Denis Diderot – Paradoxo Sobre o Comediante PRIMEIRO INTERLOCUTOR — Não falemos mais disso. SEGUNDO INTERLOCUTOR — Por quê? PRIMEIRO — Porque a obra é de vosso amigo. SEGUNDO — Que importa? PRIMEIRO — Muito. De que vos serve ficar na alternativa de desprezar ou o seu talento, ou o meu julgamento, e depreciar a boa opinião que tendes dele ou a que tendes de mim? SEGUNDO — Isso não sucederá; e mesmo que sucedesse, minha amizade pelos dois, baseada em qualidades mais essenciais, não seria atingida. PRIMEIRO — Talvez. SEGUNDO — Estou certo. Sabeis a quem vos assemelhais neste instante? A um autor de meu conhecimento que suplicava de joelhos a uma mulher à qual estava ligado que não assistisse à primeira representação de uma de suas peças. PRIMEIRO — Vosso autor era modesto e prudente. SEGUNDO — Temia que o sentimento terno que lhe dedicavam ficasse na dependência da apreciação que fosse feita de seu mérito literário. PRIMEIRO — Isso seria possível. SEGUNDO — Que um fracasso público o degradasse um pouco aos olhos de sua amada. PRIMEIRO — Que, menos apreciado, fosse menos amado. E isso vos parece ridículo? SEGUNDO — Foi assim que se julgou o fato. O camarote foi alugado e o autor logrou o maior êxito: só Deus sabe como foi abraçado, festejado e acariciado. PRIMEIRO — Sê-lo-ia muito mais se a peça fosse vaiada. SEGUNDO — Não duvido. PRIMEIRO — E eu persisto em minha opinião. SEGUNDO — Persisti, consinto; mas lembrai-vos de que não sou mulher e que é preciso, se vos apraz, que vos expliqueis. PRIMEIRO — Absolutamente? SEGUNDO — Absolutamente. PRIMEIRO — Ser-me-ia mais fácil calar-me do que disfarçar meu pensamento. SEGUNDO — Acredito. PRIMEIRO — Serei severo. SEGUNDO — É o que meu amigo exigiria de vós. PRIMEIRO — Pois bem, já que é mister vo-lo dizer, a obra dele, escrita em um estilo alambicado, obscuro, tortuoso, empolado, está cheia de ideias comuns. Ao sair desta leitura, um grande comediante não será melhor, e um ator medíocre não será melhor. Compete à natureza dar as qualidades da pessoa, a figura, a voz, o julgamento, a sutileza. Compete ao estudo dos grandes modelos, ao conhecimento do coração humano, à prática do mundo, ao trabalho assíduo, à experiência e ao hábito do teatro aperfeiçoar o dom da natureza. O comediante imitador pode chegar ao ponto de representar tudo passavelmente; nada haverá a louvar, nem a repreender em seu desempenho. SEGUNDO — Ou haverá tudo a repreender. PRIMEIRO — Como quiserdes. O comediante por natureza é amiúde detestável e às vezes excelente. Em qualquer gênero que seja, desconfiai da mediocridade constante. Qualquer que seja o rigor com que um estreante seja tratado, é fácil pressentir seus triunfos vindouros. As vaias sufocam apenas os ineptos. E como formaria a natureza sem a arte um grande comediante, já que nada se passa exatamente no palco como na natureza, e que os poemas dramáticos são todos compostos segundo certo sistema de princípios? E como seria um papel desempenhado da mesma maneira por dois atores diferentes, se no escritor mais claro, mais preciso, mais enérgico, as palavras não são e não podem ser senão signos aproximados de um pensamento, de um sentimento, de uma ideia; signos cujo valor o movimento, o gesto, o tom, a fisionomia, os olhos, a circunstância dada completam? Quando ouvis estas palavras: ... O que faz aí vossa mão? — Apalpo o vosso traje, o seu tecido é macio. O que sabeis vós? Nada. Ponderai bem o que segue, e concebei como é frequente e fácil que dois interlocutores, empregando as mesmas expressões, tenham pensado e dito coisas totalmente diversas. O exemplo que disso vos darei é uma espécie de prodígio; é a obra mesma de vosso amigo. Perguntai a um comediante francês qual a sua opinião a respeito, e este concordará que tudo nele é verdadeiro. Fazei a mesma pergunta a um comediante inglês, e ele vos jurará by God que não há sequer uma frase a mudar, e que é o puro evangelho da cena. Entretanto, como não há quase nada em comum entre a maneira de escrever a comédia e a tragédia na Inglaterra e a maneira por que se escrevem esses poemas em França, pois, segundo o modo de pensar mesmo de Garrick, quem sabe representar perfeitamente uma cena de Shakespeare não conhece o primeiro acento da declamação de uma cena de Racine; pois enlaçado pelos versos harmoniosos deste último, como por outras tantas serpentes cujos anéis lhe estreitam a cabeça, os pés, as mãos, as pernas e os braços, sua ação perderia com isso toda a liberdade: segue-se evidentemente que o ator francês e o ator inglês, que concordam unanimemente quanto à verdade dos princípios de vosso autor, não se entendem, e que há na linguagem técnica do teatro uma latitude, um vago bastante considerável para que homens sensatos, de opiniões diametralmente opostas, creiam reconhecer aí a luz da evidência. E continuai mais do que nunca apegado à vossa máxima: Não vos expliqueis nunca se quereis vos entender. SEGUNDO — Pensais que em toda obra, e sobretudo nesta, existem dois sentidos distintos, ambos encerrados sob os mesmos signos, um em Londres e outro em Paris? PRIMEIRO — E que tais signos apresentam tão nitidamente esses dois sentidos que vosso amigo mesmo se enganou com eles, uma vez que, associando nomes de comediantes ingleses a nomes de comediantes franceses, aplicando-lhes os mesmos preceitos, e concedendo-lhes a mesma censura e os mesmos louvores, imaginou, sem dúvida, que aquilo que declarava quanto a uns era igualmente justo quanto a outros. SEGUNDO — Mas, desse modo, nenhum outro autor teria cometido tantos verdadeiros contrassensos. PRIMEIRO — As mesmas palavras de que ele se serve enunciam uma coisa no carrefour de Bussy e coisa diferente em Drury Lane, devo confessá-lo com pesar; de resto, posso estar errado. Mas o ponto importante, sobre o qual temos opiniões inteiramente opostas vosso autor e eu, é a questão das qualidades principais de um grande comediante. Quanto a mim, quero que tenha muito discernimento; acho necessário que haja nesse homem um espectador frio e tranquilo; exijo dele, por consequência, penetração e nenhuma sensibilidade, a arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis. SEGUNDO — Nenhuma sensibilidade! PRIMEIRO — Nenhuma. Não coordenei ainda bem minhas razões, e me permitireis vo-las expor como elas me vierem, na desordem da própria obra de vosso amigo. Se o comediante fosse sensível, sei-lhe-ia permitido, de boa fé, desempenhar duas vezes seguidas um mesmo papel com o mesmo calor e o mesmo êxito? Muito ardente na primeira representação, estaria esgotado e frio como mármore na terceira. Ao passo que imitador atento e discípulo atento da natureza, na primeira vez que se apresentar no palco sob o nome de Augusto, de Cina, de Orosmano, de Agamenon, de Maomé, copista rigoroso de si próprio ou de seus estudos, e observador contínuo de nossas sensações, sua interpretação, longe de enfraquecer-se, fortalecer-se-á com novas reflexões que terá recolhido; ele se exaltará ou se moderará, e vós ficareis com isso cada vez mais satisfeito. Se ele é ele quando representa, como deixará de ser ele? Se ele quer cessar de ser ele, como perceberá o ponto justo em que deve colocar-se e deter-se? O que me confirma minha opinião é a desigualdade dos atores que representam com alma. Não espereis da parte deles nenhuma unidade; seu desempenho é alternadamente forte e fraco, quente e frio, trivial e sublime. Hão de falhar amanhã na passagem onde hoje primaram; em compensação, hão de primar naquela em que falharam na véspera. Ao passo que o comediante que representar com reflexão, com estudo da natureza humana, com imitação constante segundo algum modelo ideal, com imaginação, com memória, será um e o mesmo em todas as representações, sempre igualmente perfeito: tudo foi medido, combinado, apreendido, ordenado em sua cabeça; não há em sua declamação nem monotonia, nem dissonância. O ardor tem seu progresso, seus ímpetos, suas remissões, seu começo, seu meio, seu extremo. São os mesmos acentos, as mesmas posições, os mesmos movimentos; se existe alguma diferença de uma representação a outra, é comumente em vantagem da última. Ele não será desigual: é um espelho sempre disposto a mostrar os objetos e a mostrá-los com a mesma precisão, a mesma força e a mesma verdade. Assim como o poeta, vai incessantemente abeberar-se no fundo inesgotável da natureza, enquanto que teria assistido bem cedo ao termo de sua própria riqueza. Que desempenho mais perfeito que o da Mlle Clairon? Entretanto, segui-a, estudai-a, e ficareis convencido de que na sexta representação ela sabe de cor todos os pormenores de sua interpretação, assim como todas as palavras de seu papel. Sem dúvida, ela fez para si um modelo ao qual procurou de início conformar-se; sem dúvida, concebeu esse modelo da maneira mais elevada, mais grandiosa e a mais perfeita que lhe foi possível; mas tal modelo que tomou da história, ou que sua imaginação criou como grande fantasma, não é ela; se o modelo não a ultrapassasse em altitude, como seria fraca e reduzida sua ação! Quando, à força de trabalho, ela se aproximou dessa ideia o mais que pôde, tudo ficou terminado; manter-se firme nele é uma pura questão de exercício e de memória. Se presenciásseis seus estudos, quantas vezes lhe diríeis: “É isso mesmo!...” e quantas vezes ela vos responderia: “Estais enganado!...” É como De Quesnoy, a quem o amigo segurava pelo braço e gritava: “Detende-vos!, o melhor é inimigo do bom: ides estragar tudo...” “Vós enxergais o que eu fiz”, replicava o artista arquejante ao conhecedor maravilhado; “mas não enxergais o que eu tenho aí, e o que estou perseguindo.” Não duvido de modo algum que Mlle Clairon padeça o tormento de Quesnoy em suas primeiras tentativas; mas passada a luta, depois de elevar-se uma vez à altura de seu fantasma, ela se domina, ela se repete sem emoção. Como nos acontece às vezes no sonho, a cabeça toca-lhe nas nuvens, as mãos vão procurar os dois confins do horizonte; ela é a alma de um grande manequim que a envolve; seus ensaios o fixaram sobre ela. Negligentemente estendida numa espreguiçadeira, com os braços cruzados, os olhos fechados, imóvel, ela pode, seguindo seu sonho de memória, ouvir-se, ver-se, julgar-se e julgar as impressões que provocará. Nesse momento, é dupla: a pequena Clairon e a grande Agripina. SEGUNDO — Nada, a convir convosco, assemelha-se tanto a um comediante na cena ou em seus estudos, quanto as crianças que, de noite, arremedam as almas do outro mundo nos cemitérios, erguendo acima de suas cabeças um grande lençol branco na ponta de uma vara, e lançando de baixo desse catafalco uma voz lúgubre que atemoriza os passantes. PRIMEIRO — Tendes razão. Com Mlle Dusmenil não acontece o mesmo que com Mlle Clairon. Ela sobe ao palco sem saber o que irá dizer; a metade do tempo, não sabe o que diz, mas chega um momento sublime. E por que diferiria o ator do poeta, do pintor, do orador e do músico? Não é no furor do primeiro jato que os traços característicos se apresentam, é em momentos tranquilos e frios, em momentos totalmente inesperados. Não se sabe de onde semelhantes traços provêm; eles se parecem com a inspiração. É quando, suspensos entre a natureza e o esboço que fazem, esses gênios dirigem alternadamente um olhar atento a um e outro; as belezas de inspiração, os traços fortuitos que espalham em suas obras, e cuja súbita aparição a eles próprios espanta, são de um efeito e de um êxito assegurados de maneira bem diversa daquilo que jogaram nelas num repente. Cabe ao sangue-frio temperar o delírio do entusiasmo. Não é o homem violento que está fora de si que dispõe de nós; trata-se antes de uma vantagem reservada ao homem que se domina. Os grandes poetas dramáticos, sobretudo, são espectadores assíduos do que se passa em torno deles no mundo físico e no mundo moral. SEGUNDO — Que são um só. PRIMEIRO — Apreendem tudo que os impressiona; fazem coleções com isso. É dessas coleções formadas neles, sem que o saibam, que tantos fenômenos raros passam às suas obras. Os homens acalorados, violentos, sensíveis, encontram-se em cena; dão o espetáculo, mas não o desfrutam. São eles que servem de modelo para o homem de gênio fazer sua cópia. Os grandes poetas, os grandes atores, e, talvez, em geral, todos os grandes imitadores da natureza, quaisquer que sejam, dotados de bela imaginação, de grande julgamento, de tato fino, de gosto muito seguro, são os menos sensíveis dos seres. São igualmente aptos a um número demasiado de coisas; acham-se demasiado ocupados em olhar, em reconhecer e em imitar, para que sejam vivamente afetados no íntimo deles próprios. Eu os vejo incessantemente com a pasta de desenho sobre os joelhos e o lápis na mão. . Nós sentimos; eles observam, estudam e pintam. Posso dizê-lo? Por que não? A sensibilidade não é quase a qualidade de um grande gênio. Ela amará a justiça; mas exercerá essa virtude sem recolher sua doçura. Não é seu coração, mas sua cabeça que faz tudo. À menor circunstância imprevista, o homem sensível a perde; ele não será grande rei, nem grande ministro, nem grande capitão, nem grande advogado, nem grande médico. Enchei a sala de espetáculo desses chorões, mas não coloqueis nenhum deles no palco. Vede as mulheres; elas nos ultrapassam certamente, e de muito longe, em sensibilidade; que diferença entre elas e nós nos instantes da paixão! Mas, assim como nos são superiores quando agem, do mesmo modo nos são inferiores quando imitam. A sensibilidade nunca se apresenta sem fraqueza de organização. A lágrima que escapa do homem verdadeiramente homem nos comove mais que todos os prantos de uma mulher. Na grande comédia, a comédia do mundo, aquela para a qual sempre torno, todas as almas quentes ocupam o teatro; todos os homens de gênio encontram-se na plateia. Os primeiros chamam-se loucos; os segundos, que se dedicam a lhes copiar as loucuras, chamam-se sábios. É o olho do sábio que capta o ridículo de tantas personagens diversas, que o pinta, e que vos faz rir, quer desses importunos originais, de que fostes vítima, quer de vós mesmo. É ele quem vos observava, e quem traçava a cópia cômica, quer do importuno, quer de vosso suplício. Se essas verdades fossem demonstradas, os grandes comediantes não concordariam com elas; é o segredo deles. Os atores medíocres ou neófitos são feitos para rejeitá-las, e poder-se-ia dizer de alguns outros que eles acreditam sentir, como se disse do supersticioso, que ele acredita crer; e que sem a fé para este, e sem a sensibilidade para aquele, não há qualquer salvação. Mas como? Dirá alguém, estes acentos tão plangentes, tão dolorosos, que esta mãe arranca do fundo de suas entranhas, e com os quais as minhas são tão violentamente sacudidas, não é o sentimento atual que os produz, não é o desespero que os inspira? De modo algum; e a prova é que são medidos, que fazem parte de um sistema de declamação; que mais baixos ou mais agudos do que a vigésima parte de um quarto de tom, são falsos; que estão sujeitos a uma lei de unidade; que são, como na harmonia, preparados e preservados: que satisfazem todas as condições requeridas apenas através de um longo estudo; que concorrem para a solução de um problema proposto; que, para ser levados ao ponto justo, foram ensaiados cem vezes e que, apesar desses frequentes ensaios, ainda lhes falta algo; é que antes de dizer: Zaira, vós chorais ou Vós compreendereis, minha filha o ator escutou-se durante muito tempo a si mesmo; é que ele se escuta no momento em que vos perturba, e que todo seu talento consiste não em sentir, como supondes, mas em expressar tão escrupulosamente os sinais externos do sentimento, que vós vos enganais, a esse respeito. Os gritos de sua dor são notados em seu ouvido. Os gestos de seu desespero são decorados, foram preparados diante de um espelho. Ele conhece o momento exato em que há de tirar o lenço e em que as lágrimas hão de rolar; esperai-as a esta palavra, a esta sílaba, nem mais cedo nem mais tarde. Este tremor da voz, estas palavras suspensas, estes sons sufocados ou arrastados, este frêmito dos membros, esta vacilação dos joelhos, estes desfalecimentos, estes furores, pura imitação, lição recordada de antemão, trejeito patético, macaquice sublime de que só o ator guarda lembrança muito tempo depois de tê-la estudado, de que tinha consciência presente no momento em que a executava, e que lhe deixa, felizmente para o poeta, para o espectador e para ele, toda a liberdade de seu espírito, e que não lhe tira, assim como os outros exercícios, senão a força do corpo. O soco ou o coturno deposto, sua voz extinguiu-se, ele sente extrema fadiga, vai mudar de roupa branca ou deitar-se; mas não lhe resta nem perturbação, nem dor, nem melancolia, nem abatimento de alma. Sois vós quem levais convosco todas essas impressões. O ator está cansado e vós, tristes; é que ele se agitou sem nada sentir, e vós sentistes sem vos agitar. Se fosse de outro modo, a condição do comediante seria a mais desgraçada das condições; mas ele não é a personagem, ele a representa e a representa tão bem que vós a tomais como tal; a ilusão só existe para vós; ele sabe muito bem que ele não a é. Quanto às sensibilidades diversas, que se concertam entre si para obter o maior efeito possível, que se afinam, que se enfraquecem, que se fortalecem, que se matizam para formar um todo que seja um só, isso me faz rir. Insisto portanto, e digo: “É a extrema sensibilidade que faz os atores medíocres: é a sensibilidade medíocre que faz a multidão dos maus atores; e é a falta absoluta de sensibilidade que prepara os atores sublimes”. As lágrimas do comediante lhe descem de seu cérebro; as do homem sensível lhe sobem do coração: são as entranhas que perturbam desmesuradamente a cabeça do homem sensível; é a cabeça do comediante que leva às vezes passageira perturbação às suas entranhas; ele chora como um padre incrédulo que prega a Paixão; como um sedutor aos joelhos de uma mulher que ele não ama, mas que deseja enganar; como um mendigo na rua ou à porta de uma igreja, que vos injuria quando desespera de vos comover; ou como uma cortesã que nada sente, mas que desmaia em vossos braços. Jamais refletistes sobre a diferença entre as lágrimas provocadas por um acontecimento trágico e as lágrimas provocadas por um relato patético? Ouve-se contar uma bela coisa: pouco a pouco a cabeça se baralha, as entranhas se comovem e as lágrimas rolam. Ao contrário, à vista de um acidente trágico, o objeto, a sensação e o efeito se tocam; num instante, as entranhas se comovem, solta-se um grito, a cabeça se perde, e as lágrimas correm; estas vêm subitamente; as outras são trazidas. Eis a vantagem de um lance teatral natural e verdadeiro em uma cena eloquente, ele realiza bruscamente o que a cena faz esperar; mas sua ilusão é muito mais difícil de produzir; um incidente falso, mal representado, a destrói. Os acentos são melhor imitados que os movimentos, mas os movimentos impressionam mais violentamente. Eis o fundamento de uma lei para a qual não creio haver exceção, é a de solucionar por uma ação e não por um relato, sob pena de ser frio. Pois bem, nada tendes a objetar-me? Eu vos ouço; procedeis a um relato em sociedade; vossas entranhas se comovem, vossa voz se entrecorta, chorais. Vós sentistes, dizeis, e sentistes mui vivamente. Convenho; mas vos preparastes para isso? Não. Faláveis em versos? Não. Entretanto, arrastastes, espantastes, tocastes, produzistes grande efeito. É verdade. Mas transportai ao teatro vosso tom familiar, vossa expressão simples, vosso porte doméstico, vosso gesto natural e vereis quão pobre e fraco sereis. Em vão derramareis lágrimas, sereis ridículo, as pessoas rirão. Não será uma tragédia, mas uma farsa trágica que representareis. Credes que as cenas de Corneille, de Racine, de Voltaire e mesmo de Shakespeare possam ser recitadas com vossa voz de conversação e com o tom que adotais ao canto de vossa lareira? Não mais do que a história do canto de vossa lareira com a ênfase e a abertura de boca do teatro. SEGUNDO — É porque talvez Racine e Corneille, por grandes homens que fossem, nunca fizeram nada que valha. PRIMEIRO — Que blasfêmia! Quem ousaria proferi-la? Quem ousaria aplaudi-la? As coisas familiares de Corneille não podem sequer ser ditas em tom familiar. Mas uma experiência que, por certo, repetistes cem vezes, é que no fim de vosso relato, no meio da perturbação e da emoção que lançastes em vosso pequeno auditório de salão, sobrevém uma nova personagem cuja curiosidade cumpre satisfazer. Vós não podeis mais fazê-lo, vossa alma está esgotada, não vos resta nem sensibilidade, nem calor, nem lágrimas. Por que não experimenta o ator a mesma prostração? É que há de fato diferença entre o interesse que assume um conto de pura invenção e o interesse que vos inspira o infortúnio de vosso vizinho. Sois Cina? Fostes alguma vez Cleópatra, Mérope, Agripina? Que vos importa essa gente? A Cleópatra, a Mérope, a Agripina, o Cina do teatro são mesmo personagens históricas? Não. São fantasmas imaginários da poesia; digo muito; são espectros do feitio particular deste ou daquele poeta. Deixai essa espécie de hipogrifos na cena com seus movimentos, seu comportamento e seus gritos; figurariam mal na história: provocariam gargalhadas em um círculo ou outra reunião da sociedade. As pessoas se perguntariam no ouvido: Será que está delirando? De onde vem esse Dom Quixote? Onde é que se fazem dessas histórias? Qual é o planeta em que se fala assim? SEGUNDO — Mas por que não se revoltam no teatro? PRIMEIRO — É que aí elas existem por convenção. É uma fórmula dada pelo velho Ésquilo; é um protocolo que data de três mil anos. SEGUNDO — E esse protocolo vai durar ainda muito tempo? PRIMEIRO — Eu o ignoro. Tudo o que sei é que nos afastamos dele à medida que nos aproximamos de nosso século e de nosso país. Conheceis uma situação mais semelhante à de Agamenon, na primeira cena de Ifigênia, do que a situação de Henrique IV, quando, obsedado por terrores que eram mais do que fundados, dizia a seus familiares: “Eles me matarão, nada é mais certo; eles me matarão...” Suponde que esse excelente homem, esse grande e infeliz monarca, atormentado à noite por tal pressentimento funesto, se levante e vá bater à porta de Sully, seu ministro e amigo; credes que houvesse um poeta bastante absurdo para levar Henrique a dizer: Sim, é Henrique, é teu rei que te desperta. Vem, reconhece a voz que chega a teu ouvido... e levar Sully a responder: Sois vós mesmo, senhor! Que importante necessidade Vos fez preceder a aurora de tão longe? Apenas uma fraca luz vos ilumina e me guia, Vossos olhos só e os meus estão abertos! SEGUNDO — Era talvez esta a verdadeira linguagem de Agamenon. PRIMEIRO — Não mais do que a de Henrique IV. É a de Homero, é a de Racine, é a da poesia; e essa linguagem pomposa não pode ser empregada senão por seres desconhecidos, e falada por bocas poéticas com um tom poético. Refleti um momento sobre o que se chama no teatro ser verdadeiro. Será mostrar as coisas como elas são na natureza? De forma nenhuma. O verdadeiro neste sentido seria apenas o comum. O que é pois o verdadeiro do palco? É a conformidade das ações, dos discursos, da figura, da voz, do movimento, do gesto, com um modelo ideal imaginado pelo poeta, e muitas vezes exagerado pelo comediante. Eis o maravilhoso. Esse modelo não influi somente no tom; modifica até o passo, até a postura. Daí vem que o comediante na rua ou na cena são dois personagens tão diferentes, que mal se consegue reconhecê-los. A primeira vez que vi Mlle Clairon em casa dela, exclamei com toda a naturalidade: “Ah! senhorita, eu vos julgava mais alta de uma cabeça inteira”. Uma mulher infeliz, e verdadeiramente infeliz, chora e não vos comove em nada: pior ainda, um traço ligeiro que a desfigura vos faz rir; é que um acento que lhe é próprio desentoa a vosso ouvido e vos fere; é que um movimento que lhe é habitual vos mostra essa dor ignóbil e enfadonha; é que as paixões exageradas são quase todas sujeitas a trejeitos que o artista sem gosto copia servilmente, mas que o grande artista evita. Nós queremos que, no acme dos tormentos, o homem guarde o caráter de homem, a dignidade de sua espécie. Qual é o efeito desse esforço heroico? Distrair da dor e temperá-la. Nós queremos que essa mulher caia com decência, com delicadeza, e que seu herói morra como o gladiador antigo, no meio da arena, com os aplausos do circo, com graça, com nobreza, numa atitude elegante e pitoresca. Quem é que satisfará nossa esperança? Será o atleta que a dor subjuga e que a sensibilidade descompõe? Ou o atleta academizado que se domina e pratica as lições da ginástica ao render o último suspiro? O gladiador antigo, como um grande comediante, e um grande comediante, assim como o gladiador antigo, não morrem como se morre no leito, mas são obrigados a nos representar outra morte para nos agradar, e o espectador delicado sentiria que a verdade nua, a ação despida de qualquer apresto, seria mesquinha e haveria de contrastar com a poesia do resto. Não que a natureza não tenha seus momentos sublimes: mas penso que, se há alguém seguro de apreender e conservar sua sublimidade, é aquele que os tiver pressentido por imaginação ou por gênio, e que os representar com sangue-frio. Entretanto, eu não negaria que não haja aí uma espécie de mobilidade de entranhas adquirida ou factícia; mas, se perguntardes minha opinião, julgo-a quase tão perigosa quanto a sensibilidade natural. Ela deve conduzir pouco a pouco o ator à maneira e à monotonia. É um elemento contrário à diversidade das funções de um grande comediante; este é amiúde obrigado a despojar-se dela, e tal renúncia só é possível a uma cabeça de ferro. Contudo, mais valeria, para a facilidade e o êxito dos estudos, para a universalidade do talento e a perfeição do desempenho, se não precisasse cometer essa incompreensível distração de si para consigo, cuja extrema dificuldade, ao limitar cada comediante a um só papel, condena as companhias a serem muito numerosas, ou quase todas as peças a serem mal representadas, a menos que se inverta a ordem das coisas, e que as peças se façam para os atores, que, me parece, deveriam muito ao contrário ser feitos para as peças. SEGUNDO — Mas se uma multidão de homens agrupados na rua por alguma catástrofe vem exibir subitamente, e cada um à sua maneira, sua sensibilidade natural, sem se haver combinado, criarão um espetáculo maravilhoso, mil modelos precisos para a escultura, a pintura, a música e a poesia. PRIMEIRO — É verdade. Mas esse espetáculo poderia comparar-se ao que resultaria de uma combinação bem concebida, dessa harmonia que o artista lhe infundiria quando o transportasse da praça à cena ou à tela? Se vós pretendeis que sim, qual é, pois, replicarei eu, essa tão gabada magia da arte, se se reduz a estragar o que a natureza bruta e um arranjo fortuito realizaram melhor do que ela? Negais que se embeleza a natureza? Nunca elogiastes uma mulher dizendo que era bela como uma Virgem de Rafael? À vista de uma bela paisagem, não exclamastes que era romanesca? Além disso, vós me falais de uma coisa real, e eu vos falo de uma imitação; vós me falais de um instante fugaz da natureza, e eu vos falo de uma obra de arte, projetada, interligada, que tem seus progressos e sua duração. Tomai cada um desses atores, fazei variar a cena na rua como no teatro, e mostrai-me vossos personagens sucessivamente, isolados, dois a dois, três a três; abandonai-os a seus próprios movimentos; que sejam senhores absolutos de suas ações, e vereis a estranha cacofonia que daí resultará. A fim de evitar esse defeito, fazeis com que ensaiem juntos. Adeus então à sensibilidade natural deles, e tanto melhor. Ocorre com o espetáculo o mesmo que com uma sociedade bem ordenada, onde cada um sacrifica parte de seus direitos para o bem do conjunto e do todo. Quem apreciará melhor a medida desse sacrifício? Será o entusiasta? O fanático? Não, por certo. Na sociedade, será o homem justo; no teatro, o comediante que tiver a cabeça fria. Vossa cena de rua está para a cena dramática como uma horda de selvagens para uma assembleia de homens civilizados. É aqui o lugar de vos falar da pérfida influência de um parceiro medíocre sobre um excelente comediante. Este concebeu com grandeza, mas será forçado a renunciar a seu modelo ideal a fim de colocá-lo ao nível do pobre-diabo com o qual está contracenando. Passa-se então com o estudo e o bom julgamento o mesmo que se faz instintivamente no passeio ou ao pé do fogo: aquele que fala abaixa o tom do interlocutor. Ou se preferis outra comparação, é como no uíste, onde perdeis uma porção de vossa habilidade, se não podeis contar com vosso jogador. Há mais: Mlle Clairon vos dirá, quando quiserdes, que Le Kain, por malvadez, a tornava má ou medíocre, à vontade; e que, em represália, ela o expunha às vezes aos apupos. O que são portanto dois comediantes que se sustentam mutuamente? Duas personagens cujos modelos apresentam, guardadas as proporções, ou a igualdade, ou a subordinação que convêm às circunstâncias em que o poeta as situou, sem que uma seja demasiado forte ou demasiado fraca; e, para salvar essa dissonância, o forte elevará raramente o fraco à sua altura; mas, por reflexão, descerá à pequeneza deste. E sabeis qual o objeto desses ensaios tão múltiplos? Estabelecer um equilíbrio entre os talentos diversos dos atores, de maneira que daí resulte uma ação geral que seja una; e quando o orgulho de um deles se recusa a esse equilíbrio, é sempre à custa da perfeição do todo, em detrimento de vosso prazer; pois é raro que o excelente de um só vos indenize da mediocridade dos outros, que ele ressalta. Vi por vezes a personalidade de um grande ator punida; é quando o público decretava tolamente que ele fora exagerado, em vez de sentir que seu parceiro era fraco. Agora sois poeta: tendes uma peça para ser representada e eu vos deixo a escolha ou de atores de profundo julgamento e de cabeça fria, ou de atores sensíveis. Mas, antes de vos decidirdes, permiti que eu vos faça uma pergunta. Em que idade se é grande comediante? É na idade em que se está cheio de fogo, em que o sangue ferve nas veias, em que o mais ligeiro choque leva a perturbação ao fundo das entranhas, em que o espírito se inflama à menor centelha? Parece-me que não. Aquele que é comediante marcado pela natureza prima em sua arte apenas quando a longa experiência é adquirida, quando o ímpeto das paixões decaiu, quando a cabeça está calma e quando a alma se domina. O vinho da melhor qualidade é áspero e mosto quando fermenta; é por uma longa estada no tonel que se torna generoso. Cícero, Sêneca e Plutarco representam para mim as três idades do homem que compõe: Cícero não passa muitas vezes de um fogo de palha que me rejubila os olhos; Sêneca, um fogo de sarmento que os fere; ao passo que, se remexo as cinzas do velho Plutarco, descubro as grandes brasas de um braseiro que me aquece docemente. Baron interpretava, com sessenta anos passados, o conde de Essex, Xifarés, Britânico, e os interpretava bem. Mlle Gaussin encantava, em O Oráculo e A Pupila, aos cinquenta anos. SEGUNDO — Ela não tinha quase a aparência de seu papel. PRIMEIRO — É verdade; e este é talvez um dos obstáculos insuperáveis para a excelência de um espetáculo. Cumpre ter passeado longos anos sobre o palco, e o papel exige às vezes a primeira juventude. Se se encontrou uma atriz de dezessete anos, capaz de desempenhar o papel de Mônima, de Dido, de Pulquéria, de Hermíone, trata-se de um prodígio que não mais se tornará a ver. Entretanto, um velho comediante só é ridículo quando as forças o abandonaram inteiramente, ou quando a superioridade de seu desempenho não salva o contraste entre sua velhice e seu papel. Acontece no teatro como na sociedade, onde não se censura a galanteria numa mulher a não ser quando ela não possui nem bastantes talentos, nem bastantes outras virtudes para cobrir um vício. Em nossos dias, Mlle Clairon e Molé representaram, ao estrear, quase como autômatos, a seguir mostraram-se verdadeiros comediantes. Como se produziu isso? Acaso a alma, a sensibilidade e as entranhas lhes vieram somente à medida que avançavam em idade? Há pouco, após dez anos de ausência do teatro, Mlle Clairon quis reaparecer; se representou mediocremente, é porque perdera a alma, a sensibilidade, as entranhas? De modo algum; perdeu antes a memória de seus papéis. Invoco o testemunho do futuro. SEGUNDO — Como, acreditais que ela se nos apresentará de novo? PRIMEIRO — Ou que perecerá de tédio; pois o que quereis que se ponha no lugar do aplauso público e de uma grande paixão? Se tal ator, se tal atriz estivessem profundamente compenetrados, como se supõe, dizei-me se um pensaria em lançar um olhar para os camarotes e o outro a dirigir um sorriso aos bastidores, falando apenas à plateia, e se se iria aos foyers interromper as risadas imoderadas de um terceiro, e adverti-lo de que é hora de vir apunhalar-se? Mas sinto vontade de vos esboçar uma cena entre um comediante e sua mulher, que se detestavam; cena de amantes ternos e apaixonados; cena interpretada publicamente no palco, tal como vou apresentá-la e talvez um pouco melhor; cena em que dois atores pareceram mais do que nunca estar em seus papéis; cena em que arrancaram os aplausos contínuos da plateia e dos camarotes; cena que nossas palmas e nossos gritos de admiração interromperam dez vezes. É a terceira do quarto ato do Despeito Amoroso, de Molière, que foi um triunfo para eles. O comediante Erasto, amante de Lucila. Lucila, amante de Erasto e mulher do comediante. O COMEDIANTE Não, não, não acrediteis, senhora, Que eu volte a falar-vos de minha flama. A COMEDIANTE — É o que vos aconselho. Está tudo acabado. — Assim espero. Quero curar-me, e bem reconheço O que de vosso coração possuiu o meu! — Mais do que mereceis. Uma cólera tão constante pela sombra de uma ofensa — Vós, me ofenderdes! Não vos dou esta honra. Esclareceu-me muito bem sobre vossa indiferença; E devo mostrar-vos que os traços do desprezo — O mais profundo São sensíveis sobretudo aos espíritos generosos. — Sim, aos generosos. Eu o confessarei, que nos vossos os meus olhos observavam Encantos que em todos os outros não encontravam. — Não por falta de tê-los visto. E o enlevo em que eu estava de minhas algemas Haveria de preferi-las a ofertados diademas. — Fizestes melhor negócio. Eu vivia todo em vós; — Isso é falso, e vós mentistes. E, eu confessarei mesmo, Talvez que apesar de tudo sentirei, embora ofendido, Bastante pena por delas me haver desprendido. — Seria deplorável. É possível que, apesar da cura que experimenta, Minha alma sangrará por muito tempo desta chaga, — Nada temais; a gangrena está aí mesmo. E que, liberta de um jugo que fazia todo meu bem, Terei de resolver-me a nunca mais amar ninguém. — Sereis pago na mesma moeda. Mas enfim não importa; e já que o ódio vos induz A expulsar um coração tantas vezes quantas o amor vo-lo reconduz, E este o último dos molesios seguidos Que sofrereis de meus anseios repelidos. A COMEDIANTE Vós podeis fazer aos meus a graça toda inteira, Senhor, e me poupar ainda esta derradeira. O COMEDIANTE — Meu coração, sois uma insolente, e vos arrependereis disso. Pois bem, senhora, eles hão de ficar satisfeitos. Eu rompo convosco, e rompo para sempre, Uma vez que o desejais. Que eu venha a perecer, Se a vontade de vos falar de novo aparecer. A COMEDIANTE Tanto melhor, é fazer-me um favor. O COMEDIANTE Não, não, não tenhais temor. A COMEDIANTE — Eu não vos temo. Que eu falte à palavra; tivesse eu um coração fraco, A ponto de não poder dele apagar vossa imagem, Crede que nunca tereis essa vantagem. O COMEDIANTE — A desgraça, quereis dizer, De me ver voltar outra vez. A COMEDIANTE Seria realmente em vão. O COMEDIANTE — Minha amiga, sois uma rematada rameira, a quem ensinarei a falar. Eu mesmo com cem punhaladas me cortaria o peito, A COMEDIANTE — Prouvesse a Deus! Se jamais eu cometesse esse insigne aviltamento. O COMEDIANTE — Por que não este, após tantos outros? Se vos venci, após esse indigno tratamento. A COMEDIANTE Seja; não falemos mais disso. E assim por diante. Após essa dupla cena, uma de amantes e outra de esposos, quando Erasto reconduzia sua amante Lucila para os bastidores, ele lhe apertava o braço com uma violência capaz de arrancar a carne à sua querida mulher, e respondia a seus gritos com as palavras mais insultantes e mais amargas. SEGUNDO — Se eu ouvisse essas duas cenas simultâneas, creio que, jamais em minha vida, tornaria a pôr o pé no espetáculo. PRIMEIRO — Se pretendeis que esse ator e essa atriz sentiram, perguntar-vos-ei se foi na cena dos amantes, ou na cena dos esposos, ou se em ambas. Mas escutai a cena seguinte entre a mesma comediante e outro ator, seu amante. Enquanto o amante fala, a comediante diz de seu marido: “É um indigno, ele me chamou...; não me atreveria a vos repetir”. Enquanto ela fala, o amante replica-lhe: “Não estais habituada a isso?...” E assim de copia em copia. “Não cearemos esta noite? — Eu bem que gostaria; mas como escapar? — É vosso problema. — E se ele vier a saber? — Nada mudará, de qualquer jeito, e nós teremos à nossa frente uma doce noite. — Quem convidaremos? — Quem quiserdes. — Mas primeiro o cavalheiro, que tem fundos. — A propósito do cavalheiro, sabeis que dependeria só de mim sentir ciúmes dele? — E só de mim que tivésseis razão?” Assim, esses seres tão sensíveis vos pareciam estar inteiramente na cena elevada que ouvíeis, quando na verdade estavam apenas na cena baixa, que não ouvíeis; e exclamastes: “É preciso confessar que essa mulher é uma atriz encantadora; que ninguém sabe escutar como ela, e que representa com uma inteligência, uma graça, um interesse, uma finura e uma sensibilidade pouco comum...” E eu ria de vossas exclamações. Entretanto, a atriz engana o marido com outro ator; este ator, com o cavalheiro; e o cavalheiro, com um terceiro, que o cavalheiro surpreende nos braços dela. Este planejou uma grande vingança. Ele se postara nos balcões, nos degraus mais baixos. (O conde de Lauraguais não desobstruíra ainda nosso teatro.) Aí, esperava ele desconcertar a infiel com sua presença e com seus olhares desdenhosos, perturbá-la e expô-la aos apupos da plateia. A peça principia; a traidora aparece; ela percebe o cavalheiro; e, sem se abalar no desempenho, diz-lhe sorrindo: “Apre! o eterno zangado que se irrita por nada”. O cavalheiro sorri, por seu turno. A atriz continua: “Vireis hoje à noite?” Ele se cala. Ela acrescenta: “Acabemos com essa briga sem graça e fazei avançar vosso coche...” E sabeis em que cena isso era intercalado? Numa das mais comoventes de La Chaussée, em que a comediante soluçava e nos fazia derramar lágrimas ardentes. Isso vos confunde; no entanto, é a estrita verdade. SEGUNDO — É de me desgostar do teatro. PRIMEIRO — E por quê? Se essa gente não fosse capaz de semelhantes proezas, então sim é que não se deveria ir. O que irei vos contar, eu mesmo presenciei. Garrick mete a cabeça entre os dois batentes de uma porta e, no intervalo de quatro a cinco segundos, seu rosto passa sucessivamente da louca alegria à alegria moderada, desta alegria à tranquilidade, da tranquilidade à surpresa, da surpresa ao espanto, do espanto à tristeza, da tristeza ao abatimento, do abatimento ao pavor, do pavor ao horror, do horror ao desespero, e sobe deste último degrau àquele de onde descera. Será que sua alma pôde experimentar todas essas sensações e executar, de acordo com o seu rosto, essa espécie de gama? Não creio absolutamente, nem vós tampouco. Se pedirdes a esse homem célebre, o qual só ele mereceria tanto que se fizesse a viagem à Inglaterra, como todos os restos de Roma merecem que se faça a viagem à Itália; se lhe pedirdes, digo, a cena do Pequeno Pasteleiro, ele a interpretará; se lhe pedirdes logo em seguida a cena de Hamlet, ele a interpretará, igualmente pronto a chorar a queda de suas massinhas e a seguir no ar a trajetória de um punhal. Acaso a gente ri, acaso chora à discrição? O que a gente faz é uma careta mais ou menos fiel, mais ou menos enganadora, conforme se é ou não se é Garrick. Eu zombo às vezes, e até com bastante verdade, a fim de iludir os homens do mundo, mesmo os mais finos. Quando me desolo pela morte simulada de minha irmã, na cena com o advogado normando; quando, na cena com o primeiro recebedor da marinha, eu me acuso por ter feito um filho à mulher de um capitão de navio, apresento realmente o ar de quem sente dor e vergonha: mas estou aflito? Estou envergonhado? Não mais em minha pequena comédia do que na sociedade, onde executei esses dois papéis antes de introduzi-los numa obra de teatro. O que é pois um grande comediante? Um grande escarnecedor trágico ou cômico, a quem o poeta ditou o discurso. Sedaine apresenta O Filósofo sem o Saber. Interessei-me mais vivamente do que ele pelo êxito da peça; o ciúme de talentos é um vício que me é estranho, já os tenho suficientes sem este: invoco o testemunho de todos os meus confrades em literatura, quando se dignaram por vezes me consultar sobre suas obras, se não fiz tudo o que dependia de mim a fim de responder dignamente à marca honrosa de sua estima. O Filósofo sem o Saber não se firma na primeira nem na segunda representação, e eu fico muito aflito; na terceira, vai às nuvens, e eu sou tomado de alegria. Na manhã seguinte, atiro-me num fiacre, corro atrás de Sedaine; era inverno, fazia o mais rigoroso frio; vou a toda parte onde espero encontrá-lo. Informam-me que ele está no fim do faubourg Saint-Antoine, mando que me conduzam até lá. Eu o abordo; lanço meus braços em torno de seu pescoço; a voz me falta, e as lágrimas me correm sobre as faces. Eis o homem sensível e medíocre. Sedaine, imóvel e frio, me fita e me diz: “Ah! Senhor Diderot, como sois admirável!” Eis o observador e o homem de gênio. Este fato, eu o contei um dia à mesa, em casa de um homem cujos talentos superiores o destinavam a ocupar o lugar mais importante do Estado, em casa do Sr. Necker; havia um grande número de homens de letras, entre os quais Marmontel, que amo e a quem sou caro. Este me disse ironicamente: “Vereis que, quando Voltaire se desola ao simples relato de um incidente patético e quando Sedaine guarda seu sangue-frio à vista de um amigo que se desfaz em lágrimas, é Voltaire que é o homem comum e Sedaine o homem de gênio!” Esta apóstrofe me desconcerta e me reduz ao silêncio, porque o homem sensível, como eu, que está todo inteiro no que lhe objetam, perde a cabeça e não se reencontra senão ao pé da escada. Um outro, frio e senhor de si mesmo, responderia a Marmontel: “Vossa reflexão ficaria melhor em outra boca que não a vossa, porque vós não sentis mais do que Sedaine, e porque vós também fazeis coisas muito belas, e porque, seguindo a mesma carreira que ele, podeis abandonar a vosso vizinho o cuidado de apreciar imparcialmente seu mérito. Mas, sem querer preferir Sedaine a Voltaire, nem Voltaire a Sedaine, poderíeis dizer-me o que teria saído da cabeça do autor do Filósofo sem o Saber, do Desertor e de Paris Salva, se, em vez de passar trinta e cinco anos de sua vida a amassar o estaque e a cortar a pedra, empregasse todo o tempo, como Voltaire, como vós e eu, em ler e em meditar Homero, Virgílio, Tasso, Cícero, Demóstenes e Tácito? Nós nunca poderemos ver como ele, e ele teria aprendido a falar como nós. Eu o encaro como a um dos descendentes de Shakespeare; este Shakespeare que não compararei nem ao Apoio do Belvedere, nem ao Gladiador, nem a Antínoo, nem ao Hércules de Glícon, mas sim ao nosso São Cristóvão da Notre-Dame, colosso informe grosseiramente esculpido, mas entre as pernas do qual passaríamos todos sem que nossa fronte lhe tocasse as partes vergonhosas”. Mas outro episódio em que eu vos mostrarei uma personagem tornada, em um momento, vulgar e tola por sua sensibilidade, e, no momento seguinte, sublime pelo sangue-frio que sucedeu à sensibilidade abafada, é o seguinte: Um literato, cujo nome calarei, caíra na extrema indigência. Tinha um irmão, teologal e rico. Perguntei ao indigente por que é que o irmão não o socorria. “É que”, respondeu-me, “agi muito mal com ele.” Obtenho então dele a permissão de ir procurar o senhor teologal. Vou. Anunciam-me; entro. Digo ao teologal que desejo falar-lhe do irmão. Ele me toma bruscamente pela mão, faz-me sentar e me observa que cabe a um homem sensato conhecer aquele cuja causa advoga; depois, apostrofando-me com energia: “Conheceis meu irmão?” — “Assim creio.” — “Estais ao par do seu procedimento para comigo?” — “Assim creio.” — “Vós o credes? Sabeis então? ...” E eis que meu teologal me recita, com rapidez e veemência surpreendentes, uma série de ações, umas mais atrozes, mais revoltantes do que as outras. Minha cabeça se baralha, sinto-me acabrunhado; perco a coragem de defender um monstro tão abominável como aquele que ele me pinta. Felizmente, meu teologal, um pouco prolixo em sua filípica, deu-me tempo de recompor-me; pouco a pouco, o homem sensível retirou-se e cedeu lugar ao homem eloquente, pois ousaria dizer que o fui na ocasião. “Senhor”, disse friamente ao teologal, “vosso irmão agiu pior ainda, e eu vos louvo por me ocultar o mais gritante de seus crimes.” — “Não oculto nada.” — “Poderíeis acrescentar a tudo o que me dissestes que uma noite, quando saístes de vossa casa para irdes às matinas, ele vos agarrou pela garganta, e que, puxando uma faca que mantinha escondida debaixo da roupa, esteve a ponto de metê-la em vosso peito.” — “Ele é bem capaz disso; mas, se não o acusei disso, é porque não é verdade...” E eu, erguendo-me subitamente, e cravando em meu teologal um olhar firme e severo, exclamei com voz atroadora, com toda a veemência e a ênfase da indignação: “E mesmo que fosse verdade, ainda assim não seria necessário dar pão a vosso irmão?” O teologal, esmagado, consternado, confundido, permanece mudo, anda de um lado para o outro, volta a mim e me concede uma pensão anual para o irmão. Será no momento em que acabais de perder vosso amigo ou vossa amante que comporeis um poema sobre sua morte? Não. Ai de quem goza então de seu talento! É quando a grande dor passou, quando a extrema sensibilidade está amortecida, quando estamos longe da catástrofe, quando a alma está apaziguada, que nos lembramos da ventura eclipsada, que somos capazes de apreciar a perda sofrida, que a memória se reúne à imaginação, uma para descrever e outra para exagerar a doçura de um tempo passado; que nos dominamos e que falamos bem. Dizem que se chora, mas ninguém chora quando persegue um epíteto enérgico que se recusa; dizem que se chora, mas ninguém chora quando se ocupa a tornar seu verso harmonioso: ou se as lágrimas correm, a pena tomba das mãos, a gente se entrega ao sentimento e cessa de compô-lo. Mas há prazeres violentos assim como penas profundas; são mudos. Um amigo terno e sensível revê o amigo que perdera por força de uma longa ausência; este reaparece em um momento inesperado, imediatamente o coração do primeiro se perturba: corre, abraça, quer falar; não consegue: tartamudeia palavras entrecortadas, não sabe o que diz, não ouve nada do que se lhe responde; se pudesse perceber que seu delírio não é partilhado, como sofreria! Julgai, pela verdade desta pintura, da falsidade dessas entrevistas teatrais onde dois amigos dispõem de tanto espírito e se dominam tão bem. Que não vos direi eu dessas insípidas e eloquentes disputas acerca de quem morrerá ou, melhor, acerca de quem não morrerá, se este texto, sobre o qual eu nunca terminaria, não nos afastasse de nosso tema? É o bastante para pessoas de grande e verdadeiro gosto; o que eu adicionasse nada ensinaria aos outros. Mas quem salvará esses absurdos tão comuns no teatro? O comediante, e qual comediante? Há mil circunstâncias para uma em que a sensibilidade é tão prejudicial na sociedade quanto no palco. Eis dois amantes, ambos têm uma declaração a fazer. Qual deles se sairá melhor? Eu é que não. Eu me lembro, eu me aproximava do objeto amado todo trêmulo; o coração me batia, minhas ideias se baralhavam, minha voz se embargava, eu estropiava tudo o que dizia; respondia não quando devia responder sim; cometia mil asneiras, inépcias sem fim; era ridículo da cabeça aos pés, percebia-o e me tornava tanto mais ridículo. Ao passo que, diante de meus olhos, um rival alegre, agradável e ligeiro, dominando-se, dispondo de si mesmo, não perdendo nenhuma ocasião de elogiar, e de elogiar finamente, divertia, agradava, era feliz; solicitava uma mão que lhe abandonavam, segurava-a às vezes sem que a solicitasse, beijava-a, beijava-a ainda, e eu, recolhido em um canto, desviando meus olhares de um espetáculo que me irritava, abafando meus suspiros, fazendo estalar meus dedos à força de cerrar o punho, prostrado de melancolia, coberto de um suor frio, eu não conseguia nem mostrar, nem ocultar minha aflição. Já se disse que o amor, que tira o espírito aos que o possuem, concede-o aos que não o possuem; isto significa, em outros termos, que torna uns sensíveis e tolos, e outros frios e audaciosos. O homem sensível obedece aos impulsos da natureza e não expressa precisamente senão o grito de seu coração; no momento em que modera ou força esse grito, não é mais ele, é um comediante que representa. O grande comediante observa os fenômenos; o homem sensível serve-lhe de modelo, ele o medita, e encontra, por reflexão, o que cumpre adicionar ou subtrair para o melhor. E, ainda assim, fatos segundo razões. Na primeira representação de Inês de Castro, na passagem em que os infantes aparecem, a plateia pôs-se a rir; Mlle Duclos, que fazia a Inês, indignada, disse à plateia: “Ri, pois, imbecil plateia, na mais bela passagem da peça”. A plateia ouviu, conteve-se; a atriz retomou o papel, e suas lágrimas e as do espectador rolaram. Como então! passa-se e repassa-se assim de um profundo a outro sentimento profundo, da dor à indignação, da indignação à dor? Eu não o concebo; mas o que concebo muito bem é que a indignação de Mlle Duclos era real e sua dor simulada. Quinault-Dufresne interpreta o papel de Severo em Polieucto. Este foi enviado pelo Imperador Décio para perseguir os cristãos. Confia a um amigo seus sentimentos secretos sobre a seita caluniada. O senso comum exigia que tal confidência, que podia custar-lhe o favor do príncipe, a dignidade, a fortuna, a liberdade e quiçá a vida, fosse feita em voz baixa. A plateia grita-lhe: “Mais alto.” Ele replica à plateia: “E vós, senhores, mais baixo”. Se fosse realmente Severo, reconverter-se-ia tão prestamente em Quinault? Não, eu vos digo, não. Só o homem que se domina, como sem dúvida ele se dominava, o ator raro, o comediante por excelência, pode assim depor e retomar sua máscara. Le Kain-Ninias desce ao túmulo do pai, esgana aí a mãe; sai com mãos ensanguentadas. Transborda de horror, seus membros tremem, seus olhos estão alucinados, os cabelos parecem eriçar-se-lhe sobre a cabeça. Sentis os vossos se arrepiar, o terror vos assalta, ficais tão perdido como ele. Entretanto, Le Kain-Ninias empurra com o pé para o bastidor um pingente de diamante que se desprendera da orelha de uma atriz. E esse ator sente? Não é possível. Direis que é mau ator? Não creio de modo algum. O que é pois Le Kain-Ninias? É um homem frio que não sente nada, mas que figura superiormente a sensibilidade. Debalde bradará: “Onde estou?” Eu lhe respondo: “Onde estás? Sabes muito bem: estás sobre o tablado e empurras com o pé um pingente para os bastidores”. Um ator é tomado de paixão por uma atriz; uma peça os coloca por acaso em cena em um momento de ciúme. A cena ganhará com isso, se o ator for medíocre; perderá, se for comediante; então, o grande comediante tornar-se-á ele próprio e não mais o modelo ideal e sublime que imaginara de um ciumento. Prova de que então o ator e a atriz se rebaixam um e outro à vida comum é que, se conservassem a grandiloquência, rir-se-iam na cara; o ciúme empolado e trágico não lhes pareceria muitas vezes senão uma farsa do seu. SEGUNDO — Entretanto, haverá verdades de natureza. PRIMEIRO — Como há na estátua do escultor que traduziu fielmente um mau modelo. Admiramos tais verdades, mas achamos o todo pobre e desprezível. Digo mais: um meio seguro de representar miúda, mesquinhamente, é representar nosso próprio caráter. Sois um tartufo, um avaro, um misantropo, vós o representareis bem; mas não fareis nada do que o poeta fez; pois ele fez o Tartufo, o Avaro e o Misantropo. SEGUNDO — Que diferença estabeleceis, pois, entre um tartufo e o Tartufo? PRIMEIRO — O preposto Billard é um tartufo, o Abade Grizel é um tartufo, mas não é o Tartufo. O financista Toinard era um avaro, mas não era o Avaro. O Avaro e o Tartufo foram feitos segundo todos os Toinards e todos os Grizels do mundo; são seus traços mais gerais e mais marcantes, mas não o retrato exato de nenhum; por isso ninguém se reconhece neles. As comédias de verve e mesmo de caracteres são exageradas. O gracejo de sociedade é uma espuma ligeira que se evapora no palco; o gracejo de teatro é uma arma cortante que feriria na sociedade. Não se tem com seres imaginários o comedimento que se deve a seres reais. A sátira é de um tartufo, e a comédia é do Tartufo. A sátira persegue um vicioso, a comédia persegue um vício. Se houvesse existido apenas uma ou duas Preciosas Ridículas, poder-se-ia fazer uma sátira delas, mas não uma comédia. Ide à casa de La Grenée, pedi-lhe a Pintura, e ele julgará ter satisfeito vosso pedido, quando houver colocado sobre a tela uma mulher diante de um cavalete, com a paleta metida no polegar e o pincel na mão. Pedi-lhe a Filosofia, e ele julgará tê-la representado, quando diante de uma secretária, de noite, ao clarão de uma candeia, houver apoiado sobre o cotovelo uma mulher em roupão, desgrenhada e pensativa, que lê ou medita. Pedi-lhe a Poesia, e ele pintará a mesma mulher, cuja cabeça cingirá de um laurel, e em cuja mão colocará um rolo. A Música será ainda a mesma mulher, com uma lira em lugar do rolo. Pedi-lhe a Beleza, pedi mesmo essa figura a outro mais hábil do que ele, ou eu me engano muito, ou este último se persuadirá de que exigis de sua arte apenas a figura de uma bela mulher. Vosso ator e este pintor incidem ambos no mesmo defeito, e eu lhe direi: “Vosso quadro, vosso desempenho são apenas retratos de indivíduos muito abaixo da ideia geral que o poeta traçou, e do modelo ideal cuja cópia eu esperava. Vossa vizinha é bela, muito bela, de acordo: mas não é a Beleza. Há tanta distância entre vossa obra e vosso modelo quanto entre vosso modelo e o ideal”. SEGUNDO — Mas esse modelo ideal não será uma quimera? PRIMEIRO — Não. SEGUNDO — Mas, sendo ideal, não existe: ora, nada há no entendimento que não tenha estado na sensação. PRIMEIRO — É certo. Mas tomemos uma arte em sua origem, a escultura, por exemplo. Ela copiou o primeiro modelo que se lhe apresentou. Viu em seguida que havia modelos menos imperfeitos, que preferiu. Corrigiu os defeitos grosseiros, até que, por uma longa sequência de trabalhos, atingiu uma figura que não existia mais na natureza. SEGUNDO — E por quê? PRIMEIRO — Porque é impossível que o desenvolvimento de uma máquina tão complicada como um corpo animal seja regular. Ide às Tulherias ou aos Champs-Elysées num belo dia de festa; considerai todas as mulheres que hão de encher as alamedas, e não deparareis uma única que apresente os dois cantos da boca perfeitamente similares. A Dânae, de Ticiano, é um retrato; o Amor, colocado ao pé de seu leito, é ideal. Em um quadro de Rafael, que passou da galeria do Sr. de Thiers à de Catarina II, o São José é uma natureza comum; a Virgem é uma bela mulher real; o Menino Jesus é ideal. Mas, se quiserdes saber algo mais sobre esses princípios especulativos da arte, eu vos comunicarei meus Salões. SEGUNDO — Ouvi falar deles com louvor por um homem de gosto fino e espírito delicado. PRIMEIRO — O Sr. Suard. SEGUNDO — E por uma mulher que possui tudo o que a pureza de uma alma angélica acrescenta à fineza do gosto. PRIMEIRO — A Sr.a Necker. SEGUNDO — Mas voltemos ao nosso assunto. PRIMEIRO — Consinto, embora prefira louvar a virtude a discutir questões assaz ociosas. SEGUNDO — Quinault-Dufresne, glorioso de caráter, interpretava maravilhosamente o Glorioso. PRIMEIRO — É verdade; mas de onde sabeis que ele interpretava a si mesmo? Ou por que a natureza não teria feito um glorioso muito próximo do limite que separa o belo real do belo ideal, limite sobre o qual se batem as diferentes escolas? SEGUNDO — Não vos entendo. PRIMEIRO — Sou mais claro em meus Salões, onde vos aconselho a ler o trecho sobre a Beleza em geral. Entrementes, dizei-me, Quinault-Dufresne é Orosmano? Não. Entretanto, quem é que o substituiu e o substituirá nesse papel? Era ele o homem de O Preconceito na Moda? Não. Entretanto, com que veracidade não o representava ele! SEGUNDO — A crer em vós, o grande comediante é tudo ou não é nada. PRIMEIRO — E talvez por não ser nada é que é tudo por excelência, não contrariando jamais sua forma particular as formas estranhas que deve assumir. Entre todos os que exerceram a útil e bela profissão de comediante ou de pregador laico, um dos homens mais honestos, um dos homens que mais possuíam a fisionomia, o tom e o porte, o irmão do Diabo Coxo, de Gil Blas, do Bacharel de Salamanca, Montménil... SEGUNDO — O filho de Le Sage, pai comum de toda essa agradável família... PRIMEIRO — Fazia com igual êxito Aristo em A Pupila, Tartufo na comédia do mesmo nome, Mascarilho em As Artimanhas de Escapino, o advogado ou Mr. Guillaume na farsa do Pathelin. SEGUNDO — Eu o vi. PRIMEIRO — E para vosso grande espanto, tinha a máscara desses diferentes rostos. Não era naturalmente, pois a natureza lhe dera apenas a dele; tinha pois as outras da arte. Será que existe uma sensibilidade artificial? Mas seja factícia, seja inata, a sensibilidade não ocorre em todos os papéis. Qual é portanto a qualidade adquirida ou natural que constitui o grande ator no Avaro, no Jogador, no Adulador, no Rabugento, no Médico, a seu pesar, no ser menos sensível e no mais imoral que a poesia haja ainda imaginado, o Burguês Gentil-Homem, o Doente e o Corno imaginários; em Nero, Mitridates, Atreu, Focas, Sertório e em tantos outros caracteres trágicos ou cômicos, onde a sensibilidade é diametralmente oposta ao espírito do papel? A facilidade de conhecer e copiar todas as naturezas. Acreditai-me, não multipliquemos as causas quando uma basta para todos os fenômenos. Ora o poeta sentiu mais fortemente do que o comediante, ora, e com mais frequência talvez, o comediante concebeu mais fortemente que o poeta; e nada é mais verdadeiro do que esta exclamação de Voltaire, ao ouvir Mlle Clairon em uma de suas peças: “Fui realmente eu quem fez isso?” Será que Mlle Clairon a conhece mais que Voltaire? Naquele momento, pelo menos, seu modelo ideal, ao declamar, estava muito além do modelo ideal que o poeta imaginara ao escrever, mas esse modelo ideal não era ela. Qual era, pois, seu talento? O de imaginar um grande fantasma e copiá-lo com inspiração. Imitava o movimento, as ações, os gestos, toda a expressão de um ser muito superior a ela. Encontrara o que Ésquines, recitando uma oração de Demóstenes, nunca conseguiu dar, o mugido da besta. Dizia ele a seus discípulos: “Se isso vos impressiona tão fortemente, o que aconteceria então si audivissetis bestiam mugientem?” O poeta engendrara o animal terrível, Mlle Clairon o fazia mugir. Seria singular abuso das palavras chamar sensibilidade esta facilidade de traduzir todas as naturezas, mesmo as naturezas ferozes. A sensibilidade, conforme a única acepção concedida até agora ao termo, é, parece-me, esta disposição companheira da fraqueza dos órgãos, consequência da mobilidade do diafragma, da vivacidade da imaginação, da delicadeza dos nervos, que inclina alguém a compadecer-se, a fremir, a admirar, a temer, a perturbar-se, a chorar, a desmaiar, a socorrer, a fugir, a gritar, a perder a razão, a exagerar, a desprezar, a desdenhar, a não ter qualquer ideia precisa do verdadeiro, do bom e do belo, a ser injusto, a ser louco. Multiplicai as almas sensíveis e multiplicareis na mesma proporção as boas e más ações de todo gênero, os elogios e as censuras exageradas. Poetas, esforçai-vos por uma nação delicada, vaporosa e sensível; encerrai-vos nas harmoniosas, ternas e tocantes elegias de Racine; ela se salvaria das carnificinas de Shakespeare: estas almas fracas são incapazes de suportar abalos violentos. Guardai-vos realmente de lhes apresentar imagens muito fortes. Mostrai-lhes, se quiserdes. O filho todo enojado com o assassínio do pai E sua cabeça na mão, exigindo o seu salário; mas não ides além. Se ousardes dizer-lhes com Homero: “Aonde vais tu, infeliz? Não sabes pois que é a mim que o céu envia os filhos de pais desafortunados? Tu não receberás os derradeiros abraços de tua mãe; já te vejo estendido sobre a terra, já vejo as aves de rapina, reunidas em torno de teu cadáver, arrancarem-te os olhos da cabeça, batendo as asas de alegria”. Todas as nossas mulheres exclamariam, desviando a cabeça: “Ah! que horror!” Seria bem pior se este discurso, pronunciado por um grande comediante, fosse ainda fortalecido por sua verdadeira declamação. SEGUNDO — Estou tentado a vos interromper a fim de perguntar o que pensais daquele vaso apresentado a Gabrielle de Vergy, que via nele o coração ensanguentado de seu amante. PRIMEIRO — Responder-vos-ei que é preciso ser consequente e que, quando alguém se revolta contra tal espetáculo, não deve suportar que Édipo se mostre com os olhos vazados, e que cumpre expulsar da cena Filoctetes atormentado por seu ferimento, e exalando sua dor por meio de gritos desarticulados. Os antigos tinham, parece-me, outra ideia que nós da tragédia, e esses antigos eram os gregos, eram os atenienses, esse povo tão delicado, que nos deixou em todos os gêneros modelos que as outras nações ainda não igualaram. Ésquilo, Sófocles, Eurípedes não velavam anos inteiros para produzir apenas essas pequenas impressões passageiras que se dissipam na jovialidade de uma ceia. Pretendiam entristecer profundamente; com a sorte dos desgraçados pretendiam não divertir apenas seus concidadãos, mas torná-los melhores. Estavam errados? Estavam com a razão? Para este efeito, punham a correr sobre a cena as Eumênides na trilha do parricida, e conduzidas pelo vapor do sangue que lhes atingia o olfato. Tinham demasiado discernimento para aplaudir tais imbróglios, tais escamoteações de punhais, que são bons somente para crianças. Uma tragédia não é, a meu ver, senão uma bela página histórica que se partilha em certo número de pausas marcadas. O xerife é esperado. Ele aparece. Interroga o senhor da aldeia. Propõe-lhe apostasiar. Este recusa-se. O xerife o condena à morte. Envia-o às masmorras. A filha vem pedir-lhe graça para o pai. O xerife concede-a, mas com uma condição revoltante. O senhor da aldeia é executado. Os habitantes perseguem o xerife. Este foge diante deles. O namorado da filha do senhor o abate com uma punhalada; e o atroz intolerante morre em meio das imprecações. Não é preciso mais a um poeta para compor uma grande obra. Que a filha haja interrogado a mãe sobre o túmulo dela a fim de saber o que deve àquele que lhe deu a vida. Que esteja incerta sobre o sacrifício da honra que lhe exigem. Que, nessa incerteza, mantenha o namorado afastado dela, e se recuse aos discursos de sua paixão. Que obtenha permissão de ver o pai na prisão. Que o pai queira uni-la ao namorado, e que ela não consinta. Que se prostitua. Que, enquanto ela se prostitui, o pai seja executado. Que ignoreis sua prostituição até o momento em que o namorado, vendo-a desolada pela morte do pai, que ele lhe informa, é informado do sacrifício que ela fez para salvá-lo. Que então o xerife, perseguido pelo povo, chegue, e que seja massacrado pelo namorado. Eis uma parte dos pormenores de semelhante tema. SEGUNDO — Uma parte! PRIMEIRO — Sim, uma parte. Será que os jovens enamorados não proporão ao senhor da aldeia a fuga? Será que os habitantes não lhe proporão exterminar o xerife e seus acólitos? Não haverá um sacerdote defensor da tolerância? Será que em meio daquela jornada de dor o namorado permanecerá ocioso? Será que não há ligações a supor entre tais personagens? Será que não há qualquer proveito a tirar dessas ligações? Será que o xerife não pode ter sido o amante da filha do senhor da aldeia? Será que não está de volta com a alma cheia de vingança, quer contra o pai, que o terá expulso do burgo, quer contra a filha,que o terá desdenhado? Quantos incidentes importantes é possível tirar do mais simples tema, quando se tem paciência de meditá-lo! Quanta cor não se lhes pode dar quando se é eloquente! Ninguém é poeta dramático sem ser eloquente. E acreditais que terei falta de espetáculo? Este interrogatório far-se-á com todo o aparato. Deixai-me dispor do meu local e demos um fim a essa digressão. Eu te invoco como testemunha, Roscius inglês, célebre Garrick, tu que, pelo consenso unânime de todas as nações subsistentes, passas pelo primeiro comediante que elas conheceram, rende homenagem à verdade! Não me disseste que, embora sentisses fortemente, tua ação seria fraca, se, qualquer que fosse a paixão ou o caráter que tivesses de interpretar, não soubesses elevar-te pelo pensamento à grandeza de um fantasma homérico ao qual procuravas identificar-te? Quando te objetei que não era, portanto, de acordo contigo mesmo que representavas, confessa tua resposta: não reconheceste que era isso o que evitavas e que parecias tão surpreendente no palco apenas porque mostravas constantemente no espetáculo um ser de imaginação, que não era tu? SEGUNDO — A alma de um grande comediante é formada do elemento sutil com que nosso filósofo preenchia o espaço que não é nem frio, nem quente, nem pesado, nem leve, não assume nenhuma forma determinada e que, sendo igualmente suscetível de todas, não conserva nenhuma. PRIMEIRO — Um grande comediante não é um piano forte, nem uma harpa, nem um cravo, nem um violino, nem um violoncelo; não há acorde que lhe seja próprio; mas toma o acorde e o tom que convém à sua parte, e sabe prestar-se a todos. Nutro elevada ideia do talento de um grande comediante: este homem é raro, tão raro e talvez mais que o grande poeta. Aquele que na sociedade se propõe, e tem, o infeliz talento de agradar a todos não é nada, não tem nada que lhe pertença, que o distinga, que embeveça uns e fatigue outros. Fala sempre, e sempre bem; é um adulador profissional, é um grande cortesão, é um grande comediante. SEGUNDO — Um grande cortesão, acostumado, desde que respira, ao papel de títere maravilhoso, assume toda sorte de formas, à vontade do cordão que se encontra nas mãos de seu senhor. PRIMEIRO — Um grande comediante é outro títere maravilhoso cujo cordão o poeta segura, e ao qual indica a cada linha a verdadeira forma que deve assumir. SEGUNDO — Assim, um cortesão, um comediante, que não consigam tomar senão uma forma, por mais bela, por mais interessante que seja, não passam de dois maus títeres? PRIMEIRO — Meu desígnio não é caluniar uma profissão que amo e estimo; referi-me à do comediante. Ficaria desolado se minhas observações, mal interpretadas, vinculassem a sombra do desprezo a homens de talento raro e utilidade real, aos flagelos do ridículo e do vício, aos mais eloquentes pregadores da honestidade e das virtudes, à vara de que o homem de gênio se utiliza para castigar os maus e os loucos. Mas correi os olhos em torno de vós, e vereis que as pessoas de jovialidade contínua não possuem grandes defeitos, nem grandes qualidades; que comumente os gracejadores de profissão são homens frívolos, sem qualquer princípio sólido; e os que, semelhantes a certas personagens que circulam em nossas sociedades, não têm nenhum caráter, primam em desempenhar todos. Um comediante não tem pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs, conhecidos, amigos, amante? Se fosse dotado dessa estranha sensibilidade, que se considera a principal qualidade de sua condição, perseguido como nós e atingido por uma infinidade de penas que se sucedem, e que ora mancham nossas almas, ora as dilaceram, quantos dias lhe restariam para conceder ao nosso divertimento? Muito poucos. O gentil-homem da câmara real interporia vãmente sua soberania, o comediante encontrar-se-ia amiúde no caso de lhe responder: “Senhor, hoje eu não saberia rir, e é por outra coisa que não os cuidados de Agamenon que desejo chorar”. Entretanto, não se percebe que as aflições da vida, tão frequentes para eles como para nós, e muito mais contrárias ao livre exercício de suas funções, os interrompam amiúde. No mundo, quando não são bufões, acho-os polidos, cáusticos e frios, faustosos, dissipados, dissipadores interessados, mais impressionados por nosso ridículo do que tocados por nossos males; de um espírito bastante sereno ante o espetáculo de um acontecimento lastimável, ou ante o relato de uma aventura patética; isolados, vagabundos,à mercê dos grandes; poucos modos, nenhum amigo, quase sem qualquer dessas santas e doces ligações que nos associam às penas e aos prazeres de outrem que partilha dos nossos. Vi muitas vezes um comediante rir fora do palco, não guardo lembrança de jamais ter visto um deles chorar. Essa sensibilidade a que eles se arrogam e que se lhes abona, o que fazem dela, então? Largam-na sobre o tablado, quando descem, a fim de retomá-la quando tornam a subir? O que lhes calça o soco ou o coturno?A falta de educação, a miséria e a libertinagem. O teatro é um recurso, nunca uma escolha. Nunca alguém se fez comediante por gosto à virtude, pelo desejo de ser útil na sociedade e de servir a seu país ou sua família, por nenhum dos motivos honestos que poderiam mover um espírito reto, um coração ardente, uma alma sensível a abraçar tão bela profissão. Eu próprio, jovem, oscilava entre a Sorbonne e a Comédie. Ia, no inverno, durante a estação mais rigorosa, recitar em alta voz os papéis de Molière e de Corneille nas aléias solitárias do Luxemburgo. Qual era meu intento? Ser aplaudido? Talvez. Viver em familiaridade com as mulheres de teatro que eu achava infinitamente amáveis e que eu sabia serem muito fáceis? Certamente. Não sei o que eu teria feito só para agradar a Mlle Gaussin, que estreava então e era a beleza personificada; a Mlle Dangeville, que contava tantos atrativos no palco. Já se disse que os comediantes não têm nenhum caráter, porque, representando todos, perdem aquele que a natureza lhes deu; que se tornam falsos, como o médico, o cirurgião e o açougueiro se tornam duros. Creio que se tomou a causa pelo efeito, e que eles não servem para interpretar todos porque não têm nenhum. SEGUNDO — Ninguém se torna cruel porque é carrasco; mas a gente se faz carrasco porque é cruel. PRIMEIRO — Debalde examinei esses homens. Nada vejo neles que os distinga do resto dos cidadãos, a não ser uma vaidade que se poderia chamar insolência, um ciúme que enche de dissensões e ódios suas reuniões. Entre todas as associações, não há talvez nenhuma onde o interesse comum de todos e o do público sejam mais constante e mais evidentemente sacrificados a miseráveis pequenas pretensões. A inveja é ainda pior entre eles do que entre os autores; é dizer muito, mas é verdade. Um poeta perdoa mais facilmente a outro poeta o êxito de uma peça, do que uma atriz perdoa a outra atriz os aplausos que a designam a algum ilustre ou rico devasso. Vós os vedes grandes na cena, porque têm alma, dizeis; quanto a mim, eu os vejo pequenos e baixos na sociedade, porque não a têm absolutamente: com as palavras e o tom de Camila e do velho Horácio, sempre os costumes de Frosina e de Sganarello. Ora, para julgar o íntimo do coração, deverei reportar-me a discursos de empréstimo, que alguém sabe expressar maravilhosamente, ou à natureza dos atos e ao teor da vida? SEGUNDO — Mas outrora Molière, os Quinault, Montménil, mas hoje Brizard e Caillot, que é igualmente bem-vindo entre os grandes e os pequenos, a quem confiaríeis sem medo vosso segredo e vossa bolsa, e com o qual julgaríeis a honra de vossa mulher e a inocência de vossa filha mais em segurança do que com este grão-senhor da corte ou com aquele respeitável ministro de nossos altares... PRIMEIRO — O elogio não é exagerado: o que me irrita é não ouvir citado um número maior de comediantes que o tenham merecido ou que o mereçam. O que me irrita é que, entre esses proprietários por condição de uma qualidade, fonte preciosa e fecunda de tantas outras, um comediante homem educado e uma atriz mulher honesta sejam fenômenos tão raros. Concluamos daí ser falso que disponham de seu privilégio especial e que a sensibilidade, que os dominaria no mundo assim como no palco, se dela fossem dotados, não lhes é a base do caráter nem a razão do êxito, que ela não lhes pertence nem mais, nem menos que esta ou aquela condição da sociedade, e que se nos é dado ver tão poucos grandes comediantes é porque os pais não destinam os filhos ao teatro; é porque ninguém se prepara para ele com uma educação iniciada na juventude; é que uma companhia de comediantes não é como deveria sê-lo em um povo onde se atribuísse à função de falar aos homens reunidos a fim de serem instruídos, divertidos, corrigidos, a importância, as honras, as recompensas que merece uma corporação formada; como todas as outras comunidades, de indivíduos tirados de todas as famílias da sociedade, e conduzidos à cena como ao serviço público, ao palácio, à igreja, por escolha ou por gosto e com o consentimento de seus tutores naturais. SEGUNDO — O aviltamento dos comediantes modernos é, parece-me, uma desafortunada herança que lhes deixaram os comediantes antigos. PRIMEIRO — Acredito. SEGUNDO — Se o espetáculo nascesse hoje, que temos ideias mais justas das coisas, talvez... Mas vós não estais me ouvindo. Com que sonhais? PRIMEIRO — Sigo minha primeira ideia, e penso na influência do espetáculo sobre o bom gosto e sobre os costumes, se os comediantes fossem pessoas de bem e sua profissão fosse honrada, Onde está o poeta que ousasse propor a homens bem-nascidos repetir publicamente discursos enfadonhos ou grosseiros; a mulheres quase tão recatadas como as nossas, recitar afrontosamente, diante de uma multidão de ouvintes, palavras de que corariam no recesso de seus lares? Depressa os nossos autores dramáticos atingiriam uma pureza, uma delicadeza, uma elegância, da qual se encontram ainda mais longe do que suspeitam. Ora, duvidais que o espírito nacional sentisse o seu efeito? SEGUNDO — Poder-se-ia objetar-vos quiçá que as peças, tanto antigas como modernas, que vossos honestos comediantes excluiriam de seu repertório, são precisamente as que representamos em sociedade. PRIMEIRO — E o que importa que nossos cidadãos se rebaixem à condição dos mais vis histriões? Seria menos útil, seria menos de desejar que nossos comediantes se elevassem à condição dos mais honestos cidadãos? SEGUNDO — A metamorfose não é fácil. PRIMEIRO — Quando apresentei O Pai de Família, o magistrado da polícia exortou-me a seguir o gênero. SEGUNDO — Por que não o fizestes? PRIMEIRO — É que, não tendo obtido o êxito que eu esperara e não tendo a pretensão de poder realizar coisa muito melhor, desgostei-me de uma carreira para a qual não me julguei com bastante talento. SEGUNDO — E por que essa peça que enche atualmente a sala de espectadores antes das quatro e meia, e que os comediantes colocam em cartaz sempre que necessitam de um milhar de escudos, foi tão tibiamente acolhida no começo? PRIMEIRO — Alguns alegavam que nossos costumes eram factícios demais para se acomodarem a um gênero tão simples e corrompidos demais para apreciarem um gênero tão recatado. SEGUNDO — O que não era inverossímil. PRIMEIRO — Mas a experiência demonstrou de fato que isso não era verídico, pois não nos tornamos melhores. Aliás, o verídico e o honesto exercem tamanho ascendente sobre nós que, se a obra de um poeta oferecer as duas características e o autor tiver talento, seu triunfo estará mais do que assegurado. É sobretudo quando tudo é falso que se ama o verdadeiro, é sobretudo quando tudo está corrompido que o espetáculo é mais depurado. O cidadão que se apresenta à entrada da Comédie deixa aí todos os seus vícios, a fim de retomá-los apenas à saída. Lá dentro ele é justo, imparcial, bom pai, bom amigo, amigo da virtude; vi muitas vezes a meu lado malvados profundamente indignados contra ações que não deixariam de cometer se se encontrassem nas mesmas circunstâncias em que o poeta situava a personagem que aborreciam. Se não fui bem sucedido de início, é que o gênero era estranho aos espectadores e aos atores; é que havia um preconceito estabelecido e que subsiste ainda contra o que se chama a comédia choramingas, é que eu tinha uma nuvem de inimigos na corte, na cidade, entre os magistrados, entre a gente da Igreja e entre os homens de letras. SEGUNDO — E como incorrestes em tantos ódios? PRIMEIRO — Por minha fé, não tenho ideia, pois nunca fiz sátira nem contra os grandes, nem contra os pequenos, e não cruzei com ninguém no caminho da fortuna e das honras. É verdade que pertencia ao número dos que se chamam filósofos, que eram então considerados cidadãos perigosos, e contra os quais o ministério soltara dois ou três celerados subalternos, sem virtude, nem luzes, e o que é pior, sem talento. Mas deixemos isso. SEGUNDO — Sem contar que esses filósofos haviam tornado a tarefa dos poetas e dos literatos em geral mais difícil. Não se tratava mais, para se ilustrar, de saber tornear um madrigal ou uma copia indecente. PRIMEIRO — É possível. Um jovem dissoluto, em vez de frequentar com assiduidade o atelier do pintor, do escultor, do artista que o adotava, perdeu os anos mais preciosos da vida, e ficou aos vinte anos sem recursos e sem talento. O que quereis que ele se torne? Soldado ou comediante. Ei-lo portanto alistado numa companhia que erra pelo campo. Ele vagueia até que possa permitir-se uma estreia na capital. Uma infeliz criatura atolou-se no lodaçal do deboche; cansada do mais abjeto estado, o de baixa cortesã, decora alguns papéis e apresenta-se um dia à casa de Mlle Clairon, como o escravo antigo à casa do edil ou do pretor. Aquela segura-lhe a mão, ordena-lhe que faça uma pirueta, toca-a com sua varinha e lhe diz: “Vá fazer rir ou chorar os basbaques”. Eles são excomungados. Esse público, que não pode dispensá-los, despreza-os. São escravos que se encontram incessantemente sob a vara de outro escravo. Acreditais que as marcas de um aviltamento tão contínuo possam permanecer sem efeito e que, sob o fardo da ignomínia, uma alma seja bastante firme para manter-se à altura de Corneille? O despotismo sobre eles é exercido, eles o exercem sobre os autores, e não sei qual é mais vil, o comediante insolente ou o autor que o suporta. SEGUNDO — O que se quer é ser representado. PRIMEIRO — A qualquer condição que seja. Eles estão todos cansados de seu ofício. Dai vosso dinheiro à porta, e eles se cansarão de vossa presença e de vossos aplausos. Obtendo rendas suficientes dos pequenos camarotes, estiveram a ponto de decidir que o autor renunciaria a seu honorário, ou que sua peça não seria aceita. SEGUNDO — Mas tal projeto daria em nada menos do que extinguir o gênero dramático. PRIMEIRO — Que diferença lhes faz? SEGUNDO — Penso que vos resta pouco a dizer. PRIMEIRO — Estais enganado. Devo tomar-vos pela mão e introduzir-vos em casa de Mlle Clairon, esta incomparável feiticeira. SEGUNDO — Esta pelo menos sentia o orgulho de sua condição. PRIMEIRO — Como o sentirão todas as que brilharam. O teatro só é menosprezado por aqueles atores que os apupos expulsaram dele. Devo mostrar-vos Mlle Clairon nos transportes reais de sua cólera. Se acaso conservasse então a postura, as entonações, a ação teatral com todo seu apresto, com toda sua ênfase, não levaríeis vossas mãos aos quadris, e poderíeis conter vossas gargalhadas? O que me ensinais então nesse caso? Não declarais nitidamente que a sensibilidade verdadeira e a sensibilidade representada são duas coisas muito diferentes? Rides do que havíeis de admirar no teatro? E por que isso, se vos apraz? Porque a cólera real de Mlle Clairon se parece à cólera simulada, e porque tendes o discernimento justo da máscara dessa paixão e de sua pessoa. As imagens das paixões no teatro não são pois as verdadeiras imagens, sendo portanto apenas retratos exagerados, apenas grandes caricaturas sujeitas a regras de convenção. Ora, interrogai-vos, perguntai a vós mesmo qual artista se encerrará mais estritamente nessas regras dadas? Qual é o comediante que apreenderá melhor essa prosápia prescrita, o homem dominado por seu próprio caráter, ou o homem nascido sem caráter, ou o homem que dele se despoja a fim de revestir-se de outro, maior, mais nobre, mais violento e mais elevado? Somos nós mesmos por natureza; somos outro por imitação; o coração que supomos ter não é o coração que temos. O que é pois o verdadeiro talento? O de conhecer bem os sintomas exteriores da alma de empréstimo, de dirigir-se à sensação dos que nos ouvem, dos que nos veem, e de enganá-los pela imitação desses sintomas, mediante uma imitação que engrandece tudo em suas cabeças e que se torna a regra do julgamento deles; pois é impossível apreciar de outro modo o que se passa dentro de nós. E que nos importa, com efeito, o que eles sintam ou não sintam, contanto que o ignoremos? Aquele, pois, que melhor conhece e traduz mais perfeitamente esses signos externos, de acordo com o modelo ideal melhor concebido, é o maior comediante. SEGUNDO — Aquele que deixa menos a imaginar ao grande comediante é o maior dos poetas. PRIMEIRO — Eu ia dizê-lo. Quando, por um longo hábito do teatro, conservamos na sociedade a ênfase teatral e nela passeamos Bruto, Cina, Mitridates, Cornélia, Mérope, Pompeu, sabeis o que se faz? Acasalam-se a uma alma pequena ou grande, da medida precisa que a natureza lhe concedeu, os signos externos de uma alma exagerada e gigantesca que não se tem; e daí nasce o ridículo. SEGUNDO — Que cruel sátira que fazeis aí, inocente ou malignamente, dos atores e dos autores. PRIMEIRO — Como assim? SEGUNDO — É permitido, creio, a todo mundo possuir a alma forte e grande; é permitido, creio, possuir o porte, a palavra e a ação de sua alma e creio que a imagem da verdadeira grandeza nunca pode ser ridícula. PRIMEIRO — O que decorre daí? SEGUNDO — Ah! Tratante! Não ousais dizê-lo, e cumprirá que eu incorra na indignação geral por vós. É que a verdadeira tragédia ainda está para ser encontrada, e que, com seus defeitos, os antigos estavam talvez mais próximos dela do que nós. PRIMEIRO — É verdade que me sinto encantado em ouvir Filoctetes dizer tão simples e tão fortemente a Neoptolomeu, que lhe entrega as flechas que Hércules lhe roubara por instigação de Ulisses: “Estás vendo a ação que cometeste: sem te aperceberes, condenaste um infeliz a perecer de dor e de fome. Teu roubo é o crime de outrem, teu arrependimento é teu. Não, jamais pensarias em cometer semelhante indignidade se estivesses só. Compreende, pois, meu filho, quanto importa em tua idade não frequentar senão pessoas de bem. Eis o que tinhas a ganhar na companhia de um celerado. E por que te associar também a um homem desse caráter? Era ele que teu pai teria escolhido para companheiro e para amigo? Esse digno pai, que nunca admitiu junto de si os mais distintos personagens do exército, o que diria ele se te avistasse com um Ulisses?...” Há nesse discurso algo além daquilo que endereçaríeis a meu filho, daquilo que eu diria ao vosso? SEGUNDO — Não. PRIMEIRO — Entretanto é belo. SEGUNDO — Seguramente. PRIMEIRO — E o tom desse discurso proferido em cena diferiria do tom com que o proferiríamos na sociedade? SEGUNDO — Não creio. PRIMEIRO — E esse tom na sociedade seria ridículo? SEGUNDO — Nunca. PRIMEIRO — Quanto mais as ações são fortes e as palavras simples, mais eu as admiro. Temo realmente que tenhamos tomado por cem anos seguidos a fanfarrice de Madri pelo heroísmo de Roma e confundido o tom da musa enérgica com a linguagem da musa épica. SEGUNDO — Nosso verso alexandrino é numeroso demais e nobre demais para o diálogo. PRIMEIRO — E nosso verso decassílabo é demasiado fútil e demasiado ligeiro. Seja como for, eu desejaria que não fosseis à representação de qualquer das peças romanas de Corneille, a não ser ao sair da leitura das cartas de Cícero a Ático. Como acho empolados nossos autores dramáticos! Como me são enfadonhas suas declamações, quando me lembro da simplicidade e do vigor do discurso de Régulo dissuadindo o Senado e o povo romano da troca de cativos! É assim que ele se exprime numa ode, poema que comporta muito mais calor, estro e exagero que um monólogo trágico; diz ele: “Vi nossas insígnias suspensas nos templos de Cartago. Vi o soldado romano despojado de suas armas, que não haviam sido tintas de uma gota de sangue. Vi o olvido da liberdade, e cidadãos com os braços virados para trás e atados às costas. Vi as portas das cidades escancaradas, e as colheitas cobrirem os campos que havíamos assolado. E credes que, resgatados a peso de prata, eles voltarão mais corajosos? Acrescentais uma perda à ignomínia. A virtude, expulsa de uma alma que se aviltou, jamais lhe retorna. Nada espereis de quem podia morrer e se deixou garrotear. Ó Cartago, como estás grande e orgulhosa com nossa vergonha!...” Assim foi o seu discurso e assim foi a sua conduta. Ele se recusou aos abraços da mulher e dos filhos, julgou-se indigno deles, como um vil escravo. Manteve o olhar feroz pregado à terra, e desdenhou os rogos dos amigos, até que levou os senadores a um parecer que só ele era capaz de dar, e que lhe foi permitido regressar a seu exílio. SEGUNDO — Isso é simples e belo; mas o momento em que o herói se mostra é o seguinte. PRIMEIRO — Tendes razão. SEGUNDO — Ele não ignorava o suplício que um inimigo feroz lhe preparava. Entretanto, retoma a serenidade, desprende-se dos parentes, que procuravam adiar seu retorno, com a mesma liberdade com que se desprendia antes da multidão de seus clientes para ir descansar da fadiga dos negócios nos campos de Venafro ou em sua campanha de Tarento. PRIMEIRO — Muito bem. Agora, colocai a mão na consciência, e dizei-me se há em nossos poetas muitas passagens com tom próprio a uma virtude tão elevada, tão familiar, e o que vos pareceria nessa boca nossas ternas jeremiadas, ou a maioria de nossas fanfarronadas a Corneille. Quantas coisas que só ouso confiar a vós! Eu seria lapidado nas ruas se soubessem que sou culpado dessa blasfêmia, e não há qualquer espécie de martírio cujo louro eu ambicione. Se chegar o dia em que um homem de gênio ouse dar a suas personagens o tom simples do heroísmo antigo, a arte do comediante será desmedidamente difícil, pois a declamação cessará de ser uma espécie de canto. De resto, quando declarei que a sensibilidade é a característica da bondade de alma e da mediocridade do gênio, procedi a uma confissão que não é muito comum, pois, se a natureza petrificou uma alma sensível, foi a minha. O homem sensível fica demais à mercê de seu diafragma para que seja grande rei, grande político, grande magistrado, homem justo, profundo observador e, consequentemente, sublime imitador da natureza, a menos que possa esquecer-se e distrair-se de si mesmo, e que, com a ajuda de uma imaginação forte, saiba criar, e, de uma memória tenaz, manter a atenção fixada em fantasmas que lhe servem de modelos; mas então não é mais ele quem age, é o espírito de outro que o domina. Deveria deter-me aqui; mas vós me perdoareis mais facilmente uma reflexão deslocada do que omitida. É uma experiência pela qual aparentemente já passastes alguma vez, quando chamado por um estreante ou por uma estreante, em casa dela, em reunião íntima, para que vos pronunciásseis sobre seu talento, vós lhe concedestes alma, sensibilidade, emoção, vós a cumulastes de elogios e lhe deixastes, ao vos separar dela, a esperança do maior êxito possível. Entretanto, o que acontece? Ela aparece, é vaiada, e vos confessais que as vaias têm razão de ser. De onde vem isso? Terá ela perdido a alma, a sensibilidade, as entranhas, da manhã à noite? Não; mas, em seu rés do chão, vós estáveis terra-a-terra com ela; vós a escutáveis sem considerar as convenções, ela estava frente a frente conosco. Não havia entre ambos qualquer modelo de comparação; vós estáveis satisfeito com sua voz, seu gesto, sua expressão e seu porte; tudo estava em proporção com o auditório e o espaço; nada requeria exagero. No palco tudo mudou: aí fazia-se mister uma outra personagem, pois tudo se engrandecera. Em um teatro particular, em um salão onde o espectador se encontra quase ao nível com o ator, a verdadeira personagem dramática se vos afiguraria enorme, gigantesca, e ao sair da representação iríeis dizer confidencialmente a vosso amigo: “Ela não se sairá bem, ela é exagerada”; e seu êxito no teatro ter-vos-ia espantado. Mais uma vez, seja isso um bem ou um mal, o comediante não diz nada, nem faz nada na sociedade precisamente como na cena; esta é outro mundo. Mas um fato decisivo que me foi contado por um homem veraz, de um feitio de espírito original e fino, o Abade Galiani, e que me foi em seguida confirmado por outro homem veraz, de um feitio de espírito também original e fino, o Sr. Marquês de Caraccioli, embaixador de Nápoles em Paris, é que em Nápoles, pátria de ambos, há um poeta dramático cujo principal cuidado não é compor a peça. SEGUNDO — Lá o vosso Pai de Família conquistou singular triunfo. PRIMEIRO — Deram quatro representações seguidas perante o rei, contra a etiqueta da corte, que prescreve tantas peças diferentes quantos dias de espetáculo, e o povo ficou entusiasmado. Mas a preocupação do poeta napolitano é encontrar, na sociedade, personagens de idade, figura, voz e caráter próprios para desempenhar papéis que ele cria. Não se ousa recusar-lhe, porque se trata do divertimento do soberano. Ele exercita os atores durante seis meses, juntos e separadamente. E quando imaginais vós que a companhia começa a representar, a entender-se, a encaminhar-se para o ponto de perfeição que ele exige? Quando os atores ficam extenuados de cansaço dos ensaios multiplicados, o que chamamos blasés. A partir desse instante os progressos são surpreendentes, cada qual se identifica com sua personagem; e é depois desse penoso exercício que as representações começam e prolongam-se por seis outros meses seguidos, e que o soberano e seus súditos usufruem do maior prazer que se possa auferir da ilusão teatral. E essa ilusão, tão forte, tão perfeita na última representação quanto na primeira, a vosso aviso, pode ser efeito da sensibilidade? De resto, a questão que aprofundei foi outrora encetada entre um literato medíocre, Rémond de Saint Albine, e um grande comediante, Riccoboni. O literato advogava a causa da sensibilidade e o comediante advogava a minha. É uma anedota que eu ignorava e que acabo de ficar sabendo. Eu disse, vós me Ouvistes, e eu vos pergunto presentemente o que pensais do caso. SEGUNDO — Penso que esse homenzinho arrogante, decidido, seco e duro, em quem seria preciso reconhecer uma dose honesta de desprezo, se possuísse apenas um quarto do que a natureza pródiga lhe concedeu em suficiência, seria um pouco mais reservado em seu julgamento se vós, de vossa parte, tivésseis a complacência de expor-lhe vossas razões e ele, de sua parte, a paciência de vos ouvir; mas a desgraça é que ele sabe tudo, e que, a título de homem universal, julga-se dispensado de ouvir. PRIMEIRO — Em compensação, o público paga-lhe bem. Conheceis a Sra. Riccoboni? SEGUNDO — Quem não conhece a autora de um grande número de obras encantadoras, cheia de talento, de honestidade, de delicadeza e de graça? PRIMEIRO — Credes que essa mulher é sensível? SEGUNDO — Não apenas pelas sua obras, mas também pela conduta ela o provou. Há em sua vida um incidente que esteve a ponto de levá-la ao túmulo. Ao cabo de vinte anos, seus prantos não secaram ainda, e a fonte de suas lágrimas ainda não se exauriu. PRIMEIRO — Pois bem, essa mulher, uma das mais sensíveis que a natureza jamais formou, foi uma das piores atrizes que jamais surgiram no palco. Ninguém fala melhor de arte, ninguém representa pior. SEGUNDO — Acrescentarei que ela concorda com isso, e que nunca lhe aconteceu acusar os apupos de injustiça. PRIMEIRO — E por que, com a sensibilidade refinada, a qualidade principal, segundo vós, do comediante, a Sra. Riccoboni é tão má? SEGUNDO — É que aparentemente as outras lhe faltam a tal ponto que a primeira não pode compensar o defeito. PRIMEIRO — Mas a sua figura não é de modo algum má; ela tem espírito; tem o porte decente; sua voz nada tem de chocante. Todas as boas qualidades que se devem à educação ela as possui. Não apresenta nada de chocante em sociedade. Pode-se olhá-la sem custo e ouvi-la com o maior prazer. SEGUNDO — Não chego a entender o caso; tudo o que sei ê que o público nunca chegou a reconciliar-se com ela, e que durante vinte anos seguidos ela foi vítima de sua profissão. PRIMEIRO — E de sua sensibilidade, acima da qual nunca pôde elevar-se; e foi porque ela permaneceu constantemente ela, que o público constantemente a desdenhou. SEGUNDO — E vós não conheceis Caillot? PRIMEIRO — Muito. SEGUNDO — Já conversastes alguma vez com ele sobre o assunto? PRIMEIRO — Nunca. SEGUNDO — Eu, em vosso lugar, me sentiria curioso de saber a opinião dele. PRIMEIRO — Eu sei qual é. SEGUNDO — Qual? PRIMEIRO — A vossa e a de vosso amigo. SEGUNDO — Eis uma terrível autoridade contra vós. PRIMEIRO — Concordo. SEGUNDO — E como viestes a tomar conhecimento do parecer de Caillot? PRIMEIRO — Por intermédio de uma mulher de muito espírito e fineza, a Princesa de Galitzin. Caillot interpretara o Desertor, ele permanecia ainda no lugar onde acabava de experimentar e ela de partilhar, ao seu lado, todos os transes de um infeliz prestes a perder a amante e a vida. Caillot aproximou-se do camarote dela e dirigiu-lhe, com o rosto risonho que lhe conheceis, palavras joviais, honestas e polidas. A princesa, espantada, disse-lhe: “Como! não estais morto! Eu, que fui mera espectadora de vossas angústias, ainda não voltei a mim”. — “Não, senhora, não estou morto. Seria preciso lastimar-me demais, se eu morresse tão amiúde.” — “Nada sentis, portanto?” — “Perdoai-me...” E depois ei-los empenhados numa discussão que acabou entre eles como acabará entre nós: eu permanecerei na minha opinião e vós na vossa. A princesa não se recordava dos argumentos de Caillot, mas observara que esse grande imitador da natureza, no momento da agonia, quando ia ser arrastado ao suplício, percebendo que a cadeira onde deveria depositar Louise desfalecida estava mal colocada, arrumou-a, cantando com voz moribunda: “Mas Louise não vem, e minha hora se aproxima...” Mas estais distraído; no que pensais? SEGUNDO — Penso em propor-vos um acomodamento: o de reservar à sensibilidade natural do ator os momentos raros em que perde a cabeça, em que não vê mais o espetáculo, em que esquece que está num teatro, em que esquece de si mesmo, em que está em Argos, em Micenas, em que é o próprio personagem que interpreta; ele chora. PRIMEIRO — Com medida? SEGUNDO — Com medida. Ele grita. PRIMEIRO — Justa? SEGUNDO — Justa. Ele se irrita, se indigna, se desespera, apresenta a meus olhos a imagem real, leva ao meu ouvido e ao meu coração o acento verdadeiro da paixão que o agita, a ponto de me arrastar, de eu ignorar a mim mesmo, de não ser mais nem Brizard, nem Le Kain, mas Agamenon que eu vejo, mas Nero que eu ouço... etc, a abandonar à arte todos os outros instantes... Penso que talvez então acontece à natureza como ao escravo que aprende a mover-se livremente sob o grilhão: o hábito de carregá-lo tira-lhe o peso e a coerção. PRIMEIRO — Um ator sensível terá talvez em seu desempenho um ou dois momentos de alienação que desafinarão com o resto tanto mais fortemente quanto serão mais belos. Mas, dizei-me, então o espetáculo não cessa de ser um prazer e não se torna um suplício para vós? SEGUNDO — Oh! Não. PRIMEIRO — E esse patético de ficção não prevalece sobre o espetáculo doméstico e real de uma família desolada em torno do leito fúnebre de um pai querido ou de uma mãe adorada? SEGUNDO — Oh! não. PRIMEIRO — Não haveis, portanto, nem o comediante, nem vós, tão perfeitamente esquecido... SEGUNDO — Vós já me confundistes fortemente, e não duvido que possais me confundir mais ainda; mas eu vos abalaria, creio, se me permitísseis associar alguém mais. São quatro horas e meia; estão levando Dido, vamos ver Mlle Raucourt; ela vos responderá melhor do que eu. PRIMEIRO — Eu o desejo, mas não o espero. Pensais que ela faça o que nem Le Couvreur, nem Mlle Duclos, nem Mlle de Seine, nem Mlle Balincourt, nem Mlle Clairon, nem Mlle Dumesnil conseguiram fazer? Ouso assegurar-vos que, se a nossa jovem estreante encontra-se ainda longe da perfeição, é porque é demasiado noviça para não sentir nada, e vos predigo que, se continuar sentindo, permanecendo ela própria e preferindo o instinto limitado da natureza ao estudo ilimitado da arte, nunca há de elevar-se à altura das atrizes que eu vos mencionei. Terá belos momentos, mas não será bela. Acontecer-lhe-á o que aconteceu a Mlle Gaussin e a muitas outras que foram a vida toda amaneiradas, fracas e monótonas, somente porque nunca lograram sair do recinto estreito em que a sensibilidade natural as encerrava. Vosso propósito continua sendo o de me opor a Mlle Raucourt? SEGUNDO — Seguramente. PRIMEIRO — No caminho, eu vos contarei um fato que cabe bastante no tema de nosso colóquio. Eu conhecia Pigalle; eu costumava entrar em casa dele. Vou lá certa manhã, bato na porta: o artista me abre, com o desbastador na mão; e, detendo-me à soleira do atelier: “Antes que eu vos deixe passar”, diz-me ele, “jurai-me que não tereis medo de uma bela mulher inteiramente nua...” Sorri... entrei. Ele trabalhava então no seu monumento do Marechal de Saxe, e uma belíssima cortesã servia-lhe de modelo para a figura da França. Mas como acreditais que ela me pareceu entre as figuras colossais que a cercavam? Pobre, pequena, mesquinha, uma espécie de rã; estava esmagada por elas; e eu teria tomado, pela palavra do artista, a rã por uma bela mulher, se não houvesse esperado o fim da sessão e se não a tivesse visto terra-a-terra e com o dorso virado para aquelas figuras gigantescas que a reduziam a nada. Deixo a vós o cuidado de aplicar este singular fenômeno a Mlle Gaussin, à Riccoboni e a todas aquelas que não puderam engrandecer-se no palco. Se, por impossível que seja, uma atriz recebesse a sensibilidade em grau comparável ao que a arte levada ao extremo pode simular, o teatro propõe tantos caracteres diversos a imitar, e um só papel principal leva a tantas situações opostas, que essa rara choramingas, incapaz de representar bem dois papéis diferentes, primaria apenas em alguns pontos do mesmo papel; seria a comediante mais desigual, mais limitada e mais inepta que se possa imaginar. Se lhe acontecesse tentar um voo, sua sensibilidade predominante não tardaria a reconduzi-la à mediocridade. Ela se assemelharia menos a um vigoroso corcel que galopa do que a uma hacanéia que toma o freio nos dentes. Seu instante de energia, passageiro, inopinado, sem gradação, sem preparo, sem unidade, parecer-vos-ia um acesso de loucura. Sendo a sensibilidade, com efeito, companheira da dor e da fraqueza, dizei-me se uma criatura doce, frágil e sensível é realmente própria para conceber e traduzir o sangue-frio de Leontina, os transportes ciumentos de Hermíone, os furores de Camila, a ternura maternal de Mérope, o delírio e os remorsos de Fedra, o orgulho tirânico de Agripina, a violência de Clitemnestra. Abandonai vossa eterna choramingas a alguns de nossos papéis elegíacos, e não a tireis mais daí. É que ser sensível é uma coisa, e sentir é outra. A primeira é uma questão de alma e a outra, uma questão de julgamento. É que sentimos com intensidade o que não saberíamos expressar; é que expressamos só, em sociedade, no pé da lareira, lendo, representando, para alguns ouvintes, e que não expressamos nada que valha no teatro; é que no teatro, com o que se chama sensibilidade, alma, entranhas, expressamos bem uma ou duas tiradas e falhamos no resto; é que abranger toda a extensão de um grande papel, dispor nele os claros e escuros, o doce e o fraco, mostrar-se igual nas passagens tranquilas e nas passagens agitadas, ser variado nos pormenores, uno e harmonioso no conjunto, e constituir um sistema firme de declamação que vá a ponto de salvar os repentes do poeta, é obra de uma cabeça fria, de um profundo discernimento, de um gosto refinado, de um estudo penoso, de uma longa experiência e de uma tenacidade de memória não muito comum; é que a regra qualis ab incoepto processerit et sibi constet, muito rigorosa para o poeta, subsiste até a minúcia para o comediante; é que aquele que sai dos bastidores sem ter seu desempenho presente e seu papel anotado provará a vida toda o papel de um estreante, ou que se, dotado de intrepidez, de suficiência e de estro, contar com a presteza de sua cabeça e o hábito do ofício, este homem vos iludirá pelo calor e pela embriaguez, e que aplaudireis a sua representação como um conhecedor de pintura sorri diante de um esboço libertino onde tudo está indicado e nada decidido. É um desses prodígios que se veem às vezes nas feiras ou no tablado de Nicolet. Talvez esses loucos procedam muito bem permanecendo o que são, comediantes esboçados. Mais trabalho não lhes forneceria o que lhes falta e poderia quiçá tirar-lhes o que têm. Tomai-os pelo que valem, mas não os coloqueis ao lado de um quadro acabado. SEGUNDO — Não me resta senão uma pergunta a fazer-vos. PRIMEIRO — Fazei-a. SEGUNDO — Vistes alguma vez uma peça inteira perfeitamente representada? PRIMEIRO — Por minha fé, não me lembro... Mas esperai... Sim, às vezes uma peça medíocre, por atores medíocres... Nossos dois interlocutores foram ao espetáculo, mas não encontrando lugar desceram para as Tulherias. Passearam algum tempo em silêncio, pareciam haver-se esquecido que estavam juntos, e cada qual se entretinha consigo mesmo, como se estivesse só: um, em alta voz, e outro, em voz tão baixa que não se ouvia, deixando apenas escapar por intervalos palavras isoladas, mas distintas, pelas quais era fácil conjeturar que não se considerava vencido. As ideias do homem do paradoxo são as únicas de que posso dar conta, e ei-las tão descosidas como devem parecer quando se suprimem de um solilóquio os intermediários que servem de ligação. Dizia: Que se ponha em seu lugar um ator sensível, e veremos como se sairá. O que faz ele? Pousa o pé sobre a balaustrada, torna a prender a jarreteira, e responde ao cortesão que despreza, com a cabeça voltada para um dos ombros; assim, um incidente que desconcertaria qualquer outro que não fosse esse frio e sublime comediante, subitamente adaptado à circunstância, torna-se um traço de gênio. (Falava, creio, de Baron, na tragédia do Conde de Essex. Adicionava sorrindo:) Pois sim, ele acreditará que aquela outra sentia, quando caída sobre o regaço da confidente e quase moribunda, com os olhos voltados para os terceiros camarotes, percebeu aí um velho procurador que se desfazia em lágrimas e cuja dor trejeitava de maneira realmente burlesca, e disse: “Olha um pouco lá em cima a cara daquela lá...”, murmurando na garganta essas palavras, como se fossem a continuação de um lamento inarticulado... Há outras! há outras! Se bem me recordo do fato, ele se passou com Mlle Gaussin, em Zaíra. E este terceiro, cujo fim foi tão trágico, eu o conheci, conheci o pai dele, que me convidava também algumas vezes a dizer uma palavra em sua corneta. (Não há dúvida que se trata, no caso, do sage, do sábio Montménil.) Era a própria candura e honestidade. O que havia de comum entre seu caráter natural e o do Tartufo, que ele interpretava superiormente? Nada. Onde foi que arrumou aquele torcicolo, aquele rolar de olhos tão singular, aquele tom adocicado e todas as outras finuras do papel do hipócrita? Cuidado com o que ides responder. Eu vos apanhei. — “Na imitação profunda da natureza.” — Na imitação profunda da natureza? E vereis que os sintomas exteriores que designam mais fortemente a sensibilidade de alma não se encontram tanto na natureza como os sintomas exteriores da hipocrisia; que aí não se poderia estudá-los, e que um ator de grande talento terá mais dificuldades em captar e em imitar uns do que outros! E se eu sustentava que, de todas as qualidades da alma, a sensibilidade é a mais fácil de arremedar, não havendo um único homem bastante cruel, bastante desumano para que não trouxesse o germe disso no seu coração, para jamais tê-la experimentado; o que não se poderia afiançar a respeito de todas as outras paixões, tal como a avareza, a desconfiança? Acaso um excelente instrumento? ... — “Eu vos entendo; existirá sempre, entre quem arremeda a sensibilidade e quem sente, a diferença entre a imitação e a coisa.” — E tanto melhor, tanto melhor, eu vos afirmo. No primeiro caso, o comediante não precisará separar-se de si mesmo, transportar-se-á de repente e de um salto à altura do modelo ideal. — “De repente e de um salto!” — Vós me chicanais sobre uma expressão. Quero dizer que, não sendo nunca reduzido ao pequeno modelo que nele se encontra, ele será tão grande, tão espantoso, tão perfeito imitador da sensibilidade quanto da avareza, da hipocrisia, da duplicidade e de qualquer outro caráter que não será o seu, de qualquer outra paixão que não alimentará. A coisa que o personagem naturalmente sensível me mostrará, será pequena; a imitação do outro será forte; ou, se ocorresse que suas cópias fossem igualmente fortes, o que não vos concedo, mas de forma nenhuma, um, perfeitamente senhor de si próprio e representando inteiramente por estudo e julgamento, seria tal como a experiência diária o mostra, muito mais do que aquele que representasse metade por natureza e metade por estudo, metade por um modelo e metade por si próprio. Com qualquer habilidade que duas imitações fossem fundidas numa só, um espectador delicado as discerniria ainda mais facilmente que um profundo artista deslindaria em uma estátua a linha que separasse ou dois estilos diferentes, ou a frente executada segundo um modelo, e o dorso segundo outro. — “Que um ator consumado cesse de representar de cabeça, que se esqueça, que o coração se lhe enrede; que a sensibilidade o ganhe, que ele se lhe entregue. Ele nos inebriará.” — Talvez. — “Ele nos arrebatará de admiração.” — Isso não é impossível; mas, contanto que não saia de seu sistema de declamação e que a unidade não desapareça, sem o que declarareis que ele ficou louco... Sim, nesta suposição tereis um bom momento, convenho; mas preferir um bom momento a um bom papel? Se tal é vossa escolha, ela não é a minha. Aqui o homem do paradoxo calou-se. Passeava a grandes passos sem olhar aonde ia; ter-se-ia chocado à direita e à esquerda com os que vinham ao seu encontro, se eles não evitassem o choque. Depois, detendo-se de súbito, e colhendo fortemente seu antagonista pelo braço, disse-lhe em tom dogmático e tranquilo: Meu amigo, há três modelos, o homem da natureza, o homem do poeta e o homem do ator. O da natureza é menor que o do poeta, e este menor ainda que o do grande comediante, o mais exagerado de todos. O último deles monta sobre as espáduas do anterior, e encerra-se em um grande manequim de vime, do qual ele é a alma; ele move esse manequim de uma forma assustadora, até para o poeta, que não mais se reconhece, e nos apavora, como bem o dissestes, como as crianças se apavoram umas às outras, segurando seus pequenos gibões curtos erguidos sobre a cabeça, agitando-se e imitando o melhor que podem a voz rouca e lúgubre de um fantasma, que arremedam. Mas, por acaso, não tereis visto jogos de crianças que foram gravados? Não tereis visto um rapazote que avança sob a máscara hedionda de um velho que o oculta da cabeça aos pés? Sob a máscara, ele ri de seus pequenos amiguinhos que o terror põe em fuga. Esse rapazote é o verdadeiro símbolo do ator; seus amiguinhos são os símbolos do espectador. Se o comediante é dotado apenas de sensibilidade medíocre e se aí reside todo o seu mérito, não o considerareis um homem medíocre? Tomai cuidado, é ainda uma armadilha que eu estendo. — “E se for dotado de extrema sensibilidade, o que lhe sucederá?” — O que lhe sucederá? Que não representará mais, ou que representará ridiculamente. Sim, ridiculamente, e a prova, podereis vê-la em mim quando vos aprouver. Basta que eu tenha um relato algo patético a fazer, ergue-se não sei que comoção em meu peito, em minha cabeça; minha língua se atrapalha; minha voz se altera; minhas ideias se decompõem; meu discurso se interrompe; eu balbucio, bem percebo; as lágrimas rolam de minhas faces, eu me calo. — “Mas isso vós o conseguis.” — Em sociedade; no teatro, eu seria vaiado. — “Por quê?” — Porque ninguém vem assistir aos prantos, mas ouvir discursos que os arranquem, porque essa verdade da natureza desafina com a verdade da convenção. Explico-me: quero dizer que nem o sistema dramático, nem a ação, nem os discursos do poeta não se conciliariam com minha declamação sufocada, entrecortada, soluçada. Vedes que não é sequer permitido imitar a natureza, mesmo a bela natureza e a verdade de muito perto, havendo limites dentro dos quais é preciso encerrar-se. — “E tais limites, quem os estabeleceu?” — O bom senso, que não quer que um talento prejudique outro talento. É necessário às vezes que o ator se sacrifique ao poeta. — “Mas se a composição do poeta se prestasse a tanto?” — Pois bem! Teríeis outra sorte de tragédia, inteiramente diferente da vossa. — “E qual o inconveniente disso?” — Não sei bem o que iríeis ganhar; mas sei muito bem o que iríeis perder. Aqui o homem paradoxal se aproximou pela segunda ou terceira vez de seu antagonista, e disse-lhe: O dito é de mau gosto, mas é engraçado, é de uma atriz sobre cujo talento não há duas opiniões. É o par da situação e das palavras de Mlle Gaussin; também ela está caída nos braços de Pillot-Polux; ela agoniza, pelo menos assim o creio, e lhe tartamudeia baixinho: Ah! Pillot, como fedes! A passagem é de Arnould, interpretando Telaíra. E neste momento, Arnould é verdadeiramente Telaíra? Não, é Arnould, sempre Arnould. Nunca me levareis a elogiar os graus intermediários de uma qualidade que estragaria tudo se, impelida ao extremo, o comediante fosse por ela dominado. Mas suponho que o poeta escreveria a cena a fim de ser declamada no teatro como eu a recitaria em sociedade; quem representaria a cena? Ninguém, ninguém mesmo, nem sequer o ator que fosse mais senhor de sua ação; se ele se safasse bem uma vez, falharia em mil outras. O êxito depende então de tão pouca coisa!... Este último raciocínio vos parece pouco sólido? Pois bem, seja; mas nem por isso concluirei que é preciso furar um pouco nossas ampolas, abaixar de alguns entalhes nossas andas, e deixar as coisas quase como são. Para cada poeta de gênio que atingisse essa prodigiosa verdade da natureza, elevar-se-ia uma nuvem de insípidos e banais imitadores. Não é permitido, sob pena de ser insípido, cacete e detestável, descer uma linha abaixo da simplicidade da natureza. Não achais, também? SEGUNDO — Não acho nada. Não vos ouvi. PRIMEIRO — O que! Não continuamos a discutir? SEGUNDO — Não. PRIMEIRO — E que diabo fazíeis então? SEGUNDO — Sonhava. PRIMEIRO — E o que sonháveis? SEGUNDO — Que um ator inglês chamado, creio, Macklin (eu assistia aquele dia ao espetáculo), devendo escusar-se junto à plateia pela temeridade de interpretar, após Garrick, não sei qual papel no Macbeth, de Shakespeare, dizia, entre outras coisas, que as impressões que subjugavam o comediante e o submetiam ao gênio e à inspiração do poeta eram-lhe muito prejudiciais; não sei mais que razões apresentava, porém eram muito sutis, e foram apreciadas e aplaudidas. De resto, se sois curioso, encontrá-las-eis em uma carta inserta no Saint James Chronicle, sob o nome de Quintiliano. PRIMEIRO — Mas eu conversei então todo esse tempo sozinho? SEGUNDO — É possível; tanto tempo quanto eu sonhei sozinho. Sabeis que antigamente os atores faziam os papéis de mulheres? PRIMEIRO — Sei sim. SEGUNDO — Aulo Gélio conta, nas Noites Áticas, que um certo Paulus, coberto dos trajes lúgubres de Electra, em vez de se apresentar em cena com a urna de Orestes, apareceu abraçando a urna que encerrava as cinzas de seu próprio filho, que acabava de perder, e que então não foi uma vã representação, uma pequena dor de espetáculo, mas a sala retiniu de gritos e de verdadeiros gemidos. PRIMEIRO — E credes que Paulus naquele momento falou em cena como falaria em sua casa? Não e não. Esse prodigioso efeito, de que não duvido, não se deveu aos versos de Eurípides, nem à declamação do ator, mas antes à vista de um pai desolado que banhava de prantos a urna do próprio filho. Esse Paulus não era quiçá senão um comediante medíocre; não mais do que aquele Esopo de quem Plutarco narra que, “representando um dia, em pleno teatro, o papel de Atreu deliberando consigo mesmo como poderia vingar-se do irmão, Tiestes, aconteceu, por acaso, que um dos seus servidores quis passar de súbito correndo diante dele, e ele, Esopo, estando fora de si devido à veemente afecção e o ardor com que precisava representar ao vivo a paixão furiosa do Rei Atreu, desferiu-lhe tamanho golpe na cabeça com o cetro, que segurava na mão, que o matou no mesmo instante...” Era um louco que o tribuno devia enviar imediatamente ao monte Tarpeu. SEGUNDO — Como aparentemente fez. PRIMEIRO — Duvido. Os romanos faziam tanto caso da vida de um grande comediante, e tão pouco da vida de um escravo! Mas, segundo dizem, um orador vale mais quando se esquenta, quando é tomado de cólera. Eu o nego. E quando imita a cólera. Os comediantes impressionam o público, não quando estão furiosos, mas quando interpretam bem o furor. Nos tribunais, nas assembleias, em todos os lugares onde se quer ficar senhor dos espíritos, finge-se ora a cólera, ora o temor, ora a piedade, a fim de levar os outros a esses sentimentos diversos. Aquilo que a própria paixão não conseguiu fazer, a paixão bem imitada o executa. Não se diz no mundo que um homem é um grande comediante? Não se entende com isso que ele sente, mas, ao contrário, que prima em simular, embora nada sinta: papel bem mais difícil do que o do ator, pois tal homem tem ademais o discurso a encontrar e duas funções a realizar, a do poeta e a do comediante. O poeta na cena pode ser mais hábil do que o comediante no mundo, mas acredita alguém que, na cena, o ator seja mais profundo, seja mais hábil em fingir a alegria, a tristeza, a sensibilidade, a admiração, o ódio, a ternura, que um velho cortesão? Mas está ficando tarde. Vamos cear.