é, por sua vez, condicionada (como o revela a antítese da quarta antinomia). Ou teria, pois, que permanecer um conflito com razão, a qual exige o incondicionado, ou este último teria que ser posto fora da série, no inteligível, cuja necessidade nem exige nem admite qualquer condição empírica; e em decorrência ele é incondicionadamente necessário no que tange aos fenômenos. O uso empírico da razão (no que concerne às condições da existência no mundo dos sentidos) não é afetado pela admissão de um ente puramente inteligível; ao contrário, segundo o princípio da contingência universal, ele passa de condições empíricas a condições mais elevadas que, da mesma forma, sempre são empíricas. Quando se trata do uso puro da razão (tendo em vista fins), este princípio regulativo tampouco exclui a aceitação de uma causa inteligível que não esteja na série. Pois então aquela causa inteligível significa unicamente o fundamento, para nós puramente transcendental e desconhecido, da possibilidade da série sensível em geral; a sua existência independente de todas as condições sensíveis e incondicionadamente necessária no que respeita às mesmas, de modo algum se opõe à contingência ilimitada dos fenômenos, e por isso também não ao regresso na série das condições empíricas, o qual não cessa em ponto algum. NOTA FINAL A TODA A ANTINOMIA DA RAZÃO PURA Enquanto o objeto dos conceitos de nossa razão é simplesmente formado pela totalidade das condições no mundo dos sentidos e pelo que com respeito a este pode resultar em benefício da razão, as nossas ideias por certo são transcendentais, mas também cosmológicas. Tão logo, no entanto, ponhamos o incondicionado (o qual propriamente nos interessa) naquilo que se situa totalmente fora do mundo dos sentidos, portanto, fora de toda experiência possível, as ideias se tornam transcendentes. Elas não servem exclusivamente para completar o uso empírico da razão (que sempre permanece uma ideia jamais a realizar, mas ainda assim a perseguir); ao contrário, elas se apartam completamente disto e para si mesmas constituem objetos cuja matéria não é retirada da experiência e ruja realidade objetiva também não repousa sobre a completude da série empírica, mas sim sobre conceitos puros a priori. Tais ideias transcendentes possuem um objeto puramente inteligível, e é claro que se pode admiti-lo como um objeto transcendental, do qual de resto nada se sabe; no entanto, para pensá-lo como uma coisa determinável mediante os seus predicados internos e distintivos, não temos a nosso favor nem fundamentos de possibilidade (enquanto é independente de todos os conceitos da experiência) nem a mínima justificativa para admitir tal objeto, e em consequência este nada mais é do que um ente de pensamento. Dentre todas as ideias cosmológicas, no entanto, aquela que provocou a quarta antinomia nos compele a ventura r este passo. Com efeito, a existência dos fenômenos, que em si mesma é total e absolutamente infundada, nos exorta a procurar algo diverso de todos os fenômenos, e, portanto, um objeto inteligível no qual cesse esta contingência. Mas quando uma vez tomamos a liberdade de admitir uma realidade auto-subsistente fora do âmbito de toda a sensibilidade, os fenômenos só podem ser encarados como modos contingentes pelos quais entes que são propriamente inteligências representam objetos inteligíveis; em decorrência disto, nada mais nos resta do que a analogia, segundo a qual nos utilizamos dos conceitos da experiência para ainda assim nos formarmos algum conceito a respeito de coisas inteligíveis, das quais, em si, não temos o mínimo conhecimento. Já que não aprendemos a conhecer o contingente de outro modo que mediante a experiência, mas que aqui o assunto gira em torno de coisas que de modo algum devem ser objetos da experiência, teremos que derivar o conhecimento das mesmas a partir daquilo que em si é necessário, a partir de conceitos puros de coisas em geral. Por conseguinte, o primeiro passo que damos para além do mundo sensível nos constrange tanto a começar a busca de novos conhecimentos com a investigação do ente absolutamente necessário quanto a derivar dos seus conceitos os conceitos de todas as coisas na medida em que são puramente inteligíveis; e é esta a tentativa que pretendemos encetar no capítulo seguinte. CAPÍTULO TERCEIRO DO LIVRO SEGUNDO DA DIALÉTICA TRANSCENDENTAL O ideal da razão pura SEÇÃO PRIMEIRA DO IDEAL EM GERAL Vimos acima que sem as condições da sensibilidade nenhum objeto absolutamente pode ser representado mediante conceitos puros do entendimento, porque faltam as condições da sua realidade objetiva e neles não se encontra senão a simples forma do pensamento. Tais conceitos, não obstante, podem ser apresentados in concreto quando são aplicados aos fenômenos; nestes, com efeito, eles propriamente possuem a matéria para o conceito empírico que não é senão um conceito in concreto do entendimento. As ideias, porém, estão ainda mais afastadas da realidade objetiva do que as categorias, pois não se pode encontrar nenhum fenômeno em que as ideias se deixem representar in concreto. Elas contêm certa completude que nenhum conhecimento empírico possível chega a alcançar e a razão visa nelas somente uma unidade sistemática, à qual procura aproximar a unidade empírica possível sem jamais a alcançar inteiramente. Entretanto, mais afastado ainda da realidade objetiva do que a ideia parece estar aquilo que denomino o ideal e pelo qual entendo a ideia não simplesmente in concreto mas in individuo, isto é, como uma coisa singular, determinável ou mesmo determinada unicamente mediante a ideia. Na sua inteira perfeição a humanidade contém não somente a extensão de todas as propriedades essenciais pertencentes à natureza humana (que constituem o nosso conceito dessa natureza) até a congruência completa com os seus fins, o que formaria a nossa ideia da humanidade perfeita, mas contém além disso tudo o que fora desse conceito pertence à determinação completa da ideia. De fato, de todos os predicados contrapostos um somente pode adaptar-se à ideia do homem perfeito. O que para nós é um ideal era para Pia tão uma ideia do entendimento divino, um objeto singular na intuição pura desse entendimento, o mais perfeito de toda espécie de entes possíveis e o fundamento originário de todas as cópias do fenômeno. Mas sem nos elevarmos tanto temos de confessar que a razão humana contém não apenas ideias mas também ideais que, na verdade, não possuem uma força criadora como as platônicas e, contudo, uma força prática (como princípios regulativos), subjazendo à possibilidade da perfeição de certas ações. Os conceitos morais não são conceitos totalmente puros da razão, porque a seu fundamento encontra-se algo empírico (prazer ou dor). Todavia, com respeito ao princípio pelo qual a razão põe barreiras à liberdade, que em si é alegal (portanto, se se considera simplesmente a sua forma), tais conceitos podem bem servir como exemplos de conceitos puros da razão. A virtude e com ela a sabedoria humana na sua inteira pureza são ideias. O sábio, porém (o estoico), é um ideal, isto é, um homem que existe meramente no pensamento, mas que é inteiramente congruente com a ideia da sabedoria. Do mesmo modo como a ideia fornece a regra, o ideal serve em tal caso de arquétipo para a determinação completa da cópia; e nós não possuímos outra medida orientadora das nossas ações senão o comportamento desse homem divino em nós, com o qual nos comparamos, nos julgamos e pelo qual nos tornamos melhores, se bem que ninguém jamais possa alcança-lo. Conquanto não se possa conceder realidade objetiva (existência) a esses ideais, nem por isso eles devem ser considerados quimeras, pois fornecem uma medida indispensável à razão, que precisa do conceito daquilo que é totalmente perfeito na sua espécie para avaliar e medir com base nele o grau e os defeitos daquilo que é imperfeito. Querer, todavia, realizar o ideal num exemplo, isto é, no fenômeno - mais ou menos como o sábio num romance - é impraticável e além disso possui algo absurdo e pouco edificante, enquanto as barreiras naturais que prejudicam continuamente a completude na ideia tornem impossível toda a ilusão em tal tentativa, tornando deste modo suspeito e semelhante a uma simples ficção o próprio bem que se encontra na ideia. Assim estão as coisas com respeito ao ideal da razão, que sempre tem de repousar sobre conceitos determinados e servir de regra e de arquétipo, quer para ser seguido quer para ser julgado. Bem diverso é o caso daquelas criaturas da capacidade da imaginação, que ninguém pode explicar e sobre as quais ninguém pode fornecer um conceito compreensível: elas, por assim dizer, são monogramas, traços isolados, que não são determinados por nenhuma suposta regra e que, por assim dizer, constituem mais uma espécie de contorno vago no meio de experiências diversas do que uma imagem determinada, semelhante à que os pintores e fisionomistas pretendem ter em sua cabeça e devem ser um perfil incomunicável dos seus produtos ou dos seus juízos. Essas vagas imagens podem ser chamadas, se bem que só impropriamente, ideias da sensibilidade, porque devem ser o modelo inatingível de intuições empíricas possíveis e não fornecem todavia nenhuma regra suscetível de explicação e de exame. O intuito da razão com o seu ideal é a determinação completa segundo regras a priori. Por isso ela pensa um objeto que deve ser completamente determinável segundo princípios, se bem que na experiência faltem as condições suficientes para tanto e que o próprio conceito seja, portanto, transcendente. SEÇÃO SEGUNDA DO CAPÍTULO TERCEIRO DO IDEAL TRANSCENDENTAL (PROTOTYPON TRANSCENDENTALE) Todo conceito é indeterminado com respeito ao que não está contido nele e está subordinado ao princípio da determinabilidade, ou seja, que de cada dois predicados opostos contraditoriamente entre si somente um pode ser-lhe atribuído. Este princípio repousa sobre o princípio de contradição e por isso é um princípio meramente lógico, que abstrai de todo o conteúdo do conhecimento para ter presente somente a forma lógica do mesmo. Toda coisa quanto à sua possibilidade está, porém, subordinada ainda ao princípio da determinação completa, conformemente ao qual de todos os predicados possíveis das coisas, enquanto são comparados com os seus opostos, um deles tem de convir-lhe. Tal predicado não repousa meramente sobre o princípio de contradição, pois ele considera, além da relação de dois predicados conflitantes entre si, ainda cada coisa em relação com a inteira possibilidade como o conjunto de todos os predicados das coisas em geral e, enquanto pressupõe tal possibilidade como condição a priori, representa cada coisa como derivando a sua própria possibilidade do seu grau de participação naquela inteira possibilidade. (Mediante este princípio, portanto, cada coisa é referida a um corre/atum comum, a saber, à possibilidade completa que, se (isto é, a matéria de todos os predicados possíveis) fosse encontrada na ideia de uma única coisa, provaria uma afinidade de todo o possível mediante a identidade do fundamento da sua determinação completa. A determinabilidade de todo conceito está subordinada à universalidade (universalitas) do princípio da exclusão de um meio termo entre dois predicados opostos, mas a determinação de uma coisa à totalidade (universitas) ou ao conjunto de todos os predicados possíveis. Nota do Autor.) Portanto o principium da determinação completa refere-se ao conteúdo e não simplesmente à forma lógica. Ele é o princípio da síntese de todos os predicados que devem formar o conceito completo de uma coisa e não simplesmente a representação analítica mediante um dos predicados opostos, e contém um pressuposto transcendental, a saber, a matéria para toda a possibilidade, a qual deve conter a priori os dados para a possibilidade peculiar de cada coisa. A proposição: todo existente é completamente determinado não significa somente que de cada par de predicados opostos dados um deve ser atribuído à coisa existente, mas significa isto também com respeito a todos os predicados possíveis. Mediante essa proposição não somente os predicados são comparados logicamente entre si, mas a própria coisa é comparada transcendentalmente com o conjunto de todos os predicados possíveis. Tal proposição quer significar que, para se conhecer completamente uma coisa tem-se que conhecer todo o possível e determiná-la através deste, quer positiva quer negativamente. A determinação completa, consequentemente, é um conceito que jamais podemos apresentar in concreto na sua totalidade. Este conceito, portanto, se funda sobre uma ideia com sede exclusivamente na razão, a qual prescreve ao entendimento a regra de seu inteiro uso. Ora, se bem que esta ideia do conjunto de toda possibilidade - enquanto tal conjunto subjaz como condição à determinação completa de cada coisa - seja ela mesma ainda indeterminada com respeito aos predicados que possam constituir esse conjunto, e se bem que mediante tal ideia não pensemos senão um conjunto de todos os predicados possíveis em geral, numa investigação mais aprofundada encontramos que essa ideia como conceito originário elimina uma multidão de predicados que já são dados como derivados através de outros ou que não podem ser compatíveis entre si, encontramos ainda que se a mesma ideia purifica-se até o ponto de um conceito determinado de modo completamente a priori, tomando-se assim o conceito de um objeto singular que é completamente determinado mediante a simples ideia e que, por conseguinte, tem de ser denominado ideal da razão pura. Se considerarmos todos os predicados possíveis, não apenas logicamente mas transcendentalmente, isto é, segundo o seu conteúdo que pode ser pensado a priori, descobrimos que através de alguns é representado um ser, e através de outros, um simples não ser. A negação lógica, que é indicada exclusivamente pela partícula "não", jamais é propriamente inerente a um conceito, mas somente a uma relação dele com outro conceito no juízo e nem de longe, pois, é suficiente para designar um conceito com vistas ao seu conteúdo. A expressão "não mortal" de modo algum pode tornar cognoscível o fato de que através dela é representado um simples não ser no objeto, antes, deixa intato todo conteúdo. Uma negação transcendental, ao contrário, significa o não ser em si mesmo, ao qual é contraposta a afirmação transcendental; esta é um algo, cujo conceito expressa já em si mesmo um ser, denominando-se, em virtude disso, realidade (coisalidade), pois unicamente através dela e somente até onde ela alcança são os objetos um algo (coisas). A negação a ela contraposta, ao invés, significa uma simples carência e onde apenas esta for pensada representar-se-á a supressão de toda coisa. Ora, ninguém pode pensar determinadamente uma negação sem que tenha posto como fundamento a afirmação oposta. O cego de nascença não pode formar-se a mínima representação das trevas porque não possui uma representação da luz; o selvagem não pode formar-se nenhuma representação da pobreza, porque não conhece a abastança. (As observações e os cálculos dos astrônomos ensinaram-nos muita coisa admirável, mas o mais importante é que descobriram o abismo da nossa ignorância, o que sem esses conhecimentos a razão humana jamais teria podido se representar como tão grande; a reflexão sobre essa ignorância tem que produzir uma grande mudança na determinação dos objetivos últimos do uso da nossa razão. Nota do Autor.) O ignorante não possui um conceito da sua ignorância, porque não possui um conceito da ciência etc. Portanto, todos os conceitos de negação também são derivados, e as realidades contêm os dados e, por assim dizer, a matéria ou o conteúdo transcendental para a possibilidade e a determinação completa de todas as coisas. Se à base da determinação completa, portanto, é posto em nossa razão um substratum transcendental que contenha por assim dizer a inteira provisão do material donde os predicados possíveis das coisas podem ser tirados, então esse substratum não é outra coisa senão a ideia de um todo da realidade (omnitudo realitatis). Todas as verdadeiras negações não são, pois, senão limites; elas não poderiam ser chamadas assim se não estivessem fundadas no ilimitado (o todo). Com essa posse completa da realidade, porém, é representado também o conceito de uma coisa em si mesma como completamente determinado; e o conceito de um ens realissimum é o conceito de um ente singular, porque entre todos os predicados contrapostos na sua determinação é encontrado um, a saber, aquele que pertence ao ser de um mundo absoluto. Há, portanto, um ideal transcendental na base da determinação completa que se encontra necessariamente em tudo o que existe e que constitui a condição material suprema e completa da sua possibilidade. A esta condição deve ser reconduzido todo o pensamento dos objetos em geral com respeito ao seu conteúdo. Mas se trata também do único ideal verdadeiro e próprio de que é capaz a razão humana, pois somente neste caso um conceito em si universal de uma coisa é determinado completamente por si mesmo e é conhecido como a representação de um indivíduo. A determinação lógica de um conceito pela razão repousa sobre um silogismo disjuntivo, no qual a premissa maior contém uma divisão lógica (a divisão da esfera de um conceito universal), a premissa menor limita essa esfera a uma parte e a conclusão determina o conceito mediante esta parte. O conceito universal de uma realidade em geral não pode ser dividido a priori, porque sem a experiência não se conhece qualquer modo determinado de realidade que estivesse contido naquele gênero. Portanto, a premissa maior transcendental da determinação completa de todas as coisas não é outra senão a representação do conjunto de toda a realidade, não simplesmente um conceito que compreende sob si todos os predicados segundo o seu conteúdo transcendental, mas um conceito que compreende tais predicados em si. E a determinação completa de cada coisa repousa sobre a limitação desse todo da realidade, na medida em que uma parte dela é atribuída à coisa e o resto lhe é excluído; o que concorda com a alternativa da premissa maior disjuntiva e da determinação do objeto na premissa menor mediante um dos membros dessa divisão. Assim o uso da razão, mediante o qual ela põe o ideal transcendental como fundamento de sua determinação de todas as coisas possíveis, é análogo ao uso segundo o qual ela procede nos silogismos disjuntivos. Este foi o princípio que acima pus como fundamento da divisão sistemática de todas as ideias transcendentais e segundo o qual tais ideias são produzidas paralela e correspondentemente aos três modos de silogismos. Compreende-se por si que para este seu fim, a saber, para representar-se unicamente a determinação completa e necessária das coisas, a razão não pressupõe a existência de tal ente que é conforme ao ideal, mas somente a ideia do mesmo para derivar de uma totalidade incondicionada da determinação completa a totalidade condicionada, isto é, a totalidade do que é limitado. Para a razão, portanto, o ideal é o modelo (prototypon) de todas as coisas, as quais em conjunto como cópias imperfeitas (ectypa) tiram dele a matéria para a sua possibilidade e enquanto se aproximam mais ou menos dele permanecem sempre infinitamente distantes para alcança-lo. Deste modo toda possibilidade das coisas (da síntese do múltiplo segundo o seu conteúdo) é considerada derivada e unicamente a possibilidade daquilo que encerra em si toda a realidade é considerada originária. Com efeito, todas as negações (embora sejam os únicos predicados pelos quais tudo o mais pode distinguir-se do ente realíssimo) são simples limitações de uma realidade maior e, enfim, da realidade suprema; por conseguinte, pressupõem a esta e quanto ao conteúdo são simplesmente derivadas dela. Toda multiplicidade das coisas é somente um modo variado de limitar o conceito da realidade suprema, que é o seu substrato comum, assim como todas as figuras somente são possíveis como diversos modos delimitar o espaço infinito. Consequentemente, o objeto do ideal da razão - o qual se encontra meramente nela - é também o ente originário (ens originarium); enquanto não possui nenhum ente acima de si é o ente supremo (ens summum); e, enquanto tudo como condicionado está subordinado a ele, é denominado o ente de todos os entes (ens entium). Tudo isto, porém, não significa a relação objetiva de um objeto real com outras coisas e sim da ideia com conceitos, deixando-nos em completa ignorância acerca da existência de um ente de tão excepcional preeminência. Visto que além disso não se pode dizer que um ente originário conste de muitos entes derivados, enquanto cada um deles o pressupõe e não pode, pois, constituí-lo, assim o ideal do ente originário tem que ser também pensado como simples. Portanto para falar com precisão, a derivação desse ente originário de toda ulterior possibilidade não pode tampouco ser considerada uma limitação de sua realidade suprema e, por assim dizer, uma divisão dela. Em tal caso, com efeito, o ente originário seria considerado um simples agregado de entes derivados, o que pelo que foi dito anteriormente é impossível, conquanto inicialmente no primeiro e rudimentar esboço tenhamos representado assim a questão. Antes, a realidade suprema subjazeria à possibilidade de todas as coisas como um fundamento e não como um conjunto. E a multiplicidade das coisas não repousaria sobre a limitação do próprio ente originário, mas da sua completa consequência, à qual pertenceria também a nossa inteira sensibilidade, juntamente com toda a realidade do fenômeno, que não pode pertencer como ingrediente à ideia do ente supremo. Se ora, hipostasiando a nossa ideia, continuamos a segui-la, então poderemos determinar o ente originário - mediante o simples conceito da realidade suprema - como um único, simples, totalmente suficiente, eterno etc.; em uma palavra, poderemos determiná-lo em sua completude incondicionada mediante todos os predicamentos. O conceito de tal ente é o de Deus, pensando em sentido transcendental, e deste modo - como também mencionei acima - o ideal da razão pura é o objeto de uma teologia transcendental. Tal uso da ideia transcendental, no entanto, ultrapassaria já os limites da sua determinação e legitimidade. Com efeito, a razão pôs tal ideia somente a fundamento da determinação completa das coisas em geral, como o conceito de toda realidade, sem pretender que toda esta realidade seja dada objetivamente e constitua ela mesma uma coisa. Esta última é uma simples ficção mediante a qual nós recolhemos e realizamos o múltiplo da nossa ideia em um ideal como um ente particular. Não temos para isso nenhum direito, nem sequer o de admitir a possibilidade de tal hipótese. Assim também todas as consequências que decorrem de tal ideal não concernem de modo algum à determinação completa das coisas em geral, para cujo fim a ideia unicamente era necessária, e não possuem a mínima influência sobre ela. Não basta descrever o procedimento da nossa razão e a sua dialética; é preciso procurar descobrir também as fontes desta para poder explicar essa ilusão mesma como um fenômeno do entendimento, pois o ideal do qual falamos funda-se sobre uma ideia natural e não meramente arbitrária. Por isso pergunto: como chega a razão a considerar toda possibilidade das coisas como derivada de uma única possibilidade que a fundamenta; a saber, da possibilidade da realidade suprema, e a pressupor depois esta como contida em um especial ente originário? A resposta oferece-se espontaneamente a partir do desenvolvimento da Analítica Transcendental. A possibilidade dos objetos dos sentidos é uma relação dos mesmos com o nosso pensamento, no qual alguma coisa (a saber, a forma empírica) pode ser pensada a priori; aquilo, porém, que constitui a matéria - a realidade no fenômeno (o que corresponde à sensação) - tem que ser dado, porque do contrário não poderia de modo algum ser pensado e, por conseguinte, e sua possibilidade não poderia ser representada. Ora um objeto dos sentidos somente pode ser completamente determinado se é comparado com todos os predicados do fenômeno e se é representado afirmativa ou negativamente através deles. Além disso, visto que em tal objeto dos sentidos aquilo que constitui a própria coisa (no fenômeno), a saber, o real, tem que ser dado, sem o que também não pode de modo algum ser pensado; e visto que aquilo em que o real de todos os fenômenos é dado é a experiência una e totalmente abrangente: então a matéria para a possibilidade de todos os objetos dos sentidos tem que ser pressuposta como dada num conjunto, sobre cuja limitação somente podem repousar toda a possibilidade dos objetos empíricos, a sua diferença entre si e a sua determinação completa. Ora, nenhum outro objeto pode de fato ser-nos dado a não ser os objetos dos sentidos, e em parte alguma podem eles ser dados a não ser no contexto de uma experiência possível; consequentemente nada é um objeto para nós se não pressupõe o conjunto de toda a realidade empírica como condição de sua possibilidade. Com base numa ilusão natural consideramos um princípio, que propriamente vale somente para as coisas que são dadas como objetos dos nossos sentidos, como tendo de valer para todas as coisas em geral. Em consequência disso, tomamos o princípio empírico dos nossos conceitos da possibilidade das coisas como fenômenos, se suprimimos esta limitação, como um princípio transcendental da possibilidade das coisas em geral. O fato, porém, de que hipostasiamos essa ideia do conjunto de toda a realidade provém de que transformamos dialeticamente a unidade distributiva do uso empírico do entendimento na unidade coletiva de um todo de experiência, e que pensamos este todo do fenômeno como uma coisa singular que contém em si toda a realidade empírica. Tal coisa é, pois, confundida - mediante a já referida sub-repção transcendental - com o conceito de uma coisa que está no vértice da possibilidade de todas as coisas, para cuja determinação completa fornece as condições reais. (Este ideal do ente mais real de todos, conquanto uma simples representação, é primeiramente realizado, isto é, tomado objeto, a seguir hipostasiado e finalmente, mediante um progresso natural da razão rumo ao perfeccionamento da unidade, até personificado, como o exporemos em breve. Com efeito, a unidade regulativa da experiência não repousa sobre os próprios fenômenos (só da sensibilidade), mas sobre a conexão do seu múltiplo pelo entendimento (numa apercepção): por conseguinte, a unidade da realidade suprema e a completa determinabilidade (possibilidade) de todas as coisas parece residir num entendimento supremo, logo numa inteligência. Nota do Autor.) SEÇÃO TERCEIRA DO CAPÍTULO TERCEIRO DOS ARGUMENTOS DA RAZÃO ESPECULATIVA PARA INFERIR A EXISTÊNCIA DE UM ENTE SUPREMO A despeito dessa urgente necessidade da razão de pressupor algo que possa servir inteiramente de fundamento ao entendimento para a determinação completa dos seus conceitos, ela observa demasiado facilmente o que há de ideal e de meramente fictício em tal pressuposto para unicamente através disso persuadir-se a admitir como um ente efetivo uma simples criatura do próprio pensamento, se ela não fosse impelida por alguma outra coisa a procurar em alguma parte o seu repouso, no regresso do condicionado, que é dado, ao incondicionado, que na verdade em si e segundo o seu simples conceito não é dado como real mas que unicamente pode completar a série das condições reconduzidas aos seus fundamentos. Ora, este é o caminho natural que toma toda razão humana - mesmo a mais comum - se bem que nem todas perseverem nele. Ela não começa a partir de conceitos, mas da experiência comum e toma, portanto, como fundamento algo existente. Esse terreno, todavia, se afunda quando não repousa sobre a rocha imóvel do absolutamente necessário. Esta própria rocha também vacila sem apoio se fora e abaixo dela há espaço vazio e se ela mesma não preenche tudo e não deixa assim mais nenhum lugar para o porquê, isto é, se não é infinita quanto à realidade. Se alguma coisa - seja qual for - existe, tem que admitir-se também que alguma coisa existe necessariamente. Com efeito, o contingente existe somente sob a condição de outra coisa como sua causa; com respeito a esta a validade da inferência prolonga-se até uma causa que não é contingente e que precisamente por isso existe necessariamente e sem condição. Sobre este argumento a razão funda o seu progresso até o ente originário: Ora, a razão procura o conceito de um ente, que convenha a tal preeminência da existência como o da necessidade incondicionada, não tanto para então inferir a priori do conceito de um tal ente a sua existência (pois, se se atrevesse a isso, deveria em geral investigar somente com simples conceitos e não teria necessidade de tomar como fundamento uma existência dada), mas somente para entre todos os conceitos de coisas possíveis encontrar aquele que não contém em si nada conflitante com a necessidade absoluta. Com efeito, que alguma coisa tenha de existir de modo absolutamente necessário, ela já após a primeira inferência considera-o como certo. Ora, se a razão pode suprimir tudo o que não se coaduna com essa necessidade, com exceção de uma coisa só, então se trata aqui do ente absolutamente necessário, não importando se se pode conceber a sua necessidade, isto é inferi-la unicamente a partir do seu conceito, ou não. Ora, aquilo cujo conceito contém em si a resposta para todo o porquê, que não é defeituoso em nenhuma parte e sob nenhum ponto de vista e que vale como condição por toda parte, precisamente por isso parece ser o ente mais adequado à necessidade absoluta, porque possuindo todas as condições para todo o possível não precisa de nenhuma condição, antes, não é apto a qualquer uma e, em consequência disso, satisfaz ao conceito da necessidade incondicionada pelo menos em um ponto, em que nenhum outro conceito pode imitá-lo. Este, por ser defeituoso e carente de complementação, não manifesta tal caráter de independência de todas as condições ulteriores. É verdade que disso não se pode ainda deduzir com segurança que o que não contém em si a condição suprema e completa sob todos os pontos de vista tenha que ser condicionado em sua existência; em todo o caso, não possui em si o único sinal característico da existência incondicionada, do qual a razão dispõe para mediante um conceito a priori conhecer em ente qualquer como incondicionado. Entre todos os conceitos de coisas possíveis, o conceito de um ente dotado da realidade suprema adaptar-se-ia maximamente ao conceito de um ente incondicionadamente necessário; e se ele tampouco satisfaz inteiramente a este conceito, não possuímos outra escolha, mas nos vemos obrigados a ater-nos a ele, porque não podemos lançar ao vento a existência de um ente necessário; mas, se a admitirmos, contudo, não podemos encontrar no campo inteiro da possibilidade algo que pudesse reivindicar mais fundamentalmente tal prerrogativa à existência. Tal é, pois, o caminho natural da razão humana. Primeiramente ela se convence da existência de um ente necessário qualquer. Neste ela reconhece uma existência incondicionada. A seguir procura o conceito do que é independente de toda condição, e encontra-o naquilo que é a condição suficiente de todas as outras coisas, isto é, contém toda a realidade. Mas o todo sem barreiras é unidade absoluta e comporta o conceito de um ente único, a saber, do ente supremo; e assim a razão conclui que o ente supremo enquanto fundamento originário de todas as coisas existe de modo absolutamente necessário. Não se pode contestar a esse conceito certa fundamentalidade, quando se trata de resoluções, a saber, quando se admite a existência de qualquer ente necessário se está de acordo que se tem de tomar o próprio partido, onde quer que se pretenda pô-lo. Em tal caso, com efeito, não se pode escolher de modo mais conveniente ou, antes, não se possui nenhuma escolha, mas se é constrangido a dar o próprio voto à unidade absoluta da realidade completa enquanto fonte originária da possibilidade. Porém, se nada nos impele a tomar uma resolução e preferimos deixar toda esta questão em suspenso até que sejamos coagidos ao assentimento pelo inteiro peso dos argumentos, isto é, se se trata meramente da avaliação do quanto sabemos sobre esse problema e do que somente nos vangloriamos de saber, então a conclusão acima está longe de aparecer-nos sob uma dimensão tão vantajosa e tem necessidade de certa benevolência para substituir a deficiência da sua reivindicação de legitimidade. Com efeito, se considerarmos bom tudo o que temos aqui diante de nós, a saber, em primeiro lugar, que a partir de qualquer existência dada (mesmo que fosse simplesmente da minha própria) realiza-se uma correta inferência da existência de um ente incondicionadamente necessário; em segundo lugar, que tenho de considerar como absolutamente incondicionado um ente que possui toda a realidade e por conseguinte também todas as condições; consequentemente, que deste modo é encontrado o conceito da coisa que convém à necessidade absoluta: então não se pode absolutamente concluir daí que o conceito de um ente limitado - que não possui a realidade suprema - contradiga por isso necessidade absoluta. Pois, conquanto no seu conceito eu não encontre o incondicionado, que importa a totalidade das condições, disso absolutamente não pode resultar que a sua existência tenha de ser por isso incondicionada. Do mesmo modo em um silogismo hipotético não posso dizer: onde não há certa condição (a saber, aqui a completude segundo conceitos), tampouco há o condicionado. Antes, estaremos livres para considerar todos os restantes entes limitados igualmente como incondicionalmente necessários, conquanto não possamos inferir a sua necessidade a partir do conceito universal que temos deles. Deste modo, porém, o referido argumento não nos teria proporcionado o mínimo conceito das propriedades de um ente necessário nem contribuído absolutamente para nada. Apesar disso, tal argumento mantêm certa relevância e uma reputação que não lhe pode ser imediatamente tirada por causa dessa insuficiência objetiva. Suponde, com efeito, que na ideia da razão haja obrigações totalmente corretas, mas carentes de toda a realidade na sua aplicação a nós mesmos, isto é, carentes de motivação quando não se pressupõe um ente que possa dar eficácia e força às leis práticas; então teremos uma obrigação de seguir os conceitos que, conquanto não possam ser objetivamente suficientes, todavia, segundo o critério da nossa razão são preponderantes, não conhecendo nós em confronto com eles nada melhor e mais convincente. O dever de escolher abalaria o caráter inconcluso da especulação mediante um acréscimo prático; antes, a razão não encontraria nela, que é o juiz mais indulgente, nenhuma justificação se, perseguida por motivos urgentes e apesar do conhecimento defeituoso, não tivesse seguido essas razões do seu juízo, acima das quais pelo menos não conhecemos nenhum melhor. Este argumento, embora realmente transcendental enquanto repousa sobre a insuficiência interna do contingente, é, todavia tão simplório e natural que se adapta ao mais comum senso humano, bastando que seja uma só vez conduzido a ele. Nós vemos coisas transformarem-se, surgirem e perecerem; por isso elas, ou pelo menos o seu estado, têm de ter uma causa. A mesma questão repete-se com respeito a toda coisa que alguma vez possa ser dada na experiência. Ora, para onde mais acertadamente devemos trasladar a causalidade superior senão para lá onde a causalidade suprema também se encontra, isto é, para aquele ente que contém originalmente em si o que é suficiente para o efeito possível e cujo conceito muito facilmente emerge do único traço de uma perfeição que tudo abrange. Tomamos, pois, a causa suprema por absolutamente necessária, porque consideramos absolutamente necessário ascender até ela e não encontramos nenhuma razão para ainda ultrapassá-la. Por isso em todos os povos vemos o seu mais cego politeísmo ser perpassado por algumas centelhas de monoteísmo, ao qual conduziu não a reflexão e profunda especulação, mas um caminho natural - tornado passo a passo compreensível - do entendimento comum. Há somente três espécies possíveis de provas da existência de Deus a partir da razão especulativa Todos os caminhos que com este objetivo se queiram empreender ou começam com a experiência determinada e com o modo de ser do nosso mundo dos sentidos conhecido através dela, daí ascendendo segundo leis da causalidade até a causa suprema fora do mundo; ou põem empiricamente como fundamento somente uma experiência indeterminada, isto é, uma existência qualquer; ou, finalmente, abstraem de toda a experiência e de modo totalmente a priori inferem de simples conceitos a existência de uma causa suprema. A primeira prova é a Físico-teológica, a segunda é a cosmológica e a terceira é a ontológica. Não há nem pode haver um número maior de provas. Provarei que a razão trabalha em vão tanto numa direção (a empírica) como em outra (a transcendental), e que ela inutilmente abre as suas asas para mediante a simples força da especulação ultrapassar o mundo dos sentidos. A ordem em que esses modos de prova têm de ser apresentados para exame será exatamente a inversa daquela adotada pela razão que se amplia passo a passo e também daquela em que os colocamos inicialmente. Com efeito, se evidenciará que, conquanto experiência o primeiro ensejo a tal, ainda assim é simplesmente o conceito transcendental que dirige a razão nessa sua aspiração, e que nessas tentativas todas delimita o objetivo que ela se propôs. Portanto, começarei pelo exame da prova transcendental, e depois verei com o que o acréscimo do empírico pode contribuir para aumentar sua força demonstrativa. SEÇÃO QUARTA DO CAPÍTULO TERCEIRO DA IMPOSSIBILIDADE DE UMA PROVA ONTOLÓGICA DA EXISTÊNCIA DE DEUS Do que ficou dito até aqui se vê facilmente que o conceito de um ente absolutamente necessário é um conceito da razão pura, isto é, uma simples ideia cuja realidade objetiva nem de longe está ainda provada pelo fato da razão necessitar dela. Tal ideia, aliás, fornece só uma indicação sobre certa completude, se bem que inalcançável, e serve propriamente mais para limitar o entendimento que para estendê-lo a novos objetos. Ora, aqui se encontra o estranho e absurdo de que parece urgente e correto inferir uma existência absolutamente necessária qualquer a partir de uma existência dada em geral, e que não obstante temos contra nós todas as condições do entendimento para nos formarmos um conceito de tal necessidade. Em todos os tempos falou-se do ente absolutamente necessário, e não se teve o mesmo empenho em compreender se e como uma coisa dessa espécie pode sequer ser pensada quanto em provar a sua existência. Ora, em verdade uma explicação terminológica desse conceito é muito fácil, a saber, refere-se a algo cujo não ser é impossível. Mas nem por isso nos tomamos mais prudentes com respeito às condições que tomam impossível considerar o não ser de uma coisa como simplesmente impensável e que são propriamente o que se quer saber, ou seja, se mediante esse conceito pensamos de algum modo alguma coisa ou não. Com efeito, mediante a palavra incondicionado lançar fora todas as condições que o entendimento sempre necessita para considerar algo necessário nem de longe me torna compreensível se mediante o conceito de um incondicionadamente necessário ainda penso alguma coisa, ou se talvez não penso absolutamente nada. Mais ainda, acreditou-se explicar esse conceito, arriscado ao simples acaso e finalmente tornado inteiramente familiar, mediante uma porção de exemplos, de modo que toda a informação ulterior sobre a sua compreensibilidade pareceu totalmente supérflua. Toda a proposição da Geometria, por exemplo, que um triângulo tem três ângulos é absolutamente necessária; e assim se falou de um objeto que se encontra totalmente fora da esfera do nosso entendimento, como se se compreendesse perfeitamente o que se quer dizer com o seu conceito. Todos os pretensos exemplos foram sem exceção tirados só de juízos, e não de coisas e de sua existência. A necessidade incondicionada dos juízos, porém, não é uma necessidade absoluta das coisas. Com efeito, a necessidade absoluta do juízo é apenas uma necessidade condicionada da coisa, ou do predicado no juízo. A proposição anterior não disse que três ângulos são absolutamente necessários, mas que, sob a condição de existir (ser dado) um triângulo, também existem necessariamente três ângulos (nele). No entanto, essa necessidade lógica demonstrou tão grande poder de ilusão que em decorrência, ao se formar um conceito a priori de uma coisa posto de tal modo que segundo a opinião corrente compreendia em seu âmbito também a existência, acreditou-se poder seguramente inferir disso que, visto a existência ser necessariamente inerente ao objeto desse conceito, isto é, sob a condição de eu pôr tal coisa como dada (existente), também sua existência é posta necessariamente (segundo a regra da identidade), e que esse ente é por isso ele mesmo absolutamente necessário porque a sua existência é pensada junto com um conceito admitido a bel-prazer e sob a condição de que eu ponha o seu objeto. Se num juízo idêntico suprimo o predicado e conservo o sujeito, surge uma contradição, e por isso digo: aquele é necessariamente atribuído a este. Mas se junto com o predicado suprimo o sujeito, não surge contradição alguma, pois não há mais nada que possa ser contradito. Contraditório é pôr um triângulo e não obstante suprimir os seus três ângulos; mas não constitui contradição alguma suprimir o triângulo junto com os seus três ângulos. Exatamente assim ocorre com o conceito de um ente absolutamente necessário. Se suprimis a sua existência, suprimis a própria coisa com todos os seus predicados. Donde deve então derivar a contradição? Externamente não há o que ser contradito, pois a coisa não deve ser externamente necessária; e internamente também não, pois pela supressão da própria coisa suprimistes ao mesmo tempo todo o interno. Deus é onipotente: eis um juízo necessário. A onipotência não pode ser supressa se pondes uma divindade, isto é, um ente infinito, com cujo conceito aquele é idêntico. Se, porém, dizeis que Deus não é, então não são dados nem a onipotência nem qualquer outro dos seus predicados, pois todos são supressos junto com o sujeito, nesse pensamento não se mostrando nem a mínima contradição. Portanto, vistes que, se suprimo o predicado de um juízo junto com o sujeito, jamais poderá surgir uma contradição interna, seja qual for o predicado. Ora, não vos resta nenhuma escapatória do que ter que dizer: há sujeitos que não podem absolutamente ser supressos, que portanto têm que permanecer. Mas isto equivaleria dizer: há sujeitos absolutamente necessários, aliás, um pressuposto sobre cuja correção duvidei e cuja possibilidade queríeis mostrar-me. Com efeito, não posso formar o mínimo conceito de uma coisa que, se supressa com todos os seus predicados, deixasse uma contradição. E sem a contradição, mediante simples conceitos puros a priori, não possuo nota alguma da impossibilidade. Contara todas essas inferências universais (às quais nenhum homem pode recusar-se), desafiais-me com um caso que apresentais como uma prova pela ação, ou seja, de que não obstante há um conceito, e na verdade só este único, em que o não ser ou a supressão de um objeto seja em si mesma contraditória, e este é o conceito de ente realíssimo. Dizeis que possui toda a realidade e que estais autorizados a admitir tal ente como possível (com o que por enquanto consinto, se bem que o conceito em si não contraditório nem de longe prove a possibilidade do objeto). (O conceito é sempre possível se não se contradiz. Esta é a nota lógica da possibilidade, e por ela o seu objeto distingue-se do nihil negativum. Mas não deixa menos de ser um conceito vazio se não for particularmente demonstrada a realidade objetiva da síntese pela qual o conceito é produzido. Mas como se mostrou acima, isto repousa sempre sobre princípios da experiência possível, e não sobre o princípio da análise (o princípio de contradição). Esta é uma advertência para que da possibilidade dos conceitos (lógica) não se infira logo a possibilidade das coisas (real). Nota do Autor.) Ora, entre toda a realidade está também compreendida a existência; logo, a existência também jaz no conceito de um possível. Se ora essa coisa é supressa, também é supressa a possibilidade interna da coisa, o que é contraditório. Eu respondo: cometestes já uma contradição ao introduzirdes no conceito de uma coisa, que queríeis pensar unicamente segundo a sua possibilidade, seja sob que nome oculto for, o conceito da sua existência. Se se vos concedes isso, aparentemente vencestes o jogo, mas de fato não dissestes nada, pois cometestes uma simples tautologia. Faço-vos uma pergunta sobre a seguinte proposição: esta ou aquela coisa (que vos concedo como possível, seja qual for) existe. Esta proposição é analítica ou sintética? Se analítica, então mediante a existência da coisa não acrescentais nada ao vosso pensamento da mesma. Em tal caso, porém, ou o pensamento que está em vós teria que ser a própria coisa ou pressupusestes uma existência como pertencente à possibilidade, e então inferistes a existência pretensamente da possibilidade interna, o que não passa de uma tautologia miserável. A palavra realidade, que no conceito de coisa soa diversamente, não tem relevância alguma como existência no conceito do predicado. Com efeito, se chamais a toda a posição (sem determinar o que pondes) de realidade, então já pusestes e admitistes como efetivamente real, no conceito do sujeito, a coisa com todos os seus predicados, e no predicado só o repetis. Se ao contrário confessais, como com justiça tem que o fazer todo ente racional, que toda proposição existencial é sintética, como quereis pois afirmar que o predicado da existência pode ser supresso sem contradição? Esta prerrogativa convém propriamente apenas à proposição analítica, cujo caráter se funda precisamente nisso. Na verdade, sem rodeio algum mediante uma determinação exata do conceito de existência eu esperaria reduzir a nada essa argúcia sutil se não tivesse descoberto que a ilusão de confundir um predicado lógico com um real (isto é, da determinação de uma coisa) recusa quase todo o ensinamento. Ao predicado lógico pode servir tudo o que se quiser, até o sujeito pode ser predicado se si mesmo, pois a lógica abstrai de todo o conteúdo. Mas a determinação é um predicado acrescido ao conceito do sujeito e o amplia. Portanto, não tem que estar já contida nele. Ser evidentemente não é um predicado real, isto é, um conceito de qualquer coisa que possa ser acrescido ao conceito de outra coisa. É simplesmente a posição de uma coisa, ou de certas determinações em si mesmas. No uso lógico, é unicamente a cópula de um juízo. A proposição: Deus é onipotente, contém dois conceitos que possuem os seus objetos: Deus e onipotência. De mais a mais, a partícula é não é ainda um predicado, mas só aquilo que põe o predicado com referência ao sujeito. Ora, se tomo o sujeito (Deus) junto com todos os seus predicados (entre os quais se inclui também a onipotência) e digo que Deus é ou que há um Deus, então não ponho um predicado novo para o conceito de Deus, mas apenas o sujeito em si mesmo como todos os seus predicados, e na verdade ponho o objeto em referência ao meu conceito. Ambos têm que conter exatamente a mesma coisa, e por isso ao conceito, que expressa meramente a possibilidade, não pode ser acrescido mais nada pelo fato de eu pensar o seu objeto como absolutamente dado (mediante a expressão: ele é). E assim o real nada mais contém que o simplesmente possível. Cem táleres reais nada mais contêm que cem táleres possíveis. Com efeito, visto que estes significam o conceito, aqueles porém o objeto e a sua posição em si mesma, no caso de este conter mais que aquele o meu conceito não representaria o objeto inteiro, e, por conseguinte, também não seria o seu conceito adequado. Mas para o estado das minhas posses há mais em cem táleres reais que no simples conceito deles (isto é, na sua possibilidade). Com efeito, na realidade o objeto não está apenas contido analiticamente no meu conceito, mas é acrescentado sinteticamente ao meu conceito (que é uma determinação do meu estado) sem que mediante esse ser fora do meu conceito os próprios cem táleres pensados sejam aumentados um pouco sequer. Portanto, quando penso uma coisa, seja mediante que ou quantos predicados for (mesmo na determinação completa), o fato de eu ainda acrescentar que essa coisa é não acrescenta nem um pouquinho à coisa. Do contrário, nela existiria não precisamente o mesmo tanto, porém mais do que eu pensara no conceito, e eu não poderia dizer que existe precisamente o objeto do meu conceito. Se numa coisa chego a pensar toda a realidade com exceção de uma só, então do fato de eu dizer que tal coisa defeituosa existe resulta que a realidade em falta não é acrescentada, mas que existe precisamente enquanto portadora da mesma falta com que a pensei; do contrário, existiria algo diverso do que pensei. Ora, se penso um ente como a realidade suprema (sem defeito), então permanece ainda sempre a questão se ele existe ou não. Com efeito, se bem que no meu conceito do possível conteúdo real de uma coisa em geral não falte nada, entretanto na relação com o estado total do meu pensamento falta algo, ou seja, que o conhecimento daquele objeto também seja possível a posteriori. E aqui se manifesta também a causa da dificuldade atual. Se se tratasse de um objeto dos sentidos, eu não confundiria a existência da coisa com o seu simples conceito. Com efeito, através do conceito o objeto é pensado como adequado somente às condições universais de uma experiência empírica possível; através da existência, porém, é pensado como contido no contexto da experiência total; mas se o conceito do objeto não é nem um pouco aumentado pela conexão com o conteúdo da experiência total, mediante este o nosso pensamento não obstante obtém uma percepção possível a mais. Ao contrário, se quisermos pensar a existência unicamente através da categoria pura, então não constitui milagre algum o fato de não podermos indicar nenhuma nota que a distinga da simples possibilidade. Nosso conceito de um objeto pode pois conter o que e o quanto quiser, mas para conferir-lhe a existência precisamos de qualquer maneira sair dele. Com os objetos dos sentidos, isto acontece mediante a interconexão com qualquer uma das minhas percepções segundo leis empíricas. Mas para conhecer a existência dos objetos do pensamento puro, não há meio algum, pois teria que ser conhecida totalmente a priori, ao passo que nossa consciência de toda a existência (quer imediatamente através de percepção ou através de inferências que conectam algo à percepção) pertence total e inteiramente à unidade da experiência; é claro que uma existência fora deste campo não pode absolutamente ser declarada impossível, mas é uma pressuposição que não podemos justificar mediante coisa alguma. O conceito de um ente supremo é uma ideia útil sob muitos pontos de vista. Mas pelo fato de ser simplesmente ideia, é por si só totalmente incapaz de ampliar o nosso conhecimento com respeito ao que existe. Não consegue sequer instruir-nos acerca da possibilidade de uma pluralidade de coisas. Claro que não se pode negar a tal conceito o caráter analítico da possibilidade, que consiste no fato de simples posições (realidades) não gerarem contradição alguma. Todavia, a conexão de todas as propriedades reais numa coisa constitui uma síntese sobre cuja possibilidade não podemos julgar a priori, pois as realidades não nos são especificamente dadas; e mesmo que isto acontecesse, de modo algum se verifica aí um juízo, porque a nota da possibilidade de conhecimentos sintéticos sempre tem que ser procurada só na experiência, à qual, porém, não pode pertencer o objeto de uma ideia. Em virtude disso, o renomado Leibniz nem de longe teve o êxito de que se vangloriou, ou seja, de pretender conhecer a priori a possibilidade de um ente tão sublime. Todo esforço e trabalho empregados no tão célebre argumento ontológico (cartesiano) com respeito à existência de Deus a partir de conceitos foram portanto perdidos, e um homem tornar-se-ia mais rico de conhecimentos com base em simples ideias tampouco quanto um negociante enriqueceria se, para melhorar o seu estado, quisesse ajuntar alguns zeros ao seu dinheiro em caixa. SEÇÃO QUINTA DO CAPÍTULO TERCEIRO DA IMPOSSIBILIDADE DE UMA PROVA COSMOLÓGICA DA EXISTÊNCIA DE DEUS Tratava-se de algo totalmente inatural e de uma simples inovação da sutileza de escola, de uma ideia projetada de modo totalmente arbitrário querer tirar a existência do objeto a ela correspondente. De fato, não se teria jamais tentado tomar esse caminho se não o tivesse precedido a necessidade da nossa razão admitir, para a existência em geral, algo necessário (no qual pudéssemos deter-nos na ascensão) e se a razão, visto esta necessidade ter que ser incondicionada e certa a priori, não tivesse sido constrangida a procurar um conceito que na medida do possível satisfizesse tal exigência e desse a conhecer uma existência de modo inteiramente a priori. Ora, acreditou-se encontrar tal conceito na ideia de um ente realíssimo, e deste modo foi usada só para o conhecimento mais determinado daquilo acerca do qual já se estava de outro modo convencido ou persuadido que tinha que existir, a saber, de um ente necessário. Entretanto, dissimulou-se esse caminho natural da razão e, ao invés de terminar nesse conceito, tentou-se iniciar por ele para dele derivar a necessidade da existência que, todavia, estava destinado só a completar. Ora, disso emergiu a malograda prova ontológica, que não apresentava algo satisfatório nem para o são e natural entendimento nem para o exame segundo as exigências acadêmicas. A prova cosmológica, que queremos investigar agora, mantém a conexão da necessidade absoluta com a realidade suprema. Mas ao invés de, como na prova anterior, concluir da realidade suprema à necessidade na existência, conclui antes da necessidade incondicionada de algum ente qualquer, dada previamente, à sua realidade ilimitada. Assim, essa prova conduz tudo pelos trilhos de certo modo de inferir, não sei se racional ou racionalizante, mas pelo menos natural, que alcança a máxima persuasão não só perante o entendimento comum, mas também perante o especulativo. Esse modo de inferir traça ainda de maneira evidente as primeiras linhas fundamentais de todas as provas da teologia natural, as quais sempre foram seguidas e sê-lo-ão também sempre no futuro, seja de que maneira se queira adorná-las e ocultá-las com arabescos e folhagens. Queremos agora pôr ante os olhos e submeter a escrutínio essa prova que Leibniz também chamou a contingentia mundi. Soa assim: se algo existe, também tem que existir um ente absolutamente necessário. Ora, pelo menos eu existo. Logo, existe um ente absolutamente necessário. A premissa menor contém uma experiência, a premissa maior a conclusão da existência do necessário a partir de uma experiência em geral. (Esta conclusão é demasiado conhecida para se necessitar expô-la aqui pormenorizadamente. Baseia-se na lei natural da causalidade supostamente transcendental, de que todo o contingente tem que ter a sua causa que, quando contingente, também tem que possuir por sua vez uma causa, até que a série das causas subordinadas umas às outras termine forçosamente numa causa absolutamente necessária, sem a qual a série não possuiria completude alguma. Nota do Autor.) Portanto, a prova começa propriamente com a experiência, por conseguinte, não procede totalmente a priori ou ontologicamente, e visto que o objeto de toda a experiência possível denomina-se mundo, a prova é denominada cosmológica. Já que também abstrai de todas as propriedades particulares dos objetos da experiência pelas quais este mundo pode se distinguir de todo mundo possível, é então já em sua denominação distinta da prova físico-teológica, que requer como argumentos observações sobre a natureza particular deste nosso mundo dos sentidos. Ora, a prova infere ulteriormente que o ente necessário só pode ser determinado de um único modo, isto é, através de um só de todos os predicados contrapostos possíveis; consequentemente, tem que ser determinado completamente pelo seu conceito. Ora, só é possível um único conceito de uma coisa que a determine a priori e completamente, a saber, o de ens realissimum. Logo, o conceito do ente realíssimo é o único pelo qual um ente necessário pode ser pensado, isto é, existe necessariamente um ente supremo. Neste argumento cosmológico juntam-se tantos princípios racionalizantes que a razão especulativa parece ter nele empregado toda a sua arte dialética para levar a efeito a maior ilusão transcendental possível. Queremos, todavia, deixar o seu exame de lado por algum tempo, apenas para tomar manifesta uma astúcia com a qual propõe um argumento antigo sob as vestes de um novo e recorre ao consenso de dois testemunhos, a saber, de um testemunho puro da razão e de outro confirmado empiricamente, visto que apenas o primeiro muda sua vestimenta e sua voz para ser tomado pelo segundo. Para assentar a sua base de modo verdadeiramente seguro, a prova em questão funda-se sobre a experiência e assim assume ares de diverso da prova ontológica, que deposita a sua inteira confiança em meros conceitos puros a priori. A prova cosmológica, entretanto, serve-se dessa experiência para dar um único passo, ou seja, até a existência de um ente necessário em geral. O argumento empírico não pode ensinar que propriedades este ente possui. Em virtude disso, a razão despede-se inteiramente dele e perquire, por detrás de meros conceitos, que propriedades tem que possuir um ente absolutamente necessário em geral, isto é, qual dentre as coisas possíveis contém as condições requeridas (requesita) para uma necessidade absoluta. Ora, a razão crê encontrar esses requisitos unicamente no conceito de um ente realíssimo, e conclui então: tal ente é o ente absolutamente necessário. É claro, todavia, que com isso se pressupõe que o conceito de um ente dotado da realidade suprema satisfaça inteiramente o conceito da necessidade absoluta na existência, isto é, que daquele se possa inferir este. Esta é uma proposição que foi defendida pelo argumento ontológico, que, portanto, é assumida e posta como fundamento pela prova cosmológica, o que, aliás, se quisera evitar. Com efeito, a necessidade absoluta é uma existência a partir de simples conceitos. Portanto, se digo que o conceito do ens realissimum é o único próprio e adequado à existência necessária, então tenho que conceder também que esta pode ser inferida dele. Portanto, é propriamente só a prova ontológica a partir de puros conceitos que contém toda a força demonstrativa na assim chamada prova cosmológica, e a pretensa experiência é totalmente inútil, e talvez podendo nos conduzir ao conceito da necessidade absoluta, mas é totalmente inútil para demonstrar a mesma em alguma coisa determinada. Com efeito, tão logo tenhamos tal objetivo, temos que abandonar logo toda a experiência e procurar, dentre conceitos puros, qual deles contém as condições da possibilidade de um ente absolutamente necessário. Mas se desta maneira é compreendida só a possibilidade de tal ente, então também está demonstrada a sua existência. De fato, isso equivale a dizer que dentre todo o possível há um único que traz consigo uma necessidade absoluta, isto é, que tal ente existe de modo absolutamente necessário. Todas as inferências sofísticas descobrem-se da maneira mais fácil quando postas escolasticamente ante os olhos. Segue-se aqui uma exposição desse tipo. Se é correta a proposição de que todo ente absolutamente necessário é ao mesmo tempo o ente realíssimo (e isto constitui o nervus probandi da prova cosmológica) como todos os juízos afirmativos ela tem então que permitir a conversão pelo menos per accidens; logo, alguns dentre os entes realíssimos são ao mesmo tempo absolutamente necessários. Na verdade, porém, um ens realissimum não se distingue de outro em nenhuma de suas partes, e o que vale para alguns entes contidos sob esses conceitos também vale para todos. Por conseguinte, poderei também (neste caso) simplesmente converter a proposição, isto é, todo ente mais real dentre todos é um ente necessário. Ora, visto que esta proposição é determinada a priori meramente a partir de seus conceitos, o simples conceito do ente mais real precisa implicar também a necessidade absoluta do mesmo. Precisamente isto foi afirmado pela prova ontológica e não quis ser reconhecido pela cosmológica, conquanto esta o pusesse, embora ocultamente, à base das suas inferências. Deste modo, com efeito, o segundo caminho seguido pela razão especulativa para provar a existência do ente supremo é não só tão enganoso quanto o primeiro, mas além disso ainda possui de censurável o fato de cometer uma ignoratio elenchi na medida em que, prometendo guiar-nos por um novo caminho, após uma breve volta nos reconduz ao caminho antigo que abandonáramos por sua causa. Eu disse pouco atrás que nesse argumento cosmológico ocultava-se todo um ninho de presunções dialéticas que a crítica transcendental podia facilmente descobrir e destruir. Quero agora só mencioná-las, deixando ao hábil leitor a tarefa de continuar rastreando e suprimir os princípios enganosos. Entre esses efetivamente se encontram, por exemplo: 1) o princípio transcendental de inferir do contingente a uma causa, que possui significação apenas no mundo sensível e fora do qual não tem sentido algum. Com efeito, o simples conceito intelectual de contingente não pode de modo algum produzir uma proposição sintética, como o faz o conceito de causalidade, não possuindo o princípio desta última absolutamente nenhuma significação e nenhum sinal característico do seu uso, a não ser no mundo dos sentidos; aqui, porém, deveria prestar-se precisamente para ultrapassar o mundo dos sentidos. 2) O princípio) de, a partir da impossibilidade de uma série infinita de causas dadas como sobrepostas uma à outra no mundo dos sentidos, inferir uma causa primeira, para o que não nos autorizam os princípios do próprio uso da razão na experiência e muito menos podem estender tal princípio acima desta (até onde essa série não pode absolutamente ser prolongada). 3) A falsa auto-satisfação da razão com respeito à completude dessa série pelo fato de finalmente se eliminar toda a condição, sem a qual, todavia, não pode haver conceito algum de necessidade; e visto que em tal caso não se pode compreender mais nada, toma-se isto por um pleno acabamento do seu conceito. 4) Confundir a possibilidade lógica de um conceito de toda a realidade reunida (sem contradição interna) com a sua possibilidade transcendental, que necessita de um princípio da factibilidade de uma tal síntese, o qual por sua vez só pode referir-se ao campo de experiências possíveis, e assim por diante. O artifício da prova cosmológica visa apenas tentar esquivar-se da prova a priori, mediante simples conceitos, da existência de um ente necessário; tal prova teria que ser conduzida de modo ontológico, mas nos sentimos totalmente incapazes para tanto. Com esse objetivo, de uma existência real (de uma experiência em geral) subjacente inferimos, da melhor maneira possível, alguma condição absolutamente necessária dessa existência. Em tal caso não precisamos explicar a sua possibilidade, pois se foi provado que ela existe, a pergunta por sua possibilidade torna-se totalmente supérflua. Ora, se queremos determinar mais de perto a natureza desse ente necessário, então não procuramos aquilo que é suficiente para compreender a necessidade da existência a partir do conceito de tal ente. Se pudéssemos fazer isso, não necessitaríamos de nenhum pressuposto empírico. Ao contrário, procuramos apenas a condição negativa (conditio sine qua non) sem a qual um ente não seria necessário de modo absoluto. Ora, isso seria válido em qualquer outro modo de, a partir de uma consequência dada, inferir o seu fundamento. Mas aqui ocorre infelizmente que a condição requerida para a necessidade absoluta pode encontrar-se só num único ente, que, por conseguinte, teria que conter em seu conceito tudo o que é preciso para a necessidade absoluta e que, portanto, torna possível inferi-la a priori. Isto é, eu também deveria poder inferir inversamente que aquilo ao qual se refere este conceito (da realidade suprema) é absolutamente necessário. Se não posso fazer esta espécie de inferência (o que devo, aliás, confessar se quero evitar a prova ontológica), então fracassei no meu novo caminho e encontro-me de novo lá de onde parti. O conceito de ente supremo satisfaz certamente a todas as questões a priori que podem ser levantadas com respeito às determinações internas de uma coisa e por isso é também um ideal ímpar, visto que o conceito universal o destaca, dentre todas as coisas possíveis, como um indivíduo. Tal conceito, entretanto, não satisfaz de modo algum a questão quanto à existência própria de tal ente, coisa unicamente da qual se tratava; e à inquirição daquele que admitiu a existência de um ente necessário e queria saber só qual dentre todas as coisas tem que ser considerada como tal, não se pôde responder: este aqui é o ente necessário. Para facilitar à razão a sua procura da unidade de fundamentos explicativos talvez seja lícito admitir a existência de um ente sumamente suficiente como causa de todos os efeitos possíveis. Todavia, tomar a liberdade de até dizer que tal ente existe necessariamente, não é mais a modesta exteriorização de uma hipótese lícita, mas a atrevida presunção de uma certeza apodítica. Com efeito, o conhecimento daquilo que se pretende conhecer de modo absolutamente necessário também tem que implicar a necessidade absoluta. Todo o problema do ideal transcendental consiste em encontrar ou um conceito para a necessidade absoluta ou a necessidade absoluta para o conceito de uma coisa qualquer. Se se pode uma coisa, tem que se poder também a outra, pois a razão reconhece como absolutamente necessário só aquilo que é necessário a partir do seu conceito. Mas ambas as coisas transcendem completamente todas as extremas aspirações de nesse ponto satisfazer o nosso entendimento, bem como todas as tentativas de apazigua-lo por essa sua incapacidade. A necessidade incondicionada, que tão imprescindivelmente necessitamos como suporte último de todas as coisas, é o verdadeiro abismo para a razão humana. Mesmo a eternidade, por mais terrivelmente sublime que um Haller a descreva, nem de longe produz idêntica impressão de vertigem na mente, pois só mede a duração das coisas, mas não as porta. Não podemos nem evitar nem tampouco suportar o pensamento de que um ente, que nós representamos também como o supremo de todos os possíveis, por assim dizer, expresse a si próprio: eu sou de eternidade a eternidade, fora de mim não há nada senão aquilo que é algo apenas por minha vontade; mas de onde sou então? Aqui tudo se funda sob nossos pés, e tanto a máxima quanto a mínima perfeição pairam sem apoio simplesmente diante da razão especulativa, à qual não custa nada fazer desaparecer, sem o menor empecilho, tanto uma como a outra. Muitas forças da natureza que externam sua existência mediante certos efeitos permanecem-nos inescrutáveis, pois não podemos segui-las suficientemente longe pela observação. O objeto transcendental subjacente aos fenômenos, e com ele o fundamento pelo qual a nossa sensibilidade possui esta condição suprema ao invés de outras, são e permanecem para nós inescrutáveis, conquanto a coisa mesma seja de resto dada, mas apenas não compreendida. Um ideal da razão pura não pode, entretanto, chamar-se inescrutável, pois não pode apresentar ulteriormente nenhum atestado da sua realidade senão a necessidade da razão de, mediante esse ideal, realizar plenamente a sua unidade sintética. Visto, pois, que não foi jamais dado sequer como objeto pensável, tampouco é inescrutável como tal; como simples ideia, tem antes que encontrar a sua sede e solução na natureza da razão, e, portanto, deve poder ser investigado. Com efeito, a razão consiste precisamente no fato de podermos prestar contas de todos os nossos conceitos, opiniões e asserções, quer a partir de fundamentos objetivos quer, quando são simples ilusão, a partir de fundamentos subjetivos. DESCOBERTA E EXPLICAÇÃO DA ILUSÃO DIALÉTICA EM TODAS AS PROVAS TRANSCENDENTAIS DA EXISTÊNCIA DE UM ENTE NECESSÁRIO Ambas as provas até aqui desenvolvidas eram transcendentais, isto é, tentadas independente de princípios empíricos. Com efeito, se bem que a prova cosmológica tome como fundamento uma experiência em geral, não é todavia desenvolvida a partir de alguma disposição qualquer da mesma, mas de princípios puros da razão, com referência a uma existência dada pela consciência empírica em geral, chegando até a abandonar a instrução desta para apoiar-se em meros conceitos puros. Mas qual é, nessas provas transcendentais, a causa da ilusão dialética mas natural que conecta os conceitos de necessidade e realidade suprema? E o que realiza e hipostasia aquilo que, não obstante, pode ser apenas ideia? Qual a causa que torna inevitável admitir algo dentre as coisas existentes como em si necessário, e de apesar disso recuar diante da existência de tal ente como diante de um abismo? E como chega a razão a entender-se sobre este ponto e alcançar a tranquila compreensão a partir do estado vacilante de uma tímida e sempre novamente revogada aprovação? É sumamente estranho o fato de, quando alguém pressupõe que alguma coisa exista, não poder esquivar-se da consequência de que algo também exista de modo necessário. O argumento cosmológico repousa sobre essa inferência totalmente natural (conquanto nem por isso segura). Ao contrário, seja qual for o conceito que eu admita de uma coisa, vejo que a sua existência jamais pode ser representada por mim como absolutamente necessária e que, exista nela o que se quiser, de nada me impede de pensar o seu não ser; por conseguinte, tenho que admitir algo necessário entre o que existe em geral, mas não posso pensar uma única coisa como necessária em si mesma. Isto significa que jamais posso completar o retrocesso às condições da existência sem admitir um ente necessário, mas que por outro lado jamais posso começar pelo mesmo. Se tenho que pensar algo necessário para as coisas existentes em geral sem estar autorizado a pensar qualquer coisa em si mesma como necessária, disso resulta inevitavelmente que a necessidade e a contingência não precisam dizer respeito às próprias coisas, pois do contrário ocorreria uma contradição; portanto, nenhum desses dois princípios é objetivo, mas ambos podem quando muito ser apenas princípios subjetivos da razão. Por um lado, para tudo o que é dado como existente a fazem procurar algo necessário, isto é, não cessar em parte alguma senão numa explicação completada a priori, e, por outro, jamais esperar esse pleno acabamento, isto é, não admitir nenhuma coisa empírica como incondicionada e mediante tal exceder-se numa derivação mais remota. Em tal significação, ambos os princípios podem perfeitamente coexistir como princípios simplesmente heurísticos e regulativos que não cuidam de nada mais senão do interesse formal da razão. Com efeito, um diz que deveis filosofar sobre a natureza como se para tudo o que pertence à existência houvesse um primeiro fundamento necessário, unicamente para levar unidade sistemática ao vosso conhecimento na medida em que seguis tal ideia, ou seja, um fundamento supremo imaginário: o outro, por sua vez, vos adverte a não tomar determinação alguma concernente à existência das coisas como tal fundamento supremo, isto é, como absolutamente necessária, mas a manter o caminho sempre aberto para uma ulterior derivação e por isso a tratar tal determinação sempre como condicionada. Todavia, se temos que considerar tudo o que percebemos nas coisas como condicionadamente necessário, então nenhuma coisa (que possa ser dada empiricamente) pode ser tomada como absolutamente necessária. Disso segue-se, porém, que tendes que admitir o absolutamente necessário fora do mundo. Com efeito este deve servir apenas como um princípio da máxima unidade possível dos fenômenos e como o seu fundamento supremo; no mundo jamais o atingireis, pois a segunda regra ordena-vos a sempre encarar todas as causas empíricas da unidade como derivadas. Os filósofos da antiguidade encaram toda a forma da natureza como contingente, mas segundo o juízo da razão comum consideram a matéria como originária e necessária. Se não tivessem considerado a matéria como substrato dos fenômenos, mas como em si mesma segundo a sua existência, então a ideia da necessidade absoluta teria imediatamente desaparecido. De fato, não há nada que de modo absoluto vincule a razão a essa existência, mas a razão pode sempre e sem contradição suprimir tal existência pelo pensamento. Mas também a necessidade absoluta residia unicamente no pensamento. Portanto, certo princípio regulativo tinha que subjazer a essa persuasão. Na verdade, também a extensão e a impenetrabilidade (que constituem juntas o conceito de matéria) formam o princípio empírico supremo da unidade dos fenômenos e na medida em que este é empiricamente incondicionado possuem em si uma propriedade de princípio regulativo. Entretanto, visto que toda determinação constitutiva da realidade da matéria, por conseguinte, também a impenetrabilidade, é um efeito (uma ação) que tem que possuir a sua causa e que em virtude disso é sempre derivada, assim a matéria de modo algum se presta para a ideia de um ente necessário enquanto princípio de toda a unidade derivada. Com efeito, cada uma das propriedades reais da matéria, enquanto derivada, é apenas condicionadamente necessária e portanto pode ser em: si suprimida. Em tal caso, porém, a existência total da matéria seria supressa; e se isto não acontecesse, teríamos alcançado empiricamente o fundamento supremo da unidade, o que é proibido pelo segundo princípio regulativo. Disso resulta que a matéria, e em geral tudo o que pertence ao mundo, não se adapta à ideia de um ente necessário e originário como simples princípio da máxima unidade empírica, mas que aquele tem que ser posto fora do mundo, já que sempre podemos sem maiores preocupações derivar os fenômenos do mundo e a sua existência de outros fenômenos como se não houvesse nenhum ente necessário, e não obstante podemos aspirar incessantemente alcançar a completude da derivação como se fosse pressuposta como um fundamento supremo. De acordo com essas considerações, o ideal do ente supremo não é mais que um princípio regulativo da razão para considerar toda a ligação no mundo tal como se surgisse da causa necessária mais suficiente de todas, a fim de na explicação dos fenômenos fundar sobre ela a regra de uma unidade sistemática e necessária segundo leis universais, e, portanto, não é uma afirmação de uma existência necessária em si. Todavia, é ao mesmo tempo inevitável representar-se, mediante uma sub-repção transcendental esse princípio formal como constitutivo e pensar hipostaticamente essa unidade. Com efeito, pelo fato de tornar originariamente possíveis todas as figuras que são unicamente diversas limitações suas, embora seja somente um princípio da sensibilidade, o espaço é, não obstante, precisamente por isso considerado um algo absolutamente necessário subsistente por si e um objeto dado a priori e em si mesmo. Do mesmo modo, visto que a unidade sistemática da natureza de maneira alguma pode ser proposta como princípio de uso empírico da nossa razão, a não ser na medida em que lhe ponhamos como fundamento a ideia de um ente realíssimo como causa suprema, acontece de modo totalmente natural que essa ideia e mediante tal representada como um objeto real, e pelo fato de ser a causa suprema este é por sua vez representado como necessário, por conseguinte, que um princípio regulativo é transformado num princípio constitutivo. Esta substituição revela-se pelo fato de, se esse ente supremo que com respeito ao mundo era absolutamente (incondicionadamente) necessário agora considero como coisa por si, tal necessidade não ser capaz de conceito algum, e, portanto, tem que ter sido encontrada em minha razão apenas como condição formal do pensamento, não, porém, como condição material e hipostática da existência. SEÇÃO SEXTA DO CAPÍTULO TERCEIRO DA IMPOSSIBILIDADE DA PROVA FÍSICO-TEOLÓGICA Com efeito, se nem o conceito de coisas em geral nem a experiência de qualquer existência em geral pode realizar aquilo que é requerido, resta ainda um meio para tentar se uma experiência determinada, por conseguinte a experiência das coisas do mundo presente, sua natureza e sua ordem, não fornece um argumento que possa auxiliar-nos seguramente na convicção a respeito da existência de um ente supremo. Chamamos a tal prova de físico-teológica. Se também esta for impossível, então partindo da simples razão especulativa em parte alguma será possível uma prova satisfatória da existência de um ente que corresponda à nossa ideia transcendental. Após todas as observações antecedentes, compreender-se-á em seguida que a respeito dessa questão pode esperar-se uma solução bastante fácil e concludente. Pois como pode alguma vez ser dada uma experiência que devesse adequar-se a uma ideia? A peculiaridade da ideia consiste precisamente no fato de nenhuma experiência jamais poder congruir com ela. A ideia transcendental de um ente originário, necessário e totalmente suficiente, é tão exaltadamente grande, tão elevadamente superior a todo o empírico, que é sempre condicionado, que por um lado jamais se pode encontrar na experiência matéria suficiente para preencher tal conceito, e por outro lado anda-se sempre às apalpadelas sob o condicionado e procurar-se-á constantemente em vão o incondicionado, com respeito ao qual nenhuma lei de qualquer síntese empírica fornece-nos um exemplo ou a mínima orientação para tal. Se o ente supremo se encontrasse nessa cadeia das condições, então ele mesmo seria um membro da sua série, e como ocorre com os membros inferiores aos quais se antepõe, requereria uma investigação ainda mais remota a respeito do seu fundamento superior. Se, ao contrário, se quiser separa-lo de tal cadeia e enquanto ente meramente inteligível não se quiser compreendê-lo na série das causas da natureza, então que ponte a razão poderá lançar para chegar até ele? Com efeito, todas as leis da passagem de efeitos a causas, até mesmo toda a síntese e ampliação do nosso conhecimento em geral não se fundam senão sobre a experiência possível, por conseguinte, apenas sobre objetos do mundo dos sentidos e só com respeito a eles podem ter uma significação. O mundo presente manifesta-nos uma cena tão imensa de multiplicidade, ordem, finalidade e beleza - quer se siga esses atributos na infinitude do espaço ou na divisão ilimitada deste - que não obstante os conhecimentos que o nosso fraco entendimento pôde adquirir daí, toda a linguagem sobre tantas e tão inabarcáveis maravilhas perde a sua ênfase, todos os números perdem a sua força de mensuração e mesmo os nossos pensamentos perdem toda a limitação a ponto de o nosso juízo sobre o todo ter que se reduzir a admiração muda, mas por isso mesmo tanto mais persuadida. Por toda a parte vemos uma cadeia de efeitos e causas, de fins e meios, de regularidade no surgir ou perecer, e na medida em que nada passou espontaneamente para o estado em que se encontra, aponta sempre adiante para outra coisa como sua causa que torna necessária exatamente a mesma perquirição ulterior. Deste modo, o universo inteiro teria que se afundar no abismo do nada caso não se admitisse algo que o sustentasse subsistindo originária e independentemente por si, e que como causa da sua origem ao mesmo tempo assegurasse a sua continuação. Quão grande devemos pensar essa causa suprema (em confronto com todas as coisas do mundo)? Não conhecemos o mundo segundo todo o seu conteúdo; menos ainda sabemos avaliar a sua grandeza pela comparação com tudo o que é possível. Já que para a causalidade necessitamos um ente último e supremo, então que coisa nos impede que, de acordo com o grau de perfeição, o ponhamos ao mesmo tempo acima de toda outra coisa possível? Podemos realizar isto facilmente, conquanto certamente só através do tênue contorno de um conceito abstrato, se representarmos toda a perfeição possível reunida nele como numa única substância. Tal conceito é favorável à exigência da nossa razão na economia dos princípios, não estando em si mesmo submetido a nenhuma contradição, e pela direção que tal ideia dá à ordem e finalidade, é compatível mesmo com a ampliação do uso da razão à experiência, em parte alguma, porém, decisivamente contrário a uma experiência. Esta prova merece sempre ser citada com respeito. Trata-se da mais da antiga, mais clara e mais conforme com a razão humana comum. Estimula o estudo da natureza do mesmo modo como ela mesma adquire desta a sua existência, e mediante a mesma recebe sempre nova força. Faz surgir fins e objetivos lá onde a nossa observação não os teria descoberto por si, e amplia o nosso conhecimento da natureza mediante o fio condutor de uma unidade peculiar cujo princípio se encontra fora da natureza. Por sua vez, estes conhecimentos atuam sobre a sua causa, a saber, sobre a ideia que a ocasiona, e aumentam a fé num autor supremo até uma convicção irresistível. Em virtude disso, seria não só desconsolador, mas também totalmente inútil querer subtrair algo do bom nome dessa prova. Elevada incessantemente por argumentos tão vigorosos e sempre crescentes sob suas mãos, conquanto se trate só de argumentos empíricos, a razão não pode ser oprimida por nenhuma dúvida de uma especulação abstrata e sutil a ponto de ser arrancada, como que de um sonho, daquela elucubradora indecisão mediante um olhar que lança sobre as maravilhas da natureza e da majestade do sistema do mundo, para de magnitude em magnitude elevar-se até a magnitude suprema e de condicionado a condição, até o autor supremo e incondicionado. Todavia, embora não tenhamos objeção alguma contra a racionalidade e utilidade desse procedimento, mas tenhamos antes motivo para recomenda-lo e incentivá-lo, apesar disso não podemos permitir que esse tipo de prova reivindique certeza apodítica e um aplauso que não precisa absolutamente de qualquer favor ou apoio estranho. E moderar a linguagem dogmática de um sofista que zomba do tom de sobriedade e discrição de uma fé, suficiente para a tranquilidade embora não ordene uma submissão incondicional, não pode de modo algum prejudicar a boa causa. Afirmo, portanto, que a prova físico-teológica jamais pode demonstrar sozinha a existência de um ente supremo, mas tem que deixar sempre para a prova ontológica (à qual serve só como introdução) a tarefa de completar essa deficiência; por conseguinte, afirmo que a prova ontológica continua contendo o único argumento possível (contanto que apenas uma prova especulativa tenha lugar) que nenhuma razão humana pode passar por alto. Os principais momentos da referida prova físico-teológica são os seguintes: 1) Por toda a parte do mundo encontram-se sinais claros de uma ordem segundo um propósito determinado realizada com grande sabedoria, e dentro de um todo tanto com indescritível multiplicidade de conteúdo quanto também ilimitadamente grande na extensão. 2) Esta ordem finalista é completamente estranha às coisas do mundo e lhes inere só de modo contingente; isto é, a natureza de coisas diversas não poderia, com a reunião de meios tão diversos, concordar espontaneamente com fins últimos determinados se estes não tivessem sido escolhidos e dispostos para tal de modo bem apropriado por um princípio racional ordenador segundo ideias a eles subjacentes. 3) Logo, existe uma causa sublime e sábia (ou mais de uma) que tem que ser a causa do mundo não simplesmente como uma natureza onipotente que opere cegamente mediante a fecundidade, mas como uma inteligência que atue mediante a liberdade. 4) A unidade desta causa pode ser inferida com certeza, no tocante àquilo até onde alcança a nossa observação, a partir da unidade da referência recíproca das partes do mundo enquanto membros de um edifício construído com arte, e além deste campo inferida só com probabilidade segundo todos os princípios da analogia. Sem pretender aqui chicanear a razão natural sobre a sua inferência, que a partir da analogia de alguns produtos naturais com a arte humana - ao violentar a natureza e a constranger a não proceder segundo os seus fins, mas a se ajustar aos nossos (em virtude da semelhança de certos produtos naturais com casas, navios, relógios) - conclui que à natureza subjaz tal causalidade, a saber, entendimento e vontade, quando a razão deriva a possibilidade interna da natureza livremente operante (a qual torna pela primeira vez possível toda a arte e talvez mesmo a própria razão) de outra arte ainda, que é, todavia, sobre-humana. Embora este modo de inferir não possa talvez resistir à crítica transcendental mais severa, temos que confessar que se quisermos uma vez indicar uma causa, não poderemos proceder de modo mais seguro do que em analogia com tais produtos conformes a um fim, que são os únicos dos quais conhecemos inteiramente as causas e os efeitos. A razão não poderia justificar-se perante si própria se da causalidade que ela conhece quisesse passar a obscuras e indemonstráveis razões explicativas que não conhece. De acordo com essa inferência, a finalidade e a harmonia de tantas obras naturais teriam simplesmente que provar a contingência da forma, mas não a da matéria, isto é, da substância no mundo. Para provar isto, de fato, requerer-se-ia ainda poder provar que as coisas do mundo seriam em si mesmas incapazes de tal ordem e de tal acordo segundo leis naturais se mesmo segundo a sua substância não fossem o produto de uma sabedoria suprema. Para este fim requerer-se-iam, contudo, argumentos totalmente diversos daqueles baseados na analogia com a arte humana. Portanto, a prova poderia no máximo evidenciar um arquiteto no mundo que seria sempre bastante limitado pela plasmabilidade da matéria por ele elaborada, mas não um criador do mundo a cuja ideia tudo está subordinado. Isto não é nem de longe suficiente para o grande objetivo que se tem diante dos olhos, a saber, de provar a existência de um ente originário totalmente suficiente. Se quiséssemos provar a contingência da própria matéria, teríamos que nos refugiar num argumento transcendental, o que, porém, teve precisamente que ser evitado aqui. A inferência parte, pois, da ordem e finalidade tão completamente observáveis no mundo, como uma organização inteiramente contingente, até a existência de uma causa proporcionada às mesmas. Todavia, o conceito dessa causa tem que nos dar a conhecer algo totalmente determinado a respeito dela, não podendo por isso ser outro senão o conceito de um ente que, como um ente totalmente suficiente, possua todo o poder, toda a sabedoria etc., numa palavra toda a perfeição. Com efeito, os predicados de poder e excelência grandíssimos, admiráveis e incomensuráveis, não fornecem absolutamente conceito determinado algum e propriamente não dizem o que seja a coisa em si mesma, mas são apenas representações de relação sobre a magnitude do objeto que o observador (do mundo) compara consigo mesmo e com a sua própria capacidade de compreensão, e que se tornam igualmente enaltecedores quer se aumente o objeto, quer com relação ao mesmo se tome menor o sujeito que observa. Onde se trata da magnitude (da perfeição) de uma coisa em geral, não há nenhum conceito determinado senão aquele que compreende toda a perfeição possível, e somente o todo (omnitudo) da realidade é determinado completamente no conceito. Ora, quero esperar que ninguém presuma compreender a relação da magnitude do mundo por ele observada (tanto segundo a extensão coma segundo o conteúdo) com a onipotência, da ordem do mundo com sabedoria suprema, da unidade do mundo com a unidade absoluta do autor etc. Logo, a física-teologia não pode fornecer nenhum conceito determinado da causa suprema do mundo e por isso não pode ser suficiente para um princípio da Teologia, que, por sua vez, deve constituir o fundamento da religião. O passo à totalidade absoluta é inteiramente impossível por via empírica. Na prova físico-teológica, não obstante, é dado. Que meio é, pois, utilizado para saltar por sobre um tão largo abismo? Depois que se atingiu a admiração da magnitude da sabedoria, do poder etc., do autor do mundo, e que não se pode ir adiante, abandona-se de uma vez por todas esse argumento conduzido por fundamentos demonstrativos empíricos e parte-se para a contingência do mundo logo de início inferida a partir da ordem e finalidade do mesmo. Somente desta contingência se passa, pois, unicamente mediante conceitos transcendentais, à existência de um ente absolutamente necessário, e do conceito da necessidade absoluta da causa primeira ao conceito completamente determinado ou determinante da mesma existência, a saber, de uma realidade que tudo compreende. Logo, a prova físico-teológica estacionou em seu empreendimento, nesse embaraço saltou de repente para a prova cosmo lógica e assim, visto que esta é só uma prova ontológica camuflada, realizou efetivamente o seu objetivo meramente através da razão pura, se bem que tenha inicialmente negado toda a afinidade com esta e tenha exposto tudo com base em provas óbvias a partir da experiência. Os físicos-teólogos não têm por isso motivo para comportar-se tão desdenhosamente diante do modo transcendental de provar e para olhá-lo do alto a baixo com arrogância de clarividentes conhecedores da natureza, como se se tratasse de uma teia de aranha tecida por elucubradores. Com efeito, se quisessem eles mesmos submeter-se a uma prova, após terem progredido um bom trecho sobre o terreno da natureza e da experiência e de, não obstante, verem-se sempre ainda tão distantes do objeto, que parece ser oposto à nossa razão, descobririam que repentinamente abandonam este terreno e transferem-se para o reino das simples possibilidades, onde esperam aproximar-vos, nas asas das ideias, daquilo que se subtraíra a toda a sua investigação empírica. Enfim, depois que com um salto tão poderoso supõem ter posto o pé sobre terreno firme, disseminam o conceito doravante determinado (a cuja posse chegaram sem saber como) sobre o campo inteiro da criação e elucidam pela experiência o ideal que era meramente um produto da razão pura, elucidação bastante pobre e inferior à dignidade do seu objeto, sem, todavia, quererem confessar que chegaram a esse conhecimento ou pressuposto por um atalho diverso daquele da experiência. Deste modo, portanto, à prova físico-teológica subjaz a cosmológica, e esta porém a prova ontológica da existência de um ente originário uno como ente supremo. E visto que fora desses três caminhos mais nenhum está aberto à razão especulativa, assim a prova ontológica a partir de meros conceitos puros da razão é a única possível, se pode considerar-se possível qualquer prova de uma proposição que se eleva a tal ponto acima de todo o uso empírico do entendimento. SEÇÃO SÉTIMA DO CAPÍTULO TERCEIRO CRÍTICA DE TODA TEOLOGIA A PARTIR DE PRINCÍPIOS ESPECULATIVOS DA RAZÃO Se por Teologia entendo o conhecimento do ente originário, então é um conhecimento ou a partir da simples razão (teologia rationalis) ou da revelação (revelata). Ora, a primeira pensa o seu objeto ou simplesmente pela razão pura mediante meros conceitos transcendentais (ens originarium, realissimum, ens entium) e chama-se teologia transcendental, ou através de um conceito tomado emprestado da natureza (da nossa alma) como a inteligência suprema, e teria que se chamar teologia natural. Aquele que concede unicamente uma teologia transcendental é chamado deista; aquele que além disso admite uma teologia natural é chamado de teísta. O primeiro concede que podemos conhecer a existência de um ente originário quando muito pela simples razão, mas que o nosso conceito sobre ele é meramente transcendental, ou seja, somente enquanto conceito de um ente que possui toda a realidade, a qual, contudo, não pode ser determinada mais de perto. O segundo afirma que a razão é capaz de determinar mais de perto o objeto segundo a analogia com a natureza, ou seja, com um ente que mediante entendimento e liberdade contenha o fundamento originário de todas as outras coisas. Aquele, portanto, se representa por tal objeto simplesmente uma causa do mundo (permanecendo irresolvido se através da necessidade da sua natureza ou através da liberdade), e este representa-se um criador do mundo. A teologia transcendental é ou aquela que supõe derivar a existência de um ente originário a partir de uma experiência em geral (sem determinar mais de perto algo sobre o mundo ao qual esta pertence) e denomina-se cosmoteologia, ou aquela que crê conhecer a sua existência mediante simples conceitos sem o auxílio da menor experiência, e denomina-se ontoteologia. A teologia natural infere as propriedades e a existência de um criador do mundo a partir da disposição da ordem e da unidade encontradas neste mundo, no qual têm que se admitir duas espécies de causalidade e a sua regra, a saber, natureza e liberdade. Por isso, ascende deste mundo até a inteligência suprema, enquanto princípio ou de toda a ordem e perfeição natural ou de toda a ordem e perfeição moral. No primeiro caso denomina-se fisico-teologia, no segundo, teologia moral. (Não moral teológica, pois esta contém leis morais que pressupõem a existência de um governante supremo do mundo, ao passo que a teologia moral é uma convicção sobre a existência de um ente supremo, convicção que se funda sobre as leis morais. Nota do Autor.) Visto que pelo conceito de Deus não se costuma entender simplesmente uma natureza eterna que opera cegamente como origem das coisas, mas sim um ente supremo que pelo entendimento e pela liberdade deve ser o autor das coisas, e visto ainda que unicamente este conceito nos interessa, poder-se-ia a rigor negar aos deístas toda a fé em Deus e conceder-lhes meramente a afirmação de um ente originário como causa suprema. Todavia, já que ninguém deve ser inculpado de querer de negar algo pelo fato de não se atrever a afirmá-lo, então é mais indulgente e justo dizer que o deista crê num Deus, mas que o teísta crê num Deus vivo (summam intelligentiam). Agora queremos procurar as fontes possíveis de todas essas tentativas da razão. Satisfaço-me aqui com explicar o conhecimento teórico como aquele pelo qual conheço o que existe, e o conhecimento prático por sua vez como aquele pelo qual me represento o que deve existir. De acordo com isto, o uso teórico da razão é aquele pelo qual conheço a priori (como necessário) que algo exista, e o uso prático, aquele pelo qual é conhecido a priori o que deva acontecer. Ora, se é indubitavelmente certo que algo existia ou deva existir, mas isto de modo apenas condicionado, então uma certa condição determinada pode ser tanto absolutamente necessária para isso quanto a mesma ser somente pressuposta como arbitrária e contingente. No primeiro caso, a condição é postulada (per thesin), no segundo suposta (per hipothesin). Visto que há leis práticas absolutamente necessárias (as morais) então quando pressupõem qualquer existência como a condição da possibilidade da sua força compromissante, tal existência tem que ser postulada pelo fato de o condicionado, do qual procede a inferência a essa condição determinada, ser ele mesmo conhecido a priori como absolutamente necessário. Mostraremos futuramente que as leis morais não só pressupõem a existência de um ente supremo, mas enquanto sob outro ponto de vista são absolutamente necessárias também com justiça postulam tal existência, embora claro que apenas praticamente. Por ora pomos de lado este modo de inferir. Se se trata simplesmente daquilo que existe (não daquilo que deve ser), então o condicionado que nos é dado na experiência é sempre pensado também como contingente. Em tal caso, a condição pertencente a ele não pode ser conhecida como absolutamente necessária, mas serve apenas como um pressuposto relativamente necessário ou antes requerido para o conhecimento racional do condicionado, sendo, todavia, em si mesmo e a priori, arbitrário. Logo, se a necessidade absoluta de uma coisa devesse ser conhecida teoricamente, isto poderia acontecer unicamente a partir de conceitos a priori, mas jamais como uma causa com referência a uma existência dada pela experiência. Um conhecimento teórico é especulativo se se refere a um objeto, ou ao conceito de um objeto, que não se pode atingir em nenhuma experiência. Contrapõe-se ao conhecimento natural, que não se refere a nenhum outro objeto ou predicado do mesmo além dos que podem ser dados numa experiência possível. O princípio pelo qual daquilo que acontece (o empiricamente contingente) como efeito infere-se uma causa, é um princípio do conhecimento natural, mas não do especulativo. Com efeito, se se abstrai de tal princípio enquanto contém a condição da experiência possível em geral, e se ao se abandonar todo o empírico se quer afirmá-lo acerca do contingente em geral, então não resta a mínima justificação para tal proposição sintética para daí depreender como, de algo que existe, posso passar a algo totalmente diferente dele (chamado causa); antes, em tal uso meramente especulativo tanto o conceito de causa quanto o de contingente perdem toda a significação cuja realidade objetiva pode ser compreendida in concreto. Ora, se da existência das coisas no mundo infere-se a sua causa, então este procedimento pertence ao uso especulativo e não ao uso natural da razão; este último, com efeito, não refere a uma causa qualquer as próprias coisas, mas só aquilo que acontece, logo os seus estados enquanto empiricamente contingentes, ao passo que a própria substância (a matéria) ser contingente em sua existência teria que ser um conhecimento meramente especulativo da razão. Se por outro lado se tratasse apenas da forma do mundo, do modo da sua ligação e da sua variação e se eu, contudo, quisesse inferir daí uma causa que fosse totalmente distinta do mundo, então este seria novamente um juízo da razão meramente especulativa, pois o objeto de que se trata aqui não é absolutamente o de uma experiência possível. Mas em tal caso o princípio da causalidade, que só vale no campo das experiências e fora dele não possui nenhum uso nem mesmo uma significação, desviar-se-ia totalmente da sua destinação. Ora, afirmo que todas as tentativas de um uso meramente especulativo da razão na Teologia são totalmente infecundas e, pela sua natureza íntima, nulas e vãs; que, porém, os princípios do seu uso natural de modo algum levam a uma Teologia, consequentemente, se não se põem como fundamento princípios morais ou não se os usa como fio condutor, não pode haver em parte alguma uma teologia da razão. Com efeito, todos os princípios sintéticos do entendimento concernem a um uso imanente, ao passo que o conhecimento de um ente supremo requer um uso transcendente dos mesmos, para o qual o nosso entendimento não está absolutamente equipado. Se a lei empiricamente válida de causalidade devesse conduzir ao ente originário, então este teria que copertencer à cadeia dos objetos da experiência; em tal caso, porém, seria por sua vez condicionado tal como todos os fenômenos. Se além disso se permitisse saltar para além dos limites da experiência mediante a lei dinâmica da referência dos efeitos às suas causas, que conceito poderia nos ser proporcionado por um tal procedimento? Nem de longe um conceito de um ente supremo, pois a experiência jamais nos apresenta o maior de todos os seus efeitos possíveis (que deve dar testemunho da sua causa). Se apenas para não deixar nenhum lugar vazio em nossa razão nos for permitido preencher essa deficiência de determinação plena mediante uma simples ideia da perfeição suprema e da necessidade originária, então isso pode na verdade ser concedido com um favor, mas não exigido a partir do direito de uma prova irresistível. Portanto, ao conectar especulação com intuição a prova físico-teológica poderia talvez dar ênfase a outras provas (caso sejam obteníveis); mas por si mesma prepara o entendimento para o conhecimento teológico, dando-lhe uma direção reta e natural para tanto, mas sozinha não pode completar a sua tarefa. Disso resulta claro que as questões transcendentais permitem só respostas transcendentais, isto é, a partir de puros conceitos a priori sem a mínima interferência empírica. O problema é aqui evidentemente sintético, e requer uma ampliação do nosso conhecimento para além de todos os limites da experiência, a saber, até a existência de um ente deve corresponder à nossa simples ideia, à qual nenhuma experiência pode igualar-se. Ora, de acordo com as nossas demonstrações precedentes, todo o conhecimento sintético a priori é possível só enquanto expressa as condições formais de uma experiência possível, e todos os princípios possuem por isso apenas validade imanente, isto é, referem-se unicamente a objetos do conhecimento empírico ou fenômenos. Logo, tampouco se consegue algum resultado mediante o procedimento transcendental com vistas à teologia de uma razão meramente especulativa. Se, a se deixar roubar a persuasão do peso dos argumentos usados por tão longo tempo, se preferisse pôr em dúvida todas as provas precedentes da Analítica, não se poderia, contudo, esquivar-se de satisfazer a exortação de eu exigir que se deveria pelo menos justificar como e mediante que iluminação alguém se atreve a sobrevoar toda a experiência possível com a força de simples ideias. Eu pediria que me poupassem de novas provas ou da melhoria de provas antigas. De fato, se bem que aqui não haja muito a escolher na medida em que afinal todas as provas meramente especulativas desembocam numa única de caráter ontológico, e que eu não precise pois recear ser particularmente molestado pela fecundidade dos defensores dogmáticos daquela razão isenta dos sentidos; se bem que de mais a mais, mesmo sem considerar-me por isso combativo, eu não recuse o desafio de descobrir o sofisma em toda a tentativa desse tipo, para destarte frustrar a sua presunção: jamais se suprimirá inteiramente a esperança de melhor sorte por parte daqueles que foram uma vez acostumados a persuasões dogmáticas. Por isso atenho-me à única exigência justa, ou seja, que se justifique universalmente e a partir da natureza do entendimento humano, junto com todas as demais fontes de conhecimento, como se quer iniciar a ampliar absolutamente a priori o seu conhecimento e estendê-lo até o ponto inatingido por qualquer experiência possível, e, portanto, por nenhum meio capaz de assegurar a realidade objetiva a qualquer um dos conceitos ideados por nós mesmos. Seja de que modo o entendimento possa ter chegado a esse conceito, a existência de seu objeto não pode ser encontrada analiticamente nele, pois o conhecimento da existência do objeto consiste exatamente no fato de este ser em si mesmo posto fora do pensamento. Entretanto, é inteiramente impossível partir espontaneamente de um conceito e, sem que se siga a conexão empírica (pela qual são sempre dados unicamente fenômenos), chegar ao descobrimento de novos objetos e de entes sobrenaturais. No entanto, se bem que no seu uso meramente especulativo a razão nem de longe baste para esse tão grande objetivo, a saber, alcançar a existência de um ente supremo, possui, não obstante, muito grande proveito corrigindo o conhecimento de tal existência no caso em que pudesse ser haurido de algum outro lugar, fazendo-o concordar consigo mesmo e com todo o propósito inteligível e purificando-o de tudo o que pudesse ser contrário ao conceito de um ente originário e de toda a mistura de limitações empíricas. Portanto, apesar de toda a sua deficiência a teologia transcendental conserva um importante uso negativo, e é uma constante censura da nossa razão, quando essa se ocupa simplesmente com ideias puras, que precisamente por isso não admitem outro critério além do transcendental. Com efeito, se a pressuposição de um ente supremo e totalmente suficiente, enquanto inteligência suprema, uma vez afirmasse a sua validade sem réplica desde outro ponto de vista, talvez prático, então seria da maior importância determinar exatamente o aspecto transcendental desse conceito enquanto conceito de um ente necessário e realíssimo, bem como remover o que é contrário à realidade mais elevada e o que pertence ao simples fenômeno (ao antropomorfismo em sentido mais amplo) e ao mesmo tempo tirar do caminho todas as asserções contrapostas a tal conceito, quer sejam ora ateístas, ora deístas, ora antropomorfistas. Numa tal abordagem crítica, tudo isto é muito fácil, na medida em que as mesmas razões, pelas quais é posta diante dos olhos a incapacidade da razão humana com respeito à afirmação da existência de semelhante ente, necessariamente bastam também para provar a inutilidade de qualquer contra-afirmação. Pois de onde pode alguém querer extrair, mediante a especulação pura da razão, o conhecimento de que não há um ente supremo como fundamento originário de tudo, ou de que não lhe inere nenhuma das propriedades que pelas suas consequências nos representamos como análogas às realidades dinâmicas de um ente pensante, ou, em último caso, de que elas teriam também que estar submetidas a todas as limitações que a sensibilidade impõe às inteligências por nós conhecidas através da experiência? Para o uso meramente especulativo da razão, portanto, o ente supremo permanece um simples ideal, embora sem defeitos, um conceito que conclui e coroa o inteiro conhecimento humano e cuja realidade objetiva por essa via não pode na verdade ser provada, mas tampouco refutada, Se além disso houver uma teologia moral capaz de completar essa deficiência, então a precedente e meramente problemática teologia provará a sua imprescindibilidade através da determinação do seu conceito e da censura incessante de uma razão com frequência suficiente enganada pela sensibilidade, e nem sempre concorde com as suas ideias. A necessidade, a infinitude, a unidade, a existência fora do mundo (não como alma do mundo), a eternidade, sem condições do tempo, onipresença sem condições do espaço, a onipotência etc., são puros predicados transcendentais. Por isso, o conceito purificado dos mesmos que toda teologia tanto necessita só pode ser tirado da teologia transcendental. APÊNDICE À DIALÉTICA TRANSCENDENTAL Do uso regulativo das ideias da razão pura O ponto de partida de todas as tentativas dialéticas da razão pura não somente confirma o que já provamos na Analítica Transcendental, a saber, que todas as nossas inferências que querem conduzir-nos para além do campo da experiência possível são enganosas e infundadas, mas nos ensina ao mesmo tempo a peculiaridade de que a razão possui uma propensão natural a ultrapassar esses limites e de que as ideias transcendentais lhe são exatamente tão naturais quanto às categorias ao entendimento, se bem que com a diferença de que, enquanto as últimas levam à verdade, isto é, a concordância de nossos conceitos com o objeto, as primeiras produzem uma simples mas irresistível ilusão, cujo engano não se pode impedir nem através da mais aguda crítica. Tudo o que se funda na natureza das nossas forças tem que ser adequado a um fim e concordar com o correto uso dessas forças, contando que queiramos impedir certo equívoco e descobrir a sua direção verdadeira e própria. Portanto, tudo faz crer que as ideias transcendentais tenham a sua utilidade e, por conseguinte, um uso imanente, se bem que possam ter uma aplicação transcendente e justamente por isso ser enganosas quando a sua significação é ignorada e elas são tomadas por conceitos de coisas reais. Com efeito, jamais as ideias mesmas, mas simplesmente o seu uso pode ser sobrevoante (transcendente) ou doméstico (ímanente) com respeito a toda experiência possível, de acordo com a direção que se dê a tais ideias, quer orientando-as diretamente para um objeto pretensamente correspondente a elas ou orientando-as só para o uso do entendimento em geral com vistas aos objetos com que tem a ver. E todos os erros da sub-repção devem ser atribuídos sempre a uma deficiência da capacidade de julgar, jamais, porém, ao entendimento ou à razão. A razão jamais se refere diretamente a um objeto, mas unicamente ao entendimento e através dele ao seu próprio uso empírico; portanto, não produz conceitos (de objetos), mas apenas os ordena e dá-lhes aquela unidade que podem ter na sua máxima extensão possível, isto é, com referência à totalidade das séries, a qual não é absolutamente considerada pelo entendimento, que se ocupa só com a conexão pela qual por toda a parte as séries das condições são produzidas segundo conceitos. Logo, a razão propriamente tem por objeto só o entendimento e o seu emprego adequado; e assim como o entendimento reúne o múltiplo no objeto mediante conceitos, a razão por sua vez reúne o múltiplo dos conceitos mediante ideias ao pôr certa unidade coletiva como objetivo das ações do entendimento, que do contrário só se ocupam com uma unidade distributiva. Por isso, afirmo que as ideias transcendentais jamais possuem um uso constitutivo de maneira que através delas sejam dados conceitos de certos objetos. No caso em que forem compreendidas desse modo, não passarão de simples conceitos racionalizantes (dialéticos). Ao contrário, possuem um uso excelente e imprescindivelmente necessário, ou seja, o uso regulativo que consiste em dirigir o entendimento para um determinado objetivo com vistas ao qual as linhas de orientação de todas as suas regras confluem para um único ponto. Embora na verdade seja apenas uma ideia (focus imaginarius), isto é, um ponto do qual realmente não partem os conceitos de entendimento na medida em que se situa totalmente fora dos limites da experiência possível, no entanto ele serve para propiciar a tais conceitos a máxima unidade ao lado da máxima extensão. Disso, é verdade, surge em nós a ilusão de que essas linhas de orientação sejam traçadas a partir de um objeto que se encontre fora do campo do conhecimento empiricamente possível (do mesmo modo como os seus objetos são vistos atrás da superfície do espelho). Todavia, esta ilusão (cujo efeito ludibriador é perfeitamente evitável) será, não obstante, absolutamente necessária se além dos objetos que estão diante dos nossos olhos também quisermos ao mesmo tempo ver aqueles que se situam longe às nossas costas, isto é, em nosso caso quando quisermos exercitar o entendimento para além de toda experiência dada (enquanto parte de toda experiência possível), por conseguinte, com vista também à sua extrema e máxima ampliação possível. Se temos presentes os conhecimentos de nosso entendimento em todo o seu âmbito, então descobriremos que aquilo de que a razão dispõe de modo totalmente peculiar, e que procura realizar, é o sistemático do conhecimento, isto é, sua interconexão a partir de um princípio. Esta unidade da razão pressupõe sempre uma ideia, a saber, da forma de um todo do conhecimento que precede o conhecimento determinado das partes e contém as condições para determinar a priori o lugar de cada parte e a sua relação com as demais. Tal ideia postula por isso uma unidade completa do conhecimento do entendimento; graças a essa unidade, o conhecimento não se torna simplesmente um agregado contingente, mas um sistema interconectado segundo leis necessárias. Não se pode propriamente dizer que essa ideia seja um conceito do objeto, mas da unidade perfeita desses conceitos na medida em que esta serve de regra ao entendimento. Tais conceitos da razão não são formados a partir da natureza, antes nós interrogamos a natureza segundo essas ideias e consideramos o nosso conhecimento defeituoso enquanto não lhes for adequado. Confessa-se que dificilmente se encontra uma terra pura, uma água pura, um ar puro. Apesar disso, tem-se necessidade dos conceitos respectivos (cuja pureza, todavia, possui a sua origem somente na razão) para determinar convenientemente a participação que cada uma dessas causas naturais possui no fenômeno. E deste modo reduz-se enfim todas as matérias à terra (por assim dizer, o simples peso), sais e substâncias combustíveis (enquanto força), à água e ao ar como veículos (por assim dizer, máquinas mediante as quais as anteriores operam), para segundo um mecanismo explicar as interações químicas das matérias entre si. Com efeito, conquanto em realidade não nos expressemos deste modo, tal influência da razão sobre as divisões dos pesquisadores da natureza pode ser muito facilmente descoberta. Se a razão é uma faculdade de derivar o particular do universal, então ou o universal é já em si certo e dado, e em tal caso requer somente capacidade de julgar para a subsunção, e o particular é necessariamente determinado através da mesma. Chamo a este de uso apodítico da razão. Ou, num segundo caso, o universal é admitido só problematicamente e é uma simples ideia, o particular é tão certo, mas a universalidade da regra para esta consequência é ainda um problema; deste modo, são experimentados na regra diversos casos particulares que são todos certos para ver se decorrem dela e neste caso, quando se tem a impressão de que todos os casos particulares indicáveis resultam dela, inferir-se-á a universalidade da regra e desta inferir-se-ão ulteriormente também todos os casos que em si mesmos não são dados. Chamo a este de uso hipotético da razão. O uso hipotético da razão a partir de ideias subjacentes como conceitos problemáticos não é propriamente constitutivo, ou seja, disposto de modo tal que, ao se querer julgar com o todo rigor, a verdade resulte da regra universal admitida como hipótese. Com efeito, como se pode querer conhecer todas as consequências possíveis que, ao resultarem do mesmo princípio admitido, provém a universalidade desse princípio? Este uso é, pois, apenas regulativo para, na medida do possível, trazer unidade aos conhecimentos particulares e assim levar a regra a se aproximar da universalidade. O uso hipotético da razão refere-se, portanto, à unidade sistemática dos conhecimentos do entendimento, e esta é por sua vez a pedra de toque da verdade das regras. Inversamente, a unidade sistemática (enquanto simples ideia) é unicamente uma unidade projetada que precisa ser considerada em si como não dada, mas só como problema; serve, todavia, para encontrar um princípio para o múltiplo e para o uso particular do entendimento, e para mediante tal principium dirigir este uso e torná-lo interconectado mesmo com respeito aos casos que não são dados. Disso, contudo, resulta evidente que a unidade sistemática ou racional do conhecimento variado do entendimento é só um princípio lógico visando, nos casos em que o entendimento sozinho não chega a estabelecer regras, ajudá-lo com ideias e ao mesmo tempo conseguir, para a diversidade das suas regras, unidade (sistemática) sob um princípio e assim também coesão, na medida em que factível. Todavia, se o modo de ser dos objetos ou a natureza do entendimento que os conhece como tais são em si mesmos destinados à unidade sistemática, e se em certa medida esta pode ser postulada a priori mesmo sem tomar em consideração um tal interesse da razão, de maneira a se poder dizer que todos os conhecimentos possíveis do entendimento (entre eles os empíricos) possuem unidade da razão e estão sob princípios comuns dos quais podem ser derivados sem levar em conta sua diversidade, então isto seria um princípio transcendental da razão que tomaria a unidade sistemática necessária não só subjetiva e logicamente, enquanto método, mas também objetivamente. Queremos ilustrar isso com um caso de uso da razão. Entre as diversas espécies de unidade segundo conceitos do entendimento, inclui-se também a da causalidade de uma substância, denominada força. Num primeiro contato com uma substância, os seus diversos fenômenos mostram tal heterogeneidade que, em consequência disso, tem que se admitir inicialmente nela quase tantas forças quantos efeitos se apresentam, como, por exemplo, na mente do homem a sensação, a consciência, a imaginação, a recordação, o humor, a capacidade de distinguir, o prazer, o desejo etc. De início, uma máxima lógica ordena que se diminua o quanto for possível essa aparente diversidade, descobrindo mediante comparação a identidade oculta e examinando a questão se imaginação e consciência não estão ligadas, se recordação, humor e capacidade de distinguir não são talvez e propriamente entendimento e razão. A ideia de uma força fundamental, cuja existência a Lógica de modo algum pode descobrir, é pelo menos o problema de uma representação sistemática da multiplicidade das forças. O princípio lógico da razão requer realizar tanto quanto possível esta unidade; e quanto mais os fenômenos de uma ou outra força forem encontrados como idênticos entre si, tanto mais provavelmente nada mais constituirão que expressões diversas de uma e mesma força, que (comparativamente) pode denominar-se sua força fundamental. Do mesmo modo proceder-se-á com as forças restantes. As forças fundamentais comparativas, por sua vez, têm que ser confrontadas entre si para, mediante o descobrimento da sua unidade, aproximá-las de uma única força fundamental radical, isto é, absoluta. Esta unidade da razão é, todavia, simplesmente hipotética. Não se afirma que tal unidade tem que ser encontrada de fato, mas que se tem que a procurar em benefício da razão, ou seja, para erigir certos princípios para as diversas regras que a experiência nos fornece, e onde factível introduzir deste modo uma unidade sistemática no conhecimento. Todavia, se se presta atenção ao uso transcendental do entendimento, mostra-se que essa ideia de uma força fundamental em geral está destinada ao uso hipotético não meramente como problema, mas pretende ter uma realidade objetiva pela qual é postulada a unidade sistemática das diversas forças de uma substância e é estabelecido um princípio apodítico da razão. Com efeito, sem que tenhamos uma só vez tentado encontrar a unidade das várias forças e descobrir até quando, após todas as tentativas, falhamos em descobri-la, pressupomos, não obstante, que deve ser possível encontrar uma tal unidade; isso dá-se não unicamente em virtude da unidade da substância tal como no caso indicado, mas mesmo onde são encontrados vários casos embora em certo grau congêneres, tal como na matéria em geral a razão pressupõe uma unidade sistemática de forças diversas, uma vez que leis particulares da natureza estão sob leis mais gerais e que a economia de princípios torna-se simplesmente não um princípio econômico da razão, mas lei interna da natureza. De fato, tampouco se pode compreender como poderia existir um princípio lógico da unidade racional das regras se não pressupusesse um princípio transcendental mediante o qual tal unidade sistemática fosse admitida a priori como necessária e como inerente aos próprios objetos. Com efeito, com que direito a razão no seu uso lógico poderia pretender tratar como uma unidade meramente dissimulada a multiplicidade das forças que a natureza nos dá a conhecer e como poderia na medida do possível pretender derivar tal unidade de alguma força fundamental qualquer se fosse livre para admitir como igualmente possível que todas as forças sejam heterogêneas e que a unidade sistemática da sua derivação não seja conforme a natureza? Em tal caso, de fato, a razão procederia diretamente contra a sua própria destinação, propondo-se como objetivo uma ideia que contradiz totalmente a constituição da natureza. E nem se pode dizer que a razão tenha antecipadamente abstraído, segundo os próprios princípios, essa unidade da constituição contingente da natureza. Com efeito, a lei da razão pela qual procura tal unidade é necessária, pois sem essa lei não teríamos absolutamente razão alguma, sem esta, porém, nenhum uso interconectado do entendimento e, na falta deste, nenhum sinal suficientemente característico da verdade empírica; é com respeito a este último, portanto, que temos que pressupor a unidade sistemática da natureza como objetivamente válida e necessária. Encontramos ainda esse pressuposto transcendental admiravelmente oculto nos princípios dos filósofos, conquanto nem sempre o tenham reconhecido ou confessado para si mesmos. Que toda a multiplicidade de coisas singulares não exclui a identidade da espécie; que as várias espécies têm que ser consideradas apenas diferentes determinações de poucos gêneros, estes, porém, como determinações de estirpes ainda mais altas; que, pois, se tem que procurar certa unidade sistemática de todos os conceitos empíricos possíveis na medida em que podem ser derivados de conceitos mais altos e mais gerais; eis uma regra escolástica ou um princípio lógico sem o qual não ocorreria uso algum da razão, pois só podemos concluir do geral ao particular na medida em que forem tomadas como fundamento propriedades universais das coisas sob as quais estejam as particulares. Mas que também na natureza se encontre tal acordo é pressuposto pelos filósofos na conhecida regra escolástica de que os começos (princípios) não devem ser multiplicados sem necessidade (entia praeter necessitatem non esse multiplicanda). Com isso se diz que a própria natureza das coisas oferece o material para a unidade da razão, a que a aparente variedade infinita não deveria nos impedir de supor através dela uma unidade das propriedades fundamentais, das quais a multiplicidade pode ser derivada apenas mediante uma determinação sempre maior. Se bem que uma simples ideia, essa unidade foi em todos os tempos perseguida com tanto empenho que antes se encontrou motivo para moderar o desejo dela que para estimulá-lo. Já era muito que os químicos pudessem reduzir todos os sais a dois gêneros principais: ácidos e alcalinos; tentam até encarar essa diferença simplesmente como uma variedade ou uma manifestação diversa de uma e mesma matéria-prima. Procurou-se reduzir as diversas espécies de terra (a matéria das pedras e inclusive dos metais) gradualmente a três e finalmente a duas espécies; contudo, não satisfeitos com isso, os químicos não podem livrar-se do pensamento de supor um único gênero atrás dessa variedade ou, antes, de supor um princípio comum para ela e para os sais. Poder-se-ia talvez crer que este seja um expediente simplesmente econômico da razão para poupar todo o esforço possível, e uma tentativa hipotética que, se tiver êxito, através dessa unidade fornece probabilidade ao fundamento explicativo pressuposto. Todavia, um objeto egoísta como esse pode facilmente distinguir-se da ideia segundo a qual todo mundo pressupõe que tal unidade da razão concorde com a própria natureza, e que a razão em tal caso não esmole, mas ordene, embora sem poder determinar os limites dessa unidade. Se entre os fenômenos que se nos oferecem houvesse uma tão grande diversidade não quanto à força (pois com respeito a esta podem ser semelhantes entre si), mas quanto ao conteúdo, isto é, à multiplicidade de entes existentes, que nem o mais agudo entendimento humano pudesse mediante comparação de um com o outro encontrar a menor semelhança (um caso que bem pode ser pensado), então não haveria absolutamente a lei lógica dos gêneros nem haveria sequer um conceito de gênero ou qualquer conceito universal, nem mesmo um entendimento que unicamente tem a ver com esses conceitos. Logo, se deve ser aplicado à natureza (pela qual entendo aqui só os objetos que nos são dados), o princípio lógico dos gêneros pressupõe um princípio transcendental. De acordo com tal princípio, o múltiplo de uma experiência possível pressupõe necessariamente a homogeneidade (embora não possamos determinar a priori o seu grau), pois sem esta não seria possível conceito empírico algum, por conseguinte, nenhuma experiência. Ao princípio lógico dos gêneros que postula a identidade contrapõe-se outro, a saber, o das espécies, que quer multiplicidade e diversidade das coisas sem levar em conta sua concordância sob o mesmo gênero, e que prescreve ao entendimento não prestar atenção menor a um do que a outro. Este princípio (da perspicácia ou da faculdade de distinguir) limita muito a leviandade do primeiro (do espírito), e a razão manifesta aqui um duplo interesse conflitante um com o outro, ou seja, por um lado o interesse da extensão (da universalidade) com respeito aos gêneros, por outro o do conteúdo (da determinidade) com vista à multiplicidade das espécies, pois no primeiro caso o entendimento pensa muitas coisas sob os seus conceitos, mas no segundo ainda mais coisas nos mesmos. A mesma duplicidade se externa no modo de pensar muito diferente dos pesquisadores da natureza, alguns dos quais (que são sobretudo especulativos), por assim dizer, adversos à heterogeneidade, tendem sempre à unidade da espécie; os outros (que são sobretudo cérebros empíricos) procuram incessantemente dividir a natureza a um tal grau de multiplicidade que quase se tem que abandonar a esperança de julgar os seus fenômenos segundo princípios universais. A este último modo de pensar subjaz também evidentemente um princípio lógico, que tem por objetivo a completude sistemática de todos os conhecimentos quando eu, partindo do gênero, desço ao múltiplo que possa estar contido sob o mesmo e deste modo procuro dar ao sistema extensão, como no primeiro caso simplicidade quando me elevo ao gênero. Com efeito, nem a partir da esfera do conceito que designa um gênero, nem a partir da esfera do espaço que pode receber uma matéria, é possível depreender até onde pode ir a divisão da mesma. Por isso, todo o gênero requer diversas espécies, a espécie por sua vez requer diversas subespécies; e visto que nenhuma destas se realiza sem que por sua vez tivesse outra esfera (extensão como conceptus communis), assim em toda sua ampliação a razão exige que nenhuma espécie seja em si mesma encarada como a íntima. Com efeito, já que a espécie é sempre um conceito que contém só aquilo que é comum a coisas diferentes, o conceito não pode ser determinado completamente e nem, pois, referir-se antes de tudo a um indivíduo, consequentemente tem sempre que conter sob si outros conceitos, isto é, subespécies. Esta lei da especificação poderia ser expressa do seguinte modo: entium varietates non temere esse minuendas. Todavia se vê facilmente que também esta lei lógica não teria sentido e aplicação se não subjazesse uma lei transcendental da especificação. Tal lei em verdade não requer uma infinitude real com respeito às diversidades das coisas que possam tornar-se objetos nossos; para tanto, efetivamente não dá lugar o princípio lógico que afirma unicamente a indeterminidade da esfera lógica com respeito à divisão possível; não obstante, tal lei impõe ao entendimento a tarefa de procurar subespécies sob cada espécie que nos aparece e diversidades menores para cada diversidade. Com efeito, se não houvesse conceitos inferiores, não haveria tampouco superiores. Ora, o entendimento conhece tudo só mediante conceitos; logo, na medida do alcance da divisão jamais conhece mediante a simples intuição, mas sempre reiteradamente mediante conceitos inferiores. Na sua determinação completa (possível somente pelo entendimento), o conhecimento dos fenômenos exige uma especificação incessantemente progressiva dos seus conceitos e uma progressão rumo a diversidades sempre ainda remanescentes, das quais se abstraiu no conceito de espécie e mais ainda no de gênero. Tal lei da especificação tampouco pode ser tirada da experiência, pois esta não pode fornecer perspectivas tão vastas. A especificação empírica detém-se logo na distinção do múltiplo, caso pela já precedente lei transcendental da especificação enquanto princípio da razão não tenha sido guiada a procurar essa distinção e a supô-la sempre de novo, mesmo que não se revele aos sentidos. Para descobrir que as terras absorventes são de diferentes espécies (terras calcárias e muriáticas), precisou-se de uma regra precedente da razão que impusesse ao entendimento a tarefa de procurar a diversidade ao mesmo tempo em que pressupusesse a natureza tão rica que levasse a supô-la. Pois nós possuímos entendimento apenas sob a pressuposição da diversidade na natureza, como sob a condição de que os objetos da mesma possuam em si homogeneidade, pois precisamente a multiplicidade daquilo que pode ser reunido sob um conceito perfaz o uso desse conceito e a ocupação do entendimento. Portanto, a razão prepara o campo do entendimento, em primeiro lugar, mediante um princípio da homogeneidade de múltiplo sob gêneros superiores, em segundo lugar mediante um princípio da variedade do homogêneo sob espécies inferiores; e para completar a unidade sistemática, em terceiro lugar, acrescenta ainda uma lei da afinidade de todos os conceitos, que ordena uma passagem contínua de cada espécie a toda outra mediante um crescimento gradual da diversidade. Podemos denomina-los princípios da homogeneidade, da especificação e da continuidade das formas. O último princípio surge da reunião dos dois primeiros depois que se completou a interconexão sistemática na ideia, tanto no ascender a gêneros superiores quanto no descer a espécies inferiores. Com efeito, todas as multiplicidades são reciprocamente afins, pois são todas oriundas de um único gênero supremo mediante todos os graus da determinação ampliada. Podemos representar sensivelmente a unidade sistemática sob os três princípios lógicos da seguinte maneira. Cada conceito pode ser considerado um ponto que desde o ponto de vista do observador tem o seu horizonte, ou seja, um conjunto de coisas que a partir desse ponto podem ser representadas e por assim dizer abarcadas. Dentro desse horizonte, tem que ser possível indicar um número infinito de pontos, cada um dos quais tenha por sua vez um campo visual mais restrito; isto é, segundo o princípio da especificação toda espécie contém subespécies, e o horizonte lógico consta só de horizontes menores (subespécies), mas não de pontos que não possuem extensão (indivíduos). No entanto, para horizontes diferentes, isto é, para gêneros determinados pelo mesmo tanto de conceitos, pode-se pensar o traçamento de um horizonte comum a partir do qual, como de um centro, os horizontes podem ser todos abarcados, e que é o gênero superior até que finalmente o gênero supremo seja o horizonte universal e verdadeiro, determinado desde o ponto de vista do conceito supremo e compreendendo sob si toda a multiplicidade, ou seja, os gêneros, as espécies e as subespécies. A esse ponto de vista supremo sou conduzido pela lei da homogeneidade; a todos os inferiores e à sua máxima variedade, pela lei da especificação. Todavia, visto que deste modo não há nada vazio no inteiro âmbito de todos os conceitos possíveis e que fora dele nada pode ser encontrado, da pressuposição daquele campo visual universal e da sua divisão completa surge assim o mesmo princípio: non datur vacuum formarum; isto é, não há diferentes gêneros universais e primeiros que estejam por assim dizer isolados e separados entre si por um espaço intermediário vazio, mas todos os múltiplos gêneros são somente compartimentos de um único gênero supremo e universal. E desse princípio decorre a sua consequência imediata: datur continuum formarum; isto é, todas as diversidades de espécies limitam-se entre si e não permitem nenhuma passagem de uma às outras mediante um salto, mas só mediante todos os graus menores da diferença pelos quais se pode passar de uma à outra. Numa palavra, não há espécies ou subespécies que entre si (no conceito da razão) sejam as mais próximas, mas sempre ainda são possíveis espécies intermediárias nas quais a diferença entre a primeira e a segunda é menor que a dessas espécies entre si. A primeira lei, portanto, impede a dispersão na multiplicidade de diversos gêneros originários e recomenda a homogeneidade; a segunda, ao contrário, limita por sua vez esta inclinação à unidade e ordena a distinção das subespécies, antes que com nossos conceitos universais nos volvamos aos indivíduos. A terceira lei reúne aquelas duas, prescrevendo a homogeneidade na extrema multiplicidade mediante a passagem gradual de uma espécie a outra, o que acena a uma espécie de afinidade entre os diversos ramos na medida em que todos brotaram de um mesmo tronco. Essa lei lógica do continuum specierum (formarum logicarum) pressupõe porém uma lei transcendental (lex continui in natura) sem a qual o uso do entendimento só seria desencaminhado por aquela prescrição na medida em que talvez tomasse um caminho exatamente oposto ao da natureza. Logo, essa lei tem que repousar sobre fundamentos puros transcendentais, e não sobre fundamentos empíricos. Pois senão, no último caso, viria depois dos sistemas, mas foi propriamente ela que produziu o caráter sistemático do conhecimento da natureza. Atrás dessas leis não se encontram eventualmente ocultos propósitos de realizar um teste com as mesmas como se fossem simples tentativas, conquanto certamente essa interconexão, quando se verifica, fornece um poderoso argumento para considerar fundada aquela unidade pensada hipoteticamente, e sob este ponto de vista tais leis também possuem portanto a sua utilidade, mas se vê claramente que julgam a parcimônia das causas fundamentais, a multiplicidade dos efeitos e daí procedente a afinidade dos membros da natureza como em si mesmas racionais e conformes à natureza, e que estes princípios recomendam-se pois diretamente e não apenas como uma ajuda ao método. Vê-se porém facilmente que essa continuidade das formas é uma simples ideia à qual de modo algum pode ser apresentado um objeto congruente na experiência, não apenas pelo fato das espécies serem realmente divididas na natureza, tendo por isso que perfazer um quantum discretum, ao passo que se a progressão gradual na afinidade entre elas fosse contínua, a natureza teria que conter também uma verdadeira infinidade de membros intercalados que se situassem dentro de duas espécies dadas o que é impossível; mas também porque não poderíamos fazer absolutamente nenhum uso empírico determinado de uma tal lei na medida em que através disso não se manifesta o mínimo traço de afinidade segundo o qual e até que ponto devemos procurar a sucessão gradual da sua diversidade, mas somente um indício geral de que devemos procurá-la. Se mudarmos a ordem dos princípios ora referidos para dispô-los conforme o uso da experiência, então os princípios da unidade sistemática situar-se-iam do seguinte modo: multiplicidade, afinidade e unidade; mas enquanto ideias, cada um deles seria tomado no mais alto grau da sua completude. A razão pressupõe os conhecimentos do entendimento, inicialmente aplicados à experiência, e segundo ideias procura a sua unidade que vai muito mais longe do que a experiência pode alcançar. Sem prejuízo da sua diversidade, a afinidade do múltiplo sob um princípio da unidade concerne não simplesmente às coisas, mas bem mais ainda às simples propriedades e forças das coisas. Em consequência disso, se por exemplo o curso dos planetas nos é dado como circular por uma experiência (ainda não inteiramente corrigida) e nós encontramos diversidades, então as supomos naquilo que através de todos os infinitos graus intermediários pode alterar segundo uma lei constante o movimento circular para um movimento dele divergente, isto é, os movimentos dos planetas, que não são círculos, aproximam-se mais ou menos das propriedades destes e caem assim no movimento elíptico. Os cometas manifestam uma diversidade ainda maior em suas trajetórias, já que (até onde alcança a nossa observação) não regressam uma vez sequer ao movimento circular; nós todavia conjeturamos que se trate de um movimento parabólico afim ao elíptico, e se o longo eixo deste último for muito extenso, em todas as nossas observações não se poderá distinguir entre ambos. Assim, com base naqueles princípios, chegamos à unidade dos gêneros dessas trajetórias quanto à figura das mesmas, e através dela à unidade da causa de todas as leis do seu movimento (a gravitação). A partir daí estendemos posteriormente as nossas conquistas, procurando explicar também, a partir do mesmo princípio, todas as variedades e os aparentes desvios daquelas regras; e enfim até acrescentamos mais do que a experiência pode chegar a confirmar, ou seja, segundo as próprias regras da afinidade pensamos trajetórias hiperbólicas de cometas nas quais estes corpos abandonam totalmente o nosso sistema solar e, ao irem de sol a sol, unificam em seu curso as partes mais remotas de um sistema do mundo, para nós ilimitado, que se interconecta mediante uma e mesma força motora. O que nestes princípios é digno de nota e também a única coisa que nos ocupa é o fato de parecerem transcendentais e de, conquanto contenham simples ideias para se buscar o uso empírico da razão que podem ser seguidas por este apenas assintoticamente, isto é, só aproximadamente, apesar disso enquanto proposições sintéticas terem uma validade objetiva mas indeterminada, e de servirem como regra para a experiência possível, sendo além disso realmente usados com êxito como princípios heurísticos para a elaboração da experiência. Não obstante, não se pode chegar a efetuar uma dedução transcendental desses princípios, a qual é sempre impossível com respeito às ideias, como ficou provado acima. Na Analítica Transcendental, dentre os princípios do entendimento distinguimos os dinâmicos, como princípios meramente regulativos da intuição, dos matemáticos, como princípios constitutivos da mesma. Apesar disso, as mencionadas leis dinâmicas são constitutivas com respeito à experiência na medida em que tornam possíveis a priori os conceitos, sem os quais não ocorre nenhuma experiência. Os princípios da razão pura, ao contrário, jamais podem ser constitutivos com respeito aos conceitos empíricos, pois não lhes pode ser dado nenhum esquema correspondente da sensibilidade, e portanto, não podem possuir in concreto nenhum outro objeto. Ora, se desisto de um uso empírico de tais princípios enquanto constitutivos, como posso ainda querer assegurar-lhes um uso regulativo e, com ele, certa validade objetiva, e que significação pode ter este uso? O entendimento constitui um objeto para a razão do mesmo modo como a sensibilidade para o entendimento. Tornar sistemática a unidade de todas as possíveis ações empíricas do entendimento é uma tarefa da razão, assim como o entendimento conecta mediante conceitos e submete-se a leis empíricas o múltiplo dos fenômenos. Mas sem esquemas da sensibilidade, as ações do entendimento são indeterminadas; assim também a unidade da razão é em si mesma indeterminada com respeito às condições sob as quais e ao grau até que ponto o entendimento deve ligar sistematicamente os seus conceitos. No entanto, se bem que na intuição não possa ser descoberto esquema algum para a completa unidade sistemática de todos os conceitos do entendimento, apesar disso pode e tem que ser dado um analogon de um tal esquema que seja a ideia do maximum da divisão e da reunião do conhecimento do entendimento num princípio. Com efeito, é possível pensar de modo determinado aquilo que é o mais extenso e o absolutamente completo, pois foram eliminadas todas as condições restritivas que fornecem uma multiplicidade indeterminada. Logo, a ideia da razão é um analogon de um esquema de sensibilidade, mas com a diferença de que a aplicação dos conceitos do entendimento ao esquema da razão não é do mesmo modo um conhecimento do próprio objeto (como no caso da aplicação das categorias aos seus esquemas sensíveis), mas só uma regra ou um princípio da unidade sistemática de todo o uso do entendimento. Ora, visto que todo princípio que estabelece a priori a unidade completa do uso do entendimento também vale, se bem que só indiretamente, para o objeto da experiência, assim os princípios da razão pura possuem também realidade objetiva com vistas a este último, só que não para determinar algo a este respeito, mas para indicar o procedimento segundo o qual o uso empírico e determinado do entendimento com respeito à experiência pode tornar-se completamente concorde consigo mesmo mediante o fato de, tanto quanto possível, ser interconectado com o princípio da unidade completa e derivado do mesmo. Todos os princípios subjetivos inferidos não da constituição do objeto, mas do interesse da razão por certa perfeição possível do conhecimento desse objeto, são por mim chamados máximas da razão. Deste modo, há máximas da razão especulativas que repousam unicamente sobre o seu interesse especulativo, embora em verdade possam parecer princípios objetivos. Quando princípios meramente regulativos forem considerados constitutivos, então enquanto princípios objetivos poderão conflitar entre si; mas se forem considerados simplesmente máximas, então já não há um verdadeiro conflito, mas simplesmente um interesse diverso da razão, o qual causa uma separação no modo de pensar. De fato, a razão possui um único interesse, e o conflito das suas máximas é só uma diferença e limitação recíproca dos métodos para satisfazer esse interesse. Deste modo, neste racionalizador pode prevalecer o interesse pela multiplicidade (segundo o princípio da especificação), no outro porém o interesse pela unidade (segundo o princípio da agregação). Cada um dos dois crê tirar o seu juízo da compreensão do objeto, e funda-o contudo unicamente sobre a maior ou menor afeição a um dos dois princípios; estes não repousam sobre fundamentos objetivos, mas apenas sobre o interesse da razão, e por isso poderiam chamar-se antes máximas do que princípios. Quando vejo as pessoas inteligentes em conflito entre si por causa da característica dos homens, dos animais ou das plantas, até mesmo dos corpos do reino mineral - na medida em que alguns admitem, por exemplo, caracteres nacionais particulares fundados sobre a descendência, ou também distinções precisas e hereditárias entre famílias, raças etc., enquanto os outros, ao contrário, fundam a sua atenção sobre o fato de que a natureza por toda a parte dispôs identicamente e que toda a distinção repousa somente sobre contingências externas -, então devo tomar em consideração só a constituição do objeto a fim de compreender que para ambas as partes ele jaz oculto profundamente demais para que possam falar a partir da compreensão da natureza do objeto. Não se trata de outra coisa senão do duplo interesse da razão em que uma parte toma a peito um interesse, ou aparenta fazê-lo, e outra parte outro; por conseguinte, não se trata senão da diversidade das máximas da multiplicidade da natureza, que podem muito bem concordar entre si, mas enquanto forem tomadas por conhecimentos objetivos, proporcionam não só conflito, mas também dificuldades que por longo tempo retardam a verdade, até que seja encontrado um meio que faça concordar interesses conflitantes e satisfazer a razão a esse respeito. O mesmo se passa com a afirmação ou a negação daquela famosa lei introduzida por Leibniz e admiravelmente sustentada por Bonnet, a da escala continua das criaturas. Esta lei não é mais que uma aplicação do princípio da afinidade fundado sobre o interesse da razão. Com efeito, a observação e o conhecimento da constituição da natureza não poderiam absolutamente fornecer tal lei como uma afirmação objetiva. Os degraus dessa escola, tal como podem ser mostrados pela experiência, são distantes demais entre si, e as nossas supostas pequenas diferenças comumente são abismos tão largos na natureza que de modo algum se deve contar com tais observações para conhecer os propósitos da natureza (sobretudo em face de uma tão grande multiplicidade de coisas, onde sempre será fácil encontrar certas semelhanças e aproximações). Em contrapartida, o método de procurar a ordem na natureza segundo tal princípio e a máxima de considerá-la fundada numa natureza em geral, embora fique indeterminado onde e até que ponto, constituem não obstante um legítimo e excelente princípio regulativo da razão. Um princípio como este vai todavia longe demais para que a observação ou a experiência possa se lhe equiparar; e sem determinar qualquer coisa, só traça para a razão o caminho rumo à unidade sistemática. Do propósito último da dialética natural da razão pura As ideias da razão pura jamais podem ser em si mesmas dialéticas, mas tem que ser o seu simples abuso que faz com que delas surja uma aparência enganosa. Com efeito, nos são dadas pela natureza da nossa razão, e é impossível que este tribunal supremo de todos os direitos e pretensões da nossa especulação contenha enganos e ilusões originários. Presumivelmente terão também a sua determinação boa e adequada na disposição natural da nossa razão. A massa dos racionalizadores, porém, como de costume grita contra os absurdos e as contradições, e insulta o governo em cujos planos secretos não pode penetrar e a cujas influências benéficas ela mesma deveria agradecer a sua conservação e mesmo a cultura, que a põe em condições de censura-lo e condena-lo. Ninguém pode servir-se com segurança de um conceito a priori sem ter levado a efeito a sua dedução transcendental. As ideias da razão pura, na verdade, não permitem uma dedução como a que foi levada a efeito com as categorias. Mas se devem ter pelo menos alguma validade objetiva, mesmo que só indeterminada, e se não devem representar meramente vazios entes de pensamento (entia rationis ratiocinantis), então uma dedução de tais ideias tem que ser inteiramente possível, mesmo supondo que divirja bastante da dedução que se pode empreender com as categorias. Esta é a realização plena da tarefa crítica da razão pura e é ela que queremos agora empreender. Há uma grande diferença entre se algo é dado à minha razão como um objeto pura e simplesmente ou se só como um objeto na ideia. No primeiro caso, os meus conceitos dirigem-se à determinação do objeto: no segundo, trata-se apenas de um esquema ao qual não é conferido objeto algum, nem sequer hipoteticamente. Tal esquema serve somente para representar os outros objetos mediante a referência a essa ideia, por conseguinte, indiretamente, segundo a sua unidade sistemática. Assim, digo que o conteúdo de uma inteligência suprema é uma simples ideia, isto é, que a sua realidade objetiva não deve consistir no fato dele precisamente se referir a um objeto (pois com esta significação não poderíamos justificar a sua validade objetiva), mas que é só um esquema ordenado segundo as condições da máxima unidade da razão e relativo ao conceito de uma coisa em geral, servindo somente para manter a máxima unidade sistemática no uso empírico da nossa razão na medida em que o objeto da experiência é por assim dizer derivado do objeto fictício desta ideia enquanto seu fundamento ou sua causa. Em tal caso, diz-se por exemplo, que as coisas do mundo têm que ser consideradas como se obtivessem a sua existência de uma inteligência suprema. Deste modo, a ideia é propriamente só um conceito heurístico e não um conceito ostensivo, e indica não como um objeto é constituído, mas como sob a sua direção nós devemos procurar a constituição e a conexão dos objetos da experiência em geral. Ora, se for possível que, embora as três espécies de ideias transcendentais (psicológica, cosmológica e teológica) não sejam diretamente referidas a nenhum objeto a elas correspondente e a nenhuma determinação do mesmo, sob a pressuposição de tal objeto na ideia possam contudo conduzir todas as regras do uso empírico da razão à unidade sistemática e ampliar permanentemente o conhecimento da experiência, mas sem jamais ser contrárias à mesma, então proceder segundo tais ideias constituirá uma máxima necessidade da razão. E esta é a dedução transcendental de todas as ideias da razão especulativa não enquanto princípios constitutivos do nosso conhecimento a um número de objetos maior do que a experiência pode fornecer, mas enquanto princípios regulativos da unidade sistemática do múltiplo do conhecimento empírico em geral, que deste modo é mais consolidado e retificado do que aconteceria, sem tais ideias, mediante o simples uso dos princípios do entendimento. Quero tomar mais claro este ponto. Em primeiro lugar, seguindo as referidas ideias como princípios, pretendemos conectar (na Psicologia) todos os fenômenos, ações e receptividade da nossa mente com o fio condutor da experiência interna como se fosse uma substância simples existindo permanentemente (pelo menos na vida) com a sua identidade pessoal, ao passo que variam continuamente os seus estados, aos quais os do corpo pertencem só como condições externas. Em segundo lugar (na Cosmologia), temos que perseguir as condições tanto dos fenômenos internos quanto dos fenômenos externos da natureza numa investigação jamais terminável como se tal série fosse em si infinita e carente de um elo primeiro ou supremo, apesar de não negarmos que com isso os seus fundamentos primeiros fora dos fenômenos sejam meramente inteligíveis: não obstante, jamais devemos inseri-los no contexto das explicações da natureza, pois de modo algum os conhecemos. Finalmente, em terceiro lugar, temos que considerar (com respeito à Teologia) tudo o que possa pertencer ao contexto da experiência possível como se esta constituísse uma unidade absoluta, mas completamente dependente e sempre ainda condicionada ao mundo sensível, e não obstante ao mesmo tempo como se o conjunto de todos os fenômenos (o próprio mundo sensível) tivesse fora do seu âmbito um único fundamento supremo e totalmente suficiente, a saber, uma razão por assim dizer autônoma, originária e criadora com referência à qual dirigimos o uso empírico da nossa razão, na máxima ampliação daquele uso, como se os próprios objetos surgissem daquele arquétipo de toda razão. Isto significa que não derivamos os fenômenos internos da alma a partir de uma substância simples e pensante, mas uns dos outros segundo a ideia de um ente simples; e que não derivamos a ordem do mundo e a sua unidade sistemática a partir de uma inteligência suprema, mas que a ideia de uma causa sumamente sábia extraímos a regra segundo a qual a razão possa ser utilizada da melhor maneira possível, para o seu próprio apaziguamento na conexão entre causas e efeitos no mundo. Ora, não há o mínimo obstáculo que nos impeça admitir essas ideias também como objetivas e hipostáticas, com exceção unicamente da cosmológica, na qual a razão, ao querer realizá-la, encontra uma antinomia que as ideias psicológicas e teológicas absolutamente não contêm. De fato, não há nelas nenhuma contradição. Como poderia então alguém contestar-nos a sua realidade objetiva se, para negá-la, sabe tão pouco sobre a sua possibilidade quanto nós para afirmá-la? Todavia, para admitir alguma coisa não basta ainda que não haja um obstáculo positivo em contrário; e não nos é permitido introduzir como objetos reais e determinados, entes de pensamento que ultrapassam todos os nossos conceitos, conquanto não contradigam nenhum, com base no simples crédito de uma razão especulativa que aspira ver plenamente concluída a sua tarefa. Logo, tais entes não devem ser admitidos em si mesmos, mas a sua realidade deve valer só como a de um esquema do princípio regulativo da unidade sistemática de todo o conhecimento da natureza; por conseguinte, devem servir de fundamento apenas como entes análogos a coisas reais, mas não como coisas reais em si mesmas. Do objeto da ideia suprimimos as condições que limitam o conceito do nosso entendimento, mas que também nos possibilitam ter um conceito determinado de qualquer coisa. E agora pensamos um algo do qual não possuímos absolutamente conceito algum sobre o que seja em si mesmo, mas do qual contudo pensamos uma relação com o conjunto dos fenômenos análoga àquela que os fenômenos possuem entre si. De acordo com isso, quando admitimos tais entes ideais, não ampliamos propriamente o nosso conhecimento além dos objetos da experiência possível, mas só a unidade empírica desta mediante a unidade sistemática; e o esquema para ela nos é fornecido pela ideia que por isso vale não como princípio constitutivo, mas regulativo. Pois com o fato de pormos um algo, ou um ente real, como correspondente à ideia, não fica dito que quiséssemos ampliar o nosso conhecimento das coisas com conceitos transcendentes. Com efeito, um tal ente é posto como fundamento só na ideia e não em si mesmo, por conseguinte, só para expressar a unidade sistemática que deve servir de norma para o uso empírico da razão, sem contudo decidir algo sobre qual seja o fundamento dessa unidade ou sobre a propriedade intrínseca de tal ente sobre o qual, como sua causa, essa unidade repouse. Assim, o conceito transcendental e o único conceito determinado de Deus que a razão meramente especulativa nos oferece, é deístico no sentido mais exato. Isto é, a razão jamais apresenta a validade objetiva de um tal conceito, mas só a ideia de algo sobre o qual toda a realidade empírica funda a sua unidade suprema e necessária, e o qual não pode ser pensado por nós senão em analogia com uma substância real que segundo leis da razão seja a causa de todas as coisas. Nós, ao invés, por toda a parte preferimos tentar pensar esse algo como um objeto particular, no lugar de, satisfeitos com a simples ideia do princípio regulativo da razão, pormos a plena realização de todas as condições do pensamento de lado como transcendentes ao entendimento humano. Tal pretensão, todavia, não pode subsistir junto com o propósito de uma unidade sistemática perfeita em nosso conhecimento, à qual pelo menos a razão não põe nenhum limite. Ora, em vista disso ocorre que, quando admito um ente divino, na verdade não possuo o menor conceito nem da possibilidade intrínseca da sua mais alta perfeição nem da necessidade da sua existência; mas em compensação posso em tal caso resolver todas as demais questões concernentes ao contingente e conseguir o perfeito apaziguamento da razão com respeito à investigação da máxima unidade em seu uso empírico, embora não possa consegui-lo com respeito a esse próprio pressuposto. Este fato prova que é o interesse especulativo da razão, e não o seu conhecimento, que a autoriza a sair de um ponto que jaz tão acima da sua esfera para daí completar os seus objetos num todo completo. Ora, num e mesmo pressuposto mostra-se aqui uma diferença no modo de pensar que é bastante sutil e não obstante de grande importância na filosofia transcendental. Posso ter fundamento suficiente para admitir algo relativamente (supositio relativa) sem ser por isso autorizado a admiti-lo absolutamente (supositio absoluta). Essa distinção é correta quando se trata simplesmente de um princípio regulativo; em tal caso, na verdade, conhecemos em si mesma a necessidade deste princípio, mas não a fonte desta necessidade. Em vista disso, admitimos em fundamento supremo simplesmente com o propósito de pensar tanto mais determinadamente a universalidade do princípio como por exemplo quando penso como existente um ente que corresponde a uma simples ideia, e precisamente a uma transcendental. Com efeito, em tal caso jamais poderei admitir em si a existência dessa coisa, pois nenhum conceito pelo qual posso pensar determinadamente qualquer objeto atinge isto, sendo as condições da validade objetiva dos meus conceitos excluídas pela própria ideia. Os conceitos de realidade, de substância, de causalidade e mesmo o da necessidade na existência não possuem, fora do uso pelo qual possibilitam o conhecimento empírico de um objeto, absolutamente significação alguma que determine qualquer objeto. Portanto, podem de fato ser usados para explicar a possibilidade das coisas no mundo dos sentidos, mas não a possibilidade do próprio universo, pois este fundamento explicativo teria que estar fora do mundo e, por conseguinte, não poderia ser um objeto de uma existência possível. Ora, apesar disso posso admitir, relativamente ao mundo dos sentidos, conquanto não em si mesmo, tal ente incompreensível como objeto de uma simples ideia. Com efeito, se ao máximo uso empírico possível da minha razão subjaz uma ideia (da unidade sistemática completa, à qual em breve me referirei mais determinadamente) que em si mesma jamais pode ser exposta adequadamente na experiência, embora seja incontestavelmente necessária para aproximar a unidade empírica ao seu mais alto grau possível, então sou não só autorizado, mas também coagido a realizar essa ideia, isto é, conferir-lhe um objeto real, mas só como um algo em geral, que em si mesmo não conheço de modo algum; e só enquanto se trata de um fundamento daquela unidade sistemática, com referência a esta última outorgo-lhe aquelas propriedades que são análogas aos conceitos de entendimento no uso empírico. Portanto, em analogia com as realidades do mundo, com as substâncias, com a causalidade e com a necessidade pensarei em ente que possui tudo isto na mais alta perfeição; e na medida em que esta ideia repousa simplesmente sobre a minha razão, poderei pensar esse ente como uma razão por si subsistente que, mediante ideias de máxima harmonia e unidade, é a causa do universo. Deste modo, abandono todas as condições que limitam a ideia unicamente para, sob a proteção de tal fundamento originário, tornar possível a unidade sistemática do múltiplo no universo e, através dela, o máximo uso empírico possível da razão na medida em que encaro todas as ligações como se fossem disposições de uma razão suprema da qual a nossa é uma fraca cópia. Portanto, penso esse ente supremo por puros conceitos que propriamente têm a sua aplicação só no mundo dos sentidos. Todavia, visto que também aquele pressuposto transcendental é possuído por mim somente para um uso relativo, a saber, para que forneça o substrato da máxima unidade possível da experiência, assim posso muito bem, mediante propriedades que pertencem unicamente ao mundo dos sentidos, pensar um ente que distingo do mundo. De fato, de modo algum exijo e tampouco estou autorizado a exigir conhecer esse objeto da minha ideia segundo o que possa ser em si mesmo; pois não possuo conceitos para isso, e mesmo os conceitos de realidade, de substância, de causalidade e até mesmo de necessidade na existência perdem toda a significação e são títulos vazios para conceitos sem qualquer conteúdo quando com eles ouso sair do campo dos sentidos. Penso apenas a relação de um ente em si totalmente desconhecido a mim com a máxima unidade sistemática do universo, unicamente para fazê-lo esquema do princípio regulativo do maior uso empírico possível da minha razão. Ora, se lançamos o nosso olhar sobre o objeto transcendental da nossa ideia então vemos que não podemos pressupor em si mesma a sua realidade efetiva (wirklichkeit) com base nos conceitos de realidade (Realitiit), substância, causalidade etc., pois estes conceitos não possuem a mínima aplicação a algo totalmente distinto do mundo dos sentidos. Logo, a suposição, feita pela razão, do ente mais alto entre todos como causa suprema, é simplesmente relativa e pensada com vista à unidade sistemática do mundo do sentido, e é um simples algo na ideia com respeito ao qual não possuímos nenhum conceito sobre o que seja em si. Com isso, explica-se também porque necessitamos, com referência àquilo que é dado existindo aos sentidos, a ideia de um ente originário em si necessário, mas sem jamais poder ter o mínimo conceito dele e da sua necessidade absoluta. Doravante podemos pôr claramente ante os olhos o resultado de toda a dialética transcendental, e determinar exatamente a intenção última das ideias da razão pura, que se tornam dialéticas apenas por equívoco e imprudência. De fato, a razão pura não está ocupada com nada mais senão consigo mesma, e não pode tampouco ter qualquer outro ofício, pois lhe são dados não os objetos para a unidade do conceito de experiência, mas os conceitos do entendimento para a unidade do conceito da razão, isto é, da interconexão em um princípio. A unidade da razão é a única do sistema, e esta unidade sistemática serve à razão não objetivamente como princípio para disseminá-la sobre os objetos, mas subjetivamente como máxima para disseminá-la sobre o todo conhecimento empírico possível dos objetos. Apesar disso, a interconexão sistemática, que a razão pode fornecer ao uso empírico do entendimento, não só promove a difusão deste uso, mas também garante ao mesmo tempo a sua correção. E o princípio de tal unidade sistemática também é objetivo, mas de modo indeterminado (principium vagum), não como princípio constitutivo para determinar algo com vistas ao seu direto objeto, mas como simples princípio regulativo e como máxima para promover e consolidar até o infinito (indeterminado) o uso empírico da razão, mediante a abertura de caminhos novos, que o entendimento desconhece, sem com isso jamais contradizer nem um pouco as leis do uso empírico. A razão, contudo, não pode pensar essa unidade sistemática senão enquanto ao mesmo tempo dá à sua ideia um objeto, que todavia não pode ser dado por nenhuma experiência, pois esta jamais fornece um exemplo de perfeita unidade sistemática. Ora, tal ente de razão (ens rationes ratiocinatae) é na verdade uma simples ideia, e portanto não é admitido, absolutamente e em si mesmo como algo real, mas é posto apenas problematicamente como fundamento (porque não podemos alcança-lo por meio de nenhum conceito do entendimento), para considerar toda a conexão das coisas do mundo dos sentidos como se tivessem o seu fundamento nesse ente de razão. Contudo, isso ocorre unicamente com o propósito de fundar sobre ele e a unidade sistemática indispensável à razão, mas que promove sob todos os aspectos o conhecimento empírico do entendimento e não obstante jamais pode obstaculiza-lo, Deixa-se de compreender a significação dessa ideia tão logo seja tomada pela afirmação, ou mesmo apenas pelo pressuposto, de uma coisa real, à qual se tencionasse atribuir o fundamento da constituição sistemática do mundo; deixa-se antes, totalmente em suspenso que a natureza possui em si mesmo esse fundamento, que se subtrai aos nossos conceitos, e como ponto de vista põe-se só uma ideia a partir do qual unicamente se pode difundir aquela unidade tão essencial à razão e tão salutar ao entendimento. Numa palavra, tal coisa transcendental é simplesmente o esquema daquele princípio regulativo pelo qual a razão, na medida das suas forças, estende a unidade sistemática sobre toda a experiência. O primeiro objeto de tal ideia sou eu mesmo considerado simplesmente como natureza pensante (alma). Se quero investigar as propriedades com que um ente pensante existe em si, tenho que interrogar a experiência, e não posso aplicar a esse objeto nenhuma dentre todas as categorias senão na medida em que o seu esquema seja dado na intuição sensível. Deste modo, contudo, jamais alcanço a unidade sistemática de todos os fenômenos do sentido interno. Portanto, ao invés do conceito de experiência (daquilo que a alma realmente é) que não pode levar-nos adiante, a razão toma o conceito da unidade empírica de todo o pensamento e, pelo fato de pensar esta unidade de modo incondicionado e originário, faz do seu conceito um conceito racional (ideia) de uma substância simples, que esteja em si mesma, fora de tal unidade empírica, em comunidade com outras coisas reais; em outras palavras, faz dele um conceito de uma inteligência simples e subsistente por si. Com isso, a razão não tem em vista senão princípios de unidade sistemática na explicação dos fenômenos da alma, ou seja, considerar todas as determinações como existindo num sujeito uno, na medida do possível todas as forças como derivadas de uma força fundamental una, toda a variação como pertencente aos estados de um e mesmo ente permanente, e representar todos os fenômenos no espaço como totalmente distintos das ações do pensar. Aquela simplicidade da substância etc., deveria ser só o esquema para esse tipo regulativo, e não é pressuposta como o fundamento real das propriedades da alma. Estas, com efeito, podem repousar também sobre fundamentos totalmente diversos que de modo algum conhecemos. Do mesmo modo, não poderíamos propriamente conhecer em si mesma a alma mediante esses predicados adotados, mesmo que quiséssemos fazê-los valer absolutamente com respeito a ela, na medida em que perfazem uma simples ideia, que de modo algum pode ser representada in concreto. Ora, tal ideia psicológica só pode produzir vantagem, contando apenas que se evite fazê-la valer por algo mais que uma simples ideia, isto é, que se faça valer apenas relativamente ao uso sistemático da razão com vistas aos fenômenos da nossa alma. Com efeito, na explicação daquilo que pertence meramente ao sentido interno não se imiscui qualquer lei empírica de fenômenos corpóreos, os quais são de natureza totalmente diversa; nela não é admitida qualquer hipótese leviana sobre a geração, destruição e paligênese das almas etc., logo, a consideração desse objeto do sentido interno é disposta de modo totalmente puro e sem mescla de propriedades heterogêneas, além de dirigir a investigação da razão no sentido de na medida do possível levar os fundamentos explicativos nesse sujeito até um princípio único. Isto tudo é produzido do melhor modo, até mesmo do único modo possível, por tal esquema como se fosse um ente real. Tampouco a ideia psicológica pode significar outra coisa a não ser o esquema de um conceito regulativo. Pois bastaria eu querer perguntar se a alma não possui em si uma natureza espiritual, para esta pergunta já não ter sentido algum. Com efeito, mediante tal conceito elimino não simplesmente a natureza corpórea, mas em geral toda a natureza, isto é, todos os predicados de qualquer experiência possível, por conseguinte, todas as condições para pensar um objeto para semelhante conceito, o que unicamente faz com que se diga: tal conceito tem um sentido. A segunda ideia regulativa da razão simplesmente especulativa é o conceito de mundo em geral. Com efeito, a natureza é propriamente o único objeto dado, com vista ao qual a razão necessita princípios regulativos. Essa natureza é de duas espécies: ou natureza pensante, ou natureza corpórea. Todavia, para pensarmos a última, segundo a sua possibilidade interna, ou seja, para determinarmos a aplicação das categorias a ela, não necessitamos qualquer ideia, isto é, uma representação transcende à experiência; e nem sequer é possível uma ideia com respeito à natureza corpórea, pois neste caso somos dirigidos simplesmente pela intuição sensível e não como no caso do conceito psicológico fundamental (eu), o qual contém a priori certa forma do pensamento, a saber, a sua unidade. Logo, para a razão pura não nos resta nada a não ser a natureza em geral e a completude das condições nela segundo algum princípio qualquer. A totalidade absoluta da série destas condições na derivação dos seus membros, é uma ideia, que em verdade jamais pode realizar-se inteiramente no uso empírico da razão, mas que não obstante serve de regra sobre como devemos proceder com respeito a tais derivações, ou seja, na explicação de fenômenos dados (no regresso ou progresso) como se a série fosse em si infinita, isto é, in indefinitum. Mas, onde a própria razão for considerada a causa determinante (na liberdade), portanto nos princípios práticos, devemos proceder como se tivéssemos ante nós não um objeto dos sentidos, mas do entendimento puro; onde as condições não podem mais ser postas na série dos fenômenos, mas podem ser postas fora dela, a série dos estados pode ser considerada como se iniciasse de modo absoluto (mediante uma causa inteligível). Tudo isso prova que as ideias cosmológicas nada mais são que princípios regulativos, estando muito distantes de estabelecer, por assim dizer constitutivamente, uma totalidade real de tais séries. O restante pode ser procurado em seu devido lugar, sob o título da antinomia da razão pura. A terceira ideia da razão pura, que contém uma suposição meramente relativa de um ente, como causa una e totalmente suficiente de todas as séries cosmológicas, é o conceito racional de Deus. Não temos o mínimo fundamento para admitir absolutamente (supor em si) o objeto dessa ideia. De fato, que coisa pode capacitar-nos, ou sequer dar-nos o direito de, a partir do simples conceito em si mesmo de um ente da mais alta perfeição e absolutamente necessário em sua natureza, crer nele ou afirma-lo, senão o mundo unicamente com referência ao qual pode ser necessária essa suposição? Assim como ocorre com todas as ideias especulativas, aqui mostra-se claramente que a ideia de um tal ente nada mais quer expressar que o fato de que a razão ordena considerar toda a conexão do mundo segundo, princípios de uma unidade sistemática, por conseguinte como se esses princípios tivessem todos surgido de um único ente universalmente compreensivo, como causa suprema e totalmente suficiente. Disto resulta claramente que na ampliação do seu uso empírico a razão pode ter como propósito senão a sua própria regra formal, jamais uma ampliação acima de todos os limites do uso empírico, consequentemente que sob essa ideia não se oculta nenhum princípio constitutivo do seu uso dirigido à experiência possível. A mais alta unidade formal, que repousa unicamente sobre conceitos da razão, é a única das coisas conforme a um fim; e o interesse especulativo da razão torna necessário encarar toda a ordem no mundo como se brotasse da intenção de uma razão mais elevada que todas. Tal princípio abre perspectivas totalmente novas à nossa razão aplicada no campo da experiência, ou seja, de conectar as coisas do mundo segundo leis teleológicas e desse modo alcançar a sua máxima unidade sistemática. O pressuposto de uma inteligência suprema como causa única do universo, mas certamente apenas na ideia, pode pois sempre beneficiar a razão e mesmo assim jamais prejudicá-la. Com efeito, se com respeito à figura da terra (arredondada, contudo um tanto achatada), (A vantagem produzida por uma forma esférica da terra é bastante conhecida. Todavia, poucos sabem que é unicamente o seu achatamento como um esferoide que impede as protuberâncias do continente, ou mesmo de montanhas menores que se elevaram talvez por terremoto, se deslocarem contínua e consideravelmente o eixo da terra em pouco tempo. A protuberância da terra no equador, todavia, forma um monte tão poderoso que o ímpeto de qualquer outra montanha jamais poderá deslocar perceptivelmente a sua posição com respeito ao eixo. E não obstante se explica sem hesitação esta sábia disposição a partir do equilíbrio da massa anteriormente fluida da terra. Nota do Autor.) das montanhas e dos mares etc., de antemão admitimos puramente propósitos sábios de um criador, então podemos por essa via fazer uma porção de descobertas. Desde que nós atenhamos apenas a este pressuposto, com princípio puramente regulativo nem o erro poderá prejudicar-nos. Pois disso pode quando muito resultar que, onde esperávamos uma interconexão teleológica (nexus finalis), seja encontrada uma interconexão meramente mecânica ou física (nexus effectivus). Em tal caso, damos somente pela falta de mais uma unidade, mas não viciamos a unidade da razão no seu uso empírico. Mas mesmo este cálculo errado não pode afetar a própria lei no seu fim universal e teleológico. Com efeito, embora um anatomista possa estar persuadido de um erro ao referir a um fim qualquer órgão de um corpo animal do qual pode mostrar claramente que não resulta da referência àquele fim, é todavia inteiramente impossível provar que uma estrutura natural, seja qual for, não tenha absolutamente fim algum. Por isso, também a Fisiologia (dos médicos) amplia o seu muito limitado conhecimento empírico dos fins da estrutura articulada de um corpo orgânico mediante um princípio sugerido simplesmente pela razão pura, a ponto de em tal ciência admitir-se francamente, e ao mesmo tempo com a aprovação de todos os competentes, que no animal tudo tem a sua utilidade e uma intenção boa. Se fosse constitutivo este pressuposto iria muito mais além do que pode ser justificado pela observação até aqui realizada. Disso se pode efetivamente depreender que não passa de um princípio regulativo da razão para alcançar a mais alta unidade sistemática através da ideia da causalidade, conforme a um fim, da suprema causa do mundo, e como se esta enquanto inteligência suprema, fosse a causa de todas as coisas segundo a mais sábia intenção. Todavia, se prescindirmos dessa restrição da ideia ao uso meramente especulativo, a razão cai em erros de diversas espécies. Em tal caso, abandona o terreno da experiência que não obstante tem que conter os marcos da sua passagem, e por sobre ela tenta alcançar o incompreensível e o insondável. A tal altura a razão é necessariamente colhida por vertigens, pois desde essa perspectiva vê-se totalmente isolada de todo o uso concordante com a experiência. Do fato de se usar a ideia de um ente supremo não apenas regulativamente mas (o que é contrário à natureza de uma ideia) também constitutivamente, o primeiro defeito a surgir é o da razão indolente (ratio ignava). (Assim os antigos dialéticos intitulavam um paralogismo que soava da seguinte maneira: se o teu destino diz que deves ser curado desta doença, então isto acontecerá quer recorras a um médico, quer não. Cícero diz que este modo de raciocinar possui o seu nome do fato de que, quando é seguido, não resta à razão absolutamente nenhum uso da vida; por isso designo pelo mesmo nome o argumento sofístico da razão pura. Nota do Autor.) Pode-se chamar assim todo o princípio que faça com que alguém encare a sua investigação da natureza, seja onde for, como absolutamente concluída, e que a razão se entregue pois ao descanso, como se tivesse executado inteiramente o seu ofício. Por isso, quando usada como um princípio constitutivo para explicar os fenômenos da nossa alma e a seguir também para ampliar o nosso conhecimento deste sujeito para além de toda a experiência (o seu estado depois da morte), a própria ideia psicológica torna-se em verdade bastante cômoda para a razão, mas em tal caso é pervertido e destruído todo o uso natural da razão segundo o guia das experiências. Deste modo, o espiritualista dogmático explica a unidade da pessoa, que subsiste inalterada através de toda a variação dos estados, mediante a unidade da substância pensante que ele crê perceber imediatamente no eu; ou explica o interesse por coisas, que deverão acontecer pela primeira vez após a nossa morte, a partir da consciência da natureza imaterial do nosso sujeito pensante etc. Furta-se toda a investigação natural da causa desses nossos fenômenos internos a partir de fundamentos explicativos físicos na medida em que, por assim dizer, através da decisão autoritária de uma razão transcendente, para fins da sua comodidade deixa de lado as fontes imanentes do conhecimento da experiência, mas isto com perda de todo o conhecimento. Estas consequências prejudiciais dão mais claramente na vista ainda no dogmatismo a nossa ideia de unia inteligência suprema e no sistema teológico da natureza (física-teologia) falsamente fundado sobre a mesma. De fato, neste caso, todos os fins que se mostram na natureza, e frequentemente feitos tais só por nós mesmos, servem para tornar bem cômoda a nossa investigação das causas, ao invés de as procurar nas leis universais do mecanismo da matéria, recorremos diretamente ao decreto imperscrutável da sabedoria suprema e consideramos então concluídos os esforços da razão ao prescindirmos do seu uso. Este não encontra, contudo, um guia senão o fornecido a nós pela ordem da natureza e pela série das mudanças segundo as suas leis internas e universais. Este defeito pode ser evitado, se não só considerarmos algumas partes da natureza desde a perspectiva dos fins, como por exemplo a distribuição da terra firme, a sua estrutura, e a sua constituição e situação das montanhas, ou mesmo só a organização nos reinos vegetal e animal, mas se também tornarmos totalmente universal esta unidade sistemática da natureza com referência à ideia de uma inteligência suprema. Pois então pomos como fundamento da natureza uma finalidade segundo leis universais das quais nenhuma estrutura particular da natureza é excluída, mas apenas distinguida de modo maior ou menor por nós. Assim possuímos um princípio regulativo da unidade sistemática de uma conexão teleológica que não devemos determinar antecipadamente, mas só na expectativa da mesma seguir a conexão físico-mecânica segundo leis universais. Com efeito, unicamente deste modo o princípio da unidade conforme um fim pode sempre ampliar o uso da razão com respeito à experiência, sem causar-lhe prejuízo em algum caso. O segundo defeito, que surge da interpretação errônea do referido princípio da unidade sistemática, é o da razão às avessas (perversa ratio, ?????????? ????????? rationis). Como princípio regulativo, a ideia da unidade sistemática deveria apenas servir para procurar tal unidade da ligação das coisas segundo leis universais da natureza; consequentemente, quanto mais ligações puderem ser encontradas por via empírica, tanto mais nos creremos próximos da completude do uso de tal ideia, conquanto esta certamente jamais seja alcançada. Ao invés disso inverte-se o modo de proceder, e desde o início coloca-se hipostaticamente como fundamento a realidade de um princípio da unidade conforme um fim, determina-se antropomorficamente o conceito de uma tal inteligência suprema porque em si é inteiramente insondável, e a seguir se impõe fins à natureza de modo violento e ditatorial ao invés de procura-los, como seria justo, via investigação física. Deste modo, não só a teologia, que deveria servir simplesmente para completar a unidade da natureza segundo leis universais, antes atua para destruir tal unidade, mas a própria razão ainda se priva do seu fim, ou seja, de a partir da natureza e segundo tais leis provar a existência de uma tal causa suprema inteligente. Com efeito, se a finalidade suprema não pode ser pressuposta a priori na natureza, isto é, como pertencente à sua essência, então como se pode estar instruído para procurá-la e para aproximar-se, seguindo-a gradualmente, da perfeição suprema de um criador enquanto perfeição absolutamente necessária e, por conseguinte, cognoscível a priori? O princípio regulativo exige que a unidade sistemática seja pressuposta como unidade da natureza de um modo absoluto, por conseguinte, como se resultasse da essência das coisas. Esta unidade, aliás, não é conhecida só empiricamente, mas pressuposta a priori, se bem que de um modo ainda indeterminado. Todavia, se antes ponho como fundamento um ente supremo ordenador, então a unidade da natureza é na verdade supressa. De fato, é totalmente estranha e contingente, e tampouco pode ser conhecida a partir de leis universais. Em virtude disso, na prova surge um círculo vicioso, já que se pressupõe aquilo que propriamente devia ter sido provado. Tomar o princípio regulativo da unidade sistemática da natureza por um princípio constitutivo e pressupor hipostaticamente como causa aquilo que só na ideia subjaza o uso coerente da razão, significa confundir a razão. A investigação da natureza percorre o seu curso unicamente ao longo da cadeia das causas naturais segundo leis universais das mesmas; claro que procede assim segundo a ideia de um criador, mas não para derivar dele a finalidade que persegue por toda a parte, e sim para conhecer a sua existência a partir de tal finalidade procurada na essência das coisas da natureza e, sempre que possível, também na essência de todas as coisas em geral, por conseguinte, para conhecer tal existência como absolutamente necessária. Quer esta última tentativa tenha êxito ou não, a ideia permanece sempre correta e do mesmo modo também o seu uso, desde que tenha sido restringido às condições de um princípio meramente regulativo. Uma completa unidade conforme um fim é perfeição (absolutamente considerada). Já que não encontramos esta perfeição na essência das coisas que perfazem o objeto total da experiência, isto é, de todo o nosso conhecimento objetivamente válido, e que, por conseguinte, encontramos nas leis universais e necessárias da natureza, como podemos então querer dela inferir a ideia de uma perfeição suprema e absolutamente necessária de um ente originário que seja a fonte de toda a causalidade? A máxima unidade sistemática, e, por conseguinte, também a unidade conforme um fim, é a escola e mesmo o fundamento da possibilidade do uso máximo da razão humana. A ideia de tal unidade liga-se pois indissoluvelmente à essência da nossa razão. E precisamente a mesma ideia é portanto legisladora para nós, sendo com isso muito natural admitir uma razão legisladora (intellectus aschetypus) que lhe corresponda, e da qual possa ser derivada toda a unidade sistemática da natureza enquanto objeto da nossa razão. Ao tratarmos da antinomia da razão pura, dissemos que todas as questões levantadas pela razão pura têm que poder ser inteiramente respondidas, e que a desculpa das barreiras do nosso conhecimento, que em muitas questões da natureza é tanto inevitável quanto justa, não pode ser permitida no presente caso. Com efeito, aqui não se trata da natureza das coisas, mas só de questões postas pela natureza da razão e unicamente acerca da sua constituição interna. Agora podemos confirmar esta à primeira vista ousada asserção com respeito aos dois problemas pelos quais a razão pura tem o máximo interesse, e deste modo levar a nossa consideração sobre dialética da razão pura ao seu pleno acabamento. Portanto, à pergunta (com vistas a uma teologia transcendental), (Aquilo que eu já disse anterionnente sobre a ideia psicológica e a sua destinação própria enquanto princípio do uso meramente regulativo da razão, dispensa•me da prolixidade de discutir ainda especialmente a ilusão transcendental, segundo a qual aquela unidade sistemática de toda a multiplicidade do sentido interno é representada hipostaticamente. O procedimento é aqui muito semelhante ao observado pela Critica com respeito ao ideal teológico. Nota do Autor.) em primeiro lugar, se há algo distinto do mundo que contenha o fundamento da ordem cósmica e da sua interconexão segundo leis universais, deve-se responder: sem dúvida. Com efeito, sendo o mundo uma soma de fenômenos, tem que existir algum fundamento transcendental, isto é, pensável simplesmente pelo entendimento puro. Mas quando a pergunta é, em segundo lugar, se a substância de tal ente da máxima realidade é necessária etc., então respondo: esta questão não possui absolutamente significação alguma. Pois todas as categorias, pelas quais tento formar um conceito de tal objeto, não possuem outro uso a não ser o empírico, e não possuem pois sentido algum quando não aplicadas a objetos da experiência possível, isto é, ao mundo dos sentidos. Fora deste campo são simplesmente títulos para conceitos que podem ser admitidos, mas mediante os quais nada pode ser compreendido. Enfim, quando a pergunta é, em terceiro lugar, se não podemos compreender tal ente distinto do mundo pelo menos através de uma analogia com os objetos da experiência, então a resposta é: certamente o podemos, mas apenas como objeto na ideia e não na realidade, a saber, somente na medida em que é um substrato desconhecido da unidade, ordem e finalidade sistemáticas da disposição do mundo, que a razão tem que adotar como princípio regulativo da sua investigação da natureza. Mais ainda, sem qualquer temor de censura podemos permitir nessa ideia certos antropomorfismos que promovam o referido princípio regulativo. Com efeito, se trata sempre e apenas de uma ideia de modo algum referida diretamente a um ente distinto do mundo, mas só ao princípio regulativo da unidade sistemática do mundo, e isto contudo somente através de um esquema de tal unidade, a saber, de uma inteligência suprema que cria o mundo segundo planos sábios. Com isso não se procurou pensar o que seja em si mesmo esse não fundamento da unidade do mundo, mas como aquele ou antes a sua ideia deve ser por nós utilizado relativamente ao uso sistemático da razão no tocante às coisas do mundo. Todavia, podemos deste modo (perguntar-se-á adiante) admitir um criador do mundo, sábio e onipotente? Sem dúvida alguma; e não só isto, mas nós temos que pressupor tal criador. Em tal caso, porém, estendemos o nosso conhecimento acima do campo da experiência possível? De modo algum. Com efeito, só pressupusemos um algo sem contudo possuir qualquer conceito sobre o que seja em si mesmo (um objeto meramente transcendental). Por outro lado, com referência à ordem sistemática e finalista do universo, a qual tem que ser pressuposta por nós ao estudarmos a natureza, pensamos aquele ente desconhecido a nós, somente segundo a analogia com uma inteligência (um conceito empírico): isto é, com respeito aos fins e à perfeição, que se fundam sobre tal ente, dotamo-lo precisamente com aquelas propriedades que, de acordo com as condições da nossa razão, podem conter o fundamento de tal unidade sistemática. Logo, esta ideia é totalmente fundada quanto ao uso da nossa razão com respeito ao mundo. Todavia, se quiséssemos conferir-lhe uma validade absolutamente objetiva, então esqueceríamos que se trata unicamente de um ente na ideia pensado por nós e que, na medida em que iniciássemos por um fundamento absolutamente indeterminável pela consideração do mundo, ver-nos-íamos incapacitados para aplicar adequadamente esse princípio ao uso empírico da razão. No entanto (perguntar-se-á ulteriormente), na consideração racional do mundo posso deste modo fazer uso do conceito e da pressuposição de um ente supremo? Sim, foi propriamente para tanto que essa ideia da razão também foi posta como fundamento. Todavia, tenho o direito de considerar intencionais certos ordenamentos que se parecem com fins ao derivá-lo s da vontade divina, se bem que mediante certas disposições particulares postas para tal no mundo? Sim, também isto podeis fazer, mas com a condição de que vos seja indiferente alguém dizer que a sabedoria divina ordenou tudo deste modo para os seus fins supremos ou dizer que a ideia da sabedoria suprema é um elemento regulativo na investigação da natureza e um princípio da unidade sistemática e finalista da mesma segundo leis gerais da natureza, mesmo que não nos demos conta de tal unidade. Isto é, onde a perceberdes, tem que vos ser inteiramente indiferente dizer que Deus quis isto sabiamente assim ou que a natureza ordenou isto sabiamente assim. Com efeito, a máxima unidade sistemática e finalista que, como princípio regulativo, a vossa razão exigia pôr como fundamento de toda a investigação da natureza, foi exatamente o que vos autorizou a pôr como fundamento a ideia de uma inteligência suprema como um esquema do princípio regulativo; e na mesma proporção em que, segundo esse princípio encontrais finalidade no mundo, possuireis uma confirmação da legitimidade da vossa ideia. Entretanto, visto que o referido princípio não tem senão o propósito de procurar a unidade necessária e maior possível da natureza, assim devemos agradecer esta unidade, na medida em que a alcançamos, à ideia de um ente supremo. Mas não podemos deixar de lado as leis universais da natureza unicamente (com vistas à qual a ideia foi posta como fundamento) sem cair em contradição com nós mesmos a fim de considerar essa finalidade da natureza como contingente e hiperfísica quanto à sua origem, pois não estávamos autorizados a admitir acima da natureza um ente com as referidas propriedades, mas só a pôr como fundamento a ideia de tal ente para, segundo a analogia com uma determinação causal dos fenômenos, considera-los como conectados sistematicamente entre si. Justamente por isso também estamos autorizados a pensar na ideia a causa do mundo, não só segundo um antropomorfismo mais sutil (sem o qual absolutamente nada poderia ser pensado a respeito de tal ente), a saber, como um ente que possua entendimento, que sinta prazer e desprazer e que além disso possua correspondentes desejo e vontade etc., mas também de atribuir ao mesmo ente uma perfeição infinita que portanto transcende de longe aquela à qual possamos ser autorizados mediante o conhecimento empírico da ordem do mundo. Com efeito, a lei regulativa da unidade sistemática quer que estudemos a natureza como se fosse encontrada por toda a parte, até o infinito, uma unidade sistemática e finalista na máxima multiplicidade possível. De fato, por menos que observemos ou alcancemos essa perfeição do mundo, pertence não obstante à legislação da nossa razão procurá-la e supô-la por toda a parte, e tem que nos ser sempre vantajoso e jamais prejudicial regular a consideração da natureza por tal princípio. Sob essa representação subjacente da ideia de um criador supremo, fica também claro que ponho como fundamento não a existência e o conhecimento de tal ente, mas somente a sua ideia, e que pois não derivo propriamente nada de um tal ente, mas simplesmente da ideia do mesmo, isto é, da natureza das coisas do mundo segundo uma tal ideia. Parece também que foi certa consciência, embora não desenvolvida, do uso correto deste nosso conceito de razão que deu ensejo à linguagem discreta e justa dos filósofos de todos os tempos, já que falam da sabedoria e providência da natureza, e da sabedoria divina com expressões sinônimas, na medida em que se trata simplesmente da razão especulativa preferindo antes a primeira expressão, pois impede a pretensão de uma afirmação maior do que aquela a que estamos autorizados e ao mesmo tempo remete a razão a seu campo verdadeiro e próprio, a natureza. Deste modo a razão pura que de início pareceu prometer-nos nada menos que uma ampliação dos conhecimentos acima de todos os limites da experiência, se a compreendemos bem não contém senão princípios regulativos que na verdade ordenam uma unidade maior do que o uso empírico do entendimento pode alcançar, mas que, precisamente pelo fato de extrapolarem a tal ponto a meta a que converge tal uso, através da unidade sistemática levam ao mais alto grau a concordância de tal uso consigo mesmo. Todavia, se compreendemos mal tais princípios tomando-os por constitutivos de conhecimentos transcendentes, então mediante uma aparência na verdade brilhante, porém enganosa, produzem persuasão e pretenso conhecimento, mas com isso também eternas contradições e desavenças. Deste modo todo conhecimento humano inicia com intuições, parte delas para conceitos e termina com ideias. Se bem que com respeito a todos os três elementos possua fontes a priori de conhecimento que à primeira vista parecem desprezar os limites de toda a experiência, contudo uma crítica plenamente realizada convence-nos de que no uso especulativo toda razão jamais pode, com esses elementos, ultrapassar o campo da experiência possível, e que o verdadeiro destino desta faculdade suprema de conhecimento é o de servir-se de todos os métodos e princípios da razão somente para perseguir a natureza até o seu imo segundo todos os princípios possíveis da unidade, dentre os quais a dos fins é o mais importante, mas jamais para sobrevoar os seus limites, fora dos quais nada há para nós a não ser espaço vazio. Na verdade, a investigação crítica de todas as proposições que possam ampliar o nosso conhecimento para além de toda experiência real convenceu-nos suficientemente, na Analítica Transcendental, do fato de jamais poderem nos dirigir para algo mais do que uma experiência possível. E se não desconfiássemos mesmo de todas as mais claras doutrinas abstratas e universais, se perspectivas tentadoras e ilusórias não nos seduzissem a repelir a coação de tais doutrinas então teríamos podido certamente dispensar-nos do cansativo interrogatório de todas as testemunhas dialéticas que uma razão transcendente faz comparecer em benefício das suas pretensões. Com efeito, desde o início sabíamos já com inteira certeza que toda a pretensão da razão é talvez bem-intencionada, mas tem que resultar vã porque concerne a um conhecimento que nenhum homem pode jamais alcançar. No entanto, não se terminará jamais de discutir se não se retroceder à verdadeira causa da ilusão, pela qual mesmo a pessoa mais racional pode ser enganada. Por outro lado, resolver todo o nosso conhecimento transcendental nos seus elementos (como um estudo da nossa natureza interna) não possui em si mesmo qualquer diminuto valor, mas não obstante constitui até um dever dos filósofos. Em virtude disso, era não só necessário rastrear detalhadamente esta inteira mas vã elaboração da razão especulativa até as suas fontes primeiras, mas visto que a aparência dialética é não apenas enganadora quanto ao juízo, e sim também tentadora e sempre natural, quanto ao interesse que no caso se toma pelo juízo (e tal permanecerá para todo o futuro), era então aconselhável como que redigir minuciosamente as atas deste processo com o fito de depositá-las no arquivo da razão humana e com isto prevenir futuros erros de semelhante espécie. II DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO Se encaro o conjunto de todo o conhecimento da razão pura e especulativa como um edifício para o qual temos pelo menos a ideia em nós, então posso afirmar que na Doutrina Transcendental dos Elementos avaliamos os materiais e determinamos para que tipo de edifício, bem como de que altura e solidez são suficientes. Na verdade vimos que, apesar de termos em mente uma torre que devesse se elevar até o céu, o suprimento de materiais só permitia a construção de uma moradia mal e mal espaçosa e alta o suficiente para que abarquemos os nossos negócios no plano da experiência; mas aquela empreitada temerária que pretendíamos teria que fracassar em virtude da escassez de material, e isto sem contar ainda com as confusões de linguagem que teriam que dividir inevitavelmente os trabalhadores quanto ao plano e espalhá-los por todo o mundo a fim de que cada um erigisse uma construção diversa de acordo com o seu projeto. Agora estamos às voltas não tanto com os materiais, mas antes com o plano; e mesmo que estejamos advertidos para não arriscarmos a sua concretização segundo um projeto cego e qualquer que possa talvez ultrapassar toda nossa capacidade (vermögen), mas que por outro lado não podemos nos abster de construir uma moradia firme, devemos encetar a ereção de um edifício de acordo com o suprimento que nos é dado e que seja, ao mesmo tempo, conforme às nossas necessidades. Compreendo por Doutrina Transcendental do Método, pois, a determinação das condições formais de um sistema completo da razão pura. Tendo em vista tal propósito, teremos que nos haver com uma disciplina, um cânon, uma arquitetônica e finalmente uma história da razão pura, e teremos de realizar em transcendental aquilo que, sob o nome de uma lógica prática, as escolas procuraram, mas realizaram insatisfatoriamente, com respeito ao uso do entendimento em geral; pois já que a lógica geral não se limita nem a qualquer tipo especial do conhecimento do entendimento (por exemplo não ao puro) nem a certos objetos, nada mais pode fazer, a não ser que recorra a conhecimentos oriundos de outras ciências, do que apresentar os títulos dos métodos possíveis e de termos técnicos utilizados no tocante à sistematização em todas as espécies de ciências, e que familiarizam previamente o aprendiz com nomes cujo significado e uso deverá aprender tão somente mais tarde. CAPÍTULO PRIMEIRO DA DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO A disciplina da razão pura Os juízos que são negativos não só quanto à sua mera forma lógica, mas também quanto ao seu conteúdo, não desfrutam de muita consideração por parte da ânsia humana de saber. Chega-se a encara-los como inimigos invejosos de nosso impulso que aspira a uma ampliação incessante do conhecimento; torna-se necessária quase uma apologia para que sejam tão somente tolerados, e mais ainda para lhes conquistar o favor e alta estima. Logicamente, é bem possível expressar de um modo negativo todas as proposições que se queira; mas com respeito ao conteúdo do nosso conhecimento em geral, se é ampliado ou limitado por um juízo, quando negativo este último tem como atribuição peculiar simplesmente prevenir contra o erro. É por isto, também, que as proposições negativas que nos devem prevenir contra um conhecimento falso lá onde jamais é possível um erro, apesar de bem verdadeiras são vazias, isto é, inadequadas ao seu fim, e por isso mesmo frequentemente ridículas; tal ocorre com a proposição daquele escolástico que dizia que, sem possuir um exército, teria sido impossível a Alexandre conquistar quaisquer territórios. Entretanto, quando são assaz estreitos os limites de nosso conhecimento possível, grandes os estímulos para julgar, muito enganadoras as aparências que se nos apresentam e consideráveis os prejuízos que resultam do erro, o caráter negativo dos ensinamentos, que serve unicamente para nos resguardar contra os erros, é ainda mais importante do que muito ensinamento positivo mediante o qual poder-se-ia acrescentar algo ao nosso conhecimento. Denomina-se disciplina à compulsão mediante a qual se limita, e finalmente se extirpa, aquela propensão constante a divergir de certas regras. Distingue-se da cultura, a qual deve fornecer unicamente uma habilidade sem com isto suprimir outra já existente. A disciplina, pois, aportará uma contribuição negativa, (Bem sei que na linguagem escolástica se costuma usar os termos disciplina e instrução como sinônimos. Só que diante disso há tantos casos em que a primeira expressão, usada no sentido de regime de ordem, é cuidadosamente distinguida da segunda, usada no sentido de ensinamento, a própria natureza das coisas também reclamando a manutenção das únicas expressões convenientes para esta distinção, que desejo jamais seja permitido empregar a primeira palavra com outro significado senão o negativo. Nota do Autor.) ao passo que a cultura e a doutrina contribuirão positivamente para a formação de um talento que já traz consigo um impulso a externar-se. Qualquer um há de reconhecer facilmente que tanto o temperamento quanto os talentos, que de bom grado se permitem um movimento livre e sem barreiras (enquanto imaginação e senso de humor), sob muitos aspectos necessitam uma disciplina. Por outro lado, pode parecer estranho que também a razão, à qual compete propriamente prescrever a sua disciplina a todos os demais esforços, tenha necessidade de tal disciplina, e de fato, até agora se esquivou a tal humilhação em virtude de que, tendo em vista o caráter solene e o decoro ímpar de sua conduta, jamais alguém pôde nem de leve suspeitar que ela incorria num jogo leviano que se munia de ilusões em lugar de conceitos e de palavras em lugar de coisas. Torna-se desnecessária uma crítica da razão em seu uso empírico, pois os seus princípios são submetidos a um teste contínuo na pedra de toque da experiência; esta crítica também é dispensável na Matemática, onde os seus conhecimentos têm que ser imediatamente apresentados in concreto na intuição pura, ficando deste modo patente em seguida qualquer coisa infundada e arbitrária nos mesmos. Onde, porém, nem a intuição empírica nem a intuição pura mantêm a razão em trilhos visíveis, a saber, em seu uso transcendental segundo meros conceitos, ela tanto necessita de uma disciplina que dome a sua tendência de estender-se para além dos estreitos limites da experiência possível, mantendo-a afastada de extravagâncias e do erro, que também toda a filosofia da razão pura se ocupa unicamente desta utilidade negativa. Erros singulares podem ser remediados pela censura e as causas dos mesmos pela crítica. No entanto, onde se encontra, como na razão pura, todo um sistema de engodos e de falácias bem ligadas entre si e unificadas segundo princípios comuns, parece ser requerida uma legislação bem própria que, apesar de negativa, sob o nome de uma disciplina erija, a partir da natureza da razão e dos objetos do seu uso puro, como que um sistema de precaução e de autoexame diante do qual não possa subsistir qualquer aparência falsa e racionalizante, mas sim que esta de imediato se delate não obstante todos os argumentos do que me sirva para mascarar-se. Convém observar, todavia, que nesta segunda divisão principal da crítica transcendental de modo algum dirijo a disciplina da razão pura ao conteúdo, mas sim tão somente ao método do conhecimento a partir da razão pura. O primeiro caso já foi tratado na Doutrina dos Elementos. O uso da razão, entretanto, possui tantas semelhanças não obstante o objeto sobre o qual incida, mas ao mesmo tempo também é, na medida em que deve ser transcendental, essencialmente tão diverso de todos os demais, que, sem a doutrina negativa e admoestadora de uma disciplina especialmente voltada para tal, é impossível evitar os erros que têm necessariamente que se originar do fato de se perseguir inconvenientemente tais métodos decerto adaptados à razão em outros setores mas não aqui no transcendental. SEÇÃO PRIMEIRA DO CAPÍTULO PRIMEIRO A DISCIPLINA DA RAZÃO PURA NO USO DOGMÁTICO A Matemática fornece o exemplo mais brilhante de uma razão pura bem-sucedida que se estende espontaneamente sem o auxílio da experiência. Os exemplos são contagiosos, principalmente quando se refere à mesma faculdade que, lisonjeada, espera ter em outros casos a mesma sorte com a qual foi brindada num dos mesmos. Devido a isto, a razão pura tem esperança de poder estender-se em seu uso transcendental de um modo igualmente feliz e radical ao que conseguiu em seu uso matemático, especialmente desde o momento em que, no primeiro caso, empregue um método idêntico ao que, no último caso, lhe foi de tão óbvia utilidade. Importa-nos muito saber, portanto, se o método para atingir uma certeza apodítica, e que na última ciência acima mencionada denomina-se matemático, é idêntico àquele com o qual se procura exatamente a mesma certeza na filosofia, o que neste campo teria que ser chamado de dogmático. O conhecimento filosófico é o conhecimento racional a partir de conceitos: o conhecimento matemático é o conhecimento a partir da construção de conceitos. Construir um conceito significa apresentar a priori a intuição que lhe corresponde. Para a construção de um conceito requer-se, pois, uma intuição não empírica; consequentemente enquanto intuição esta última é um objeto singular, mas enquanto construção de um conceito (uma representação universal) nem por isto deve deixar de expressar, na representação, uma validade universal para todas as intuições possíveis que se subsumem no mesmo conceito. Deste modo, construo um triângulo ao representar o objeto correspondente a este conceito ou mediante a pura imaginação na intuição pura, ou de acordo com a mesma também sobre o papel na intuição empírica, e em ambos os casos de um modo totalmente a priori, sem me valer de um modelo retirado de qualquer experiência. A figura singular que desenhei é empírica, servindo também para expressar o conceito sem vir em prejuízo de sua universalidade. Pois nesta intuição empírica atentamos unicamente para a ação construtora do conceito, ao qual são indiferentes várias determinações que se referem, por exemplo, à magnitude dos lados e dos ângulos; abstrai-se, portanto, destas diferenças que não alteram o conceito de triângulo. Assim, o conhecimento filosófico considera o particular somente no universal, ao passo que o conhecimento matemático considera o universal no particular e até mesmo no singular, e não obstante a priori e mediante a razão. Isto ocorre de forma tal que, assim como este singular está determinado por certas condições universais de construção, assim também o objeto do conceito, ao qual este singular corresponde somente como o seu esquema, tem que ser pensado como universalmente determinado. Estes dois tipos de conhecimento racional diferenciam-se essencialmente quanto a este aspecto formal, e não quanto à sua matéria ou objetos. Aqueles que pensavam poder distinguir a Filosofia da Matemática ao afirmarem que a primeira possui como objeto tão somente a qualidade e a segunda unicamente a quantidade tomaram o efeito como sendo a causa. A forma do conhecimento matemático é a causa que o constrange a se limitar exclusivamente às quantidades. Com efeito, só o conceito de quantidades é passível de ser construído, isto é, apresentado a priori na intuição; as qualidades, no entanto, não podem ser apresentadas em nenhuma outra intuição que não a empírica. Em decorrência disto, um conhecimento racional das qualidades só é possível através de conceitos. Deste modo, ninguém pode obter uma intuição correspondente ao conceito da realidade senão a partir da experiência, e jamais é possível que dela nos apoderemos a priori a partir de nós mesmos antes de possuirmos uma consciência empírica da mesma. É possível formar intuitivamente a figura de um cone simplesmente segundo o conceito e sem qualquer auxílio empírico, mas a cor deste cone tem que estar previamente dada numa ou noutra experiência. De modo algum posso representar o conceito de uma causa em geral na intuição, exceto num exemplo que me é fornecido pela experiência, e assim por diante. Além do mais, a Filosofia trata de magnitudes - como por exemplo da totalidade, da infinitude etc., - tanto quanto a Matemática. A Matemática também se ocupa da diferença entre linhas e planos, enquanto espaços de qualidade diversa, e da continuidade da extensão enquanto uma de suas qualidades. Apesar de que nestes casos possuam um objeto comum, o modo de se trata-lo mediante a razão é totalmente diverso na Filosofia e na Matemática. Aquela se atém unicamente a conceitos universais, ao passo que esta, sem nada poder fazer com simples conceitos, se apressa em consultar a intuição na qual considera in concreto o conceito, não empiricamente, mas sim tão somente numa intuição que apresentou a priori, isto é, construiu, e na qual aquilo que segue das condições universais da construção também tem que valer universalmente para o objeto do conceito construído. Dê-se o conceito de um triângulo a um filósofo e permita-se que descubra, à sua maneira, como a sorna de seus ângulos se relaciona com o ângulo reto. Nada mais tem do que o conceito de uma figura encerrada em três linhas retas, bem como o conceito de um número de ângulos igual ao de linhas. Que reflita o quanto quiser sobre este conceito; a partir do mesmo nada produzirá de novo. Pode desmembrar e tornar claro o conceito de linha reta, de um ângulo ou do número três, mas não atingir outras propriedades que nem se encontram nestes conceitos. Que o geômetra se dedique a esta questão. Imediatamente começa construindo um triângulo. Por saber que a sorna de dois ângulos retos perfaz exatamente tanto quanto a sorna de todos os ângulos adjacentes que podem ser traçados a partir de um ponto pertencente a uma linha reta, prolonga um dos lados de seu triângulo e obtém assim dois ângulos adjacentes que somam o mesmo que dois retos. Passa então a dividir o ângulo externo traçando uma linha paralela ao lado oposto do triângulo, e vê que aqui surge um ângulo adjacente externo que é igual a um ângulo interno, e assim por diante. Deste modo, mediante uma cadeia de inferências e sempre guiado pela intuição, o geômetra atinge a solução totalmente elucidativa e ao mesmo tempo universal do problema. Todavia, a Matemática não constrói só quantidades (quanta), como na geometria, mas também a pura quantidade (quantitatem), como na álgebra; neste caso, abstrai completamente da natureza do objeto que deve ser pensado segundo um tal conceito de quantidade. Então escolhe certa notação para todas as construções de quantidades em geral (números, tais como a adição, subtração etc.) extração de raízes, e após também ter adotado uma notação para o conceito geral das quantidades segundo as relações diversas das mesmas, segundo certas regras universais apresenta na intuição todas as operações produzidas e modificadas pela quantidade. Onde uma quantidade deve ser dividida por outra, a Matemática compõe os caracteres referentes a ambas segundo a forma designadora de divisão, e assim por diante. Assim como a geometria o consegue por intermédio de uma construção ostensiva ou geométrica (dos próprios objetos), através de uma construção simbólica a Matemática atinge paragens jamais acessíveis ao conhecimento discursivo mediante simples conceitos. Qual seria a causa desta situação tão diversa em que se encontram dois virtuoses da razão, dos quais um segue o caminho dos conceitos enquanto o outro se embrenha pela trilha das intuições apresentadas a priori e de acordo com os conceitos? Segundo as doutrinas transcendentais fundamentais acima expostas, esta causa é clara. Não se trata aqui de proposições analíticas que possam ser geradas por uma simples análise dos conceitos (neste caso o filósofo teria indubitavelmente vantagem sobre o seu rival), mas sim de proposições sintéticas e daquelas que devem ser conhecidas a priori. Com efeito, não devo atentar para aquilo que realmente penso em meu conceito de triângulo (isto nada mais é do que a simples definição), mas devo antes ultrapassa-lo para atingir propriedades que não estão contidas neste conceito, apesar de ainda assim lhe pertencerem. Ora, a não ser que eu determine o meu objeto segundo as condições ou da intuição empírica ou da intuição pura, isto não é possível. A primeira alternativa só nos forneceria uma proposição empírica (mediante a mensuração de seus ângulos) que não conteria qualquer universalidade e muito menos necessidade; isto de modo algum é de nosso interesse. O segundo procedimento, no entanto, consiste na construção matemática, e aqui especificamente na geometria, mediante a qual junto numa intuição pura, tanto quanto numa intuição empírica, o múltiplo que pertence ao esquema de um triângulo em geral e portanto ao seu conceito; é claro que segundo este modo de proceder têm que ser construídas proposições sintéticas universais. Logo, seria gratuito filosofar sobre o triângulo, ou seja, refletir discursivamente sobre o mesmo sem com isto avançar um palmo sequer para além de sua mera definição, a qual foi aliás nada mais nada menos do que o meu ponto de partida. É claro que existe uma síntese transcendental a partir de puros conceitos e que, por sua vez, só é acessível ao filósofo; a nada mais concerne, todavia, de que a uma coisa em geral sob cujas condições a sua percepção pode pertencer à experiência possível. Mas nas tarefas matemáticas de modo algum se pergunta por isso ou pela existência em geral, mas sim pelas propriedades dos objetos em si mesmos unicamente na medida em que as primeiras estão ligadas ao conceito dos últimos. No exemplo acima exposto só tentamos tornar clara a grande diferença existente entre os dois usos da razão, a saber, o discursivo segundo conceitos e o intuitivo mediante a construção de conceitos. É natural que agora se perquira pela causa que torna necessário tal uso duplo da razão e pelas condições que nos permitam reconhecer se unicamente o primeiro ou também o segundo tem lugar. Em última análise, todo o nosso conhecimento se refere a intuições possíveis, pois é exclusivamente através destas que um objeto é dado. Ora, um conceito a priori (um conceito não empírico) ou já contém em si uma intuição pura, e neste caso pode ser construído, ou nada mais contém do que a síntese de intuições possíveis que não são dadas a priori, e neste caso, apesar de se poder utiliza-lo para emitir juízos sintéticos a priori, tal só é possível discursivamente segundo conceitos e jamais intuitivamente mediante a construção do conceito. De toda a intuição, apenas a simples forma dos fenômenos, o espaço e o tempo, é dada a priori. Um conceito do espaço e de tempo, como quanta, pode ser apresentado de um modo a priori na intuição, isto é, construído, ou concomitantemente à qualidade do mesmo (a sua figura) ou também unicamente em sua quantidade (a mera síntese do homogeneamente múltiplo) mediante um número. A matéria dos fenômenos, contudo, mediante a qual nos são dadas coisas no espaço e no tempo, só pode ser representada na percepção, e portanto a posteriori. O conceito de coisa em geral é o único que representa a priori este conteúdo empírico dos fenômenos. O conhecimento sintético a priori desta coisa em geral nada mais pode fornecer do que a simples regra da síntese daquilo que a percepção possa dar a posteriori; entretanto, jamais pode fornecer a priori a intuição do objeto real, já que esta tem que ser necessariamente empírica. As proposições sintéticas que concernem a coisas em geral cuja intuição não pode absolutamente ser dada a priori são transcendentais. Consequentemente, as proposições transcendentais jamais podem ser dadas mediante uma construção de conceitos, mas sim unicamente segundo conceitos a priori. Só contêm a regra segundo a qual deve ser procurada empiricamente certa unidade sintética daquilo que não pode ser representado intuitivamente e a priori (as percepções). Em caso algum, no entanto, conseguem apresentar a priori um único de seus conceitos; só o fazem a posteriori, mediante a experiência, a qual se torna primeiramente possível em virtude daqueles princípios sintéticos. Se devemos julgar sinteticamente sobre um conceito, então temos que ultrapassar este conceito para atingirmos a intuição na qual é dado. Com efeito, se nos confinássemos ao que está contido no conceito, o juízo seria meramente analítico e constituiria uma explicação do pensamento segundo aquilo que já está de fato nele contido. Do conceito, todavia, posso passar à intuição pura ou empírica que lhe corresponde a fim de considera-lo in concreto na mesma e de conhecer, a priori ou a posteriori, o que convém ao objeto deste conceito. O procedimento a priori constitui o conhecimento racional e matemático mediante a construção do conceito, ao passo que o procedimento a posteriori constitui o mero conhecimento empírico (mecânico) incapaz de nos conduzir a proposições necessárias e apodíticas. Desta forma, eu poderia dissecar o meu conceito empírico de ouro e com isto nada mais obter do que uma enumeração de tudo o que realmente penso com este termo; através disto bem que se processa um aperfeiçoamento lógico em meu conhecimento, mas este não se beneficia com qualquer ampliação ou acréscimo. Por outro lado, tomando a matéria rotulada com este nome, obtenho percepções que me fornecerão diversas proposições sintéticas, se bem que empíricas. Eu constituiria, isto é, daria a priori na intuição, o conceito matemático de um triângulo, e por esta via alcançaria um conhecimento sintético, porém racional. Inversamente, quando me é dado o conceito transcendental de uma realidade, substância, força etc., então não designa nem uma intuição empírica nem uma intuição pura, mas simplesmente a síntese de intuições empíricas (e que portanto não podem ser dadas a priori); devido ao fato da síntese ser incapaz de progredir a priori para a intuição que lhe corresponde, segue-se que deste conceito transcendental também não pode se originar qualquer proposição sintética determinante, mas sim unicamente um princípio da síntese (Por meio do conceito de causa, saio efetivamente do conceito empírico de um evento (em que alguma coisa acontece), mas não em direção à intuição que representa in concreto o conceito de causa, e sim em direção às condições temporais em geral que poderiam ser encontradas na experiência conforme o conceito de causa. Procedo pois simplesmente segundo conceitos, e não posso proceder pela construção dos conceitos porque o conceito é uma regra da síntese das percepções, que não são intuições puras e não podem portanto ser dadas a priori. Nota do Autor.) de intuições empíricas possíveis. Logo, uma proposição transcendental é um conhecimento sintético da razão segundo meros conceitos, e portanto discursivo; pois é unicamente por seu intermédio que se torna primeiramente possível toda a unidade sintética do conhecimento empírico, mas sem que com isto seja dada a priori qualquer intuição. Assim, pois, há dois modos de se usar a razão. Sem levar em conta a universalidade do conhecimento e a sua produção a priori, coisa comum a ambos, estes dois usos da razão muito se diferenciam em sua progressão. Isto ocorre porque no fenômeno, segundo o qual nos são dados todos os objetos, há dois componentes: a forma da intuição (espaço e tempo), determinável e cognoscível completamente a priori, e a matéria (o físico) ou o conteúdo, que significa um algo encontrado no espaço e no tempo e que portanto contém uma existência e corresponde à sensação. Com respeito a este elemento material, cujo único modo determinado de ser dado, é o empírico, nada podemos ter a priori a não ser conceitos indeterminados da síntese de sensações possíveis na medida em que estas pertencem à unidade da apercepção (numa experiência possível). Com respeito ao elemento formal, podemos determinar a priori os nossos conceitos na intuição na medida em que nós criamos, no espaço e no tempo e mediante uma síntese uniforme, os próprios objetos considerados simplesmente como quanta. Aquele é denominado o uso da razão segundo conceitos na medida em que com ele nada mais podemos fazer do que subsumir os fenômenos, segundo o seu conteúdo real, a conceitos que não podem, em consequência, ser determinados senão empiricamente, isto é, a posteriori (embora conforme aqueles conceitos enquanto regras de uma síntese empírica). O segundo é o uso da razão mediante a construção dos conceitos na medida em que estes, por já se referirem a priori a uma intuição, também na intuição pura podem ser determinadamente dados a priori e sem o auxílio de quaisquer dados empíricos. Ponderar, a respeito de tudo o que existe (uma coisa no espaço ou no tempo), se e em que medida se trata ou não de um quantum, se neste último temos que representar uma existência ou a falta da mesma, até que ponto este algo (que preenche um espaço ou um tempo) constitui um primeiro substrato ou uma simples determinação, se há uma referência da existência deste algo a outra coisa enquanto causa ou efeito, e finalmente se com referência à sua existência se encontra isolado ou numa dependência recíproca com outras coisas, bem como ponderar a possibilidade desta existência, a sua realidade e necessidade ou o oposto destas últimas - todas estas questões pertencem ao conhecimento da razão a partir de conceitos e o qual é denominado filosófico. Por outro lado, determinar a priori uma intuição no espaço (figura), dividir o tempo (duração) ou simplesmente conhecer tanto o que é universal na síntese de uma e da mesma coisa no tempo e no espaço quanto a quantidade daí resultante de uma intuição em geral (número), eis uma ocupação da razão mediante a construção dos conceitos e que se intitula matemática. O grande sucesso que a razão obtém por intermédio da Matemática traz à baila, de um modo bastante natural, a suposição de que o mesmo sucesso também seria obtido fora do campo das quantidades, se não por ela mesma ao menos por seu método, na medida em que a razão neste uso matemático refere todos os seus conceitos a intuições que pode fornecer a priori, procedimento mediante o qual se torna por assim dizer mestre sobre a natureza; a Filosofia pura, ao contrário, labuta desordenada e desajeitadamente com conceitos discursivos a priori em torno da natureza, sem poder tornar intuitiva a priori e, exatamente devido a isto, atestada a realidade da mesma. O que de modo algum parece faltar aos mestres nesta arte é confiança em si mesmos, e se tem a impressão que por parte do vulgo sobejam as expectativas quanto à habilidade dos anteriores caso pretendessem se dedicar a este projeto. Com efeito, já que quase nunca filosofaram sobre a sua Matemática (uma árdua empreitada!), não chegam nem a ter em mente nem a refletir sobre a diferença específica existente entre um e o outro uso da razão. Regras correntes e empiricamente usadas que tomam de empréstimo à razão comum são então aceitas em lugar de axiomas. De modo algum se importam com a proveniência dos conceitos de espaço e de tempo, embora se ocupem dos mesmos (como os únicos quanta originários); da mesma forma lhes parece inútil investigar tanto a origem dos conceitos puros do entendimento quanto também, com isto, a extensão de sua validade, pois só se preocupam em utiliza-los. Em tudo isto agem assaz corretamente, desde que não ultrapassem os limites que lhes são indicados, a saber, os da natureza. Sem se darem conta, no entanto, passam do campo da sensibilidade para o terreno inseguro dos conceitos puros e mesmo transcendentais, cuja base (instabilis tellus, innabilis unda) não lhes permite nem ficar de pé nem nadar, e onde só é possível dar passos fortuitos dos quais o tempo não guarda nem os mais leves vestígios; ao contrário disto, a sua caminhada na Matemática abre uma estrada ampla que ainda a mais remota posteridade pode trilhar confiantemente. Já que tornamos nossa obrigação determinar, com precisão e certeza, os limites da razão pura no uso transcendental - mas que a aspiração a este conhecimento transcendental apresenta a particularidade, não obstante as mais enfáticas e claras advertências, de ainda deixar se entreter por esperanças antes de abandonar completamente a tentativa de atingir, para além dos limites da experiência, as encantadoras paragens do mundo intelectual - torna-se necessário retirar como que a última âncora que sustenta uma esperança fantástica e mostrar que seguir o método matemático neste tipo de conhecimento não poderia trazer sequer a menor vantagem, a não ser revelar tanto mais claramente as deficiências deste mesmo método e patentear que a Geometria (Messkunst) e a Filosofia, apesar de se darem as mãos nas ciências naturais, são coisas totalmente diversas e que o procedimento de uma jamais pode ser imitado pela outra. A rigorosa exatidão da matemática repousa sobre definições, axiomas e demonstrações. Contentar-me-ei em mostrar que nenhum destes três itens pode ser atingido ou imitado pela Filosofia no sentido em que são tomados pelo matemático. Pois o geômetra (Messkunstler), segundo o seu método, nada mais pode erigir em Filosofia de que meros castelos de cartas, ao passo que o filósofo, segundo o seu método, só pode provocar uma simples tagarelice no que diz respeito à Matemática. A Filosofia consiste exatamente em conhecer os seus limites, e nem mesmo o matemático, caso o seu talento já não seja especializado por natureza e confinado ao seu campo próprio, pode recusar as advertências da Filosofia e passar por cima da mesma. 1. Sobre as definições. - Como indica a própria palavra, definir só deve propriamente significar tanto quanto apresentar originariamente, dentro de seus limites, o conceito minucioso de uma coisa. (Minuciosidade significa clareza e suficiência de notas; limites ã precisão, de modo que não haja outras notas além das pertencentes ao conceito detalhado; originário, porém, que essa determinação de limites não foi derivada de alguma outra coisa e não precisa ainda de uma prova, o que incapacitaria a pretensa explicação de estar à testa de todos os juízos sobre um objeto. Nota do Autor.) Segundo uma tal exigência, um conceito empírico de modo algum pode ser definido, mas sim unicamente explicitado. Com efeito, já que nele possuímos tão somente algumas notas de certa espécie de objetos dos sentidos, jamais se tem certeza se com a palavra que designa o mesmo objeto não pensamos às vezes mais e outras vezes menos notas do mesmo. Deste modo, no conceito de ouro alguém ainda pode pensar, excetuando o peso, a cor e a dureza, a propriedade de que não enferruja, ao passo que outro talvez nada saiba a respeito disto. Utilizam-se certas notas somente enquanto suficientes para estabelecer distinções; novas observações removem algumas propriedades e acrescentam outras, de forma que o conceito jamais se situa entre limites seguros. E para que também deveria servir uma definição de tal conceito, já que, quando se fala por exemplo da água e de suas propriedades, não nos detemos que é pensado com a palavra água, mas iniciamos testes, e já que com as parcas notas que lhe são inerentes a palavra deve constituir apenas uma designação e não um conceito da coisa, e que portanto a pretensa definição nada mais é do que uma determinação verbal? Em segundo lugar, nenhum conceito dado a priori, como por exemplo o de substância, causa, direito, equidade etc., pode, rigorosamente falando, ser definido. Com efeito, jamais posso estar seguro que a representação clara de um conceito dado (ainda que confusamente) foi minuciosamente desenvolvida a não ser que eu saiba que a dita representação é adequada ao objeto. Mas já que o conceito deste último, tal qual é dado, pode conter muitas representações obscuras das quais não nos damos conta em nossa análise, apesar de sempre as utilizarmos na aplicação deste conceito, então a minuciosidade da análise de meu conceito é sempre duvidosa; mediante uma grande variedade de exemplos apropriados, só podemos tornar provável, mas jamais apoditicamente certa esta minuciosidade. Ao invés de definição, eu preferiria empregar o termo exposição; pois além de ainda continuar sendo cautelosa, esta expressão permite que o crítico lhe conceda certo grau de validade sem abrir mão de suas dúvidas quanto à minuciosidade da análise. Já que nem os conceitos dados empiricamente nem os dados a priori são passíveis de definição, só se pode tentar realizar esta operação mental nos conceitos restantes, quais sejam aqueles que são arbitrariamente pensados. Neste caso, sempre é possível definir o meu conceito, pois tenho que saber o que eu quis pensar com o dito conceito, já que eu mesmo o formei deliberadamente sem que me tivesse sido dado nem pela natureza do entendimento nem pela experiência; o que não posso dizer é que por seu intermédio eu tenha definido um verdadeiro objeto. Com efeito, se o conceito, por exemplo o de um relógio de navio, repousa sobre condições empíricas, então nem o objeto nem a sua possibilidade me são dados mediante este conceito arbitrário; a partir deste último, nem mesmo sei se chega a possuir um objeto, e a minha explicação pode ser melhor denominada uma declaração (de meu projeto) do que uma definição de um objeto. Logo, não restam quaisquer outros conceitos aptos a serem definidos do que aqueles que contêm uma síntese arbitrária que possa ser construída a priori; consequentemente, só a Matemática possui definições. Com efeito, o objeto pensado por esta ciência também é por ela apresentado a priori na intuição, e este objeto não pode seguramente conter nem mais nem menos do que o conceito, pois foi mediante a explicação que o conceito do objeto foi originariamente dado, isto é, dado sem derivar a explicação de qualquer outra coisa. Para as expressões exposição, explicação, declaração e definição, a língua alemã não possui outra palavra senão "Erklärung": em decorrência disto, já temos que abrandar um pouco a nossa exigência de rigor, a qual nos levou a recusar às explicações filosóficas o título honorífico de definição. Pretendemos limitar a presente observação ao seguinte: as definições filosóficas são unicamente exposições de conceitos dados, ao passo que as definições matemáticas são construções de conceitos originariamente forjados pelo entendimento; enquanto as primeiras só são obtidas analiticamente através de um trabalho de desmembramento (cuja completude não é apoditicamente certa), as últimas são constituídas sinteticamente. Logo, as definições matemáticas forjam o próprio conceito, ao passo que as filosóficas somente o explicam. Disto decorre o seguinte: a) Na Filosofia não se deve imitar a Matemática no que tange a iniciar com as definições, a não ser que assim se proceda a título de mera tentativa. Com efeito, já que as definições são análises de conceitos dados, estes últimos as precedem ainda que de modo tão somente confuso; além disto, a exposição incompleta precede a completa de tal forma que, a partir de algumas notas obtidas mediante uma análise ainda incompleta, podemos inferir muitas coisas antes de atingirmos a exposição completa, ou seja, a definição. Numa palavra, na Filosofia a definição, enquanto uma clareza precisa, deve antes concluir do que começar o nosso labor. (A Filosofia formiga de definições defeituosas, sobretudo de tais que na verdade contêm efetivamente elementos para a definição, mas não de um modo completo. Ora, se não se pudesse fazer absolutamente nada com um conceito antes que tivesse sido definido, então as coisas andariam bastante mal para todo o filosofar. No entanto, visto que tão extensamente quanto alcançam os elementos (da decomposição) pode sempre ser feito um emprego bom e seguro dos mesmos, assim também as definições deficientes, isto é, proposições que propriamente não são ainda definições, mas de resto são verdadeiras e portanto aproximações delas, podem ser usadas muito utilmente. Na Matemática a definição concerne ad esse, na Filosofia ad melius esse. É belo, mas frequentemente muito difícil, chegar a isto. Os juristas ainda procuram uma definição para o seu conceito de direito. Nota do Autor.) Frente a isto, na Matemática não possuímos qualquer conceito anterior à definição, pois aquele é primeiramente dado mediante esta última; consequentemente, esta ciência também pode e tem que iniciar sempre com a definição. b) Definições matemáticas jamais podem incorrer em erro. Com efeito, devido ao fato do conceito ser primeiramente dado através da definição, só contém exatamente aquilo que a definição pretende pensar por seu intermédio. Mas embora nada de incorreto possa ser incluído em seu conteúdo, é possível às vezes, se bem que raramente, ocorrer uma falha na forma da qual se encontra revestido, ou seja, no que se refere à precisão. Deste modo, a explicação comum do círculo, a de que consiste numa linha curta cujos pontos todos equidistam de um único ponto (o centro), é defeituosa na medida em que se faz desnecessariamente presente a determinação de curva. Com efeito, tem que haver um teorema particular que seja deduzido da definição e que possa facilmente ser demonstrado: a saber, que toda a linha cujos pontos todos equidistam de um único ponto é curva (nenhum dos seus seguimentos é reto). Definições analíticas, ao contrário, podem incorrer em erro de múltiplas maneiras: ou ao introduzirem notas que em realidade não se encontravam no conceito ou ao carecerem da minuciosidade que perfaz o essencial de uma definição. O último destes defeitos se deve de não se poder estar tão certo assim acerca da completude da análise do conceito. É por estas razões que, no que se refere à definição, o método da Matemática não é passível de imitação por parte da Filosofia. 2. Sobre os axiomas. - Na medida em que são imediatamente certos, os axiomas são princípios sintéticos a priori. Ora, um conceito não pode ser ligado sintética e ainda assim imediatamente a um outro, pois para podermos ir além deste conceito é necessário um terceiro conhecimento mediador. Já que a Filosofia consiste simplesmente num conhecimento racional segundo conceitos, não se pode encontrar nela princípio algum que mereça o nome de axioma. A matemática, ao contrário, é capaz de possuir axiomas, pois mediante a construção dos conceitos na intuição do objetos ela pode conectar os predicados deste último de um modo tanto a priori quanto imediato, como por exemplo na proposição de que três pontos sempre se situam num plano. Frente a isto, um princípio sintético derivado simplesmente a partir de conceitos jamais pode ser imediatamente certo; citemos como exemplo a proposição de que tudo o que ocorre possui a sua causa. Neste caso, tenho que me pôr à procura de um terceiro elemento, qual seja, a condição da determinação temporal numa experiência, pois tal princípio eu não poderia conhecer, de modo direto e imediato, exclusivamente a partir de conceitos. Princípios discursivos, pois, diferem totalmente de princípios intuitivos, ou seja, de axiomas; aqueles exigem sempre uma dedução, ao passo que os últimos podem perfeitamente dispensá-la. E já que por esta mesma razão os axiomas são evidentes, evidência que os princípios filosóficos, por mais certos que sejam, jamais podem pretender, falta infinitamente muito para que uma proposição sintética da razão pura e transcendental seja tão evidente (como obstinadamente é costume expressar-se) quanto a proposição de que duas vezes dois são quatro. É bem verdade que na tabela dos princípios do entendimento puro exposta na Analítica também pensei em certos axiomas da intuição; só que o princípio introduzido naquela ocasião não foi propriamente um axioma, mas serviu unicamente para indicar o principium da possibilidade dos axiomas em geral, consistindo a rigor somente num princípio a partir de conceitos. Pois até a possibilidade da Matemática tem que ser mostrada na filosofia transcendental. A Filosofia não possui, portanto, axioma algum e jamais pode prescrever, de modo tão absoluto, os seus princípios a priori; ao contrário, tem que se contentar em justificar, através de uma dedução acurada, a autoridade destes princípios com respeito aos axiomas. 3. Sobre as demonstrações. - Só uma prova apodítica, na medida em que é intuitiva, pode ser denominada demonstração. A experiência bem que nos ensina o que existe, mas não que isto poderia ser de outra maneira qualquer. Consequentemente, os argumentos empíricos não podem proporcionar uma prova apodítica. A partir de conceitos a priori (no conhecimento discursivo), no entanto, jamais pode se originar uma certeza intuitiva, ou seja, uma evidência, por mais que o juízo também possa ser de uma certeza apodítica. Portanto, só a Matemática contém demonstrações, pois deriva o seu conhecimento não de conceitos, mas sim da construção dos mesmos, isto é, da intuição, a qual pode ser dada a priori e correspondente aos conceitos. Mesmo o procedimento da álgebra com as suas equações, a partir das quais a verdade é produzida juntamente com a sua prova mediante uma redução, não chega a ser geométrico; trata-se, contudo de uma construção característica na qual se apresenta na intuição os conceitos inerentes aos sinais, principalmente aqueles que se referem à relação das quantidades - e que, sem nos determos em suas vantagens heurísticas, assegura todas as inferências contra erros pelo simples fato de pô-los à nossa vista. Em contra partida, o conhecimento filosófico se vê privado desta vantagem na medida em que tem que considerar o universal sempre in abstracto (mediante conceitos), ao passo que a Matemática pode ponderar o universal in concreto (na intuição singular) e ainda assim mediante uma representação pura a priori, procedimento que torna visível qualquer passo em falso. Em consequência disto, eu preferiria chamar as primeiras de provas acromáticas (discursivas), pois só podem ser efetuadas através de puras palavras (o objeto em pensamento), do que denominá-las demonstrações, as quais progridem na intuição do objeto, tal qual a expressão já o indica. De tudo isto se segue, então, que de modo algum é adequado à natureza da Filosofia, principalmente no terreno da razão pura, se expandir orgulhosamente numa senda dogmática e se ornar com os títulos e as insígnias da Matemática sem pertencer às fileiras da mesma, apesar de possuir todos os motivos para esperar uma união fraternal com esta ciência. Trata-se de pretensões arrogantes que jamais podem se concretizar, e que antes fazem com que a Filosofia retroceda em seu propósito de revelar as ilusões de uma razão desconhecedora de seus limites e de reconduzir mediante uma clarificação suficiente de nossos conceitos, a presunção da especulação a um modesto, porém acurado autoconhecimento. Em suas tentativas transcendentais, pois, a razão não poderá encarar com tanta confiança o caminho a trilhar, como se o trajeto já percorrido venha a conduzir tão diretamente ao alvo; também não poderá contar com as premissas que lhe subjazem tão corajosamente que não se tornam necessários frequentes retrospectos e cuidados para examinar se não se manifestam na progressão das inferências, erros não percebidos nos princípios e que imponham ou a maior determinação dos mesmos ou a sua completa alteração. Divido todas as proposições apodíticas (sejam demonstráveis ou também imediatamente certas) em dogmata e mathemata. Uma proposição sintética diretamente derivada de conceitos é um dogma; inversamente, uma proposição sintética diretamente derivada da construção de conceitos é um mathema. Os juízos analíticos propriamente nada mais nos ensinam acerca de um objeto do que aquilo que o conceito que dele possuímos já contém em si, pois não ampliam o conhecimento acerca do conceito do sujeito, mas tão somente o elucidam. Em decorrência disto, não podem ser corretamente cognominados de dogmas (termos que poder-se-ia talvez traduzir por sentença doutrinal). Mas dentre as duas espécies referidas de proposições sintéticas a priori somente aquelas pertencentes ao conhecimento filosófico podem, segundo o uso corriqueiro da linguagem, ser portadoras deste nome, e dificilmente denominar-se-ia as proposições da aritmética ou da geometria de dogmata. Logo, este uso costumeiro ratifica a explicação que demos: só os juízos a partir de conceitos podem ser chamados dogmáticos, não ocorrendo o mesmo com os juízos derivados da construção de conceitos. Em seu uso meramente especulativo, a razão pura em sua totalidade não contém um único juízo sequer diretamente derivado de conceitos, pois mediante ideias é incapaz de produzir juízos sintéticos com validade objetiva, ponto que aliás já mostramos. Através de conceitos do entendimento, por outro lado, a razão pura chega a erigir princípios seguros sem contudo fazê-lo diretamente a partir de conceitos, mas sempre só indiretamente mediante referência destes conceitos a algo totalmente contingente, a saber, a experiência possível; quando esta experiência (algo enquanto objeto de experiências possíveis) é pressuposta, é bem verdade que estes princípios são apoditicamente certos, mas em si mesmos (diretamente) de modo algum podem chegar a ser conhecidos a priori. Desta maneira, ninguém pode conceber precisa e acuradamente a proposição de que toda a ocorrência possui a sua causa exclusivamente a partir destes conceitos dados. Consequentemente, não se trata de um dogma, embora esta proposição possa ser muito bem demonstrada apoditicamente sob outro ponto de vista, qual seja o da experiência, afinal o único campo de seu uso possível. Apesar de necessitar ser provado, denomina-se o princípio e não teorema devido ao fato de possuir a propriedade peculiar de tomar primeiramente possível o seu fundamento demonstrativo, a saber, a experiência, e de ter sempre que ser pressuposto na mesma. Se também a título de conteúdo o uso especulativo da razão pura não possui quaisquer dogmas, então todo o método dogmático é por si inadequado, quer seja tomado de empréstimo à Matemática quer seja de lavra própria. Com efeito, só oculta os defeitos e os erros e burla a filosofia, cujo propósito específico consiste em pôr todos os passos da razão à luz mais clara possível. Não obstante isto, o método pode sempre ser sistemático. Pois a nossa razão (subjetivamente) é ela mesma um sistema; em seu uso puro, no entanto, mediante simples conceitos, ela só consiste num sistema de investigação segundo princípios da unidade, e para a qual exclusivamente a experiência pode fornecer o material. Nada pode aqui ser dito a respeito do método peculiar à filosofia transcendental, já que só estamos envoltos numa crítica às circunstâncias das nossas faculdades: de um modo geral se podemos construir, e até que alturas podemos elevar o edifício, levando em conta o material de que dispomos (os conceitos puros a priori). SEÇÃO SEGUNDA DO CAPÍTULO PRIMEIRO A DISCIPLINA DA RAZÃO PURA COM RESPEITO Ao SEU USO POLÊMICO Em todos seus empreendimentos a razão tem que se submeter à crítica, e não pode limitar a liberdade da mesma por uma proibição sem que isto a prejudique e lhe acarrete uma suspeita desvantajosa. No que tange à sua utilidade, nada é tão importante nem tão sagrado que lhe seja permitido esquivar-se a esta inspeção atenta e examinadora que desconhece qualquer respeito pela pessoa. Sobre esta liberdade repousa até a existência da razão; o veredicto desta última, longe de possuir uma autoridade ditatorial, consiste sempre em nada mais do que no consenso de cidadãos livres dos quais cada um tem que poder externar, sem constrangimento algum, as suas objeções e até o seu veto. Mas embora a razão jamais possa recusar-se à crítica, nem sempre tem uma causa para temê-la. A razão pura em seu uso dogmático (não matemático, todavia, não está tão consciente assim da observância mais exata de suas leis supremas que não tenham que se apresentar, diante do olho crítico de uma razão superior e judicial, com acanhamento e até pondo inteiramente de lado toda a autoridade dogmática que se arrogou. Algo bem diverso ocorre quando a razão está às voltas não com a censura do juiz, mas sim com as reivindicações de seus concidadãos devendo unicamente defender-se contra as mesmas. Com efeito, já que estas pretendem ser exatamente tão dogmáticas em negarem quanto ela é em afirmar, ocorre uma justificativa ????? ????????? que assegura contra todos prejuízos e que providencia um título consignador de uma possessão que assim não precisa temer quaisquer usurpações por parte de estranhos, apesar dela mesma não poder ser suficientemente demonstrada ????? ??????????. Sob o uso polêmico da razão pura compreendo, então, a defesa de suas proposições contra as negações dogmáticas das mesmas. Não se trata aqui de saber se as suas afirmações porventura não são também falsas, mas sim unicamente que ninguém jamais pode afirmar o contrário com certeza apodítica (nem mesmo com maior verossimilhança). Pois no caso de termos em mãos um título, se bem que insuficiente, que nos assegure uma posse, torna-se claro que não a temos por força de uma concessão tolerante, e é totalmente seguro que jamais alguém poderá provar a ilegitimidade desta nossa possessão. Causa preocupação e acabrunhamento o fato de chegar a haver uma antitética da razão pura e que esta, mesmo representando o tribunal supremo sobre todos os conflitos, deva cindir-se numa desavença consigo mesma. Anteriormente estivemos diante de tal antitética aparente da razão pura; evidenciou-se contudo, que repousava sobre um tal mal-entendido, a saber, que de acordo com o preconceito comum se tomava fenômenos por coisas em si mesmas, exigindo-se então de um modo ou de outro (sendo, no entanto, ambos os modos igualmente impossíveis) uma completude absoluta de sua síntese, o que de modo algum pode ser esperado de fenômenos. No tocante às proposições de que a série de fenômenos dados em si possui um começo absolutamente primeiro e que esta série é absolutamente e em si mesma sem nenhum começo, não nos deparávamos com uma real contradição da razão consigo mesma; com efeito, ambas as proposições coexistem sem maiores problemas, pois segundo a sua existência (enquanto fenômenos) os fenômenos nada são em si mesmos, isto é, são algo contraditório, e portanto pressupô-los como algo em si tem naturalmente de acarretar consequências contraditórias. Tal mal-entendido não poderia ser alegado nem o conflito da razão aplacado caso se afirmasse teisticamente que existe um ente supremo e a tal asserção se contrapusesse, ateisticamente, a de que não existe um ente supremo; o mesmo ocorreria na Psicologia caso a afirmação de que tudo o que pensa é de uma unidade permanente e absoluta e, portanto, distinto de toda a unidade material e passageira se defrontasse com a oposta, qual seja, a de que a alma não é uma unidade imaterial e não pode ser excluída da transitoriedade. Com efeito, aqui o objeto da pergunta está livre de todo o elemento estranho que contradiga a sua natureza, e o entendimento está unicamente às voltas com coisas em si mesmas e não com fenômenos. É bem verdade, pois, que encontrar-se-ia neste caso um verdadeiro conflito, contanto que a razão pura em seu aspecto negativo tivesse algo a dizer que chegasse próximo a fundamento de uma afirmação; pois no que toca à crítica proveniente dos argumentos daqueles que fazem afirmações dogmáticas, é bem possível concedê-la sem com isto renunciar a estas proposições que têm a seu favor pelo menos o interesse da razão, interesse ao qual o adversário de modo algum pode se reportar. Na verdade não partilho a opinião tão frequentemente externa da por excelentes pensadores (por exemplo Sulzer), devido ao fato de sentirem a debilidade das provas até agora em voga, de que ainda haveria uma esperança de se vir a descobrir demonstrações evidentes para as duas proposições cardinais de nossa razão pura: a de que existe um Deus e a de que há uma vida futura. Pelo contrário, estou certo que isto jamais acontecerá. Pois de onde pretende a razão tomar o fundamento para afirmações sintéticas tais que não se referem nem aos objetos da experiência nem à sua possibilidade interna? Por outro lado, também é apoditicamente certo que jamais alguém será capaz de afirmar o oposto sequer com a mínima verossimilhança, e isto sem falarmos em asserções dogmáticas. Com efeito, já que poderia realizar isto através da razão pura, a empreitada a assumir seria a de provar a impossibilidade de um ente supremo e do sujeito pensante em nós, enquanto inteligência pura. De onde, no entanto, pretenderá retirar os conhecimentos que justificassem os seus juízos sintéticos acerca das coisas que ultrapassam toda a experiência possível? Portanto, podemos ficar totalmente tranquilos quanto a que alguém nos venha algum dia a provar o contrário. Devido a isto, também não temos necessidade de pensar em provas escolásticas; pelo contrário, podemos sempre aceitar aquelas proposições que se interconectam muito bem com o interesse especulativo de nossa razão em seu uso empírico, e que além disto são os únicos meios de unir este interesse especulativo ao prático. Para o oponente (que não deve aqui ser considerado exclusivamente como um crítico), temos à disposição o nosso non liquet, o qual infalivelmente o desconcertará; enquanto isto, não nos importamos com o fato de retorquir este argumento contra nós, já que sempre temos como suporte a máxima subjetiva da razão, a qual falta necessariamente ao adversário e sob cuja proteção podemos encarar com tranquilidade e indiferença todas as suas peripécias ofensivas. Deste modo não há, propriamente, nenhuma antitética da razão pura. Com efeito, a sua única arena poderia ser procurada no campo da Teologia pura e da Psicologia; este terreno, todavia, não comporta nem combatentes equipados integralmente com a sua armadura nem armas que possam causar temor. O campeão só poderá munir-se da troça e da jactância, do que se poderá rir como se se tratasse de uma brincadeira infantil. Eis uma observação consoladora que dá novo ânimo à razão; pois em que mais a razão haveria de confiar se ela própria, convocada exclusivamente para remover todos os erros, estivesse abalada em si mesma sem quaisquer esperanças de paz e posses tranquilas? Tudo aquilo que a própria natureza dispõe é bom para algum propósito. Mesmo os venenos servem para subjugar outros venenos que se geram em nossos próprios humores, e por isto não podem faltar numa farmacopeia completa. As objeções contra as persuasões e a presunção de nossa razão meramente especulativa são impostas pela própria natureza desta razão, e têm pois de possuir as suas boas determinações e propósitos que não devem ser jogados ao vento. Por que tantos objetos, apesar de interconectados com o nosso interesse supremo, foram de tal modo postos fora de nosso alcance pela providência que quase só nos é concedido encontra-los numa percepção obscura e duvidosa para nós mesmos, percepção mediante a qual os nossos olhares espreitantes são mais estimulados do que satisfeitos? É pelo menos duvidosa, e quem sabe prejudicial, a utilidade de aventurar-se a determinações atrevidas com respeito a tais perspectivas. Mas sempre e sem nenhuma sombra de dúvida é útil colocar a razão, tanto a que investiga como a que examina, em completa liberdade a fim de que não seja obstaculizada na consecução de seu próprio interesse; este último também é promovido tanto pelo fato dela limitar quanto estender as suas conclusões, o que sempre padece quando mãos estranhas se imiscuem para conduzi-la, de um modo contrário à sua trilha natural, segundo propósitos forçados. Em consequência disto, permiti a vosso oponente falar em nome da razão, e combatei-o exclusivamente com as armas da razão. De resto, estejai despreocupados quanto à boa causa do interesse prático, pois ela jamais entra em jogo no conflito meramente especulativo. A disputa nada mais descobre, então, do que certa antinomia da razão que, por repousar sobre a natureza desta mesma razão, tem que ser necessariamente ouvida e testada. A desavença cultiva a razão mediante a consideração do seu objeto sob dois aspectos, e corrige o juízo desta mesma razão limitando-o. O que aqui se torna objeto da luta é não a coisa (Sache), mas sim o seu tom. Com efeito, mesmo que fostes constrangidos a abandonar a do saber, resta-vos ainda o suficiente para falar a linguagem de uma fé firme, linguagem justificada diante da mais rigorosa razão. Que resposta se obteria de David Hume, pensador sereno e propriamente talhado para o equilíbrio de julgamento, caso se lhe perguntasse: que o levou a minar, mediante dúvidas e hesitações tão laboriosamente obtidas por reflexão, a persuasão tão confortadora e útil aos homens de que a sua razão é capaz de atingir a afirmação e o conceito determinado de um ente supremo? Certamente responderia que nada mais do que o propósito de fazer a razão avançar em seu autoconhecimento, ao mesmo tempo certa indignação sobre a violência que pretendemos infligir à razão ao nos jactarmos com ela e concomitantemente a impedirmos de admitir, numa confissão sincera, as suas fraquezas, as quais se lhe tornam patentes em seu próprio autoexame. Por outro lado, se perguntarmos a Priestley, voltado exclusivamente aos princípios do uso empírico da razão e avesso a toda a especulação transcendental, que motivos o levaram, mesmo sendo um piedoso e zeloso pregador da religião, a pôr abaixo estes dois pilares fundamentais de toda a religião, a saber, a liberdade e a imortalidade de nossa alma (a esperança por uma vida futura é para ele somente a expectativa por um milagre da ressurreição), nada mais poderia responder do que o seguinte: o interesse da razão, o qual perde pelo fato de se pretender subtrair certos objetos às leis da natureza material, as únicas que podemos conhecer e determinar com precisão. Pareceria intolerante execrar o último, que sabe combinar a sua asserção paradoxa com propósitos religiosos, e ofender um homem que sabe pensar simplesmente porque não é capaz de achar seu caminho tão logo se distancie do campo da Ciência Natural. Mas o mesmo favor tem que se estender a um homem não menos bem-intencionado e irrepreensível em seu caráter moral como Hume, o qual não pode abandonar a sua especulação sutil devido ao fato de achar, com justiça, que o seu objeto se situa no terreno das ideias puras, totalmente fora dos limites da Ciência Natural. Que se deve então fazer, principalmente tendo em vista o perigo que a partir disto parece ameaçar os melhores interesses de todos os homens? Nada mais natural, nada mais permitido do que a decisão que tereis que tomar por causa disto. Deixai estas pessoas agir; se demonstram talento, se exibem novas e profundas investigações, numa palavra, se mostram razão, é esta última que sempre sairá lucrando. Se lançardes mão de outros meios que não os de uma razão incoagida, se gritardes sobre alta traição, se conclamardes o vulgo, que nada entende de elaborações tão sutis, a por assim dizer apagar o incêndio, então vos exporeis ao risco. Com efeito, aqui não se trata absolutamente de saber o que é vantajoso ou desvantajoso para os melhores interesses do comum dos mortais, mas sim unicamente saber até que ponto a razão pode ir em sua especulação capaz de abstrair de todos os interesses, se é possível sequer contar com esta especulação ou se é melhor que a abandonemos em prol do prático. Portanto, em vez de vos imiscuirdes com a espada na mão desde o assento seguro da crítica, contemplai antes calmamente esta contenda estafante para os combatentes e divertida para vós, e no caso de um desenlace que certamente não será sangrento, ela terá que resultar benéfica para os vossos conhecimentos. Pois é muito incongruente esperar um esclarecimento da razão e ainda assim lhe prescrever com antecedência por qual lado tem necessariamente que optar. Além disto, a razão já é por si tão bem coarctada e mantida dentro dos limites pela própria razão, que não tendes absolutamente necessidade de convocar a guarda com o intuito de antepor uma resistência civil àquela parte cuja prepotência inquietante vos parece perigosa. Nesta dialética não há uma vitória sobre a qual pudésseis ter motivo de preocupação. A razão também necessita, e muito, de tal conflito, e teria sido desejável que houvesse se desenrolado já bem antes e com uma irrestrita permissão pública. Com efeito, tão mais cedo ter-se-ia estabelecido uma crítica madura com cujo aparecimento todas estas disputas cessariam espontaneamente na medida em que os contendores aprendessem a reconhecer a cegueira e os preconceitos que os desuniram. Há certa insinceridade na natureza humana que, ao fim, e ao cabo, tem que conter uma disposição para fins bons, como aliás tudo o que provém da Natureza: a saber, uma inclinação a dissimular os seus verdadeiros traços de caráter e a ostentar certos traços assumidos de caráter que se julgam bons e afamados. Esta inclinação tanto de se ocultar quanto também de assumir uma aparência vantajosa com certeza levou os seres humanos não só a se civilizarem, mas em certa medida também a se moralizarem passo a passo; isto ocorreu porque ninguém era capaz de penetrar a maquiagem de honestidade, honorabilidade e modéstia, cada um encontrando pois uma escola de auto-aperfeiçoamento nos exemplos supostamente autênticos de bondade que via em torno de si. Mas esta disposição de nos fazermos melhores do que somos e de externarmos traços de caráter que não possuímos teve uma função tão somente provisória, por assim dizer, com o fito de retirar o homem de sua rudeza e de primeiro deixá-lo aceitar pelo menos as maneiras do bem que ele conhece; mas depois, quando os princípios genuínos já estão desenvolvidos e incorporados ao modo de pensar, aquela falsidade tem que ser vigorosamente combatida palmo a palmo, pois do contrário corrompe o coração e não permite que os bons traços de caráter medrem em meio às ervas da minha bela aparência. Causa-me pesar detectar exatamente a mesma insinceridade, dissimulação e hipocrisia até nas manifestações de pensamento especulativo; neste último, ao lado de não auferirem vantagem alguma, os homens se deparam com um número bem menor de obstáculos que os impedem de confessar, como convém, franca e abertamente os seus pensamentos. Com efeito, que pode ser mais prejudicial aos nossos conhecimentos do que comunicarmos até os nossos meros pensamentos tão falsamente uns aos outros, ocultarmos as dúvidas que sentimos ante as nossas próprias afirmações ou conferirmos ares de evidência aos argumentos que não satisfazem nem a nós mesmos? Enquanto tão somente a vaidade pessoal instiga estas intrigas secretas (o que é comumente o caso com os juízos especulativos, os quais não possuem um interesse especial e não são facilmente capazes de fornecer uma certeza apodítica), a vaidade dos outros resiste às mesmas com o consentimento público, e as coisas se encaminham finalmente ao mesmo destino que lhes seria dado, embora bem mais cedo, pelo mais puro caráter e pela franqueza. Mas quando o povo comum é de opinião que aqueles que são dados a sofismarem sutilmente a nada mais se dedicam do que fazer com que vacilem os fundamentos do bem-estar público, parece não só prudente, mas também permitido e quem sabe elogiável, antes vir em socorro da boa causa mediante sofismas do que conceder aos pretensos oponentes da mesma nem sequer a vantagem de nos levarem à diminuição de nosso tom de voz até atingirmos a moderação de uma convicção meramente prática, e de nos compelirem a confessar a nossa falta de certeza apodítica e especulativa. Com o propósito de se manter uma boa causa, deveria eu pensar no entanto, não se pode aliar nada pior no mundo do que a perfídia, a dissimulação e a fraude. Que na pesagem dos argumentos racionais de uma pura especulação tudo tenha que se dar honestamente é o mínimo que se pode exigir. Mas se pudéssemos contar seguramente mesmo com este pouco, o conflito da razão especulativa em torno das importantes questões sobre Deus, a imortalidade da alma e a liberdade ou estaria a muito decidido ou seria em seguida levado a um desfecho. Assim, frequentemente a pureza do caráter está numa razão inversa à benignidade da própria causa, e esta última possui talvez mais adversários honestos e honrados do que defensores que possam assim ser denominados. Pressuponho, pois, ter leitores que não querem ver uma causa justa ser defendida de modo injusto. Com respeito a eles pode-se tomar como decidido que, segundo os nossos princípios da crítica, não tem que haver propriamente uma polêmica da razão pura quando se atenta não para aquilo que acontece, mas sim para aquilo que com justiça deveria acontecer. Com efeito, como podem duas pessoas porfiar a respeito de uma coisa cuja realidade nenhuma das duas pode apresentar numa experiência real ou tão somente possível, uma disputa na qual cada uma cisma unicamente sobre a ideia desta coisa a fim de extrair dela algo mais do que a ideia, a saber, a realidade do próprio objeto? Por intermédio de que meios estas pessoas pretendem se desvencilhar do conflito se nenhuma das duas consegue tornar a sua causa francamente compreensível e certa, podendo unicamente atacar a do oponente e refutá-la? Pois este é o destino de todas as afirmações da razão pura: já que ultrapassam as condições de toda a experiência possível fora da qual em parte alguma é possível encontrar qualquer documento de verdade, mas que não obstante são forçadas a utilizarem as leis do entendimento determinadas exclusivamente ao uso empírico, sem as quais contudo é impossível dar um passo sequer no pensamento sintético, cada uma delas sempre expõe os seus pontos fracos ao adversário e ambas podem aproveitar-se mutuamente das fraquezas de seu oponente. Pode-se encarar a Crítica da Razão Pura como verdadeiro tribunal para todos os conflitos da razão. Com efeito, não está envolvida nestas disputas enquanto voltadas imediatamente para objetos, mas foi posta para determinar e julgar os direitos da razão em geral segundo os princípios de sua primeira instituição. Sem esta crítica, a razão está como que em estado de natureza, não podendo nem fazer valer nem assegurar as suas afirmações e reivindicações senão mediante a guerra. Em contra partida, a crítica, que chega a todas as decisões partindo de regras fundamentais de sua própria instituição e cuja autoridade ninguém pode pôr em dúvida, nos proporciona a paz de um estado legal em que não devemos conduzir as nossas desavenças senão mediante um processo. O que aplaca a disputa no primeiro estado é uma vitória da qual ambas as partes se vangloriam, e à qual se segue uma paz na maior parte das vezes tão somente insegura, instaurada por uma autoridade mediadora; no segundo estado, contudo, a contenda é terminada por uma sentença que tem que garantir uma paz eterna, visto que aqui atinge a própria fonte das querelas. As intermináveis contendas de uma razão meramente dogmática também nos compelem finalmente a procurar a paz em alguma crítica desta mesma razão e numa legislação que nela se fundamenta. Como o afirmou Hobbes, o estado de natureza é um estado de injustiça e de violência, sendo necessário que o abandonemos para nos submetermos à compulsão da lei; esta última limita a nossa liberdade exclusivamente com o fito de que possa coexistir com a liberdade de todos os demais e, exatamente devido a isto, com o bem comum. Desta liberdade também faz parte a de expormos ao julgamento público os nossos pensamentos e aquelas dúvidas que não podemos solver sozinhos, e fazê-los sem com isto sermos tachados de cidadãos agitados e perigosos. Isto já é um dos direitos originários da razão humana, a qual por sua vez não reconhece nenhum outro juiz que não a própria razão humana universal na qual cada um possui voz ativa; e já que desta última tem que provir toda a melhora de que nosso estado é capaz, tal direito é sagrado e não pode ser diminuído. Também é muito pouco sábio censurar como perigosas certas asserções ousadas ou certos ataques atrevidos dirigidos contra aquelas opiniões que já têm do seu lado a aprovação da maior e melhor parte do povo, pois isto significa conferir-lhes uma importância que de modo algum deveriam possuir. Quando ouço que uma mente incomum demonstrou que a liberdade da vontade humana, a esperança por uma vida futura e Deus não existem, estou ávido para ler o seu livro, pois espero que o seu talento seja capaz de me fazer progredir em meus conhecimentos. Já de antemão tenho certeza de que não fui bem-sucedido na resolução de nenhuma destas questões não porque acredito já estar de posse de provas irrefutáveis destas importantes proposições, mas sim porque a crítica transcendental, que me revelou todos os recursos de nossa razão pura, me convenceu integralmente de que do mesmo modo que a razão é totalmente inepta para chegar a asserções afirmativas neste campo tampouco e menos ainda é capaz de saber o suficiente para poder concluir negativamente a respeito destas perguntas. Com efeito, de onde o pretenso livre-pensador pretende tirar o conhecimento de que, por exemplo, não existe um ente supremo? Esta proposição situa-se fora do campo de uma experiência possível, e portanto também fora dos limites de todo o conhecimento humano. Eu de modo algum leria aquele que defende dogmaticamente a boa causa contra este inimigo, pois já sei previamente que atacará os argumentos aparentes do outro unicamente com o intuito de introduzir os seus próprios; além disto, uma aparência cotidiana não fornece tanto material para novas observações quanto uma que cause estranheza e seja engenhosamente elaborada. Diante disso, o oponente da religião, que também é dogmático a seu modo, daria à minha crítica uma ocupação que ela deseja e um ensejo para várias correções de seus princípios, sem que com isto haja sequer o mínimo perigo para estes últimos. Mas não deve pelo menos a juventude, a qual está confiada ao ensino acadêmico, ser posta em guarda contra tais escritos e mantida afastada do conhecimento prematuro de proposições tão perigosas até o dia que amadureça a sua capacidade de julgar, ou antes se radique firmemente em sua mente a doutrina que nela se pretende fundar, a fim de que esteja apta a resistir vigorosamente a todas as tentativas de persuadi-la do contrário, venham de onde vierem? Se se tivesse que manter o procedimento dogmático nos assuntos referentes à razão pura bem como despachar o adversário de um modo propriamente polêmico, ou seja, aceitando o combate e se munindo de argumentos que sustentassem as afirmações opostas, então nada seria mais recomendável a curto prazo, mas ao mesmo tempo nada mais vão e infrutífero tendo em vista um longo lapso de tempo, do que tutelar por algum tempo a razão da juventude e assim resguardá-la pelo menos temporariamente contra a perversão. Mas quando mais tarde a curiosidade ou a moda da época lhe abre as portas a semelhantes escritos, resistirá ainda aquela convicção juvenil? Aquele que nada mais traz consigo do que armas dogmáticas para resistir aos ataques de seu adversário, e que não sabe desenvolver aquela dialética que se oculta em seu próprio seio não menos que no do oponente, vê sofismas que possuem a vantagem da novidade oporem-se a sofismas que não mais a possuem, e que antes suscitam a suspeita de que pretenderam se aproveitar da sua credulidade juvenil. Acredita não poder mostrar melhor a sua emancipação da disciplina infantil do que transpondo aquelas advertências bem-intencionadas, e acostumado ao dogmatismo, ingere em largas sorvidas o veneno que arruína dogmaticamente os seus princípios. Exatamente o contrário do que aquilo que se aconselha aqui é o que tem que ocorrer no ensino acadêmico, é claro que pressupondo uma instrução pormenorizada a respeito da crítica da razão pura. Com efeito, para levar os princípios desta razão a se exercitarem tão cedo quanto possível e mostrar a sua suficiência mesmo frente à maior ilusão dialética, torna-se absolutamente necessário dirigir os ataques, que parecem tão terríveis ao dogmático, contra a razão ainda débil do neófito, mas já esclarecida pela crítica e permitir que ancorado naqueles princípios tente testar cada uma das afirmações infundadas do oponente. De modo algum ser-lhe-á difícil fazer com que desvaneçam em névoa, e assim já cedo o discípulo sente a sua própria capacidade de se pôr a salvo contra tais ilusões perniciosas, as quais têm que perder afinal todo o seu caráter ilusório para ele. Embora os mesmos golpes que abatem a construção do inimigo têm que ser igualmente desastrosos para o seu próprio edifício especulativo caso pense em erigir um, o fato de não necessitar absolutamente residir no mesmo é capaz de deixá-lo completamente despreocupado quanto a isto, visto que diante dele ainda se descortina a perspectiva do campo prático, onde pode fundadamente esperar encontrar um terreno mais sólido sobre o qual erguer o seu sistema racional e salutar. Em decorrência disto, não existe propriamente uma polêmica no campo da razão pura. Ambas as partes são gladiadores que se esgrimem no ar e com as suas próprias sombras, pois ultrapassando a Natureza atingem regiões onde não há nada que possa ser apreendido e conservado por suas presas dogmáticas. Por mais que lutem, as sombras por eles despedaçadas já se recompõem num instante, como os heróis do Walhalla, a fim de que possam novamente se divertir na contenda incruenta. Por outro lado, também não é possível admitir a existência de um uso cético da razão pura, o qual se pudesse denominar o princípio de neutralidade em todas as suas disputas. Incitar a razão contra si mesma e fornecer armas a ambas as partes para então assistir tranquila e zombeteiramente ao seu acalorado combate não é algo muito conveniente de um ponto de vista dogmático, revelando antes uma índole malévola e traiçoeira. No entanto, se considerarmos a incurável cegueira e a gabolice dos sofistas, os quais recusam ser moderados por qualquer crítica, então realmente não resta outro recurso senão contrapor à fanfarrice de um lado uma idêntica de outro lado, e que repouse exatamente sobre os mesmos direitos; o que se visa com isto é que razão fique pelo menos perplexa com a resistência de um inimigo, justamente para lhe despertar algumas dúvidas quanto às suas presunções e levá-la a dar ouvidos à crítica, só que dar-se completamente por satisfeito com estas dúvidas e se restringir à intenção de recomendar a convicção e a confissão de sua ignorância não só como um remédio que possa curar a presunção dogmática, mas ao mesmo tempo também como o modo de se terminar o conflito da razão consigo mesma, é uma tentativa totalmente inútil e que de modo algum pode servir para proporcionar um repouso para a razão; na melhor das hipóteses, trata-se de um meio capaz de despertá-la de seu doce sonho dogmático e de levá-la a examinar mais detidamente o seu próprio estado. Por outro lado, já que esta maneira cética de nos desembaraçarmos de uma aborrecedora querela da razão parece como que o caminho mais certo para se chegar a uma paz permanente na Filosofia, ou pelo menos a estrada real que costuma ser trilhada por aqueles que pensam poder assumir uma respeitabilidade filosófica ao desprezarem e zombarem de todas as investigações desta natureza, julgo necessário apresentar este modo de pensar na sua luz própria. SOBRE A IMPOSSIBILIDADE DE UM APAZIGUAMENTO CÉTICO DA RAZÃO PURA EM DESACORDO CONSIGO MESMA A consciência de minha ignorância (quando esta última não é concomitantemente reconhecida como necessária), ao invés de pôr um termo às minhas investigações, é antes a própria causa de seu despertar. Toda a ignorância é ignorância ou das coisas da determinação e dos limites do meu conhecimento. Ora, quando a ignorância é contingente tem que me impelir, no primeiro caso, a investigar dogmaticamente as coisas (objetos) e, no segundo caso, a investigar criticamente os limites de meu conhecimento possível. Que a minha ignorância seja contudo absolutamente necessária e me libero portanto de toda e qualquer perquirição ulterior, eis algo que não pode ser estabelecido empiricamente a partir da observação, mas sim tão só de um modo exclusivamente crítico mediante a sondagem, das primeiras fontes de nosso conhecimento. Logo, a determinação dos limites de nossa razão só pode ocorrer segundo fundamentos a priori; por outro lado, aquela limitação da razão que consiste num conhecimento, embora indeterminado, de uma ignorância jamais a ser completamente suprimida, também pode ser conhecida a posteriori mediante aquilo que ainda nos resta saber, não obstante tudo o que sabemos. Aquele primeiro conhecimento de nossa ignorância, possível exclusivamente mediante a própria crítica da razão, é portanto ciência, ao passo que o segundo nada mais é do que uma percepção, e não é possível dizer até que ponto possam alcançar as inferências que dela partem. Se me represento a superfície terrestre (de acordo com a aparência sensível) como um prato, então não posso saber até onde se estende. No entanto, a experiência me ensina que, onde quer que eu vá, sempre me vejo rodeado por um espaço no qual ainda poderia continuar progredindo; portanto conheço limites do conhecimento real que possuo da Terra a cada momento, mas não os limites de toda a descrição possível da Terra. Mas se progredi o suficiente para saber que a Terra é uma esfera e a sua superfície é esférica, então posso conhecer determinadamente e segundo princípios a priori o diâmetro e, mediante este, a delimitação completa da Terra, isto é, a sua superfície, mesmo que para tanto eu parta tão somente de uma pequena parte sua, por exemplo da magnitude de um grau; e embora eu seja ignorante quanto aos objetos que esta superfície possa conter, não o sou com respeito nem à extensão nem à magnitude e aos limites desta superfície. O conjunto de todos os objetos possíveis para o nosso conhecimento nos parece ser uma superfície plana que possui o seu horizonte aparente: a saber, aquilo que compreende toda a sua extensão e que foi por nós denominado o conceito racional da totalidade incondicionada. É impossível atingir empiricamente este último, e todas as tentativas de determina-lo a priori segundo certo princípio foram em vão. Não obstante, todas as perguntas de nossa razão pura se voltam para o que está fora deste horizonte ou, em todos os casos, para o que se situa em sua linha demarcatória. O famoso David Hume foi um destes geógrafos da razão humana que julgou ter dado suficientemente conta de todas aquelas questões ao remetê-las para fora do horizonte da razão humana, o qual não pôde todavia determinar. Deteve-se precipuamente no princípio de causalidade, e a seu respeito observou assaz corretamente que a sua verdade (e nem mesmo a validade objetiva do conceito de uma causa eficiente em geral) não repousa sobre qualquer visão, isto é, conhecimento a priori; em decorrência disto, toda a autoridade desta lei não é de modo algum constituída por uma necessidade, mas sim por sua simples utilidade geral no decurso da experiência e consequentemente por sua necessidade subjetiva daí originária e que ele chama de costume. A partir da incapacidade que a nossa razão possui de usar este princípio para além de toda a experiência, Hume inferiu a nulidade de todas as pretensões da razão em geral que visam ultrapassar o empírico. Um procedimento deste tipo, submeter os fatos da razão a um exame e conforme o caso à repreensão, pode ser intitulado censura da razão. É indubitável que esta censura conduz inevitavelmente a dúvidas contra todo o uso transcendental de princípios. Só que este é unicamente o segundo passo, o qual está longe de completar a tarefa. O primeiro passo em assuntos da razão pura, e que caracteriza a infância desta última, é dogmático. O segundo passo, há pouco mencionado, é cético, testemunhando a cautela de uma capacidade de julgar já escaldada pela experiência. Mas agora ainda se faz necessário um terceiro passo, o qual só pode ser dado por uma capacidade amadurecida e adulta de julgar que se funda em máximas firmes e de comprovada universalidade: trata-se de submeter a uma avaliação não os fatos da razão, mas sim a própria razão segundo toda sua faculdade e aptidão para conhecimentos puros a priori. Isto constitui não a censura, mas sim a crítica da razão, mediante a qual são provados a partir de princípios, e não simplesmente presumidos, não somente as barreiras, mas sim os limites determinados da razão, não só a ignorância referente a um ou outro ponto, mas sim a ignorância referente a todas as questões possíveis de certa espécie. Deste modo, para a razão humana o ceticismo é um local de descanso no qual pode refletir sobre a sua peregrinação dogmática e fazer um esboço da região em que se encontra, a fim de no futuro poder eleger com maior segurança o seu caminho; de modo algum se trata de uma residência destinada a uma estadia permanente. Com efeito, tal residência só pode ser encontrada onde há plena certeza, seja quanto ao conhecimento dos próprios objetos, seja quanto aos limites dentro dos quais se encerra todo o nosso conhecimento de objetos. A nossa razão não é um plano que se estende indeterminavelmente, cujas barreiras são conhecidas só assim de um modo geral; tem antes que ser comparada a uma esfera cujo raio pode ser estabelecido a partir da curvatura do arco de sua superfície (da natureza das proposições sintéticas a priori), modo pelo qual também é possível indicar com certeza o seu volume e a sua delimitação. Fora desta esfera (o campo da experiência) não há nada que possa ser objeto para a razão, e mesmo as perguntas sobre tais supostos objetos referem-se unicamente a princípios subjetivos de uma determinação completa daquelas relações que podem se apresentar sob os conceitos do entendimento e dentro desta esfera. Estamos realmente de posse de conhecimentos sintéticos a priori, tal qual o evidenciam os princípios do entendimento que antecipam a experiência. Se alguém não consegue absolutamente compreender a possibilidade destes princípios, então pode de início duvidar que nos sejam inerentes realmente a priori; mas não pode apresentar isto como uma impossibilidade de se atingi-los mediante as simples forças do entendimento, nem declarar nulos todos os passos que a razão dá guiada pelos mesmos. Só pode dizer que, caso compreendêssemos a sua origem e a sua autenticidade, poderíamos determinar a extensão e os limites de nossa razão; mas antes que isto aconteça, todas as afirmações desta última são arriscadas às cegas. E deste modo seria perfeitamente fundada uma dúvida completa quanto a toda a filosofia dogmática que segue o seu caminho sem uma critica da própria razão; só que por causa disto não se poderia negar totalmente à razão o direito a tal progresso, desde que preparado e assegurado mediante uma melhor fundamentação. Com efeito, todos os conceitos e até todas as perguntas que a razão pura nos apresenta situam-se não na experiência, mas sim tão somente na razão, e em virtude disto têm que poder ser resolvidos e concebidos segundo a sua validade ou a sua nulidade. Também não temos o direito de rejeitar, alegando a nossa incapacidade, estas tarefas como se a sua solução estivesse realmente na natureza das coisas, o recusar levar a cabo a sua investigação ulterior; pois por ser a única responsável pela geração destas mesmas ideias, a razão está na obrigação de prestar contas quanto à sua validade ou à sua ilusão dialética. Toda a polêmica cética está propriamente voltada só contra o dogmático e tem como único objetivo desconcertá-lo e conduzi-lo ao autoconhecimento, pois o dogmático trilha solenemente o seu caminho sem desconfiar de seus princípios objetivos originários, ou seja, sem crítica. Em si esta polêmica não tem sequer a mínima importância com respeito ao que sabemos e, em contra partida, ao que não podemos saber. Todas as tentativas dogmáticas fracassadas da razão são fatos, e é sempre útil submetê-los à censura. Isto, contudo, nada pode decidir sobre as expectativas que levam a razão a esperar e a reivindicar um resultado melhor de seus futuros esforços; a mera censura, pois, jamais pode levar a cabo o conflito em torno dos direitos da razão humana. Já que Hume é, talvez, o mais brilhante dentre todos os céticos e sem dúvida o mais importante com referência à influência que o procedimento cético pode exercer sobre o despertar de um exame minucioso da razão, vale a pena clarificarmo-nos, na medida em que é conveniente para o nosso propósito, o curso de suas inferências e os erros de um homem tão penetrante e digno de apreço, erros de um percurso que certamente começou seguindo as pegadas da verdade. Hume tinha talvez presente, embora nunca o tenha desenvolvido integralmente, que em juízos de certa espécie ultrapassamos o nosso conceito do objeto. Denominei sintéticos os juízos desta espécie. Como posso mediante a experiência ir além do conceito que até então possuía, eis algo que não está submetido a nenhuma dificuldade. A própria experiência é uma síntese de percepções tal que o conceito que possuo através de uma percepção é aumentado pela adição de outras percepções. Só que acreditamos ser possível ultrapassar também a priori o nosso conceito, e deste modo ampliar o nosso conhecimento. Tentamos isto ou mediante o entendimento puro com respeito ao que pode pelo menos ser um objeto da experiência, ou até mediante a razão pura com respeito a tais propriedades das coisas, ou também da existência de tais objetos, que jamais podem ocorrer na experiência. O nosso cético não distinguiu estes dois tipos de juízos, coisa que deveria ter feito, e considerou diretamente impossível esta ampliação dos conceitos a partir de si mesmos e por assim dizer a geração espontânea de nosso entendimento (até mesmo da razão) sem ter sido fecundado pela experiência. Por conseguinte, tachou todos os supostos princípios a priori do entendimento e da razão como imaginários, considerando-os nada mais do que um costume que se origina na experiência e nas suas leis; encarava-os, portanto, unicamente como regras empíricas, isto é, contingentes em si às quais imputamos uma suposta necessidade e universalidade. Mas a fim de ter uma base para afirmar esta estranha proposição, reportou-se ao princípio universalmente reconhecido da relação entre a causa e o efeito. Pois já que nenhuma faculdade do entendimento pode conduzir-nos do conceito de uma coisa à existência de outra coisa que mediante tal resulta universal e necessariamente dada, acreditou poder concluir disto que sem a experiência nada temos que possa ampliar o nosso conceito e autorizar-nos a propor tal juízo que amplia a priori a si mesmo. Que a luz solar, ao iluminá-las, derrete a cera ao mesmo tempo que solidifica a argila, eis o que entendimento algum pode adivinhar, e muito menos inferir de acordo com uma lei, a partir de conceitos que já tínhamos previamente destas coisas: só a experiência pode nos ensinar uma tal lei. Em contra partida, vimos na Lógica Transcendental que, embora jamais possamos ultrapassar imediatamente o conteúdo do conceito que nos é dado, podemos conhecer totalmente a priori a lei da conexão com outras coisas, claro que em relação a uma terceira coisa, a saber, a experiência possível, de um modo ainda assim a priori. Logo, quando a cera anteriormente sólida derrete, posso saber a priori que tem que ter precedido algo (por exemplo, o calor do sol) ao qual se seguiu este derretimento segundo uma lei constante, embora me seja impossível conhecer a priori e determinadamente, nem a causa a partir do efeito nem o efeito a partir da causa sem apelar para os ensinamentos da experiência. A partir da contingência de nossa determinação segundo a lei, Hume inferiu falsamente a contingência da própria lei, e o ultrapassar o conceito de uma coisa para atingir uma experiência possível (o que ocorre a priori e constitui a realidade objetiva deste conceito) ele confundiu com a síntese dos objetos de uma experiência real, a qual de fato é sempre empírica. Através disto, no entanto, transformou um princípio de afinidade, cujo sítio é o entendimento e que exprime uma conexão necessária, numa regra de associação que só é encontrada na capacidade de imaginação imitativa e só pode apresentar ligações unicamente contingentes e de modo algum objetivas. Os erros céticos deste pensador de outro modo extremamente lúcido originaram-se preponderantemente de uma deficiência que possuía em comum com todos os dogmáticos, a saber, que não abrangem sistematicamente todas as espécies de sínteses a priori do entendimento. Com efeito, teria então reconhecido, por exemplo e sem aqui mencionarmos os demais, o princípio de permanência como um princípio que, tanto quanto o da causalidade, antecipa a experiência. Através disto também estaria apto a traçar limites determinados à razão pura e ao entendimento que se amplia a priori. Mas ele só restringe o nosso entendimento sem o limitar, e precisamente ao produzir uma desconfiança generalizada não fornece nenhum conhecimento determinado de nossa inevitável ignorância, visto que submete à censura alguns princípios do entendimento sem o levar, na totalidade de sua faculdade,- a ser testado pela balança da crítica; na medida em que nega ao entendimento aquilo que este de fato não pode realizar, avança contestando-lhe todo o poder de se ampliar a priori, apesar de em sua avaliação não o ter levado em conta em sua totalidade. Deste modo, sucede-lhe aquilo que sempre abate o ceticismo: será sempre posto em dúvida na medida em que as suas objeções repousam tão somente sobre fatos, os quais são contingentes, e não sobre princípios capazes de provocar uma necessária renúncia ao direito de fazer afirmações dogmáticas. Já que ele também não conhece nenhuma distinção entre os reclamos fundados do entendimento e as pretensões dialéticas da razão, pois é contra estas que se dirigem primordialmente as suas invectivas, pelo fato de seu ímpeto característico não ter sido abalado nem um pouco, mas tão só temporariamente obstaculizado, a razão sente que o espaço para expandir-se não está cerrado, sendo pois impossível dissuadi-la completamente de suas tentativas, não obstante seja importunada aqui ou ali. Com efeito, contra-ataques armamo-nos para a defesa, e cresce a obstinação para fazermos triunfar as nossas exigências. Uma revisão completa de toda a faculdade da razão, e a convicção daí resultante, tanto da certeza de uma pequena possessão quanto da vaidade de reivindicações mais elevadas, suprime toda a contenda e a move a contentar-se pacificamente com uma propriedade restrita, porém incontestável. Para o dogmático acrítico que não mediu a esfera de seu entendimento e não determinou segundo princípios os limites de seu conhecimento possível e que portanto não sabe antecipadamente o quanto pode, mas pensa descobri-lo por intermédio de meras tentativas, estes ataques céticos são não só perigosos, mas chegam a ser fatais. Com efeito, se ele é atingido numa única das suas asserções que não pode justificar e cuja aparência também não pode desenvolver a partir de princípios, então as suspeitas recaem sobre todas as suas afirmações, por mais convincentes que possam ser. Deste modo, o cético é o mestre que disciplina o racionalizador segundo uma saudável crítica do entendimento e da própria razão. Quando chega a este ponto, não precisa temer nenhum ataque, pois passa a distinguir a sua posse daquilo que se situa totalmente fora da mesma; nada reivindicado deste último setor, também não se envolverá em contendas por sua causa. Para as questões da razão, o procedimento cético não é em si mesmo satisfatório; serve, contudo, como um exercido preliminar para despertar a prudência da razão e indicar-lhe os meios rigorosos que lhe podem assegurar as suas legítimas possessões. SEÇÃO TERCEIRA DO CAPÍTULO PRIMEIRO A DISCIPLINA DA RAZÃO PURA COM RESPEITO ÀS HIPÓTESES Já que a crítica de nossa razão finalmente nos fez saber que de fato nada podemos saber em seu uso puro e especulativo, não deveria nos abrir um campo tão mais vasto para hipóteses? E já que não podemos afirmar, não nos é pelo menos permitido conjeturar e opinar? Quando a capacidade de imaginação deve não devanear, mas sim conjeturar sob a rigorosa supervisão da razão, então tem de sempre preexistir algo que é de todo certo e não o resultado de uma invenção ou de uma simples opinião, e tal é a possibilidade do próprio objeto. No que concerne à realidade deste objeto, é então perfeitamente permitido refugiar-se na opinião; mas para não ser infundada, esta opinião tem de ser conectada com aquilo que é de fato dado e consequentemente certo enquanto fundamento explicativo. Neste caso chama-se hipótese. Já que não podemos formar-nos a priori sequer o mínimo conceito a respeito da possibilidade da conexão dinâmica e já que a categoria do entendimento puro não possui nenhuma serventia para excogitar tal conexão, mas sim unicamente para compreendê-la quando encontrada na experiência, de acordo com estas categorias não podemos idear originariamente um único objeto sequer dotado de uma natureza nova e não indicável empiricamente. Por conseguinte, não podemos tomá-lo como fundamento para uma hipótese admissível; com efeito, isto significaria prover a razão de quimeras vazias ao invés de fornecer-lhe conceitos de coisas. Deste modo, não é permitido excogitar quaisquer novas capacidades originárias, por exemplo um entendimento capaz de intuir os seus objetos sem o concurso dos sentidos, ou uma força de atração sem nenhum contato, nem quaisquer novas espécies de substâncias, por exemplo uma que estivesse presente no espaço prescindindo da impenetrabilidade; não é admitido inventar, consequentemente, nenhuma comunidade das substâncias diversas de todas aquelas que a experiência fornece, nem uma presença outra que não há no espaço nem uma duração diversa da que há no tempo. Numa palavra: à nossa razão só é possível usar as condições de uma experiência possível como condições da possibilidade das coisas; de modo algum, todavia, pode por assim dizer criar semelhantes conceitos para si mesma independente destas condições. Embora não contraditórios, estes conceitos ainda assim seriam sem objeto. Como dissemos, os conceitos da razão são meras ideias, não possuindo em verdade objeto algum numa experiência qualquer; nem por isto, contudo, designam objetos imaginários e ao mesmo tempo supostos como possíveis. Os conceitos da razão só são pensados problematicamente a fim de que fundemos, em referência a eles (enquanto ficções heurísticas), os princípios regulativos do uso sistemático do entendimento no campo da experiência. Se desistirmos deste propósito, são simples entes da razão cuja possibilidade não é demonstrável, e que em consequência disto também não podem ser tomados, por meio de uma hipótese, como fundamento para explicar fenômenos reais. É perfeitamente lícito pensar a alma como simples a fim de tomar, segundo esta ideia, uma unidade completa e necessária de todas as capacidades da mente, embora não se possa compreendê-las in concreto, como o princípio segundo o qual julgamos os fenômenos internos da alma. Mas supor que a alma é uma substância simples (um conceito transcendente) seria uma proposição que não só é indemonstrável (assim como o são várias hipóteses físicas), mas também arriscada de modo totalmente arbitrário e às cegas; isto decorre do fato do simples não poder de modo algum ocorrer numa experiência, e se aqui entendermos por substância o objeto permanente da intuição sensível, não dá absolutamente para compreender a possibilidade de um fenômeno simples. A razão não possui autorização alguma para supor, como opinião, entes puramente inteligíveis ou propriedades puramente inteligíveis de coisas do mundo sensível, embora (por não se ter conceito algum de sua possibilidade ou impossibilidade) também não possam ser dogmaticamente negados com base num suposto melhor discernimento. Para explicar fenômenos dados não se pode aduzir outras coisas e fundamentos explica ti vos se não aqueles que foram conectados a estes fenômenos dados segundo leis já conhecidas dos fenômenos. Uma hipótese transcendental, na qual uma simples ideia da razão fosse usada para a explicação das coisas da natureza, não seria, por conseguinte, uma explicação na medida em que aquilo que não se compreende suficientemente a partir de princípios empíricos conhecidos seria explicado por intermédio de algo do qual nada se compreende. O princípio de tal hipótese também só serviria propriamente para satisfazer a razão, e não para promover o uso do entendimento com respeito aos objetos. A ordem e a conformidade a fins que imperam na natureza têm por sua vez de ser explicadas a partir de fundamentos naturais e segundo leis naturais, e aqui mesmo as mais fantásticas hipóteses, desde que físicas, são mais toleráveis do que uma hipótese hiperfísica, isto é, o apelar para um criador divino que se pressupõe com esta finalidade de explicação. Com efeito, seria um princípio da razão indolente (ignava ratio) deixar de lado todas as causas, cuja realidade objetiva pode ser conhecida no curso da experiência, pelo menos segundo a sua possibilidade, a fim de descansar numa simples ideia, aliás muito cômoda para a razão. Mas a totalidade absoluta dos fundamentos explicativos na série das causas não pode constituir-se num obstáculo com respeito aos objetos do mundo, pois já que estes nada mais são do que fenômenos, deles jamais se pode esperar algo completo na síntese da série de condições. De modo algum é permitido nem o apelo a hipóteses transcendentais do uso especulativo da razão nem a liberdade de recorrer a fundamentos hiperfísicos de explicação como o fito de suprir a falta dos físicos, em parte porque este procedimento de modo algum faz avançar a razão, interrompendo antes todo o progresso de seu uso, e em parte porque esta licença acaba por privá-la de todos os frutos resultantes do cultivo de seu terreno próprio, a saber, a experiência. Com efeito, quando aqui e ali a explicação da natureza se torna difícil, temos sempre à mão um fundamento transcendente de explicação que nos dispensa daquela investigação, e a nossa pesquisa conclui não com a compreensão, mas sim com a total incompreensibilidade de um princípio que já foi previamente ideado de modo a conter por necessidade o conceito do absolutamente primeiro. O segundo requisito para a admissibilidade de uma hipótese é a sua suficiência para determinar a priori a partir dela as consequências que são dadas. Se para esta finalidade somos constrangidos a invocar hipóteses auxiliares, então provocam suspeitas de serem meras ficções, pois cada uma delas requer em si a mesma justificativa que o pensamento subjacente necessitava, e em consequência nenhuma delas pode dar um testemunho digno de confiança. Caso se pressuponha uma causa infinitamente perfeita, não faltam fundamentos explicativos para toda a conformidade a fins, ordem e grandeza que são encontrados no mundo; mas quanto às anomalias e males patentes neste último pelo menos segundo os nossos conceitos são necessárias novas hipóteses para salvar aquela primeira das objeções encarnadas por estes males e anomalias. Se a autossuficiência simples da alma humana, a qual foi tomada como fundamento de seus fenômenos, é contestada pelas dificuldades devidas àqueles dos seus fenômenos que se assemelham a mudanças de uma matéria (ao crescimento e à decadência), então temos que pedir ajuda a novas hipóteses que, embora não destituídas de verossimilhança, não possuem outras credenciais senão aquelas fornecidas pela opinião aceita como hipótese fundamental, opinião cujo enunciado terão que atuar. Se os exemplos aqui citados de afirmações da razão (a unidade incorpórea da alma e a existência de um ente supremo) devem valer não como hipóteses, mas sim como dogmas provados a priori, então não é deles que falamos aqui. Neste caso, no entanto, devemos cuidar para que a prova tenha a certeza apodítica de uma demonstração. Com efeito, pretender tornar meramente provável a realidade de tais ideias é um intento tão absurdo quanto pensar em demonstrar tão somente como provável uma proposição da Geometria. Apartada de toda a experiência, a razão pode ou conhecer tudo tão somente a priori e como necessário ou nada pode conhecer; consequentemente, o seu juízo jamais é opinião, mas sim ou abstinência de todo o juízo ou certeza apodítica. As opiniões e os juízos prováveis a respeito do que pertence às coisas só podem ocorrer como fundamentos explicativos daquilo que é realmente dado ou como consequências, segundo leis empíricas, daquilo que é subjacente enquanto real; portanto, só podem apresentar-se na série dos objetos da experiência. Fora deste campo, opinar equivale a brincar com pensamentos, a não ser que tivéssemos tão somente a opinião de poder talvez chegar à verdade seguindo uma vereda insegura para julgar. Mas embora nas questões meramente especulativas da razão pura não ocorram quaisquer hipóteses para servirem de fundamento às proposições, ainda assim são perfeitamente admissíveis para defendê-las, na verdade não para o uso dogmático, mas para o polêmico. Por defesa entendo não a multiplicação dos argumentos da nossa afirmação, mas sim o ato de fazer malograrem os conhecimentos ilusórios mediante os quais o oponente pretende invalidar a nossa asserção. Por outro lado, todas as proposições sintéticas derivadas da razão pura possuem a seguinte peculiaridade: quando aquele que afirma a realidade de certas ideias jamais sabe o suficiente para dar certeza a esta sua proposição, o seu adversário pode saber tão pouco quanto ele para afirmar o oposto. Esta igualdade de destino da razão pura não favorece a nenhum dos dois no conhecimento especulativo, tornando-se assim o campo de batalha adequado para rixas intermináveis. Na sequência mostrar-se-á que, com respeito ao uso prático, a razão possui o direito de admitir algo que de modo algum estaria autorizada a pressupor sem argumentos suficientes no campo da pura especulação; pois todas as pressuposições deste tipo maculam a perfeição da especulação, ao passo que o interesse prático absolutamente não se preocupa com a mesma. No uso prático, portanto, a razão tem posses cuja legitimidade não lhe é permitido provar e a qual de fato também não estaria em condições de provar. Logo, o ônus da prova recai sobre o oponente. Mas já que a respeito do objeto posto em dúvida este último sabe tão pouco para evidenciar a sua inexistência quanto o primeiro para afirmar a sua realidade, patenteia-se aqui uma vantagem em favor daquele que afirma algo como um pressuposto praticamente necessário (melio est conditio possidentis). Fica a seu critério utilizar em prol de sua boa causa, como que em legítima defesa, exatamente os mesmos meios que o adversário emprega para combatê-la, a saber, hipóteses; estas últimas não devem absolutamente servir para reforçar a prova da própria boa causa, mas sim para mostrar que o oponente entende muito pouco a respeito do objeto do conflito para que possa ufanar-se. de uma vantagem sobre nós no tocante ao conhecimento especulativo. No campo da razão pura, portanto, as hipóteses só são permitidas como armas de guerra e para defender um direito, mas não para lhe servirem de fundamento. Aqui sempre temos de procurar o oponente em nós mesmos, pois a razão especulativa em seu uso transcendental é em si dialética. As objeções que temos que temer estão em nós mesmos. Para fundarmos uma paz eterna sobre sua aniquilação, temos que buscá-las como se fossem velhas, porém jamais prescritas reivindicações. A calma exterior é apenas ilusória. O germe das contestações ínsito na natureza da razão humana tem de ser exterminado. Mas como extermina-lo se não lhe damos nem a liberdade nem a nutrição de que necessita para que brote e assim se nos revele a fim de que depois possamos elimina-lo pela raiz? Em decorrência disto, pensai em objeções que ainda não vieram à mente de inimigo algum, e até cedei-lhe armas ou lhe concedei o espaço mais favorável que possa desejar. Neste caso não há nada a temer, mas antes a esperar que obtereis uma possessão que no futuro jamais vos será contestada. À vossa completa armadura também pertencem as hipóteses da razão pura; embora armas plúmbeas (pois não foram aceiradas por lei alguma da experiência), ainda assim podem tanto quanto as que qualquer inimigo queira lançar contra vós. Pois se (sob qualquer outro aspecto que não o especulativo) a vossa suposição de que a natureza da alma é imaterial e não submetida a nenhuma alteração corpórea se depara não obstante com a dificuldade de que a experiência parece provar que tanto a exaltação quanto a perturbação de nossas forças espirituais nada mais são que diversas modificações de nossos órgãos, então podeis enfraquecer a força desta prova se presumirdes que o nosso corpo nada mais é que um fenômeno fundamental ao qual, enquanto condição, toda nossa faculdade da sensibilidade e com isto todo o pensamento referem-se no estado atual (na vida). A separação do corpo constitui o fim deste uso sensível de nossa capacidade cognitiva e o início de seu uso intelectual. Consequentemente, o corpo seria não a causa, mas sim uma condição meramente restritiva do pensamento, e portanto na verdade deveria ser encarado como um promotor da vida sensível e animal, mas ainda mais como um obstáculo à vida pura e espiritual; o fato da primeira depender da natureza corpórea de modo algum provaria algo a favor de que a vida como um todo depende do estado de nossos órgãos. Mas podeis ir ainda mais longe e até descobrir dúvidas novas que não foram levantadas ou não foram suficientemente aprofundadas. A acidentalidade das gerações, que tanto no homem quanto nas criaturas irracionais depende da oportunidade e, além disto, frequentemente também dos suprimentos, do humor e do capricho dos governantes e até dos vícios, antepõe uma grande dificuldade à opinião de que uma criatura cuja vida teve primeiramente início em meio a circunstâncias tão triviais e completamente entregues à nossa liberdade possa perdurar existindo por toda a eternidade. No que tange à continuidade de toda a espécie (aqui na Terra), esta dificuldade pode muito bem ser desconsiderada, pois o que é acidental no caso singular nem por isto está menos submetido a uma regra no caso geral; no que tange a cada indivíduo, no entanto, bem que parece duvidoso esperar um efeito tão imponente a partir de causas tão insignificantes. Contra estas objeções podeis mobilizar uma hipótese transcendental: que toda a vida é propriamente apenas inteligível, de modo algum submetida às mudanças do tempo e que nem inicia com o nascimento nem cessa com a morte; que esta vida nada mais é que um simples fenômeno, isto é, uma representação sensível de uma vida espiritual pura, e que todo o mundo sensível não passa de um simples quadro que paira diante de nosso atual modo de conhecimento, destituído em si, como um sonho, de qualquer realidade objetiva; que se devêssemos intuir tanto as coisas quanto a nós mesmos tal como são, ver-nos-íamos em meio a um mundo de naturezas espirituais, e neste caso a nossa única verdadeira comunidade com o mesmo não começou com o nascimento nem cessou com a morte corporal (consistindo ambos em puros fenômenos); e assim por diante. Embora nada saibamos, nem o declaremos com seriedade, a respeito de tudo o que pretextamos hipoteticamente contra o ataque, e que não chegue a se tratar nem de uma ideia da razão, mas sim unicamente de um conceito excogitado com objetivos de defesa, procedemos aqui de um modo perfeitamente racional. Fazemos isto enquanto ao oponente, que acredita ter esgotado todas as possibilidades ao fazer com que a falta de suas condições empíricas passe falsamente como uma prova da total impossibilidade daquilo que acreditamos, mostramos que mediante simples leis da experiência ele pode abarcar em si mesma a totalidade do campo das coisas possíveis tampouco quanto nós podemos, fora da experiência, adquirir fundadamente algo para a nossa razão. Aquele que dirige tais meios hipotéticos contra as pretensões de um oponente arrogantemente negador não deve ser considerado como alguém que pretende fazê-las passar por suas verdadeiras opiniões; abandona-as tão logo tenha dado conta das presunções dogmáticas do adversário. Com efeito, por mais modesta e moderada que possa parecer uma conduta unicamente negativa e de recusa diante das afirmações alheias, pretender validar estas objeções como provas em favor do lado oposto torna-se uma reivindicação não menos orgulhosa e presunçosa do que seria, caso houvesse tomado partido dos que afirmam e adotado as suas afirmações. Vê-se disto, pois, que no uso especulativo da razão as hipóteses não possuem uma validade como opiniões em si mesmas, mas tão somente em relação às pretensões transcendentes da parte oposta. Com efeito, estender os princípios da experiência possível à possibilidade das coisas em geral é tão transcendente quanto afirmar a realidade objetiva daqueles conceitos que não podem encontrar os seus objetos senão fora dos limites de toda a experiência possível. O que a razão pura julga assertoricamente tem que ser (como tudo o que a razão conhece) necessário, ou então não é nada. Por conseguinte, a razão pura de fato não contém opinião alguma. As referidas hipóteses consistem unicamente em juízos problemáticos que pelo menos não podem ser refutados, embora também nada consiga prova-los: não são pois opiniões privadas, mas apesar disto não podem ser dispensadas como recursos contra escrúpulos passíveis de ocorrer, sendo necessárias até para a nossa tranquilidade interna. Nesta sua qualidade temos que conservá-las, bem como impedir cuidadosamente que aflorem com uma autoridade em si mesmas e com certa validade absoluta, afogando a razão em ficções e fantasmagorias. SEÇÃO QUARTA DO CAPÍTULO PRIMEIRO A DISCIPLINA DA RAZÃO PURA COM RESPEITO ÀS SUAS PROVAS Dentre todas as provas de um conhecimento sintético a priori, a característica em si peculiar das provas de proposições sintéticas e transcendentais é que neste caso a razão não pode voltar-se diretamente para o objeto mediante os seus conceitos, mas tem que antes evidenciar a priori a validade objetiva dos conceitos e a possibilidade de sua síntese. Isto não constitui meramente uma necessária regra de prudência, mas concerne à própria essência e possibilidade das provas. Se devo ultrapassar a priori o conceito de um objeto, então isto é impossível sem o concurso de um fio condutor particular que se situe fora deste conceito. Na Matemática, a minha síntese é conduzida pela intuição a priori, e neste caso todas as conclusões podem ser derivadas imediatamente da intuição pura. Na medida em que está às voltas tão somente com conceitos de entendimento, o conhecimento transcendental tem o seu fio condutor na experiência possível. A prova não mostra que o conceito dado daquilo (que acontece, por exemplo) conduz diretamente a outro conceito (o de uma causa), pois tal passagem constituiria um salto de modo algum justificável; ao contrário, mostra que a própria experiência, e portanto o objeto da experiência, seria impossível sem uma tal conexão. Logo, a prova tem concomitantemente que indicar a possibilidade de se atingir, de modo sintético e a priori, certo conhecimento das coisas que não estava contido no conceito das mesmas. Se não concentrarmos nossa atenção nisto, as provas, tal como águas que, transbordando as suas margens, correm selvagenmente pelos campos afora, dirigem-se para onde são casualmente atraídas pela tendência à associação oculta. A aparência de convicção, que repousa sobre causas subjetivas de associação e que é considerada como o conhecimento de uma afinidade natural, não consegue absolutamente contrabalançar as apreensões que terão com justiça que se fazer presentes acerca de tais passos temerários. Em decorrência disto, todas as tentativas de provar o princípio da razão suficiente foram em vão, segundo a confissão generalizada dos conhecedores; e antes do aparecimento da crítica transcendental preferiu-se, já que não se podia abandonar este princípio, recorrer obstinadamente ao bom senso (um expediente que prova sempre o desespero em que se encontra a causa da razão) a tentar arquitetar novas provas dogmáticas. Se, no entanto, a proposição a provar é uma asserção da razão pura e se pretendo até ultrapassar os meus conceitos da experiência mediante puras ideias, então é bem mais necessário que esta prova contenha em si, como uma condição necessária de sua força demonstrativa, a justificativa de tal passo da síntese (caso seja possível). Consequentemente, por mais verossímil que também possa parecer a suposta prova da natureza simples de nossa substância pensante a partir da unidade da apercepção, defronta-se inevitavelmente com a seguinte dificuldade: já que a simplicidade absoluta não é um conceito que possa ser imediatamente referido a uma percepção, mas que tem que ser tão somente inferido como uma ideia, não se pode absolutamente compreender como a mera consciência que está ou pelo menos pode estar contida em todo o pensamento, embora seja nesta medida uma representação simples, deva conduzir-me à consciência e ao conhecimento de uma coisa na qual tão somente o pensamento pode estar contido. Com efeito, quando me represento a força de um corpo em movimento, nesta medida ele é uma unidade absoluta para mim e a representação que dele possuo é simples; por conseguinte, também posso expressar esta representação pelo movimento de um ponto, pois o volume do corpo não entra em consideração aqui, podendo, sem se diminuir a força, ser pensado tão pequeno quanto se queira, vale dizer, até mesmo como situado num ponto. Disto, no entanto, não concluirei que, caso nada mais me seja dado do que a força motora de um corpo, este último possa ser pensado como uma substância simples tão somente porque a sua representação, abstraindo de todo o seu volume, é simples. Descubro um paralogismo nesta argumentação pelo fato do simples na abstração ser completamente diverso do simples no objeto, e do "eu", que no primeiro sentido não compreende em si multiplicidade alguma, poder ser um conceito altamente complexo, a saber, conter e designar muitas coisas sob o seu rótulo, quando significa a própria alma. Só que para pressentirmos este paralogismo (pois sem tal suposição prévia de modo algum se suspeitaria desta prova) é absolutamente necessário ter à mão um critério sempre vigente da possibilidade de tais proposições sintéticas que devem provar mais do que a experiência pode dar. Este critério consiste em dirigir a prova ao predicado requerido não diretamente, mas sim tão somente mediante um princípio da possibilidade de estendermos a priori os nossos conceitos dados a ideias, e de realizarmos essas últimas. Se usarmos sempre desta cautela, se antes de tentarmos a prova nos consultarmos sabiamente para saber como e com que fundamento se pode esperar tal ampliação através da razão pura, e de onde pretendemos neste caso retirar estes conhecimentos que não podem ser nem desenvolvidos a partir de conceitos nem antecipados com referência a uma experiência possível, podemos poupar-nos muitos esforços pesados e ainda assim infrutíferos na medida em que ou não exigimos da razão algo que a olhos vistos ultrapassa a sua faculdade ou a submetemos à disciplina da abstinência quando não quiser de bom grado se limitar nas suas veleidades de se estender ávida e impulsivamente na especulação. A primeira regra é, portanto, a seguinte: não tentar provas transcendentais sem antes ter refletido, e se justificado quanto a isto, acerca da origem dos princípios sobre os quais se pensa erigi-las, e com que direito se pode deles esperar sermos bem-sucedidos em nossas inferências. Caso se trate de princípios do entendimento (o da causalidade, por exemplo), procurar-se-á debalde chegar às ideias da razão, pura por seu intermédio, pois tais princípios valem apenas para os objetos de uma experiência possível. Caso se trate de princípios da razão pura, todo o labor continua sendo em vão, pois embora a razão os possua, estes princípios enquanto objetivos são dialéticos em sua totalidade, e em todos os casos só podem ter a validade de princípios regulativos do uso sistematicamente interconectado da experiência. Mas se já existem tais supostas provas, então podeis contrapor à persuasão enganosa que delas emana o non liquet de vossa amadurecida capacidade de julgar. Embora não podeis penetrar a ilusão que as anima, tendes pleno direito de exigir a dedução dos princípios usados nas mesmas; se estes princípios se originam da simples razão, esta dedução jamais vos poderá ser fornecida. Deste modo nem é necessário vos ocupardes do desdobramento e da refutação de cada uma destas ilusões infundadas, pois podeis de uma só vez rejeitar na íntegra esta dialética, com todos os seus inesgotáveis artifícios, no tribunal de uma razão crítica e exigidora de leis. A segunda peculiaridade das provas transcendentais é a seguinte: para cada proposição transcendental pode ser encontrada apenas uma única prova. Se devo inferir não a partir de conceitos, mas sim a partir da intuição que corresponde a um conceito, seja uma intuição pura como na Matemática ou seja uma empírica como na Ciência Natural, então a intuição que me serve de fundamento para tal inferência me fornece um material variegado para proposições sintéticas; posso, de um lado, conectar este material de mais de uma maneira e, de outro, atingir a mesma proposição por diversos caminhos na medida em que me é facultado partir de mais de um ponto. Por outro lado, cada proposição transcendental parte exclusivamente de um único conceito, e exprime a condição sintética da possibilidade do objeto segundo este conceito. Portanto o argumento só pode ser um único, pois fora deste conceito nada mais existe através do que o objeto possa ser determinado; em decorrência disto, a prova nada mais pode conter do que a determinação de um objeto em geral segundo este conceito, o qual é um único. Na Analítica Transcendental, por exemplo, derivamos o princípio de que toda a ocorrência possui uma causa da única condição da possibilidade objetiva de um conceito daquilo que ocorre em geral, a saber, que a determinação de um evento no tempo, e portanto deste evento enquanto pertencente à experiência, seria impossível sem estar subsumida a uma tal regra dinâmica. Este também é o único argumento possível, pois somente mediante o fato de que através da lei da causalidade se determina um objeto para o conceito é que o evento representado possui validade objetiva, isto é, verdade. Tentou-se provar este princípio de diversos outros modos, por exemplo a partir da contingência; só que ao examinar esta prova não podemos descobrir outra marca distintiva de contingência do que o acontecer, isto é, a existência precedida de uma inexistência do objeto, e em consequência retornamos sempre novamente ao mesmo argumento. Quando devemos provar a proposição de que tudo o que pensa é simples, não nos detemos no múltiplo do pensamento, mas sim unicamente no conceito de eu, o qual é simples e ao qual é referido todo o pensamento. Exatamente o mesmo ocorre com a prova transcendental da existência de Deus, a qual repousa exclusivamente sobre a reciprocidade dos conceitos do ente mais real e do ente necessário, não podendo ser encontrada alhures. Com esta advertência, a crítica das afirmações da razão torna-se bastante reduzida. Onde a razão conduz os seus negócios através de meros conceitos só resta a possibilidade de uma única prova, se é que alguma é possível. Em decorrência disto, quando se vê o dogmático entrar em cena com dez provas, pode-se crer com segurança que não possui nenhuma. Com efeito, se tivesse uma que (como tem que ocorrer nos assuntos da razão pura) provasse apoditicamente, para que necessitaria das restantes? O seu único propósito é o de dirigir, tal como aquele advogado parlamentar, um argumento para cada interlocutor; pretende com isto aproveitar-se da debilidade dos juízes que, sem se deterem mais demoradamente, escolhem a primeira coisa que lhes cai sob os olhos, decidindo de acordo com a mesma só para se verem rapidamente livres da questão. A terceira regra peculiar da razão pura, quando se submete a uma disciplina referente às provas transcendentais, é a seguinte: as suas demonstrações têm que ser nunca apagógicas, mas sim sempre ostensivas. Em toda espécie de conhecimento, a prova direta ou ostensiva é aquela que combina ao mesmo tempo a convicção da verdade com o conhecimento de suas fontes; a apagógica, ao contrário, pode produzir a certeza, mas não a compreensibilidade da verdade no tocante à sua interconexão com os fundamentos de sua possibilidade. Consequentemente, as provas apagógicas constituem antes um auxílio de emergência do que um procedimento capaz de satisfazer todos os propósitos da razão. Quanto à evidência que proporcionam, possuem não obstante uma vantagem diante das provas diretas: na representação a contradição sempre traz consigo uma clareza maior do que a melhor conexão, e deste modo se aproxima mais do caráter intuitivo de uma demonstração. A causa propriamente do uso de provas apagógicas em diversas ciências é provavelmente a seguinte: quando as razões das quais se deve derivar certo conhecimento são demasiado numerosas ou então muito profundamente ocultas, tenta-se ver se é possível alcançar este conhecimento através das consequências. Ora, o modus ponens de se inferir a verdade de um conhecimento a partir da verdade de suas consequências só seria permitido nos casos em que todas as suas possíveis consequências fossem verdadeiras; pois então é possível uma única razão para que isto seja assim, e portanto também a verdadeira. No entanto, este procedimento é impraticável, pois compreender todas as consequências possíveis de qualquer proposição aceita é algo que ultrapassa as nossas forças. Não obstante, utiliza-se este modo de inferir, se bem que com certa indulgência, quando se trata de provar algo unicamente como hipótese. Neste caso, a inferência é concedida por analogia: quando tantas consequências quantas as por nós examinadas concordam com uma razão aceita, todas as demais consequências possíveis hão de concordar com a mesma. É por isto que, por este caminho, jamais será possível transformar uma hipótese numa verdade demonstrada. O modus tollens dos silogismos que concluem das consequências às suas razões prova de um modo não só completamente rigoroso, mas também extremamente fácil. Com efeito, se se pode tirar uma única consequência falsa de uma proposição, então esta última é falsa. Em vez de percorrer, numa prova ostensiva, toda a série de razões que pode conduzir à verdade de um conhecimento mediante a compreensão completa de sua possibilidade, basta descobrir uma única consequência falsa dentre aquelas que fluem do oposto deste conhecimento para evidenciar que este oposto também é falso, e portanto verdadeiro o conhecimento que tínhamos que provar. O modo apagógico de provar, no entanto, só é admissível nas ciências em que é impossível que aquilo que é subjetivo em nossas representações substitua enganosamente aquilo que é objetivo, ou seja, o conhecimento daquilo que é no objeto. Mas onde predomina esta substituição, tem que ocorrer frequentemente que ou o oposto de uma certa proposição contradiz tão somente as condições subjetivas do pensamento, mas não ao objeto, ou que ambas as proposições se contradizem uma à outra com base numa condição subjetiva falsamente considerada objetiva; pelo fato da condição ser falsa neste último caso, ambas as proposições podem ser falsas, sem que seja possível concluir da falsidade de uma para a verdade da outra. Na Matemática esta sub-repção é impossível; é nesta ciência, portanto, que as provas apagógicas possuem o seu lugar próprio. Pelo fato de tudo fundar-se sobre intuições empíricas na Ciência Natural, é aqui na maior parte das vezes possível evitar aquela sub-repção mediante muitas observações comparadas; este tipo de prova no entanto é quase sempre irrelevante neste domínio. As tentativas transcendentais da razão pura, todavia, são todas feitas dentro do medium próprio da ilusão dialética, ou seja, do subjetivo, que em suas premissas se oferece ou até se impõe como objetivo à razão. No que se refere às proposições sintéticas, não pode absolutamente ser permitido aqui justificar as suas afirmações por meio da refutação do oposto. Com efeito, ou esta refutação nada mais é do que a simples representação do conflito da opinião oposta com as condições subjetivas de compreensibilidade por intermédio de nossa razão, em nada contribuindo para a rejeição da própria coisa - assim como, por exemplo, a necessidade incondicionada na existência de um ente não pode absolutamente ser compreendida por nós, o que com razão se opõe subjetivamente a toda prova especulativa de um ente supremo e necessário, mas também se opõe sem razão à possibilidade de tal ente originário em si mesmo -, ou então ambas as partes, tanto a que afirma quanto a que nega, tomam como fundamento um conceito impossível do objeto ao serem ludibriados pela ilusão transcendental. Neste caso vale a seguinte regra: non entis nulla sunt praedicata; ou seja, tanto o que se enuncia afirmativamente quanto o que se enunciou negativamente acerca do objeto é incorreto, e não se pode chegar apagogicamente, mediante a refutação do oposto, ao conhecimento da verdade. Deste modo, quando se pressupõe, por exemplo, que o mundo sensível é dado em si mesmo segundo a sua totalidade, é falso que tenha que ser ou infinito ou finito e limitado quanto ao espaço, e isto porque ambas as alternativas são falsas. Com efeito, fenômenos (enquanto meras representações) que fossem não obstante dados em si mesmos (enquanto objetos) seriam algo impossível; a infinitude deste todo imaginário certamente seria incondicionada, mas contradiria (já que nos fenômenos tudo é condicionado) a determinação incondicionada da magnitude, a qual é porém pressuposta no conceito. O modo apagógico de provar também é propriamente a ilusão que sempre entreteve os admiradores da meticulosidade dos nossos pensadores dogmáticos. Ele é como que o campeão que pretende provar a honra e o direito incontestável do partido que adotou oferecendo-se para brigar com todo aquele que queira pôr em dúvida esta honra e este direito; apesar disto, tais fanfarrices não resolvem nada quanto à coisa, mas tão somente quanto à respectiva força dos adversários, e isto ainda assim só no que diz respeito aos agressores. Na medida em que veem que cada um é ora vencedor ora derrotado, os expectadores tomam isto frequentemente como um motivo para, ceticamente, porem em dúvida o próprio objeto da disputa. Não há, todavia, razão para tanto, e basta bradar-lhes: non defensoribus istis tempus eget. Cada combatente tem que consolidar o seu ponto de vista diretamente, isto é, através de uma prova legítima conduzida mediante uma dedução transcendental dos argumentos, a fim de que se veja o que as suas pretensões racionais podem alegar a seu favor. Com efeito, caso o seu oponente se baseie sobre razões subjetivas, certamente é fácil refuta-lo. Isto, no entanto, não constitui uma vantagem para o dogmático, pois comumente este também adere às causas subjetivas do juízo, podendo da mesma forma ser acuado por seu adversário. Mas se ambas as partes procederem apenas diretamente, então ou perceberão espontaneamente a dificuldade e até a impossibilidade de descobrirem o título que legitima as suas asserções, podendo afinal reportar-se unicamente à prescrição como estância decisória, ou a crítica descobrirá facilmente a ilusão dogmática, constrangendo a razão pura a abrir mão de suas pretensões demasiado elevadas no uso especulativo e a se retrair para dentro dos limites de seu território próprio, a saber, o dos princípios práticos. CAPÍTULO SEGUNDO DA DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO o cânone da razão pura É humilhante para a razão humana que nada consiga em seu uso puro, e que até necessite ainda de uma disciplina para reprimir os seus excessos e guardá-la contra as ilusões que disto resultam. Só que, por outro lado, a razão é enaltecida e recobra a sua autoconfiança pelo fato de que ela mesma pode e tem de exercer esta disciplina sem admitir outra instância censora que lhe seja superior; além disto, os limites que foi constrangida a impor ao seu uso especulativo restringem, ao mesmo tempo as pretensões sofísticas de todo oponente, podendo portanto assegurar contra quaisquer ataques tudo o que ainda possa restar-lhe de suas exigências anteriormente exageradas. O maior e talvez único proveito de toda a filosofia da razão pura é, pois, tão somente negativo; serve não como um órganon para a ampliação, mas sim como uma disciplina para a determinação de limites, e em vez de descobrir verdade só possui o silencioso mérito de impedir erros. Ainda assim tem que haver, em algum lugar, uma fonte de conhecimentos positivos pertencentes ao domínio da razão pura; talvez é só por um mal-entendido que dão azo a erros, perfazendo de fato, no entanto, o objetivo dos esforços zelosos da razão. Com efeito, a que causa dever-se-ia imputar de outro modo a ânsia indomável de tomar pé firme em esferas que ultrapassam de todo os limites da experiência? A razão pressente objetos que se revestem de um grande interesse para ela. Enceta o caminho da simples especulação para se aproximar destes objetos; estes últimos, no entanto, se esquivam dela. Presumivelmente poderá esperar melhor sorte na única senda que ainda lhe resta, a saber, a do uso prático. Por um cânone entendo o conjunto dos princípios a priori do uso correto de certas faculdades de conhecimento em geral. Deste modo, a lógica geral em sua parte analítica constitui um cânone para o entendimento e a razão em geral; mas só o é quanto à forma, pois abstrai de todo o conteúdo. Assim a Analítica Transcendental era o cânone do entendimento puro, pois exclusivamente este último é capaz de obter conhecimentos sintéticos a priori verdadeiros. Mas onde não é possível o uso correto de uma capacidade de conhecimento, não há cânone. Ora, todo o conhecimento sintético da razão pura em seu uso especulativo é, segundo todas as provas até agora levadas a cabo, totalmente impossível. Logo, não existe nenhum cânon do uso especulativo da razão (pois este é inteiramente dialético): sob este aspecto toda a Lógica Transcendental nada mais é do que uma disciplina. Consequentemente, se há algum uso correto da razão pura, caso em que também deverá haver um cânon da mesma, este último referir-se-á não ao uso especulativo, mas sim ao uso prático da razão. É portanto este que passaremos a investigar agora. SEÇÃO PRIMEIRA DO CÂNONE DA RAZÃO PURA DO FIM ÚLTIMO DO USO PURO DE NOSSA RAZÃO A razão é impelida por um pendor de sua natureza a ultrapassar o uso da experiência e a se aventurar, num uso puro e mediante simples ideias, até os limites extremos de todo o conhecimento, bem como a não encontrar paz antes de atingir a completude de seu círculo num todo sistemático e auto-subsistente. Este empenho funda-se tão somente sobre o seu interesse especulativo ou antes única e exclusivamente sobre o seu interesse prático? Quero agora pôr de lado o sucesso que a razão pura obtém em seus propósitos especulativos e perguntar só por aquelas questões cujas soluções perfazem o seu fim último, quer o atinja ou não, e no tocante ao qual todas as demais só possuem o valor de meios. Segundo a natureza da razão estes fins supremos terão por sua vez que possuir unidade, a fim de poderem conjuntamente promover aquele interesse da humanidade que não se subordina a nenhum outro superior. O propósito último para o qual conflui, enfim, a especulação da razão em seu uso transcendental concerne a três objetos: a liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus. No que se refere a todos os três, o interesse meramente especulativo da razão é bastante diminuto; tendo-o em vista, dificilmente arcar-se-ia com o trabalho de uma investigação transcendental, trabalho fatigante a lutar com obstáculos incessantes, pois de tudo o que fosse possível descobrir a este respeito não poderíamos fazer um uso capaz de provar-se a sua utilidade in concreto, isto é, na investigação da natureza. Mesmo que a nossa vontade seja livre, isto só pode dizer respeito à causa inteligível de nosso querer. Com efeito, no que se refere aos fenômenos em que se exterioriza, ou seja, às suas ações, temos que explica-los, segundo uma máxima fundamental e inviolável sem a qual não podemos empregar a razão em seu uso empírico, da mesma forma como explicamos todos os demais fenômenos da natureza, a saber, segundo as leis imutáveis da mesma. Em segundo lugar, mesmo que também possamos discernir a natureza espiritual da alma (e com esta a sua imortalidade), não podemos disto lançar mão como um fundamento explicativo nem com respeito aos fenômenos desta vida nem acerca da natureza específica do estado futuro; isto ocorre porque o nosso conceito de uma natureza incorpórea é meramente negativo, não podendo nem ampliar no mínimo o nosso conhecimento nem fornecer algum estofo prestável para a extração de outras consequências, a não ser aquelas que só podem ter o valor de ficções e que portanto não são admitidas na Filosofia. Em terceiro lugar, mesmo que a existência de uma inteligência suprema fosse provada, a partir disto poderíamos tornar muito bem compreensíveis, de um modo geral, o finalismo na disposição e na ordem do mundo, mas de modo algum estaríamos autorizados a derivar desta existência qualquer arranjo ou ordem particular, nem a inferi-la temerariamente onde não é percebida; pois é uma regra necessária do uso especulativo da razão não desconsiderar as causas naturais para, renunciando àquilo a respeito do que podemos ser instruídos pela experiência, derivar algo que conhecemos daquilo que ultrapassa totalmente o nosso conhecimento. Numa palavra, estas três proposições serão sempre transcendentes para a razão especulativa e não possuem nenhum uso imanente, isto é, admissível para os objetos da experiência, e portanto proveitoso de algum modo para nós; consideradas em si, não passam de esforços totalmente ociosos de nossa razão, e que além disto lhe são extremamente onerosos. Em decorrência disto, se estas três proposições cardinais não nos são absolutamente necessárias para o saber, e se nos são não obstante insistentemente recomendadas pela nossa razão, a sua importância propriamente tem que dizer respeito só ao prático. Prático é tudo aquilo que é possível através da liberdade. Mas se as condições para o exercício de nosso livre-arbítrio são empíricas, então neste caso a razão não pode ter outro uso que o regulativo, servindo unicamente para efetivar a unidade das leis empíricas. Assim por exemplo, na doutrina da prudência toda a ocupação da razão consiste em unificar todos os fins que nos são impostos por nossas inclinações num único fim, o da felicidade, e em coordenar os meios de alcançá-la. Neste setor, pois, a razão não pode nos fornecer senão leis pragmáticas do comportamento livre para atingirmos os fins que nos são recomendados pelos sentidos; de maneira alguma pode, pois, munir-nos de leis puras determinadas completamente a priori. Em contrapartida, as leis práticas puras, cujo fim fosse dado completamente a priori pela razão e que nos comandassem de maneira absoluta e não empiricamente condicionada, seriam um produto da razão pura. Tais são as leis morais, e portanto só estas pertencem ao uso prático da razão pura e admitem um cânone. Em consequência, na elaboração daquilo que poderia denominar-se Filosofia pura, todo o equipamento da razão está de fato unicamente dirigido para os três problemas referidos. Estes mesmos, no entanto, possuem por sua vez um propósito mais remoto, qual seja: o que se deve fazer caso a vontade seja livre, caso exista um Deus e um mundo futuro. Ora, já que isto se refere ao nosso comportamento com vistas ao fim supremo, então o propósito último da sábia e providente natureza na constituição de nossa razão está propriamente voltado só para o moral. Já que focamos a nossa atenção sobre um objeto estranho à Filosofia transcendental (Todos os conceitos práticos têm a ver com objetos do agrado ou do desagrado, isto é, do prazer e do desprazer, por conseguinte, pelo menos indiretamente com objetos do nosso sentimento. Entretanto, visto que este não é uma capacidade de representação das coisas, mas já fora da inteira capacidade cognitiva, assim todos os elementos dos nossos juízos, na medida em que se referem ao prazer ou ao desprazer e portanto à filosofia prática, não pertencem ao conjunto da filosofia transcendental, que tem a ver apenas com conhecimentos puros a priori. Nota do Autor.) impõem-se cuidados para que não nos desencaminhemos em episódios e com isto firamos a unidade do sistema; por outro lado, também devemos tê-los contra a falta de clareza e de força persuasiva resultantes do fato de se dizer muito pouco a respeito de uma matéria nova. Espero evitar ambos os perigos mantendo-me o mais próximo possível do transcendental e pondo inteiramente de lado tudo o que nesta questão é de caráter psicológico, isto é, empírico. Cumpre primeiramente observar que doravante empregarei o conceito de liberdade só em seu sentido prático; na medida em que foi tratado acima, porei de lado aqui esse conceito em seu significado transcendental, o qual não pode ser empiricamente pressuposto como um fundamento explicativo dos fenômenos, mas constitui ele mesmo um problema para a razão. Um arbítrio é puramente animal (arbitrium brutum) quando não pode ser determinado senão mediante impulsos sensíveis, ou seja, patologicamente. Um arbítrio, porém, que pode ser determinado independente de impulsos sensíveis, e portanto por motivações que só podem ser representadas pela razão, chama-se livre-arbítrio (arbitrium liberum), e tudo o que se interconecta com este último, seja como fundamento ou seja como consequência, é denominado prático. A liberdade prática pode ser provada por experiência. Com efeito, o arbítrio humano não é determinado só por aquilo que estimula, isto é, afeta imediatamente os nossos sentidos, pois temos o poder (Vermogen) de dominar as impressões que incidem sobre a nossa faculdade sensível de desejar mediante representações daquilo que, mesmo de um modo mais remoto, é útil ou prejudicial. Estas reflexões acerca daquilo que no tocante a todo o nosso estado é desejável, ou seja, bom e útil, repousam sobre a razão. Em consequência disto, esta última também fornece leis que são imperativos, isto é, leis objetivas da liberdade, e que dizem o que deve acontecer, embora talvez jamais aconteça; nisto distinguem-se das leis naturais, as quais só tratam daquilo que acontece, e é por isto que também são cognominadas leis práticas. Mas se mesmo naquelas ações mediante as quais prescreve leis a razão não é por sua vez determinada por outras influências, e se isto que, com respeito aos impulsos sensíveis, se chama liberdade não consiste, no que se refere a causas eficientes mais elevadas e mais remotas, por sua vez em natureza, não nos interessa no campo prático. Aqui perquirimos a razão inicialmente com vistas à prescrição do comportamento e aquela questão é de caráter meramente especulativo, podendo ser posta de lado na medida em que o nosso propósito se dirige para o fazer ou o deixar de fazer. Conhecemos, pois, a liberdade prática pela experiência como sendo uma das causas naturais, a saber, uma causalidade da razão na determinação da vontade; enquanto isto, a liberdade transcendental exige uma independência desta mesma razão (com referência à sua causalidade ao começar uma série de fenômenos) diante da todas as causas determinantes do mundo sensível, parecendo nesta medida contrária à lei da natureza e portanto à experiência possível, e permanecendo pois um problema. Só que este problema não pertence à razão em seu uso prático. Portanto num cânone da razão prática só temos que nos haver com duas perguntas que tocam o interesse prático da razão pura e com respeito às quais tem que ser possível um cânone do uso desta mesma razão, a saber: existe Deus? Existe uma vida futura? A questão da liberdade transcendental concerne unicamente ao saber especulativo, e podemos pô-la de lado como totalmente indiferente quando estamos às voltas com o prático; além disto, explanações suficientes a seu respeito podem ser encontradas na Antinomia da Razão Pura. SEÇÃO SEGUNDA DO CÂNONE DA RAZÃO PURA DO IDEAL DO BEM SUPREMO COMO UM FUNDAMENTO DETERMINANTE DO FIM ÚLTIMO DA RAZÃO PURA Em seu uso especulativo, a razão conduziu-nos pelo campo da experiência e, por jamais poder encontrar uma satisfação cabal em tal âmbito, daí às ideias especulativas; ao fim e ao cabo, entretanto, estas últimas reconduziram-nos à experiência, realizando portanto o seu propósito de um modo proveitoso, se bem que de modo algum conforme as nossas expectativas. Agora resta-nos ainda uma alternativa: se também é possível encontrar a razão pura num uso prático, se de acordo com este último ela conduz às ideias que atingem os fins supremos da razão pura há pouco mencionados, e se sob o ponto de vista de seu interesse prático a razão não nos pode conceder aquilo que nos declinou completamente com respeito ao interesse especulativo. Todo interesse de minha razão (tanto o especulativo quanto o prático) concentra-se nas três seguintes perguntas: Que posso saber? Que devo fazer? Que me é permitido esperar? A primeira pergunta é puramente especulativa. Esgotamos (como me ufano) todas as respostas possíveis à mesma, e finalmente encontramos aquela com a qual a razão tem, é certo, que se satisfazer e, quando não tem em mira o prático, com a qual tem motivos para estar satisfeita. Mas dos dois grandes fins aos quais a razão pura dirigia propriamente todos estes seus esforços ficamos tão afastados como se, por comodidade, desde o início nos tivéssemos recusado a este labor. Portanto, quando se trata do saber, pelo menos o seguinte ficou certo e decidido: com respeito àquelas duas questões, jamais poderemos saber algo. A segunda pergunta é puramente prática. Embora enquanto tal possa pertencer à razão pura, mesmo assim não é transcendental, mas sim moral; em si mesma, portanto, não pode ocupar a nossa crítica. A terceira pergunta - a saber, quando faço o que devo, que me é então permitido esperar? - é concomitantemente prática e teórica, e de um modo tal que o prático serve unicamente como um fio condutor para se responder à questão teórica e, no caso desta elevar-se, à questão especulativa. Pois toda a esperança está voltada para a felicidade; visando o prático e a lei moral, ela é exatamente a mesma coisa que o saber e a lei da natureza são com respeito ao conhecimento teórico das coisas. No primeiro caso, chega-se finalmente à conclusão de que algo é (que determina o último fim possível) porque algo deve acontecer; no segundo caso, que algo é (que atua como causa suprema) porque algo acontece. A felicidade consiste na satisfação de todas as nossas inclinações (tanto extensive, no que se refere à sua multiplicidade, quanto intensive, no que tange ao seu grau, e também protensive, com respeito à sua duração). Denomino pragmática (regra de prudência) a lei prática derivada da motivação da felicidade; por outro lado intitulo moral (lei da mora lida de) aquela lei, se é que existe, que nada mais possui como motivação do que o merecimento de ser feliz. A primeira aconselha o que devemos fazer se pretendemos participar da felicidade; a segunda ordena como devemos comportar-nos para tão somente nos tornarmos dignos da felicidade. A primeira fundamenta-se em princípios empíricos; pois de outro modo que não mediante a experiência não posso nem saber quais as inclinações existentes que pretendem ser satisfeitas nem quais as causas naturais que podem efetuar a sua satisfação. A segunda abstrai das inclinações e dos meios naturais de satisfazê-las, considerando unicamente a liberdade de um ente racional em geral e as condições necessárias unicamente sob as quais esta mesma liberdade harmoniza com a distribuição da felicidade segundo princípios; portanto, esta lei pode pelo menos repousar sobre meras ideias da razão pura e ser conhecida a priori. Suponho que realmente existam leis morais puras que determinam plenamente a priori (sem atender a motivações empíricas, isto é, à felicidade) o fazer e o deixar de fazer, ou seja, o uso da liberdade de um ente racional em geral; estas leis comandam-nos de um modo absoluto (não só hipoteticamente, pressupondo outros fins empíricos), e em todos os sentidos são portanto necessárias. Posso com justiça pressupor esta proposição não só me reportando às provas dos mais esclarecidos moralistas, mas também ao juízo moral de cada ser humano, desde que pretenda pensar claramente tal lei. Portanto a razão pura contém, não em seu uso especulativo, mas sim num certo uso prático, a saber, o uso moral, princípios da possibilidade da experiência, ou seja, de tais ações que de acordo com os preceitos morais, poderiam ser encontradas na história do ser humano. Com efeito, já que a razão ordena que tais ações devem ocorrer, elas também têm que poder ocorrer, e, por conseguinte, têm que ser possível um tipo particular de unidade sistemática, a saber, a moral; enquanto isto, a unidade sistemática da natureza não pode ser provada segundo princípios especulativos da razão, pois esta última bem que possui uma causalidade com respeito à liberdade em geral, mas não com respeito a toda a natureza, e os princípios morais da razão podem, é certo, produzir ações livres, mas não leis da natureza. Em consequência disto, os princípios da razão pura possuem uma realidade objetiva em seu uso prático, nomeadamente em seu uso moral. Denomino o mundo, na medida em que fosse conforme a todas as leis morais (como pode ser segundo a liberdade dos entes racionais e deve ser segundo as leis necessárias da moralidade), um mundo moral. Nesta medida, este mundo é pensado unicamente como inteligível, pois nele se abstrai de todas as condições (fins) e mesmo de todos os obstáculos da moralidade (fraqueza ou impureza da natureza humana). Nesta medida, pois, é uma simples ideia, se bem que prática, que realmente pode e deve exercer o seu influxo sobre o mundo sensível a fim de torná-lo, tanto quanto possível, conforme a esta ideia. Consequentemente, a ideia de um mundo moral possui uma realidade objetiva, não como se referindo a um objeto de uma intuição inteligível (não podemos absolutamente pensar tal objeto), mas sim como se referindo ao mundo sensível enquanto um objeto da razão pura em seu uso prático e um corpus mysticum dos entes racionais que nele se encontram, na medida em que o livre-arbítrio de cada ente, submetido a leis morais, está em si numa completa unidade sistemática tanto consigo mesmo quanto com a liberdade de cada outro ente. A resposta à primeira das duas perguntas da razão pura que se referiam ao interesse prático é a seguinte: faze aquilo através do que te tornarás digno de ser feliz. A segunda indagação é a seguinte: se me comporto de modo tal que eu não seja indigno da felicidade, como posso esperar poder, mediante este comportamento, participar da felicidade? Na resposta a esta questão, trata-se de saber se os princípios da razão pura, os quais prescrevem a priori a lei, também conectam necessariamente esta esperança com tal lei. Por conseguinte, digo que assim como os princípios morais são necessários segundo a razão em seu uso prático, assim também é necessário supor, segundo a razão em seu uso teórico, que todos têm motivos para esperar a felicidade na mesma medida em que dela se tornaram dignos com o seu comportamento, e que portanto o sistema da moralidade está indissoluvelmente ligado, se bem que só na ideia da razão pura, ao da felicidade. Ora, num mundo inteligível, isto é, moral, em cujo conceito abstraímos de todos os empecilhos à moralidade (inclinações), pode-se também pensar como necessário um tal sistema de uma felicidade proporcional ligada à moralidade, pois a própria liberdade, em parte movida e em parte restringida por leis morais, seria a causa da felicidade universal; conduzidos por tais princípios, os próprios entes racionais seriam os autores de seu próprio bem-estar duradouro ao mesmo tempo em que seriam os autores do bem-estar dos outros. Mas este sistema da moralidade que se recompensa a si mesma é só uma ideia cuja realização repousa sobre a condição de que cada um faça o que deve, ou seja, que todas as ações dos entes racionais ocorram como se se originassem de uma vontade suprema compreendendo em si, ou sob si, todo o arbítrio privado. Mas desde que a obrigatoriedade da lei moral permanece válida para cada uso particular da liberdade embora outros não se comportem em conformidade com esta lei, assim nem a partir da natureza das coisas do mundo nem a partir da causalidade das próprias ações e da sua relação com a moralidade é determinado como as consequências destas ações relacionam-se com a felicidade. A mencionada conexão necessária entre a esperança de ser feliz e a incessante aspiração de tornar-se digno da felicidade não pode ser conhecida pela razão caso se tome unicamente a natureza como fundamento; tal conexão só pode ser esperada se uma razão suprema, que comanda segundo leis morais, é posta ao mesmo tempo como fundamento enquanto causa da natureza. A ideia de tal inteligência em que a vontade moralmente mais perfeita é, ligada à bem-aventurança suprema, a causa de toda a felicidade no mundo na medida em que esta última está numa relação precisa com a moralidade (como o merecimento de ser feliz), é por mim intitulada o ideal do bem supremo. Portanto, é só no ideal do bem supremo originário que a razão pura pode encontrar o fundamento da conexão praticamente necessária de ambos os elementos do bem supremo derivado, a saber, de um mundo inteligível, isto é, moral. Já que somos necessariamente constrangidos pela razão a nos representarmos como pertencentes a tal mundo, embora os sentidos nada mais nos apresentem do que um mundo de fenômenos, temos que admitir aquele mundo moral como uma consequência de nosso comportamento no mundo sensível e, já que este último não nos exibe uma tal conexão entre a moralidade e a felicidade, como um mundo futuro para nós. Portanto, Deus e uma vida futura são duas pressuposições inseparáveis, segundo princípios da razão pura, da obrigatoriedade que exatamente a mesma razão nos impõe. A moralidade em si mesma perfaz um sistema; tal não ocorre com a felicidade a não ser na medida em que é distribuída de modo exatamente proporcional à moralidade. Isto no entanto só é possível no mundo inteligível, sob a tutela de um sábio Autor e Regente. A razão é forçada ou a admitir um tal Regente, juntamente com a vida num mundo tal, que temos que encarar como futuro, ou a considerar as leis morais como quimeras vazias, pois sem este pressuposto as consequências necessárias que a razão conecta com tais leis estariam fadadas a não se realizarem. É por isto que todo mundo vê as leis morais como mandamentos, coisa que não poderiam ser se não conectassem a priori consequências adequadas com a sua regra e se não portassem consigo, pois, promessas e ameaças. Mas isto elas também não podem fazer se não se situam num ente necessário enquanto o bem supremo, unicamente o qual pode tornar possível tal unidade finalística. Leibniz denominou o mundo de reino da graça na medida em que nele se leva em conta somente os entes racionais e a sua interconexão segundo leis morais, sob o governo do bem supremo; distinguiu-o do reino da natureza, no qual estes entes racionais, embora também submetidos às leis morais, não esperam outras consequências de seu comportamento senão as que decorrem segundo o curso da natureza do nosso mundo sensível. Ver-nos no reino da graça, onde toda a felicidade nos aguarda a não ser na medida em que nós mesmos limitamos a nossa participação na mesma ao nos tornarmos indignos de ser felizes, é portanto uma ideia praticamente necessária da razão. Leis práticas, enquanto se tornam ao mesmo tempo fundamentos subjetivos de ações, isto é, princípios subjetivos, chamam-se máximas. A avaliação da moralidade segundo sua pureza e consequências é feita de acordo com ideias, a observância de suas leis ocorre de acordo com máximas. É necessário que todo o curso de nossa vida seja subordinado a máximas morais; por outro lado, é simultaneamente impossível que isto aconteça se a razão não conectar com a lei moral, a qual é uma simples ideia, uma causa eficiente que determine ao comportamento conforme aquela lei um êxito exatamente correspondente aos nossos fins supremos, seja nesta vida, seja numa outra. Portanto, sem um Deus e sem um mundo por ora invisível para nós, porém esperado, as magníficas ideias da moralidade são, é certo, objetos de aprovação e admiração, mas não molas propulsoras de propósitos e de ações, pois não preenchem integralmente o fim que é natural a cada ente racional e que é determinado a priori, e tornado necessário, por aquela mesma razão pura. A felicidade sozinha está longe de constituir o bem perfeito para a nossa razão. Esta última não aprova a felicidade (por mais que as inclinações também queiram desejá-la) a não ser que esteja unida com merecimento de ser feliz, isto é, com a conduta moral boa. Mas a moralidade sozinha, e com esta o simples merecimento de ser feliz, também está longe ainda de ser o bem perfeito. Para tornar perfeito este bem, é preciso que aquele que se comportou de modo a não se tornar indigno da felicidade possa esperar participar da mesma. Mesmo a razão liberta de todo propósito privado não poderia julgar diversamente a partir do momento em que, sem levar em consideração o seu próprio interesse, se pusesse no lugar de um ente que teria que distribuir toda a felicidade aos outros; pois na ideia prática ambos os elementos estão essencialmente ligados, embora de modo tal que a disposição moral enquanto condição tome primeiramente possível a participação na felicidade, e não o contrário, ou seja, que a perspectiva de felicidade possibilite a disposição moral. Com efeito, no último caso a disposição não seria moral e portanto também não seria digna de toda a felicidade, a qual, diante da razão, não reconhece nenhuma outra limitação exceto a que provém de nosso próprio comportamento imoral. Por conseguinte, a felicidade - na proporção exata com a moralidade dos entes racionais, a qual os torna dignos da felicidade - perfaz sozinha o bem supremo de um mundo ao qual temos que nos trasladar segundo os preceitos da razão pura, porém prática. Trata-se, é bem verdade, unicamente de um mundo inteligível, já que o mundo sensível não nos promete semelhante unidade sistemática dos fins que parta da natureza das coisas. A realidade deste mundo inteligível pode fundar-se exclusivamente sobre a pressuposição de um bem supremo e originário, no qual uma razão autossuficiente equipada com toda a suficiência de uma causa suprema funda, mantém e realiza, segundo a mais perfeita conformidade a fins, a ordem universal das coisas, embora esta última nos esteja assaz oculta no mundo dos sentidos. Diante da teologia especulativa, esta teologia moral possui a vantagem peculiar de nos conduzir incessantemente ao conceito de um ente originário único, sumamente perfeito e racional; a teologia especulativa não pode nem nos indicar tal ente a partir de razões objetivas, muito menos convencer-nos de sua existência. Com efeito, por mais que a razão possa levar-nos adiante neste campo, nem na teologia transcendental nem na natural encontramos qualquer razão significativa para admitir um ente uno que estivéssemos autorizados tanto a antepor a todas as causas naturais quanto a fazer, ao mesmo tempo, estas últimas dependentes dele sob todos os aspectos. Em contra partida, se do ponto de vista da unidade moral enquanto uma lei necessária do mundo consideramos a causa que pode unicamente dar a esta lei o seu efeito adequado, e portanto também a força que nos obriga, então tem que haver uma vontade suprema una que compreenda em si todas estas leis. Com efeito, como pretendíamos detectar, sob vontades diversas, uma perfeita unidade dos fins? Esta vontade tem que ser onipotente, a fim de que toda a natureza e a sua referência à moralidade no mundo lhe seja subordinada; onisciente, a fim de que conheça o mais íntimo das disposições e o seu valor moral; onipresente, a fim de que esteja pronto a satisfazer imediatamente todas as necessidades exigidas pelo bem supremo do mundo; eterna, a fim de que em momento algum falhe esta concordância entre a natureza e a liberdade etc. Entretanto, esta unidade sistemática dos fins neste mundo de inteligências, que enquanto mera natureza pode ser chamado tão somente de mundo sensível, mas que enquanto um sistema da liberdade pode ser denominado mundo inteligível, isto é, moral (regnum gratiae), também. nos conduz inevitavelmente à unidade finalística de todas as coisas que constituem este grande todo segundo leis universais da natureza (tal como a primeira está de acordo com as leis universais e necessárias da moralidade), unindo a razão prática com a especulativa. O mundo tem que ser representado como originado de uma ideia caso deva estar em consonância com aquele uso da razão sem qual nós mesmos nos consideraríamos indignos da razão, a saber, uso moral, o qual repousa inteiramente sobre a ideia do bem supremo. Desta maneira, toda a investigação da natureza tende a assumir a forma de um sistema de fins, e em sua extensão máxima torna-se física-teologia. Mas na medida em que esta última teve início na ordem moral enquanto uma unidade fundada na essência da liberdade e não instituída casualmente por mandamentos externos, reporta a conformidade a fins da natureza a fundamentos que têm que estar inseparavelmente conectados a priori com a possibilidade interna das coisas, conduzindo assim a uma teologia transcendental; esta última toma o ideal da suprema perfeição ontológica como um princípio da unidade sistemática que conecta todas as coisas segundo leis universais necessárias da natureza, pois todas possuem a sua origem na necessidade absoluta de um ente originário uno. Que uso podemos fazer de nosso entendimento, mesmo com respeito à experiência, se não nos propomos fins? Os fins supremos, por seu turno, são os da moralidade, e só a razão pura pode dá-los ao nosso conhecimento. Ora, providos destes fins e seguindo o seu fio condutor, onde a natureza não depositou ela mesma uma unidade finalística não podemos usar finalisticamente, com respeito ao conhecimento, o conhecimento da própria natureza; pois sem esta unidade não possuiríamos nem a própria razão, já que não teríamos uma escola para a mesma, nem uma cultura oriunda de objetos, os quais fornecem o material para tais conceitos. Aquela unidade finalística, contudo, é necessária e fundada na própria essência do arbítrio e consequentemente também o tem que ser esta segunda, a qual contém a condição da aplicação in concreto da primeira. Desta forma, a ampliação transcendental de nosso conhecimento racional seria não a causa, mas sim unicamente o efeito da conformidade prática a fins que a razão pura nos impõe. Em consequência disto, podemos notar na história da razão humana que, antes de se ter suficientemente purificado e determinado os conceitos morais e de se ter compreendido, segundo tais conceitos e a partir de princípios necessários, a unidade sistemática dos fins, o conhecimento da natureza, e num grau notável até mesmo a cultura da razão em várias outras ciências, em parte só pôde produzir conceitos toscos e vagos acerca da divindade, em parte reservou, em geral, uma espantosa indiferença para esta questão. Uma maior elaboração das ideias morais, tornada necessária pela lei moral extremamente pura de nossa religião, aguçou a atenção da razão sobre este objeto devido ao interesse que foi forçada a ter no mesmo; sem que nem conhecimentos ampliados da natureza nem cognições transcendentais corretas e fidedignas (as quais faltaram em todas as épocas) contribuíssem para tanto, estas ideias morais constituíram um conceito do ente divino que hoje consideramos o correto, não porque a razão especulativa nos convence acerca de sua correção, mas sim porque harmoniza perfeitamente com os princípios morais da razão. E deste modo é enfim sempre a razão pura, se bem que só em seu uso prático, que possui o mérito de conectar com o nosso interesse supremo um conhecimento que a simples especulação só pode presumir, mas não fazer valer: assim o transforma não num dogma demonstrado, mas sim num pressuposto absolutamente necessário para os seus fins mais essenciais. Mas quando a razão prática atingiu este ponto elevado, a saber, o conceito de um ente originário uno enquanto o bem supremo, de modo algum deve presumir ter-se erguido acima de todas as condições empíricas de sua aplicação e de ter-se alcançado ao conhecimento imediato de novos objetos, de modo a poder, partindo deste conceito dele derivar as próprias leis morais. Com efeito, foi precisamente a necessidade prática interna destas últimas que nos conduziu à pressuposição de uma causa autossuficiente ou de um sábio Regente do mundo a fim de dar efeito àquelas leis; em decorrência disto, não podemos encará-las a seguir como contingentes e derivados da mera vontade deste Regente, especialmente por se tratar de uma vontade da qual de modo algum teríamos um conceito se não o tivéssemos formado conforme aquelas leis. Na medida em que a razão prática tem o direito de nos guiar, não consideraremos as ações como obrigatórias pelo fato de serem mandamentos de Deus; ao contrário, encará-las-emos como mandamentos divinos por estarmos internamente obrigados a cumpri-las. Estudaremos a liberdade de acordo com a unidade finalística segundo princípios da razão, e acreditaremos estar em conformidade com a vontade divina somente na medida em que considerarmos sagrada a lei moral que a razão nos ensina a partir da própria natureza das ações; creremos, além disto, servir a esta vontade divina exclusivamente enquanto promovermos, em nós e nos outros, o melhor que há no mundo. A teologia moral é portanto só de uso imanente, a saber, para cumprirmos a nossa missão aqui no mundo. Isto deve ocorrer adaptando-nos ao sistema de todos os fins, e não abandonando, de modo fanático e quem sabe até sacrílego, o fio condutor que uma razão moralmente legislante indica para uma vida boa a fim de então liga-lo imediatamente à ideia do ente supremo. Neste caso, teríamos um uso transcendente da teologia moral que, exatamente da mesma forma como o uso transcendente da pura especulação, perverteria e frustraria os fins últimos da razão. SEÇÃO TERCEIRA DO CÂNONE DA RAZÃO PURA DO OPINAR, DO SABER E DO CRER O considerar-algo-verdadeiro (Funvahrhalten) é um evento em nosso entendimento que, embora podendo repousar sobre fundamentos objetivos, também exige causas subjetivas na mente daquele que julga. Se este juízo é válido para qualquer pessoa na medida em que seja dotada de razão, o seu fundamento é objetivamente suficiente e o considerá-lo-verdadeiro chama-se então convicção. Se possui o seu fundamento tão somente na natureza particular do sujeito, então o considerá-lo-verdadeiro denomina-se persuasão. A persuasão é uma simples ilusão, pois o fundamento do juízo, que se encontra simplesmente no sujeito, é tomado como objetivo. Consequentemente, tal juízo também só possui uma validade privada, e o considerá-lo-verdadeiro não pode ser comunicado. A verdade, no entanto, repousa sobre a concordância com o objeto, com respeito ao qual, em consequência, os juízos de cada entendimento têm que estar em concordância (consentientia uni tertio, consentiunt inter se). A pedra de toque para decidir se o considerar-algo-verdadeiro é uma convicção ou uma simples persuasão é portanto, externamente, a possibilidade de comunica-lo e de encontra-lo válido para a razão de qualquer ser humano. Com efeito, neste caso há pelo menos a suposição de que o fundamento da concordância de todos os juízos, desconsiderando a diversidade dos sujeitos entre si, repouse sobre o fundamento comum, a saber, sobre o objeto, com o qual em decorrência disto todos os juízos concordam e mediante tal provam a verdade do juízo. Em consequência disto, a persuasão não pode ser subjetivamente distinguida da convicção quando o sujeito tem o considerar-algo-verdadeiro diante de seus olhos unicamente enquanto um fenômeno da sua própria mente. Por outro lado, a tentativa mediante a qual testamos, no entendimento dos outros, os fundamentos válidos para nós dos juízos para ver se têm exatamente o mesmo efeito sobre a razão alheia que sobre a nossa é um meio, se bem que tão somente subjetivo, certamente não para produzir uma convicção, mas sim para descobrir uma simples validade privada do juízo, isto é, de nele encontrar algo que é mera persuasão. Além disto, se é possível desenvolver as causas subjetivas do juízo, as quais tomamos como fundamentos objetivos do mesmo, e portanto explicar este enganoso considerar-algo-verdadeiro como um evento em nossa mente sem precisar para tanto recorrer à natureza do objeto, então desnudamos a ilusão e não somos mais enganados pela mesma, embora sempre ainda tentados em certo grau se a causa subjetiva desta ilusão inere à nossa natureza. Nada posso afirmar, isto é, declarar como um juízo necessariamente válido para qualquer pessoa, senão aquilo que tem como efeito uma convicção. Posso guardar uma persuasão para mim no caso de me sentir bem assim, mas não posso nem devo pretender torná-la válida fora de mim. O considerar-algo-verdadeiro, ou validade subjetiva do juízo com referência à convicção (a qual ao mesmo tempo vale objetivamente), possui os seguintes três graus: opinar, crer e saber. Opinar é um considerar-algo-verdadeiro que, com consciência, é tanto subjetiva quanto objetivamente insuficiente. Se o considerar-algo-verdadeiro é só subjetivamente suficiente, sendo ao mesmo tempo tomado como objetivamente insuficiente, então se denomina crer. Finalmente, o considerar-algo-verdadeiro, que é tanto subjetiva como objetivamente suficiente, chama-se saber. A suficiência subjetiva intitula-se convicção (para mim mesmo), a objetiva denomina-se certeza (para qualquer indivíduo). Não me deterei na elucidação de conceitos tão compreensíveis. Jamais posso me aventurar a opinar sem pelo menos saber algo mediante o qual o juízo tão somente problemático em si adquire uma conexão com a verdade, conexão que, embora não completa, é mais do que uma ficção arbitrária. Além disso, a lei de tal conexão tem que ser certa. Com efeito, se com respeito a esta lei nada mais possuo de que uma opinião, então tudo não passa de um jogo da imaginação sem a mínima referência à verdade. De modo algum é permitido opinar em juízos derivados da razão pura. Com efeito, a partir do momento em que tais juízos não são escorados por fundamentos da experiência, devendo antes ser conhecido a priori tudo aquilo que é necessário, o princípio da conexão exige universalidade e necessidade, portanto certeza completa; caso contrário, não de pode encontrar guia alguma que nos leve à verdade. Em decorrência disto, é absurdo opinar na Matemática pura; temos que saber ou então nos abster de todo o juízo. Exatamente o mesmo ocorre com os princípios da moralidade: não podemos arriscar uma ação fundados na mera opinião de que algo é perdido, mas temos que sabê-lo. No uso transcendental da razão, em contra partida, falar de opinião é sem dúvida muito pouco, mas do saber também é demais. Num sentido puramente especulativo, portanto, de modo algum podemos julgar aqui, pois os fundamentos subjetivos para se considerar algo verdadeiro, tais como os que podem produzir a fé, não merecem nenhuma aprovação em questões especulativas, já que não se mantêm independentes de todo o auxílio empírico nem podem ser comunicados na mesma medida a uma outra pessoa. Em geral, contudo, é somente com referência à prática que o considerar-algo-verdadeiro, teoricamente insuficiente, pode ser chamado de fé. Este propósito prático é ou o da habilidade ou o da moralidade; a primeira refere-se a fins quaisquer e contingentes, a segunda, no entanto, a fins absolutamente necessários. Uma vez proposto um fim, as condições para atingi-lo são hipoteticamente necessárias. Quando não conheço quaisquer outras condições sob as quais seja possível atingir o fim, esta necessidade é subjetivamente, se bem que tão só comparativamente, suficiente; por outro lado, é suficiente de um modo absoluto e para qualquer pessoa quando sei com certeza que ninguém pode conhecer outras condições que conduzam ao fim proposto. A minha pressuposição e o considerar verdadeiras certas condições constituem, no primeiro caso, uma fé meramente contingente, mas no segundo caso uma fé necessária. O médico tem que fazer alguma coisa por um doente em perigo, mas não conhece a doença. Observa os fenômenos e julga, por não saber nada melhor, tratar-se de tísica. Mesmo em seu próprio juízo a sua fé é unicamente contingente; outro talvez seria capaz de chegar a uma conclusão melhor. Semelhante fé contingente, mas que constitui o fundamento do uso real de meios para certas ações, é por mim denominada fé pragmática. A aposta é a pedra habitual de toque para se testar se o que alguém assevera é uma simples persuasão ou pelo menos uma convicção subjetiva, isto é, uma fé firme. Frequentemente alguém anuncia as suas proposições com uma obstinação tão confiante e indômita que parece ter-se desvencilhado completamente de toda a preocupação de errar. Uma aposta deixa-o perplexo. Às vezes se patenteia que possui uma persuasão suficiente para ser estimada segundo o valor de um ducado, mas não segundo a quantia de dez ducados. Com efeito, arrisca de bom grado o primeiro ducado, mas diante de dez pela primeira vez se dá conta daquilo que não percebera anteriormente, a saber, que é bem possível que se tenha enganado. Se nos representarmos em pensamento que podemos perder a felicidade de toda a nossa vida numa aposta contra alguma outra coisa, desvanece assaz rapidamente o nosso juízo triunfante: tomamo-nos sobremaneira hesitantes e assim primeiramente descobrimos que a nossa fé não chega a tanto. Deste modo, a fé pragmática admite uma gradação que pode ser grande ou também pequena segundo a diversidade dos interesses em jogo. Embora nada possamos empreender com referência a um objeto, o considerar-algo-verdadeiro sendo portanto meramente teórico, em muitos casos podemos conceber-nos e imaginar um empreendimento para o qual nos consideraríamos possuindo fundamentos suficientes se houvesse um meio de estabelecer a certeza da coisa. Em virtude disto, em juízos puramente teóricos existe um analogon de juízos práticos; ao se considerar verdadeiros tais juízos teóricos é apropriada a palavra fé, e a qual podemos chamar de fé doutrinal. Se fosse possível resolver a questão por uma experiência qualquer, estaria disposto a apostar tudo o que é meu que existem habitantes em pelo menos um dos planetas que vemos. Consequentemente, digo que a existência de habitantes em outros mundos não é simplesmente uma opinião, mas sim uma fé vigorosa (por cuja correção eu já arriscaria muitas vantagens da vida). Ora, temos que confessar que a doutrina da existência de Deus pertence à fé doutrinal. Com efeito, embora com respeito ao conhecimento teórico do mundo eu não possa dispor de coisa alguma que pressuponha necessariamente este pensamento enquanto condição de minha explicação dos fenômenos do mundo, estando antes obrigado a utilizar a minha razão como se tudo fosse natureza, mesmo assim a unidade finalística constitui uma condição tão importante para a aplicação da razão sobre a natureza que de modo algum posso deixá-la de lado, já que além disto a experiência me fornece copiosos exemplos desta mesma unidade. Para esta última, no entanto, não conheço outra condição que a tome um fio condutor para que eu investigue a natureza do que pressupor que uma inteligência suprema tenha ordenado tudo deste modo segundo os fins mais sábios. Consequentemente, trata-se de uma condição para um propósito contingente, é verdade, mas nem por isto insignificante, a saber, pressupor um sábio Autor do mundo a fim de possuir uma guia na investigação da natureza. O desfecho de minhas tentativas também confirma com tanta frequência a utilidade desta pressuposição, e nada lhe pode ser contraposto de modo decisivo, que eu diria muito pouco caso pretendesse denominar o meu considerar-algo-verdadeiro simplesmente uma opinião. Mesmo neste contexto teórico pode-se dizer que creio firmemente num Deus; em seu significado rigoroso, no entanto, esta fé ainda assim não é prática, mas tem que ser intitulada uma fé doutrinal que a teologia da natureza (Física-Teologia) tem sempre e necessariamente que produzir. Com respeito a esta mesma sabedoria, levando em consideração o modo excelente como a natureza humana está equipada e a brevidade de vida tão inadequada a este equipamento, pode-se igualmente encontrar um fundamento suficiente para uma fé doutrinal na vida futura da alma humana. Nestes casos a expressão de fé constitui uma expressão de modéstia a partir de um ponto de vista objetivo, mas ao mesmo tempo também dá firmeza de nossa confiança a partir de um ponto de vista subjetivo. Se também aqui eu pretendesse denominar o considerar-algo-verdadeiro, simplesmente teórico, de hipótese que estivesse justificado em aceitar, então com isto já me comprometeria a possuir, acerca da natureza de uma causa do mundo e da natureza de outro mundo, um conceito mais completo do que realmente posso apresentar. Com efeito, tenho que conhecer o suficiente, pelo menos quanto às suas propriedades, daquilo que admito, ainda que unicamente como hipótese, a fim de que possa inventar não o seu conceito, mas sim tão somente a sua existência. A palavra fé, todavia, se refere unicamente à guia que uma ideia me dá e ao influxo subjetivo sobre aquela promoção de minhas ações racionais que me confirma em tal ideia, apesar de que eu não esteja em condições de prestar contas, num sentido especulativo, sobre a mesma. Mas a fé meramente doutrinal possui em si alguma instabilidade; somos frequentemente afastados da mesma devido às dificuldades encontradas na especulação, se bem que inevitavelmente e sempre de novo a ela retornemos. Algo bem diverso dá-se com a fé moral. Com efeito, neste caso é absolutamente necessário que tenha que ocorrer algo, a saber, que eu obedeça à lei moral em todos os seus pontos. Aqui o fim está inevitavelmente estabelecido, e segundo todo o meu conhecimento só é possível uma única condição sob a qual este fim se interconecta com todos os outros fins, tendo assim validade prática: a saber, a de que existe um Deus e um mundo futuro. Também sei com toda a certeza que ninguém conhece outras condições que conduzam à mesma unidade dos fins sob a lei moral. Mas já que portanto o preceito moral é concomitantemente a minha máxima (pois a razão ordena que ele o deve ser), então crerei inevitavelmente na existência de Deus e numa vida futura; estou certo de que nada pode fazer vacilar esta fé, pois neste caso seriam postos por terra os meus próprios princípios morais, aos quais não posso renunciar sem me tornar abominável aos meus próprios olhos. Deste modo após terem sido frustrados todos os propósitos ambiciosos de uma razão a vaguear para além dos limites de toda a experiência, resta-nos ainda o suficiente para termos motivos de estar satisfeitos sob o ponto de vista prático. É claro que ninguém pode ufanar-se de saber que existe um de Deus e uma vida futura; pois caso saiba isto, trata-se exatamente do homem que procuro há muito tempo. Todo o saber (quando se refere a um objeto da simples razão) é passível de ser comunicado, e portanto eu também poderia esperar que os seus ensinamentos estendessem o meu saber numa medida tão digna de admiração. Não, a convicção não é uma certeza lógica mas sim moral; já que repousa sobre fundamentos subjetivos (o sentimento moral), não devo dizer que é moralmente certo que existe um Deus etc., mas sim que eu estou moralmente certo etc. Isto significa que a fé num Deus e num outro mundo está tão entretecida com o meu sentimento moral que, tanto quanto corro o perigo de perder a primeira, exatamente tanto me preocupo em que algum dia me seja arrancado o segundo. O único ponto duvidoso encontrável aqui é que esta fé racional se funda sobre a pressuposição do sentimento moral. Se prescindirmos disto e tornarmos alguém totalmente indiferente diante das leis morais, então a pergunta que a razão propõe torna-se simplesmente uma tarefa para a especulação; neste caso, pode ainda se apoiar em fortes argumentos provenientes da analogia, mas não em argumentos diante dos quais devesse emergir o mais acirrado ceticismo. (A mente humana toma um interesse natural pela moralidade (como creio que aconteça necessariamente com todo o ente racional), conquanto tal interesse não seja indiviso e praticamente preponderante. Se fortaleceis e aumentais. esse interesse, considerareis a razão muito dócil, e mesmo mais ilustrada, para reunir com o interesse prático também o especulativo. Mas se não cuidais de antes formar pelo menos moderadamente homens bons, não chegareis jamais a fazer deles homens sinceramente crentes! Nota do Autor.) Quanto a estas questões, contudo, nenhum ser humano está livre de todo o interesse. Com efeito, embora possa estar apartado do moral devido a uma carência de bons sentimentos, também neste caso ainda resta o suficiente para fazer com que tema uma existência divina e um futuro. Pois para tanto nada mais se requer senão que pelo menos lhe seja impossível pretextar qualquer certeza de que não se pode encontrar nem tal ente nem uma tal vida futura; já que se exige que isto seja provado mediante a simples razão, e portanto apoditicamente, ele teria que expor a impossibilidade de ambas as coisas, tarefa que seguramente ser humano racional algum seria capaz de assumir. Isto constituiria uma fé negativa que produziria certamente não a moralidade e os bons sentimentos, mas ainda assim o seu analogon que poderia, a saber, deter energicamente o extravasamento dos maus sentimentos. Mas isto é tudo, dir-se-á, que a razão pura consegue realizar quando descortina novas perspectivas para além dos limites da experiência? Nada mais do que dois artigos de fé? Tanto assim até o entendimento comum teria podido realizar sem necessitar aconselhar-se com os filósofos! Não pretendo aqui gabar o mérito que a Filosofia obteve no interesse da razão humana mediante os laboriosos esforços de sua critica, ainda que também se devesse considerá-lo, ao fim e ao cabo, meramente negativo; a respeito disto tratar-se-á ainda um pouco na seção subsequente. Mas pedis então que um conhecimento concernente a todos os homens deve ultrapassar o entendimento comum, bem como vos ser unicamente revelado por filósofos? Exatamente isto que repreendeis é a melhor confirmação da correção das afirmações feitas até aqui, visto que descobre aquilo que inicialmente não se podia prever, a saber: naquilo que se refere a todos os homens sem distinção, não se pode acusar a natureza de haver distribuído com parcialidade os seus dons, e com respeito aos fins essenciais da natureza humana a mais alta Filosofia não podia ir mais longe do que é possível com a guia que a natureza concedeu também ao mais comum dos entendimentos. CAPÍTULO TERCEIRO DA DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO A arquitetônica da razão pura Por uma arquitetônica entendo a arte dos sistemas. Devido ao fato de que a unidade sistemática é aquilo que primeiramente torna o conhecimento comum uma ciência, isto é, faz um sistema a partir de um mero agregado de tais conhecimentos, a arquitetônica constitui a doutrina do elemento científico em nosso conhecimento em geral, pertencendo portanto necessariamente à doutrina do método. Sob o governo da razão, de modo algum é admissível que os nossos conhecimentos perfaçam uma rapsódia; ao contrário, têm que constituir um sistema unicamente no qual é possível sustentar e promover os fins essenciais da razão. Por um sistema, no entanto, compreendo a unidade dos conhecimentos múltiplos sob uma ideia. Esta última é o conceito racional da forma de um todo na medida em que tanto a extensão do múltiplo quanto as posições que as partes ocupam umas em relação às outras são determinadas a priori por tal conceito. O conceito científico da razão contém, pois, o fim e a forma daquele todo que é congruente com o tal fim. A unidade do fim ao qual se referem todas as partes, e que na ideia deste fim também se relacionam umas às outras, faz com que se possa dar pela falta de cada uma das partes mediante o conhecimento das demais, e que não ocorra uma adição ao acaso ou uma magnitude indeterminada de completude que não possua os seus limites determinados a priori. O todo é portanto articulado (articulatio) e não amontoado (coacervatio), podendo, é verdade, crescer internamente (per inius susceptionemi, mas não externamente (per appositionem), tal como acontece com um corpo animal cujo crescimento não leva à adição de um membro, mas antes, sem alterar a proporção torna cada um deles mais forte e mais eficiente para a sua finalidade. Para a sua realização, a ideia requer um esquema, ou seja, uma multiplicidade e uma ordem essenciais das partes, ambas determinadas a priori a partir do princípio definido por seu fim. O esquema, que não é projetado segundo uma ideia, isto é, a partir do fim capital da razão, mas sim empiricamente segundo propósitos que se apresentam de um modo contingente (cujo número não se pode saber antecipadamente), fornece uma unidade técnica; aquele esquema, no entanto que se origina unicamente em consequência de uma ideia (onde a razão impõe a priori os fins, sem esperá-los empiricamente) funda uma unidade arquiietônica. Isto que nós cognominamos ciência - cujo esquema tem de um lado que conter conforme à ideia, ou seja a priori, o contorno (monograma) e a divisão do todo em partes e, de outro lado, que distinguir, com segurança e segundo princípios, este todo de todos os demais - não pode originar-se de um modo técnico devido à semelhança do múltiplo ou ao uso contingente do conhecimento in concreto para qualquer tipo de fins externos arbitrários, mas sim de um modo arquitetônico devido à afinidade [das partes] e à sua derivação a partir de um único fim supremo e interno que primeiramente torna possível o todo. Ninguém tenta estabelecer uma ciência sem que lhe subjaza uma ideia. Só que na elaboração de uma tal ciência, o esquema, e até mesmo a definição que dá logo de início acerca de sua ciência, corresponde muito raramente à sua ideia; pois esta última se encontra na razão como um germe no qual todas as partes estão ocultas, ainda muito pouco desenvolvidas e mal reconhecíveis a uma observação microscópica. Em virtude disto, é mister explicar e determinar as ciências não segundo a descrição que os seus autores fornecem das mesmas, mas sim segundo a ideia que encontramos fundada na própria razão a partir da unidade natural das partes que o autor reuniu; deve-se proceder assim porque todas as ciências são concebidas a partir do ponto de vista de um certo interesse universal. Neste caso, com efeito, achar-se-á que o autor e frequentemente ainda os seus mais pósteros seguidores erraram em torno de uma ideia que não conseguiram tornar clara para si mesmos; em decorrência disto não puderam determinar o conteúdo específico, a articulação (unidade sistemática) e os limites da ciência. É um infortúnio que só após termos seguido por muito tempo as indicações de uma ideia oculta em nós ao coletarmos rapsodicamente, como material de construção, muitos conhecimentos relativos a esta mesma ideia, e só após termos por um longo tempo reunido tecnicamente os mesmos, se nos tornou primeiramente possível vislumbrar a ideia em meio a uma luz mais clara e esboçar arquitetonicamente um todo segundo os fins da razão. Qual vermes os sistemas parecem ter sido formados, inicialmente de forma mutilada e com o tempo completamente, por uma generatio aequivoca a partir da simples confluência de conceitos coleta dos. Apesar disto, todos possuíam, como um germe originário, o seu esquema na razão, a qual simplesmente se desenvolve. Consequentemente, não só cada sistema está por si articulado segundo uma ideia, mas também todos estão por sua vez unidos finalisticamente entre si, como membros de um todo, num sistema do conhecimento humano; isto admite, pois, uma arquitetônica de todo o saber humano que nos tempos de hoje, em que ou já se coligiu material suficiente ou é possível obtê-lo das ruínas de velhos edifícios desmoronados, não só seria possível, mas também não se revelaria tão difícil assim. Contentar-nos-emos aqui em completar a nossa tarefa, a saber, simplesmente escorçar a arquitetônica de todo o conhecimento proveniente da razão pura; limitar-nos-emos a começar partindo do ponto em que a raiz comum de toda a nossa capacidade de conhecimento se bifurca em dois troncos, dos quais um é a razão. Aqui, no entanto, entendo por razão a inteira faculdade superior de conhecimento, e portanto contraponho o racional ao empírico. Se abstraio de todo o conteúdo do conhecimento considerado objetivamente, então subjetivamente todo o conhecimento é ou histórico ou racional. O conhecimento histórico consiste em cognitio ex datis, o racional em cognitio ex principiis. De onde quer que um conhecimento seja originariamente dado, naquele que o possui ele será histórico quando este indivíduo conhece só tanto e na medida em que lhe foi dado de fora, seja mediante uma experiência imediata ou uma narração, seja mediante uma instrução (de conhecimentos gerais). Em consequência disto, aquele que propriamente aprendeu um sistema de filosofia, o wolffiano, por exemplo, nada mais possui do que um conhecimento histórico completo da filosofia wolffiana mesmo que tenha presente na mente e possa contar nos dedos todos os princípios, explicações e provas junto com a divisão de todo o sistema; ele só sabe e julga tanto quanto lhe foi dado. Contestai-lhe uma definição e já não sabe de onde deve tirar outra. Formou-se segundo uma razão alheia, mas a faculdade imitativa não é a faculdade produtiva, ou seja, o conhecimento não se lhe originou a partir da razão; embora, é verdade, se trate objetivamente de um conhecimento racional subjetivamente não passa de um conhecimento histórico. Compreendeu e guardou bem, isto é, aprendeu bem, constituindo-se numa cópia de gesso de um ser humano vivo. Os conhecimentos racionais que o são objetivamente (ou seja que só podem inicialmente se originar da própria razão dos homens) podem portar também subjetivamente este nome só quando provenientes de fontes universais da razão, ou seja, de princípios, fonte das quais também pode emergir a crítica e até mesmo o repúdio daquilo que se aprendeu. Ora, todo o conhecimento racional é ou a partir de conceitos ou a partir da construção dos conceitos; o primeiro se intitula filosófico, o segundo, matemático. No primeiro capítulo já tratei da distinção interna de ambos. Consequentemente, um conhecimento pode ser objetivamente filosófico e ainda assim subjetivamente histórico, tal como ocorre com a maioria dos discípulos e com todos aqueles que não veem adiante de sua própria escola, permanecendo neófitos por toda a vida. É estranho, todavia, que o conhecimento matemático, do modo como foi aprendido, também possa valer subjetivamente como um conhecimento racional, neste caso não ocorrendo uma distinção tal qual a que encontramos no conhecimento filosófico. A causa disso é que as fontes de conhecimento às quais o mestre pode exclusivamente recorrer não se situam senão nos princípios essenciais e autênticos da razão, sendo portanto impossível para o educando tanto adquiri-los de qualquer outra fonte quanto contestá-los; isto acontece, por seu turno, porque aqui o uso da razão tem lugar só in concreto - se bem que ainda assim a priori, ou seja, na intuição pura, qual é, exatamente devido a isto, infalível-, excluindo toda a ilusão e todo o erro. Dentre todas as ciências racionais (a priori), portanto, só é possível aprender Matemática, mas jamais Filosofia (a não ser historicamente); no que tange à razão, o máximo que se pode é aprender a filosofar. A Filosofia é, pois, o sistema de todo o conhecimento filosófico. É necessário torná-la objetivamente caso se compreenda por Filosofia o arquétipo para se julgar todas as tentativas de filosofar; este arquétipo deve servir para julgar toda a filosofia subjetiva, cujo edifício é frequentemente tão diversificado e tão mutável. Deste modo, a filosofia é uma simples ideia de uma ciência possível que não é dada em parte alguma; seguindo diversos caminhos, procuramos avizinhar-nos desta ideia até descobrirmos a única senda, bastante obstruída pela sensibilidade, e conseguirmos no arquétipo igualar, tanto quanto seja dado a seres humanos, a cópia até então defeituosa. Até então não é possível aprender qualquer filosofia; pois onde esta se encontra, quem a possui e segundo quais características se pode reconhecê-la? Só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar o talento da razão, fazendo-a seguir os seus princípios universais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas sempre reservando à razão o direito de investigar aqueles princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou rejeitando-os. Até aqui, no entanto, tratava-se tão somente de um conceito escolástico de Filosofia, ou seja, o conceito de um sistema de conhecimento que só é procurado como ciência, sem que se tenha por finalidade algo mais que a unidade sistemática deste saber e portanto a perfeição lógica do conhecimento. Mas ainda existe um conceito cósmico (conceptus cosmicus) que sempre foi tomado como o fundamento do termo Filosofia, principalmente quando por assim dizer se o personificou e se o representou como um arquétipo no ideal do filósofo. Neste sentido, a Filosofia é a ciência da referência de todo o conhecimento aos fins essenciais da razão humana (teologia rationis humanae), e o filósofo é não um artista da razão, mas sim o legislador da razão humana. Neste significado, seria assaz vanglorioso chamar-se a si mesmo de filósofo e arrogar-se uma identidade com o arquétipo existente unicamente na ideia. O matemático, o estudioso da natureza e o lógico, por mais notável que seja o progresso dos primeiros no conhecimento racional e o dos segundos particularmente no conhecimento filosófico, não passam de artistas da razão. No ideal ainda existe um mestre que a todos impõe a sua tarefa e os utiliza como instrumentos para promover os fins essenciais da razão humana. É somente a este que devemos denominar o filósofo; mas já que ele mesmo não é encontrado em parte alguma, ao passo que por toda a parte nos deparamos com a ideia de sua legislação em cada razão humana, pretendemos unicamente nos ater a esta última e determinar mais precisamente que tipo de unidade sistemática a Filosofia prescreve, segundo este conceito cósmico, a partir do ponto de vista dos fins. (Conceito cósmico significa aqui um conceito concernente ao que interessa necessariamente a qualquer um. Por isso, determino o objetivo de uma ciência segundo conceitos escolásticos quando é considerada só uma habilidade entre outras para certos fins arbitrários. Nota do Autor.) Fins essenciais nem por isto são os supremos; só pode haver um único fim supremo (quando se atinge uma perfeita unidade sistemática da razão). Consequentemente, os fins essenciais são ou o fim último ou os fins subalternos que como meios pertencem necessariamente àquele. O fim último não é outro senão a inteira destinação do homem, e a filosofia a respeito desta última chama-se Moral. Devido a esta prerrogativa que a filosofia moral possui diante de todas as outras ocupações da razão, também entre os antigos se compreendeu sob o nome de filósofo sempre concomitante e preponderantemente o moralista; e mesmo a aparência externa de um autodomínio [adquirido] mediante a razão faz com que ainda hoje, segundo certa analogia, denominemos alguém de filósofo, por mais limitado que possa ser o seu saber. A legislação da razão humana (Filosofia) possui dois objetos, natureza e liberdade; contém, pois, tanto a lei natural quanto também a lei moral, inicialmente em dois sistemas separados, mas finalmente num único sistema filosófico. A filosofia da natureza refere-se a tudo o que é; a filosofia dos costumes concerne unicamente ao que deve ser. Por outro lado, toda a Filosofia é ou um conhecimento a partir da razão pura ou um conhecimento racional a partir de princípios empíricos. A primeira chama-se filosofia pura, a segunda filosofia empírica. A filosofia da razão pura ou é uma propedêutica (exercício preliminar) que investiga a faculdade da razão no tocante a todos os conhecimentos puros a priori e denomina-se crítica, ou constitui em segundo lugar o sistema da razão pura (ciência), todo o conhecimento filosófico (tanto o verdadeiro quanto o aparente) a partir da razão pura apresentado em sua interconexão sistemática, e chama-se Metafísica. Este último nome, contudo, também pode ser dado a toda a filosofia pura inclusive à crítica, a fim de abarcar tanto a investigação de tudo aquilo que pode ser conhecido a priori quanto também a exposição daquilo que perfaz um sistema de conhecimentos filosóficos puros desta espécie, porém distinto de todo o uso empírico e de todo o uso matemático da razão. A Metafísica divide-se na do uso especulativo e na do uso prático da razão pura, sendo portanto ou metafísica da natureza ou metafísica dos costumes. A primeira contém todos os princípios puros da razão derivados de simples conceitos (portanto excluindo a Matemática) e que se referem ao conhecimento teórico de todas as coisas; a segunda contém os princípios que determinam a priori e tornam necessários o fazer e o deixar de fazer. Ora, a moralidade é a única conformidade das ações a leis que pode ser derivada, de um modo completamente a priori, de princípios. Em decorrência disto, a metafísica dos costumes é propriamente a moral pura, a qual não se funda sobre qualquer Antropologia (quaisquer condições empíricas). A metafísica da razão especulativa é aquilo que, num sentido mais estrito, costuma denominar-se Metafísica; mas na medida em que a doutrina moral pura também pertence não obstante a um tronco especial do conhecimento humano, precisamente o filosófico, derivado da razão pura, queremos reter-lhe a denominação de Metafísica, embora a ponhamos de lado aqui por agora não a temos em mira. É de extrema relevância isolar os conhecimentos que se distinguem de outros segundo o seu gênero e origem, bem como evitar cuidadosamente que confluam e se mesclem com outros conhecimentos com os quais estão costumeiramente ligados no uso que deles fazemos. O que fazem o químico na análise da matéria e o matemático na sua doutrina das magnitudes puras é uma incumbência ainda maior para o filósofo, a fim de que possa determinar com segurança a parte que um tipo especial de conhecimento tem no uso variegado do entendimento, bem como o seu valor próprio e a sua influência. Consequentemente, a partir do momento em que começou a pensar, ou antes a refletir, a razão humana jamais pôde prescindir de uma metafísica, se bem que não estivesse apta a expô-la suficientemente depurada de todo o elemento estranho. A ideia de tal ciência é exatamente tão velha quanto a razão especulativa do ser humano; e qual razão não especula, seja de um modo escolástico, seja de um modo popular? Tem que se admitir, contudo, que a distinção dos dois elementos de nosso conhecimento, um dos quais está em nosso poder completamente a priori, e o outro só pode ser obtido a posteriori da experiência, permaneceu assaz obscura mesmo entre os pensadores profissionais; em consequência disto, jamais se conseguiu determinar os limites de um tipo especial de conhecimento, e portanto não se pôde constituir a ideia autêntica de uma ciência que tanto e por tanto tempo ocupou a razão humana. Quando se dizia que a Metafísica era a ciência dos primeiros princípios do conhecimentos humano, acentuava-se com isto não um tipo inteiramente especial de conhecimento, mas sim tão somente uma certa precedência com respeito a generalidade, sendo que mediante tal, portanto, este conhecimento não podia ser distinguido do empírico com a clareza suficiente. Com efeito, também entre os princípios empíricos há uns que são mais gerais e portanto mais elevados do que outros. E na série de tal subordinação (já que não se distingue aquilo que é conhecido completamente a priori daquilo que o é tão somente a posteriori), onde se deve fazer a censura que distinga a primeira parte e os membros superiores da última parte e dos membros subordinados? Que se diria se a cronologia só pudesse designar as épocas de mundo de um modo tal que as dividisse em primeiros séculos e em séculos subsequentes? Perguntar-se-ia: o quinto século, o décimo etc., também pertencem aos primeiros? Da mesma forma indago: o conceito do extenso pertence à Metafísica? Respondei que sim! Ah, e o de corpo também? Sim! E o de corpo fluido? Ficais perplexos, pois se a coisa continua nesta toada, tudo pertencerá à Metafísica. Disto se vê que o simples grau de subordinação (o particular sob o universal) não pode determinar os limites de uma ciência; em nosso caso, ao contrário, tal determinação só é dada pela total heterogeneidade e diversidade de origem. Sob outro aspecto, no entanto, a ideia fundamental da meta física foi obscurecida pelo fato de que esta, enquanto conhecimento a priori, mostrava certa homogeneidade com a Matemática, homogeneidade que certamente as torna afins no que se refere à sua origem a priori. Mas no que diz respeito ao modo de conhecer a partir de conceitos característicos da primeira comparado ao modo de julgar a priori unicamente mediante a construção dos conceitos tal como é próprio da segunda, e portanto no que concerne à distinção entre os conhecimentos filosófico e matemático, evidencia-se uma heterogeneidade tão decidida que, embora sempre se atenha por assim dizer sentido, não foi possível reduzi-la a critérios claros. Ora, deste modo aconteceu que, devido ao fato de os próprios filósofos falharem na tarefa de desenvolver a ideia de sua ciência, a elaboração da mesma não pôde abandonar-se de qualquer fim determinado e de qualquer orientação segura consequentemente, diante de um projeto traçado tão arbitrariamente, ignorantes quanto ao caminho que teriam que seguir e sempre querelando a respeito das descobertas que cada um pretendia ter feito ao longo de seu caminho, os filósofos levaram a sua ciência a ser desprezada, primeiro pelos outros e finalmente até por eles mesmos. Todo o conhecimento puro a priori perfaz, pois, uma unidade particular em virtude da faculdade especial de conhecimento exclusivamente na qual possui a sua sede; a Metafísica é aquela filosofia que deve apresentar aquele conhecimento nesta unidade sistemática. A parte especulativa da Metafísica, a que se apropriou preferentemente deste nome - ou seja, a que denominamos metafísica da natureza, a qual considera tudo, na medida em que é (não o que deve ser), a partir de conceitos a priori - divide-se da seguinte maneira. A Metafísica, assim chamada em seu sentido mais estrito, consiste na filosofia transcendental e na fisiologia da razão pura. A primeira considera apenas o entendimento e a própria razão num sistema de todos os conceitos e princípios que se referem a objetos em geral sem admitir objetos que sejam dados (ontologia); a segunda considera a natureza, isto é, o conjunto dos objetos dados (sejam dados aos sentidos, sejam dados, se se quiser, a outra espécie de intuição), e é portanto uma fisiologia (se bem que tão somente rationalis). Ora, o uso da razão nesta consideração racional da natureza é o físico ou hiperfísico, melhor ainda, ou imanente ou transcendente. O primeiro volta-se para a natureza na medida em que o seu conhecimento pode ser aplicado na experiência (in concreto), o segundo para aquela conexão dos objetos da experiência que ultrapassa toda a experiência. Consequentemente, esta fisiologia transcendente possui como o seu objeto ou uma conexão interna ou uma externa, mas ambas ultrapassando a experiência possível; aquela é a fisiologia da natureza inteira, ou seja, o conhecimento transcendental do mundo, ao passo que a última constitui a fisiologia da interconexão da natureza inteira com um ente superior à natureza, ou seja, o conhecimento transcendental de Deus. A fisiologia imanente, em contra partida, encara a natureza como o conjunto de todos os objetos dos sentidos, portanto tal como nos é dada, mas unicamente segundo as condições a priori sob as quais nos pode em geral ser dada. Só há, entretanto, dois tipos de objetos da fisiologia imanente. 1. Os dos sentidos externos, portanto o conjunto de tais objetos, a natureza corpórea. 2. O objeto do sentido interno, a alma, e de um modo geral, segundo os nossos conceitos fundamentais da mesma, a natureza pensante. A metafísica da natureza corpórea chama-se Física, mas por dever conter tão somente os princípios do conhecimento a priori da natureza, física racional. A metafísica da natureza pensante denomina-se Psicologia, e devido ao mesmo motivo aduzido supra só se deve compreender aqui o conhecimento racional da natureza pensante. Em consequência disto, o sistema inteiro da Metafísica consiste em quatro partes principais: 1. na antologia, 2. na fisiologia racional, 3. na cosmologia racional, 4. na teologia racional. A segunda parte, a saber, a doutrina da natureza advogada pela razão pura, contém duas subdivisões: a physica raiionalis e a psychologia rationalis. (Não se pense que com tal expressão entendo o que comumente se denomina phisica generalis, e que é mais matemática do que filosofia da natureza. Com efeito, a metafísica da natureza aparta-se totalmente da matemática; e se também está longe de ampliar os nossos conhecimentos tanto como a matemática, é contudo muito importante com respeito à crítica do conhecimento intelectual e puro em geral a aplicar à natureza. Na falta de uma meta física da natureza, os próprios matemáticos aderindo a certos conceitos comuns que de fato são contudo metafísicos, imperceptivelmente carregaram a Física com hipóteses que se desfazem ante uma crítica desses princípios, sem que com isto prejudique nem um pouquinho o uso da Matemática neste campo (que é absolutamente indispensável). Nota do Autor.) A ideia originária de uma filosofia da razão pura prescreve ela mesma esta divisão. Esta última é, pois, arquitetônica em conformidade com os fins essenciais da razão, e não meramente técnica, traçada segundo afinidades acidentalmente percebidas e estabelecidas como que ao acaso; exatamente por isto ela também é imutável e legisladora. Quanto a isto existem alguns pontos que podem suscitar dúvidas e debilitar a nossa convicção acerca da legitimidade desta divisão. Em primeiro lugar, como posso esperar um conhecimento a priori, portanto uma Metafísica, de objetos na medida em que são dados aos nossos sentidos, e portanto a posteriori? E como é possível conhecer, segundo princípios a priori, a natureza das coisas e chegar a uma fisiologia racional? A resposta é a seguinte: da experiência nada mais tiramos do que o necessário para nos darmos um objeto do sentido tanto externo quanto interno. O objeto do sentido externo nos é dado pelo mero conceito de matéria (extensão inanimada e impenetrável), o do interno pelo conceito de ente pensante (na representação interna empírica: eu penso). De resto, em toda a meta física destes objetos teríamos que nos abster inteiramente de todos os princípios empíricos que pretendessem acrescer ainda outra experiência a estes conceitos, visando a partir disto pronunciar juízos a respeito destes objetos. Em segundo lugar, onde fica a psicologia empírica, a qual sempre manteve o seu lugar na Metafísica e da qual se esperou, em nossos tempos, tão grandes coisas para o esclarecimento da mesma, isto depois de se ter abandonado a esperança de se realizar a priori algo prestável? Respondo: pertence ao mesmo sítio no qual tem que ser colocada a doutrina própria (empírica) da natureza, ou seja, aos domínios da filosofia aplicada; já que a filosofia pura contêm os princípios a priori da filosofia aplicada, aquela tem portanto que ser ligada a esta última, se bem que não confundida com a mesma. Consequentemente, a psicologia empírica tem que ser completamente banida da Metafísica, estando já totalmente excluída pela ideia da mesma. Não obstante, de acordo com o uso escolástico ter-se-á sempre (se bem que tão somente como um episódio) que lhe conceder um lugarzinho na Metafísica, e isto por motivos econômicos: de fato, não chega a ser suficientemente rica para perfazer sozinha um [objeto de] estudo, mas é demasiado importante para que se deva renegá-la completamente e trasladá-la a outras paragens nas quais provavelmente encontraria ainda menos afinidade do que na Metafísica. Trata-se, pois, só de um estranho hã muito aceito como hóspede e para o qual se prorroga a estadia por mais algum tempo, até o dia em que possa encontrar o seu próprio lar numa Antropologia detalhada (o correspondente à doutrina empírica da natureza). Esta é, pois, a ideia geral da Metafísica. Inicialmente dela se espera mais do que pode com justiça ser exigido, e por algum tempo todos se deleitaram com expectativas agradáveis; finalmente caiu no desprezo generalizado, pois todos viram-se logrados em sua esperança. O inteiro curso de nossa crítica foi suficiente para nos convencer que, embora não podendo ser a principal fortaleza da religião, a Metafísica tem que permanecer sempre como a defesa da mesma; convencer-nos também que a razão humana, dialética já pela orientação de sua natureza, jamais pode dispensar tal ciência que a refreie e que impeça através de um autoconhecimento científico e completamente evidente, as devastações que de outra maneira uma razão especulativa anárquica causaria assaz infalivelmente tanto na moral quanto na religião. Consequentemente, por mais reservada ou desdenhosa que também seja a atitude daqueles que também sabem julgar uma ciência não segundo a sua natureza, mas sim unicamente a partir dos seus efeitos contingentes, podemos estar seguros que sempre retomaremos à Metafísica como se se tratasse de uma amada com a qual nos desaviéramos; isto é assim porque a razão, devido ao fato de estarem em jogo aqui fins essenciais, tem que labutar incansavelmente ou para atingir um conhecimento profundo dos mesmos ou para desmentir os conhecimentos já existentes que a eles se referem. Por conseguinte, a Metafísica tanto da natureza quanto dos costumes e principalmente a crítica de uma razão que se aventura a andar sobre os seus próprios pés, crítica que precede a título de exercício preliminar (propedeuticamente), constituem propriamente sozinhas aquilo que num sentido autêntico podemos denominar Filosofia. Esta última refere tudo à sabedoria, se bem que seguindo a senda da ciência; esta é a única via que, uma vez aberta, jamais é obstruída, não dando azo a que alguém se perca. A Matemática, e a Ciência Natural e mesmo o nosso conhecimento empírico acerca do homem possuem um alto valor como meios para se atingir fins da humanidade que na maior parte das vezes são contingentes, mas ao fim e ao cabo também para se alcançar fins necessários e essenciais. Por outro lado, estas ciências só podem chegar a estes últimos através da mediação de um conhecimento racional a partir de puros conceitos, conhecimento que, denomine-se-o como se quiser, propriamente nada mais é do que a Metafísica. Exatamente por isto a Metafísica também possui a perfeição de toda a cultura da razão humana, trata-se de uma disciplina indispensável, mesmo que se ponha de lado o seu influxo, enquanto ciência, sobre certos fins determinados. Com efeito, ela considera a razão segundo aqueles dos seus elementos e máximas supremas que têm que ser tomados como o fundamento tanto da possibilidade de algumas ciências quanto do uso de todas. Que a Metafísica, enquanto simples especulação, sirva mais para manter afastados os erros do que para ampliar o nosso conhecimento, eis algo que não vem em detrimento de seu valor; confere-lhe antes dignidade e autoridade através daquele cargo de censura que assegura a ordem e a harmonia gerais e até mesmo o bem-estar da comunidade científica, impedindo que os labores corajosos e frutíferos desta última se afastem do fim capital, a felicidade de todos. CAPÍTULO QUARTO DA DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO A história da razão pura Este título só está aqui para designar um lugar que ainda resta no sistema e que tem que ser preenchido futuramente. A partir de um ponto de vista puramente transcendental, ou seja, a partir da natureza da razão pura, contentar-me-ei em lançar uma rápida olhada sobre a totalidade dos trabalhos precedentes neste setor; embora isto apresente edifícios aos meus olhos, só me faz vê-los em ruínas. Embora naturalmente não pudesse ocorrer de outro modo, é bastante digno de nota que na infância da Filosofia os homens começaram no ponto em que agora preferiríamos terminar, ou seja, estudando inicialmente o conhecimento de Deus e a esperança ou quem sabe até a natureza de outro mundo. Por mais que os velhos costumes, resíduos ainda de um estado bárbaro dos povos, houvessem introduzido conceitos religiosos grosseiros, isto de modo algum impediu os indivíduos mais esclarecidos de empenharem-se em investigações livres acerca deste objeto; compreendeu-se facilmente que não podia haver um modo mais sólido e mais fidedigno de agradar o poder invisível que rege o mundo, com o fito de ser feliz pelo menos num outro mundo, do que conduzir-se bem na vida. E por isto que a Teologia e a Moral foram as duas molas propulsoras, ou melhor, pontos de referência, de todas as investigações abstratas da razão às quais os homens sempre se devotaram posteriormente. A primeira foi, contudo, propriamente a que aos poucos atraiu a razão meramente especulativa para as lides que se tornaram subsequentemente tão renomadas sob o nome de Metafísica. Não pretendo agora distinguir as épocas às quais correspondem estas ou aquelas mudanças da Metafísica; limitar-me-ei a expor, num rápido esquema, as diferenças de ideia que desencadearam as principais revoluções. E neste caso detecto três quesitos segundo os quais se instituíram as mudanças mais dignas de menção que ocorreram neste palco de disputas. 1. Com respeito ao objeto de todos os nossos conhecimentos racionais, alguns filósofos foram simplesmente sensualistas e outros simplesmente intelectualistas. Epicuro pode ser denominado o mais notável filósofo da sensibilidade, Platão o mais importante do entendimento. Mas por mais sutil que seja, esta distinção das escolas já data das mais priscas eras, mantendo-se ininterrupta por muito tempo. Os primeiros afirmaram que a realidade estava só nos objetos e nos sentidos e que tudo o mais era imaginação; os segundos, ao contrário, diziam que nos sentidos nada mais há do que ilusão e que só o entendimento conhece o verdadeiro. Mas nem por isto os primeiros negavam a realidade dos conceitos do entendimento; mas enquanto a consideravam unicamente lógica, para os intelectualistas ela era mística. Os primeiros admitiam conceitos intelectuais, mas aceitavam unicamente objetos sensíveis. Os últimos exigiam que os verdadeiros objetos fossem puramente inteligíveis e afirmavam uma intuição efetuada mediante o entendimento puro desacompanhado de quaisquer sentidos, os quais, em sua opinião, só poderiam confundi-lo, 2. Com respeito à origem dos conhecimentos puros da razão, a questão é se derivam da experiência ou se, independente desta última, possuem a sua fonte na razão. Aristóteles pode ser visto como o líder dos empiristas, Platão como o dos noologistas. Locke, que em tempos recentes seguiu o primeiro, e Leibniz, que acompanhou o último (se bem que mantendo uma distância respeitável de seu sistema místico), não puderam todavia chegar a nenhuma decisão no tocante a esta disputa. Pelo menos Epicuro procedeu, por seu turno, de um modo bem mais consequente segundo o seu sistema sensualista (pois em suas inferências jamais ultrapassou os limites da experiência) do que Aristóteles e Locke. Especialmente Locke, após ter derivado da experiência todos os conceitos e princípios, avança tanto em seu uso que chega a sustentar que é possível provar a existência de Deus e a moralidade da alma (apesar de que ambos os objetos se situam totalmente fora dos limites de uma experiência possível) com a mesma evidência com que se prova um teorema matemático qualquer. 3. Com respeito ao método. Se existe algo que merece o nome de método, então tem que se tratar de um procedimento segundo princípios. Ora, pode-se dividir o método hoje prevalente neste ramo de investigação em naturalístico e científico. O naturalista da razão pura toma o seguinte como princípio: no tocante às mais sublimes questões que perfazem a tarefa da Metafísica, é possível realizar mais através da razão comum sem ciência (o que denomina razão sã) do que pela da especulação. Afirma, portanto, que o tamanho e a distância da lua podem ser determinados com maior segurança pelo olho nu do que por meio de rodeios matemáticos. Isto é mera misologia reduzida a princípios; e o que é mais absurdo, descurar de todos os meios artificiais é celebrado como um método particular para estender o nosso conhecimento. Com efeito, nada se pode imputar com razão àqueles que são naturalistas por carência de maior discernimento. Seguem a razão comum sem se jactarem de sua ignorância como sendo um método que deva conter o segredo que lhes permita extrair a verdade do poço fundo de Demócrito. Quod sapio satis est mihi; non ego curo, esse quod Arcesilas aerumnosique Solones, Pers.) eis o lema segundo o qual podem viver alegres e dignos de aprovação sem se preocuparem com a ciência e sem embaralharem os negócios da mesma. No que tange aos sequazes de um método científico, possuem aqui a escolha de procederem ou dogmática ou ceticamente, mas em todos os casos a obrigação de procederem sistematicamente. Se cito aqui o famoso Wolf com respeito ao primeiro caso e David Hume com referência ao segundo, de acordo com o meu presente propósito posso então deixar de elencar os restantes. Somente o caminho crítico ainda está aberto. Se o leitor teve a solicitude e a paciência de percorrê-lo em minha companhia, pode agora julgar, caso esteja disposto a dar a sua própria contribuição para transformar este atalho numa estrada principal, se ainda antes do término da presente centúria não é possível atingir aquilo que muitos séculos não conseguiram alcançar: a saber, satisfazer completamente a razão humana quanto àquilo que sempre ocupou, se bem até agora em vão, a sua ânsia de saber.