Claude-Adrien Helvétius – Do Espírito DISCURSO I DO PRÓPRIO ESPIRITO (CAPÍTULOS I-III-IV) É necessário descobrir de que a natureza do espírito é feita, por qual força e por qual razão tudo se realiza na terra. - Lucrécio, Da Natureza, Livro 1.1. Prefácio O objeto que me proponho examinar nesta obra é interessante e até novo. Não se considerou, até hoje, o espírito a não ser sob alguns aspectos. Os grandes escritores se detiveram muito rapidamente sobre tal assunto, e foi isto que me estimulou a tratá-la. O conhecimento do espírito, quando se toma esta palavra em toda a sua extensão, está tão estreitamente ligado ao conhecimento do coração e das paixões do homem, que seria impossível escrever sobre este tema, sem ter, pelo menos, que falar desta parte da moral comum aos homens de todas as nações, e que só pode ter, em todos os governos, apenas o bem público por objeto. Os princípios que estabeleci sobre este assunto estão, penso, de acordo com o interesse geral e a experiência. Foi pelos fatos que cheguei às causas, Julguei que se devia tratar a moral como todas as outras ciências, e fazer uma moral como uma física experimental. Eu só me entreguei a esta ideia pela persuasão que tenho de que toda moral cujos princípios são úteis ao público está necessariamente de acordo com a moral da religião, que é a perfeição da moral humana. Além do mais, se me enganasse e se, contra minha expectativa, alguns de meus princípios não estivessem de acordo com o interesse geral, será um erro de meu espírito, e não de meu coração, e declaro antecipadamente que eu os desaprovo. Peço apenas um favor a meu leitor: compreender-me antes de me condenar, seguir o encadeamento que liga todas as minhas ideias, ser meu juiz e não meu partidário. Este pedido não é o produto de uma tola confiança; frequentemente achei péssimo à noite o que acreditara perfeito pela manhã, por ter uma alta opinião de meu saber. Talvez tenha tratado de um assunto acima de minha capacidade: mas que homem se conhece demasiado bem para não presumir demais? Não terei, pelo menos, de me censurar por não ter feito todos os esforços para merecer a aprovação do público. Se não a obtiver, ficarei mais aflito do que surpreso: não basta, neste nível, desejar para obter. Em tudo o que disse, encontrei apenas o verdadeiro, não unicamente pela honra de afirmá-la, mas porque o verdadeiro é útil aos homens. Se me desviar, encontrarei em meus próprios erros motivos de consolação. Se os homens, como diz Fontenelle, não podem, de qualquer modo que seja, chegar a algo de razoável, senão depois de ter, neste modo, esgotado todas as tolices imagináveis, meus erros poderão então ser úteis a meus concidadãos: terei marcado o recife pelo meu naufrágio. Quantas tolices, acrescenta Fontenelle, não diríamos agora, se os antigos já não as tivessem dito antes de nós, e não no-las tivessem, por assim dizer, açambarcado. Repito então: garanto em minha obra apenas a pureza e a retidão das intenções. No entanto, por mais seguro que se esteja de suas intenções, os gritos da inveja são mais favoravelmente escutados e suas frequentes declamações são tão propícias para seduzir tanto as almas mais honestas quanto as esclarecidas, que se escreve, por assim dizer, tremendo. O desencorajamento no qual imputações frequentemente caluniosas lançaram os homens de gênio parece já prever o retorno dos séculos de ignorância. Não é, em todo o nível, senão na mediocridade de seus talentos que se encontra um asilo contra as perseguições dos invejosos. A mediocridade se torna agora uma proteção e esta proteção eu me poupei, na verdade, apesar de mim. Além do mais, acredito que a inveja dificilmente poderia me imputar o desejo de ferir alguns de meus concidadãos. O gênero desta obra, onde não considero nenhum homem em particular, mas os homens e as nações em geral, deve me colocar ao abrigo de qualquer suspeita de malignidade. Acrescentarei até que, lendo estes Discursos, aperceber-se-á que amo os' homens, que desejo sua felicidade, sem odiar ou desprezar alguns deles em particular. Algumas de minhas ideias parecerão talvez aventurosas. Se o leitor as julgar falsas, rogo que se recorde, condenando-as, que é à audácia das tentações que se deve frequentemente a descoberta das maiores verdades e que o temor de promover um erro não deve nos desviar da busca da verdade. Em vão homens vis e desprezíveis quereriam expulsá-la e lhe dar algumas vezes o nome odioso de licenciosidade; em vão repetem que as verdades são frequentemente perigosas: supondo que o fossem algumas vezes, a que maior perigo ainda não estaria exposta a nação que consentisse em se aviltar na ignorância! Toda nação sem saber, quando cessa de ser selvagem e feroz, é uma nação aviltada, ou cedo ou tarde subjugada. Foi menos o valor do que a ciência militar dos romanos que venceu os gauleses. Se o conhecimento de tal verdade pode ter alguns inconvenientes em tal instante, passado este instante, esta mesma verdade se torna novamente útil a todos os séculos e a todas as nações. Este é, enfim, o destino das coisas humanas, não há nada que não possa se tornar perigoso em certos momentos: mas é apenas nesta condição que nos podemos satisfazer. ( ... ) No momento exato em que se interditasse o conhecimento de certas verdades, não seria mais possível dizer alguma. Milhares de pessoas poderosas e até mal-intencionadas, sob pretexto de que é mais sábio calar a verdade algumas vezes, a baniriam completamente do universo. Da mesma maneira, o público esclarecido, que conhece perfeitamente seu valor, a exige incessantemente: ele não teme expor-se a males incertos, para desfrutar das vantagens reais que ela oferece. Entre as qualidades dos homens, a que mais ele estima é a magnanimidade da alma que se recusa à mentira. Sabe o quanto é útil pensar e dizer tudo; que os próprios erros cessam de ser perigosos quando é permitido contradizê-los. Então eles serão logo reconhecidos por erros, renunciarão cedo a eles nos abismos do esquecimento, e só as verdades sobrenadarão na vasta extensão dos séculos. CAPÍTULO I Sempre se discute sobre o que se deve chamar espírito: cada um tem sua opinião; ninguém liga as mesmas ideias a esta palavra e todos falam sem se compreender. Para poder dar uma ideia justa e precisa desta palavra espírito, e das diferentes acepções que se depreendem, é preciso considerar o espírito em si próprio. Ora se considera o espírito como o efeito da faculdade de pensar (e o espírito é, neste sentido, apenas a reunião dos pensamentos de um homem), ora se considera como a própria faculdade de pensar. Para saber o que é o espírito, tomado nesta última significação, é preciso conhecer quais são as causas produtoras de nossas ideias. Temos em nós duas faculdades, ou, se ouso dizer, duas potências passivas, cuja existência é geral e distintamente reconhecida. Uma é a faculdade de receber as impressões diferentes que exercem sobre nós os objetos exteriores; denominamo-la sensibilidade física. Outra é a faculdade de conservar a impressão que estes objetos exerceram sobre nós: chamamo-la memória; e a memória é apenas uma sensação continuada, mas enfraquecida. Estas faculdades, que considero como as causas produtoras de nossos pensamentos, e que partilhamos com os animais, nos forneceriam apenas um número muito limitado de ideias, se não estivessem articuladas em nós com certa organização exterior. Se a natureza, ao invés de mãos e dedos flexíveis, houvesse prolongado nossos pulsos em cascos de cavalos, quem duvida que os homens, sem técnicas, sem habitações, sem proteção contra os animais, sempre preocupados em providenciar sua alimentação e evitar as feras, não estivessem ainda vagando pelas florestas como rebanhos fugitivos? “Muito se escreveu sobre a. alma dos animais; foi-lhes alternadamente retirada e devolvida a faculdade de pensar, e talvez não se tenha procurado com suficiente escrúpulo, na diferença do físico do homem e do animal, a causa da inferioridade daquilo que se chama de alma dos animais. 1º Todas as patas dos animais terminam ou pelo casco, como no boi e no veado, ou por unhas, como no cão e no lobo, ou por garras, como no leão e no gato. Ora, essa diferença de organização entre nossas mãos e as patas dos animais priva-os não só, como diz Buffon, quase inteiramente do sentido do tato, mas ainda da habilidade necessária para manejar qualquer ferramenta e para fazer qualquer das descobertas que requerem mãos. 2º A vida dos animais, em geral mais curta que a nossa, não lhes permite nem fazer tantas observações, nem, por conseguinte, ter tantas ideias como o homem. 3º OS animais, mais bem armados, mais bem vestidos que nós pela natureza, têm menos necessidades, e devem, por conseguinte ter menos invenção; se os animais vorazes têm em geral mais espírito que os outros animais é que a fome, sempre inventiva, teve de fazê-las imaginar astúcias para surpreender a presa. 4º Os animais formam apenas uma sociedade fugidia diante do homem que, pelo recurso das armas que forjou para si, se tornou temível ao mais forte dentre eles. O homem é aliás o animal mais multiplicado sobre a terra: nasce, vive em todos os climas, quando uma parte dos outros animais, tais como os leões, os elefantes e os rinocerontes, só é encontrável sob determinada latitude. Ora, quanto mais a espécie de um animal suscetível de observação é multiplicada, tanto mais essa espécie de animal tem ideias e espírito. Mas, dir-se-á, por que os macacos, cujas patas são quase tão ágeis quanto nossas mãos, não fazem progressos iguais aos progressos do homem? É que eles permanecem inferiores ao homem em muitos aspectos; os homens são mais multiplicados sobre li terra; entre as diferentes espécies de macacos, poucos são aqueles cuja força seja comparável à do homem; os macacos são frutívoros, têm menos necessidades e, por conseguinte, menos invenção que os homens: além disso, sua vida é mais curta, formam apenas uma sociedade fugidia diante dos homens e dos animais, tais como os tigres, os leões, etc.; é que, enfim, a disposição orgânica de seu corpo, mantendo-os num perpétuo movimento, mesmo depois que suas necessidades são satisfeitas, os macacos não são suscetíveis do tédio, que se deve encarar, assim como provarei no terceiro Discurso, como um dos princípios da perfectibilidade do espírito humano. É combinando todas essas diferenças, no físico do homem e do animal, que se pode explicar por que a sensibilidade e a memória, faculdades comuns aos homens e aos animais, são, por assim dizer, nestes últimos, apenas faculdades estéreis. Talvez objetar-me-ão que Deus, sem injustiça, não pode ter submetido à dor e à morte criaturas inocentes e que assim os animais são apenas puras máquinas. Responderei a essa objeção que as Escrituras Sagradas e a Igreja não dizem em parte alguma que os animais são puras máquinas, pelo que podemos muito bem ignorar os motivos da conduta de Deus para com os animais c supor esses motivos justos. Não é necessário recorrer à agudeza de P. Malebranche que, quando lhe sustentavam que os animais eram sensíveis à dor, respondia gracejando que aparentemente eles tinham comido o fruto proibido. (Nota do Autor)” Ora, nesta suposição, é evidente que a civilização não chegou, em sociedade alguma, ao grau de perfeição que hoje ela atingiu. Não há nação alguma que, em relação ao espírito, tenha ficado muito inferior a algumas nações selvagens que não têm duzentas ideias, duzentas palavras para exprimir suas ideias, e cuja língua, consequentemente, estaria reduzida, como as dos animais, a cinco ou seis sons ou gritos, se se suprimissem desta mesma língua as palavras arcos, flechas, armadilhas, etc., que supõem o uso das mãos. De onde concluo que, sem certa organização exterior, a sensibilidade e a memória seriam em nós apenas faculdades estéreis. Agora é preciso examinar se, mediante o concurso desta organização, estas duas faculdades produziram realmente todos os nossos pensamentos. Antes de proceder a qualquer exame deste tema, perguntar-se-me-á talvez se estas duas faculdades são modificações de uma substância espiritual ou material. Esta questão, outrora discutida pelos filósofos, debatida pelos Doutores da Igreja e atualizada em nossos dias, não entra necessariamente no plano de minha obra. O que tenho a dizer sobre o espírito está igualmente de acordo com cada uma das duas hipóteses. Observarei apenas a este respeito que se a Igreja não houvesse fixado nossa crença sobre este ponto, e se devesse, unicamente pelos esclarecimentos da razão, elevar-se até ao conhecimento do princípio pensante, não se poderia deixar de convir que nenhuma opinião deste gênero é suscetível de demonstração. Deve-se pesar as razões pró e contra, ponderar as dificuldades, determinar-se em favor do maior número de verossimilhanças e, consequentemente, fazer apenas juízos provisórios. Este problema é da mesma natureza que uma infinidade de outros: só pode ser solucionado através do cálculo das probabilidades. “Seria impossível ater-se ao axioma de Descartes e aquiescer apenas à evidência. Se se repete todos os dias esse axioma nas escolas é que ele não é plenamente entendido; é que Descartes, não tendo posto, se posso assim exprimi-lo, uma tabuleta na hospedaria da evidência, cada um se julga com o direito de aí alojar sua opinião. Quem quer que só se rendesse à evidência só poderia estar certo de sua própria existência. Como poderia estar certo, por exemplo, da dos corpos? Deus, em sua onipotência, não pode causar sobre nossos sentidos as mesmas impressões que aí excitaria a presença dos objetos? Ora, se Deus o pode, como garantir que ele não faça, a esse respeito, uso de seu poder e que todo o universo não seja um puro fenômeno? Aliás, se nos sonhos somos afetados pelas mesmas sensações que experimentaríamos na presença dos objetos, como provar que nossa vida não é um longo sonho? Não que eu pretenda negar a existência dos corpos, mas apenas mostrar que temos menos certeza deles que de nossa própria existência. Ora, como a verdade é um ponto indivisível, que não se pode dizer de uma verdade que e/a é mais ou menos verdadeira, é evidente que, se estamos mais certos de nossa própria existência que daquela dos corpos, a existência dos corpos é, por conseguinte, apenas uma probabilidade: probabilidade que, sem dúvida, é muito grande e que, na conduta, equivale à evidência; mas que todavia é apenas uma probabilidade. Ora, se quase todas as nossas verdades se reduzem a probabilidades, que reconhecimento não se deveria ao homem de gênio que se encarregasse de construir tabelas físicas, metafísicas, morais e políticas, em que seriam marcados com precisão todos os diversos graus de probabilidade e, por conseguinte, de crédito que se deve atribuir a cada opinião? A existência dos corpos, por exemplo, seria colocada nas tabelas físicas como o primeiro grau de certeza; em seguida determinar-se-ia a certeza de que o sol nascerá amanhã, que nascerá em dez, dentro de vinte anos, etc. Nas tabelas morais, ou políticas, colocar-se-ia igualmente, como primeiro grau de certeza, a existência de Roma ou de Londres, depois a dos heróis como César ou Guilherme, o Conquistador; desceríamos assim, pela escala das probabilidades, até os fatos menos certos e enfim até os pretensos milagres de Maomé, até esses prodígios atestados por tantos árabes e cuja falsidade no entanto é ainda muito provável aqui na terra, onde os mentirosos são tão comuns e os prodígios tão raros. Enquanto os homens, que no mais das vezes não diferem de sentimento a não ser pela impossibilidade em que se encontram de achar sinais próprios para exprimir os diversos graus de crença que atribuem a sua opinião, se comunicariam mais facilmente suas ideias, pois poderiam, por assim dizer, sempre relacionar suas opiniões a alguns dos números dessas tabelas de probabilidades. Como a marcha do espírito é sempre lenta e as descobertas nas ciências quase sempre distantes umas das outras, sente-se que, uma vez construídas as tabelas de probabilidades, só faríamos mudanças pequenas e sucessivas nelas, que consistiriam, em consequência dessa descoberta, em aumentar ou diminuir a probabilidade de certas proposições que denominamos verdades, e que são apenas probabilidades mais ou menos acumuladas. Por esse meio, o estado de dúvida, sempre insuportável ao orgulho da maior parte dos homens, seria mais fácil de suportar; então as dúvidas deixariam de ser vagas; submetidas ao cálculo e, por conseguinte, apreciáveis, converter-se-iam em proposições afirmativas. Então a seita de Carnéades, considerada outrora como a filosofia por excelência, pois se dava a ela o nome de eclética, seria purgada desses leves erros que a ignorância altercadora censurou com demasiado azedume a essa filosofia, cujos dogmas eram igualmente próprios a iluminar os espíritos e a abrandar os costumes. Se essa seita, conformemente a seus princípios, não admitia absolutamente verdades, admitia pelo menos aparências, queria que se revelasse a vida pelas aparências, que se agisse quando parecesse mais conveniente agir que examinar, que se deliberasse maduramente quando se tivesse tempo para deliberar; que nos decidíssemos, por conseguinte, com mais segurança e que deixássemos sempre em nossa alma uma entrada para as verdades novas, entrada que os dogmáticos lhe fecham. Queria além disso que estivéssemos menos persuadidos de nossas opiniões mais lentos em condenar as de outrem, e, consequentemente, mais sociais; enfim, que o hábito da dúvida, tornando-nos menos sensíveis à contradição, abafasse um dos mais fecundos germes de ódio entre os homens. Não se trata aqui das verdades reveladas que são verdades de outro tipo. (Nota do Autor)” Portanto, não vou me deter demais nesta questão. Volto a meu tema e afirmo que a sensibilidade física e a memória, ou, para falar com mais precisão, somente a sensibilidade produz todas as nossas ideias. Com efeito, a memória só pode ser um dos órgãos da sensibilidade física: o princípio que sente em nós deve ser necessariamente o princípio que se recorda, desde que se recordar, como vou provar, é especificamente sentir. Quando, por uma sequência de minhas ideias, ou pela vibração que certos sons causam no órgão de minha audição, eu me lembro da imagem de um carvalho, então meus órgãos interiores devem necessariamente se encontrar quase na mesma situação em que estavam na visão deste carvalho. Ora, esta situação dos órgãos deve incontestavelmente produzir uma sensação: é então evidente que se recordar é sentir. Estabelecido este princípio, afirmo ainda que é na capacidade que temos de perceber as semelhanças ou as diferenças, as concordâncias ou as discordâncias que têm entre si os objetos diferentes, que consistem todas as operações do espírito. Ora, esta capacidade é apenas a própria sensibilidade física: tudo se reduz portanto a sentir. Para nos certificar desta verdade, consideraremos a natureza. Ela nos apresenta objetos; estes objetos têm relações conosco e relações entre si; o conhecimento destas relações constitui o que se chama o Espírito: ele é maior ou menor, à medida que nossos conhecimentos neste gênero são mais extensos ou menos. O espírito humano se eleva até ao conhecimento destas relações, porém são limites que ele não supera nunca. Assim todas as palavras que compõem as diferentes línguas, e que se pode considerar como a coleção de signos de todos os pensamentos dos homens, nos lembram ora imagens, tais como as palavras carvalho, oceano, sol, ora designam ideias, isto é, as diferentes relações que os objetos têm entre si, e que são ora simples, como as palavras grandeza, pequenez, ora compostas, como vício, virtude; ou exprimem enfim as diferentes relações que os objetos têm conosco, isto é, nossa ação sobre eles, como nestas palavras, eu quebro, eu cavo, eu levanto, ou sua impressão sobre nós, como nestas: eu estou ferido, fascinado, espantado. Se restringi acima a significação desta palavra, ideia, que se toma em acepções muito diferentes, visto que se diz igualmente a ideia de uma árvore e a ideia de virtude, é porque a significação indeterminada desta expressão pode algumas vezes produzir erros que o abuso das palavras sempre ocasiona. A conclusão do que acabo de dizer é que, se todas as palavras de línguas diferentes só designam objetos ou as relações destes objetos conosco e entre si, todo o espírito, consequentemente, consiste em comparar quer nossas sensações, quer nossas ideias, isto é, em ver as semelhanças e as diferenças, as concordâncias e as discordâncias que existem entre elas. Ora, como o juízo é esta própria percepção, ou, pelo menos, o enunciado desta percepção, segue-se que todas as operações do espírito se reduzem a julgar. Encerrada a questão nestes limites, examinarei agora se julgar não é sentir. Quando julgo a grandeza ou a cor dos objetos que se me apresentam, é evidente que o juízo inscrito sobre as diferentes impressões que estes objetos exerceram sobre meus sentidos é precisamente apenas uma sensação, que posso dizer da mesma maneira: eu julgo ou eu sinto que, de dois objetos, um, que denomino toesa, exerce sobre mim uma impressão diferente daquele que denomino pé; que a cor que nomeio vermelho age sobre meus olhos de modo diferente daquela que nomeio amarelo; e concluo em semelhante caso que julgar não é senão sentir. Mas, dir-se-á, suponhamos que se queira saber se a força é preferível à grandeza do corpo, pode-se afirmar então que julgar seja sentir? Sim, responderei: pois, para produzir um juízo sobre este assunto, minha memória deve esboçar-me sucessivamente os quadros das situações diferentes em que posso me encontrar mais comumente no decurso de minha vida. Ora julgar é ver nestes diferentes quadros que a força me será muitas vezes mais útil do que a grandeza do corpo. Mas, replicar-se-á, quando se trata de julgar se, em um rei, a justiça é preferível à bondade, pode-se imaginar que um juízo seja então apenas uma sensação? Esta opinião parece, à primeira vista, um paradoxo: todavia, para provar a verdade, suponhamos num homem o conhecimento do que se chama o bem e o mal, e que este homem saiba ainda que uma ação é pior ou melhor, à medida que prejudique mais ou menos a felicidade da sociedade. Nesta suposição, que arte deve empregar o poeta ou o orador para fazer perceber mais intensamente que a justiça, preferível, num rei, à bondade, conserva para o Estado maior número de cidadãos? O orador apresentará três quadros à imaginação deste mesmo homem: num, ele delineará o rei justo que condena e executa um criminoso; no segundo, o rei bom que abre o cárcere deste mesmo criminoso e o liberta dos grilhões; num terceiro, representará o mesmo criminoso que, munindo-se de seu punhal o sair do calabouço, massacra cinquenta cidadãos. Ora, qual homem, na visão desses três quadros, não sentirá que a justiça, que, pela morte de um só evita a morte de' cinquenta homens, é, num rei, preferível à bondade! Todavia, este juízo realmente é apenas uma sensação. Com efeito, se, pelo hábito de unir certas ideias a certas palavras, pode-se, como a experiência o prova, impressionando a audição mediante alguns sons, excitar em nós quase as mesmas sensações que se experimentariam na própria presença dos objetos, é evidente que, na exposição dos três quadros, julgar que, num rei, a justiça é preferível à bondade é sentir e ver, que, no primeiro quadro, se imola apenas um cidadão, e, no terceiro, massacram-se cinquenta: donde concluo que todo juízo é apenas uma sensação. Mas, dir-se-á, será preciso colocar ainda no nível das sensações os juízos feitos, por exemplo, sobre a excelência maior ou menor de certos métodos, tal como o método apropriado para qualificar muitos objetos em nossa memória, seja o método das abstrações, seja o da análise? Para responder a esta objeção é preciso imediatamente determinar a significação desta palavra método. Um método não é mais do que um meio de que alguém se serve para atingir um fim que se propõe. Suponhamos que um homem tenha 'intenção de qualificar certos objetos ou certas ideias em sua memória, e que o acaso as tenha disposto de maneira que a lembrança de um fato ou de uma ideia lhe tenha recordado a lembrança de uma infinidade de outros fatos ou de outras ideias, e que tenha assim gravado mais fácil e mais profundamente certos objetos em sua memória: então, julgar que esta ordem é a melhor, e lhe dai o nome de método, é dizer que se exerceu menos esforço de atenção, que se experimentou uma sensação menos incômoda, aprendendo nesta ordem mais do que em qualquer outra: ora, recordar-se de uma sensação incômoda é sentir; é, portanto; evidente que, neste caso, julgar é sentir. Suponhamos ainda que, para provar a verdade de certas proposições de geometria e para torná-las mais fáceis de conceber para seus discípulos, um geômetra tenha se lembrado de fazê-los considerar as linhas independentemente de sua largura e de sua- espessura; então, julgar que este meio ou este método de abstração é o mais apropriado para facilitar a seus alunos a inteligência de certas proposições de geometria é dizer que eles fazem menos esforço de atenção, e experimentam uma sensação menos incômoda servindo-se melhor deste método que de outro. Suponhamos, para dar um último exemplo, que, por um exame separado de cada uma das verdades que uma proposição complicada encerra, atinge-se mais facilmente a compreensão desta proposição; julgar então que o meio ou o método da análise é o melhor é o mesmo que dizer que se fez menos esforço de atenção, e que se experimentou, consequentemente, uma sensação menos incômoda quando se considerou em particular cada uma das verdades encerradas nesta proposição complicada, do que quando se quis apreendê-las de uma só vez. Do que eu disse resulta que os juízos emitidos sobre os meios ou os métodos, que o acaso nos apresenta para atingir um determinado fim, são precisamente apenas sensações, e que, no homem, tudo se reduz ao sentir. Mas, dir-se-á, como, até hoje, se supôs em nós uma faculdade de julgar distinta da faculdade de sentir? Só se deve esta suposição, responderei, à impossibilidade, a que se deu crédito até este momento, de não explicar de maneira diferente certos erros do espírito. Para vencer esta dificuldade, vou, nos capítulos seguintes, mostrar que todos os nossos falsos juízos e nossos erros se relacionam a duas causas que supõem em nós apenas a faculdade de sentir; que seria, consequentemente, inútil, até absurdo, admitir em nós uma faculdade de julgar que não explicaria nada que não se possa explicar sem ela. Entro então neste tema e afirmo que não há juízo falso que não seja um efeito quer de nossas paixões, quer de nossa ignorância. CAPÍTULO III Da ignorância Nós nos enganamos, quando levados por uma paixão e fixando toda a nossa atenção sobre um dos lados de um objeto, queremos, por este único lado, julgar o objeto inteiro. Enganamo-nos ainda quando, erigindo-nos juízes de um assunto, nossa memória não está comprometida com todos QS fatos da comparação dos quais depende neste nível a justeza de nossas decisões. Não é que ninguém tenha o espírito justo: cada um vê bem o que vê; mas ninguém desconfia o suficiente de sua ignorância, acredita-se muito facilmente que aquilo que se vê num objeto é tudo o que se pode nele ver. Nas questões um pouco difíceis, a ignorância deve ser considerada como a principal causa de nossos erros. Para saber o quanto, neste caso, é fácil iludir-se a si próprio, e como, extraindo consequências sempre justas de seus princípios, os homens chegam a resultados inteiramente contraditórios, escolherei, por exemplo, uma questão um pouco complexa: a do luxo, sobre a qual se emitiram juízos muito diferentes, à medida que se considerou sob este ou aquele aspecto. Como a palavra luxo é vaga, não possui nenhum sentido bem determinado, e comumente é apenas uma expressão relativa, é preciso imediatamente ligar uma ideia nítida a esta palavra luxo tomada num sentido rigoroso e dar, em seguida, uma definição do luxo considerado em relação a uma nação e em relação a um indivíduo. Numa significação rigorosa, deve-se compreender por luxo toda espécie de superfluidades, isto é, tudo o que não é absolutamente necessário para a conservação do homem. Quando se trata de um povo civilizado e dos indivíduos que o compõem, esta palavra luxo tem outra significação, torna-se completamente relativa. O luxo de uma nação civilizada é o emprego de suas riquezas naquilo que o povo que se identifica a esta nação denomina superfluidades. É o caso em que se acha a Inglaterra em relação à Suíça. O luxo, num indivíduo, é da mesma maneira o emprego de suas riquezas naquilo que se deve denominar superfluidades em relação ao posto que este homem ocupa num estado e no país em que vive. ( ... ) Dada esta definição, vemos sob que aspectos diferentes se considerou o luxo das nações, quando uns o consideraram útil, outros prejudicial ao Estado. Os primeiros dirigiram seus olhares para estas manufaturas que o luxo constrói, onde o estrangeiro se precipita em trocar seus tesouros pela indústria de uma nação. Eles veem o aumento das riquezas conduzir em seguida ao aumento do luxo e à perfeição das artes agradáveis. O século do luxo lhes parece a época da grandeza e do poder de um Estado. A abundância de dinheiro que ele supõe e atrai torna, dizem, a nação feliz em seu interior e temível exteriormente. É o dinheiro que traz a soldo um grande número de tropas, constrói armazéns, fornece arsenais, contrata, mantém alianças com grandes príncipes, e uma nação, enfim, pode não somente resistir, mas ainda comandar povos mais numerosos, e, consequentemente, mais poderosos do que ela. Se o luxo torna um Estado temível no exterior, que felicidade ele não proporciona no interior! Ele suaviza os costumes, cria novos prazeres, fornece por este meio subsistência a uma infinidade de operários. Excita uma cobiça salutar que arranca o homem desta inércia, deste tédio que se deve considerar como uma das doenças mais comuns e mais cruéis da humanidade. Difunde por toda a parte um calor intenso, faz circular a vida em todos os membros de um Estado, desperta a indústria, abre os portos, constrói navios, guia-os através do oceano e torna, afinal, comuns a todos os homens as produções e as riquezas que a natureza ávida encerra no fundo dos mares, nos abismos da terra ou que ela mantém dispersas em mil climas diferentes. Eis, acho, o ponto de vista sob o qual o luxo se apresenta aos que o consideram como útil aos Estados. Examinemos agora o aspecto sob o qual ele se oferece aos filósofos que o consideram como funesto às nações. A felicidade dos povos depende quer da felicidade que desfrutam dentro de seus limites, quer do respeito que inspiram no exterior. Em relação ao primeiro objeto, pensamos, dirão estes filósofos que o luxo e as riquezas que ele atrai num Estado só tornariam as pessoas mais felizes se estas riquezas fossem menos desigualmente distribuídas e se cada um pudesse alcançar as comodidades das quais a indigência o obriga a se privar. O luxo não é, então, nocivo enquanto luxo, mas simplesmente como efeito de uma grande desproporção entre as riquezas dos cidadãos. O luxo também não é nunca extremo quando a partilha das riquezas não é demasiado desigual; ele aumenta à medida que elas se concentram num número muito pequeno de mãos; atinge afinal o seu fim quando a nação se divide em duas classes: uma tem excesso de superfluidades, a outra carece do necessário. Uma vez atingido este ponto, o estado de uma nação é tão cruel quanto incurável. Como restabelecer, então, alguma igualdade nas fortunas dos cidadãos? O homem rico terá comprado grandes domínios: à custa de aproveitar do incômodo de seus vizinhos, terá reunido em pouco tempo uma infinidade de pequenas propriedades a seu patrimônio. Diminuído o número de proprietários, o de diaristas será aumentado: quando estes últimos estiverem tão multiplicados a ponto de haver mais trabalhadores do que trabalho, então o diarista seguirá a circulação de qualquer mercadoria, cujo valor diminui quando ela se torna comum. Além disso, o homem rico, que possui mais luxo ainda do que riquezas, está interessado em abaixar o preço dos salários, em oferecer ao diarista apenas o ordenado absolutamente necessário para sua subsistência: “Acredita-se comumente que os campos são arruinados pelas corveias, tributos e sobretudo pelas derramas. Eu conviria de bom grado que elas são muito onerosas. Não convém porém imaginar que a simples supressão desse imposto torne a condição dos aldeões muito feliz. Em muitas províncias, a jornada é de oito soldos. Ora, desses oito soldos, se eu deduzo a imposição da Igreja, ou seja, quase noventa festas ou domingos, e talvez uns trinta dias no ano em que o trabalhador é incomodado, sem trabalho, ou empregado nas corveias, só lhe restam, um pelo outro, uns seis soldos por dia. Enquanto solteiro, pretendo que seis soldos provejam as despesas, o alimentem, o vistam, o alojem; depois de casado, esses seis soldos não mais poderão bastar-lhe porque, nos primeiros anos de casamento, a mulher, inteiramente ocupada em cuidar ou aleitar as crianças, nada pode ganhar. Suponhamos que lhe restituam inteiramente a derrama, ou seja, cinco ou seis francos, ele teria aproximadamente um liard a mais para gastar por dia. Ora, esse liard em nada mudaria certamente sua situação. Que seria pois necessário fazer para torná-la favorável? Elevar consideravelmente o preço das jornadas. Para isto, seria necessário que os senhores vivessem habitualmente em suas terras. A exemplo de seus pais, recompensariam os serviços de seus empregados doando-lhes alguns acres de terra; o número dos proprietários aumentaria insensivelmente; o dos diaristas diminuiria e estes, tornados mais raros, poriam sua fadiga a um preço mais alto. (Nota do Autor)” a necessidade constrange este último a se contentar; mas se lhe sobrevier alguma doença ou algum aumento de família, então, à falta de alimentação saudável ou suficientemente abundante, ele se torna enfermo, morre e deixa ao Estado uma família de mendigos. Para prevenir semelhante mal, seria preciso recorrer a uma nova distribuição das terras: distribuição sempre injusta e impraticável. Torna-se portanto evidente que, atingido o luxo num certo período, fica impossível restabelecer alguma igualdade entre a fortuna dos cidadãos. Então os ricos e as riquezas se dirigem às capitais, para onde os atraem os prazeres e as artes do luxo: então o campo permanece inculto e pobre; sete ou oito milhões de homens definham na miséria, “É bem estranho que os países elogiados por seu luxo e sua polícia sejam os países onde a maioria dos homens é mais infeliz do que as nações selvagens, tão desprezadas pelas nações civilizadas. Quem duvida que o estado do selvagem seja preferível ao do aldeão? O selvagem não tem, como ele, que temer a prisão, a sobrecarga dos impostos, a afronta de um senhor o poder arbitrário de um subdelegado: não é perpetuamente humilhado e embrutecido pela presença diária de homens mais ricos e mais poderosos que ele; sem superior, sem servidão, mais robusto que o aldeão porque ele é mais feliz, goza da felicidade da igualdade e sobretudo do bem inestimável da liberdade, tão inutilmente reclamada pela maior parte das nações. Nos países civilizados a arte da legislação consistiu frequentemente apenas em fazer uma infinidade de homens concorrerem para a felicidade de um número reduzido, mantendo, para tanto, a multidão na opressão, e em violar contra ela todos os direitos da humanidade. (Nota do Autor) e cinco ou seis mil vivem numa opulência que os torna odiosos, sem torná-las mais felizes. Com efeito, o que pode acrescentar à felicidade de um homem a excelência maior ou menor de sua mesa? Não lhe basta ter fome, compatibilizar seus exercícios ou a extensão de suas caminhadas com o mau gosto de seu cozinheiro, para achar deliciosa toda comida que antes seria detestável? Além disso, a frugalidade e o exercício não o fazem escapar a todas as doenças que a gula excitada pelos bons pratos ocasiona? A felicidade não depende, portanto, da excelência da mesa. Também não depende da magnificência dos trajes ou das carruagens: quando se aparece em público trajando um modelo requintado e sendo conduzido por um belo I veículo, não se experimentam prazeres físicos, que são os únicos prazeres reais; no máximo, permanece-se afetado por um prazer de vaidade, cuja privação seria talvez insuportável, mas cuja satisfação é insípida. Sem aumentar sua felicidade, o homem rico não faz, pela ostentação de seu luxo, mais do que ofender a humanidade e o infeliz que, comparando os farrapos da miséria com os trajes da opulência, imagina que entre a felicidade do rico e a sua só existe a diferença das vestimentas, o qual se recorda nesta ocasião das dificuldades que sofre, e se acha assim privado da única consolação do desgraçado: o esquecimento momentâneo de sua miséria. É certo portanto, continuarão estes filósofos, que o luxo não faz a felicidade de ninguém e que, supondo uma enorme desigualdade de riquezas entre os cidadãos, supõe a infelicidade da grande maioria deles. O povo no qual o luxo se introduziu não é então feliz dentro de seus limites: vejamos se ele é respeitável no exterior. A abundância de dinheiro que o luxo atrai num Estado se impõe de imediato à imaginação; este Estado é, por alguns instantes, um Estado poderoso: mas esta vantagem (sendo suposto que possa existir alguma vantagem independente da felicidade dos cidadãos) é, como nota Hume, apenas uma vantagem passageira. Tão semelhantes quanto os mares, que sucessivamente abandonam e cobrem mil praias diferentes, as riquezas devem sucessivamente percorrer mil climas diferentes. Quando, pela beleza de suas manufaturas e a perfeição das artes de luxo, uma nação atraiu para si o dinheiro dos povos vizinhos, é evidente que o preço dos gêneros e da mão de obra deve necessariamente abaixar nestes povos empobrecidos, e que estes povos, açambarcando alguns fabricantes, alguns operários desta nação rica, podem empobrecê-la por sua vez provendo-se, por sua conta, de mercadorias que esta nação lhes fornecia. Ora, à medida que a falta de dinheiro se faça sentir num Estado acostumado ao luxo, a nação cai em descrédito. Para evitar estas consequências, seria preciso reaproximar-se duma vida simples, mas tanto os costumes como as leis a isto se opõem. Assim, a época de maior luxo de uma nação é comumente a época mais próxima de sua queda e de seu aviltamento. A felicidade e o poder aparente que o luxo comunica durante alguns instantes às nações são comparáveis àquelas febres intensas que emprestam, no transe, uma força incrível ao doente que elas devoram, e que parecem multiplicar as forças de um homem apenas para privá-lo, no declínio do acesso, seja destas próprias forças, seja da vida. Para se convencer desta verdade, dirão ainda os mesmos filósofos, busquemos o que deve tornar uma nação realmente respeitável a seus vizinhos: é, indubitavelmente, o número, o vigor de seus cidadãos, seu apego à pátria e, enfim, sua coragem e sua virtude. Quanto ao número dos cidadãos, sabe-se que os países de luxo não são os mais povoados; que, na mesma extensão de terra cultivada, a Suíça pode contar com mais habitantes do que a Espanha, a França e até a Inglaterra. O desgaste de homens que um grande comércio ocasiona necessariamente não é, neste país, a única causa do despovoamento: o luxo cria mil outras, visto que ele atrai as riquezas às capitais, deixa os campos na penúria, favorece o poder arbitrário e, consequentemente, o aumento das contribuições, e que dá, enfim, às nações opulentas a facilidade de contrair dívidas, que elas não podem liquidar sem sobrecarregar os povos com impostos onerosos. Ora, estas diferentes causas de despovoamento, enterrando todo um país na miséria, devem necessariamente enfraquecer a constituição dos corpos. Um povo inclinado ao luxo não é nunca um povo robusto: seus cidadãos, uns são enfraquecidos pela indolência, outros extenuados pela necessidade. Se os povos selvagens ou pobres, como comenta Folard, possuem neste nível uma grande superioridade sobre os povos entregues ao luxo, é porque o lavrador é, nas nações pobres, frequentemente mais rico que nas nações opulentas: eis por que um camponês suíço está melhor do que um camponês francês. Para formar corpos robustos é preciso uma alimentação simples, mas saudável e bastante abundante; um exercício que, sem ser excessivo, seja forte; uma grande aptidão para suportar as intempéries das estações; aptidão que contraem os camponeses que, por esta razão, estão infinitamente mais aptos para sustentar as fadigas da guerra do que os operários, a maior parte habituados a uma vida sedentária. É também nas nações pobres que se formam estes exércitos infatigáveis que mudam o destino dos impérios. Que muralhas oporia a estas nações um país entregue ao luxo e à indolência? Não pode impor-lhas nem pelo número, nem pela força de seus habitantes. O apego à pátria, dir-se-á, pode suprir o número e a força de seus habitantes. Mas quem produziria neste país este amor virtuoso da pátria? A ordem dos camponeses, que compõe por si só os dois terços de cada nação, é aí infeliz: a dos artesãos não possui nada; transplantado de sua cidadezinha para uma manufatura ou uma oficina, e desta oficina para outra, o artesão está familiarizado com a ideia do deslocamento; ele não pode contrair apego a lugar algum; seguro em quase toda a parte de sua subsistência, deve considerar-se não como cidadão de um país, mas como um habitante do mundo. Semelhante povo não pode então se distinguir muito tempo por sua coragem, porque, num povo, a coragem é comumente ou o efeito do vigor do corpo, desta confiança cega em suas forças, que esconde aos homens a metade do perigo ao qual se expõem, ou o efeito de um amor violento pela pátria que lhes faz desdenhar o perigo: ora, o luxo cala com o tempo estas duas fontes de coragem. Talvez a cobiça abrisse uma terceira, se vivêssemos ainda naqueles séculos bárbaros quando se reduziam os povos à servidão e se abandonavam as cidades à pilhagem. Não sendo mais o soldado agora excitado por este motivo, só pode sê-lo pelo que se denomina a honra: ora, o desejo da honra se extingue num povo, quando o amor pelas riquezas se acende. Em vão se diria que as nações ricas ganham menos em felicidade e em prazeres do que perdem em virtude e em coragem: um espartano não era menos feliz que um persa; os primeiros romanos, cuja coragem era recompensada pela dádiva de algumas mercadorias, não teriam invejado o destino de Crasso. Caio Duílio, que, por ordem do Senado, era todas as noites conduzido à sua casa à claridade de archotes e ao som de flautas, não era menos sensível a este tosco concerto como nós o somos à mais brilhante sonata. Mas, concordando que as nações opulentas busquem algumas comodidades desconhecidas aos povos pobres, quem desfrutará tais comodidades? Um pequeno número de homens privilegiados e ricos, que, tomando-se pela nação inteira, concluem por seu bem-estar pessoal que o camponês é feliz. Mas, ainda quando estas comodidades estiverem distribuídas entre um maior número de cidadãos, qual é o preço desta vantagem, comparada às que uma alma forte, corajosa e inimiga da escravidão busca nos povos pobres? As nações nas quais o luxo se introduziu são mais cedo ou mais tarde vítimas do despotismo; elas apresentam mãos fracas e débeis aos grilhões com que a tirania as quer carregar. Como evitá-lo? Nestas nações, alguns vivem na indolência e a indolência não pensa nem prevê: outros definham na miséria e a necessidade premente, inteiramente ocupada em se satisfazer, não dirige seu olhar até a liberdade. Na forma despótica, as riquezas destas nações estão nas mãos de seus dominadores; na forma republicana, pertencem aos poderosos e aos povos corajosos que lhes são vizinhos. ( ... ) A conclusão do que acabo de dizer é que os homens, vendo o que veem, extraindo consequências justas de seus princípios, chegam todavia a resultados frequentemente contraditórios porque não têm na memória todos os objetos da comparação dos quais deve resultar a verdade que procuravam. E inútil, penso, dizer que, apresentando a questão do luxo sob dois aspectos diferentes, eu não pretendo decidir se o luxo é realmente nocivo ou útil aos Estados: seria preciso, para resolver de maneira exata este problema moral, entrar em detalhes estranhos ao objeto que me proponho: quis somente provar, por este exemplo, que nas questões complicadas, e sobre as quais se julga sem paixão, só se engana por ignorância, isto é, imaginando que o lado que se vê num objeto é tudo o que há para ver neste mesmo objeto. CAPÍTULO IV Do abuso das palavras Outra causa de erro, também devida à ignorância, é o abuso das palavras e as ideias pouco nítidas que a isso se vinculam. Locke tratou deste assunto de modo tão feliz que me permito o seu exame apenas para poupar aos leitores o trabalho das pesquisas, visto que nem todos têm a obra deste filósofo igualmente presente ao espírito. Antes de Locke, Descartes já havia dito que os peripatéticos, escondidos atrás da obscuridade das palavras, eram bastante semelhantes a cegos, que, para tornar a luta igual, atraíam um homem clarividente a uma caverna obscura; se este homem, acrescentava ele, soubesse trazer luz à caverna, isto é, forçar os peripatéticos a vincular ideias nítidas às palavras de que eles se serviam, o seu triunfo estaria garantido. De acordo com Descartes e Locke, vou provar, portanto, que, em meta física e em moral, o abuso das palavras e a ignorância de sua verdadeira significação é, se ouso dizer, um labirinto onde os maiores gênios já se perderam alguma vez. Tomarei como exemplo algumas dessas palavras que provocaram entre os filósofos as mais longas e mais vivas querelas, tais como, em metafísica, os termos matéria, espaço e infinito. Desde sempre, sustentou-se alternadamente que a matéria sentia ou não sentia e, a esse respeito, discutiu-se muito longa e vagamente. Muito tarde, achou-se de se perguntar sobre o que se discutia e de vincular uma ideia precisa a essa palavra: matéria. Se se tivesse fixado a sua significação de início, ter-se-ia reconhecido que os homens eram, se ouso dizer, os criadores da matéria, que a matéria não era um ser, que havia na natureza apenas indivíduos a que se tinha dado o nome de corpo e só se podia entender pelo termo matéria a coleção das propriedades comuns a todos os corpos. Assim determinada a significação dessa palavra, tratava-se apenas de saber se a extensão, a solidez, a impenetrabilidade eram as únicas propriedades comuns a todos os corpos e se a descoberta de uma força tal como, por exemplo, a atração, não podia levar a supor que os corpos tivessem ainda algumas propriedades desconhecidas, tais como a faculdade de sentir, que, manifestando-se apenas nos corpos organizados dos animais, podia ser, no entanto, comum a todos os indivíduos. Reduzida a questão a esse ponto, sentiu-se então que, se, a rigor, é impossível demonstrar que todos os corpos são absolutamente insensíveis, todo homem que não for esclarecido a esse respeito pela revelação só pode decidir a questão calculando e comparando a probabilidade dessa opinião com a probabilidade da opinião contrária. Para terminar com esta discussão, não era portanto de modo algum necessário construir diferentes sistemas do mundo, perder-se na combinação das possibilidades e fazer esses esforços prodigiosos de espírito que só desembocaram e só deviam realmente desembocar em erros mais ou menos engenhosos. Com efeito (que me seja permitido observar aqui), se é preciso tirar todo o partido possível da observação, é preciso caminhar apenas com ela, deter-se no momento em que ela nos abandona e ter a coragem de ignorar o que não se pode ainda saber. Instruídos pelos erros dos grandes homens que nos precederam, devemos sentir que as nossas observações multiplicadas e reunidas bastam a custo para formar alguns desses sistemas parciais encerrados no sistema geral; que é das profundezas da imaginação que se tirou, até agora, o sistema do universo; e que, se sempre o que se tem são novidades mutiladas dos países afastados de nós, os filósofos, de igual modo, têm apenas novidades mutiladas do sistema do mundo. Com muito espírito e muitas combinações, nunca fornecerão mais do que fábulas, até que o tempo e o acaso lhes deem um fato geral a que todos os outros possam relacionar-se. O que disse a respeito do termo matéria, digo do espaça; a maioria dos filósofos fizeram dele um ser e a ignorância de sua significação ocasionou longas querelas. Eles as teriam abreviado, se houvessem ligado uma ideia nítida a essa palavra: estariam convencidos então de que o espaço, considerado abstratamente, é o puro nada; de que o espaço, considerado nos corpos, é o que se denomina a extensão; de que devemos a ideia de vazio, que compõe, em parte, a ideia de espaço, ao intervalo percebido entre duas montanhas elevadas, intervalo que, sendo ocupado apenas pelo ar, isto é, por um corpo que, a certa distância, não nos provoca impressão sensível alguma, deveu dar-nos uma ideia do vazio, que não é outra coisa a não ser a possibilidade de representar-nos montanhas afastadas umas das outras, sem que a distância que as separa seja preenchida por algum corpo. Com relação à ideia de infinito, encerrada ainda na ideia de espaço, afirmo que devemos essa ideia de infinito apenas ao poder que um homem, colocado numa planície, tem de recuar sempre os seus limites, sem que se possa, a esse respeito, fixar o termo em que sua imaginação deva deter-se; a ausência dos limites é portanto, de qualquer espécie que seja, a única ideia que possamos ter do infinito. Se os filósofos, antes de estabelecer opinião alguma a esse respeito, tivessem determinado a significação dessa palavra infinito, acredito que, forçados a adotar a definição acima, não teriam perdido tempo em discussões frívolas. É à falsa filosofia dos séculos precedentes que se deve atribuir principalmente a ignorância grosseira da verdadeira significação das palavras em que nos achamos; essa filosofia consistia quase inteiramente na arte de delas abusar. Essa arte, que produzia toda a ciência dos escolásticos, confundia todas as ideias e a obscuridade que lançou a todas as expressões propagou-se, de modo geral, a todas as ciências e, principalmente, à moral. Quando o célebre Rochefoucault disse que o amor-próprio é o princípio de todas as nossas ações, como a ignorância da verdadeira significação desse termo amor-próprio levantou pessoas contra esse ilustre autor! Tomou-se o amor-próprio como orgulho e vaidade e imaginou-se, por conseguinte, que Rochefoucault colocava no vício a fonte de todas as virtudes. No entanto, era fácil perceber que o amor-próprio, ou o amor de si, não era outra coisa a não ser um sentimento gravado em nós pela natureza; que esse sentimento se transformava em cada homem em vício ou virtude, segundo os gostos e as paixões que o animavam; e que o amor-próprio, diferentemente modificado, produzia igualmente o orgulho e a modéstia. O conhecimento dessas ideias teria preservado Rochefoucault da censura tão repetida de que ele via a humanidade negra demais; ele a conheceu tal como é. Concordo que a visão nítida da indiferença de quase todos os homens a nosso respeito é um espetáculo desolador para a nossa vaidade, mas, enfim, é preciso tomar os homens como são: irritar-se com os efeitos de seu amor-próprio é queixar-se dos aguaceiros da primavera, dos ardores do verão, das chuvas do outono e das geadas do inverno. Para amar os homens é preciso esperar pouco deles: para ver os seus defeitos sem amargor é preciso acostumar-se a perdoá-las e sentir que a indulgência é uma justiça que a fraca humanidade tem direito de exigir da sabedoria. Ora, nada mais apropriado para levar-nos à indulgência, a fechar os nossos corações ao ódio, a abri-los aos princípios de uma moral humana e doce; do que o conhecimento profundo do coração humano, tal como o possuía Rochefoucault. Os homens mais esclarecidos têm sido quase sempre os mais indulgentes. Quantas máximas de humanidade espalhadas em suas obras! Vivei, dizia Platão, com os vossos inferiores e os vossos súditos como com amigos infelizes. "Ouvirei sempre", dizia um filósofo indiano, "os ricos gritarem: Senhor castiga quem quer que nos furte a menor parcela de nossos bens; enquanto, com uma voz lamentosa e as mãos estendidas ao céu, o pobre diz: Senhor dá-me parte dos bens que prodigalizas ao rico e, se mais infortunados me tirarem uma parte, não implorarei de modo algum a tua vingança e olharei esses furtos como se olha, no tempo das semeaduras, as pombas espalharem-se pelos campos para aí procurar o seu alimento”. Aliás, se o termo amor-próprio, mal compreendido, levantou tantos pequenos espíritos contra Rochefoucault, quantas discussões, mais sérias ainda, não ocasionou a palavra liberdade? Discussões quê teriam terminado facilmente se todos os homens, tão amigos da verdade quanto Malebranche, estivessem convencidos, como este hábil teólogo, em sua premonição física, de que a liberdade era um mistério. Quando me atiram a essa questão, dizia ele, sou forçado a deter-me imediatamente. Não é que não se possa formar uma ideia nítida da palavra liberdade, tomada numa significação comum. O homem livre é o homem que não carrega ferros nem está detido nas prisões nem é intimidado, como o escravo, pelo temor dos castigos; neste sentido, a liberdade do homem consiste no exercício livre de seu poder: digo de seu poder, porque seria ridículo tomar como uma não liberdade a impotência que temos de atravessar a nuvem como a águia, viver sob as águas como a baleia e fazer-nos rei, papa ou imperador. Tem-se portanto uma ideia nítida desse termo liberdade, tomado numa significação comum. O mesmo não ocorre quando se aplica esse termo liberdade à vontade. O que seria então a liberdade? Só se poderia entender por essa palavra o poder livre de querer ou de não querer uma coisa; mas esse poder suporia que podem existir vontades sem motivos e, por conseguinte, efeitos sem causa. Seria preciso portanto que pudéssemos igualmente querer-nos bem e mal; suposição absolutamente impossível. Com efeito, se o desejo do prazer é o princípio de todos os nossos pensamentos e de todas as nossas ações, se todos os homens tendem continuamente para a sua felicidade real ou aparente, todas as nossas vontades são, portanto, apenas o efeito dessa tendência. Ora, todo efeito é necessário. Nesse sentido, não se pode portanto vincular nenhuma ideia nítida a esse termo liberdade. Mas, dir-se-á, se se tem necessidade dela para perseguir a felicidade em toda parte em que seja percebida, pelo menos, somos livres para a escolha dos meios que empregamos para tornar-nos felizes? “Há ainda pessoas que encaram a suspensão de espírito como uma prova de liberdade; não percebem que a suspensão é tão necessária quanto a precipitação nos julgamentos. Quando, por falta de exame, somos expostos a alguma infelicidade, instruído pelo infortúnio, o amor a nós mesmos deve nos impelir à suspensão. Enganamo-nos igualmente sobre a palavra deliberação. Julgamos deliberar quando temos por exemplo que escolher entre dois prazeres quase iguais e quase equilibrados; no entanto o que se faz então é apenas confundir deliberadamente a lentidão com que, entre dois pesos quase iguais, o mais pesado suplanta um dos pratos da balança. (Nota do Autor)” Sim, responderia eu; mas livre é então apenas um sinônimo de esclarecido, e nada mais se faz do que confundir essas duas noções: conforme um homem souber mais de processo e jurisprudência ou menos e for conduzido, nos negócios, por um advogado mais hábil ou menos, tomará um partido melhor ou pior; mas, qualquer partido que tome, o desejo de sua felicidade fá-lo-á escolher sempre o partido que lhe parecerá mais conveniente a seus interesses, seus gostos, suas paixões e, enfim, ao que ele considera como a sua felicidade. Como se poderia explicar filosoficamente o problema da liberdade? Se, como provou Locke, somos discípulos dos amigos, parentes, leituras e, enfim, de todos os objetos que nos rodeiam, é preciso que todos os nossos pensamentos e nossas vontades sejam efeitos imediatos ou sequências necessárias das impressões que recebemos. Não se pode portanto formar nenhuma ideia desse termo liberdade, aplicado à vontade; "A liberdade", diziam os estoicos, "é uma quimera. Por não conhecer os motivos, reunir as circunstâncias que nos determinam a agir de certa maneira, nós nos julgamos livres. Pode-se pensar que o homem tenha verdadeiramente o poder de se determinar? Não são antes os objetos exteriores, combinados de mil maneiras diferentes, que o empurram e determinam? Sua vontade é uma faculdade vaga e independente, que age sem escolha e por capricho? Ela age, seja em consequência de um julgamento, de um ato do entendimento, que lhe representa que tal coisa é mais vantajosa a seus interesses que qualquer outra; seja que, independentemente desse ato, as circunstâncias em que um homem se encontra o inclinam, o forçam a se voltar para um determinado lado, e ele então se gaba que se voltou livremente, ainda que não tenha podido querer se voltar para outro. (Nota do Autor)”. é preciso considerá-la como um mistério, gritar com São Paulo: O altitudo!, Convir que somente a teologia pode discorrer sobre tal matéria e que um tratado filosófico da liberdade seria apenas um tratado dos efeitos sem causa. Vê-se que germe eterno de discussões e calamidades, com frequência, a ignorância da verdadeira significação das palavras encerra. Sem falar do sangue vertido pelos ódios e discussões teológicas, discussões quase todas fundadas num abuso de palavras, quantas outras infelicidades ainda essa ignorância não produziu e em quantos erros não atirou as nações? ( ... ) Entre os povos, como entre os soberanos, não há nenhum em que o abuso das palavras não tenha precipitado num erro grosseiro. Para escapar a essa armadilha, seria preciso, segundo o conselho de Leibniz, criar uma língua filosófica em que se determinaria a significação precisa de cada palavra. Então, os homens poderiam entender-se, transmitir exatamente as suas ideias, e as discussões, que o abuso das palavras torna eternas, terminariam, e os homens, em todas as ciências, seriam logo forçados a adotar os mesmos princípios. Mas talvez seja impossível a execução de um projeto tão útil e tão desejável. Não é absolutamente aos filósofos; é à necessidade que se deve a invenção das línguas; e essa necessidade, nesse campo, não é difícil ser satisfeita. Consequentemente, vincularam-se, de início, algumas ideias falsas a certas palavras; em seguida, combinaram-se e compararam-se essas ideias e essas palavras entre si; cada nova combinação produziu um novo erro; esses erros multiplicaram-se e, multiplicando-se, complicaram-se de tal modo que seria agora impossível, sem uma fadiga e um trabalho infinitos, seguir e descobrir a sua fonte. As línguas são como um cálculo algébrico: de início escapam alguns erros; esses erros não são percebidos; calcula-se segundo os primeiros cálculos; de proposição a proposição, chega-se a consequências inteiramente ridículas. Constata-se o absurdo; mas como reencontrar o lugar em que escapou o primeiro erro? Para tanto, seria preciso refazer e verificar um grande número de cálculos; infelizmente, existem poucas pessoas que podem empreendê-lo e ainda menos que o querem, sobretudo quando o interesse dos homens poderosos se opõe a essa verificação. Mostrei as verdadeiras causas de nossos falsos juízos; fiz ver que todos os erros do espírito têm sua fonte ou nas paixões ou na ignorância, seja de certos fatos, seja da verdadeira significação de certas palavras. O erro não está, pois, essencialmente vinculado à natureza do espírito humano; nossos falsos juízos são portanto o efeito de causas acidentais que não supõem em nós de modo algum uma faculdade de julgar distinta da faculdade de sentir; o erro é, pois, apenas um acidente; de onde se segue que todos os homens têm essencialmente o espírito justo. “O Não se pode dizer que os homens não tenham o espírito justo, no sentido em que eles veem o que não veem; mas no sentido em que eles não veem como deveriam ver, se fixassem mais sua atenção, e se se aplicassem a ver direito os objetos antes de se pronunciarem sobre o que eles são. Assim, julgar é apenas ver ou sentir que um objeto não é outro ou sentir que uma coisa não tem com outra coisa todas as relações que se procuram ou que se supõem. (Nota do Autor)”. Uma vez admitidos esses princípios, nada me impede agora de adiantar que julgar, como já provei, é precisamente apenas sentir. A conclusão geral deste discurso é que se pode considerar o espírito ou como a faculdade produtora de nossos pensamentos - e o espírito, nesse sentido, é apenas sensibilidade e memória - ou como um efeito dessas mesmas faculdades - e, nessa segunda significação, o espírito é apenas uma reunião de pensamentos e pode subdividir-se, em cada homem, em tantas partes quantas ideias tem esse homem. Eis aí os dois aspectos sob os quais se apresenta o espírito considerado em si mesmo: examinemos agora o que é o espírito em relação à sociedade. DISCURSO II DO ESPIRITO EM RELAÇAO COM A SOCIEDADE (CAPÍTULOS I-II-IV- XIII /XVII-XXII IXXIV) CAPÍTULO I A ciência não é senão a lembrança seja dos fatos, seja das ideias de outrem: o espírito, distinto da ciência, é pois a reunião de ideias novas quaisquer. Esta definição do espírito é justa; é até muito instrutiva para um filósofo, mas não pode ser comumente adotada: é preciso dar ao público uma definição que lhe possibilite comparar os diferentes espíritos entre si e julgar sua força e sua extensão. Ora, admitindo a definição que acabo de dar, como o público mediria a extensão de espírito de um homem? Quem forneceria ao público uma lista exata das ideias deste homem? E como distinguir nele a ciência e o espírito? Suponhamos que eu me atribua a descoberta de uma ideia já conhecida: seria preciso que o público, para saber se mereço realmente o título de inventor produtivo, saiba preliminarmente o que li, vi e escutei, conhecimento que ele não quer, nem pode adquirir. Além do mais, partindo da hipótese impossível de que o público pudesse fazer um arrolamento exato tanto da quantidade quanto da espécie das ideias de um homem, digo que em consequência deste arrolamento o público estaria frequentemente obrigado a pôr, entre os gênios, homens dos quais não suspeitava que se pudesse conceder o título de homens de espírito: tais são, em geral, todos os artistas. Por mais frívola que pareça uma arte, esta, no entanto, é suscetível de combinações infinitas. Quando Marcel, com a mão apoiada sobre a fronte, o olhar fixo, o corpo imóvel e numa atitude de meditação profunda, exclama subitamente, vendo dançar seu aluno: Quantas coisas num minueto! É certo que este dançarino percebia então, na maneira de dobrar, elevar e de ajustar seus passos, mensagens invisíveis aos olhos comuns, e sua exclamação é ridícula apenas pela enorme importância posta em pequenas coisas. Ora, se a arte da dança encerra um grande número de ideias e de combinações, quem sabe se a arte da declamação não supõe, na atriz que se destaca, tantas ideias quantas um político emprega para constituir um sistema de governo? Quem pode assegurar, quando se consultam nossos bons romances, que, nos gestos, nos enfeites e nos discursos estudados de uma cortesã perfeita não entram tantas combinações e ideias quantas se exigem para a descoberta de qualquer sistema do mundo e que, em gêneros muito diversos, a Le-Couvreur e Ninon l'Enclos não tenham possuído tanto espírito quanto Aristóteles e Sólon? Não pretendo demonstrar rigorosamente a verdade desta proposição, mas somente fazer sentir que, por mais ridícula que ela pareça, não há todavia ninguém que possa resolvê-la exatamente. Tão perdidos em nossa ignorância, tomamos por limites de uma arte aqueles que esta própria ignorância lhe fornece: mas suponhamos que se pudesse informar o público a este respeito; digo que, ao esclarecê-lo, não se mudaria nada em sua maneira de julgar. Ele não medirá nunca sua estima por uma arte unicamente pelo número maior ou menor de combinações necessárias para consegui-la; 1º porque é impossível fazer o arrolamento; 2º porque só deve considerar o espírito do ponto de vista sob o qual é importante conhecê-lo, ou seja, em relação à sociedade. Ora, sob este aspecto, digo que o espírito é apenas a reunião mais ou menos numerosa, não somente de ideias novas, mas ainda de ideias interessantes para o público, e é menos ao número e à fineza do que à escolha feliz de nossas ideias que se atribui a reputação de homem de espírito. Com efeito, se as combinações do jogo de xadrez são infinitas, se não se pode sobressair sem realizar um grande número, por que o público não dá aos grandes jogadores de xadrez o título de grandes espíritos? É porque suas ideias não lhe são úteis, agradáveis ou instrutivas e porque ele não tem, consequentemente, nenhum interesse em estimá-los: ora, o interesse “O vulgo restringe comumente a significação desta palavra interesse somente ao amor pelo dinheiro: o leitor esclarecido sentirá que tomo esta palavra em um sentido mais extenso e que a aplico geralmente a tudo o que nos pode proporcionar prazeres ou nos evitar dores. (Nota do Autor)”. preside todos os nossos juízos. Se o público fez sempre pouco caso destes erros cuja invenção supõe algumas vezes mais combinações e espírito que a descoberta de uma verdade e se ele estima mais Locke do que Malebranche, é porque mede sempre sua estima pelo seu interesse. Em que outra balança pesaria o mérito das ideias humanas? Cada indivíduo julga as coisas e as pessoas pela impressão agradável ou desagradável que delas recebe: o público não é mais do que a reunião de todos os indivíduos, ele só pode tomar sua utilidade como regra de seus juízos. Este ponto de vista, sob o qual examino o espírito, é, creio, o único sob o qual deva ser considerado. É a única maneira de apreciar o mérito de cada ideia, de fixar sobre este ponto a incerteza de nossos juízos e de descobrir enfim a causa da espantosa diversidade de opiniões dos homens em matéria de espírito, diversidade absolutamente dependente da diferença de suas paixões, de suas ideias, de seus preconceitos, de seus sentimentos e, consequentemente, de seus interesses. Seria, com efeito, bem singular se o interesse geral tivesse posto o preço nas diferentes ações dos homens, se lhes tivesse dado o nome de virtuosas, viciosas ou convenientes, na medida em que fossem úteis nocivas ou indiferentes ao público, e que este mesmo interesse não tivesse sido o único distribuidor da estima ou do desprezo ligado às ideias dos homens. Podem-se ordenar as ideias, assim como as ações, em três classes diferentes. As ideias úteis: tomando esta expressão em seu sentido mais amplo, compreendo, por esta palavra, toda ideia apropriada para nos instruir ou nos divertir. As ideias nocivas: são as que exercem sobre nós uma impressão contrária. As ideias indiferentes: quero dizer todas aquelas que, pouco agradáveis em si mesmas, ou tornadas demasiado familiares, não exercem quase nenhuma impressão sobre nós. Ora, semelhantes ideias não possuem quase existência e podem, por assim dizer, trazer apenas por um instante o nome de indiferentes; sua duração ou sucessão, que as torna tediosas, fá-las logo entrar na classe das ideias nocivas. Para fazer sentir o quanto esta maneira de considerar o espírito é fecunda em verdades, farei sucessivamente a aplicação dos princípios que estabeleço, tanto às ações quanto às ideias dos homens, e provarei que em todo tempo, todo lugar, em matéria de moral como em matéria de espírito, é o interesse pessoal que dita o juízo dos indivíduos e o interesse geral que dita o das nações, que desta maneira é sempre, tanto da parte do público quanto da dos indivíduos, o amor ou o reconhecimento que louva o ódio ou a vingança que despreza. Para demonstrar esta verdade e fazer perceber a exata e perpétua semelhança de nossas maneiras de julgar, seja as ações, sejam as ideias dos homens, considerarei a probidade e o espírito em diferentes relações, e relativamente, 1º num indivíduo, 2º numa pequena sociedade, 3º numa nação, 4º nos diferentes séculos e diferentes países, 5º no universo inteiro; e tomando sempre a experiência por guia em minhas investigações," mostrarei que, sob cada um destes pontos de vista, o interesse é o único juiz da probidade e do espírito. CAPÍTULO II Da probidade em relação a um indivíduo Não é de modo algum da verdadeira probidade, isto é, da probidade em relação ao público, que se trata neste capítulo; mas simplesmente da probidade considerada em relação a cada indivíduo. Desse ponto de vista, afirmo que cada indivíduo chama probidade, em outrem, apenas o hábito das ações que lhe são úteis; digo o hábito, porque não é, de modo algum, uma única ação honesta, nem uma única ideia engenhosa, que nos proporciona o título de virtuoso ou espiritual, Sabe-se que não existe avaro que, uma; vez, não se tenha mostrado generoso; liberal que, uma vez, não tenha sido avaro; velhaco que não tenha feito uma boa ação; estúpido que não tenha dito uma frase precisa, e, enfim, homem que, se se aproximarem certas ações de sua vida, não pareça dotado de todas as virtudes e de todos os vícios contrários. Uma consequência maior na conduta dos homens suporia neles uma continuidade de atenção de que são incapazes; eles só diferem uns dos outros por mais ou por menos. O homem absolutamente consequente ainda não existe; e é por isso que não existe nada perfeito sobre a terra, nem no vício nem na virtude. E, portanto, ao hábito das ações que lhe são úteis que um indivíduo dá o nome de probidade; digo das ações, porque não se é de modo algum juiz das intenções. Como se poderia sê-lo? Uma ação quase nunca é o efeito de um sentimento; nós mesmos ignoramos, com frequência, os motivos que nos determinam. Um homem opulento enriquece um homem estimável e pobre; sem dúvida, ele faz uma boa ação; mas é essa ação unicamente o efeito do desejo de tornar alguém feliz? A piedade, a esperança do reconhecimento, a própria vaidade, todos esses diversos motivos, separados ou reunidos, não podem, como seu desconhecimento, tê-la determinado a esta ação louvável? Ora, se se ignoram mui frequentemente os motivos do próprio benefício, como o público deles se aperceberia? É portanto somente pelas ações dos homens que o público pode julgar a sua probidade. Concordo que essa maneira de julgar é ainda falível. Um homem tem, por exemplo, vinte graus de paixão pela virtude, mas ama e tem trinta graus de amor por uma mulher, e essa mulher quer fazer dele um assassino; nessa hipótese, é certo que esse homem está mais próximo do crime do que aquele que, tendo apenas dez graus de paixão pela virtude, terá apenas cinco graus de amor por essa maldosa mulher. De onde concluo que, de dois homens, o mais honesto em suas ações é, muitas vezes, o menos apaixonado pela virtude. Todo filósofo também concorda que a virtude dos homens depende infinitamente das circunstâncias em que eles se acham colocados. Têm-se visto, mui frequentemente, homens virtuosos cederem a um encadeamento infeliz de acontecimentos bizarros. Aquele que, em todas as situações possíveis, responde com sua virtude é um impostor ou um imbecil de quem é preciso, do mesmo modo, desconfiar. Após haver determinado a ideia que vinculo ao termo probidade, considerada em relação a cada indivíduo, é preciso, para assegurar-se da justeza dessa definição, recorrer à observação; ela mostra-nos que há homens a quem uma natureza feliz, um desejo vivo da glória e da estima inspiram pela justiça e pela virtude o mesmo amor que os homens comumente têm pelas grandezas e riquezas. As ações pessoalmente úteis a esses homens virtuosos são as ações justas, conformes ao interesse geral ou que, pelo menos, não lhe são contrárias. Esses homens existem em tão pequeno número que deles faço menção aqui apenas pela honra da humanidade. A classe mais numerosa, a que pertence quase todo o gênero humano, é aquela em que os homens, atentos unicamente a seus interesses, nunca lançaram os seus olhares sobre o interesse geral. Concentrados, por assim dizer, em seu bem-estar, “Nosso ódio ou nosso amor é um efeito do bem ou do mal que nos fazem. Não existe, diz Hobbes, lia estudo dos selvagens, homem maldoso que não seja homem robusto; e, no estado civilizado, que não seja homem de crédito. O poderoso, tomado nesses dois sentidos, não é contudo mais maldoso do que o fraco: Hobbes o sentia mas sabia também que só se dá o nome de maldoso àqueles cuja maldade se deve temer. Ri-se da cólera e dos golpes de uma criança, em geral ela só fica mais engraçadinha; mas a gente se irrita contra o homem forte: seus golpes ferem; ele é tratado como brutal. (Nota do Autor)”. esses homens dão o nome de honestas apenas às ações que lhes são pessoalmente úteis. Um juiz absolve um culpado, um ministro eleva às honras um sujeito indigno; tanto um quanto o outro são sempre justos, no dizer de seus protegidos; mas, se o juiz punir e o ministro censurar, serão sempre injustos aos olhos do criminoso e do desgraçado. Se os monges, encarregados, em sua primeira geração, de escrever a vida de nossos reis, davam apenas a vida de seus benfeitores; se designavam os outros reinados apenas por estas palavras: NIHIL FECIT; e se deram o nome de rois fainéans (reis preguiçosos) a príncipes muito estimáveis, é que um monge é um homem e todo homem, em seus juízos, aconselha-se apenas com o seu interesse. Os cristãos, que davam, com justiça, o nome de barbárie e de crime às crueldades que sobre eles os pagãos exerciam, não deram o nome de zelo às crueldades que exerceram, por sua vez, sobre esses mesmos pagãos? Que se examinem os homens, ver-se-á que não há crime algum que não seja colocado entre as ações honestas pelas sociedades a que esse crime é útil, nem ação útil ao público que não seja censurada por alguma sociedade particular a que essa mesma ação é nociva. Com efeito, que homem, se sacrificar o orgulho de dizer-se mais virtuoso do que os outros ao orgulho de ser mais verdadeiro, e se sondar, com uma atenção escrupulosa, todas as sinuosidades de sua alma, não se aperceberá que é unicamente à maneira diferente pela qual o interesse pessoal se modifica que se devem os seus vícios e as suas virtudes? “O homem humano é aquele para quem a visão da infelicidade de outrem é uma visão insuportável e que, para subtrair-se a esse espetáculo, é forçado, por assim dizer, a socorrer o infeliz. O homem desumano, ao contrário, é aquele para quem o espetáculo da miséria de outrem é um espetáculo agradável; é para prolongar os seus prazeres que ele: recusa todo socorro aos infelizes. Ora, esses dois homens, tão diferentes, tendem no entanto os dois ao seu prazer e se movem pelo mesmo motor. Mas, dir-se-á, se se faz tudo por si, não se deve, portanto, reconhecimento a seus benfeitores? Pelo menos, responderei, o benfeitor não tem direito de exigi-lo; de outro modo, existiria um contrato e não um dom que ele teria feito. Os germanos, diz Tácito, dão e recebem presentes e não exigem nem dão nenhum sinal de reconhecimento. É em! favor dos infelizes e para multiplicar o número dos benfeitores que o público impõe, com razão. aos obrigados o dever do reconhecimento. (Nota do Autor)”. Que todos os homens se movem pela mesma força? que todos tendem igualmente à sua felicidade? Que é a diversidade das paixões e dos gostos, dos quais uns são conformes e outros contrários ao interesse público, que decide sobre nossas virtudes e nossos vícios? Sem desprezar o vicioso, é preciso lastimá-lo, felicitar-se por uma natureza feliz, agradecer ao céu por não nos ter dado algum desses gostos e dessas paixões, que nos têm forçado a procurar a nossa felicidade no infortúnio de outrem. Pois, enfim, obedece-se sempre ao seu interesse; e daí a injustiça de todos os nossos juízos, e esses nomes de justo e de injusto atribuídos à mesma ação, em relação à vantagem ou à desvantagem que cada um recebe dela. Se o universo físico se submete às leis do movimento, o universo moral não deixa de submeter-se às do interesse. O interesse é na terra o poderoso sedutor, que modifica aos olhos de todas as criaturas a forma de todos os objetos. Esse cordeiro pacífico que pasta em nossas planícies não é um objeto de espanto e de horror para esses insetos imperceptíveis que vivem na espessura da polpa das ervas? (...) E assim que interesses diferentes metamorfoseiam os objetos: o leão é aos nossos olhos o animal cruel; aos do inseto, é o cordeiro. Também se pode aplicar ao universo moral o que Leibniz dizia do universo físico: que esse mundo, sempre em movimento, oferecia a cada instante um fenômeno novo e diferente para cada um de seus habitantes. Esse princípio é tão conforme a experiência, que, sem entrar num exame mais longo, acredito-me no direito de concluir que o interesse pessoal é o único e universal apreciador do mérito das ações dos homens; e que, assim, a probidade em relação a um indivíduo só é, conforme a minha definição, o hábito das ações pessoalmente úteis a esse indivíduo. CAPÍTULO IV Da necessidade em que estamos de só estimar a nós mesmos nos outros Duas causas, igualmente poderosas, nos determinam neste ponto: uma e a vaidade, e outra é a preguiça. Digo a vaidade, porque o desejo pela estima é comum a todos os homens, não porque alguns dentre eles queiram juntar, ao prazer de ser admirado, o mérito de desprezar a admiração, mas porque este desprezo não é verdadeiro: nunca o admirador é estúpido aos olhos do admirado. Ora, se todos os homens são ávidos de estima, cada um deles, sabedor pela experiência que estas ideias parecerão estimáveis ou desprezíveis aos outros somente na medida em que estiverem de acordo ou em desacordo com as suas opiniões, segue-se que, inspirado pela vaidade, cada um não pode se abster de estimar nos outros uma concordância de ideias que lhe assegure sua estima e de odiar neles uma oposição de ideias, caução segura para o ódio ou, no mínimo, para o desprezo que se deve considerar como um calmante do ódio. Mas, na suposição de que o homem faça pelo amor da verdade o sacrifício da vaidade, se este homem não for estimulado pelo desejo mais intenso de se instruir, direi que sua preguiça lhe permitirá ter, para opiniões estranhas às suas, apenas uma estima sobre palavra. Para explicar o que compreendo por estima sobre palavra, distinguirei duas espécies de estima. Uma, que se pode considerar como o efeito quer do respeito que se tem pela opinião pública, quer da confiança que se tem no juízo de certas pessoas, eu a denomino estima sobre palavra. Tal é a que certas pessoas concebem para romances muito medíocres, unicamente porque acreditam ser de alguns de nossos escritores célebres. Esta é também a admiração que se tem pelos Descartes e pelos Newton, admiração que, para a maioria dos homens, é tanto mais entusiasta quanto menos for explicável; seja depois de se formar uma ideia vaga do mérito destes grandes gênios, seus admiradores respeitam, nesta ideia, a obra de sua imaginação, seja estabelecendo-se juízes do mérito de um homem como Newton, acreditam associar-se aos elogios que lhe prodigalizam. Esta espécie de estima da qual nossa ignorância nos obriga a fazer uso frequente é, por este próprio motivo, a mais comum. Nada tão raro quanto julgar segundo si mesmo. A outra espécie de estima é a que, independente da opinião de outrem, nasce unicamente da impressão que exercem sobre nós certas ideias e que, por esta razão, chamo estima sentida, a única verdadeira, da qual se tratará aqui. Ora, para provar que a preguiça não nos permite conceder esta espécie de estima a não ser às ideias análogas às nossas, basta notar que é, como prova concretamente a geometria, pela analogia e pelas relações secretas que as ideias, já conhecidas, possuem com as ideias desconhecidas, que se chega ao conhecimento destas últimas e é seguindo a progressão destas analogias, que se pode elevar até ao último grau de uma ciência. Donde se segue que as ideias que não possuírem analogia alguma com as nossas serão para nós ideias ininteligíveis. Mas, dir-se-á, não existem ideias que não possuam necessariamente entre si alguma relação, sem o que seriam universalmente desconhecidas. Com certeza, mas esta relação pode ser imediata ou distante: quando é imediata, o fraco desejo que cada um possui de se instruir a torna capaz da atenção que supõe a inteligência para semelhantes ideias; mas, se ela for distante, como acontece quase sempre, quando se trata destas opiniões que são o resultado de um grande número de ideias e de sentimentos diferentes, é evidente que, a menos que se esteja animado por um intenso desejo de se instruir e que se encontre numa situação própria para realizar este desejo, a preguiça não nos permitirá nunca conceber, nem, consequentemente, possuir estima sentida pelas opiniões demasiado contrárias às nossas. Um jovem que luta em todos os sentidos para atingir a glória é arrebatado com entusiasmo pela fama do nome de pessoas célebres em qualquer campo. Uma vez fixado o objeto de seus estudos e de sua ambição, ele só possui estima sentida pelos seus modelos e concede uma estima sobre palavra àqueles que seguem uma carreira diferente da sua. O espírito é uma corda que só vibra em uníssono. Poucos homens têm lazer para se instruir. O pobre, por exemplo, não pode refletir, nem pesquisar, não recebe a verdade, nem o erro, a não ser como preconceito: ocupado pela tarefa diária, não pode aspirar a certa esfera de ideias, além disso prefere livros vulgares aos escritos de Saint-Réal, de La Rochefoucault e do Cardeal de Retz. E nos dias de comemorações públicas, quando os espetáculos são grátis, os atores, tendo outros espectadores para divertir, representam mais Don Japhel e Pourceaugnac do que Heráclio e o Misantropo. O que digo do povo pode aplicar-se a todas as diferentes classes de homens. As pessoas do mundo são distraídas por mil afazeres e mil prazeres; as obras filosóficas têm tão pouca analogia com seu espírito quanto o Misantropo com o espírito do povo. Também elas preferirão a leitura de um romance à de Locke. Ê por este mesmo princípio das analogias que se explica como os sábios e até as pessoas de espírito preferiram autores menos considerados aos que o são mais. Por que Malherbe preferia Estácio a qualquer outro poeta? Por que Heinsius e Corneille se impressionavam mais com Lucano do que com Virgílio? Por que motivo Adriano preferia a eloquência de Catão à de Cícero? Por que Escalígero considerava Homero e Horácio como muito inferiores a Virgílio e a Juvenal? E porque a estima maior ou menor que se tem por um lutor depende da analogia maior ou menor que suas ideias têm com as de seu leitor. Que, numa obra manuscrita e sobre a qual não se tenha prevenção alguma, se encarreguem separadamente dez homens de espírito a fim de marcar os trechos que lhes terão mais impressionado: afirmo que cada um deles sublinhará partes diversas e, se se confrontarem em seguida as partes aprovadas pelo espírito e pelo caráter de cada comprovador, sentir-se-à que cada um deles somente louvou as ideias análogas à sua maneira de ver e de sentir, portanto o espírito é, se posso dizer, uma corda que só vibra em uníssono. Se o sábio Abade de Longuerue, como ele próprio dizia, não havia retido nada das obras de Santo Agostinho, a não ser que o cavalo de Tróia era uma máquina de guerra, e se, no romance de Cleópatra, um advogado célebre só achava interessantes as nulidades do casamento de EJifa com Artabã, é preciso confessar que a única diferença que se encontra neste nível entre os sábios ou as pessoas de espírito e os homens comuns é que os primeiros, possuindo um maior número de ideias, sua esfera de analogia é bem maior. Poderá tratar-se até de um gênero de espírito muito diferente do seu, semelhante em tudo ao dos outros homens, o homem de espírito só estimará as ideias análogas às suas. Se reuníssemos um Newton, um Quinault, um Maquiavel, se não os identificássemos e se lhes impossibilitássemos esta espécie de estima, que chamo estima sobre palavra, perceberíamos que depois de ter reciprocamente, mas inutilmente, tentado comunicar-nos suas ideias, Newton consideraria Quinault como um versejador insuportável, este tomaria Newton por um fazedor de almanaques, os dois considerariam Maquiavel como um político do Palais-Royal e os três enfim, tratando-se reciprocamente por espíritos medíocres, se vingariam, por meio de um desprezo recíproco, do aborrecimento mútuo que eles se proporcionaram. Ora, se os homens superiores, inteiramente absorvidos em seu gênero de estudo, não podem possuir estima sentida por um gênero de espírito demasiado diferente do seu, todo autor, que fornece ao público ideias novas, só pode, então, esperar estima de duas espécies de homens: ou de jovens, que, não tendo adotado opiniões, possuem ainda o desejo e o lazer de se instruir, ou daqueles cujo espírito, amigo da verdade e análogo ao do autor, suspeita já da existência de ideias que lhe são apresentadas. Este número de homens é sempre menor, eis o que atrasa os progressos do espírito humano e a causa de cada verdade ser sempre tão lenta para se desvendar aos olhos de todos. Resulta do que acabo de dizer que a maioria, submetida à preguiça, só concebe ideias análogas às suas, que só possuem estima sentida por esta espécie de ideias: daí esta opinião alta que cada um é, por assim dizer, obrigado a ter de si próprio, opinião que os moralistas não teriam talvez atribuído ao orgulho, se tivessem um conhecimento mais profundo dos princípios acima estabelecidos. Eles teriam então sentido que, na solidão, o santo respeito e a admiração profunda da qual se participa algumas vezes por si próprio é apenas o efeito da necessidade em que estamos de estimar mais a nós do que aos outros. Como não se teria fé na melhor ideia? Não existe ninguém que não mudasse de opinião, se acreditasse que suas ideias eram falsas. Cada um crê então pensar de modo justo, e, consequentemente, muito melhor do que aqueles cujas ideias são contrárias às suas. Ora, se não há dois homens cujas ideias sejam exatamente semelhantes, é preciso necessariamente que cada um em particular creia pensar melhor do que qualquer outro. A Duquesa de La Ferté dizia um dia a Madame de Stael: É preciso confessar, minha cara amiga, acho que somente eu tenho sempre razão. ( ... ) Mas, dir-se-á, veem-se algumas pessoas reconhecerem nos outros mais espírito do que em si mesmas. Sim, responderei, veem-se homens fazerem tal reconhecimento; e esse reconhecimento é o de uma bela alma; no entanto, eles só têm por quem reconhecem ser-lhes superior uma estima sobre palavra; nada mais fazem do que dar preferência à opinião pública à sua e concordar que essas pessoas são mais estimadas, sem estarem convencidas interiormente de que sejam mais estimáveis. Um homem do mundo concordará, sem dúvida, que é, em geometria, muito inferior aos Fontaine, aos d' Alembert, aos Clairaut, aos Euler; que, em poesia, é superado pelos Moliére, pelos Racine, pelos Voltaire: mas, afirmo, ao mesmo tempo, que esse homem tanto mais desconsiderará um gênero quanto mais superiores encontrar nesse mesmo gênero e, além disso, acreditar-se-á de tal modo indenizado pela superioridade que sobre ele têm os homens que acabo de citar, seja procurando encontrar frivolidade nas artes e nas ciências, seja pela variedade de seus conhecimentos, pelo bom senso, pelo uso do mundo ou por alguma outra vantagem semelhante, que, pesando tudo, se acreditará tão estimável quanto quem quer que seja. “Vangloriarmo-nos de tudo; uns elogiam sua estupidez sob o nome de bom senso; outros elogiam sua beleza; alguns, orgulhosos de; suas riquezas, colocam esses dons do acaso na conta de seu espírito e de sua prudência; a mulher que faz contas à noite com seu cozinheiro acredita-se tão estimável quanto um sábio. Não existe até o impressor de in-folio que não despreze o impressor dos romances e que não se julgue tão superior ao último quanto o in-folio o é, de muito, à brochura, (Nota do Autor)” Mas, acrescentar-se-á, como imaginar que um homem que, por exemplo, exerça os pequenos cargos da magistratura possa acreditar ter tanto espírito quanto Corneille? É verdade, responderei, que a esse respeito ele não fará confidências a ninguém; no entanto, quando, por um exame escrupuloso, se tiver descoberto por quantos sentimentos de orgulho somos afetados diariamente, sem que deles nos apercebamos, e por quantos elogios é preciso ser animado para reconhecer em si mesmo e nos outros a profunda estima que se tem por seu espírito, sente-se que o silêncio do orgulho não leva à prova de sua ausência. (...) É, pois, seguro que cada qual se tenha a si mesmo na mais alta conta, e que, consequentemente, nunca se estima, no outro, mais do que a própria imagem e semelhança. A conclusão geral do que eu disse sobre o espírito considerado em relação a um indivíduo é a de que o espírito não é mais do que o agregado das ideias que interessam a esse indivíduo, seja enquanto instrutivas, seja enquanto agradáveis: donde se segue que o interesse pessoal é, como me propus a mostrar, neste gênero, o único juiz do mérito dos homens. CAPÍTULO XIII Da probidade em relação aos diversos séculos e povos Em todos os séculos e nos mais diversos países, a probidade só pode ser o hábito das ações úteis à nação. Por mais certa que seja esta proposição, para fazer sentir de modo mais evidente a sua verdade, tentarei dar ideias nítidas e precisas sobre a virtude. Para tanto, exporei os dois sentimentos que, a esse propósito, têm dividido os moralistas até o momento. Uns sustentam que temos uma ideia da virtude, absoluta e independente dos séculos e dos diversos governos, sendo a virtude sempre única e sempre a mesma, Ao contrário, outros sustentam que cada nação forma dela uma ideia diferente. Os primeiros trazem, como prova de suas opiniões, os sonhos engenhosos, mas ininteligíveis, do platonismo. Segundo eles, a virtude nada mais é do que a própria ideia da ordem, da harmonia e de um belo essencial. Mas esse belo é um mistério de que não podem dar uma ideia precisa; assim, eles não estabelecem de modo algum o seu sistema sobre o conhecimento que a história nos dá do coração e do espírito humano. Os outros, e entre eles Montaigne, com armas de força maior do que raciocínios, isto é, com fatos, atacam a opinião dos primeiros, fazem ver que uma ação, virtuosa no norte, é viciosa no centro e daí concluem que a ideia da virtude é puramente arbitrária. Tais são as opiniões dessas duas espécies de filósofos. Aqueles, por não terem consultado a história, erram ainda no dédalo de uma metafísica de palavras; estes, por não terem examinado de modo bastante profundo os fatos que a história apresenta, pensaram que unicamente o capricho decidia sobre a bondade ou a maldade das ações humanas. Essas duas seitas de filósofos estão igualmente enganadas; mas ambas teriam escapado ao erro, se houvessem considerado de modo atento a história do mundo. Teriam sentido, então, que os séculos devem necessariamente trazer, no físico e no moral, revoluções que mudam a face dos impérios; que, nas grandes transformações, os interesses de um povo experimentam sempre grandes mudanças; que as mesmas ações podem tornar-se-lhe sucessivamente úteis e nocivas e, por conseguinte, tomar alternativamente o nome de virtuosas e de viciosas. Em consequência dessa observação, se tivessem querido formar da virtude uma ideia puramente abstrata e independente da prática, teriam reconhecido que, por esse termo virtude, apenas se pode entender o desejo da felicidade geral; que, por conseguinte, o bem público é o objeto da virtude e as ações que ela ordena são os meios de que se serve para efetivar esse objeto; que, assim, a ideia da virtude não é de modo algum arbitrária; que, nos séculos e países diversos, todos os homens, pelo menos aqueles que vivem em sociedade, deveram formar a mesma ideia e que, enfim, se os povos a representam sob formas diferentes, é que tomam como a própria virtude os diversos meios de que ela se serve para efetivar o seu objeto. Penso que esta definição da virtude dá dela uma ideia nítida, simples e conforme à experiência; conformidade, essa, a única que pode constatar a verdade de uma opinião. A pirâmide de Vênus-Urânio, cujo cimo se perdia nos céus e cuja base se apoiava na Terra, é o emblema de todo sistema que se desmorona à medida que se edifica, se não se sustém sobre a base inabalável dos fatos e da experiência. É também sobre fatos, isto é, sobre a loucura e a esquisitice até agora inexplicáveis das leis e dos usos diversos, que estabeleço a prova de minha opinião. Por mais estúpidos que se suponha serem os povos, é certo que, esclarecidos por seus interesses, não adotaram sem motivos os costumes ridículos que se acham estabelecidos entre alguns deles; a esquisitice desses costumes deve-se, portanto, à diversidade dos interesses dos povos; com efeito, se eles entenderam sempre confusamente, pela palavra virtude, o desejo da felicidade pública, se deram, por conseguinte, o nome de honestas apenas às ações úteis à pátria e se a ideia de utilidade foi sempre secretamente associada à ideia de virtude, pode-se garantir que os costumes mais ridículos, e mesmo os mais cruéis, tiveram sempre, como vou mostrar através de alguns exemplos, como fundamento a utilidade real ou aparente do bem público. Permitia-se o roubo em Esparta, e aí só se punia a imperícia do ladrão surpreendido; que esquisitice maior do que esse costume? No entanto, se se lembrar das leis de Licurgo e do desprezo que se tinha pelo ouro e pela prata numa república onde as leis davam curso apenas a uma moeda de um ferro pesado e quebradiço, sentir-se-á que os roubos de galinhas e de legumes eram os únicos que aí se poderia cometer. Feitos sempre com agilidade, negados frequentemente com firmeza, semelhantes roubos exercitavam os lacedemônios no hábito da coragem e da vigilância; a lei que permitia o roubo podia, portanto, ser muito útil a esse povo que não temia menos a traição dos hilotas do que a ambição dos persas e que só podia opor aos atentados de uns, como aos exércitos inumeráveis dos outros, o escudo dessas duas virtudes. É certo, portanto, que o roubo, nocivo a todo povo rico, mas útil a Esparta, aí devesse ser honrado. No fim do inverno, quando a escassez dos víveres leva o selvagem a abandonar a sua cabana, e a fome lhe ordena ir à caça para fazer novas provisões, algumas nações selvagens reúnem-se antes de sua partida, fazem os seus sexagenários subirem em carvalhos, e fazem esses carvalhos serem sacudidos por braços nervosos; a maioria dos velhos cai e é massacrada no próprio momento de sua queda. Este fato é conhecido e nada parece, de início, mais abominável do que este costume; no entanto, que surpresa, quando, após ter remontado à sua origem, vê-se que o selvagem considera a queda desses infelizes anciãos como a prova de sua impotência de suportar as fadigas da caça! Deixá-los-á em cabanas ou florestas para serem atormentados pela fome ou por animais ferozes? Prefere poupar-lhes a duração e a violência das dores e, através de parricídios rápidos e necessários, arrancar os seus pais dos horrores de uma morte por demais cruel e por demais lenta. Eis aí o princípio de costume tão execrável; eis aí como um povo errante, que a caça e a necessidade de víveres retêm em florestas imensas, acha necessária essa barbárie e como, nesses países, o parricídio é inspirado e cometido pelo mesmo princípio de humanidade que nos faz olhá-la com horror. Mas, sem recorrer às nações selvagens, que se lancem os olhos sobre um país civilizado, tal como a China: pergunte-se por que aí se dá aos pais o direito de vida e de morte sobre os seus filhos, e ver-se-á que as terras desse império, por mais extensas que sejam, algumas vezes só puderam satisfazer com dificuldade as necessidades de seus numerosos habitantes; ora, como a desproporção demasiado grande entre a multiplicidade dos homens e a fecundidade das terras ocasionaria necessariamente guerras funestas a esse império, e talvez mesmo ao universo, concebe-se que, num instante de escassez, para prevenir uma infinidade de homicídios e infelicidades inúteis, a nação chinesa, humana em suas intenções, mas bárbara na escolha dos meios, pôde, pelo sentimento de uma humanidade pouco esclarecida, considerar essas crueldades como necessárias para o repouso do mundo. A isso sacrifico, disse ela a si, algumas vítimas infortunadas, a que a infância e a ignorância furtam o conhecimento dos horrores da morte, em que talvez consista o que ela tem de mais terrível. “A maneira de desfazer-se das filhas, nos países católicos, é forçá-las a tornar o véu: várias passam assim urna vida infeliz, atormentada pelo desespero. Talvez o nosso costume a esse respeito seja mais bárbaro do que o dos chineses. (Nota do Autor)” Sem dúvida, é ao desejo de opor-se à multiplicidade demasiado grande dos homens e, por conseguinte, à mesma origem, que se deve atribuir a veneração ridícula que certos povos da África ainda hoje conservam por solitários que se proíbem com mulheres o comércio que se permitem com as bestas. De modo semelhante, foi o motivo do interesse público e o desejo de proteger a pudica beleza contra os atentados da incontinência que outrora impeliu os suíços a publicar um edito pelo qual era não somente permitido, mas ordenado a todo o padre prover-se de uma concubina. “Suínglio, escrevendo aos Cantões Suíços, lembra a eles o edito baixado por seus ancestrais que ordenava a cada padre ter sua concubina, por meio de que atentasse à pudicícia de seu próximo. Frei Paulo, História do Concílio de Trento, livro I. (Nota do Autor)” Nas costas de Coromandel, onde as mulheres se libertavam, pelo veneno, do jugo importuno do hímen, foi, enfim, o mesmo motivo que, por um remédio tão odioso quanto o mal, impeliu o legislador a estabelecer a segurança dos maridos, forçando as mulheres a queimarem-se no túmulo de seus esposos. De acordo com os meus raciocínios, todos os fatos que acabo de citar concorrem para provar, que os costumes, mesmo os mais cruéis e os mais loucos, tiveram sempre a sua fonte na utilidade real ou, pelo menos, aparente do bem público. Mas, dir-se-á, isso não impede esses costumes de serem odiosos ou ridículos; sim, porque ignoramos os motivos de seu estabelecimento e porque esses costumes, consagrados por sua antiguidade ou pela superstição, subsistiram, pela negligência ou pela fraqueza dos governos, muito tempo depois de as causas de seu estabelecimento terem desaparecido. Quando a França era, por assim dizer, apenas uma vasta floresta, quem duvida que essas doações de terras incultas feitas às ordens religiosas não devessem então ser permitidas e que a prorrogação de semelhante permissão não fosse agora tão absurda e tão nociva ao Estado quanto podia ser sábia e útil, quando a França era ainda inculta? Todos os costumes que proporcionam apenas vantagens passageiras são como andaimes que é preciso derrubar quando os palácios estão construídos. ( ... ) O interesse dos Estados, como todas as coisas humanas, está sujeito a mil revoluções. As mesmas leis e os mesmos costumes tornam-se sucessivamente úteis e nocivos ao mesmo povo; donde concluo que essas leis devem ser adotadas e rejeitadas alternadamente e que as mesmas ações devem levar sucessivamente os nomes de virtuosas ou de viciosas; proposição que não se pode negar sem convir que haja ações ao mesmo tempo virtuosas e nocivas ao Estado, sem que solapem, por conseguinte, os fundamentos de toda legislação e de toda sociedade. A conclusão geral de tudo o que acabo de dizer é que a virtude é apenas o desejo da felicidade dos homens e que, assim, a probidade, que considero como a virtude posta em ação, é em todos os povos e nos governos mais diversos apenas o hábito das ações úteis à sua nação. “Acredito que não seja necessário advertir que só falo aqui da probidade política e não da probidade religiosa, que se propõe outros fins, prescreve-se outros deveres e tende a objetos mais sublimes. (Nota do Autor)” Por mais evidente que seja essa conclusão, como não há nação que não conheça e não confunda duas diferentes espécies de virtude: uma, que chamarei de virtude de preconceito, e a outra, verdadeira virtude, acredito, para nada deixar a desejar a esse propósito, dever examinar a natureza dessas diferentes espécies de virtude. CAPÍTULÓ XIV Das virtudes de preconceito e das verdadeiras virtudes Dou o nome de virtudes de preconceito a todas aquelas cuja observação exata em nada contribui para a felicidade pública, tais são a castidade das vestais, as austeridades dos faquires insensatos que povoam a Índia; virtudes que, com frequência, indiferentes e mesmo nocivas ao Estado, são o suplício daqueles que a elas se devotam. Essas falsas virtudes são, na maioria das nações, mais honradas do que as verdadeiras virtudes, e os que as praticam, tidos em maior veneração do que os bons cidadãos. Ninguém mais honrado no Indostão do que os brâmanes: são adorados até à sua nudez; respeitam-se também as suas penitências, e essas penitências são realmente medonhas: uns permanecem a vida toda atados a uma árvore; outros balançam-se sobre as chamas; estes alimentam-se apenas de líquidos; aqueles cerram a boca com um cadeado; alguns levam cadeias de um peso enorme; outros atam uma sineta ao prepúcio: cumpre a uma mulher de bem ir em devoção beijar essa sineta e é uma honra para os pais prostituir as suas filhas com os faquires. Entre as ações ou os costumes a que a superstição vincula o nome de sagrados, um dos mais agradáveis, sem dúvida, é o das Juibus, sacerdotisas da ilha Formosa: "Para oficiar dignamente e merecer a veneração dos povos, elas devem, depois dos sermões, contorções e uivos, gritar que veem os seus deuses; lançado esse grito, rolam por terra, sobem no telhado dos pagodes, descobrem-se até a nudez, batem-se nas nádegas, soltam a urina, descem nuas e lavam-se em presença da assembleia”. São por demais felizes ainda os povos entre os quais, pelo menos, as virtudes de preconceito são apenas ridículas; frequentemente, elas são bárbaras. Na capital do Cochin, criam-se crocodilos e quem quer que se exponha ao furor desses animais e se faça devorar é contado entre os eleitos. No reino de Martemban, é um ato de virtude, no dia em que sai a passeio o ídolo, precipitar-se sob as rodas da charrete ou cortar-se a garganta à sua passagem: quem se devota a essa morte é reputado santo e o seu nome é, com efeito, inscrito num livro. Ora, se há virtudes, também há crimes de preconceito. Um deles é um brâmane esposar uma virgem. Na ilha de Formosa, se, durante três meses que se lhe ordena andar nu, um homem se cobre com o menor pedaço de pano, ele leva, diz-se, um adereço indigno de um homem. Nessa mesma ilha, é um crime as mulheres grávidas darem à luz antes da idade dos trinta e cinco anos; se estão grávidas, estendem-se aos pés da sacerdotisa que, executando a lei, nelas pisa até que abortem. Em Pegu, quando os sacerdotes ou mágicos predizem a convalescença ou a morte de um doente, “Quando um jaga morre, pergunta-se por que deixou a vida. Um sacerdote, fingindo a voz do morto, responde que ele não tinha feito sacrifícios o suficiente a seus ancestrais, Esses sacrifícios constituem parte considerável da renda dos sacerdotes. (Nota do Autor)” é um crime o doente condenado recuperar-se. Em sua convalescença, todos fogem dele e o injuriam. Se ele fica bom, os sacerdotes dizem que Deus o recebeu em sua companhia. Talvez não exista país nenhum onde não se tenha por alguns desses crimes de preconceito maior horror do que pelos crimes mais atrozes e mais nocivos à sociedade. (...) No reino do Congo, de Angola e de Matamba, o marido pode, sem sentir vergonha, vender a sua mulher; o pai, o seu filho; o filho, o seu pai; só se conhece um único crime nesses países: é o de recusar as primícias da colheita ao Chitombé, sumo sacerdote da nação. Esses povos, diz o Padre Labat, tão desprovidos de todas as verdadeiras virtudes, são observadores muito escrupulosos desse uso. Julga-se que, unicamente ocupado com o aumento de suas rendas, isso é tudo o que Chitombé lhes recomenda; ele não deseja de modo algum que os seus negros sejam mais esclarecidos; até mesmo temeria que ideias por demais sadias da virtude diminuíssem a superstição e o tributo que ela lhe paga. O que disse dos crimes e das virtudes de preconceito basta para fazer sentir a diferença entre essas virtudes e as verdadeiras virtudes, isto é, aquelas que, sem cessar, aumentam a felicidade pública e sem as quais as sociedades não podem subsistir. Em consequência dessas duas diferentes espécies de virtudes, distinguirei duas diferentes espécies de corrupção de costumes: uma, que chamarei de corrupção religiosa, e a outra, corrupção política. Essa diferença é-me necessária: 1º porque considero a probidade filosoficamente e independentemente das relações que a religião tem com a sociedade; o que peço ao leitor para não perder de vista ao longo desta obra; 2º para evitar a perpétua contradição que se acha nas nações idólatras, entre os princípios da religião e os da política e da moral. Mas, antes de iniciar esse exame, declaro que é na qualidade de filósofo e não de teólogo que escrevo e que, assim, pretendo tratar, neste capítulo e nos seguintes, apenas das virtudes puramente humanas. Dada esta advertência, entro na matéria e afirmo que, tratando-se de costumes, dá-se o nome de corrupção religiosa a toda espécie de libertinagem, principalmente àquela dos homens com as mulheres. Essa espécie de corrupção, de que não sou de modo algum apologista e que, sem dúvida, é criminosa, uma vez que ofende a Deus, não é contudo de modo algum incompatível com a felicidade de uma nação. Diferentes povos acreditaram e acreditam ainda que essa espécie de corrupção não é criminosa; ela o é, sem dúvida, na França, visto que fere as leis do país; mas ela não o seria menos se as mulheres fossem comuns e as crianças declaradas crianças do Estado: esse crime então nada mais teria politicamente de perigoso. Com efeito, se se percorre a terra, pode-se vê-la povoada de nações diferentes, entre as quais o que chamamos de libertinagem não só não se considera como uma corrupção de costumes, mas se acha autorizado pelas leis e mesmo consagrado pela religião. (...) De modo semelhante, é sob a proteção das leis que as siamesas, com o colo e as coxas meio descobertos, carregadas em palanquins pelas ruas, aí se apresentam em atitudes muito lascivas. Essa lei foi estabelecida por uma de suas rainhas, denominada Tirada, que, para desviar os homens de um amor mais desonesto, acreditou dever empregar todo o poder da beleza. Esse projeto, dizem as siamesas, obteve sucesso. Essa lei, acrescentam, é, aliás, bastante sábia: é agradável aos homens ter desejos, às mulheres excitá-los. E a felicidade dos dois sexos o único bem que o céu coloca entre os males com que nos aflige; e que alma bastante bárbara quereria ainda arrebatá-lo de nós! “A esse propósito, um homem de espírito dizia que é preciso, sem dúvida, proibir aos homens todo prazer contrário ao bem geral; mas que, antes dessa proibição, seria preciso, através de mil esforços de espírito, tentar conciliar esse prazer com a felicidade pública. "Os homens", acrescentava, "são tão infelizes que um prazer a mais vale a pena de tentar desvinculá-lo de que aí pode haver de perigoso para um governo; e talvez fosse fácil obter êxito, se se examinasse, nesse propósito, a legislação dos países em que esses prazeres são permitidos." (Nota do Autor)” No reino de Batimena, toda mulher, de qualquer condição que seja, é, pela lei e sob pena da vida, forçada a ceder ao amor de quem quer que a deseje; uma recusa é uma sentença de morte contra ela. Não concluiria, se quisesse dar a lista de todos os povos que não têm a mesma ideia dessa espécie de corrupção de costumes que nós; ficarei satisfeito, portanto, depois de ter nomeado alguns países onde a lei autoriza a libertinagem, em citar alguns daqueles em que essa mesma libertinagem faz parte do culto religioso. Entre os povos da ilha Formosa, a embriaguez e a impudicícia são atos de religião. As volúpias, dizem esses povos, são as filhas do céu, dons de sua bondade; desfrutá-las é honrar a divindade, é aproveitar os seus benefícios. Quem duvida de que o espetáculo das carícias e dos gozos do amor não agrade aos deuses? Os deuses são bons e os nossos prazeres são, para eles, a mais agradável oferenda de nosso reconhecimento. Em consequência desse raciocínio, eles entregam-se publicamente a toda espécie de prostituição. (...) Há portanto uma infinidade de países onde a corrupção dos costumes, que denomino religiosa, é autorizada pela lei ou consagrada pela religião. Quantos males, dir-se-á, ligados a essa espécie de corrupção! Mas não se poderia responder que a libertinagem só é politicamente perigosa num Estado quando está em oposição às leis do país ou quando se acha unida a algum outro vício do governo? Em vão se acrescentaria que os povos em que reina essa libertinagem são o desprezo do universo. Mas, sem falar dos orientais e das nações selvagens ou guerreiras, que, entregues a todas as espécies de volúpias, são internamente felizes e temíveis no exterior, que povo mais célebre do que os gregos! Povo que ainda hoje constitui o assombro, a admiração e a honra da humanidade. Antes da guerra do Peloponeso, época fatal à sua virtude, que nação e que país mais fecundo em homens virtuosos e em grandes homens! No entanto, conhece-se o gosto dos gregos pelo mais desonesto amor. Esse gosto era tão geral que Aristides, cognominado o Justo, esse Aristides que se estava cansado, diziam os atenienses, de ouvir sempre louvar, tinha contudo amado Temístocles. Foi a beleza do jovem Estesileu, da ilha de Céos, que, trazendo em sua alma os mais violentos desejos, acendeu entre eles as chamas da ira. Pia tão era libertino. O próprio Sócrates, declarado o mais sábio dos homens pelo oráculo de Apolo, amava Alcibíades e Arquelau; ele tinha duas mulheres e vivia com todas as cortesãs. E certo, portanto, que, de acordo com a ideia que se formou dos bons costumes, os gregos mais virtuosos não passassem, na Europa, de homens corruptos. Ora, tendo sido levada ao extremo, na Grécia, essa espécie de corrupção de costumes, no mesmo tempo em que esse país produzia grandes homens em todos os campos, fazia a Pérsia tremer e estava no maior esplendor, poder-se-ia pensar que a corrupção dos costumes a que dou o nome de religiosa não é de modo algum incompatível com a grandeza e a felicidade de um Estado. Há outra espécie de corrupção de costumes que prepara a queda de um império e anuncia a sua ruína: darei a esta o nome de corrupção política. Um povo está por ela infeccionado quando o maior número dos indivíduos que o compõem desvinculam os seus interesses do interesse público. Essa espécie de corrupção que, algumas vezes, se une à anterior, levou muitos moralistas a confundi-las. Se só se consultasse o interesse político de um Estado, esta última talvez fosse a mais perigosa. Além disso, mesmo que um povo tenha os costumes mais puros, se for atacado por essa corrupção, tornar-se-á necessariamente infeliz internamente e pouco temível no exterior. A duração de tal império depende do acaso, o único a retardar ou precipitar a sua queda. Para fazer sentir como essa anarquia de todos os interesses é perigosa num Estado, consideremos o mal que aí produz tão só a oposição dos interesses de um corpo aos da república: demos aos bonzos, aos talapões, todas as virtudes de nossos santos. Se o interesse do corpo dos bonzos não estiver ligado ao interesse público, se, por exemplo, o crédito do bonzo se deve à cegueira dos povos, esse bonzo, necessariamente inimigo da nação que o nutre, será, face a essa nação, o que os romanos eram face ao mundo: honestos entre si, bandidos em relação ao universo. Mesmo que cada bonzo, em particular, tenha grande desapego pelas grandezas, isso não tornará o corpo menos ambicioso; todos os seus membros trabalharão, frequentemente sem sabê-lo, para o seu engrandecimento e a isso se acreditarão autorizados por um princípio virtuoso. Não há, portanto, nada de mais perigoso num Estado do que um corpo cujo interesse não se ligue ao interesse geral. Se os sacerdotes do paganismo fizeram Sócrates morrer e perseguiram quase todos os grandes homens é que o seu bem particular se achava oposto ao bem público; é que os sacerdotes de uma falsa religião tinham interesse em reter os povos na cegueira e, para tanto, perseguir todos os que pudessem esclarecê-los; exemplo algumas vezes imitado pelos ministros da verdadeira religião, que, sem a mesma necessidade, frequentemente recorreram às mesmas crueldades, perseguiram, humilharam os grandes homens, fizeram-se panegiristas das obras medíocres e críticos das excelentes. O que há de mais ridículo, por exemplo, do que a proibição feita em certos países de neles entrar exemplar algum do Espírito das Leis, obra que mais de um príncipe faz o seu filho ler e reler? Não se pode repetir a esse propósito, segundo um homem de espírito, que, ao solicitar essa proibição, os monges agiram como os citas em relação a seus escravos? Eles furavam seus olhos, para que girassem a moenda com menos distração. Parece, portanto, que é unicamente da conformidade ou da oposição do interesse dos particulares face ao interesse geral que a felicidade ou a infelicidade pública depende e que, enfim, a corrupção religiosa dos costumes pode, como o prova a história, aliar-se frequentemente à magnanimidade, à grandeza de alma, à sabedoria, aos talentos, enfim, a todas as qualidades que formam os grandes homens. Não se pode negar que cidadãos manchados por essa espécie de corrupção de costumes não tenham prestado frequentem ente à pátria serviços mais importantes do que os anacoretas mais severos. O que não se deve à galante circassiana que, para preservar a sua beleza ou a de suas filhas, ousou inoculá-las? Quantas crianças a inoculação não arrancou da morte? Talvez não haja fundadora de ordem de religiosas que se tenha tornado recomendável ao universo por um benefício tão grande e que, por conseguinte, tenha merecido tanto de seu reconhecimento. Aliás, acredito dever ainda repetir, no final deste capítulo, que não pretendi de modo algum fazer-me apologista da libertinagem. Quis apenas dar noções nítidas dessas duas diferentes espécies de corrupção de costumes, que mui frequentemente se têm confundido e sobre que parece ter havido apenas ideias confusas. Mais instruídos sobre o verdadeiro objeto da questão, pode-se conhecer melhor a sua importância, julgar melhor o grau de desprezo que se deve atribuir a essas duas diferentes espécies de corrupção e reconhecer que há duas espécies diferentes de más ações: umas que são viciosas em todas as formas de governo e outras que só são nocivas e, por conseguinte, criminosas, para um povo, pela oposição que se encontra entre essas mesmas ações e as leis do país. Um conhecimento maior do mal deve dar aos moralistas maior habilidade para a sua cura. Poderão considerar a moral sob um ponto de vista novo e fazer de uma ciência vã uma ciência útil ao universo. CAPÍTULO XV De que utilidade pode ser à moral o conhecimento dos princípios estabelecidos nos capítulos anteriores Se, até agora, a moral pouco contribuiu para a felicidade da humanidade, não é que vários moralistas não tenham juntado muita profundeza de espírito e elevação de alma a expressões felizes, a muita elegância e clareza; mas, por mais superiores que esses moralistas tenham sido, é preciso convir que não consideraram, com muita frequência, os diferentes vícios das nações como dependências necessárias da diferente forma de seu governo; no entanto, é apenas considerando a moral deste ponto de vista que ela pode tornar-se realmente útil aos homens. O que, até hoje, produziram as mais belas máximas de moral? Corrigiram em alguns indivíduos defeitos que talvez eles se censurassem; além disso, não produziram modificação alguma nos costumes das nações. Qual é a causa disso? E que os vícios de um povo estão sempre, se ouso dizê-lo, escondidos no fundo da sua legislação: é aí que é preciso escavar para arrancar a raiz produtora de seus vícios. Quem não é dotado nem do saber nem da coragem necessários para empreendê-lo, não é, nesse campo, de quase nenhuma utilidade para o universo. Querer destruir vícios vinculados à legislação de um povo, sem fazer nenhuma modificação nessa legislação, é pretender o impossível, é rejeitar as consequências justas dos princípios que se admitem. O que esperar de tantas invectivas contra a falsidade das mulheres, se esse vício é o efeito necessário de uma contradição entre os desejos da natureza e os sentimentos que, pelas leis e pela decência, as mulheres são forçadas a sentir? No Malabar, em Madagáscar, se todas as mulheres são verdadeiras é que satisfazem, sem escândalo, todas as suas fantasias, têm mil galanteadores e só se determinam à escolha de um esposo depois de repetidas tentativas. O mesmo ocorre com os selvagens de Nova Orleans, com esses povos onde os parentes do grande Sol, as princesas de sangue, podem, quando se desgostam de seus maridos, repudiá-los para esposar outros. Em tais países não se encontram mulheres falsas, porque elas não têm interesse algum em sê-lo. Não pretendo inferir desses exemplos que se deva introduzir, entre nós, costumes semelhantes. Afirmo apenas que não se pode, com razão, censurar às mulheres uma falsidade de que a decência e as leis lhes fazem, por assim dizer, uma necessidade e que, enfim, não se modificam de modo algum os efeitos deixando subsistir as causas. (...) A libertinagem, contra a qual os moralistas sempre se lançaram com violência, é por demais reconhecida como sequência necessária do luxo para que eu me detenha a prová-lo, Ora, se o luxo, como estou muito longe de pensar, mas como se crê comumente, é muito útil ao Estado; se, como é fácil mostrar, não se pode sufocar o gosto e reduzir os cidadãos à prática das leis suntuárias, sem mudar a forma de governo; só depois de algumas reformas desse tipo é que se poderia vangloriar-se de exterminar esse gosto da libertinagem. Toda invectiva a esse propósito é boa, teologicamente, mas não politicamente. O objeto que a política e a legislação se propõem é a grandeza e a felicidade temporal dos povos; ora, no que diz respeito a esse objeto, afirmo que, se o luxo é realmente útil à França, seria ridículo querer aí introduzir uma rigidez de costumes incompatível com o gosto do luxo. Não há proporção alguma entre as vantagens que o comércio e o luxo proporcionam ao Estado, constituído tal como o é (vantagens a que seria preciso renunciar para banir a libertinagem), e o mal infinitamente pequeno que o amor das mulheres ocasiona. E lastimar-se por encontrar numa mina rica algumas palhetas de cobre misturadas a veios de ouro. Onde quer que o luxo seja necessário, será uma inconsequência política considerar a galanteria como um vicio moral; e, se se quiser conservar-lhe o nome de vício, é preciso então convir que tem utilidades em certos séculos e certos países e que é ao lodo do Nilo que o Egito deve a sua fertilidade. (...) Segue-se do que acabo de dizer que só se pode vangloriar-se de fazer alguma modificação nas ideias de um povo depois de fazê-la em sua legislação; que é pela reforma das leis que é preciso começar a reforma dos costumes; que invectivas contra um vício útil, na forma atual de um governo, seriam politicamente nocivas, se não fossem vãs; mas elas o serão sempre, porque a massa de uma nação é sempre movida apenas pela força das leis. Além disso, que me seja permitido observá-lo de passagem: entre os moralistas, há poucos que sabem, armando as nossas paixões umas contra as outras, servir-se delas utilmente para fazer adotar a sua opinião; a maioria de seus conselhos são por demais injuriosos. Deveriam, no entanto, sentir que injúrias não podem, com vantagem, combater sentimentos; que é unicamente uma paixão que pode triunfar sobre outra; que, para inspirar, por exemplo, à mulher galante, maior moderação e modéstia face ao público, é preciso colocar em oposição a sua vaidade e a sua galanteria, fazer-lhe sentir que o pudor é uma invenção do amor e da volúpia refinada; que é ao tecido, com que esse mesmo pudor cobre as belezas de uma mulher, que o mundo deve a maioria de seus prazeres; que, no Malabar, onde as jovens agradáveis se apresentam seminuas nas reuniões, e em certos cantões da América, onde as mulheres se oferecem sem véu aos olhares dos homens, os desejos perdem tudo o que a curiosidade lhes comunicaria de vivacidade; que, nesses países, a beleza aviltada só tem comércio com as necessidades; que, ao contrário, entre os povos onde o pudor ergue um véu entre os desejos e as nudezas, esse véu misterioso é o talismã que retém o amante nos joelhos de sua amante; e que, enfim, é o pudor que põe nas frágeis mãos da beleza o cetro que comanda a força. Sabei mais, diriam à mulher galante: os infelizes são em grande número; os infortunados, inimigos natos do homem feliz, fazem de sua felicidade um crime; odeiam nele uma felicidade por demais independente deles; o espetáculo de vossas diversões é um espetáculo que é preciso afastar de seus olhos; e a indecência, traindo o segredo de vossos prazeres, expõe-vos a todos os dardos de sua vingança. E substituindo assim pela linguagem do interesse o tom da injúria que os moralistas poderiam fazer adotar as suas máximas. Não me estenderei mais a esse propósito; volto ao meu assunto e afirmo que todos os homens tendem apenas para a sua felicidade, que não se pode subtrair-lhes essa tendência, que seria inútil empreendê-lo e perigoso obter êxito, que, por conseguinte, só se pode torná-los virtuosos unindo o interesse pessoal ao interesse geral. Posto esse princípio, é evidente que a moral é tão somente uma ciência frívola, se não se confunde com a política e a legislação; de onde concluo que, para tornarem-se úteis ao universo, os filósofos devem considerar os objetos do ponto de vista de que o legislador os contempla. Sem estarem armados do mesmo poder, devem estar animados pelo mesmo espírito. Cabe ao moralista indicar as leis cuja execução o legislador assegura pela aposição da chancela de seu poder. Entre os moralistas há poucos, sem dúvida, que são atingidos, de modo bastante forte, por essa verdade; mesmo entre aqueles cujo espírito é feito para atingir as mais altas ideias, existem muitos que, no estudo da moral e nos quadros que fazem dos vícios, estão animados unicamente por interesses pessoais e ódios particulares. Dedicam-se, por conseguinte, apenas à pintura dos vícios incômodos na sociedade, e o seu espírito, que, pouco a pouco, se enclausura no círculo de seu interesse, logo não tem mais a força necessária para elevar-se às grandes ideias. Na ciência da moral, com frequência, a elevação do espírito deve-se à elevação da alma. Para apreender, nesse campo, as verdades realmente úteis aos homens, é preciso imbuir-se da paixão do bem geral; e, infelizmente, em moral, como em religião, há muitos hipócritas. CAPÍTULO XVI Dos moralistas hipócritas Entendo por hipócrita aquele que, não se dedicando ao estudo da moral pelo desejo da felicidade da humanidade, ocupa-se por demais de si mesmo. Há muitos homens dessa espécie: pode-se reconhecê-los, por um lado, pela indiferença com que consideram os vícios destruidores dos impérios e, por outro, pelo arrebatamento com que se acirram contra vícios particulares. É em vão que tais homens se dizem inspirados pela paixão do bem público. Se vós estivésseis, responder-se-lhes-ia, realmente animados por essa paixão, vosso ódio por cada vício seria sempre proporcional ao mal que esse vício faz à sociedade; e, se a visão dos defeitos menos nocivos ao Estado bastasse para irritar-vos, de que ponto de vista consideraríeis a ignorância dos meios apropriados para formar cidadãos corajosos, magnânimos e desinteressados? De que dor seríeis afetados, quando percebêsseis algum defeito na jurisprudência ou na distribuição dos impostos, quando o descobrísseis na disciplina militar, que decide, com tanta frequência, sobre a sorte das batalhas e a devastação de várias províncias? Então, penetrados da mais viva dor, a exemplo de Nerva, poder-se-ia ver-vos, detestando o dia em que vos faz testemunha dos males de vossa pátria, vós mesmos terminar o curso. ( ... ) Eis aí a maneira pela qual se manifesta o amor pelo bem público. Se estais, diria a esses censores, realmente animados por essa paixão, vosso ódio por cada vício é proporcional ao mal que esse vício faz ao Estado; se sois vivamente afetados apenas por defeitos que vos prejudicam, usurpais o nome de moralistas e não sais senão egoístas. E, pois, por um desvinculamento absoluto de seus interesses pessoais, por um estudo profundo da ciência da legislação, que um moralista pode tornar-se útil à sua pátria. Estará então em condições de pesar as vantagens e os inconvenientes de uma lei ou de um uso e de julgar se ele deve ser abolido ou conservado. Mui frequentemente, é-se forçado a prestar-se a abusos e mesmo a usos bárbaros. Se se toleraram, na Europa, por tanto tempo, os duelos, é que, em países onde não se estava animado pelo amor à pátria, como em Roma, onde o valor não se exercitava por guerras contínuas, os moralistas talvez não imaginassem outros meios, quer de exercitar a coragem no corpo dos cidadãos, quer de fornecer ao Estado corajosos defensores; acreditavam, com essa tolerância, comprar um grande bem sob o preço de um pequeno mal; enganavam-se no caso particular do duelo; mas há mil outros casos em que se é reduzido a essa opção. Geralmente, é apenas na escolha feita entre dois males que se reconhece o homem de gênio. Que fiquem longe de nós todos esses pedantes apaixonados por uma falsa ideia de perfeição. Nada mais perigoso, num Estado, do que esses moralistas declamadores e sem espírito; que, concentrados numa pequena esfera de ideias, repetem continuamente o que ouviram dizer a seus miolos, recomendam sem cessar a moderação dos desejos e querem aniquilar as paixões em todos os corações: não sentem que os seus preceitos, úteis a alguns indivíduos que se acham em certas circunstâncias, seriam a ruína das nações que os adotassem. Com efeito, se, como a história nos mostra, as paixões fortes, tais como o orgulho e o patriotismo nos gregos e nos romanos, o fanatismo nos árabes, a avareza nos piratas, criam sempre os guerreiros mais temíveis; todo homem que lançar contra tais soldados tão somente homens sem paixões oporá ao furor dos lobos apenas tímidos cordeiros. Assim, a sábia natureza encerrou no coração do homem um preservativo contra os raciocínios desses filósofos. Assim, as nações, submetidas de direito a esses preceitos, acham-se sempre indóceis a eles, de fato. Sem essa oportuna infelicidade, o povo, ligado escrupulosamente a suas máximas, tornar-se-ia o desprezo e o escravo dos outros povos. Para determinar até que ponto se deve exaltar ou moderar o fogo das paixões, são necessários esses espíritos vastos que abarcam todas as partes de um governo. Quem quer que dele for dotado, é, por assim dizer, designado pela natureza para cumprir, ao lado do legislador, o cargo de ministro pensador, “Na China, distinguem-se duas espécies de ministros: uns são os ministros assinadores: dão audiências e assinaturas; os outros levam o nome de ministros pensadores: encarregam-se de formar projetos, examinar os que se lhes apresentam e propor as modificações que o tempo e as circunstâncias exigem que se façam na administração. (Nota do Autor)” e justificar esta frase de Cícero: Um homem de espírito nunca é um simples cidadão, mas um verdadeiro magistrado. Antes de expor as vantagens que ideias mais vastas e mais sadias da moral proporcionariam ao universo, creio poder observar de passagem que essas mesmas ideias lançariam infinitas luzes a todas as ciências e sobretudo à história, cujos progressos são, ao mesmo tempo, efeito e causa dos progressos da moral. Mais instruídos sobre o verdadeiro objeto da história, então os escritores só pintariam da vida privada de um rei os pormenores apropriados a fazer sobressair o seu caráter; não mais descreveriam de modo tão curioso os seus costumes, os seus vícios e as suas virtudes domésticas; sentiriam que o público pede aos soberanos que deem conta de seus editos e não de suas ceias; que o público só quer conhecer o príncipe enquanto homem, na medida em que o homem toma parte nas deliberações do príncipe, e que deveriam, para instruir e agradar, substituir anedotas pueris pelo quadro agradável ou assustador da felicidade ou da miséria pública e das causas que as produziram. É à simples exposição desse quadro que se deveria uma infinidade de reflexões e de reformas úteis. O que afirmo sobre a história afirmo sobre a metatísica, a jurisprudência. Há poucas ciências que não tenham relação alguma com a moral. A cadeia que liga todas elas entre si é mais extensa do que se pensa: tudo se relaciona no universo. CAPÍTULO XVII Das vantagens que resultam dos princípios acima estabelecidos Passo rapidamente às vantagens que os indivíduos deles retirariam: elas consistiriam em dar-lhes ideias nítidas dessa mesma moral, cujos preceitos, até agora equívocos e contraditórios, permitiram aos mais insensatos sempre justificar a loucura de sua conduta com algumas dessas máximas. Além disso, mais instruído em seus deveres, o indivíduo seria menos dependente da opinião de seus amigos: ao abrigo das injustiças que as sociedades em que vive frequentemente o fazem cometer, com o seu desconhecimento, estaria, então, ao mesmo tempo, liberto do temor pueril do ridículo; fantasma que a presença da razão aniquila, mas que é o pavor dessas almas tímidas e pouco esclarecidas, que sacrificam os seus gostos, o seu repouso, os seus prazeres e, às vezes, até mesmo a virtude ao humor e aos caprichos desses coléricos, a cuja crítica não se pode escapar, quando se tem a infelicidade de ser dela conhecido. Submetido unicamente à razão e à virtude, o indivíduo poderia então afrontar os preconceitos e armar-se desses sentimentos másculos e corajosos que formam o caráter singular do homem virtuoso; sentimentos que se desejam em cada cidadão e que se tem o direito de exigir dos grandes. Como o homem alçado aos primeiros postos destruirá os obstáculos que certos preconceitos colocam ao bem geral e resistirá às ameaças, às cabalas das pessoas poderosas, frequentemente interessadas na infelicidade pública, se sua alma não for inacessível a toda espécie de solicitações, temores e preconceitos? Parece, portanto, que o conhecimento dos princípios acima estabelecidos proporciona, pelo menos, essa vantagem ao indivíduo: a de dar-lhe uma ideia nítida e segura da honestidade, arrancá-lo, nesse sentido, a toda espécie de inquietude, assegurar o repouso de sua consciência e proporcionar-lhe, por conseguinte, os prazeres interiores e secretos ligados à prática da virtude. Quanto às vantagens que o público deles retiraria, sem dúvida, seriam mais consideráveis. Em consequência desses mesmos princípios, poder-se-ia, se ouso dizer, constituir um catecismo de probidade, cujas máximas simples, verdadeiras e ao alcance de todos os espíritos mostrariam aos povos que a virtude, invariável no objetivo que se propõe, não está de modo algum nos meios apropriados para efetivar esse objetivo; que se deve, por conseguinte, considerar as ações como indiferentes em si mesmas, sentir que cabe ao Estado determinar as que são dignas de estima ou de desprezo e, enfim, ao legislador, pelo conhecimento que deve ter do interesse público, fixar o instante em que cada ação deixa de ser virtuosa e se torna viciosa. Uma vez recebidos esses princípios, com que facilidade o legislador apagaria as tochas do fanatismo e da superstição, suprimiria os abusos, reformaria os costumes bárbaros, que, talvez úteis quando de seu estabelecimento, se tornaram depois tão funestos ao universo? Costumes que só subsistem pelo temor que se tem de não poder aboli-los, sem agitar os povos sempre acostumados a considerar a prática de certas ações como a própria virtude, sem fomentar guerras longas e cruéis e sem ocasionar, enfim, essas sedições que, sempre ocasionais para o homem ordinário, só podem ser realmente previstas e acalmadas por homens de caráter firme e espírito vasto. E, portanto, enfraquecendo a estúpida veneração dos povos pelas leis e usos antigos que se põem os soberanos em condição de purgar a terra da maioria dos males que a desolam e que se lhes fornecem os meios de garantir a duração dos impérios. No entanto, quando se 'modificaram os interesses de um Estado, e leis, úteis quando de sua fundação, se tornaram nocivas, essas mesmas leis, pelo respeito que se conserva sempre por elas, devem necessariamente levar o Estado à sua ruína. Quem duvida de que a destruição da república romana não tenha sido o efeito de uma ridícula veneração por antigas leis e que esse cego respeito não tenha forjado os ferros com que César acorrentou a sua pátria? Depois da destruição de Cartago, quando Roma atingia o ápice da grandeza, os romanos, pela oposição que havia entre os seus interesses, os seus costumes e as suas leis, deviam perceber a revolução que ameaçava o império e sentir que, para salvar o Estado, a república como corpo devia apressar-se a fazer, nas leis e no governo, a reforma que o tempo e as circunstâncias exigiam, e sobretudo apressar-se a prevenir as modificações que aí queria trazer a ambição pessoal, a mais perigosa das legisladoras. Assim, os romanos teriam recorrido a esse remédio, se tivessem tido ideias mais nítidas sobre a moral. Instruídos pela história de todos os povos, teriam percebido que as mesmas leis que os haviam levado ao último grau de elevação não podiam mantê-los aí; que um império é comparável ao navio que certos ventos conduziram a certa região, onde, capturado por outros ventos, há perigo de perecer, se o piloto hábil e prudente, para evitar o naufrágio, não fizer manobra imediatamente; verdade política conhecida por Locke, que, quando do estabelecimento de sua legislação para a Carolina, quis que suas leis só vigorassem por um século e que, expirado esse tempo, se tornassem nulas, se não fossem novamente examinadas e confirmadas pela nação. Sentia que um governo guerreiro ou comerciante supusesse leis diferentes e que uma legislação propícia para favorecer o comércio e a indústria podia tornar-se, um dia, funesta a essa colônia, se os vizinhos viessem a se aguerrir e se as circunstâncias exigissem então que esse povo fosse mais militar do que comerciante. Que se apliquem essas ideias de Locke às falsas religiões, logo se estará convencido da tolice, quer de seu inventor, quer de seus sectários. Com efeito, quem quer que examine as religiões (que, com exceção da nossa, são todas feitas pela mão de homens), constata que nunca foram a obra do espírito vasto e profundo de um legislador, mas do espírito mesquinho de um indivíduo; que, por conseguinte, essas falsas religiões nunca estiveram fundadas sobre a base das leis e do princípio de utilidade pública; princípio sempre invariável, mas que, flexível em suas aplicações a todas as diversas posições em que pode achar-se sucessivamente um povo, é o único princípio que devem admitir aqueles que querem, seguindo o exemplo dos Anastácio, dos Ripperda, dos Thamas Kouli Kan e dos Gehan Gir, traçar o plano de uma nova religião e torná-la útil aos homens. Se, na constituição das falsas religiões, fosse seguido sempre esse plano, ter-se-ia conservado nessas religiões tudo o que têm de útil; não se teria destruído o Tártaro nem o Elísio; o legislador teria sempre feito, à sua vontade, quadros mais agradáveis ou menos, mais terríveis ou menos, conforme a força maior ou menor de sua imaginação. Essas religiões despojadas simplesmente do que têm de prejudicial, não teriam imposto aos espíritos o jugo vergonhoso de uma tola credulidade; e quantos crimes e superstições teriam desaparecido da terra! Não se teria visto o habitante da Grande Java, persuadido, com o mais leve incômodo, de que a hora fatal chegara, apressar-se a alcançar o deus de seus pais, implorar a morte e consentir em recebê-la; os sacerdotes não teriam querido em vão extorquir-lhe um consentimento para estrangulá-lo em seguida com suas próprias mãos e empanturrar-se com a sua carne. A Pérsia não teria alimentado essa seita abominável de Dervis que pede esmola a mão armada, que mata impunemente quem quer que não admita os seus princípios, que levanta uma mão homicida sobre um Sophi e enterra o punhal no seio de Amurath. Romanos, tão supersticiosos quanto negros, não teriam regulado a sua coragem pelo apetite dos frangos sagrados. Enfim, as religiões não teriam, no Oriente, fecundado os germes dessas guerras longas e cruéis que, de início, os sarracenos fizeram contra os cristãos e que, sob as bandeiras dos Omar e dos Hali, esses mesmos sarracenos as fizeram entre si. (...) Resulta deste capítulo que, se o legislador fosse autorizado, em consequência dos princípios acima estabelecidos, a fazer, nas leis, costumes e falsas religiões, todas as modificações que os tempos e as circunstâncias exigem, poderia calar a fonte de uma infinidade de males e, sem dúvida, garantir o repouso dos povos, aumentando a duração dos impérios. Além disso, quantas luzes esses mesmos princípios não lançariam sobre a moral, fazendo-nos perceber a dependência necessária que liga os costumes às leis de um país e mostrando-nos que a ciência da moral nada mais é do que a própria ciência da legislação? Quem duvida de que, mais assíduos nesse estudo, os moralistas não pudessem então levar essa ciência ao alto grau de perfeição que os bons espíritos só podem agora entrever e que talvez não imaginam que ela possa atingir? “Em vão se diria que essa grande obra de uma excelente legislação não cabe à sabedoria humana; que esse projeto é uma quimera. Quero que uma cega e longa sequência! de acontecimentos, todos dependentes uns dos outros e cujo primeiro germe a primeira luz do mundo desenvolveu, seja a causa universal de tudo o que foi, é e será: mesmo admitindo esse princípio, por que, responderei, se, nessa longa cadeia de acontecimentos, estão compreendidos necessariamente os sábios e os loucos, os covardes e os heróis que governaram o mundo, não se compreenderia aí também a descoberta dos verdadeiros princípios da legislação, aos quais esta ciência deverá a sua perfeição e o mundo a sua felicidade? (Nota do Autor)” Se, em quase todos os governos, todas as leis, incoerentes entre si, parecem ser a obra do puro acaso, é que, guiados por visões e interesses diferentes, aqueles que as fazem preocupam-se pouco com a relação dessas leis entre si. A formação desse corpo inteiro das leis dá-se como a formação de certas ilhas: camponeses querem esvaziar o seu campo de madeiras, pedras, ervas e lodos inúteis; para tanto, atiram-nos num rio, onde vejo esses materiais, carregados pelas correntes, amontoarem-se ao redor de alguns caniços, aí se consolidarem e formarem, enfim, uma terra firme. No entanto, é à uniformidade das visões do legislador e à dependência das leis entre si que se deve a sua excelência. Mas, para estabelecer essa dependência, é preciso poder relacioná-las todas a um princípio simples, tal como o da utilidade do público, isto é, do maior número de homens submetidos à mesma forma de governo: princípio cuja extensão e fecundidade ninguém conhece; princípio que encerra toda a moral e a legislação, que muitos repetem sem entendê-lo e de que os legisladores só têm ainda uma ideia superficial, pelo menos, se se julgar pela infelicidade de quase todos os povos da terra. CAPÍTULO XXII Por que as nações põem no nível dos dons da natureza as qualidades que elas devem apenas à forma de seu governo (...) Lembremo-nos do momento em que o grito de guerra despertou todas as nações da Europa, em que o seu trovão se fazia sentir do norte ao centro da França; suponhamos que, nesse momento, um republicano, ainda muito excitado pelo espírito de cidadão, chega a Paris e apresenta-se na companhia; que surpresa para ele ver todos aí tratarem com indiferença dos negócios públicos e só se ocuparem vivamente de uma moda,• de uma história galante ou de um cachorrinho! Impressionado, nesse sentido, pela diferença que se encontra entre nossa nação e a sua, quase não existe inglês que não se acredite ser de uma natureza superior; que não tome os franceses por cabeças frívolas e a França pelo reino. Puerilidade: não ocorre que o inglês não possa aperceber-se facilmente de que não é apenas à forma de seu governo que os seus compatriotas devem esse espírito de patriotismo e magnanimidade desconhecido em qualquer outro país a não ser nos países livres, mas ainda à posição física da Inglaterra. Com efeito, para sentir que essa liberdade, de que os ingleses são tão orgulhosos e que encerra realmente o germe de tantas virtudes, é menos o preço de sua coragem do que uma dádiva do acaso, consideremos o número infinito de facções que outrora dilaceraram a Inglaterra e ficar-se-á convencido de que, se os mares, abraçando esse império, não o tornassem inacessível aos povos vizinhos, esses povos, aproveitando-se das divisões dos ingleses, tê-los-iam subjugado ou, pelo menos, fornecido a seus reis meios para dominá-los, e que, desse modo, a sua liberdade não é de modo algum o fruto de sua sabedoria. (...) Todos os ingleses sensatos concordarão, portanto, que é à posição física de seu país que ele deve a sua liberdade; que a forma de seu governo não poderia subsistir tal qual é em terra firme, sem ser infinitamente aperfeiçoada, e que a única e legítima razão de seu orgulho se reduz à felicidade de ter nascido numa ilha ao invés de habitar o continente. Um indivíduo fará, sem dúvida, tal confissão, mas nunca um povo. Nunca um povo imporá à sua vaidade os entraves da razão; maior equidade em seus juízos suporia uma suspensão de espírito, por demais rara nos indivíduos, para que se possa encontrá-la numa nação. Cada povo porá, portanto, sempre no nível dos dons da natureza, as virtudes que ele deve à forma de seu governo. O interesse de sua vaidade a isso o aconselha; e quem resiste ao conselho do interesse? A conclusão geral do que disse sobre o espírito, considerado em relação aos diversos países, é que o interesse é o dispensador único da estima ou do desprezo que as nações têm por seus costumes, seus hábitos e seus gêneros diferentes de espírito. A única objeção que se pode opor a essa conclusão é a seguinte: se o interesse, dir-se-á, é o único dispensador da estima atribuída aos diferentes gêneros de ciência e de espírito, por que a moral, útil a todas as nações, não é a mais honrada deles? Por que o nome dos Descartes, dos Newton, é mais célebre do que os dos Nicola, dos La Bruyêre e de todos os moralistas que, talvez, tenham, em suas obras, dado prova de tanto espírito? Responderei que é por que os grandes físicos, com suas descobertas, serviram algumas vezes ao universo, e a maioria dos moralistas, até agora, de nada serviram à humanidade. Que adianta repetir, sem cessar, que é belo morrer pela pátria? Um apotegma não faz um herói. Para merecer a estima, os moralistas deviam empregar, na busca dos meios apropriados para formar homens bravos e virtuosos, o tempo e o espírito que perderam para compor máximas sobre a virtude. Quando Omar escrevia aos sírios: Envio contra vós homens tão ávidos da morte quanto o sais dos prazeres, então os sarracenos, enganados pelos prestígios da ambição e da credulidade, só viam no céu o quinhão do valor e da vitória e no inferno o da covardia e da derrota. Eram, então, animados pelo mais violento fanatismo; e são as paixões e não as máximas de moral que formam os homens corajosos. Os moralistas deviam sentir e saber que, semelhante ao escultor que, de um tronco de árvore, faz um deus ou um banco, o legislador forma à sua vontade heróis, gênios e pessoas virtuosas. Constato os moscovitas, transformados em homens por Pedro, o Grande. Em vão, os povos, amantes loucos de sua legislação, procuram, na inexecução de suas leis, a causa de suas infelicidades. A inexecução das leis, diz o sultão Mahmouth, é sempre a prova da ignorância do legislador. A recompensa, a punição, a glória e a infâmia, submetidas às suas vontades, são quatro espécies de divindades com que se pode sempre operar o bem público e criar homens ilustres em todos os campos. Todo o estudo dos moralistas consiste em determinar o uso que se deve fazer dessas recompensas e dessas punições e o socorro que delas se pode tirar para unir o interesse pessoal ao interesse geral. Essa união é a obra-prima que a moral deve propor-se. Se os cidadãos não pudessem atingir a sua felicidade particular, sem fazer o bem público, somente os loucos seriam viciosos; todos os homens sentiriam necessidade da virtude, e a felicidade das nações seria um benefício da moral; ora, quem duvida de que, nessa suposição, essa ciência não seria infinitamente honrada e os escritores, excelentes nesse campo, não seriam, pela equitativa e reconhecedora posteridade, colocados no nível dos Sólon, dos Licurgo e dos Confúcio? Mas, replicar-se-á, a imperfeição da moral e a lentidão de seus progressos só podem ser um efeito da pouca proporção que se encontra entre a estima atribuída aos moralistas e os esforços de espíritos necessários para aperfeiçoar essa ciência. O interesse geral, acrescentar-se-á, não preside, pois, à distribuição da estima pública? Para responder a essa objeção, é preciso procurar, nos obstáculos intransponíveis que, até o momento, se opuseram à moral, as causas da indiferença com que se tem considerado, até agora, uma ciência cujos progressos anunciam sempre os da legislação e que, por conseguinte, todos os povos têm interesse em aperfeiçoar. CAPÍTULO XXIII Das causas que, até agora, retardaram os progressos da Moral Se a poesia, a geometria, a astronomia e, de modo geral, todas as ciências tendem mais ou menos rapidamente para a sua perfeição, enquanto a moral parece a custo sair do berço, é que os homens, reunindo-se em sociedade, forçados a darem-se leis e costumes, deveram constituir um sistema de moral antes que a observação lhes mostrasse os seus verdadeiros princípios. Feito o sistema, cessou-se de observar; dessa maneira, estamos, por assim dizer, tão somente na infância. do mundo; e como aperfeiçoá-la? Para apressar os progressos de uma ciência, não basta que essa ciência seja útil ao público, é preciso que cada um dos cidadãos, que compõem uma nação, encontre alguma vantagem em aperfeiçoá-la. Ora, nas revoluções que todos os povos da terra experimentaram, não se achando sempre o interesse público, isto é, o do maior número, sobre o qual devem apoiar-se sempre os princípios de uma boa moral, de acordo com o interesse do mais poderoso, este último, indiferente ao progresso das outras ciências, deveu opor-se eficazmente aos da moral. Com efeito, o ambicioso, que foi o primeiro a elevar-se acima de seus concidadãos, o tirano, que os pisoteou com seus pés, o fanático, que os prosternou, todos esses diversos flagelos da humanidade, todas essas diferentes espécies de celerados, forçados, por seu interesse particular, a estabelecer leis contrárias ao bem geral, sentiram bem que o seu poder só tinha como fundamento a ignorância e a imbecilidade humana; assim, sempre impuseram silêncio a quem quer que, mostrando às nações os verdadeiros princípios da moral, lhes revelasse todas as suas infelicidades e todos os seus direitos e os armasse contra a injustiça. Mas, replicar-se-á, se, nos primeiros séculos do mundo, quando os déspotas mantinham as nações subjugadas a um cetro de ferro, era, então, de seu interesse esconder dos povos os verdadeiros princípios da moral; princípios que, levantando-os contra os tiranos, dessem a cada cidadão um dever de vingança; hoje, que o cetro não é mais o preço do crime, que colocado por um consentimento unânime nas mãos dos príncipes, o amor dos povos aí se conserva, que a glória e a felicidade de uma nação, refletidas no soberano, juntam-se à sua grandeza, que inimigos da humanidade, dir-se-á, ainda se opõem aos progressos da moral? Não são mais os reis, mas duas outras espécies de homens poderosos. Os primeiros são os fanáticos, e não os confundo com os homens verdadeiramente piedosos: estes são os mantenedores das máximas da religião, aqueles são os seus destrutores; uns são amigos da humanidade, os outros, dóceis exteriormente e bárbaros em seu interior, têm a voz de Jacó e as mãos de Esaú; indiferentes às ações honestas, julgam-se virtuosos não pelo que são, mas somente pelo que acreditam; a credulidade cios homens é, segundo eles, a única medida de sua probidade. Odeiam mortalmente, dizia a Rainha Cristina, quem quer que não seja ingênuo em relação a eles, e o seu interesse exige pessoas que sejam: ambiciosos, hipócritas e discretos, sentem que, para dominar os povos, devem cegá-los; assim, esses ímpios reclamam, sem cessar, a impiedade contra todo homem nascido para esclarecer as nações; toda verdade nova lhes é suspeita; juntam-se às crianças que tudo temem nas trevas. A segunda espécie de homens poderosos, que se opõem aos progressos da moral, são os semipolíticos. Entre eles, há os que, naturalmente levados ao verdadeiro, só são inimigos das verdades novas, porque são preguiçosos e querem subtrair-se à fadiga de atenção necessária para examiná-las. Há outros a quem motivos perigosos animam, e são estes os que mais se devem temer; são homens cujo espírito é desprovido de talento e a alma, de virtudes, a quem, por serem grandes celerados, falta apenas coragem; incapazes de visões elevadas e novas, estes últimos acreditam que sua consideração se deve ao respeito imbecil ou fingido que ostentam por todas as opiniões e erros recebidos; furiosos contra todo homem que quer abalar o império, armam contra ele as paixões e até mesmo os preconceitos que desprezam e não cessam de assustar os espíritos frágeis com a palavra novidade. Como se as verdades devessem banir as virtudes da terra, como se aí tudo fosse de tal modo vantajoso para o vício que não se pudesse ser virtuoso sem ser imbecil, como se a moral demonstrasse a necessidade disso e o estudo dessa ciência se tornasse, por conseguinte, funesto para o universo, eles querem que se mantenham os povos prosternados diante dos preconceitos recebidos, como diante dos crocodilos sagrados de Mênfis. Faz-se alguma descoberta em moral; é unicamente a nós, dizem eles, que é preciso revelá-la; somente nós, seguindo o exemplo dos iniciados do Egito, devemos ser os seus depositários; que o resto dos humanos seja envolvido pelas trevas do preconceito, pois o estado natural do homem é a cegueira. Por demais semelhantes a esses médicos que, ciumentos da descoberta do emético, abusaram da credulidade de alguns prelados para excomungar um remédio cujos socorros são tão rápidos e salutares, eles- abusam da credulidade de alguns homens honestos, mas cuja probidade estúpida e seduzida poderia, num governo menos sábio, arrastar ao suplício a probidade esclarecida de um Sócrates. Tais são os meios de que se serviram essas duas espécies de homens para impor silêncio aos espíritos esclarecidos. Em vão apoiar-se-ia, para resistir-lhes, no favor público. Quando um cidadão é animado pela paixão da verdade e do bem geral, é necessário que se exale sempre de sua obra um perfume de virtude que a torna agradável ao público, e que esse público se torne o seu protetor; mas, como sob o escudo do reconhecimento e da estima pública não se está ao abrigo das perseguições desses fanáticos, entre as pessoas sábias, há muito poucas virtuosas o suficiente para ousar desafiar o seu furor. Eis aí que obstáculos intransponíveis se opuseram, até o momento, aos progressos da moral e porque essa ciência, quase sempre inútil, mereceu sempre, de acordo com os meus princípios, pouca estima. Mas não se pode fazer sentir às nações a utilidade que tirariam de uma excelente moral? E não se poderia apressar os progressos dessa ciência, honrando mais os que a cultivam? Vista a importância dessa matéria, correndo o risco de uma digressão, vou tratar desse tema. CAPÍTULO XXIV Dos meios de aperfeiçoar a Moral (...) O único meio de consegui-lo é desmascarar os protetores da ignorância, mostrar neles os mais cruéis inimigos da humanidade; ensinar às nações que os homens são, em geral, ainda mais estúpidos do que maus; que, curando-os de seus erros, estariam curados da maioria de seus vícios, e que opor-se, nesse sentido, à sua cura é cometer um crime de lesa-humanidade. Todo homem que considera, na história, o quadro das misérias públicas percebe logo que é a ignorância que, mais bárbara ainda do que o interesse, verteu a maioria das calamidades sobre a terra. Atingido por essa verdade, é-se sempre tentado a gritar: Feliz a nação onde, pelo menos, os cidadãos se permitiriam apenas crimes de interesse! Quanto a ignorância os multiplica! Quanto sangue não fez espalhar-se sobre os altares! No entanto, o homem é feito para ser virtuoso; com efeito, se é na maioria que a força essencialmente reside e se é na prática das ações úteis à maioria que a justiça consiste, é evidente que a justiça está sempre armada, por sua natureza, do poder necessário pari reprimir o vício e incitar os homens à virtude. Se o crime audacioso e poderoso põe tão frequentemente cadeias na justiça e na virtude, se oprime as nações, isso ocorre apenas pelo recurso à ignorância: é ela que, escondendo a cada nação os seus verdadeiros interesses, impede a ação e a reunião de suas forças e põe, por esse meio, o culpado ao abrigo do gládio da equidade. A que desprezo é preciso portanto condenar quem quer que venha reter os povos nas trevas da ignorância? Até agora, não se insistiu bastante fortemente nessa ideia, não que se deva lançar por terra, num dia, todos os altares do erro; sei com que comedimento se deve adiantar uma opinião nova: sei até mesmo que, destruindo-os, se deve respeitar os preconceitos e que, antes de atacar um erro mantido de modo geral, é preciso enviar, como as pombas da arca, algumas verdades à descoberta, para ver se o dilúvio dos preconceitos não cobre ainda a superfície do mundo, se os erros começam a escoar-se e se se percebe aqui e ali apontar, no universo, algumas ilhas em que a virtude e a verdade possam aportar para comunicar-se aos homens. Mas tantas precauções só se tomam com preconceitos pouco perigosos. Que se deve a homens que, ansiosos pela dominação, querem embrutecer os, povos para tiranizá-los? E preciso, com uma mão audaz, quebrar o talismã de imbecilidade a que se vincula o poder desses gênios malfeitores; apontar às nações os verdadeiros princípios da moral; mostrar-lhes que, insensivelmente arrastados à felicidade aparente ou real, a dor e o prazer são os únicos motores do universo moral e que o sentimento do amor de si é a única base sobre que se pode lançar os fundamentos de uma moral útil. Como iludir-se de ocultar aos homens o conhecimento desse princípio? Para tanto, é preciso, pois, impedi-los de olhar os seus corações, de examinar a sua conduta, de abrigar esses livros de história em que se veem os povos, de todos os séculos e de todos os países, unicamente atentos à voz do prazer, imolar os seus semelhantes, não digo por grandes interesses, mas por sua sensualidade e para sua diversão. Tomo como testemunho esses viveiros em que a gulodice bárbara dos romanos submergia escravos e dava-os como alimento a seus peixes, para tornar a carne destes mais delicada; e essa ilha do Tibre, aonde a crueldade dos senhores transportava os escravos enfermos, velhos e doentes e os deixava perecer no suplício da fome; constato ainda as ruínas dessas vastas e soberbas arenas, em que estão gravados os feitos da barbárie humana, em que o povo mais civilizado do universo sacrificava milhares de gladiadores pelo único prazer que o espetáculo dos combates produz, para onde as mulheres se precipitavam em multidão, onde esse sexo, nutrido pelo luxo, voluptuosidade e prazeres, esse sexo que, feito para o ornamento e as delícias da terra, parece dever respirar apenas a volúpia, levava a barbárie ao ponto de exigir dos gladiadores feridos que, ao morrer, tombassem numa atitude agradável. Esses fatos, e mil outros semelhantes, são por demais confirmados para que se iluda em ocultar aos homens a sua verdadeira causa. Cada um age como se fosse de uma natureza diferente da dos romanos, como se a diferença de sua educação produzisse a diferença de seus sentimentos e o fizesse tremer apenas com o relato de um espetáculo que o hábito lhe tornaria, sem dúvida, agradável, se tivesse nascido às margens do Tibre. Em vão alguns homens, iludidos por sua preguiça em examinarem-se e por sua vaidade em acreditarem-se bons, imaginam dever à excelência particular de sua natureza os sentimentos humanos de que seriam tocados diante de semelhante espetáculo: o homem sensato concorda que a natureza, como diz Pascal e como prova a experiência, nada mais é do que o nosso primeiro hábito. É portanto absurdo querer esconder aos homens o princípio que os move. Mas suponhamos que se consiga: que vantagem tirarão disso as nações? Por certo, nada mais se fará do que velar aos olhos das pessoas rudes o sentimento do amor de si; não se impedirá a ação desse sentimento sobre eles; não se transformarão os seus efeitos; os homens não serão diferentes do que são: essa ignorância não lhes seria útil, portanto. Digo mais: ela lhes seria nociva; é, com efeito, ao conhecimento do princípio do amor de si que as sociedades devem a maioria das vantagens de que desfrutam: esse conhecimento, por imperfeito que ainda seja, fez os povos sentirem a necessidade de armar de poder a mão dos magistrados, fez o legislador perceber confusamente a necessidade de fundar na base do interesse pessoal os princípios da probidade. Sobre que outra base, com efeito, poder-se-ia apoiá-los? Seria sobre os princípios dessas falsas religiões que, dir-se-á, por falsas que sejam, poderiam ser úteis à felicidade temporal dos homens? Mas a maioria dessas religiões é por demais absurda para dar semelhantes esteios à virtude. Não será apoiada nem mesmo sobre os princípios da verdadeira religião; não que a moral não seja excelente, não que as máximas não elevem a alma à santidade e não a preencham de uma alegria interior, antegozo da alegria celeste; mas porque esses princípios poderiam convir apenas ao pequeno número de cristãos espalhados pela terra, e um filósofo que, em seus escritos, é sempre tentado a falar ao universo deve dar à virtude fundamentos sobre os quais todas as nações possam construir igualmente e, por conseguinte, edificá-la sobre a base do interesse pessoal. Ele deve manter-se tanto mais fortemente vinculado a esse princípio quanto motivos de interesse temporal, manejados com destreza por um legislador hábil, bastarem para formar homens virtuosos. O exemplo dos turcos que, em sua religião, admitem o dogma da necessidade, princípio destrutivo de toda religião, e podem, por conseguinte, ser considerados como deístas; o exemplo dos chineses materialistas; o dos saduceus, que negavam a imortalidade da alma e recebiam entre os judeus o título de justos por excelência; enfim, o exemplo dos gimnosofistas, que, sempre acusados de ateísmo e sempre respeitados por sua sabedoria e sua moderação, cumpriam, com a maior exatidão, os deveres da sociedade; todos esses exemplos e mil outros semelhantes provam que a esperança ou o temor das penas ou dos prazeres temporais são tão eficazes, tão propícios para formar homens virtuosos quanto essas penas e esses prazeres eternos que, considerados na perspectiva do futuro, são comumente uma impressão por demais fraca para a ela sacrificar prazeres criminosos, mas presentes. Como não se daria a preferência aos motivos de interesse temporal? Eles não inspiram nenhuma dessas piedosas e santas crueldades que nossa religião condena, essa lei de amor c humanidade, mas de que os seus ministros fizeram uso, com tanta frequência; crueldades que serão, para sempre, a vergonha dos séculos passados, o horror e o espanto dos séculos por vir. Com efeito, de que surpresa não deve ser tomado o cidadão virtuoso e o cristão penetrado desse espírito de caridade tão recomendado no Evangelho, quando lança os olhos sobre o universo passado? Aí vê diferentes religiões evocarem, todas, o fanatismo e saciarem-se de sangue humano. Aqui, são cristãos, livres, como prova Warburton, para exercer o seu culto, se não quisessem destruir o dos ídolos, que, por sua intolerância, provocam a perseguição dos pagãos. Lá, são diferentes seitas de cristãos, obstinadas umas contra as outras, que dilaceram o império de Constantinopla. Mais adiante, surge na Arábia uma nova religião: ela ordena aos sarracenos percorrerem a terra, com o ferro e o fogo nas mãos. Às irrupções desses bárbaros, vê-se suceder a guerra contra os infiéis: sob o estandarte das Cruzadas, nações inteiras desertam a Europa para inundar a Ásia, para exercer em sua rota as mais terríveis pilhagens e correr a esconder-se nas areias da Arábia e do Egito. Em seguida, é o fanatismo que coloca as armas na mão dos príncipes cristãos; ordena aos católicos o massacre dos heréticos; faz reaparecerem, na terra, essas torturas inventadas pelos Faláris, Busíris e Neros; levanta e acende, na Espanha, as fogueiras da Inquisição, enquanto os piedosos espanhóis deixam os seus portos, atravessam os mares, para implantar a cruz e a desolação na América. Que se lancem os olhos ao norte, ao sul, ao oriente e ao ocidente do mundo, em toda parte, vê-se a faca sagrada da religião levantada sobre o peito das mulheres, das crianças, dos velhos, e a terra fumegante do sangue das vítimas imoladas aos falsos deuses ou ao Ser supremo só oferece, de todas as partes, o vasto, o repugnante e o horrível espetáculo da intolerância. Ora, que homem virtuoso e que cristão, se sua alma terna estiver cheia da divina unção, que se exala das máximas do Evangelho, se for sensível aos lamentos dos infelizes e se já alguma vez enxugou as suas lágrimas, não seria, diante desse espetáculo, tocado de compaixão pela humanidade e não tentaria fundar a probidade, não sobre princípios tão respeitáveis quanto os da religião, mas sobre princípios de que fosse menos fácil abusar, assim como são os motivos de interesse pessoal? Sem serem contrários aos princípios de nossa religião, esses motivos bastam para incitar os homens à virtude. A religião dos pagãos, povoando o olimpo de perversos, era, sem dúvida, menos propícia do que a nossa para formar homens justos; quem pode, no entanto, duvidar de que os primeiros romanos não tenham sido mais virtuosos do que nós? Quem pode negar que os maréchaussées não tenham desarmado mais bandidos do que a religião? Que o italiano mais devoto do que o francês, não tenha, com o terço na mão, feito mais uso do veneno? E que, nos tempos em que a devoção é mais ardente e a civilização mais imperfeita, não se cometam infinitamente mais crimes do que nos séculos em que a devoção esmorece e a civilização se aperfeiçoa? E, portanto, unicamente por boas leis que se pode formar homens virtuosos. Toda a arte do legislador consiste, pois, em forçar os homens, pelo sentimento do amor de si mesmos, a serem sempre justos uns em relação aos outros. Ora, para elaborar semelhantes leis, é preciso conhecer o coração humano e, preliminarmente, saber que os homens, sensíveis por si sós, indiferentes pelos outros, não nasceram nem bons nem maus, mas prontos a serem um ou outro, conforme um interesse comum os reúna ou divida; e saber que o sentimento de preferência que cada um experimente para si, sentimento a que se vincula a conservação da espécie, é gravado pela natureza de modo indelével; que a sensibilidade física produziu em nós o amor ao prazer e o ódio à dor; que o prazer e a dor foram depositados, em seguida, em todos os corações, e aí fizeram desabrochar o germe do amor de si, cujo desenvolvimento deu origem às paixões, de onde saíram todos os nossos vícios e todas as nossas virtudes. E pela meditação dessas ideias preliminares que se aprende por que as paixões, cuja árvore proibida é, segundo alguns rabinos, apenas uma engenhosa imagem, trazem igualmente em seus ramos os frutos do bem e do mal; que se percebe o mecanismo que eles empregam na produção de nossos vícios, e de nossas virtudes; e que, enfim, um legislador descobre o meio de incitar os homens à probidade, forçando as paixões a trazerem apenas frutos de virtude e de sabedoria. Ora, se o exame dessas ideias, apropriadas a tornar os homens virtuosos, é-nos proibido pelas duas espécies de homens poderosos, acima citadas, o único meio de acelerar os progressos da moral seria, portanto, como disse mais acima, fazer ver, nesses protetores da estupidez, os mais cruéis inimigos da humanidade, deles arrancar o cetro que mantêm da ignorância e de que se servem para comandar os povos embrutecidos. A esse respeito, observarei que esse meio simples e fácil na especulação é muito difícil na execução; não que ele não nasça dos homens que, a espíritos vastos e luminosos, unam almas fortes e virtuosas. Existem homens que, convencidos de que um cidadão sem coragem é um cidadão sem virtude, sentem que os bens e até mesmo a vida de um particular são, por assim dizer, em suas mãos, apenas um depósito que devem estar sempre prontos a restituir, quando a saúde do público exigir; mas semelhantes homens são sempre em número por demais pequeno para esclarecer o público; aliás, a virtude é sempre sem força, quando os costumes de um século a ela vinculam a ferrugem do ridículo. Também a moral e a legislação, que considero como uma só e mesma ciência, farão somente progressos insensíveis. E unicamente o lapso do tempo que poderá lembrar esses séculos felizes designados pelos nomes de Astréia ou de Réia, que eram tão só o engenhoso emblema da perfeição dessas duas ciências. DISCURSO III SE O ESPIRITO DEVE SER CONSIDERADO COMO UM DOM DA NATUREZA OU COMO UM EFEITO DA EDUCAÇAO (CAPÍTULOS I/VI - IX - X – XI - XIII/XVII – XXII - XXV/ XXVII) CAPÍTULO I Vou examinar, neste Discurso, como a natureza e a educação influem sobre o espírito; para tanto, devo inicialmente determinar o que se entende pela palavra Natureza. Esta palavra pode provocar em nós a ideia confusa de um ser ou uma força que nos dotou de todos os sentidos: ora, os sentidos são as fontes de todas as nossas ideias; privados de um sentido, estamos privados de todas as ideias que lhe são relativas; um cego de nascença não tem, por essa razão, ideia alguma das cores. E portanto evidente que, nessa significação, o espírito deve ser considerado inteiramente como um dom da natureza. Mas a questão torna-se mais delicada se se toma essa palavra numa acepção diferente e se se supõe que entre os homens bem conformados, dotados de todos os seus sentidos e na organização dos quais não se percebe defeito algum, a natureza colocou, no entanto, tão grandes diferenças e disposições de espírito tão desiguais que uns são organizados para ser estúpidos e outros para ser espirituais. Reconheço que, de início, não se pode considerar a grande desigualdade de espírito dos homens sem admitir entre os espíritos a mesma diferença que entre os corpos, sendo uns fracos e delicados, enquanto outros fortes e robustos. Quem poderia, dir-se-á, a esse respeito, ocasionar diferenças na maneira uniforme por que opera a natureza? Esse raciocínio, na verdade, funda-se apenas numa analogia. É bastante semelhante ao dos astrônomos, que concluiriam ser a superfície da Lua habitada porque se compõe de uma matéria quase igual à da superfície da Terra. Por mais débil que seja esse raciocínio em si mesmo, deve, contudo, parecer demonstrativo, pois, dir-se-á enfim: a que causa atribuir a grande desigualdade de espírito que se observa entre homens que parecem ter recebido a mesma educação? Para responder a essa questão é preciso inicialmente examinar se vários homens podem a rigor ter recebido a mesma educação e, para tanto, fixar a ideia que se liga à palavra educação. Se se entende por educação simplesmente a que se recebe nos mesmos lugares e pelos mesmos mestres, neste sentido, a educação é a mesma para uma infinidade de homens. Mas, se damos a essa palavra uma significação mais verdadeira e extensa e se aí compreendemos, de modo geral, tudo o que colabora para a nossa instrução, então afirmo que ninguém recebe a mesma educação; uma vez que cada um tem, ouso dizê-lo, como preceptor: a forma de governo sob que ele vive, seus amigos, suas mestras, as pessoas que o cercam, suas leituras e, enfim, o acaso, isto é, uma infinidade de acontecimentos cujo encadeamento e cujas causas nossa ignorância não nos permite perceber. Ora, esse acaso tem uma participação maior em nossa educação do que se pensa. E ele que coloca certos objetos sob nossos olhos, ocasiona em nós, por conseguinte, as ideias mais felizes e conduz-nos, algumas vezes, às maiores descobertas. Foi o acaso, para dar alguns exemplos, que guiou Galileu nos jardins de Florença, quando os jardineiros faziam trabalhar as bombas; foi ele que inspirou esses jardineiros, quando, não podendo elevar as águas além da altura de trinta e dois pés, perguntaram a causa a Galileu, despertando, com essa questão, o espírito e a vaidade desse filósofo; foi em seguida essa vaidade, posta em ação pelo golpe do acaso, que o obrigou a fazer desse efeito natural o objeto de suas meditações até que, enfim, pela descoberta do princípio do peso do ar, encontrou a solução desse problema. Num momento em que o espírito pacífico de Newton não estava ocupado por coisa alguma, agitado por paixão alguma, foi também o acaso que, atraindo-o para uma alameda de macieiras, desprendeu alguns frutos de seus ramos e deu a esse filósofo a primeira ideia de seu sistema; foi realmente desse fato que ele partiu para examinar se a Lua não gravitava em redor da Terra com a mesma força com que os corpos caem na superfície. Foi portanto ao acaso que os grandes gênios deveram as suas ideias mais felizes. Quantas pessoas de espírito permanecem confusas na multidão dos homens medíocres, por falta ora de certa tranquilidade de alma, ora do encontro de um jardineiro ou da queda de uma maçã! Sinto que não se pode, de início, sem alguma dificuldade, atribuir tão grandes efeitos a causas tão remotas e tão insignificantes aparentemente. No entanto, a experiência mostra-nos que, no físico, como no moral, os maiores acontecimentos são, com frequência, o efeito de causas quase imperceptíveis. Quem duvida que Alexandre não devesse, em parte, a conquista da Pérsia ao organizador da falange macedônica? Que o cantor de Aquiles, animando esse príncipe pela fúria da glória, não tenha contribuído para a destruição do império de Dario, como Quinto Cúrcio para as vitórias de Carlos XII? Que os prantos de Veturia não tenham desarmado Coriolano, não tenham fortalecido o poder de Roma prestes a sucumbir sob os esforços dos volscos, não tenham ocasionado esse longo encadeamento de vitórias que mudaram a face do mundo e que não seja, por conseguinte, às lágrimas desta Veturia que a Europa deve a sua situação presente? ( ... ) A maioria dos acontecimentos tem causas muito insignificantes; nós as ignoramos porque a maioria dos próprios historiadores as ignorou ou não teve olhos para aperceber-se delas. E verdade que, a esse propósito, o espírito pode reparar suas omissões, suprindo facilmente o conhecimento de certos princípios ao conhecimento de certos fatos. Assim, sem me deter por mais tempo para provar que o acaso desempenha neste mundo um papel maior do que se pensa, concluirei a partir do que acabo de dizer que, se compreendemos sob a palavra educação tudo o que contribui para a nossa instrução, esse próprio acaso deve necessariamente ter aí a participação maior; e não estando ninguém colocado exatamente no mesmo concurso de circunstâncias, ninguém recebe precisamente a mesma educação. Posto isso, quem pode assegurar que a diferença da educação não produza a diferença que se observa entre os espíritos? Que os homens não sejam semelhantes a essas árvores da mesma espécie, cujo germe, indestrutível e absolutamente o mesmo, não sendo nunca semeado exatamente na mesma terra, nem precisamente exposto aos mesmos ventos, ao mesmo sol, às mesmas chuvas, deva, ao desenvolver-se, tomar necessariamente uma infinidade de formas diferentes? Poderia portanto concluir que a desigualdade de espírito dos homens pode ser considerada indiferentemente como o efeito da natureza ou da educação. Mas, por verdadeira que seja esta conclusão, como seria muito vaga e se reduziria, por assim dizer, a um pode ser, acredito dever considerar essa questão sob um novo ponto de vista, reconduzindo-a a princípios mais certos e mais precisos. Para tanto, é necessário reduzir a questão a pontos simples, remontar até à origem de nossas ideias, ao desenvolvimento do espírito, e lembrar-nos de que o homem apenas sente, recorda-se e observa as semelhanças e as diferenças, isto é, as relações que têm entre si os objetos que se lhe oferecem ou que a sua memória lhe apresenta; que, assim, a natureza só poderia dar aos homens maior ou menor disposição ao espírito dotando uns de preferência a outros de um pouco mais de fineza, sentidos, extensão de memória e capacidade de atenção. CAPÍTULO II Da fineza dos sentidos Seria a maior ou menor perfeição dos órgãos dos sentidos, em que se acha compreendida necessariamente a da organização interior, visto que julgo aqui a fineza dos sentidos apenas por seus efeitos, a causa da desigualdade de espírito dos homens? Para raciocinar com maior exatidão a esse respeito, é preciso examinar se a maior ou menor fineza dos sentidos dá ao espírito ou maior extensão ou maior exatidão, a qual, tomada em sua verdadeira significação, encerra todas as qualidades do espírito. A maior ou menor perfeição dos órgãos dos sentidos em nada influi sobre a exatidão do espírito, se os homens, qualquer que seja a impressão que recebam dos mesmos objetos, devem sempre, contudo, perceber as mesmas relações entre esses objetos. Ora, para provar que as percebem, escolhi como exemplo o sentido da vista, aquele a que devemos o maior número de nossas ideias. Afirmo que, se, a olhos diferentes, os mesmos objetos parecem maiores ou menores, mais brilhantes ou obscuros, se a toesa, por exemplo, é aos olhos de tal homem menor, a neve menos branca, o ébano menos negro, do que aos olhos de tal outro, esses dois homens, no entanto, sempre perceberão as mesmas relações entre todos os objetos: consequentemente, a toesa parecerá sempre a seus olhos maior do que o pé, a neve mais branca do que todos os corpos, o ébano a mais negra das madeiras. Ora, como a exatidão de espírito consiste na visão nítida das verdadeiras relações que os objetos têm entre si, e repetindo quanto aos outros sentidos o que disse sobre o da vista chegar-se-á sempre ao mesmo resultado, concluo que a maior ou menor perfeição da organização, tanto exterior quanto interior, em nada pode influir sobre a exatidão de nossos juízos. Mais ainda, direi que, se se distingue a extensão da exatidão do espírito, a maior ou menor fineza dos sentidos nada acrescentará a essa exatidão. Com efeito, tomando sempre o sentido da vista como exemplo, não é evidente que a maior ou menor exatidão de espírito dependeria do maior ou menor número de objetos que, com a exclusão dos outros, um homem dotado de uma visão muito apurada poderia colocar em sua memória? Ora, são poucos os objetos imperceptíveis por sua pequenez, que, considerados precisamente com a mesma atenção, por olhos tão inexperientes e tão exercitados, sejam percebidos por uns e escapem aos outros; mas a diferença que a natureza coloca, a esse propósito, entre os homens que denomino bem organizados, isto é, na organização dos quais não se percebe defeito algum, fosse ela infinitamente mais considerável do que é, posso mostrar que essa diferença nada produziria sobre a extensão do espírito. Suponhamos dois homens dotados de uma mesma capacidade de atenção, de uma memória igualmente extensa, enfim, dois homens iguais em tudo, exceto na fineza de sentidos. Nesta hipótese, o que será dotado da visão mais apurada poderá, sem dúvida, colocar em sua memória e comparar entre si vários desses objetos, cuja pequenez os esconde àquele cuja organização é, a esse respeito, menos perfeita; mas, tendo esses dois homens, em minha suposição, uma memória igualmente extensa e capaz, se se quiser, de conter dois mil objetos, é ainda certo que o segundo poderá substituir por fatos históricos os objetos que um menor grau de fineza na vista não lhe terá permitido perceber e poderá ainda completar, se r se quiser, o número de dois mil objetos que a memória do primeiro contém. Ora, se desses dois homens aquele cujo sentido da vista é menos apurado pode, no entanto, depositar no armazém da memória um número de objetos tão grande quanto o outro e se, aliás, esses dois homens são iguais em tudo, devem eles, por conseguinte, fazer o mesmo tanto de combinações e, em minha suposição, ter o mesmo tanto de espírito, visto que a extensão do espírito se mede pelo número das ideias e das combinações. A maior ou menor perfeição no órgão da visão só pode, por conseguinte, influir no gênero de seu espírito, fazendo de um pintor, um botânico, e de outro um historiador ou um político; mas em nada pode influir sobre a extensão de seu espírito. Também não se observa uma superioridade constante de espírito naqueles que têm maior fineza no sentido da visão e da audição do que naqueles que, pelo uso habitual de óculos e cornetas, poriam, desse modo, diferença maior entre eles e os outros homens do que coloca a natureza a esse respeito. De onde concluo que entre os homens que denomino bem organizados não é absolutamente à maior ou menor perfeição dos órgãos, tanto exteriores quanto interiores dos sentidos, que se atribui a superioridade do saber, é necessariamente de outra causa que a grande desigualdade dos espíritos depende. CAPÍTULO III Da extensão da memória A conclusão do capítulo anterior será, sem dúvida, procurar na desigual extensão da memória dos homens a causa da desigualdade de seu espírito. A memória é o armazém em que se depositam as sensações, os fatos e as ideias, cujas combinações diversas formam o que se chama de Espírito. Deve-se, portanto, considerar as sensações, os fatos e as ideias como a matéria-prima do espírito. Ora, quanto mais espaçoso é o armazém da memória, mais dessa matéria-prima ele contém e, dir-se-á, mais aptidão tem o espírito. Por mais fundamento que pareça ter esse raciocínio, aprofundando-o, talvez se o considerará tão somente especial. Para responder plenamente a isso é preciso, em primeiro lugar, examinar se a diferença de extensão na memória dos homens bem organizados é, com efeito, tão considerável quanto na aparência, e, supondo esta diferença efetiva, é necessário saber, em segundo lugar, se se deve considerá-la como a causa da desigualdade dos espíritos. Quanto ao primeiro objeto de meu exame, afirmo que somente a atenção pode gravar na memória os objetos que, vistos sem atenção, provocariam em nós apenas impressões insensíveis e quase iguais às que um leitor recebe sucessivamente de cada uma das letras que compõem a folha de uma obra. E certo portanto que, para julgar se o defeito de memória nos homens é o defeito de sua desatenção, ou de uma imperfeição no órgão que a produz, é preciso recorrer à experiência. Ela nos mostra que entre os homens há muitos, como dizem o próprio Santo Agostinho e Montaigne, que, parecendo dotados apenas de uma memória muito fraca, chegam, no entanto, pelo desejo de saber, a introduzir um número bastante grande de fatos e ideias em sua lembrança, para colocarem-se no nível das memórias extraordinárias. Ora, se o desejo de se instruir basta, pelo menos, para muito saber, daí concluo que a memória é quase inteiramente factícia; assim a extensão da memória depende: 1º do uso cotidiano que dela se faz; 2º da atenção com que se consideram os objetos que nela se quer imprimir e que, vistos sem atenção, como acabei de dizer nela deixariam apenas um rastro superficial e prestes a apagar-se; e 3º da ordem em que se alinham as ideias. É a essa ordem que se devem todos os prodígios da memória, e essa ordem consiste em ligar todas as ideias em conjunto e, por conseguinte, em impor à memória apenas objetos que, por sua natureza ou maneira pela qual são considerados, conservam entre si relações suficientes para, a partir de um, lembrar-se do outro. As frequentes representações dos mesmos objetos à memória são, por assim dizer, tantos golpes de buril que aí são gravados tão mais profundamente quanto mais frequentemente aí se representam. Aliás, essa ordem tão propícia para trazer os mesmos objetos à nossa lembrança dá-nos a explicação de todos os fenômenos da memória e mostra-nos que a sagacidade de espírito de um, isto é, a rapidez com que um homem é tocado por uma verdade, depende, com frequência, da analogia dessa verdade com os objetos que habitualmente ele tem presentes na memória, e que a lentidão de espírito de outro a esse respeito é, ao contrário, o efeito da pouca analogia dessa mesma verdade com os objetos de que ele se ocupa. Este não poderia apreendê-la, percebendo todas as relações, sem rejeitar todas as primeiras ideias que se apresentam à sua lembrança e sem transtornar todo o armazém da sua memória, para aí encontrar ideias que se liguem a essa verdade. Eis aí por que tantas pessoas são insensíveis à exposição de certos fatos ou certas verdades, que afetam vivamente outras apenas porque esses fatos ou essas verdades abalam toda a cadeia de seus pensamentos e despertam um grande número deles em seu espírito: é um relâmpago que atira uma luz repentina sobre todo o horizonte de suas ideias. E portanto à ordem que se deve frequentemente a sagacidade de seu espírito e sempre a extensão da sua memória: é também o defeito da ordem, resultado da indiferença que se tem por alguns tipos de estudo, que, em certos casos, priva absolutamente de memória os que, em outros casos, parecem ser dotados da memória mais extensa. Eis aí por que o conhecedor de línguas e de história, que, recorrendo à ordem cronológica, imprime e conserva facilmente em sua memória palavras, datas e fatos históricos, com frequência, nela não pode reter a prova de uma verdade moral, a demonstração de uma verdade geométrica ou o quadro de uma paisagem que terá observado por longo tempo; com efeito, não tendo essas espécies de objetos analogia alguma com o resto dos fatos ou das ideias com que ele preencheu sua memória, elas não podem aí representarem-se frequentemente, aí imprimirem-se profundamente e nem, por conseguinte, aí conservarem-se por muito tempo. Essa é a causa produtora de todas as diferentes espécies de memória e a razão pela qual os que menos sabem num campo são os que comumente mais esquecem nesse mesmo campo. Parece, portanto, que a grande memória é, por assim dizer, um fenômeno da ordem, sendo quase inteiramente factícia, e que, entre os homens que denomino bem organizados, essa grande desigualdade de memória é menos o efeito de uma perfeição desigual no órgão que a produz do que uma atenção desigual a cultivá-la. Mas, supondo até mesmo que a extensão desigual de memória que se observa nos homens seja inteiramente obra da natureza e tão considerável quanto o é em aparência, afirmo que ela em nada poderia influir sobre a extensão de seu espírito: 1º porque o grande espírito, como vou demonstrar, não supõe a memória muito grande, e 2º porque todo homem é dotado de uma memória suficiente para elevar-se ao mais alto grau de espírito. Antes de provar a primeira dessas proposições, é preciso observar que, se a perfeita ignorância produz a perfeita imbecilidade, o homem de espírito só parece, algumas vezes, ter falta de memória porque se dá muito pouca extensão a essa palavra memória e se restringe a sua significação unicamente à lembrança de nomes, datas, lugares e pessoas por que as pessoas de espírito não têm curiosidade e se acham frequentemente sem memória. Mas, compreendendo na significação dessa palavra a lembrança ou das ideias ou das imagens ou dos raciocínios, nenhum deles está privado dela; de onde resulta que não há espírito sem memória. Feita esta observação, é preciso saber qual a extensão de memória que o grande espírito supõe. Escolhamos, como exemplo, dois homens ilustres em campos diferentes, tais como Locke e Milton; examinemos se a grandeza de seu espírito deve ser considerada como o efeito da extrema extensão de sua memória. Se, inicialmente, tomarmos Locke e se supusermos que, esclarecido por uma ideia feliz ou pela leitura de Aristóteles, Gassendi ou Montaigne, esse filósofo percebeu nos sentidos a origem comum de todas as nossas ideias, sentiremos que, para deduzir todo o seu sistema desta primeira ideia, foi-lhe necessário menos a extensão da memória do que a obstinação na meditação, uma vez que a memória menos extensa bastaria para conter todos os objetos, de cuja comparação devia resultar a certeza de seus princípios, para que ele desenvolvesse o seu encadeamento e se fizesse, por conseguinte merecer e obter o título de grande espírito. Em relação a Milton, se o vejo sob o ponto de vista de que, segundo o testemunho geral, é infinitamente superior aos outros poetas e se considero unicamente a força, a grandeza, a verdade e, enfim, a novidade de suas imagens poéticas, sou obrigado a reconhecer que a superioridade de seu espírito nesse campo não supõe de modo algum uma grande extensão de memória. Com efeito, por maiores que sejam as composições de seus quadros (tal como aquela em que, reunindo o clarão do fogo e a solidez da matéria terrestre, pinta o terreno do inferno ardendo com um fogo sólido, como o lago ardia com um fogo líquido), por maiores que sejam, digo, as suas composições, é evidente que o número das imagens ousadas, apropriadas para formar semelhantes quadros, deve ser extremamente' limitado e que, por conseguinte, a grandeza da imaginação desse poeta é menos o efeito de uma grande extensão de memória do que uma meditação profunda sobre sua arte. É esta meditação que, fazendo-o procurar a fonte dos prazeres da imaginação, leva-o a percebê-la na nova reunião das imagens apropriadas para formar quadros grandes, verdadeiros e bem proporcionados e na escolha constante dessas expressões fortes que produzem, por assim dizer, as cores da poesia e pelas quais ele tornou as suas descrições visíveis aos olhos da imaginação. (...) Creio que os exemplos anteriores provarão àqueles que decompuserem as obras dos homens ilustres que o grande espírito não supõe de modo algum a grande memória. Acrescentarei até mesmo que a extrema extensão de um é absolutamente exclusiva da extrema extensão do outro. Se a ignorância faz o espírito definhar, por falta de alimento, a vasta erudição, por uma superabundância de alimento, com frequência sufoca-o. Para convencer-se disso, basta examinar o uso diferente que devem fazer de seu tempo dois homens que queiram tornar-se superiores aos outros, um em espírito e o outro em memória. Se o espírito é apenas uma reunião de ideias novas e se toda ideia nova é apenas uma relação nova percebida entre certos objetos, aquele que quer distinguir-se por seu espírito deve necessariamente empregar a maior parte de seu tempo na observação das diversas relações que os objetos têm entre si e consumir apenas a mínima parte colocando fatos ou ideias em sua memória. Ao contrário, o que quer ultrapassar os outros em extensão de memória deve, sem perder o seu tempo meditando e comparando os objetos entre si, empregar os dias inteiros em armazenar, sem cessar, novos objetos em sua memória. Ora, por um uso tão diferente de seu tempo, é evidente que o primeiro desses dois homens deve ser tão inferior em memória ao segundo quanto superior a ele em espírito; verdade que Descartes provavelmente percebeu quando diz que para aperfeiçoar o seu espírito foi mais necessário meditar do que aprender. De onde concluo que não somente o espírito muito grande não supõe a memória muito grande, mas também que a extrema extensão de um é sempre exclusiva da extrema extensão da outra. Para terminar este capítulo e provar que não é de modo algum à extensão desigual da memória que se deve atribuir a força desigual dos espíritos, só me resta mostrar ainda que os homens, comumente bem organizados, são todos dotados de uma extensão de memória suficiente para elevar-se às mais altas ideias. Com efeito, todo homem é, a esse respeito, bastante favorecido pela natureza, se o armazém de sua memória for capaz de conter um número de ideias ou de fatos de tal modo que, comparando-se sem cessar entre si, possa sempre neles perceber alguma relação nova, sempre aumentar o número de suas ideias e, por conseguinte, sempre dar maior extensão ao seu espírito. Ora, se trinta ou quarenta objetos, como o demonstra a geometria, podem comparar-se entre si de tantas maneiras que, no curso de uma longa vida, ninguém possa observar todas as suas relações nem daí deduzir todas as ideias possíveis, e se, entre os homens que denomino bem organizados, não existe nenhum cuja memória possa conter não somente todas as palavras de uma língua, mas ainda uma infinidade de datas, fatos, nomes, lugares e pessoas e, enfim, um número de objetos muito mais considerável do que o de seis ou sete mil, daí concluirei ousadamente que todo homem bem organizado é dotado de uma capacidade de memória• bem superior àquela de que pode fazer uso pelo aumento de suas ideias, que mais extensão de memória não daria mais extensão a seu espírito e que, assim, ao invés de considerar a desigualdade de memória dos homens como a causa da desigualdade de seu espírito, esta última desigualdade é unicamente o efeito ora da atenção maior ou menor com que eles observam as relações dos objetos entre si, ora da má escolha dos objetos com que cumulam a sua lembrança. Com efeito, há objetos estéreis que, tais como as datas, os nomes dos lugares, das pessoas ou outros semelhantes, têm um grande lugar na memória, sem poder produzir nem ideia nova nem ideia interessante para o público. A desigualdade dos espíritos depende portanto, em parte, da escolha dos objetos que se põem na memória. Se os jovens, cujos sucessos foram os mais brilhantes nos colégios, não os têm sempre iguais numa idade mais avançada, é que a comparação e a aplicação feliz das regras do Despautério, que produzem os bons estudantes, não provam de modo algum que, no futuro, esses mesmos jovens lancem os olhos sobre objetos de cuja comparação resultem ideias interessantes para o público; é por isso que raramente se é grande homem senão se tem a coragem de ignorar uma infinidade de coisas inúteis. CAPÍTULO IV Da desigual capacidade de atenção Fiz ver que não é de modo algum da maior ou menor perfeição dos órgãos dos sentidos e do órgão da memória que depende a grande desigualdade dos espíritos. Portanto, a causa só pode ser procurada na desigual capacidade de atenção dos homens. Como é a atenção, maior ou menor, que grava mais ou menos profundamente os objetos na memória, que faz perceber melhor ou pior as suas relações, que forma a maioria de nossos juízos verdadeiros ou falsos, e que é, enfim, a essa atenção que devemos quase todas as nossas ideias, dir-se-á que é evidente que é da desigual capacidade de atenção dos homens que a força desigual de seu espírito depende. Com efeito, se o grau menor de doença, a que se daria apenas o nome de indisposição, basta para tornar a maioria dos homens incapaz de uma atenção contínua, é, sem dúvida, acrescentar-se-á, a doenças, por assim dizer, insensíveis e à desigualdade de força que a natureza dá aos diversos homens que se deve principalmente atribuir a incapacidade total de atenção que se observa na maioria dentre eles, e a sua desigual disposição de espírito; de onde se concluirá que o espírito é puramente um dom da natureza. Por mais verossímil que seja este raciocínio, não é, no entanto, de modo algum, confirmado pela experiência. Se se excetuarem as pessoas afligidas por doenças habituais e que, forçadas pela dor a fixar toda a sua atenção no seu estado, não podem dirigi-la a objetos propícios para aperfeiçoar o seu espírito, nem, por conseguinte, serem compreendidas no número dos homens que denomino bem organizados, ver-se-á que todos os outros homens, mesmo os que, débeis e delicados, deveriam, em consequência do raciocínio anterior, ter menos espírito do que as pessoas bem constituídas, parecem frequentemente, a esse respeito, os mais favorecidos pela natureza. Nas pessoas sãs e robustas que se aplicam às artes e às ciências, parece que a força do temperamento, dando-lhes uma necessidade premente do prazer, desvia-as com maior frequência do estudo e da meditação do que a fraqueza de temperamento desvia as pessoas delicadas, por rápidas e frequentes indisposições. Tudo o que se pode garantir é que, entre os homens animados de modo quase igual pelo amor ao estudo, o sucesso com que se mede a força do espírito parece depender inteiramente das distrações maiores ou menores ocasionadas pela diferença dos gostos, fortunas, estados e da escolha mais ou menos feliz dos temas de que se trata, do método mais ou menos perfeito de que se serve para trabalhar, do, hábito maior ou menor que se tem para meditar, dos livros que se leem, das pessoas de gosto que se veem e, enfim, dos objetos que o acaso apresenta cotidianamente aos nossos olhos. Parece que, no concurso dos acidentes necessários para formar um homem de espírito, a diferente capacidade de atenção que a maior ou menor força do temperamento poderia produzir não merece consideração alguma. Assim, também a desigualdade de espírito ocasionada pela diferente constituição dos homens é sem importância; assim, não se pôde, por nenhuma observação exata, determinar, até agora, a espécie de temperamento mais apropriada para formar pessoas de gênio e não se pode ainda saber que homens, grandes ou pequenos, gordos ou magros, biliosos ou sanguíneos, têm mais aptidão para o espírito. Aliás, embora esta resposta sumária possa bastar para refutar um raciocínio que se funda apenas em verossimilhança, no entanto, como esta questão é muito importante, é preciso, para resolvê-la com precisão, examinar se o defeito de atenção é, nos, homens, o efeito de uma impotência física de aplicar-se ou de um desejo demasiado fraco de instruir-se. Todos os homens que denomino bem organizados são capazes de atenção, visto que todos aprendem a ler, aprendem a sua língua e podem conceber as primeiras proposições de Euclides. Ora, todo homem capaz de conceber essas proposições tem o poder físico de entender a todas. Com efeito, em geometria como em todas as outras ciências, a maior ou menor facilidade com que se apreende uma verdade depende do número maior ou menor de proposições antecedentes que, para concebê-la, é preciso ter presentes na memória. Ora, se todo homem bem organizado, como já provei no capítulo anterior, pode pôr em sua memória um número de ideias muito superior ao que exige a demonstração de uma proposição de geometria, qualquer que ela seja, e se, pelo recurso à ordem e pela representação frequente das mesmas ideias, pode-se, como a experiência o prova, torná-las bastante familiares e habitualmente presentes para lembrar-se delas sem dificuldade, segue-se que cada um tem o poder físico de seguir a demonstração de toda verdade geométrica e que, depois de ter-se elevado de proposição em proposição e de ideia análoga em ideia análoga até o conhecimento, por exemplo, de noventa e nove proposições, todo homem pode conceber a centésima com a mesma facilidade que a segunda, que está tão distante da primeira quanto a centésima da nonagésima nona. E preciso examinar agora se o grau de atenção necessário para conceber a demonstração de uma verdade geométrica não basta para a descoberta dessas verdades que colocam um homem entre as pessoas ilustres. É a esse propósito que peço ao leitor observar comigo a marcha que o espírito humano empreende seja para descobrir uma verdade, seja para simplesmente seguir a sua demonstração. Não tiro o meu exemplo da geometria, cujo conhecimento é estranho à maioria dos homens; tomo-o da moral e proponho-me este problema: "Por que as conquistas injustas não desonram tanto as nações quanto os roubos desonram os particulares?" Para resolver este problema moral, as primeiras ideias que se apresentarão a meu espírito são as ideias de justiça que me são mais familiares: considerá-la-ei portanto entre particulares e constatarei que roubos que perturbam e invertem a ordem da sociedade são, com justiça, vistos como infames. Mas, por mais vantajoso que seja aplicar às nações as ideias que tenho da justiça entre cidadãos, no entanto, à vista de tantas guerras injustas, empreendidas em todos os tempos por povos admirados na terra, suporei logo que as ideias da justiça considerada em relação a um particular não são absolutamente aplicáveis às nações; esta suposição será o primeiro passo que o meu espírito dará para chegar à descoberta que se propõe. Para esclarecer essa suposição, descartarei, de início, as ideias de justiça que me são mais familiares, trarei à minha memória e rejeitarei sucessivamente uma infinidade de ideias, até o momento em que perceberei que, para resolver essa questão, é preciso, de início, formar ideias nítidas e gerais da justiça e, para tanto, remontar ao estabelecimento das sociedades, a esses tempos recuados em que se pode perceber melhor a origem, em que se pode mais facilmente, aliás, descobrir a razão pela qual os princípios da justiça, considerada em relação aos cidadãos, não seriam aplicáveis às nações. Tal será, se ouso dizer, o segundo passo de meu espírito. Representar-me-ei, por conseguinte, os homens absolutamente privados do conhecimento das leis, das artes e quase tais como deviam ser nos primeiros dias do mundo. Então, vejo-os dispersas pelos bosques como os outros animais vorazes, vejo que, demasiado fracos, antes da invenção das armas, para resistirem aos animais ferozes, esses homens, instruídos pelo perigo, necessidade ou temor, sentiram que era do interesse de cada um deles em particular reunirem-se em sociedade e formarem uma liga contra os animais, seus inimigos comuns. Percebo, a seguir, que esses homens assim reunidos e logo tornados inimigos pelo desejo de possuírem as mesmas coisas, deveram armar-se para pilharem-se mutuamente; que o mais vigoroso as arrebatou inicialmente do mais espiritual, o qual inventou armas e lançou-lhe armadilhas para retomar dele os mesmos bens; que a força e a agilidade foram, por conseguinte, os primeiros títulos de propriedade; que a terra pertencia primeiramente ao mais forte e, depois, ao mais fino; que foi inicialmente apenas com esses títulos que se possuiu tudo; mas que, enfim, esclarecidos pela infelicidade comum, os homens sentiram que a sua reunião não lhes seria mais vantajosa e que as sociedades não poderiam subsistir se, às suas primeiras convenções, não juntassem novas, pelas quais cada um, em particular, renunciaria ao direito da força e da agilidade e todos, em geral, garantir-se-iam reciprocamente a conservação de sua vida e de seus bens e empenhar-se-iam em armar-se contra o infrator dessas convenções; que foi desse modo que de todos os interesses dos particulares se formou um interesse comum, que deveu dar às diferentes ações os nomes de justas, permitidas, e de injustas, conforme fossem úteis, indiferentes ou nocivas às sociedades. Uma vez atingida esta verdade, descubro facilmente a fonte das virtudes humanas; vejo que, sem a sensibilidade à dor e ao prazer físico, os homens, sem desejos, sem paixões, igualmente indiferentes a tudo, não teriam conhecido o interesse pessoal; que, sem interesse pessoal, não se teriam reunido em sociedade, não teriam estabelecido convenções entre si; que não haveria existido interesse geral e, consequentemente, nem ações justas ou injustas; e que desse modo, a sensibilidade física e o interesse pessoal foram os autores de toda justiça. Esta verdade, apoiada no axioma de jurisprudência: O interesse é a medida das ações dos homens e confirmada, aliás, por mil fatos, prova-me que, virtuoso ou cheio de vícios, segundo as nossas paixões ou os nossos gostos sejam conformes ou contrários ao interesse geral, tendemos tão necessariamente a nosso bem particular que o próprio legislador divino acreditou dever, para empenhar os homens na prática da virtude, prometer-lhes uma felicidade eterna, em troca dos prazeres temporais que, algumas vezes, são obrigados a sacrificar. Estabelecido este princípio, meu espírito tira daí as consequências; percebo que toda convenção em que o interesse particular se acha em oposição ao interesse geral teria sido violada se os legisladores não tivessem proposto sempre grandes recompensas à virtude e não tivessem oposto sem cessar a barreira da desonra e do suplício à inclinação natural que leva todos os homens à usurpação. Vejo portanto que o castigo e a recompensa são os dois únicos liames pelos quais puderam manter o interesse particular unido ao interesse geral; e daí concluo que as leis, feitas para a felicidade de todos, não seriam observadas por ninguém, se os magistrados não estivessem armados do poder necessário para garantir a sua execução. Sem esse poder, as leis, violadas pelo maior número, seriam, com justiça, infringidas por cada particular, visto que, tendo as leis apenas a utilidade pública como fundamento, tão logo essas leis se tornem inúteis, com uma infração geral, então são nulas e deixam de ser leis; cada um retoma os seus primeiros direitos; cada um só leva em conta o seu interesse particular, que o impede, com razão, de observar leis que se tornariam prejudiciais àquele que seria o seu único observador. E é por isso que, se, para a segurança das grandes estradas, fosse proibido por aí passar com armas e se, por falta de guarda, os grandes caminhos estivessem infestados de ladrões, essa lei não teria o seu objetivo cumprido; afirmo, por conseguinte, que um homem poderia não somente por aí viajar armado e violar essa convenção ou essa lei, sem injustiça, mas também que não poderia mesmo observá-la sem loucura. Após ter assim o meu espírito, de grau em grau, chegado a formarem-se ideias nítidas e gerais da justiça; após ter reconhecido que ela consiste na observação exata das convenções que o interesse comum, isto é, a reunião de todos os interesses particulares, lhes fez fazer, resta apenas a meu espírito aplicar essas ideias da justiça às nações. Esclarecido pelos princípios acima estabelecidos, percebo inicialmente que todas as nações não fizeram entre si convenções pelas quais se garantissem reciprocamente a possessão dos países que ocupam e dos bens que possuem. Se quiser descobrir a causa disso, a minha memória, lembrando-me do mapa-múndi, mostra-me que os povos não estabeleceram entre si essas espécies de convenções, porque não tiveram para fazê-las um interesse tão premente quanto os particulares, visto que as nações podem subsistir sem convenções entre si e que as sociedades não podem manter-se sem leis. De onde concluo que as ideias da justiça, considerada de nação a nação ou de particular a particular, devem ser extremamente diferentes. Se a Igreja e os reis permitem o tráfico dos negros; se o cristão que amaldiçoa em nome de Deus o que traz a desavença e a discórdia nas famílias, bendiz o negociante que corre à Costa do Ouro ou ao Senegal, para trocar por negros as mercadorias de que os africanos são ávidos; se, por esse comércio, os europeus mantêm, sem remorso, guerras eternas entre esses, povos, é que, com exceção dos tratados particulares e dos usos geralmente reconhecidos, a que se dá o nome de direito das gentes, a Igreja e os reis, pensam que os povos estão, uns face aos outros, precisamente no caso dos primeiros homens antes que tivessem formado sociedade, que conhecessem outros direitos além da força e da agilidade, que houvesse entre eles alguma convenção, alguma lei, alguma propriedade e que pudesse haver, por conseguinte, algum roubo e alguma injustiça. Mesmo com relação a tratados particulares que as nações contraem entre si, não tendo sido esses tratados garantidos por um número bastante grande de nações, vejo que quase nunca puderam manter-se pela força e que deveram, consequentemente, como leis sem força, permanecer, com frequência, sem execução. Quando, aplicando às nações as ideias gerais da justiça, o meu espírito tiver reduzido a questão a esse ponto, para descobrir, em seguida, por que o povo que infringe os tratados feitos com outro povo é menos culpável do que o particular que viola as convenções feitas com a sociedade e por que, de acordo com a opinião pública, as conquistas injustas desonram menos uma nação do que os roubos aviltam um particular, basta trazer à minha memória a lista de todos os tratados violados em todos os tempos e por todos os povos; então vejo que há sempre uma grande probabilidade de que, sem considerar os seus tratados, toda nação venha a aproveitar-se dos tempos de subversões e calamidades para atacar os seus vizinhos em seu benefício, conquistá-los ou, pelo menos, neutralizá-las de modo que não a prejudique. Ora, cada nação, instruída pela história, pode considerar essa probabilidade como bastante grande para persuadir-se de que a infração de um tratado que é vantajoso violar é uma cláusula tácita de todos os- tratados, que, na verdade, são apenas tréguas e que, captando, por conseguinte; a ocasião favorável para humilhar os seus vizinhos, ela nada mais faz do que' preveni-Ias, uma vez que todos, os povos, forçados a expor-se à censura de injustiça ou ao jugo da servidão, reduzem-se à alternativa de serem escravos ou soberanos. Aliás, se, em toda nação, o estado de conservação é um estado em que é quase impossível manter-se e se se deve considerar o termo da ampliação de um império, assim corno o prova a história dos romanos, como um presságio quase certo de sua decadência, é evidente que cada nação pode mesmo acreditar-se tanto mais autorizada a essas conquistas, chamadas injustiças, que, por exemplo, não encontrando na garantia de duas nações contra uma terceira mais segurança da que um particular encontra na garantia de sua nação contra outro particular, o tratado deve ser tão menos, sagrado quanto a execução for mais incerta. E quando o meu espírito penetra até esta última ideia que descubro a solução do problema de moral que me havia proposto. Então, percebo que a infração dos tratados, e essa espécie de roubo entre as nações deve, como prova o passado e garante, o futuro, subsistir até o momento em que todos os povos, ou, pelo menos, o maior número dentre eles, tenham estabelecido, convenções gerais; até o momento em que as nações, conforme o projeto de Henrique IV ou do abade de Saint-Pierre, tenham-se reciprocamente garantido as suas possessões, tenham-se empenhado em armar-se contra o povo que quisesse subordinar um outro e que, enfim, o acaso tivesse colocado uma desproporção tal entre o poder de cada Estado em particular e o de todos os outros reunidos (que essas convenções pudessem manter-se pela força, que os povos pudessem ter entre si a mesma segurança que um sábio legislador põe entre os cidadãos, quando, pela recompensa ligada às boas ações e pelos castigos infligidos às más, chama os cidadãos à virtude, dando à sua probidade o interesse pessoa como apoio. É certo portanto que, de acordo com a opinião pública, as conquistas injustas, menos contrárias às leis da equidade e, por conseguinte, menos criminais do que os roubos entre particulares, não devem desonrar tanto uma nação quanto os roubos desonram um cidadão. Resolvido esse problema moral, se se observar a marcha que meu espírito empreendeu para resolvê-lo, ver-se-á que me lembrei inicialmente das ideias que me eram mais familiares, comparei-as entre si, observei suas conveniências e inconveniências em relação ao objeto de meu exame; rejeitei em seguida essas ideias, lembrei-me de outras e repeti esse mesmo procedimento até que, enfim, a minha memória me apresentou os objetos de cuja comparação devia resultar a verdade que procurava. Ora, como a marcha do espírito é sempre a mesma, o que afirmo a respeito da maneira de descobrir uma verdade deve aplicar-se de modo geral a todas as verdades. Observarei apenas a esse propósito que, para fazer uma descoberta, deve-se necessariamente ter na memória os objetos cujas relações contêm essa verdade. Se temos presente à mente o que disse antes do exemplo que acabei de dar, ou seja, se queremos saber se todos os homens bem organizados são realmente dotados de uma atenção suficiente para elevar-se às mais altas ideias, é preciso comparar as operações do espírito quando faz a descoberta ou quando segue simplesmente a demonstração de uma verdade e examinar qual dessas operações supõe maior atenção. Para seguir a demonstração de uma proposição de geometria, é inútil trazer muitos objetos a seu espírito: é ao mestre que cabe apresentar aos olhos de seu aluno os objetos apropriados a solucionar o problema que lhe propõe. Mas, supondo que um homem descubra uma verdade ou siga a sua demonstração, deve, num e noutro caso, observar igualmente as relações que os objetos, que a sua memória ou o seu mestre lhe apresentam, têm entre si. Ora, como não se pode, sem um acaso singular, representar-se unicamente as ideias necessárias para a descoberta de uma verdade e considerar precisamente apenas os aspectos sob os quais se deve compará-las entre si, é evidente que, para fazer uma descoberta, é preciso trazer' ao espírito uma multidão de ideias estranhas ao objeto da pesquisa e fazer uma infinidade de comparações inúteis, comparações cuja multiplicidade pode enfadar. Deve-se, pois, consumir infinitamente mais tempo para descobrir uma verdade do que para seguir a sua demonstração; mas a descoberta dessa verdade não exige, em instante algum, maior esforço de atenção do que a sequência de uma demonstração supõe. Se, para assegurar-se disso, se observa o aluno de geometria, ver-se-á que ele deve empregar maior atenção ao considerar as figuras geométricas que o mestre coloca sob os seus olhos, quando, sendo-lhe esses objetos menos familiares do que os que lhe apresentaria a sua memória, o seu espírito estiver ocupado, ao mesmo tempo, pela dupla preocupação: considerar essas figuras e descobrir as relações necessárias que têm entre si; de onde se segue que a atenção necessária para seguir a demonstração de uma proposição de geometria basta para descobrir uma verdade. É certo que, neste último caso, a atenção deve ser mais contínua; mas essa continuidade de atenção nada mais é do que a repetição dos mesmos atos de atenção. Aliás, se todos os homens, como disse mais acima, são capazes de aprender a ler e aprender a sua língua, são todos capazes não apenas da atenção viva, mas ainda da atenção contínua que a descoberta de uma verdade exige. Que continuidade de atenção não é preciso para conhecer as letras, reuni-las, formar sílabas, compor palavras, ou para unir em sua memória objetos de uma natureza diferente e que têm entre si apenas relações arbitrárias, como as palavras carvalho, grandeza, amor, que não têm nenhuma relação real com a ideia, a imagem ou o sentimento que exprimem! É certo, portanto, que, se, pela continuidade de atenção, isto é, pela repetição frequente dos mesmos atos de atenção, todos os homens chegam a gravar sucessivamente em sua memória todas as palavras de uma língua, são todos dotados da força e da continuidade de atenção necessária para elevar-se a essas grandes ideias cuja descoberta os coloca entre os homens ilustres. Mas, dir-se-á, se todos os homens são dotados da atenção necessária para serem superiores num campo, quando a falta de hábito não os tornou incapazes, ainda é certo que essa atenção custa mais a uns do que a outros. Ora, a que outra causa, se não à perfeição maior ou menor da organização, atribuir essa atenção mais ou menos fácil? Antes de responder diretamente a essa objeção, observarei que a atenção não é estranha à natureza do homem; em geral, quando acreditamos ser difícil manter a atenção, é por tomarmos a fadiga do tédio e da impaciência como fadiga da aplicação. Com efeito, se não há homens sem desejos, não há homens sem atenção. Quando se pega o hábito, a atenção torna-se até mesmo uma necessidade. O que torna a atenção fatigante é o motivo que a ela nos determina. E a necessidade, a indigência ou o temor? Então a atenção torna-se um castigo. E a esperança do prazer? Então a atenção torna-se, ela própria, um prazer. Que se apresentem ao mesmo homem dois escritos diferentes para serem lidos: um é um processo verbal, o outro é a carta de uma amante; quem duvida que a atenção não seja tão penosa no primeiro caso quanto agradável no segundo? Em consequência dessa observação, pode-se explicar facilmente por que a atenção custa mais a uns do que a outros. Não é necessário, para tanto, supor neles nenhuma diferença de organização; basta observar que, neste caso, a dificuldade da atenção é sempre maior ou menor proporcionalmente ao maior ou menor grau de prazer que cada um considera como a recompensa deste trabalho. Ora, se os mesmos objetos nunca têm o mesmo preço a olhos diferentes, é evidente que, propondo a diversos homens o mesmo objeto de recompensa, não se lhes propõe realmente a mesma recompensa e que, se forçados a fazer os mesmos esforços de atenção, esses esforços devem ser, por conseguinte, mais penosos a uns do que a outros. Pode-se portanto resolver o problema de uma atenção mais fácil ou menos, sem recorrer ao mistério de uma perfeição desigual nos órgãos que a produzem. Mas, mesmo admitindo, a esse respeito, certa diferença na organização dos homens, afirmo que, supondo neles um desejo vivo de instruir-se, desejo de que todos os homens são suscetíveis, não existe nenhum que não se ache então dotado da capacidade de atenção necessária para distinguir-se numa arte. Com efeito, se o desejo da felicidade é comum a todos os homens, se há neles o sentimento mais vivo, é evidente que, para obter essa felicidade, cada um fará sempre tudo o que está em seu poder. Ora, todo homem, como acabo de provar, é capaz do grau de atenção suficiente para elevar-se às mais altas ideias. Fará uso, portanto, dessa capacidade de atenção quando, pela legislação de seu país, seu gosto particular ou sua educação, a felicidade tornar-se o preço dessa atenção. Será, creio eu, difícil de resistir a essa conclusão, sobretudo se, como posso provar, não é nem mesmo necessário, para tornar-se superior num campo, dar aí toda a atenção de que se é capaz. Para não deixar nenhuma dúvida sobre esta verdade, consultemos a experiência; interroguemos os letrados: todos eles experimentaram que é aos mais penosos esforços de atenção que devem os mais belos versos de seus poemas, as situações mais singulares de seus romances e os princípios mais luminosos de suas obras filosóficas. Eles atestarão que os devem ao feliz encontro de certos objetos - que o acaso ou expõe à sua vista, ou apresenta à sua memória -, da comparação dos quais resultaram esses belos versos, essas situações notáveis e essas grandes ideias filosóficas; ideias que o espírito sempre concebe tanto mais pronta e facilmente quanto mais verdadeiras e mais gerais forem. Ora, se em toda obra estas belas ideias, de qualquer gênero que sejam, são por assim dizer o traço do gênio, se a arte de empregá-las não é mais do que obra do tempo, da paciência e do exercício, é, pois, certo que o gênio é menos o preço da atenção do que uma dádiva do acaso, que presenteia todos os homens com essas ideias felizes, das quais só aproveita aquele que, sensível à glória, está atento para aproveitá-las. Se o acaso é geralmente reconhecido, em quase todas as artes, pelo autor da maior parte das descobertas; e se, nas ciências especulativas, seu poder é menos sensivelmente percebido e talvez menos real; nem por isso nelas preside menos à descoberta das mais belas ideias. Não são elas também, como acabo de dizer, o preço dos mais penosos esforços de atenção; e pode-se assegurar que a atenção que exige a ordem das ideias, a maneira de exprimi-Ias, e a arte de passar de um assunto para outro é, sem dúvida, muito mais fatigante; e que enfim a mais penosa de todas as atenções é aquela que se supõe na comparação dos objetos que não nos são nada familiares? E por isso que o filósofo, capaz de seis ou sete horas das mais altas meditações, não poderá, sem urna fadiga extrema da atenção, passar essas seis a sete horas seja examinando um processo, seja copiando fiel e corretamente um manuscrito; e é por isso que os inícios de qualquer ciência são sempre espinhosos. E só ao hábito que temos de considerar certos objetos que também devemos não só a facilidade com a qual os comparamos mas também a comparação correta e rápida que fazemos entre eles. Eis por que o pintor percebe no primeiro relance os defeitos de desenho ou colorido num quadro, invisíveis aos olhos comuns; por que o pastor, acostumado a observar seus carneiros, descobre entre eles semelhanças e diferenças que o fazem distingui-los; e por que só se é propriamente mestre nas matérias sobre as quais desde há muito se meditou. E à aplicação, mais ou menos constante, com a qual examinamos um assunto, que devemos as ideias superficiais ou profundas que temos a seu respeito. Parece que as obras meditadas por muito tempo e longas de compor são mais fortes no conteúdo, e que nas obras de espírito, como na mecânica, ganha-se em força o que se perde em tempo. Mas, para não me afastar do meu tema, repetirei então que, se a atenção mais penosa é aquela que supõe a comparação dos objetos que nos são pouco familiares, e se essa atenção é precisamente do tipo da exigida pela aprendizagem das línguas, todos os homens sendo capazes de aprender sua língua, todos consequentemente estão dotados de uma força e uma continuidade de atenção suficientes para elevar-se ao nível de homens ilustres. Só me resta, como última prova desta verdade, lembrar aqui que o erro - como disse no meu primeiro discurso -, sempre acidental, não é nada inerente à natureza particular de certos espíritos; que todos os nossos juízos falsos são o efeito ou das nossas paixões ou da nossa ignorância; donde se segue que todos os homens são dotados pela natureza de um espírito igualmente justo; e que, ao lhes serem apresentados os mesmos objetos, todos apresentariam a seu respeito os mesmos juízos. Ora, como esta expressão de espírito justo, tomada na sua significação extensa, abrange todas as espécies de espírito, o resultado do que disse acima é que todos os homens que chamo bem organizados, tendo nascido com o espírito justo, têm em si o poder físico de se elevar às mais altas ideias. “É preciso sempre tornar a lembrar, como o disse no meu segundo Discurso, que as ideias não são, em si, nem altas, nem grandes, nem pequenas; que amiúde a descoberta de uma ideia que se chama pequena não supõe menos espírito que a descoberta de urna grande; que é preciso algumas vezes o mesmo para apreender sutilmente o ridículo de um homem que para perceber o vício de um governo; e que: se damos, de preferência, o nome de grandes às descobertas do último tipo é que só design: nos com os epítetos de altas, grandes e pequenas as ideias geralmente mais ou menos interessantes. (Nota do Autor)” Mas, replicar-se-á, por que então se veem tão poucos homens ilustres? E que o estudo é uma pequena fadiga; para vencer o desgosto do estudo, é preciso, como já insinuei, estar animado por uma paixão. Na primeira adolescência, o temor dos castigos basta para forçar os jovens ao estudo; mas, numa idade mais avançada, em que não se experimentam os mesmos tratamentos, é preciso então, para expor-se à fadiga da aplicação, tomar-se de uma paixão tal como, por exemplo, o amor à glória. A força de nossa atenção é então proporcional à força de nossa paixão. Consideremos as crianças: se fazem, em sua língua natural, progressos menos desiguais do que numa língua estrangeira, é que aí são animadas por necessidades quase semelhantes, isto é, pela gulodice, pelo amor à brincadeira e pelo desejo de fazer conhecer os objetos de seu amor e de sua aversão. Ora, necessidades quase semelhantes devem produzir efeitos quase iguais. Ao contrário, como os progressos numa língua estrangeira dependem do método de que os mestres se servem e do temor que inspiram a seus alunos e do interesse que os pais têm pelos estudos de seus filhos, constata-se que, dependendo o progresso de causas tão variadas, que agem e se combinam tão diversamente, devem por essa razão ser extremamente desiguais. De onde concluo que a grande desigualdade de espírito que se observa entre os homens talvez dependa do desejo desigual que têm de se instruir. Mas, dir-se-á, esse desejo é o efeito de uma paixão. Ora, se devemos apenas à natureza a maior ou menor força de nossas paixões, segue-se que o espírito deve, por conseguinte, ser considerado como um dom da natureza. E a este ponto, verdadeiramente delicado e decisivo, que se reduz toda essa questão. Para resolvê-la, é preciso conhecer as paixões e os seus efeitos e entrar num exame profundo e pormenorizado a esse propósito. CAPÍTULO V Das forças que agem sobre nossa alma Somente a experiência pode mostrar-nos quais são essas forças. Ela faz-nos ver que a preguiça é natural no homem, que a atenção o cansa e o aflige, que ele gravita, sem cessar, em direção do repouso, como os corpos em direção de um centro, que, atraído constantemente para esse centro, ele aí se teria fixamente atado, se não fosse, a cada instante, empurrado por duas espécies de forças, que nele contrabalançam as da preguiça e da inércia e que lhe são comunicadas, uma pelas paixões fortes outra pelo ódio ao tédio. O tédio é, no universo, um motor mais geral e mais potente do que se imagina. De todas as dores, sem dúvida, é a menor; mas, enfim, é uma delas. O desejo da felicidade levar-nos-á sempre a considerar a ausência do prazer como um mal. Quereríamos que o intervalo necessário que separa os prazeres vivos, sempre ligados à satisfação das necessidades físicas, fosse preenchido por algumas dessas sensações que são sempre agradáveis quando não são dolorosas. Desejaríamos, portanto, ser a cada instante advertidos de nossa existência, por impressões sempre novas, porque cada uma dessas advertências é para nós um prazer. E por isso que o selvagem, desde que satisfez as suas necessidades, corre para a margem de um rio, onde a sucessão rápida das ondas, que se chocam umas às outras, provoca nele, a cada instante, impressões novas; é por isso que preferimos a visão dos objetos em movimento à dos objetos em repouso; é por isso que se diz proverbialmente: "O fogo faz companhia", isto é, arranca-nos do tédio. E essa necessidade de movimentar-se e a espécie de inquietude que a ausência de impressão produz na alma que contêm, em parte, o princípio da inconstância e da perfectibilidade do espírito humano e que, forçando-o a agitar-se em todos os sentidos, deve, após a revolução de uma infinidade de séculos, inventar, aperfeiçoar as artes e as ciências e, enfim, trazer a decadência do gosto. Com efeito, se as impressões nos são tanto mais agradáveis quanto mais vivas e se a duração de uma mesma impressão enfraquece a sua vivacidade, devemos, pois, ser ávidos dessas impressões novas, que produzem em nossa alma o prazer da surpresa. Os artistas, preocupados em nos agradar e em excitar em nós essas espécies de impressões, devem portanto, depois de ter, em parte, desposado as combinações do belo, substituí-lo pelo singular, que preferimos ao belo, porque nos provoca uma impressão mais nova e, por conseguinte, mais viva. Eis aí, nas nações civilizadas, a causa da decadência do gosto. Para conhecer ainda melhor tudo o que o ódio ao tédio provoca em nós e qual é, algumas vezes, a atividade desse princípio, lance-se sobre os homens um olhar observador e sentir-se-á que é o temor do tédio que faz a maioria deles agir e pensar; que é para fugir ao tédio que, correndo o risco de receber impressões demasiado fortes e, por conseguinte, desagradáveis, os homens procuram com o maior empenho tudo o que possa movimentá-los fortemente; que é esse desejo que faz o povo correr às execuções e as pessoas mundanas ao teatro; que é esse mesmo motivo que, numa devoção triste, e até nos exercícios austeros da penitência, faz as velhas mulheres frequentemente procurarem um remédio para o tédio: pois Deus, que, por todas as espécies de meios, procura reconduzir a si o pecador, em relação a elas serve-se ordinariamente do tédio. Mas é sobretudo nos séculos em que as grandes paixões são encarceradas, seja pelos costumes, seja pela forma do governo, que o tédio desempenha o seu maior papel: torna-se então o móvel universal. Nas cortes, ao redor do trono, é o temor do tédio, unido ao mais débil grau de ambição, que faz de cortesãos ociosos pequenos ambiciosos, que lhes faz promover pequenas intrigas, pequenas cabalas, pequenos crimes, para obter pequenos postos proporcionais à pequenez de suas paixões; que faz Sejanos e nunca Otávios; mas que, aliás, basta para elevar-se a esses postos onde se desfruta, na verdade, do privilégio de ser insolente, mas que se procura em vão um abrigo contra o tédio. Tais são, se ouso dizê-lo, as forças ativas e as forças de inércia que agem sobre nossa alma. E para obedecer a essas duas forças contrárias que, em geral, desejamos ser movimentados, sem dar-nos ao trabalho de nos movimentar; é por essa razão que quereríamos tudo saber, sem dar-nos ao trabalho de aprender; é por isso que, mais dóceis à opinião do que à razão que, em todos os casos, nos imporia a fadiga do exame, os homens, entrando no mundo, aceitam indiferentemente todas as ideias verdadeiras ou falsas que se lhes apresente “A credulidade nos homens é, em parte, o resultado de sua preguiça. Tem-se o hábito de acreditar uma coisa absurda. Supõe-se a sua falsidade, mas, para se assegurar plenamente disto, seria preciso se expor à fadiga do exame; queremos nos poupar a isto, e preferimos acreditar a examinar. Ora, nessa situação da alma, provas convincentes da falsidade de uma opinião nos parecem sempre insuficientes. Não existem então raciocínios ou histórias ridículas a que não se dê fé. (Nota do Autor)” e por isso, enfim, que, levado pelo fluxo e refluxo dos pré-juízos, ora para a sabedoria, ora para a loucura, razoável ou louco por acaso, o escravo da opinião é igualmente insensato aos olhos do sábio, seja porque mantém uma verdade, seja porque antecipa um erro. E um cego que nomeia, por acaso, a Cor que se lhe apresenta. Vê-se portanto que são as paixões e o ódio ao tédio que comunicam à alma o seu movimento, que a arrancam da tendência que ela tem naturalmente para o repouso e que a fazem superar essa força de inércia a que ela está sempre pronta a ceder. Por mais certa que pareça esta proposição, tanto em moral como em física, é sempre sobre fatos que é preciso estabelecer opiniões; vou, nos capítulos seguintes, provar, por exemplos, que são unicamente as paixões fortes que levam à execução dessas ações corajosas e à concepção dessas grandes ideias que constituem o deslumbramento e a admiração de todos os séculos. CAPÍTULO VI Do poder das paixões As paixões são na moral o que o movimento é na física: cria, destrói, conserva, anima tudo; sem ele, só há morte. São elas também que vivificam o mundo moral. E a avareza que guia os navios através dos desertos do oceano; o orgulho que preenche os vales, aplaina as montanhas, abre estradas através dos rochedos, eleva as pirâmides de Mênfis, cava o lago de Moeris e funda o colosso de Rodes. O amor apontou, diz-se, o lápis do primeiro desenhista. Num país em que a revelação ainda não havia penetrado, foi ainda o amor que, para afogar a dor de uma viúva desolada pela morte de seu jovem esposo, mostrou-lhe o sistema da imortalidade da alma. Foi o entusiasmo pelo reconhecimento que colocou entre os deuses os benfeitores da humanidade e que também inventou as falsas religiões e as superstições, visto que nem todas tiveram a sua fonte em paixões tão nobres quanto o amor e o reconhecimento. E portanto às paixões fortes que se devem a invenção e as maravilhas das artes; deve-se considerá-las, pois, como o germe produtor do espírito e o motor poderoso que leva os homens às grandes ações. Mas, antes de ir adiante, devo fixar a ideia que vinculo a esse termo paixão forte. Se a maioria dos homens fala sem se entender, é na obscuridade das palavras que é preciso deter-se; é a esta causa que se pode atribuir a prolongação do milagre da torre de Babel. Entendo por esse termo paixão forte uma paixão cujo objeto é tão necessário à nossa felicidade que a vida nos seria insuportável sem a possessão desse objeto. Esta é a ideia que Omar fazia das paixões, quando dizia: "Quem quer que sejas, se, amante da liberdade, quiseres ser rico sem bens, poderoso sem súditos, súdito sem senhor, e ousar desprezar a morte, os reis tremerão diante de ti; somente tu não temerás ninguém". Com efeito, são unicamente as paixões que, levadas a esse grau de força, podem executar as maiores ações e afrontar os perigos, a dor, a morte e o próprio céu. (...) As paixões devem ser consideradas corno o germe produtor do espírito: são elas que, mantendo urna perpétua fermentação das nossas ideias, fecundam em nós essas mesmas ideias que, estéreis em almas frias, seriam semelhantes à semente lançada na pedra. São as paixões que, fixando fortemente nossa atenção no objeto de nossos desejos, fazem-nos considerá-lo sob aspectos desconhecidos dos outros homens, que, por conseguinte, concebem e executam os heróis dessas empresas ousadas que, até o momento em que o êxito venha prova!' a sua sabedoria, parecem loucos, e devem realmente parecer como tais à multidão. Eis aí por que, diz o Cardeal de Richelieu, a alma fraca encontra impossibilidade no projeto mais simples, enquanto o maior parece fácil à alma forte: diante desta, as montanhas abaixam-se enquanto aos olhos daquela as colinas metamorfoseiam-se em montanhas. Com efeito, são as paixões fortes que, mais esclarecidas do que o bom senso, podem ensinar-nos a distinguir o extraordinário do impossível, que quase sempre as pessoas sensatas confundem, porque, não sendo de modo algum animadas por paixões fortes, essas pessoas sensatas sempre são apenas homens medíocres: proposição que vou provar, para fazer sentir toda a superioridade do homem passional sobre os outros homens e mostrar que realmente só as grandes paixões podem criar os grandes homens. CAPÍTULO IX Da origem das paixões A conclusão geral do que eu disse sobre as paixões é de que só a sua força pode contrabalançar em nós a força da preguiça e da inércia, nos arrancar do repouso e da estupidez em direção aos quais gravitamos incessantemente, e nos prover enfim daquela continuidade de atenção à qual se liga a superioridade do talento. Mas, dir-se-á, não teria a natureza dado aos diferentes homens disposições desiguais ao espírito, acendendo nuns paixões mais fortes do que noutros? A esta questão responderei que se, para sobressair num gênero não é necessário - como o provei mais acima - dedicar-lhe o máximo de aplicação que se pode dar; não é necessário também, para ilustrar-se nesse mesmo gênero, ser animado pela mais viva paixão, mas apenas pelo grau de paixão suficiente para nos deixar atentos. De resto, é bom observar que, em questão de paixões, os homens talvez não difiram tanto entre si como se imagina. Para saber se a natureza nesse respeito distribuiu tão desigualmente seus dons, é necessário examinar se todos os homens são suscetíveis a paixões, e, para este fim, voltar à sua origem. Para atingir-se esse conhecimento, é preciso distinguir duas espécies de paixões. Há aquelas que nos são dadas imediatamente pela natureza; há também as que devemos apenas ao estabelecimento das sociedades. Para saber qual dessas duas diferentes espécies de paixões produz a outra, transportemo-nos em espírito aos primeiros dias do mundo. Ver-se-á então a natureza, pela sede, fome, frio e calor, advertir o homem de suas necessidades e ligar uma infinidade de prazeres e de penas à satisfação ou à privação dessas necessidades; ver-se-á aí o homem capaz de receber impressões de prazer e de dor e nascer, por assim dizer, com o amor por um e o ódio pela outra. Tal é o homem ao sair das mãos da natureza. Ora, nesse estado, a inveja, o orgulho, a avareza, a ambição ainda não existiam para ele; unicamente sensível ao prazer e à dor física, ignorava todas essas penas e esses prazeres factícios que obtemos com as paixões que acabo de nomear. Paixões semelhantes não nos são dadas, portanto, imediatamente pela natureza; mas a sua existência, que supõe a das sociedades, supõe ainda em nós o germe escondido dessas mesmas paixões. E por isso que, se a natureza nos dá, ao nascer, apenas necessidades, é nas nossas necessidades e nos primeiros desejos que é preciso buscar a origem dessas paixões factícias, que não podem nunca ser mais do que um desenvolvimento da faculdade de sentir. Parece que, no universo moral como no universo físico, Deus colocou apenas um único princípio, segundo o qual tudo o que foi, o que é e o que será, é apenas um desenvolvimento necessário. Disse ele à matéria: Eu te dou força. Logo, os elementos, submetidos às leis do movimento, mas errantes e confundidos nos desertos do espaço, formaram mil reuniões monstruosas, produziram mil caos diversos, até que, enfim, se colocaram no equilíbrio e na ordem física em que se supõe agora o universo organizado. Parece que paralelamente ele disse ao homem: Eu te dou sensibilidade; é por ela que, cego instrumento de minhas vontades, incapaz de conhecer a profundeza de meus pensamentos, deves, sem sabê-lo, cumprir todos os meus desígnios. Coloco-te sob a guarda do prazer e da dor; um e outra vigiarão teus pensamentos, tuas ações; engendrarão tuas paixões; excitarão tuas aversões, tuas amizades, tuas ternuras, teus furores; acenderão teus desejos, teus medos, tuas esperanças; desvendar-te-ão verdades; mergulhar-te-ão em erros; e, depois de ter-te feito criar mil sistemas absurdos e diferentes de moral e de legislação, mostrar-te-ão um dia os princípios simples a cujo desenvolvimento se vincula a ordem e a felicidade do mundo moral. Com efeito, suponhamos que o céu anime de repente vários homens; a sua primeira ocupação será satisfazer as suas necessidades. (...) Produzindo as terras, pela diferença de sua natureza e de sua cultura, diferentes frutos, os homens farão trocas entre si, sentirão a vantagem que haveria numa convenção de troca geral que representasse todas as mercadorias, e escolherão, para tanto, alguns mariscos ou alguns metais. Quando as sociedades chegarem a esse ponto de perfeição, então toda igualdade entre os homens estará rompida: distinguir-se-ão superiores e inferiores; então esses termos bem e mal, criados para exprimir as sensações de prazer ou de dor físicas que recebemos dos objetos exteriores, estender-se-ão, de modo geral, a tudo o que pode oferecer-nos uma ou outra dessas sensações, aumentá-las ou diminuí-las; tais são as riquezas e a indigência; então as riquezas e as honras, pelas vantagens que a elas se vinculam, tornar-se-ão o objeto geral do desejo dos homens. Daí nascerão, de acordo com a forma diferente dos governos, paixões criminosas ou virtuosas, tais como a inveja, a avareza, o orgulho, a ambição, o amor à pátria, a paixão da glória, a magnanimidade e mesmo o amor que, sendo-nos dado pela natureza apenas como uma necessidade, tomar-se-á, confundindo-se com a vaidade, uma paixão factícia, que será, como as outras, somente um desenvolvimento da sensibilidade física. Por mais certa que seja essa conclusão, existem poucos homens que concebem nitidamente as ideias de que ela resulta. Aliás, reconhecendo que as nossas paixões têm originariamente a sua fonte na sensibilidade física, poder-se-ia crer ainda que, no estado em que se encontram as nações civilizadas, essas paixões existem independentemente da causa que as produziu. Vou, portanto, seguindo a metamorfose das penas e dos prazeres físicos em penas e prazeres factícios, mostrar que, em paixões, tais como a avareza, a ambição, o orgulho, a amizade, cujo objeto não parece fazer parte dos prazeres dos sentidos, é, no entanto, sempre a dor e o prazer físico que buscamos ou de Que fugimos. CAPÍTULO X Da avareza O ouro e a prata podem ser considerados matérias agradáveis à vista. Mas, se, pela posse deles, se desejasse apenas o prazer produzido por seu brilho e sua beleza, o avaro se contentaria com a livre contemplação das riquezas amontoadas no tesouro público. Ora, como essa visão não satisfaria sua paixão, é preciso que o avaro, seja de que tipo for, ou deseje as riquezas como troca de todos os prazeres, ou como a isenção de todas as dificuldades ligadas à indigência. Este princípio posto, afirmo que sendo o homem, por natureza, sensível apenas aos prazeres dos sentidos, esses prazeres constituem por conseguinte o único objeto de seus desejos. A paixão pelo luxo e pela magnificência nas equipagens, festas e mobiliários é pois uma paixão factícia, produzida necessariamente pelas necessidades físicas ou do amor ou da mesa. Com efeito, que prazeres reais esse luxo e essa magnificência proporcionariam ao avaro voluptuoso, se não os considerasse como um meio ou de agradar às mulheres, se as aprecia, e de obter-lhes favores, ou de impô-las aos homens, e de os forçar, pela esperança confusa de uma recompensa, a afastar dele todas as dificuldades e a reunir à sua volta todos os prazeres? Nesses avaros voluptuosos, que não merecem propriamente o nome de avaros, a avareza é portanto o efeito imediato do medo da dor e do amor pelo prazer físico. Mas, dir-se-á, de que modo esse mesmo amor pelo prazer ou esse mesmo medo da dor podem animar os verdadeiros avaros, esses avaros desafortunados que nunca trocam seu dinheiro por prazeres? Se eles passam sua vida na privação do necessário e se exageram para si mesmos e para os outros o prazer atribuído à posse do ouro é para se inquietar com uma infelicidade que ninguém quer nem deve lastimar. Por mais surpreendente que seja a contradição que se encontra entre sua conduta e os motivos que os fazem agir, procurarei descobrir a causa que, fazendo-os desejar incessantemente o prazer, deve sempre privá-las dele. Observarei primeiro que essa forte avareza se origina num temor excessivo e ridículo, tanto da possibilidade da indigência como dos males a ela ligados. Os avaros são bastante semelhantes aos hipocondríacos, que vivem em perpétuos sobressaltos, que veem em toda parte perigos, e temem que tudo que deles se aproxima os despedace. E entre as pessoas nascidas na miséria que se encontram mais comumente esses grandes avaros; experimentaram em si mesmos os males que a pobreza acarreta: por isso sua loucura, a esse respeito, é mais perdoável do que o seria em homens nascidos na abundância, entre os quais quase só se encontram avaros ou voluptuosos. Para mostrar como, nos primeiros, o medo de faltar o necessário os força sempre a privar-se dele, suponhamos que, oprimido pelo fardo da miséria, alguém conceba o projeto de livrar-se dele. Concebido o projeto, a esperança vem logo vivificar sua alma prostrada pela miséria; ela lhe devolve a atitude, fá-lo procurar protetores, prende-o na antecâmara de seus patrões, força-o a se intrigar junto aos ministros, a arrojar-se aos pés dos poderosos e a se dedicar enfim ao mais triste tipo de vida até que tenha obtido algum lugar que o ponha ao abrigo da miséria. Tendo chegado a esse estado, constituirá o prazer o único objeto de sua procura? Num homem que, por minha suposição, for de caráter tímido e desconfiado, a lembrança viva dos males que experimentou deve primeiramente inspirar-lhe o desejo de subtrair-se a ela, e determiná-lo, por essa razão, a se recusar até as necessidades das quais, pela pobreza, adquiriu o hábito de privar-se. Uma vez acima da necessidade, se esse homem atinge então a idade de trinta e cinco ou quarenta anos, se o amor pelo prazer, cuja vivacidade se embota a cada instante, se faz sentir menos vivamente em seu coração, que fará então? Mais exigente em prazeres, se aprecia as mulheres, ser-lhe-ão necessárias as mais belas e cujos favores sejam os mais caros. Quererá então adquirir novas riquezas para satisfazer seus novos gostos: ou, durante o tempo que empregar nessa aquisição, se a desconfiança e a timidez, que crescem com a idade, e que se podem encarar como efeito do sentimento de nossa fraqueza, lhe demonstram que, em matéria de riqueza, bastante nunca é bastante; e se sua avidez se encontra em equilíbrio com seu amor pelos prazeres, será então submetido a duas atrações diferentes: para obedecer a uma e outra, esse homem, sem renunciar ao prazer, estabelecerá a si mesmo que deve, pelo menos, adiar-lhe o desfrute para quando, possuidor de maiores riquezas, puder, sem medo do futuro, ocupar-se inteiramente de seus prazeres presentes. No novo intervalo de tempo que levar para acumular esses novos tesouros, se a idade o torna absolutamente insensível ao prazer, mudará ele seu gênero de vida? Renunciará a hábitos que a incapacidade de contrair novos lhe tornou caros? Não, provavelmente; e satisfeito, contemplando seus tesouros, da possibilidade dos prazeres trocada pelas riquezas, esse homem, para evitar as fadigas físicas do tédio, se entregará inteiramente a suas ocupações ordinárias. Tornar-se-á mesmo tanto mais avaro na velhice quanto mais o hábito de juntar, não sendo mais contrabalançado pelo desejo de usufruir, for, ao contrário, sustentado pelo temor maquinal que a velhice sempre tem da privação. A conclusão deste capítulo é que o medo excessivo e o ridículo dos males atribuídos à indigência são a causa da aparente contradição que se nota entre a conduta de certos avaros e os motivos que os movem. Eis como, desejando sempre o prazer, a avareza pode sempre privá-los dele. CAPÍTULO XI Da ambição O crédito atribuído aos altos postos pode, assim como as riquezas, poupar-nos penas, proporcionar-nos prazeres e, por conseguinte, ser considerado como uma troca. Pode-se, portanto, aplicar à ambição o que disse a respeito da avareza. Entre os povos selvagens, cujos chefes ou reis têm um único privilégio: o de serem alimentados e vestidos com a caça que, para eles, fazem os guerreiros da nação, o desejo de prover às próprias necessidades cria ambiciosos. Na Roma nascente, quando se atribuía como única recompensa às grandes ações a extensão de terreno que um romano podia arar e roçar num dia, esse motivo bastava para criar heróis. O que afirmo de Roma, afirmo-o de todos os povos pobres; o que origina, entre eles, ambiciosos é o desejo de subtrair-se à fadiga e ao trabalho. Ao contrário, nas nações opulentas, onde todos os que pretendem os altos postos estão providos das riquezas necessárias para satisfazerem não só as necessidades mas ainda as comodidades da vida, é quase sempre o amor ao prazer que dá origem à ambição. Mas, dir-se-á, a púrpura, as tiaras e, de modo geral, todas as marcas de honra não provocam em nós nenhuma impressão física de prazer: a ambição não se funda, pois, nesse amor ao prazer, mas no desejo da estima e dos respeitos; ela não é, portanto, o efeito da sensibilidade física. Se o desejo das grandezas, responderei, só fosse aceso pelo desejo da estima e da glória, só surgiriam ambiciosos em repúblicas tais como as de Roma e de Esparta, onde as dignidades manifestavam comumente grandes virtudes e grandes talentos de que eram a recompensa. Nestes povos, a posse das dignidades podia lisonjear o orgulho, uma vez que assegurava a um homem a estima de seus concidadãos; uma vez que esse homem, tendo sempre grandes empreendimentos para executar, podia olhar os altos postos como meios de tornar-se ilustre e provar a sua superioridade sobre os outros. Ora, o ambicioso persegue, do mesmo modo, as grandezas nos séculos em que elas são as mais aviltadas pela escolha dos homens, que neles são educados e, por conseguinte, no tempo mesmo em que sua posse é menos lisonjeira. A ambição não se funda portanto no desejo da estima. Em vão dir-se-ia que o ambicioso pode enganar-se a esse respeito: os sinais de consideração com que ele é prodigalizado advertem-no a cada instante de que é ao cargo e não a ele que se honra. Sente que a consideração de que goza não é de modo algum pessoal, esvanecendo-se com a morte ou desgraça de seu senhor; que a própria velhice do príncipe basta para destruí-la; que então os homens, elevados aos altos cargos, estão ao redor do soberano como essas nuvens de ouro que assistem ao pôr do sol e cujo esplendor se obscurece e desaparece na medida em que o astro mergulha no horizonte. Ele ouviu dizer mil vezes e ele mesmo repetiu mil vezes que o mérito não implica as honras; que a promoção às dignidades não é, aos olhos do público, a prova de um mérito real; que é, ao contrário, quase sempre considerada como o preço da intriga, da baixeza e da importunação, Se disso ainda duvida, que abra a história, e sobretudo a de Bizâncio: aí verá que um homem pode estar, ao mesmo tempo, revestido de todas as honras do império e coberto do desprezo de todas as nações. Mas suponho que, confusamente ávido de estima, o ambicioso imagina procurar essa estima apenas nos altos postos: é fácil mostrar que esse não é o verdadeiro motivo que o impulsiona; e que se ilude, a esse respeito, uma vez que não se deseja, como provarei no capítulo referente ao orgulho, a estima pela própria estima, mas pelas vantagens que proporciona. O desejo das grandezas não é, portanto, de modo algum o resultado do desejo da estima. A que atribuir, pois, o ardor com que se buscam as dignidades? A exemplo desses jovens ricos,• que só gostam de mostrar-se em público numa comitiva lesta e brilhante, por que o ambicioso só quer aparecer decorado com alguns sinais de honra? E que ele considera essas honras como um intermediário que anuncia aos homens a sua independência, o poder que tem de, à sua vontade, tornar muitos dentre eles felizes ou infelizes,e o interesse que todos têm em merecer sempre um favor proporcional aos prazeres que lhes poderão proporcionar. Mas, dir-se-á, não seria antes do respeito e da adoração dos homens que o ambicioso tem ciúmes? De fato, é o respeito dos homens que ele deseja; mas por que o deseja? Nas homenagens que se fazem aos grandes, não é o gesto do respeito que lhes agrada; se esse gesto fosse agradável, por si mesmo, não haveria homem rico que, sem sair de casa e sem correr atrás das dignidades, não pudesse alcançar tal felicidade. Para se satisfazer, alugaria uma dúzia de carregadores, os cobriria de vestes magníficas, sarapintando-os com todos os cordões da Europa, dispondo-os pela manhã em sua antecâmara para virem todos os dias pagar à sua vaidade um tributo de incenso e de respeitos. A indiferença das pessoas ricas para com essa espécie de prazer prova que não se ama absolutamente o respeito como respeito, mas como uma confissão de inferioridade da parte dos outros homens, corno um penhor de sua disposição favorável para conosco, de sua solicitude em nos evitar dificuldades e em nos proporcionar prazeres. O desejo das grandezas baseia-se pois apenas no medo da dor ou no amor do prazer. Se esse desejo não tivesse aí sua fonte, haveria algo mais fácil que desiludir o ambicioso? Ó tu - dir-lhe-íamos - que morres de inveja contemplando o fausto e a pompa dos altos postos, ousa elevar-te a um orgulho mais nobre; e o brilho deles cessará de se impor a ti. Imagina, por um momento, que não és menos superior aos outros homens do que os insetos lhes são inferiores; então só verás, nos cortesãos, abelhas que zumbem à volta de sua rainha; o próprio cetro não te parecerá mais do que uma gloríola. Por que os homens nunca prestarão ouvidos a discursos como este? Terão sempre pouca consideração para com aqueles que quase nada podem e preferirão sempre os altos postos aos grandes talentos? É que as grandezas são um bem, e podem, assim como as riquezas, ser consideradas como a troca de uma infinidade de prazeres. Por isso são buscadas com tanto mais ardor quanto maior for o poder que puderem nos dar sobre os homens e, por conseguinte, nos trazer mais vantagens. (...) A conclusão deste capítulo é a de que o desejo das grandezas é sempre o resultado do temor da dor ou de amor dos prazeres dos sentidos, aos quais se reduzem necessariamente todos os outros. Aqueles que dão o poder e a consideração não são propriamente prazeres: recebem esse nome apenas porque a esperança e os meios de buscar prazeres são já prazeres: prazeres que devem sua existência apenas à dos prazeres físicos. “Para provar que não são os prazeres físicos que nos, levam à ambição, talvez se diga que é comumente o vago desejo da felicidade que nos induz a segui-los. Mas, respondo, o que é o vago desejo da felicidade? É um desejo: que não se refere a nenhum objeto em particular: ora, eu pergunto se o homem que, sem amar nenhuma mulher em particular, ama em geral todas as mulheres não é animado pelo desejo dos prazeres físicos. Todas as vezes que se pretender dar-se ao trabalho de analisar o sentimento vago do amor à felicidade, se encontrará sempre o prazer físico no fundo do crisol. Se existe ambicioso ou avaro que não seja absolutamente ávido de dinheiro, se o dinheiro não fosse ou a troca dos prazeres ou o meio de escapar à dor física, ele não desejaria o dinheiro numa cidade como a Lacedemônia, em que o dinheiro não teria nenhum valor. (Nota do Autor)” Eu sei que, nos projetos, empreendimentos, empreitadas, nas virtudes e na pompa deslumbrante da ambição, dificilmente se percebe a obra da sensibilidade física. Como nessa orgulhosa ambição que, com o braço fumegante de carnificina, se assenta em meio dos campos de batalha sobre um montão de cadáveres, e bate, em sinal de vitória, suas asas nauseantes de sangue; como, digo eu, na ambição assim figurada, reconhecer a filha da voluptuosidade? Como imaginar que, através dos perigos, as fadigas e os trabalhos da guerra, é a volúpia que se persegue? No entanto é só ela, respondo, que, sob o nome de libertinagem, recruta os exércitos de quase todas as nações. Amam-se os prazeres e, por conseguinte, os meios de alcançá-las: os homens desejam pois tanto as riquezas como as dignidades. Desejariam, ademais, fazer fortuna num dia, e a preguiça inspira-lhes esse desejo: ora, a guerra, que promete a pilhagem das cidades ao soldado e honras ao oficial, lisonjeia, a esse respeito, sua preguiça assim como sua impaciência. CAPÍTULO XIII Do orgulho O orgulho não passa em nós do sentimento verdadeiro ou falso de nossa excelência: sentimento que, dependendo da comparação vantajosa que se faz de si com os outros, supõe, como consequência, a existência dos homens, e mesmo o estabelecimento das sociedades. O sentimento do orgulho não é pois inato, como o do prazer e o da dor. O orgulho é portanto apenas uma paixão factícia que supõe o conhecimento do belo e do excelente. Ora, o excelente ou o belo são apenas aquilo que a maior parte dos homens sempre considerou, estimou e honrou como tal. A ideia da estima precedeu portanto a ideia do estimável. E verdade que essas duas ideias deveriam logo confundir-se. Por isso o homem que é animado pelo nobre e soberbo desejo de se agradar a si mesmo, e que, contente com sua própria estima, se julga indiferente à opinião geral, é nesse ponto enganado por seu próprio orgulho e toma em si mesmo o desejo de ser estimado como o desejo de ser estimável. O orgulho não pode efetivamente ser jamais senão um desejo secreto e disfarçado da estima pública. (...) A conclusão deste capítulo é a de que só se deseja ser estimável para ser estimado, e que só se deseja a estima dos homens para gozar o prazer atribuído a essa estima: o amor à estima não é pois nada mais que o amor disfarçado ao prazer. Ora, só existem duas espécies de prazer: uns são os prazeres dos sentidos; os outros são os meios de adquirir esses mesmos prazeres, meios que se ordenaram na classe dos prazeres porque a esperança de um prazer é um começo de prazer, prazer que, entretanto, só existe quando essa esperança pode se realizar. A sensibilidade física é portanto o germe produtivo do orgulho e de todas as outras paixões, entre as quais incluo a amizade que, mais independente, aparentemente, do prazer dos sentidos, merece ser examinada para confirmar, por esse último exemplo, tudo o que eu disse acerca da origem das paixões. CAPÍTULO XIV Da amizade Amar é ter necessidade. Se não existe necessidade, não existe amizade: seria um efeito sem causa. Os homens não possuem todos as mesmas necessidades; a amizade é pois, entre eles, fundada sobre motivos diferentes. Uns têm necessidade de prazer ou de dinheiro, outros de crédito, estes de conversar, aqueles de confiar suas dificuldades. Por conseguinte, há amigos de prazer, de dinheiro, “As pessoas têm se matado até hoje de repetir, umas após outras, que não se devem considerar como amigos aqueles cuja amizade interessada só nos. estima por causal de nosso dinheiro. Essa espécie de amizade não é, sem dúvida, a mais lisonjeira, mas nem por isso é menos real. Os homens apreciam, por exemplo, num inspetor-geral, o poder: que ele tem de obrigar. Na maior parte dentre eles, o amor: pela pessoa se identifica com o amor pelo dinheiro. Por que se recusaria o nome de amizade a: essa espécie de sentimento? Não somos amados por nós mesmos mas sempre por alguma coisa; e esta vale tanto quanto outra. Um homem está enamorado de uma mulher: pode-se dizer que: ele não a ama porque é unicamente a beleza de seus olhos ou de sua tez que ele ama nela? Mas, dir-se-á, assim que o homem rico cai na miséria deixa-se de apreciá-lo. Sim, sem dúvida, mas é só a bexiga desfigurar uma mulher que geralmente: se romperá com ela e essa ruptura não prova que não a amávamos quando ela era bela. Se um amigo em quem tínhamos a maior confiança, e cuja alma, espírito e caráter estimamos: ao máximo, se torna de repente cego, surdo e mudo, lamentaremos nele a perda: de nosso antigo amigo: respeitaremos ainda seu espectro mas, de fato, não mais o amamos porque não foi esse homem que havíamos amado. Um inspetor-geral cai em desgraça: não mais gostamos dele. Trata-se precisamente do homem que se tornou subitamente cego, surdo e mudo. Todavia, não deixa de ser verdade que o homem ávido por dinheiro tenha tido muita ternura por aquele que podia proporcionar-lhe esse: dinheiro. Todo aquele que tem essa necessidade de dinheiro é amigo nato do posto de inspetor-geral e daquele que o ocupa. Seu nome pode ser inscrito no inventário dos móveis e utensílios pertencentes a seu cargo. É nossa vaidade que nos faz: recusar o nome de amizade à amizade interessada. (Nota do Autor)” de intriga, de espírito e de infelicidade. Nada mais útil que considerar a amizade sob este prisma, e ter ideias claras a respeito dela. Em amizade, como em amor, frequentemente criam-se romances: procura-se em toda parte o herói; julgamos a todo momento que o encontramos; penduramo-nos no primeiro que surge; amamo-lo enquanto o conhecemos pouco, apesar da curiosidade que temos de conhecê-lo. A curiosidade é satisfeita; ficamos aborrecidos: não encontramos absolutamente o herói de nosso romance. E assim que nos tornamos suscetíveis de paixonite, mas incapazes de amizade. No próprio interesse da amizade, é preciso portanto ter uma ideia clara a seu respeito. Confesso que, considerando-a como uma necessidade recíproca, não nos podemos ocultar que, num longo espaço de tempo, é muito difícil que a mesma necessidade e por conseguinte a mesma amizade “Uma vez que as circunstâncias em que dois amigos devem se encontrar estejam dadas e sem caracteres conhecidos. se eles devem se desentender, não há dúvida que um homem de muito, espírito, predizendo o instante em que esses dois homens deixarão de ser úteis um ao outro, não pode calcular o momento de sua ruptura do mesmo modo que o astrônomo calcula o momento do eclipse. (Nota do Autor)” subsista entre dois homens. Por isso, nada de mais raro que as amizades antigas. E muito difícil ter ideias claras a respeito da amizade. Tudo que nos cerca procura nos enganar sobre o assunto. Existem homens que, para se acharem mais estimáveis aos próprios olhos, exageram para si mesmos os seus sentimentos relativamente a seus amigos, fazem da amizade descrições romanescas e persuadem-se de sua realidade, até que as circunstâncias, desiludindo a eles e a seus amigos, lhes ensinam que eles não amavam tanto quanto pensavam. Esse tipo de gente pretende comumente ter a necessidade de amar e de ser amado vivamente. Ora, como nunca ficamos tão vivamente impressionados pelas virtudes de um homem como nas primeiras vezes que o vemos; como o hábito nos torna insensíveis à beleza, ao espírito e mesmo às qualidades das almas; e que só ficamos enfim fortemente comovidos pelo prazer da surpresa, um homem de espírito dizia, com muita graça, a respeito, que aqueles que querem ser amados tão vivamente “A amizade não é como o pretendem alguns, um sentimento perpétuo de ternura, porque os homens não fazem nada continuadamente. Entre os amigos mais ternos há momentos de frieza; a amizade é portanto uma sucessão contínua de sentimentos de ternura e de frieza na qual os de frieza são muito raros. (Nota do Autor)” devem, em amizade como em amor, ter muitas paixonites e nenhuma paixão; porque os momentos do começo, acrescentava, em ambos os gêneros, constituem sempre os momentos mais vivos e mais ternos. Do que eu disse resulta que a força da amizade é sempre proporcional à necessidade que os homens têm uns dos outros, “Se gostássemos de um amigo por ele mesmo, não consideraríamos nunca nada que não fosse seu bem-estar; não lhe censuraríamos o tempo que fica sem nos ver ou nos escrever: aparentemente, diríamos, tem ocupações mais agradáveis e nos felicitaríamos por sua felicidade, (Nota do Autor)” e que essa necessidade varia segundo a diferença dos séculos, dos costumes, das formas de governo, das condições e dos caracteres. Mas, dir-se-á, se a amizade supõe sempre uma necessidade, não é pelo menos uma necessidade física. O que é um amigo? Um parente de nossa escolha. Deseja-se um amigo para viver, por assim dizer, nele, para expandir nossa alma na sua, e gozar de uma conversação que a confiança torna sempre deliciosa. Essa paixão não se baseia pois nem no medo da dor nem no amor pelos prazeres físicos. Mas, respondo, de que depende o encanto da conversação de um amigo? Do prazer de falar de si mesmo. A sorte nos colocou numa situação conveniente. Isto nos leva a conversar com nosso amigo a respeito dos meios de aumentar nossos bens, nossas honras, nosso crédito e nossa reputação. Caímos na miséria: procuramos com o mesmo amigo os meios de nos subtrairmos à indigência; e sua conversa nos poupa pelo menos na infelicidade o aborrecimento das conversações indiferentes. E portanto sempre de nossas dificuldades ou prazeres que se fala com o amigo. Ora, se não há verdadeiros prazeres nem verdadeiras dificuldades, como o provei anteriormente, a não ser os prazeres e as dificuldades físicas; se os meios de buscá-los são apenas prazeres de esperança, que supõem a existência dos primeiros, e que não passam, por assim dizer, de uma consequência; segue-se que a amizade, assim como a avareza, o orgulho, a ambição e as outras paixões, é o efeito imediato da sensibilidade física. CAPÍTULO XV Que o temor das dificuldades ou o desejo dos prazeres físicos podem acender em nós todas as espécies de paixões (...) A conclusão geral daquilo que disse sobre a origem das paixões é que a dor e o prazer dos sentidos fazem os homens agir e pensar e são os únicos contrapesos que movem o mundo moral. As paixões são portanto em nós o efeito imediato da sensibilidade física: ora, todos os homens são sensíveis e suscetíveis às paixões; todos, por conseguinte, levam em si mesmos o germe produtivo do espírito. Mas, dir-se-á, se eles são sensíveis, não o são talvez no mesmo grau. Veem-se por exemplo nações inteiras indiferentes à paixão da glória e da virtude: ora, se os homens não são suscetíveis a paixões tão fortes, nem todos são capazes dessa mesma continuidade de atenção que se deve considerar Como a causa da grande desigualdade de suas luzes: donde resulta que a natureza não deu a todos os homens iguais disposições ao espírito. Para responder a essa objeção não é necessário examinar se todos os homens são igualmente sensíveis: essa questão, talvez mais difícil de resolver do que se imagina, é aliás estranha a meu tema. O que me proponho é examinar se todos os homens não são pelo menos suscetíveis a paixões suficientemente fortes para dotá-las da atenção contínua à qual está ligada a superioridade do espírito. E com vistas a isto que refutarei primeiramente o argumento extraído da sensibilidade de certas nações às paixões da glória e da virtude; argumento pelo qual se acredita provar que nem todos os homens são suscetíveis a paixões. Afirmo, pois, que a insensibilidade dessas nações não deve de modo algum ser atribuída à natureza, mas a causas acidentais, tais como a forma diferente dos governos. CAPÍTULO XVI A que causa se deve atribuir a indiferença de certos povos para com a virtude Para saber se é da natureza ou da forma particular dos governos que depende a indiferença de certos povos para com a virtude, é preciso primeiro conhecer o homem; penetrar até o abismo do coração humano; lembrar-se que, tendo nascido sensível à dor e ao prazer, é à sensibilidade física que o homem deve suas paixões, e é a suas paixões que deve todos os seus vícios e todas as virtudes. Estabelecidos esses princípios, para resolver a questão acima proposta, é preciso examinar a seguir se as mesmas paixões, modificadas de acordo com as diferentes formas de governo, não produziriam em nós os vícios e as virtudes contrárias. Seja um homem bastante apaixonado pela glória para sacrificar-lhe todas as suas outras paixões: se, pela forma do governo, a glória é sempre o prêmio das ações virtuosas, é evidente que este homem será sempre obrigado à virtude, e que, para dele se fazer um Leônidas, um Horácio Cocles, basta colocá-lo num país e em circunstâncias semelhantes. Mas, dir-se-á, há poucos homens que se elevam a esse ponto de paixão. Por esse motivo, responderei, só o homem fortemente apaixonado penetra até o santuário da virtude. Não é o que acontece com esses homens incapazes de paixões vivas, aos quais denominamos homens de bem. Se, longe desse santuário, esses últimos são entretanto sempre retidos pelos laços da preguiça no caminho da virtude, é que eles não têm a mesma força de afastá-los de si. A virtude do primeiro é a única virtude esclarecida e ativa: mas ela não cresce ou pelo menos não alcança certa altura a não ser nas repúblicas guerreiras, porque é unicamente nesta forma de governo que a estima pública nos eleva mais acima dos outros homens, que ela nos atrai mais o respeito da parte deles; que ela é a mais lisonjeira, a mais desejável, e a mais própria enfim a produzir grandes resultados. A virtude dos segundos, fundada na preguiça e produzida, se ouso dizê-lo, pela ausência das fortes paixões, é apenas uma virtude passiva que, pouco esclarecida e, por conseguinte, muito perigosa nos altos postos, é, aliás, bastante segura. E comum a todos os que são denominados honnêtes gens (pessoas de bem), mais estimáveis pelos males que não praticam do que pelos bens que fazem. A respeito dos homens apaixonados que citei em primeiro lugar, é evidente que o mesmo desejo de glória, que, nos primeiros séculos da república romana, teria feito Cúrcios e Décios, deve transformá-los em Mários e Otávios nesses momentos de perturbações e de revoluções em que a glória era, como nos últimos tempos da república, unicamente atribuída à tirania e ao poder. E o que digo sobre a paixão pela glória digo também sobre o amor pela consideração, que não passa de um diminutivo do amor pela glória, e o objeto dos desejos daqueles que não podem atingir a fama. Esse desejo de consideração deve igualmente produzir, em séculos diferentes, vícios e virtudes contrárias. Quando a confiança supera o mérito, esse desejo faz intrigantes e aduladores; quando o dinheiro é mais reverenciado do que a virtude, produz avaros que procuram riquezas com a mesma diligência que os romanos as evitavam, quando era vergonhoso possuí-las: donde eu concluo que, em costumes e governos diferentes, o mesmo desejo produz Cincinatos, Papírios, Crassos e Sejanos. A esse respeito quero observar de passagem a diferença que se deve fazer entre os ambiciosos de glória e os ambiciosos de postos ou de riquezas. Os primeiros não podem ser senão grandes criminosos; porque os grandes crimes, pela superioridade dos talentos necessários para executá-los e o grande apreço atribuído ao sucesso, são os únicos a poder iludir bastante a imaginação dos homens a ponto de arrebatar-lhes a imaginação; admiração neles fundada num desejo interior e secreto de se parecer com esses ilustres culpados. Todo homem apaixonado pela glória é, pois, incapaz de todos os pequenos crimes. Se essa paixão faz Cromwell, nunca faz Cartouche. Donde concluo que, exceto as posições raras e extraordinárias em que se encontraram os Silas e o Césares, numa outra posição qualquer, esses mesmos homens, pela própria natureza de suas paixões, teriam permanecido fiéis à virtude; bem diferentes nesse ponto desses intrigantes e desses avaros cuja baixeza e obscuridade de seus crimes os colocam diariamente na circunstância de cometer novos crimes. Depois de ter mostrado de que maneira a mesma paixão, que nos impele ao amor e à prática da virtude, pode, em épocas e governos diferentes, produzir em nós vícios contrários, tentemos agora aprofundar-nos mais no coração humano, e descobrir por que, seja qual for o governo, o homem, sempre incerto em sua conduta, é, por suas paixões, determinado ora para as boas, ora para as más ações; e por que seu coração é uma arena sempre aberta à luta entre o vício e a virtude. Para resolver esse problema moral, é preciso procurar a causa da perturbação e do repouso sucessivo da consciência, desses movimentos confusos e diversos da alma, e enfim desses combates interiores que o poeta trágico só apresenta com tanto êxito no teatro porque os espectadores todos eles já experimentaram algo semelhante: é preciso indagar quais são esses dois eu que Pascal e alguns filósofos hindus reconheceram neles. Para descobrir a causa universal de todos esses efeitos, basta observar que os homens não são movidos por uma só espécie de sentimento; que não existe nenhum animado exatamente por essas paixões solitárias que preenchem toda a capacidade de uma alma; que arrastado alternadamente por paixões diferentes, das quais umas são conformes e outras contrárias ao interesse geral, cada homem é submetido a duas atrações diferentes, uma impelindo-o para o vício e outra para a virtude. Afirmo que cada homem, porque não existe absolutamente probidade mais reconhecida universalmente que a de Catão e de Bruto, porque nenhum homem pode se gabar de ser mais virtuoso que esses dois romanos: todavia, o primeiro, surpreendido por um movimento de avareza, cometeu alguns vexames em seu governo e o segundo, tocado pelas súplicas da filha, obteve do Senado, em favor de Bíbulo, seu genro, um favor que tinha mandado recusar a seu amigo Cícero, como contrário ao interesse da república. Eis a causa dessa mistura de vício e de virtude que se percebe em todos os corações e por que não existe na terra nenhum vício ou virtude puros. Para saber agora o que é que faz com que se dê a um homem o nome de virtuoso ou de vicioso é preciso observar que, dentre as paixões que animam cada homem, existe uma que preside principalmente à sua conduta e que, em sua alma, suplanta todas as outras. Ora, conforme essa última comande mais ou menos imperiosamente e que seja, por sua natureza ou pelas circunstâncias, útil ou nociva ao Estado, o homem, mais amiúde determinado para o bem ou para o mal, recebe o nome de virtuoso ou de vicioso. Acrescentarei apenas que a força de seus vícios ou de suas virtudes será sempre proporcional à vivacidade de suas paixões, cuja força se mede pelo grau de prazer que ele encontra em satisfazê-las. Eis por que, na primeira juventude, idade em que se é mais sensível ao prazer e capaz de paixões mais fortes, somos em geral capazes das ações mais importantes. A mais alta virtude, como o vício mais vergonhoso, é em nós o efeito do prazer mais ou menos vivo que encontramos em nos entregarmos a ele. Por esse motivo não se tem medida precisa da virtude a não ser depois de ter descoberto, por um escrupuloso exame, o número e os graus de dificuldades que uma paixão como o amor pela justiça ou pela glória pode nos fazer suportar. Aquele para o qual a estima é tudo e a vida não é nada preferirá, como Sócrates, a morte a pedir covardemente a vida. Aquele que se torna a alma de um Estado republicano, que se torna apaixonado pelo bem público por causa do orgulho e da glória, prefere, como Catão, a morte à humilhação de ver a si mesmo e sua pátria escravizados a uma autoridade arbitrária. Mas essas ações são o resultado do grande amor pela glória. E a esse limite que atingem as mais fortes paixões, e a esse mesmo limite é que a natureza colocou os marcos da virtude humana. Seria inútil querermos dissimulá-lo a nós mesmos; tornamo-nos necessariamente o inimigo dos homens quando só podemos ser felizes com o infortúnio deles. É a feliz conformidade que se encontra entre nosso interesse e o interesse público, conformidade comumente produzida pelo desejo da estima, que nos dá esses sentimentos ternos para com os homens cuja recompensa reside na afeição deles. Aquele que, para ser virtuoso, tivesse sempre de vencer seus pendores, seria necessariamente um homem desonesto. As virtudes meritórias não são nunca virtudes certas. Na prática, é impossível travar todos os dias, por assim dizer, batalhas contra suas paixões, sem perder inúmeras delas. Sempre forçado a ceder ao interesse do mais poderoso, qualquer que seja o amor que se tenha pela estima, não se lhe sacrificam jamais prazeres maiores do que os que ela confere. Se, em certas ocasiões, tantas personagens expuseram-se algumas vezes ao desprezo do público, é que não queriam sacrificar sua salvação à sua glória. Se algumas mulheres resistem aos assédios de um príncipe é que não se julgam compensadas com a perda de sua reputação por sua conquista: por isso são poucas aquelas que são insensíveis ao amor de um rei, quase nenhuma que não ceda ao amor de um rei jovem e encantador, e nenhuma que possa resistir a esses seres benfazejos, amáveis e poderosos, como os que nos pintam as Sílfides e os Gênios que, por mil encantamentos, poderiam ao mesmo tempo embriagar todos os sentidos de uma mortal. Essa verdade, baseada no sentimento do amor-próprio, é não só reconhecida como também confessada pelos legisladores. Convencidos de que o amor pela vida era, em geral, a mais poderosa paixão dos homens, os legisladores nunca encararam, em consequência disto, como criminoso quer o homicídio cometido em defesa de seu próprio corpo quer a recusa de um cidadão de se dedicar à morte pela salvação de sua pátria, como o fez Décio. O homem virtuoso não é, pois, aquele que sacrifica seus prazeres, seus hábitos e as mais fortes paixões ao interesse público, pois um homem assim é impossível, “Se existem homens que parecem ter sacrificado seu interesse ao interesse público, é que a ideia de virtude é, numa boa forma de governo, de tal modo unida à ideia de felicidade e a ideia de vício à ideia de desprezo, que levado por um sentimento vivo, cuja origem nem sempre nos está presente. deve-se fazer por esse motivo ações muitas vezes contrárias a seu interesse. (Nota do Autor)” mas aquele cuja paixão mais forte está de tal modo conforme ao interesse geral que ele é quase sempre impelido para a virtude. Esta é a razão por que, quanto mais nos aproximamos da perfeição e quanto mais merecemos o nome de virtuosos, tanto mais é preciso, para nos decidirmos por uma ação desonesta ou criminosa, um motivo maior de prazer, um interesse mais poderoso, mais capaz de inflamar nossos desejos e que supõe, por conseguinte, uma paixão maior dentro de nós pela honestidade. César não era, provavelmente, um romano dos mais virtuosos: todavia, se só pôde renunciar ao título de bom cidadão tomando o de senhor do mundo, talvez não tenhamos o direito de bani-lo da classe dos homens honestos. Com efeito, entre os homens virtuosos, e realmente dignos desse título, quantos há que, colocados nas mesmas circunstâncias, recusariam o cetro do mundo, principalmente se se sentissem como César dotados desses talentos superiores que garantem o sucesso das grandes empresas? Menos talento talvez os tornasse melhores cidadãos; uma virtude medíocre, sustentada em maiores inquietudes sobre o sucesso, bastaria para desviá-los de um projeto tão ousado. É algumas vezes uma falta de talento que nos preserva de um vício; é frequentemente a essa mesma falta que se deve o complemento de suas virtudes. Somos, ao contrário, tanto menos honestos quanto mais é preciso, para nos entregarmos ao crime, motivos de prazeres menos poderosos. É por exemplo o caso de alguns imperadores do Marrocos que, só para ostentar sua destreza, arrancam com um golpe de sabre, enquanto cavalgam, a cabeça de seu escudeiro. Eis o que diferencia, do modo mais claro, mais preciso e mais conforme à experiência, o homem virtuoso do homem vicioso: é nesse plano que o público seria um termômetro exato em que seriam marcados os diversos graus de vício ou de virtude de cada, cidadão, se perscrutando no fundo dos corações pudesse neles descobrir o preço que cada qual coloca para a sua virtude. A impossibilidade de alcançar esse conhecimento o forçou a julgar os homens apenas por suas ações; julgamento extremamente falho nesse caso particular, mas na totalidade bastante conforme ao interesse geral e quase tão útil quanto se fosse mais justo. Depois de ter examinado o jogo das paixões, explicado a causa da mistura de vícios e de virtudes que se percebem em todos os homens; de ter colocado o limite da virtude humana, e fixado enfim a ideia que se deve atribuir à palavra virtuoso, estamos agora em situação de julgar se é à natureza ou à legislação particular de alguns Estados que se deve atribuir a indiferença de certos povos para com a virtude. Se o prazer é o único objeto da procura dos homens, para inspirar-lhes o amor pela virtude basta imitar a natureza: o prazer anuncia as vontades dela, a dor, suas proibições; e o homem obedece-lhe docilmente. Armado do mesmo poder, por que o legislador não produziria os mesmos efeitos? Se os homens fossem sem paixões, não haveria nenhum meio de torná-los bons: mas o amor do prazer, contra o qual se levantaram pessoas de uma probidade mais respeitável do que esclarecida, é um freio com o qual se pode sempre dirigir para o bem geral as paixões dos particulares. O ódio da maioria dos homens à virtude não é portanto resultado da corrupção de sua natureza mas da imperfeição “Se os ladrões são tão fiéis às convenções feitas entre si como as pessoas de bem, é que o perigo comum, que os une, a isso os obriga, É por esse mesmo motivo que quitamos tão 'escrupulosamente as dívidas do jogo e que se levam com tanta desfaçatez os credores à falência. Ora, se o interesse provoca nos patifes o mesmo que a virtude provoca nas pessoas de bem, quem duvida que, manejando habilmente o princípio do interesse, um legislador esclarecido possa obrigar todos os homens à virtude? (Nota do Autor)” da legislação. É a legislação, ouso dizê-lo, que nos incita ao vício, juntando-lhe com muita frequência o prazer: a grande arte do legislador é a arte de desuni-los e de não deixar nenhuma relação entre a vantagem que o celerado retira do crime e o castigo a que ele se expõe. Se, entre as pessoas ricas, muitas vezes menos virtuosas que os indigentes, veem-se poucos ladrões e assassinos é que o lucro do roubo não é nunca, para um homem rico, proporcional ao risco de suplício. O mesmo não ocorre com o indigente: sendo esta desproporção infinitamente menor a seus olhos, ele permanece, por assim dizer, em equilíbrio entre o vício e a virtude. Não é que eu pretenda insinuar aqui que se deve conduzir os homens com uma barra de ferro. Numa legislação excelente, e num povo virtuoso, o desprezo que priva um homem de todo consolador, que o deixa isolado no meio de sua pátria, é um motivo suficiente para formar almas virtuosas. Todo outro tipo de castigo torna o homem tímido, covarde e estúpido. A espécie de virtude engendrada pelo medo aos suplícios ressente-se de sua origem; essa virtude é pusilânime e obscura: ou melhor, o medo só abafa os vícios, mas não produz de modo algum virtudes. A verdadeira virtude se funda no desejo da estima e da glória e no horror ao desprezo, mais temível que a própria morte. Tomo como exemplo a resposta que o Espectador Inglês manda dar a Pharamond por um soldado duelista a quem esse príncipe censurava de ter desobedecido as suas ordens. Como, respondeu-lhe, haveria eu de submeter-me a elas? Tu punes com a morte apenas aqueles que as violam e tu punes com a infâmia os que as obedecem. Saiba que eu temo menos a morte do que o desprezo. Do que eu disse se poderia concluir que não é de modo algum da natureza mas da diferente constituição dos Estados que depende o amor ou a indiferença de certos povos para com a virtude: mas, por mais justa que fosse essa conclusão, não seria entretanto bem provada se, para esclarecer melhor essa matéria, eu não procurasse mais particularmente nos governos, livres ou despóticos, as causas desse mesmo amor ou dessa mesma indiferença para com a virtude. Deter-me-ei primeiro no despotismo: e, para melhor conhecer sua natureza, examinarei qual o motivo que acende nos homens esse desejo desenfreado por um poder arbitrário, tal como é exercido no Oriente. Se escolho o Oriente como exemplo é que a indiferença pela virtude só se faz sentir nos governos desse tipo. Em vão algumas nações vizinhas e invejosas já nos acusam de cedermos ao jugo do despotismo oriental: afirmo que nossa religião não permite aos príncipes usurpar esse poder; que nossa constituição é monárquica, e não despótica; que os particulares não podem, por conseguinte, ser despojados de sua propriedade a não ser pela lei, e não por uma vontade arbitrária; que nossos príncipes pretendem o título de monarca, e não o de déspota; que eles reconhecem leis fundamentais no reino; que se declaram os pais e não os tiranos de seus súditos. Aliás, o despotismo não poderia se estabelecer na França, que seria logo subjugado. Não se trata de um reino como a Turquia, a Pérsia, impérios defendidos por vastos desertos e cuja imensa extensão, ocasionando o despovoamento que é motivo para o despotismo, fornece sempre exércitos ao sultão. Num país apertado como o nosso e cercado por nações esclarecidas e poderosas, as almas não seriam impunemente aviltadas. A França, despovoada pelo despotismo, seria logo presa das nações. Carregando de ferros as mãos de seus súditos, o príncipe não os submeteria ao jugo da escravidão sem sofrer ele mesmo o jugo dos príncipes seus vizinhos. É pois impossível que conceba um projeto dessa natureza. CAPÍTULO XVII Do desejo que têm todos os homens de serem déspotas, dos meios que empregam para consegui-lo e do perigo a que o despotismo expõe os reis Esse desejo origina-se no amor ao prazer e, por conseguinte, na própria natureza do homem. Cada um quer ser o mais possível feliz; cada um quer ser revestido de um poder que force os homens a contribuir com todas as suas forças para a sua felicidade; é para isto que se quer comandá-los. Ora, dirigem-se os povos ou segundo leis e convenções estabelecidas ou por uma vontade arbitrária. No primeiro caso, nosso poder sobre eles é menos absoluto; são menos obrigados a nos agradar: aliás, para governar um povo segundo as leis, é preciso conhecê-las, meditá-las, fazer estudos fatigantes, aos quais a preguiça sempre quer subtrair-se. Para satisfazer essa preguiça, cada qual aspira pois ao poder absoluto, que, dispensando de qualquer cuidado, de qualquer estudo e de qualquer esforço de atenção, submete servilmente os homens a suas vontades. Segundo Aristóteles, o governo despótico é aquele em que todos são escravos e no qual não se encontra sequer um homem livre. Eis por que cada um quer ser déspota. Para tanto é preciso diminuir o poder dos grandes e do povo e dividir, por conseguinte, os interesses dos médios. Numa longa sequência de séculos, o tempo sempre oferece aos soberanos a oportunidade para isso. Quase sempre animados de um interesse mais ativo, é claro que aproveitam com avidez tal oportunidade. Foi sobre essa anarquia dos interesses que se estabeleceu o despotismo oriental, muito semelhante à pintura que Milton faz do império do caos que, diz ele, estende seu pavilhão real sobre um abismo árido e desolado, no qual a confusão, entrelaçada em si mesma, mantém a anarquia e a discórdia dos elementos, e governa cada átomo com um cetro de ferro. Uma vez semeada a divisão entre os cidadãos, é preciso, para aviltar e degradar as almas, fazer brilhar incessantemente aos olhos dos povos o gládio da tirania, colocar as virtudes na ordem dos crimes e as punir como tais. A que crueldades não foi levado, nesse sentido, o despotismo, não apenas no Oriente mas igualmente na época dos imperadores romanos? (...) É mantendo as almas nas angústias perpétuas do temor que a tirania as faz aviltar-se. É ela que, no Oriente, inventa essas torturas, esses suplícios “Se os suplícios utilizados em quase todo o Oriente causam horror à humanidade, é porque o déspota que os ordena sente-se acima das leis. O mesmo não ocorre nas repúblicas; as leis são aí sempre brandas, porque aquele que as estabelece a elas se submete. (Nota do Autor)” tão cruéis; suplícios algumas vezes necessários nesses países abomináveis; porque os povos são aí excitados aos crimes, não apenas por sua miséria mas ainda pelo sultão que lhes dá o exemplo do crime e os ensina a desprezar a justiça. Aí estão tanto os motivos sobre os quais se baseia o amor pelo despotismo como os meios que se empregam para alcançá-lo, É assim que, loucamente apaixonados pelo poder arbitrário, os reis se lançam inconsideradamente numa estrada cortada para eles por mil precipícios e na qual milhares dentre eles pereceram. Ousemos, para a felicidade da humanidade e dos soberanos, esclarecê-los a respeito, mostrar-lhes o perigo ao qual, sob um governo dessa natureza, eles e seus povos estão expostos. Que eles afastem doravante de si mesmos todo conselheiro pérfido que lhes inspire o desejo do poder arbitrário: que eles saibam enfim que o tratado mais forte contra o despotismo seria o tratado da felicidade e da conservação dos reis. Mas, dir-se-á, quem lhes pode ocultar essa verdade? Não comparam eles o número reduzido de príncipes banidos da Inglaterra com o número prodigioso de imperadores gregos ou turcos degolados no trono de Constantinopla? Se os sultões, eu responderia, não se refreiam por esses exemplos horríveis é porque não têm esse quadro habitualmente presente à memória; são continuamente impelidos ao despotismo por aqueles que querem com eles partilhar o poder arbitrário; e a maior parte dos príncipes do Oriente, instrumentos das vontades de um vizir, cedem por fraqueza a seus desejos, e não estão bem advertidos a respeito de sua injustiça pela nobre resistência de seus súditos. A entrada no despotismo é fácil. O povo raramente prevê os males que uma tirania consolidada lhe prepara. Se o percebe enfim é no momento em que, curvado ao jugo, encadeado por todos os lados e na impossibilidade de se defender, só espera tremendo o suplício ao qual se pretende condená-lo. Animados pela fraqueza dos povos, os príncipes se transformam em déspotas. Eles não sabem que suspendem sobre suas próprias cabeças o gládio que os deve atingir; que, para revogar todas as leis e reduzir tudo ao poder arbitrário, é preciso recorrer perpetuamente à força e frequentemente empregar o gládio do soldado. Ora, o uso habitual de tais meios, ou revolta os cidadãos e os excita à vingança, ou os acostuma insensivelmente a não reconhecer nenhuma justiça que não seja a força. Essa ideia demora a difundir-se entre o povo, mas ela aí desponta e chega até o soldado. O soldado percebe enfim que não existe no Estado nenhuma corporação que possa lhe resistir; que, odioso a seus súditos, o rei lhe deve todo o seu poder; sua alma se abre à sua revelia a projetos audaciosos; deseja melhorar sua condição. Basta então que um homem ousado e corajoso o adule com essa esperança, e lhe prometa a pilhagem de algumas cidades grandes, esse homem, como o prova toda a história, basta para fazer uma revolução; revolução sempre rapidamente seguida por uma segunda; pois nos Estados despóticos, como observa o ilustre Montesquieu, sem destruir a tirania massacram-se muitas vezes os tiranos. Uma vez que o soldado conheceu sua força, não é mais possível contê-lo. Posso citar, a esse respeito, todos os imperadores romanos proscritos pelos pretorianos, por terem desejado libertar a pátria da tirania dos soldados e restabelecer a antiga disciplina nos exércitos. Para comandar escravos, o déspota é pois forçado a obedecer a milícias sempre inquietas e imperiosas. Isto não se dá quando o príncipe criou no Estado um corpo poderoso de magistrados. Julgado por esses magistrados, o povo tem ideias sobre o justo e o injusto; o soldado, sempre tirado do corpo dos cidadãos, conserva em seu novo estado alguma ideia sobre a justiça; sente, aliás, que, alertado pelo príncipe e pelos magistrados, todo o corpo de cidadãos, sob o estandarte das leis, se oporia às empresas ousadas que poderia tentar; e que, por maior que fosse sua coragem, sucumbiria enfim por inferioridade numérica: ele é pois mantido em seu dever tanto pela ideia da justiça como pelo temor. Esse poderoso corpo de magistrados é pois necessário à segurança dos reis: é um escudo sob o qual o povo e o príncipe se abrigam, um das crueldades da tirania, o outro das fúrias da sedição. Era a esse respeito e para se subtrair ao perigo que de todas as partes cerca os déspotas que o califa Aaron Al-Raschid pedia um dia ao célebre Belulh, seu irmão, alguns conselhos sobre a maneira de bem governar. "Fazei", disse-lhe este, "com que vossas vontades estejam de acordo com as leis, e não as leis de acordo com vossas vontades. Pensai em que os homens sem mérito pedem muito, e os grandes homens raramente; resisti pois aos pedidos de uns e atendei aos dos outros. Não carregueis vossos povos de impostos onerosos demais: lembrai-vos, quanto a isto, das advertências do Rei Nuchirvon, o Justo, a seu filho Ormus: Meu filho, dizia ele, ninguém será feliz em teu império se pensares apenas em teu bem-estar. Quando, estendido sobre almofadas, estiveres pronto para dormir, lembra-te daqueles que a opressão mantém acordados; quando se servir diante de ti uma refeição esplêndida, pensa naqueles que enlanguescem na miséria; quando percorreres os deliciosos bosques de teu harém, lembra-te de que existem desafortunados que a tirania retém nos ferros." "Só acrescentarei uma palavra ao que acabo de dizer", disse Belulh. "Colocai sob vossa proteção pessoas eminentes nas ciências; dirigi-vos segundo as opiniões delas a fim de que a monarquia seja obediente à lei escrita, e não a lei à monarquia." Temisto, encarregado pelo Senado de discursar para Joviano por ocasião de seu advento ao trono, fez mais ou menos o mesmo discurso a esse imperador: Lembrai-vos, disse ele, que, se os homens de guerra vos elevaram ao império, os filósofos vos ensinarão a bem governá-lo, Os primeiros vos deram a púrpura dos Césares; os segundos vos ensinarão a usá-la dignamente. (...) Todo aquele que, a pretexto de manter a autoridade do príncipe, quer conduzi-la até o poder arbitrário, é ao mesmo tempo mau pai, mau cidadão e mau súdito. Mau pai e mau cidadão, porque carrega sua pátria e a posteridade com cadeias da escravidão; mau súdito, pois mudar a autoridade legítima em autoridade arbitrária é evocar contra os reis a ambição e o desespero. Tomo como testemunho disto os tronos do Oriente, tantas vezes manchados pelo sangue de, seus soberanos. É claro que o interesse dos sultões não lhes permitiria, nunca, nem desejar um poder assim, nem ceder, a esse respeito, aos desejos de seus vizinhos. Os reis devem ser surdos a tais conselhos, e lembrarem-se de que seu único interesse é manter, se ouso dizê-lo, seu reino sempre em destaque, para desfrutar dele, eles e sua posteridade. Esse verdadeiro interesse não pode ser entendido a não ser por príncipes esclarecidos: nos outros, a gloríola de comandar como mestre e o interesse da preguiça que lhes oculta os perigos que os cercam sempre suplantarão todo outro interesse; e todo governo, como a história o prova, tenderá sempre para o despotismo. CAPÍTULO XXII Do amor de certos povos pela glória e pela virtude Este capítulo é uma consequência tão necessária do capítulo anterior que eu me acreditaria, a esse respeito, dispensado de qualquer exame, se não sentisse o quanto a exposição dos meios próprios a obrigar os homens à virtude pode ser agradável ao público e o quanto os detalhes, sobre tal matéria, são instrutivos mesmo para aqueles que melhor a conhecem. Entro, pois, na matéria. Lanço o olhar às repúblicas mais fecundas em homens virtuosos; detenho-me na Grécia, em Roma; e aí vejo nascer uma multidão de heróis. Suas grandes ações, conservadas cuidadosamente pela história, parecem estar aí recolhidas para espalhar os odores da virtude aos séculos mais corrompidos e mais recuados. Existem ações como esses vasos de incenso que, colocados no altar dos deuses, bastam para encher de perfume a vasta extensão de seu templo. Considerando a continuidade de ações virtuosas que a história desses povos apresenta, se quero descobrir a causa disto percebo-a na habilidade com que os legisladores dessas nações tinham ligado o interesse particular ao interesse público. “É nessa união que consiste o verdadeiro espírito das leis. (Nota do Autor)” Tomo como exemplo dessa verdade a ação de Régulo. Não suponho nesse general nenhum sentimento de heroísmo, nem mesmo os que deviam inspirar-lhe a educação romana; e afirmo que, no século desse cônsul, a legislação, em certos aspectos, era de tal modo aperfeiçoada que, consultando apenas seu interesse pessoal, Régulo não podia se recusar à sua influência generosa. Com efeito, quando nos instruímos sobre a disciplina dos romanos, lembramo-nos de que a fuga, ou mesmo a perda de seu escudo no combate, era punida pelo suplício da bastonada, no qual geralmente o culpado expirava. Não é evidente que um cônsul vencido, aprisionado e incumbido pelos cartagineses de tratar da troca dos prisioneiros não podia comparecer diante dos romanos sem temer esse desprezo, sempre tão humilhante da parte dos republicanos, e tão insuportável para uma alma elevada? Que, assim, a única alternativa que Régulo podia tomar era a de apagar, por alguma ação heroica, a vergonha da derrota? Ele devia, pois, se opor ao tratado de troca que o Senado estava pronto para assinar. Expunha sem dúvida sua vida com esse conselho, mas esse perigo não era iminente; era bastante possível que, surpreso com sua coragem, o Senado se apressasse a concluir um tratado que devia devolver-lhe um cidadão tão virtuoso. Aliás, supondo que o Senado acedesse a sua opinião, era ainda bem possível que, por medo de represálias, ou por admiração à sua virtude, os cartagineses não o submetessem ao suplício com que o haviam ameaçado. Régulo só se expunha portanto ao perigo ao qual, não digo um herói mas um homem prudente, é obrigado a se apresentar para se subtrair ao desprezo e se oferecer à admiração dos romanos. Ê portanto uma arte impelir os homens às ações heroicas; não que eu pretenda insinuar aqui que Régulo obedeceu simplesmente a essa necessidade e que eu queira desmerecer sua glória; a ação de Régulo foi, sem dúvida, o resultado do entusiasmo impetuoso que o levava à virtude: mas um entusiasmo desse tipo só podia acender-se em Roma. Os vícios e as virtudes de um povo são sempre um efeito necessário da legislação: e foi o conhecimento dessa verdade que, provavelmente, deu lugar a essa bela lei da China. Para aí fecundar os germes da virtude, os mandarins participam da glória ou da vergonha das ações virtuosas ou infames cometidas em seus governos; e que, por conseguinte, esses mandarins sejam elevados a postos superiores ou rebaixados a graus inferiores. Como duvidar que a virtude seja em todos os povos o resultado da sabedoria maior ou menor da administração? Se os gregos e os romanos foram por tanto tempo animados por essas virtudes másculas e corajosas que fazem, como diz Balzac, carreiras que a alma sabe serem além dos deveres comuns, é que as virtudes dessa espécie são quase sempre a partilha dos povos em que cada cidadão participa da soberania. É apenas num país assim que se encontra um Fabrício. Instado por Pirro a acompanhá-lo a Epiro: Pirro, diz-lhe ele, sois, sem dúvida, um príncipe ilustre, um grande guerreiro; mas vossos povos gemem na miséria. Que temeridade querer levar-me a Epiro! Tendes dúvida de que, assim que estiverem ordenados sob minha lei, vossos povos prefeririam a isenção de tributos à sobrecarga de vossos impostos e a segurança à incerteza sobre suas posses? Hoje vosso favorito, amanhã eu seria vosso mestre. Esse discurso só poderia ser pronunciado por um romano. É nas repúblicas que se percebe com surpresa até onde pode ser levada a altura da coragem e o heroísmo da paciência. Citarei Temístocles como exemplo desse tipo. Poucos dias antes da batalha de Salamina, esse guerreiro, insultado em pleno conselho pelo general dos lacedemônios, responde às ameaças apenas com estas duas palavras: Bate, mas ouve. A esse exemplo acrescentarei o de Timoleão. Ele é acusado de malversação, o povo está prestes a esmagar seus delatores. Ele detém-lhe a fúria dizendo: Ó siracusános! Que ides fazer? Lembrai-vos de que todo cidadão tem o direito de me acusar: evitai, cedendo ao reconhecimento, infringir essa mesma liberdade que me é tão glorioso haver devolvido a vós. Se a história grega e romana está cheia desses traços heroicos e se percorremos quase inutilmente toda a história do despotismo para encontrar algo parecido, é que, nesses governos, o interesse particular não está nunca ligado ao interesse público; é que nesses países, entre mil qualidades, é a baixeza que é honrada, a mediocridade que é recompensada; “Nesses países o espírito e os talentos são honrados apenas sob grandes príncipes e grandes ministros. (Nota do Autor)” é a essa mediocridade que se confia quase sempre a administração pública; dela são afastadas as pessoas de espírito. Inquietos demais e demasiado agitados, eles alterariam, digamos, o repouso do Estado, repouso comparável ao momento de silêncio que, na natureza, precede por alguns instantes a tempestade. A tranquilidade de um Estado não prova sempre a felicidade dos súditos. Nos governos arbitrários, os homens fazem como esses cavalos que, ferrados pelo aziar, sofrem, sem se mexer, as mais cruéis operações: o corcel em liberdade empina ao primeiro golpe. Confunde-se, nesses países, a letargia com a tranquilidade. Só a paixão pela glória, desconhecida nessas nações, pode manter, no corpo político, a suave fermentação que o torna sadio e robusto e que desenvolve todo tipo de virtudes e de talentos. Os séculos mais favoráveis às letras, por esse motivo, sempre foram os mais férteis em grandes generais e em grandes políticos: o mesmo sol vivifica os cedros e os plátanos. De resto, essa paixão pela glória que, divinizada pelos pagãos, recebeu as homenagens de todas as repúblicas, foi honrada apenas nas repúblicas pobres e guerreiras. CAPÍTULO XXV Da exata relação entre a força das paixões e a grandeza das recompensas propostas como seu objeto (...) A vivacidade das paixões depende, pois, ou dos meios que o legislador emprega para despertá-las em nós ou das posições em que nos achamos colocados pelo acaso. Assim, os êxitos, como a história mostra, acompanham sempre os povos animados de paixões fortes: verdade pouco conhecida e cuja ignorância se opôs aos progressos que poderiam ter sido levados a cabo pela arte de inspirar paixões; arte desconhecida mesmo por políticos reputados, que calculam muito bem os interesses e forças dum país, mas que nunca perceberam o partido que se pode tirar das paixões em instantes críticos quando se tem a arte de acendê-las. Os princípios desta arte, como os da geometria, parece que só os grandes homens na guerra ou na política os perceberam. A esse respeito eu faria notar que, se a virtude, a coragem e, por conseguinte, as paixões que animam os soldados não são menos importantes para a vitória que a ordem que os organiza nas fileiras, um tratado sobre a arte de inspirá-las não seria menos útil que o excelente tratado do ilustre cavaleiro Folard sobre a tática. A conclusão deste capítulo é a de que a força das paixões é sempre proporcional à força dos meios empregados para acendê-las. Agora devo examinar se estas mesmas podem, em todos os homens comum ente bem organizados, exaltar-se ao ponto de dotá-los com aquela continuidade de atenção à qual se liga a sua superioridade de espírito. CAPÍTULO XXVI De que grau de paixão os homens são suscetíveis (...) De todas as paixões, a do fanatismo, fundada no desejo dos prazeres celestes, é fora de dúvida a mais forte; num povo é sempre a que mais dura, porque o fanatismo só se estabelece sob influências e seduções cujos fundamentos a razão deve separar insensivelmente. Assim, os árabes, os abissínios perderam, como em geral todos os povos maometanos, no espaço dum único século, a superioridade da coragem que detinham sobre as outras nações; e é neste ponto que foram muito inferiores aos romanos. O valor militar dos últimos, excitado pela paixão patriótica e fundado sobre recompensas reais e temporais, teria sido o mesmo se o luxo não tivesse feito sua aparição em Roma com os despojos da Ásia, se o desejo das riquezas não tivesse quebrado os laços que uniam o interesse particular ao geral e corrompido juntamente costumes e governo. Devo dizer que destas duas espécies de coragem, fundadas uma sobre o fanatismo da religião, a outra sobre o amor da pátria, somente a segunda é que deve ser inspirada pelo legislador a seus concidadãos. A coragem fanática enfraquece e logo acaba. Além disso, tendo origem na cegueira e superstição, uma vez que a nação perca seu fanatismo, só lhe fica a estupidez: torna-se então objeto de desprezo para todos os povos, aos quais é realmente inferior sob todos os pontos de vista. É à estupidez muçulmana que os cristãos devem tantas das vantagens obtidas sobre os turcos, que só pelo número seriam temíveis, bastando para tal - diz Folard - executarem algumas mudanças na sua ordem de combate, disciplina e armamento, abandonando o sabre pela baioneta, e deixarem o embrutecimento em que a superstição os reterá sempre. (...) Mostrei que as paixões podem levar-nos às maiores proezas; verdade que é provada pela coragem desesperada dos ismaelitas, pelas meditações dos gimnosofistas cujo noviciado dura trinta e sete anos de isolamento, estudo e silêncio, pelas macerações bárbaras e contínuas dos faquires, pelo furor vingativo dos japoneses, pelos duelos dos europeus e enfim pela firmeza dos gladiadores, homens escolhidos ao acaso, que, feridos de morte, caíam e morriam na arena com coragem inalterável. Todos os homens, como tentei provar, são capazes, de maneira geral, dum grau de paixão mais que suficiente para fazê-los triunfar sobre a preguiça e dotá-los daquela continuidade de atenção à qual se liga a superioridade das luzes. A grande desigualdade que se observa entre os homens depende unicamente da educação diferente que receberam e do encadeamento desconhecido e diverso das circunstâncias em que se encontram, Com efeito, se todas as operações do espírito se reduzem a sentir, lembrar e seguir as relações que estes diversos objetos têm entre si e conosco, é evidente que, sendo todos os homens providos, como tenho mostrado, da agudeza do sentir, da extensão da memória, e, enfim, da capacidade de atenção necessárias para atingir as mais altas ideias, não há ninguém entre os homens comum ente bem organizados que não possa ilustrar-se com grandes talentos, Acrescentarei, como segunda demonstração dessa verdade, que todos os julgamentos falsos, como já provei no meu primeiro discurso, são efeito ou da ignorância ou das paixões: da ignorância, quando não se têm na memória os objetos da comparação dos quais deve resultar a verdade procurada; das paixões, quando elas são de tal modo modificadas que nós temos interesse em ver os objetos diferentemente do que são. Ora, essas duas causas únicas e gerais de nossos erros são duas causas acidentais. A ignorância, em primeiro lugar, não é nada necessária; ela não é efeito de nenhuma falha de organização, já que não há ninguém (...) que não esteja dotado de uma memória capaz de conter infinitamente mais objetos do que se exige para a descoberta das mais altas verdades. Visto que as necessidades físicas são as únicas paixões imediatamente dadas pela natureza, e as necessidades nunca enganam, é ainda evidente, a respeito das paixões, que um defeito de exatidão no espírito não é de forma alguma um defeito na organização; que todos temos em nós o poder de emitir os mesmos juízos sobre as mesmas coisas. Ora, ver do mesmo modo é ter igualmente espírito. É portanto certo que a desigualdade de espírito, observada nos homens que chamo comum ente bem organizados, não depende da excelência maior ou menor de sua organização, “Observarei, a esse propósito, que se o título de homem de espírito, como fiz no segundo Discurso, não é concedido ao número ou à fineza das ideias que se apresentam ao público, mas sim à sua, feliz escolha; e se o acaso, como o prova a experiência, nos determina a fazer estudos mais ou menos interessantes, e escolhe quase sempre o objeto que abordamos, então, aqueles que consideram o espírito como um dom da natureza são, segundo esta mesma suposição. obrigados a convir que o espírito é antes efeito do acaso do que da excelência da organização; e que não pode ser considerado um dom da natureza a não ser que se entenda, pela palavra natureza, o encadeamento eterno e universal que liga, entre si todos os eventos do mundo e pelo qual o próprio conceito de acaso está compreendido. (Nota do Autor)” mas da educação diferente que receberam, das circunstâncias diversas em que se encontram, enfim do pouco hábito de pensar que têm, da aversão à aplicação que adquirem na primeira juventude, o que os torna absolutamente incapazes de aplicar-se na idade mais avançada. Por provável que seja essa opinião, como sua novidade pode ainda espantar, já que é difícil a gente se separar de seus antigos preconceitos, e como a verdade de um sistema se prova pela explicação dos fenômenos que abrange, vou, em consequência com meus princípios, mostrar, no próximo capítulo, por que se encontram tão poucas pessoas de gênio entre tantos homens todos feitos para tê-lo. CAPÍTULO XXVII Da relação dos fatos com os princípios acima estabelecidos A experiência parece desmentir os meus raciocínios, e tal contradição aparente pode tornar minha opinião suspeita. Se todos os homens, dir-se-á, têm igual disposição na mente, por que é que num reino composto de quinze a dezoito milhões de almas vemos tão poucos Turenne, Rosny, Colbert, Descartes, Corneille, Moliêre, Quinault, Lebrun; enfim, homens que são citados como honra de seu século e país? Para resolver esta questão, consultem-se as inúmeras circunstâncias cujo concurso é absolutamente necessário para formar homens ilustres em qualquer ramo, e verificar-se-á que os homens se acham tão raramente colocados em circunstâncias propícias que se explica o número tão reduzido de gênios de primeira ordem. Suponhamos que há na França dezesseis milhões de almas dotadas da mais viva disposição para o espírito; no governo, um vivo desejo de dar valor a estas disposições; se, como a experiência mostra, os livros, os homens e os recursos adequados para o desenvolvimento destas disposições só se acham numa grande cidade, é por conseguinte entre as oitocentas mil pessoas que vivem ou viveram durante muito tempo em Paris que se deve buscar e que se deve encontrar os homens superiores nas diversas ciências e artes. Ora, suprima-se ainda destes oitocentos mil a metade, quer dizer, as mulheres, cuja vida e educação se opõem ao progresso que poderiam fazer nas ciências e nas artes; tirem-se ainda as crianças, velhos, artesãos, operários, criados, monges, soldados, mercadores, e de modo geral todos aqueles que, pela sua classe, dignidade, riquezas, estão sujeitos a obrigações ou entregues a prazeres que lhes tomam parte do dia; se se considerar enfim o pequeno número daqueles que, postos numa situação medíocre desde a juventude, sentem não poder aliviar a sorte de todos os infelizes mas podem dedicar-se sem inquietude ao estudo e à meditação, é quase certo que seu número não excederá seis mil; desses haverá talvez seiscentos animados pelo desejo de instruir-se; e destes últimos talvez a metade tenha esse desejo a ponto de fecundar em si grandes ideias; não se contarão cem que juntem ao desejo de instrução a constância e a paciência necessárias para aperfeiçoar o talento, e que reúnam assim duas qualidades que a vaidade demasiado impaciente de mostrar-se torna inimigas; haverá talvez cinquenta que desde a primeira juventude se entregam ao mesmo gênero de estudo, sempre insensíveis ao amor e à ambição, que não tenham perdido momentos irreparáveis em estudos demasiado dispersos, nos prazeres ou nas intrigas, perda de tempo, essa irreparável, realmente, para quem queira se tornar superior em qualquer ciência ou arte. Se desse número de cinquenta que, dividido pelas especialidades do estudo, daria um ou dois homens por assunto, eu deduzir aqueles que não leram obras relevantes, não contaram com os homens mais aptos para esclarecê-los, e desse número reduzido tirar ainda todos aqueles a quem a morte, acidentes de fortuna ou acidentes semelhantes detiveram os progressos, direi então que, na forma atual de nosso governo, a multidão de circunstâncias, cujo concurso se requer para formar grandes homens, se opõe à multiplicação destes, e que as pessoas de gênio devem ser raras como realmente o são. É portanto unicamente no moral que se deve buscar a verdadeira causa da desigualdade de espíritos. Então, para explicar a carência ou abundância de grandes homens em certos séculos, ou países, não se recorrerá mais às influências do clima, nem a raciocínios semelhantes que, sempre repetidos, foram sempre desmentidos pela experiência e pela história. (...) DISCURSO IV DOS DIFERENTES NOMES DADOS AO ESPIRITO (CAPÍTULOS II-III-XII/XIV) CAPÍTULO II Da imaginação e do sentimento Os que trataram até hoje da imaginação ou alargaram ou restringiram demais a significação da palavra. Para atribuir uma ideia precisa a essa expressão, lembremos a etimologia da palavra imaginação; deriva do latim imago, imagem. Vários autores confundiram memória e imaginação. Não perceberam que não existem palavras exatamente sinônimas; a memória consiste numa lembrança nítida dos objetos que estiveram presentes a nossos sentidos; e a imaginação numa combinação, uma nova reunião de imagens e uma relação das semelhanças percebidas entre as imagens e o sentimento que se deseja excitar. Seja o terror: a imaginação constitui as esfinges, as fúrias. Seja o espanto ou a admiração: ela cria o jardim das Hespérides, a ilha encantada de Armida e o palácio da Atlante. A imaginação vem pois a ser a criação de imagens, como o espírito a criação de ideias. A memória, que é apenas a lembrança exata dos objetos que estiveram perante nós, não difere menos da imaginação que um retrato de Luís XVI, de Le Brun, ao lado do quadro representando a conquista do Franco Condado. A imaginação só é empregada por si própria nas descrições, quadros, decorações. Em todos os outros casos a imaginação serve apenas de veste às ideias e sentimentos que nos são apresentados. Outrora tinha, papel mais importante no mundo; explicava quase sozinha todos os fenômenos da natureza. (...) Se na Europa não nos abandonamos mais à explicação imaginativa dos fenômenos físicos; se apenas a usamos para pôr mais clareza e comodidade nos princípios das ciências e se somente a experiência revela os segredos da natureza - não se deve contudo pensar que todas as nações se encontram igualmente esclarecidas neste particular. (...) Na filosofia, como disse, o uso que se pode fazer da imaginação é infinitamente limitado; a imaginação serve apenas para fornecer uma clareza maior aos princípios. Digo uma clareza maior porque os homens que se compreendem bastante bem quando usam palavras que descrevem objetos sensíveis, tais como carvalho, oceano, sol, não se compreendem quando dizem as palavras beleza, justiça, virtude, cuja significação abrange um grande número de ideias. É-lhes praticamente impossível atribuir a mesma coleção de ideias à mesma palavra; e daí as disputas eternas e vivas, que tão frequentemente ensanguentaram a terra. A imaginação que busca revestir com imagens sensíveis as ideias abstratas e os princípios das ciências empresta portanto muitíssima clareza e comodidade à filosofia. A imaginação não embeleza menos as obras do sentimento. Quando Ariosto conduz Rolando até à gruta onde irá ter Angélica, quanta arte não há nesta gruta! Inscrições gravadas pelo amor, leitos de relva estendidos pelo prazer; o murmúrio dos riachos, ar fresco, perfume das flores, tudo servindo para excitar os desejos de Rolando. O poeta faz com que, quanto maior for a promessa de amor desta gruta, maior a embriaguez de alma do herói, maior virá a ser o seu desespero, mais violento, quando vier, a conhecer a traição de Angélica, e, assim, o quadro excitará na alma dos leitores os ternos impulsos aos quais ligaram seus prazeres. (...) Penso que determinei nitidamente aquilo que se deve entender por imaginação (...). Passo agora ao sentimento. O momento em que a paixão desperta mais fortemente em nós constitui aquilo que chamamos sentimento. Entende-se por paixão apenas uma continuidade de sentimentos da mesma espécie. A paixão dum homem por uma mulher consiste somente na duração de seus desejos e sentimentos por ela. Uma vez estabelecida esta definição, para distinguir os sentimentos das sensações e saber que ideias diferentes atribuir às duas palavras, que são confundidas frequentemente, deve-se lembrar que existem paixões de duas espécies: as que nos são imediatamente dadas pela natureza; assim são os desejos ou necessidades físicas de beber, comer, etc.; as outras, não dadas imediatamente pela natureza, supõem a existência das sociedades e são apenas paixões construídas; tais são a ambição, orgulho, paixão de luxo, etc. Em relação a esta distinção, distinguirei também duas espécies de sentimentos; os que têm relação com as nossas necessidades físicas são as sensações; os outros, que têm relação com as paixões construídas, são os que conhecemos comumente sob o norte de sentimentos. É deles que trata o capítulo. Para fazer deles uma ideia nítida, observarei que não há homem sem desejos, nem por conseguinte sem sentimentos; mas estes podem ser fracos ou intensos. Quando só temos sentimentos fracos, se diz que os não temos. É somente dos homens de sentimentos fortes que se diz que têm sentimento. O medo assalta-nos; se o medo não nos precipita em perigos maiores que aqueles que queremos evitar, se o nosso temor calcula e raciocina, ele é fraco, nunca dirão de nós que somos medrosos. O mesmo se pode dizer do sentimento do amor e da ambição. É às sensações bem determinadas que o homem deve estes movimentos fogosos e os acessos ditos de sentimento. Achamo-nos animados por tais paixões quando um desejo reina soberano em nossa alma e comanda os outros desejos. Quando alguém cede sucessivamente a desejos diferentes, engana-se ao acreditar-se apaixonado, começa a tomar gosto pelas paixões. O despotismo, se posso falar assim, dum desejo ao qual todos os outros se acham subordinados é aquilo que caracteriza em nós a paixão. Existem por isso poucos homens apaixonados e capazes de sentimentos vivos. Muitas vezes os próprios costumes dum povo e a constituição dum Estado opõem-se ao desenvolvimento de paixões e sentimentos. Quantos países há onde as paixões não se podem manifestar, pelo menos através de ações! Num governo arbitrário, sempre sujeito a mil revoluções, os grandes acham-se abrasados pelo fogo da ambição, mas isso não ocorre num Estado monárquico, pois aí as leis estão em vigor. Na monarquia, os ambiciosos estão tolhidos, havendo, é certo, os intriguistas, mas eu não iria até o ponto de lhes dar o nome de ambiciosos. (...) Nos países em que os germes de certas paixões e sentimentos se acham abafados, o público só pode vir a conhecê-los nos quadros dos escritores célebres, e sobretudo através dos poetas. O sentimento é a alma da poesia e sobretudo da poesia dramática. Antes de indicar os •sinais pelos quais se reconhecem neste gênero os grandes pintores e os homens de sentimentos, será bom observar que só se pintam as paixões e sentimentos adequadamente quando se é suscetível de experimentá-los. (...) Uma espécie de sentimento não nos tornará capazes de adivinhar outra. Descrever-se-á sempre mal aquilo que se sente fracamente. Corneille, cuja alma era mais altiva que terna, retrata melhor os grandes políticos e heróis que os amantes. (...) Concluirei fazendo notar que, uma vez que o nosso governo e costumes não nos permitem entregar-nos a paixões tais como a ambição e a vingança, só podemos citar aqui, como pintores do sentimento, homens sensíveis à ternura paternal ou filial, e, enfim, sensíveis ao amor, que por isso mesmo ocupa quase sozinho todo o teatro francês. CAPÍTULO III Do espírito O espírito não é outra coisa senão uma reunião de ideias e de novas combinações. Se num determinado assunto se tivessem realizado todas as combinações possíveis, não seria possível acrescentar nem invenção nem espírito a esse assunto; poder-se-ia ser sábio no assunto mas não ter espírito. Seria evidente que, se não houvesse mais descobertas a fazer em nenhum assunto, o espírito seria impossível, tudo seria ciência: teríamos chegado até aos princípios das coisas. Uma vez chegados até aos princípios gerais e simples, a ciência dos fatos que nos tinham conduzido até lá seria apenas uma ciência fútil e as bibliotecas onde estes fatos estivessem compilados tornar-se-iam inúteis. Assim, de todos os fatos da política e da legislação, quer dizer, de todas as histórias, ter-se-ia extraído, por exemplo, o pequeno número de princípios que, próprios para manter entre os homens a maior igualdade possível, dariam um dia lugar à melhor forma de governo. O mesmo sucederia com a física e de modo geral com todas as ciências. Então o espírito humano, espalhado por uma infinidade de obras diversas, ficaria, através de mão hábil, concentrado num pequeno volume de princípios; mais ou menos como as essências de flores que cobrem vastas planícies são facilmente concentradas num simples frasco de perfume através da arte da química. O espírito humano, para falar verdade, creio que está de fato muito longe do seu fim. Acredito que não estaremos tão cedo reduzidos à triste necessidade de sermos apenas sábios; e assim, graças à ignorância humana, ser-nos-é ainda permitido durante muito tempo ter espírito. O espírito, pois, sempre supõe invenção. Mas, dir-se-á, qual é a diferença entre essa espécie de invenção e a que nos faz obter o título de gênios? Para o descobrir, consultemos o público. Na moral e na política chamará gênio a Maquiavel e ao autor do Espírito das Leis e dirá que La Bruyêre e La Rochefoucauld são apenas homens de muito espírito. A única diferença sensível que se notará entre estas duas espécies de homens é que os primeiros tratam de assuntos mais importantes estabelecem mais verdades, e formam com elas um conjunto maior que os segundos. Ora, a união dum número maior de verdades supõe maior quantidade de combinações e, por conseguinte, um homem mais raro. Além disso, o público gosta de ver as consequências que resultam dum princípio; deve recompensar com o título de gênio quem lhe proporcionar essa vantagem, ao reunir uma infinidade de verdades sob um ponto de vista único. Tal é, no gênero filosófico, a diferença sensível entre o gênio e o espírito. Nas artes, onde se designa pela palavra talento aquilo que nas ciências se chama espírito parece que a diferença é aproximadamente a mesma. Quem quer que tome por modelo os grandes que o precederam na mesma carreira, ou não os ultrapasse, ou não tenha realizado grandes obras, não combinou o bastante, não fez suficientes esforços de espírito, nem ofereceu provas convincentes de invenção para vir a merecer o título de gênio. (...) Direi mesmo que às vezes se recusa o título ao autor mas é dado à obra. Um conto, uma tragédia obtêm grande sucesso; pode-se dizer que são obras de gênio sem ousar dizer o mesmo do autor. Para obter esse título, é preciso (como La Fontaine) possuir, se se pode dizê-lo, numa infinidade de pequenas peças o cunho duma obra grande; ou, como Corneille e Racine, compor certo número de excelentes tragédias. ( ... ) Para terminar este capítulo resta-me fazer duas observações. A primeira é que só se diz no domínio da arte que têm espírito aqueles que transportam para o artístico as belezas de outro gênero; tais são, por exemplo, as comédias de Fontenelle, que, desprovidas do gênio e talento cômicos, brilham com algumas belezas filosóficas. A segunda é que a invenção pertence de tal modo ao espírito que, até o momento, não se designaram pelos epítetos aplicáveis ao espírito elevado aquelas artes que têm ocupações úteis mas cujo exercício não requer qualquer invenção. O mesmo uso que nos faz falar dum bom juiz, dum bom financista, dum hábil aritmético, nos permite aplicar o epíteto de sublime ao poeta, ao legislador, ao geômetra, ao orador. Portanto, o espírito supõe sempre invenção. Esta invenção é mais elevada no gênio, supõe mais amplitude de visão; supõe, além disso, a firmeza que triunfa sobre todas as dificuldades e a ousadia de caráter que abre novos caminhos. Tal é a diferença entre gênio e espírito e a ideia geral que se deve associar à palavra espírito. ( ... ) CAPÍTULO XII Do bom senso A diferença entre o espírito e o bom senso reside nas causas que os produzem. Um é o efeito das paixões fortes, o outro da sua ausência. O homem de bom senso não cai habitualmente em nenhum dos erros a que as paixões nos arrastam; mas por outro lado também não recebe nenhuma das iluminações que são devidas às paixões fortes. Na vida corrente, e nos assuntos em que basta olhar sem maiores preocupações, O homem de bom senso jamais se engana. Mas, se se tratar de questões um pouco complicadas em que, para perceber a verdade, é preciso esforço e fadiga da atenção, o homem de bom senso fica cego; privado de paixões, acha-se ao mesmo tempo privado da coragem e da atividade da alma, da atenção contínua, que só elas poderiam ajudá-lo. O bom senso não supõe pois qualquer invenção, nem, por conseguinte, espírito: é quando o bom senso termina que o espírito começa. Contudo, não se deve concluir daqui que o bom senso seja tão comum. Os homens sem paixões são raros. O espírito justo, que, de todas as espécies de espírito, é sem dúvida a mais próxima do bom senso, não é ele próprio desprovido de paixões. ( ... ) O corpo político está são; as pessoas dotadas de bom senso podem ser chamadas para os lugares importantes e desempenhar-se de suas funções dignamente. Se o Estado está atacado de alguma doença, estas mesmas pessoas de bom senso tornam-se então muito perigosas. A mediocridade mantém as coisas no pé em que estão. Deixam andar as coisas. O seu silêncio oculta o avanço do mal e opõe-se aos remédios eficazes que poderiam ser utilizados para debelá-lo, Só falam da doença no instante em que a sabem incurável. Nos postos secundários, onde não se é obrigado a imaginar mas tão somente a cumprir com pontualidade, portam-se muito bem. As únicas faltas que aí cometem são devidas à ignorância, e que, nos pequenos lugares, são quase sempre sem importância. Quanto à sua conduta particular, não é de modo algum hábil, mas é sempre razoável. A ausência de paixões impedindo as luzes, de que elas são origem, evita ao mesmo tempo os erros em que as paixões se precipitam. ( ... ) Por raro que seja o bom senso, as vantagens que proporciona são apenas pessoais; não se estendem à humanidade. O homem de bom senso não pode então pretender o reconhecimento público, nem por conseguinte a glória. Mas a prudência, dir-se-á, que vem seguindo o bom senso, é virtude que todas as nações têm interesse em honrar. Responderia que essa prudência tão elogiada, e algumas vezes tão útil aos indivíduos, não é para uma nação uma virtude tão desejável como imaginam. De todos os dons que o céu possa lançar sobre um povo, o mais funesto seria a prudência, se todos os cidadãos fossem prudentes. O que é um homem prudente? Aquele que conserva dos males mais longínquos uma imagem suficientemente viva para que faça oscilar nele a presença dum prazer que viria a ser funesto. Ora, suponhamos que a prudência desça sobre todas as cabeças que compõem uma nação; onde encontrar então homens que, por cinco soldos diários, afrontem nos combates a morte, as fadigas e as doenças? Que mulher se apresentaria ao altar do hímen, se exporia ao incômodo duma gravidez, aos perigos dum parto, às contradições dum marido, aos desgostos, enfim, que a morte ou a má conduta dos filhos ocasionam? Que homem consequente com os princípios da sua religião não desprezaria a existência fugitiva dos prazeres terrenos, e se entregaria por inteiro à tarefa de sua salvação através duma vida mais austera? Que homem não escolheria consequentemente o estado mais perfeito, aquele no qual sua saúde ficasse menos exposta; não preferiria a palma da virgindade aos mirtos do amor e não iria amortalhar-se num convento? É portanto à inconsequência que a posteridade ficará a dever a sua existência. É a presença do prazer, o seu aspecto poderoso, que desafia as infelicidades longínquas e aniquila a prudência. É portanto à imprudência e à loucura que o céu deve a conservação dos impérios e a duração do mundo. ( ... ) CAPÍTULO XIII Espírito de conduta O objeto comum dos desejos dos homens é a felicidade; e o espírito de conduta deveria ser, por isso, a arte de se fazer feliz. Talvez se pensasse assim se a felicidade não parecesse sempre menos um dom do espírito que efeito da sabedoria e moderação de nosso caráter e desejos. Quase todos os homens fatigados pela tormenta das paixões, ou lânguidos na calma do tédio, são comparáveis, os primeiros ao barco batido pelas tempestades do Norte, os segundos ao veleiro imobilizado pelas calmarias nos mares da zona tórrida. Em seu socorro, um chama a calmaria e o outro as tempestades. Para navegar de modo feliz é necessário ser impelido por um vento sempre igual. Mas tudo o que poderia dizer sobre a felicidade nesse aspecto não teria nenhuma relação com o assunto que trato. Até o presente, entendeu-se por espírito de conduta apenas a espécie de espírito própria a nos guiar em direção aos diversos objetivos de felicidade a que nos propomos. Numa república como a romana e em todo governo em que o povo é o distribuidor dos prêmios, onde as honras são o preço do mérito, o espírito de conduta não é outra senão o próprio gênio e o grande talento. Não sucede assim nos governos em que as graças estão na mão de alguns homens cuja grandeza é independente do bem público: nestes países o espírito de conduta é a arte de se tornar útil ou agradável aos dispensadores das graças; é menos ao seu espírito que ao seu caráter que se devem as vantagens. A disposição mais favorável e o dom mais necessário para ter sucesso junto dos grandes é possuir um caráter dobrável a toda espécie de pessoas e circunstâncias. Embora se seja desprovido de espírito, tal caráter, auxiliado por uma posição favorável, basta para fazer fortuna. Mas, dir-se-á, nada mais comum que tais caracteres. Não há então quem não possa fazer fortuna e conciliar-se com a benevolência dum grande, fazendo-se ou ministro de seus prazeres ou seu espião. Além disso, o acaso contribui em muito para a fortuna dos homens. ( ... ) De resto, mesmo que a mediocridade traga vantagem e leve à fortuna, o espírito, como disse acima, contribui às vezes para a nossa subida - por que o público então não mostra estima por este tipo de espírito? Diria que é porque ignora o detalhe das manobras de que o intrigante lança mão e quase nunca pode saber se a sua ascensão é resultado do chamado espírito de conduta ou do acaso puro. O número de ideias necessárias para fazer fortuna não é imenso. Mas dir-se-á: para enganar os homens, quanto não é preciso conhecê-los! Eu responderia que o intrigante conhece perfeitamente o homem em quem precisa apoiar-se, mas não conhece os homens. (...) No mais, o espírito de conduta só se liga a certa baixeza de caráter, que torna o intrigante desprezível aos olhos do público. Não é que não se possa unir a muita intriga muita elevação de alma. Que um homem, à maneira de Cromwell, queira subir ao trono: o poder, o brilho da coroa e os prazeres do império sem dúvida podem, a seus olhos, enobrecer a baixeza dos movimentos, desfazer o horror dos crimes perante a posteridade, que o colocará no plano dos maiores homens: mas que, através duma infinidade de intrigas, um homem tente alcançar estes pequenos postos que só lhe poderão valer na história o título de malandrim ou patife. Afirmo que um homem assim se torna desprezível não somente perante as pessoas honestas, mas ainda mais perante as esc1arecidas. É preciso ser insignificante para desejar coisas menores. Aqueles que estão acima das necessidades e não ocupam os cargos superiores de nada precisam além da glória, e só podem, se são homens de espírito, tomar o partido de serem sempre virtuosos. O intrigante deve renunciar à estima pública. Mas dir-se-á: ele é bem recompensado pela felicidade ligada à sua grande posição. Engana-se contudo quem o julgar feliz. A felicidade não é apanágio dos grandes cargos; depende unicamente do feliz acordo do nosso caráter com a posição e circunstâncias nas quais a sorte nos coloca. Sucede com os homens o mesmo que com as nações: as mais felizes nem sempre são as que desempenham um papel predominante no universo. Que nação é mais feliz do que a Suíça! ( ... ) Quem quiser abrir o caminho da fortuna através de intriga deve portanto submeter-se às humilhações. Sempre inquieto, só pode divisar a felicidade na perspectiva dum futuro incerto; e é da esperança, este sonho consolador dos homens despertos e infelizes, que ele pode esperar a felicidade. Quando atinge a fortuna já teve que suportar mil desgostos. É para se vingar deles que, ordinariamente duro e cruel para com os infelizes, lhes recusa toda a assistência, censura-lhes a miséria e crê, através desta crítica, fazer ressaltar a sua inumanidade como justiça, e a fortuna como mérito. Não goza, para falar a verdade, do prazer de persuadir. Como ter certeza de que a fortuna dum homem é o resultado dessa espécie de espírito que se chama espírito de conduta, sobretudo nos países inteiramente despóticos, onde o escravo mais vil se torna um vizir; onde as fortunas dependem da vontade do príncipe e dum capricho momentâneo cuja causa o próprio príncipe ignora? Os motivos que, nesses casos, determinam os sultões são quase sempre ocultos; os historiadores só relatam os motivos aparentes, ignoram os verdadeiros; e é nesse sentido que se pode afirmar, segundo Fontenelle, que a história não passa de uma lenda bem aceita. Se Balzac, numa comparação entre César e Pompeu, diz, referindo-se a seus destinos: Um é seu obreiro, o outro sua obra. Reconheça-se que Césares há poucos, e que nos governos arbitrários o acaso é quase o único deus da ventura. Tudo aí depende do momento e das circunstâncias em que nos encontramos postos, e é essa razão que tornou tão acreditado no Oriente o dogma da fatalidade. Segundo os muçulmanos, o destino domina a todos; coloca os reis no trono, ou expulsa-os de lá, torna seus reinados felizes ou desgraçados; segundo este povo, a sabedoria e a loucura, os vícios ou virtudes dum homem não mudam em nada os decretos gravados sobre as tábuas de luz. ( ... ) ( ... ) CAPÍTULO XIV Das qualidades exclusivas do espírito e da alma O meu objetivo nos capítulos precedentes foi ligar os diversos nomes dados ao espírito a ideias nítidas. Proponho-me examinar neste se existem talentos que devam excluir-se um ao outro. Esta questão decide-se quando sabemos que não somos superiores ao mesmo tempo em diversos assuntos. Newton não é mencionado entre os poetas, nem Milton entre os geômetras; os versos de Leibniz são maus. Não existem mesmo homens que numa arte, como a poesia e a pintura, tenham tido sucesso em todos os gêneros. Corneille e Racine não fizeram no cômico nada de comparável a Moliêre ... O espírito dos grandes homens parece, portanto, encerrado dentro de limites estreitos. Sem dúvida. Mas qual seria a causa? É falta de tempo ou falta de espírito que fazem com que os grandes homens não possam ilustrar-se em gêneros diversos? A marcha do espírito humano deve ser a mesma em todas as artes e ciências: todas as operações do espírito se reduzem a conhecer as semelhanças e diferenças que os diversos objetos apresentam entre si. É através da observação que se chega às ideias novas e gerais que atestam a nossa superioridade. Um grande físico, um grande químico poderia vir a ser grande geômetra, político, e ser grande em todas as ciências. Se é assim, só resta atribuir à brevidade da vida humana o fato de que os grandes espíritos se limitem a um só gênero. É preciso contudo concordar que existem talentos que excluem outros. Há homens que são sensíveis à paixão da glória, mas não suscetíveis a nenhuma outra espécie de paixão; uns podem ser primorosos na física, na jurisprudência, na geometria; enfim, em todas aquelas ciências em que basta comparar ideias. Toda outra espécie de paixão só serviria para distraí-los ou precipitá-los no erro. Há outros homens que são sensíveis à paixão da glória e a uma infinidade de outras paixões: podem criar nome em diversos gêneros nos quais para alcançar sucesso basta comover. Tal é, por exemplo, o gênero dramático. Mas para ser pintor de paixões (já o disse) é preciso senti-Ias de maneira viva: quem nunca sentiu paixões ignora sua linguagem e desconhece os sentimentos que elas despertam em nós. Esta ignorância, no gênero dramático, leva sempre à mediocridade. Se Fontenelle tivesse de pintar as figuras de Rhadamiste, Brutus ou Catilina, teria, mesmo sendo um grande espírito, permanecido abaixo do medíocre. Uma vez estabelecidos estes pontos, concluo que a paixão da glória é comum a todos os homens que se distinguem em algum setor, qualquer que seja; pois só a glória (como provei) pode fazer com que aguentemos a fadiga que é pensar. Mas tal paixão, conforme as circunstâncias em que a fortuna nos colocou, pode unir-se a outras paixões. Os homens nos quais esta união se processa jamais terão grande sucesso numa ciência como a moral, onde, para ver bem, é preciso um espírito atento mas indiferente: nesse gênero é a indiferença que segura a balança da justiça. Nas disputas não são as partes e sim o indiferente que é erigido em juiz. Qual seria o homem, capaz de amar violentamente, que saberia como Fontenelle analisar o crime da infidelidade? Diz o filósofo: Na época em que estava mais apaixonado, a minha amante deixou-me por outro. Sei disso, fico furioso. Procuro-a e censuro-a violentamente; diz-me a rir: "Fontenelle, quando fiquei contigo, buscava o prazer; o outro dá-me mais prazer: deva ter preferência pelo prazer menor? Responde-me com justiça" Responde Fontenelle: Realmente, tens razão, e, se já não sou teu amante, ao menos quero continuar a ser teu amigo. Uma resposta como esta supunha pouco amor em Fontenelle. As paixões não raciocinam tão bem. Podem-se então distinguir dois gêneros diferentes de ciências e artes; o primeiro supõe uma alma livre de todas as paixões, exceto a da glória; o segundo uma alma suscetível a uma infinidade de paixões. Existem pois talentos exclusivos. A ignorância desta verdade redunda em muitas injustiças. Deseja-se que os homens possuam qualidades contraditórias; pede-se-lhes o impossível: quer-se que a pedra permaneça suspensa no ar e não obedeça à lei da gravidade. Quando um homem como Fontenelle contempla, sem amargura, a maldade dos homens, considerando-a como resultado da causalidade universal; quando se ergue contra o crime sem odiar o criminoso, elogiarão a sua moderação; mas ao mesmo tempo censurá-lo-ão por ser demasiado morno na amizade. Não percebem que a mesma ausência de paixões à qual deve a moderação o torna menos sensível aos encantos da amizade. Nada mais comum do que exigir qualidades contraditórias. O amor cego pela felicidade faz com que desejemos ser sempre felizes e que os mesmos objetos assumam para nós a cada instante a forma que nos seria mais agradável. Vemos as vantagens de diversos objetos, queremo-las reunidas num só e gozar mil prazeres duma vez só. ( ... ) E portanto o amor cego da felicidade, fonte duma infinidade de desejos ridículos, que nos faz desejar que os homens possuam qualidades absolutamente inconciliáveis. Para destruir este germe de tantas injustiças é preciso tratar do assunto com algum vagar. Indicando, conforme meu objetivo, quais as qualidades absolutamente exclusivas e quais se acham raramente juntas num mesmo homem, para que tenhamos o direito de desejá-lo, pode-se tornar os homens ao mesmo tempo mais esclarecidos e mais indulgentes. Um pai deseja que seu filho junte ao grande talento uma conduta sábia. Mas, dir-lhe-ia, sabe que exige qualidades quase contraditórias? Saiba que, se um concurso singular de circunstâncias reúne tais qualidades, isso acontece muito raramente; os grandes talentos supõem sempre grandes paixões; que as grandes paixões são o germe de mil desregramentos; e, pelo contrário, o que se conhece como boa conduta é quase sempre o efeito da ausência de paixões, e, por conseguinte, apanágio da mediocridade. Só grandes paixões fazem grandeza, em qualquer ramo que seja. Por que encontramos tantos países estéreis em grandes homens? Por que tantos Catões juvenis vêm a ser espíritos medíocres na idade adulta? Por que há crianças lindas por todo o lado e tantos homens estúpidos? E que na maior parte dos governos não se aquecem os cidadãos com paixões fortes. Está bem! Consinto que meu filho tenha paixões, dirá o pai; a mim basta-me que possa dirigir a atividade dele para certos objetos de estudo. Mas saberá quão arriscado é tal desejo? E desejar que um jovem só veja diante de si os objetivos que lhe são indicados pelos outros. Antes de traçar qualquer plano educativo é preciso saber o que o pai deseja mais: se grandes talentos, se conduta sábia. Se preferir uma conduta sábia para seu filho, então um caráter apaixonado ser-lhe-á funesto; sobretudo nos países onde, por causa do governo, as paixões nem sempre são dirigidas para a virtude; apague-se nele, se possível, qualquer traço de paixão. Mas então será necessário renunciar a fazer dele homem de mérito? Sem dúvida. Se não for possível, devolva-lhe as paixões; trate de dirigi-Ias para coisas honestas; mas nada de surpresas se cometer grandes faltas ao mesmo tempo que grandes ações; nada há de medíocre no homem apaixonado; é o acaso que determina quase sempre os seus primeiros passos. Se é verdade que as ciências e as artes exercem influência sobre os homens apaixonados e os obrigam a ter uma conduta sábia, o mesmo não acontece com os grandes apaixonados que, pelo caráter, nascimento e riquezas, vêm a ocupar-se do governo do mundo. A boa ou má conduta neste caso está quase inteiramente dependente do acaso: conforme o lugar em que a fortuna os coloca, os seus vícios são virtudes e as virtudes vícios. Na tragédia de Voltaire, César diz: Se não fosse senhor dos romanos seria seu vingador; Se não fosse César, eu teria sido Brutus. Dai espírito, coragem, prudência e operosidade a um filho de tanoeiro; na república onde o mérito militar abre a porta da grandeza, tereis um Temístocles, um Mário; em Paris, apenas um Cartouche. Se um homem ousado, capaz duma ação desesperada, nascer num instante em que o país se acha sem recursos e acossado por inimigos possantes, se o sucesso lhe sorrir, tornar-se-á um semideus; em outra época, dirão dele que é um louco furioso, insensato. É a destinos tão díspares que as mesmas paixões conduzem. Eis o perigo a que se expõe o pai, cujos filhos são suscetíveis de paixões fortes que muitas vezes mudam o mundo. A concordância entre caráter e posto é que faz com que sejam o que são. Tudo depende dessa concordância. Foi sobre este assunto que La Fontaine escreveu: “Um rei prudente e sábio sabe tirar partido de súditos fracos”. Um exemplo. Suponhamos que vague um lugar de confiança. É necessário nomear alguém. Um homem seguro. Aquele que se apresenta é preguiçoso e ainda por cima com pouco espírito. Não importa - gritaria eu ao nomeador -, dê-lhe o lugar. A boa consciência é muitas vezes preguiçosa; a atividade, quando não é acicatada pelo amor da glória, suspeita; o velhaco sempre agitado pelo remorso e temores não para. A vigilância, diz Rousseaux, é a virtude do vício. Estamos prontos a dispor dum lugar que exige assiduidade. O pretendente é maçador, tedioso, pouco sociável; tanto melhor: a assiduidade será a virtude da sensaboria. . . Tão injustos quanto o pai em relação ao filho são os povos do Oriente para com os déspotas; não há povo oriental que não exija do sultão virtudes e luzes. Que pedido mais injusto! Ignorais que os conhecimentos têm por preço muito estudo e meditação? O estudo e a meditação custam esforço: todos fogem ao esforço; cedem à preguiça se não se acham animados por um motivo bastante forte para dela triunfar. Isto é, o desejo da glória. Mas este desejo (como provei no Discurso Terceiro) reside no desejo dos prazeres físicos que a glória e a estima geral proporcionam. Ora, se o sultão, na qualidade de déspota, goza de todos os prazeres que a glória pode prometer aos outros homens, não tem portanto desejos; nada pode acender-lhe o amor da glória; não há motivo suficiente para fazê-lo arriscar-se à maçada dos negócios e à fadiga da atenção necessária para instruir-se. Exigir-lhe conhecimentos é querer que os rios regressem às nascentes e pedir um efeito sem causa. A história justifica esta verdade. Veja-se a da China; revoluções sucedem-se rapidamente; o grande homem que sobe ao trono do império tem como sucessores príncipes nascidos no arminho, que, não tendo, como o pai, motivos poderosos para ilustrar-se, deixam-se ficar indolentemente no seu trono; a partir da terceira geração têm de largá-lo, e só podem queixar-se da preguiça. Darei apenas um exemplo. Li-t-ching, homem de nascimento obscuro, põe-se em armas contra o imperador T-cong-ching, comanda os descontentes, levanta um exército, vai a Pequim e surpreende-o. A imperatriz e as princesas estrangulam-se; o imperador apunhala o filho; retira-se para um lugar escondido do palácio; e é aí que antes de se matar escreve estas palavras no tecido do seu traje: Reinei dezessete anos; fui destronado e só posso ver, no meio desta infelicidade, uma punição do céu, irritado com a minha indolência. Não sou contudo o único culpado; os grandes da minha corte são mais culpados ainda; foram eles que, furtando-me ao conhecimento dos negócios do império, escavaram o abismo em que ora caio. Como poderei aparecer a meus antepassados? Como suportar suas censuras? Ó vós que me reduzis a este estado; tomai meu corpo, despedaçai-o; consinto nisso; mas poupai meu pobre povo; é inocente e já suficientemente infeliz por me ter tido como soberano durante tanto tempo. Muitos outros fatos semelhantes mostram bem que aqueles que nascem armados com poder arbitrário estão condenados à indolência. A atmosfera que reina em torno dos tronos despóticos e dos soberanos que aí tomam assento parece um vapor letárgico que entorpece todas as suas faculdades. Assim, só são grandes reis aqueles que abriram seu caminho ou que foram por muito tempo educados pela infelicidade. Devemos as luzes ao interesse que no-las faz adquirir. Por que é que os pequenos potentados são mais hábeis que os déspotas mais poderosos? É que, por assim dizer, eles têm ainda uma fortuna por realizar; têm ainda que resistir com forças menores a forças superiores. Vivem no perpétuo temor de se verem despojados; e o seu interesse, estreitamente ligado ao dos seus súditos, deve esclarecê-los sobre os diversos aspectos da legislação. Assim, estão sempre ocupados em formar soldados, fazer alianças, em povoar e enriquecer as suas províncias. Assim, partindo daquilo que acabo de afirmar, poder-se-iam traçar, nos diversos impérios do Oriente, mapas geográficos-políticos do mérito dos príncipes. A inteligência medida na escala do poder decresce proporcionalmente à extensão, à força de seu império, à dificuldade de aí penetrar, enfim, à autoridade mais ou menos absoluta que teriam sobre seus súditos quer dizer ao interesse mais ou menos premente que teriam de ser esclarecidos. Esta tabela, uma vez calculada e comparada com a observação, daria certamente resultados bastante justos: os sofis e os mongóis seriam postos entre os príncipes mais estúpidos; e isto porque, salvo circunstâncias singulares, ou o acaso duma boa educação, os homens mais poderosos devem ser os menos esclarecidos. Exigir que um déspota do Oriente se ocupe da felicidade do seu povo, que mantenha o leme do império com mão segura, seria como querer levantar com o braço de Ganimedes a maça de Hércules. Suponhamos que um indiano fizesse algumas críticas sobre o assunto ao seu sultão. "De que te queixas?" - responder-lhe-ia. - "Queres que eu seja mais esclarecido que tu acerca dos teus próprios interesses? Quando me deste o poder supremo, querias que eu esquecesse os prazeres pela honra penosa de fornecer-te a felicidade? Querias que eu e meus sucessores não gozássemos das vantagens inerentes ao poder supremo? Todo homem se prefere aos outros homens; tu mesmo és assim. Exigir que, surdo à voz de minha preguiça, ao grito das minhas paixões, eu as sacrifique aos teus interesses é querer inverter a natureza. Quem imaginará que, tudo podendo, só quisesse a justiça? O sequioso de estima pública procede de outra forma. Concordo. Mas a mim que me importam a estima pública e a glória? Existe prazer dado à virtude e que seja recusado ao poder?" - Contudo, os homens apaixonados pela glória são raros, e não há paixão que passe para seus sucessores. ( ... ) Aquilo que digo dos sultões podia dizê-lo dos seus ministros. As suas luzes são em geral proporcionadas ao interesse que possam ter em adquiri-las. Nos países em que o clamor público pode depô-los, os talentos lhes são imprescindíveis. Adquirem-nos. Nos povos em que o público não é levado em consideração, entregam-se à preguiça e contentam-se com a espécie de mérito que serve para fazer carreira na corte. Acontece com os ministros o mesmo que com os, homens de letras. E uma pretensão ridícula visar ao mesmo tempo a glória e as comendas. (...) O verdadeiro mérito vive longe dos palácios dos reis. Deles só se aproxima naqueles tempos infelizes em que os príncipes são forçados a lançar mão do mérito. Em todas as outras circunstâncias só a necessidade podia chamar à corte pessoas de mérito; e nessa posição poucos há que conservam a mesma força, a mesma elevação de alma e espírito. A necessidade está muito próxima do crime. Do que acabo de dizer resulta que é pedir o impossível exigir grandes talentos àqueles que, por sua posição e classe, não podem estar animados por paixões fortes. Mas tais exigências não são feitas todos os dias? Grita-se contra a corrupção dos costumes; é preciso - diz-se - formar homens virtuosos; e quer-se ao mesmo tempo que os cidadãos sejam aquecidos pelo amor da pátria, e que vejam em silêncio as desgraças que uma má legislação ocasiona? E como pedir ao avarento que não grite quando o ladrão lhe foge com a bolsa. Não se percebe que, em certos países, as denominadas pessoas razoáveis são realmente pessoas indiferentes ao bem público, por conseguinte homens sem virtudes ... APENDICE I DO HOMEM RECAPITULACAO (RESUMO FEITO PELO AUTOR) Depois de haver dito, na exposição desta obra, alguma coisa sobre sua importância, sobre a ignorância em que estamos dos verdadeiros princípios da educação enfim, sobre a aridez desse assunto e sobre a dificuldade de tratá-lo, examino agora: SEÇÃO I "Se a educação necessariamente diferente dos diversos homens não é a causa dessa desigualdade dos espíritos até o presente atribuída à perfeição desigual dos órgãos". Pergunto-me para tanto em que idade começa a educação do homem e quais são seus mestres. Vejo que o homem é discípulo de todos os objetos que o cercam, de todas as posições em que o acaso o coloca, enfim de todos os acidentes que lhe acontecem; Que esses objetos, essas posições e os acidentes não são exatamente os mesmos para todos, e que assim ninguém recebe as mesmas instruções; Que, na suposição impossível de que os homens tivessem os mesmos objetos sob os olhos, esses objetos por não os atingirem absolutamente e no preciso momento em que sua alma se encontra na mesma situação, esses objetos, por conseguinte, não excitariam neles as mesmas ideias; e que, assim, a pretensa uniformidade de instrução recebida, seja nos colégios, seja na casa paterna, é uma dessas suposições cuja impossibilidade é provada, tanto pelo fato como pela influência que um acaso independente dos mestres tem e terá sempre sobre a educação da infância e da adolescência. De acordo com esses dados, considero a extrema extensão dos poderes do acaso. Examino: Se todos os homens ilustres não lhe devem muitas vezes o gosto que têm por este ou aquele gênero de estudo e, por conseguinte, seus talentos e seus sucessos nesse mesmo gênero; Se se pode aperfeiçoar a ciência da educação sem estreitar os limites do domínio do acaso; Se as contradições atuais percebidas entre todos os preceitos da educação não ampliam o domínio desse mesmo acaso; Se essas contradições, de que dou alguns exemplos, não devem ser encaradas como um resultado da oposição que se encontra entre o sistema religioso e o sistema da felicidade pública; Se se poderia tornar as religiões menos destruidoras da felicidade e fundamentá-las em princípios mais conformes ao interesse geral; Quais são esses princípios; Se é possível que um príncipe esclarecido os estabeleça; Se entre as falsas religiões existem algumas cujo culto tenha sido menos contrário à felicidade das sociedades e, por conseguinte, à perfeição da ciência da educação; Se, segundo esses diversos exames e supondo-se que todos os homens tivessem uma mesma aptidão de espírito, a única diferença da sua educação não deveria produzir uma diferença em suas ideias e talentos. Donde se segue que a desigualdade atual dos espíritos não pode ser considerada, nos homens comumente bem organizados, como uma prova demonstrativa de sua aptidão desigual para possuí-las. Examino: SEÇÃO II "Se todos os homens geralmente bem organizados não teriam igual aptidão de espírito". Convenho primeiro em que todas as nossas ideias nos vêm pelos sentidos; que em consequência se deveu considerar o espírito como um puro efeito, ou da maior ou menor agudeza dos cinco sentidos, ou de uma causa oculta ou não determinada a que se deu vagamento o nome de organização; Que para provar a falsidade dessa opinião é preciso recorrer à experiência, "ter uma ideia clara sobre a palavra espírito, distingui-Ia da alma; e, feita essa distinção, observar: Sobre quais objetos o espírito age; Como age; Se todas as suas operações não se reduziriam à observação das semelhanças e das diferenças, das proporções e das desproporções que os diversos objetos têm entre si e conosco e se, por conseguinte, todos os julgamentos feitos sobre os objetos físicos não seriam puras sensações; Se o mesmo não se daria com os julgamentos feitos sobre as ideias às quais se dão os nomes de abstratas, de coletivas, etc.; Se em todos os casos julgar e comparar seria diferente de ver alternativamente, isto é, sentir; Se se pode experimentar a impressão dos objetos sem no entanto compará-los uns aos outros; Se a sua comparação não supõe o interesse em compará-los; Se esse interesse não seria a causa única e ignorada de todas as nossas ideias, nossas ações, nossas dificuldades, nossos prazeres, enfim de nossa sociabilidade. Sobre o que observo que esse interesse se origina, em última análise, na sensibilidade física: que essa sensibilidade, por conseguinte, é o único princípio das ideias e das ações humanas; Que não há nenhum motivo razoável para rejeitar essa opinião; Que uma vez demonstrada e reconhecida como verdadeira essa opinião, deve-se necessariamente encarar a desigualdade dos espíritos como resultado: Ou da extensão desigual da memória; Ou da maior ou menor perfeição dos cinco sentidos; Que de fato não é nem a boa memória nem a extrema agudeza dos sentidos que produz e deve produzir o grande espírito; Que, a respeito da agudeza dos sentidos, os homens comumente bem organizados só diferem na nuança de suas sensações; Que essa ligeira diferença não muda em nada a relação de suas sensações entre si; que essa diferença, por conseguinte, não tem nenhuma influência sobre seu espírito, que só é e só pode ser o conhecimento das verdadeiras relações dos objetos entre si. Causa da diferença entre as opiniões dos homens. Que essa diferença é o resultado da significação incerta e vaga de certas palavras; tais como as De bom, De interesse E de virtude; Que, uma vez que se definam as palavras com exatidão e se consigne sua definição num dicionário, todas as proposições de moral, política e metafísica se tornam tão suscetíveis de demonstração quanto as verdades geométricas; Que, a partir do momento em que se ligarem as mesmas ideias às mesmas palavras, todos os espíritos adotarão os mesmos princípios e deles extrairão as mesmas consequências; Que é impossível, pois os objetos se apresentam a todos nas mesmas relações, comparando esses objetos entre si, os homens (seja no mundo físico, como o prova a geometria, seja no mundo intelectual, como o prova a metafísica) não cheguem aos mesmos resultados; Que a verdade dessa proposição se prova, quer pela semelhança entre os contos de fadas, entre os contos filosóficos, entre os contos religiosos de todos os países, quer pela uniformidade das imposturas empregadas em toda parte pelos ministros das falsas religiões, para aumentar e conservar sua autoridade sobre os povos; De todos esses fatos resulta que, uma vez que a maior ou menor agudeza dos sentidos em nada altera a proporção com que os objetos nos atingem, todos os homens comumente bem organizados têm uma mesma aptidão de espírito. Para multiplicar as provas dessa importante verdade, demonstro-a ainda na mesma seção por outro encadeamento de proposições. Mostro que as ideias mais sublimes, uma vez simplificadas, são, na opinião de todos os filósofos, redutíveis a esta proposição clara: o branco é branco, o preto é preto; Que toda verdade desse tipo está ao alcance de todos os espíritos; que não há, pois, nenhuma, por maior ou mais geral que seja, que, apresentada claramente e separada da obscuridade das palavras, não possa ser igualmente apreendida por todos os homens comum ente bem organizados. Ora, poder igualmente atingir as mais altas verdades é ter uma mesma aptidão de espírito. Tal é a conclusão da segunda seção. SEÇÃO III Seu objeto é a procura das causas a que se pode atribuir a desigualdade dos espíritos. Essas causas se reduzem a duas: Uma é o desejo desigual que os homens possuem de se esclarecer; A outra, a diversidade das posições em que o acaso os coloca: diversidade da qual resulta a de sua instrução e de suas ideias. Para fazer sentir que é apenas a essas duas causas que se deve relacionar tanto a diferença como a desigualdade dos espíritos, provo que a maior parte de nossas descobertas são dons do acaso; Que não são dados a todos os mesmos dons; Que entretanto essa divisão não é tão desigual quanto se pensa; Que quanto a isto é menos o acaso que nos falta, que nós, se assim ouso dizer, é que faltamos ao acaso; Que na verdade todos os homens comumente bem organizados têm igualmente espírito em potência, mas que essa potência está morta dentro deles quando não é posta em ação por uma paixão como o amor pela estima, pela glória, etc.; Que os homens devem apenas a essas paixões a atenção capaz de fecundar as ideias que o acaso lhes oferece; Que sem paixões seu espírito pode, se quisermos, ser considerado como uma máquina perfeita; mas cujo movimento é suspenso até que as paixões o devolvam a ele; Donde concluo que a desigualdade entre os espíritos é nos homens o produto tanto do acaso como da vivacidade desigual de suas paixões. Mas seriam tais paixões o efeito da força de seu temperamento? É o que examino na seção seguinte. SEÇÃO IV Aí demonstro: Que os homens comumente bem organizados são suscetíveis do mesmo grau de paixão; Que a desigualdade de sua força é sempre neles o resultado da diferença das posições em que o acaso os coloca; Que o caráter original de cada homem (como o observa Pascal) é apenas o produto de seus primeiros hábitos; que o homem nasce sem ideias, sem paixões, e sem outras necessidades que não sejam as da fome e da sede, por conseguinte, sem caráter; que este muda muitas vezes sem mudar de organização; que essas mudanças independentes da maior ou menor agudeza de seus sentidos se operam segundo mudanças sobrevindas na sua posição e nas suas ideias; Que a diversidade dos caracteres depende unicamente da maneira diferente como se modifica nos homens o sentimento do amor por si mesmos; Que esse sentimento, efeito necessário da sensibilidade física, é comum a todos, que produz em todos o amor pelo poder; Que esse desejo aí engendra a inveja, o amor pelas riquezas, pela glória, pela consideração, pela justiça, pela virtude, pela intolerância, enfim todas as paixões factícias cujos nomes diversos designam apenas as diversas aplicações do amor pelo poder. Provada essa verdade, mostro, numa breve genealogia das paixões, que, se o amor pelo poder é apenas um simples resultado da sensibilidade física, e se todos os homens comumente bem organizados são sensíveis,• todos são, por conseguinte, suscetíveis da espécie de paixão capaz de pôr em ação a mesma aptidão de espírito que possuem .. Mas podem essas paixões acender-se tão vivamente em todos? O que se pode garantir é que o amor pela glória pode se exaltar no homem ao mesmo grau de força que o sentimento do amor por si mesmo; é que a força desse sentimento é em todos os homens mais que suficiente para dotá-los do grau de atenção que a descoberta das mais altas verdades exige; é que o espírito humano, por conseguinte, é suscetível de perfectibilidade e que enfim nos homens comumente bem organizados a desigualdade dos talentos só pode ser um simples resultado da diferença de sua educação, diferença na qual incluo a das posições em que o acaso os coloca. SEÇÃO V O que aí me proponho é mostrar os erros e as contradições daqueles que adotam sobre essa questão princípios diferentes dos meus, e que relacionam a superioridade desigual dos espíritos à perfeição desigual dos órgãos dos sentidos. Ninguém melhor que Rousseau escreveu sobre essa matéria; cito-o, pois, como exemplo: faço ver que, sempre contrário a si mesmo, encara ora o espírito e o caráter como o resultado da diversidade dos temperamentos, ora adota a opinião contrária; Que de suas contradições sobre esse assunto resulta: Que a virtude, a humanidade, o espírito e os talentos são aquisições; Que a bondade não é de modo algum herança de berço do homem; Que as necessidades físicas são nele sementes de crueldade; Que a humanidade, por conseguinte, é sempre o produto, ou do temor ou da educação; Que Rousseau, segundo suas primeiras contradições, cai sem cessar em novas; que julga alternadamente a educação útil e inútil. Do uso adequado que se pode fazer na instrução pública de algumas ideias de Rousseau. Que, segundo esse autor, não se deve julgar a infância e a primeira juventude desprovidas de juízo. Das pretensas vantagens da idade madura sobre a adolescência; que são nulas. Dos elogios feitos por Rousseau à ignorância; motivos que o determinaram a se transformar no apologista dela. Que as luzes jamais contribuíram para a corrupção dós costumes; que o próprio Rousseau não acreditava nisto. Das causas da decadência dos impérios: que entre essas causas não se pode citar a perfeição das artes e das ciências; E que sua cultura retarda a ruína de um império despótico. SEÇÃO VI Aí considero os diversos males produzidos pela ignorância. Aí provo que a ignorância não é de modo algum destruidora da fraqueza; Que ela não garante de modo algum a fidelidade dos súditos; Que ela julga sem exame as questões mais importantes. Aí cito a questão do luxo como exemplo. Provo que não se pode resolver essa questão sem comparar uma infinidade de objetos uns com os outros; Sem atribuir primeiramente ideias claras à palavra luxo; sem examinar em seguida: Se o luxo não seria útil e necessário; se supõe sempre intemperança numa nação. Da causa de luxo: se o luxo não seria ele próprio resultado das calamidades públicas de cuja autoria o acusamos; Se para conhecer a verdadeira causa do luxo não se deve remontar à formação das sociedades, aí seguir os resultados da grande multiplicação dos homens; Observar se essa multiplicação não produz entre eles divisão de interesse; e essa divisão, uma distribuição por demais desigual das riquezas nacionais. Dos efeitos produzidos, quer pela divisão muito desigual do dinheiro, quer por sua introdução num império. Dos bens e dos males que ela aí ocasiona. Da causa da grande desigualdade das fortunas. Dos meios de se opor à reunião demasiado rápida das riquezas nas mesmas mãos. Dos países onde o dinheiro não está em circulação. Quais são nesses países os princípios que produzem a virtude. Dos países onde o dinheiro está em circulação. Que o dinheiro se torna aí o objeto comum do desejo dos homens e o princípio produtor de suas ações e de sua virtude. Do momento em que, semelhantes aos mares, as riquezas abandonam certas regiões. Do estado em que se encontra então uma nação. Do estúpido entorpecimento que aí substitui a perda das riquezas. Dos diversos princípios da atividade das nações. Do dinheiro considerado como um desses princípios. Dos males que ocasiona o amor pelo dinheiro. Se, no estado atual da Europa, o magistrado esclarecido deve desejar o pronto enfraquecimento desse princípio de atividade; Que não é absolutamente no luxo, mas na sua causa produtora, que se deve procurar o princípio destruidor dos impérios; Se se pode dar demasiada atenção ao exame das questões dessa espécie. Se nessas questões os julgamentos precipitados da ignorância não arrastam muitas vezes uma nação às maiores infelicidades; Se, consequentemente, pelo que acabo de dizer, não se deve ódio e desprezo aos protetores da ignorância e geralmente a todos aqueles que, opondo-se aos progressos do espírito humano, prejudicam a perfeição da legislação; por conseguinte, a felicidade pública, dependendo unicamente da bondade das leis. SEÇÃO VII É a excelência das leis e não, como alguns pretendem, a pureza do culto religioso que pode garantir a felicidade e a tranquilidade dos povos. Da pouca influência das religiões sobre as virtudes e a felicidade das nações. Do espírito religioso, destruidor do espírito legislativo. Que uma religião verdadeiramente útil forçaria os cidadãos a se instruírem; Que os homens não agem de modo algum em consequência de sua crença, mas de sua vantagem pessoal; Que uma maior consequência sobre seus espíritos tornaria a religião católica mais prejudicial; Que em geral os princípios especulativos têm pouca influência sobre a conduta dos homens; que obedecem apenas às leis de seu país, e a seu interesse; Que nada prova melhor o poder prodigioso da legislação do que o governo dos jesuítas; Que ele forneceu a esses religiosos os meios de fazerem os reis tremerem e de executarem os maiores atentados. Dos grandes atentados. Que esses atentados podem ser igualmente inspirados pelas paixões pela glória, pela ambição e pelo fanatismo. Do meio de distinguir a espécie de paixão que os comanda. Do momento em que o interesse dos jesuítas lhes ordena grandes crimes. Qual seita na França podia opor-se a seus empreendimentos. Que apenas o jansenista podia destruir os jesuítas; Que sem os jesuítas não se teria jamais conhecido todo o poder da legislação; Que para levá-la à perfeição é preciso, ou, como um São Bento, ter uma ordem religiosa, ou, como um Rômulo e um Penn, ter um império ou uma colônia a fundar; Que numa outra posição qualquer o gênio legislativo, constrangido pelos costumes e os preconceitos já estabelecidos, não pode ter certo impulso, nem ditar as leis perfeitas cujo estabelecimento proporcionaria às nações a maior felicidade possível; Que para resolver o problema da felicidade pública seria preciso conhecer preliminarmente o que constitui essencialmente a felicidade do homem. SEÇÃO VIII Em que consiste a felicidade do indivíduo e, por conseguinte, a felicidade nacional necessariamente composta de todas as felicidades particulares. Que para resolver esse problema político é preciso examinar se em todo tipo de condição os homens podem ser igualmente felizes, isto é, preencher de uma maneira igualmente agradável todos os instantes de seu dia. Do horário. Que esse horário é aproximadamente o mesmo em todas as profissões; Que, se os impérios são povoados apenas por desafortunados, isto é resultado da imperfeição das leis e da divisão muito desigual das riquezas; Que se pode dar aos cidadãos mais facilidades; que estas moderariam neles o desejo excessivo das riquezas. Dos diversos motivos que agora justificam esses desejos. Que entre esses motivos um dos mais poderosos é o medo ao tédio; Que a doença do tédio é mais comum e mais cruel do que se imagina. Da influência do tédio sobre os costumes dos povos e a forma de seus governos. Da religião e de suas cerimônias consideradas como remédio contra o tédio. Que o único remédio contra esse mal são sensações vivas e distintas. Daí nosso amor pela eloquência, pela poesia e por todas essas artes recreativas cujo objeto é excitar essas espécies de sensações. Prova detalhada dessa verdade. Das artes recreativas, de sua impressão sobre o ocioso opulento; que elas não podem arrancá-lo ao tédio; Que os mais ricos são em geral os mais entediados, porque são passivos em quase todos os seus prazeres; Que os prazeres passivos são em geral os mais curtos e os mais custosos; Que em consequência é ao rico que se faz mais vivamente sentir a necessidade das riquezas; Que ele desejaria sempre ser movido sem se dar ao trabalho de se mexer; Que ele não tem motivo para se arrancar de uma ociosidade à qual uma fortuna medíocre subtrai necessariamente os outros homens. Da associação das ideias de felicidade e de riqueza em nossa memória; que essa associação é um resultado da educação; Que uma educação diferente produziria o efeito contrário; Que portanto, sem ser igualmente ricos e poderosos, os cidadãos seriam e poderiam mesmo se acreditar igualmente felizes. Da utilidade longínqua desses princípios. Que, uma vez convencido dessa verdade, não se deve mais encarar a infelicidade como inerente à própria natureza das sociedades, mas como um acidente ocasionado pela imperfeição de sua legislação. SEÇÃO IX Da possibilidade de indicar um bom plano de legislação. Dos obstáculos que a ignorância coloca para a sua publicação. Do ridículo que ela lança sobre toda ideia nova e todo estudo aprofundado sobre a moral e a política. Do ódio do ignorante por toda reforma. Da dificuldade de fazer boas leis. Das primeiras questões a serem feitas sobre esse assunto. Sejam de que espécie forem, ainda que fosse um luxo de prazer, as recompensas não corromperam jamais os costumes. Do luxo do prazer. Que todo prazer discernido pelo reconhecimento público faz querer a virtude, faz respeitar as leis cuja subversão, como alguns pretendem, não é jamais o resultado da inconstância do espírito humano. Das verdadeiras causas das mudanças ocorridas nas leis dos povos. Que essas mudanças se originam na imperfeição dessas mesmas leis, na negligência dos administradores que não sabem nem conter a ambição das nações vizinhas pelo terror das armas, nem a de seus concidadãos pela sabedoria dos regulamentos, e que, educados, aliás, em preconceitos prejudiciais, favorecem a ignorância das verdades cuja revelação garantiria a felicidade pública; Que a revelação da verdade não é jamais funesta a não ser para aquele que a diz; Que seu conhecimento útil às nações jamais lhes perturbou a paz; Que uma das maiores provas dessa afeição é a lentidão com que a verdade se propaga. Dos governos. Que em nenhum a felicidade do príncipe está, como se acredita, ligada à infelicidade dos povos; Que se deve a verdade aos homens; Que a obrigação de dizê-la supõe o livre emprego dos meios de a descobrir; Que, privadas dessa liberdade, as nações atolam na ignorância. Dos males que produz a indiferença pela verdade. Que o legislador, como alguns o pretendem, não é jamais forçado a sacrificar a felicidade da geração presente à da geração futura; Que essa suposição é absurda; Que se deve incitar os homens a procurar a verdade tanto mais que, em geral, são indiferentes a ela, julgando uma opinião verdadeira ou falsa de acordo com o interesse que têm em acreditá-la deste ou daquele modo; Que esse interesse lhes faria negar, de acordo com a necessidade, a verdade das demonstrações geométricas; Que ele faz com que estimem em si a crueldade que detestam nos outros; Que ele os faz respeitar o crime; Que ele faz santos; Que ele, prova aos grandes a superioridade de sua espécie sobre a dos outros homens; Que ele faz honrar o vicio num protetor; Que o interesse do poderoso comanda mais imperiosamente que a verdade as opiniões gerais; Que um interesse secreto sempre ocultou aos parlamentos a conformidade da moral dos jesuítas e do catolicismo; Que o interesse faz negar diariamente esta máxima: "Não faças a outrem aquilo que não desejarias que te fizessem"; Que ele furta ao conhecimento do padre, homem de bem, tanto os males produzidos pelo catolicismo, como os projetos de uma seita, intolerante porque é ambiciosa, e regicida porque é intolerante. Dos meios empregados pela Igreja para escravizar as nações. Do tempo em que a Igreja Católica deixa repousar suas pretensões. Do momento em que as faz reviver. Das pretensões da Igreja provadas pelo direito. Dessas mesmas pretensões provadas pelo fato. Dos meios de encadear a ambição eclesiástica. Que apenas o tolerantismo pode contê-la; pode, esclarecendo os espíritos, assegurar a felicidade e a tranquilidade dos povos, cujo caráter é suscetível de todas as formas que lhe dão as leis, o governo e sobretudo a educação pública. SEÇÃO X Do poder da educação; dos meios de aperfeiçoá-la; dos obstáculos que se opõem aos progressos dessa ciência. Da facilidade com a qual, removidos esses obstáculos, se traçaria o plano de uma excelente educação. Da educação. Que ela tudo pode; Que os príncipes são, como os particulares, o produto de sua instrução; Que se podem esperar grandes príncipes apenas por uma grande mudança em sua educação. Das principais vantagens da instrução pública sobre a doméstica. Ideia geral sobre a educação física do homem. Em que momento e em que posição o homem é suscetível de uma educação moral. Da educação relativa às diversas profissões. Da educação moral do homem. Dos obstáculos que se opõem à perfeição dessa parte da educação. Interesse do padre, primeiro obstáculo. Imperfeição da maioria dos governos, segundo obstáculo. Que toda reforma importante na parte moral da educação supõe uma reforma nas leis e na forma do governo; Que, feita essa reforma, e removidos os obstáculos que se opõem aos progressos da instrução, o problema da melhor educação possível está resolvido. O que me proponho nos quatro capítulos seguintes é provar a analogia de minhas opiniões com as de Locke; Fazer sentir toda a importância e a extensão do princípio da sensibilidade física; Responder à censura de materialismo e de impiedade; Mostrar todo o absurdo dessas acusações, e a impossibilidade a todo moralista instruído de escapar quanto a isto às censuras eclesiásticas. APENDICE II OS PROGRESSOS DA RAZÃO NA INVESTIGAÇÃO DO VERDADEIRO Antes de querer investigar a origem das coisas, é preciso ter a coragem e a força de espírito necessárias, estar isento de todo preconceito e somente ter a razão por guia e a verdade por objeto. O homem sábio não qualificará de temerário a quem ouse sustentar que, enquanto os efeitos se manifestam a nossos olhos, suas causas deverão sempre permanecer numa obscuridade impenetrável. Quem assistiu à formação das essências? Quem traçou limites ao espírito humano? Quem determinou a medida do seu alcance? ( ... ) (Do Prefácio) Na minha infância, fui educado dentro dos preconceitos da moda. Todo homem que não reflete permanece todo o tempo de sua vida dentro desses mesmos preconceitos. Esses preconceitos são os obstáculos mais funestos ao conhecimento dos homens. Predispostos por paixões de tal ou qual espécie, seja devoção, intemperança, rancor, amor, orgulho, ciúme, curiosidade, eles não veem quase nada no seu estado natural; o objeto está sempre disfarçado pelo colorido intermediário, através do qual é percebido. Para remediar esses inconvenientes, é necessário esperar até que a disposição dos sentidos mude, até que ela seja reestabelecida num justo equilíbrio; e então a percepção será de um tipo bem diferente, tanto quanto a determinação do juízo. Refletindo e estudando-me a mim mesmo, tive a felicidade de me desembaraçar de todos esses preconceitos e de vencê-los; reconheci que o que se chama natureza não pode ser nem conter outra coisa senão a inteligência e a matéria. Essa inteligência é o único objeto que devemos reconhecer como o verdadeiro Deus, e o único de que toda a natureza depende. É esta inteligência suprema que dá o movimento e a vida a toda a matéria; não há um átomo dessa matéria que não seja dependente dessa inteligência infinita, que não seja por ela governado e regido. ( ... ) Mas o que é uma ideia? O que é uma sensação, uma vontade?, etc. É eu percebendo, eu sonhando, eu querendo. Sabe-se enfim que não existe ente real chamado ideia, do mesmo modo que não existe um ente real chamado movimento, mas existem corpos em movimento. Assim também não há um ente particular chamado memória, imaginação, juízo; nós é que nos lembramos, imaginamos, julgamos. Tudo isso é incontestavelmente verdadeiro. Agora, como o Ser inteligente e todo-poderoso produz todos esses modos nos seres organizados? Terá posto dois seres num grão de trigo, dos quais um fará germinar o outro? Terá posto dois seres num cervo, dos quais um fará o outro correr? Não, sem dúvida; mas o grão tem a faculdade de vegetar, e o cervo de correr. O que é a vegetação? f: movimento na matéria. O que é esta faculdade de correr? É o arranjo dos músculos que, presos a alguns ossos, levam para diante outros ossos ligados a outros músculos, ( ... ) Terá o autor da natureza preparado com uma arte tão divina estes instrumentos tão maravilhosos; terá ele posto relações tão surpreendentes entre os olhos e a luz, entre o ar e os ouvidos, para que ainda tivesse necessidade de acabar essa obra com outro recurso? A natureza age sempre pela via mais curta, A demora do procedimento é uma impotência, a multiplicidade dos recursos é uma fraqueza. Tudo preparado para a visão e para a audição, tudo o está para os outros sentidos, com uma arte tão industriosa e tão maravilhosa. Será o Ser supremo um artesão tão ruim que um animal formado por ele para ver e para ouvir não possa, entretanto, nem ouvir nem ver, se não se coloca nele um terceiro personagem interno, que se desincumba por conta própria dessas funções? Não pode a Inteligência suprema nos dar as sensações de vez, depois que nos deu os admiráveis instrumentos da sensação? Ela o fez, convenhamos, em todos os animais: ninguém é louco a ponto de imaginar que haja num coelho, num galo, um ente oculto que veja, que ouça, que fareje, que aja por eles. A incontável massa dos animais desfruta de seus sentidos por leis universais; essas leis são comuns a eles e a nós. Encontro um urso numa floresta: ele ouviu minha voz assim como ouvi o seu urro; viu-me com seus olhos, como o vi com os meus. Tem o instinto de comer-me, como tenho o instinto de me defender ou de fugir. Vão me dizer: espere, o urso precisa só de seus órgãos para tudo isso; mas, para você, é outra coisa; não são absolutamente seus olhos que o viram, não são seus ouvidos que o ouviram; não é o jogo de seus órgãos que o dispõe a evitá-lo ou a combatê-lo: é preciso consultar uma pequena pessoa que está no seu cérebro, sem a qual você não pode nem ver, nem ouvir esse urso, nem evitá-lo, nem defender-se? Por certo, se os órgãos dados pela inteligência universal aos animais lhes bastam, não há nenhuma razão para resolver acreditar que os nossos não nos bastam; e que para além da inteligência universal ainda precisamos de um terceiro para operar. Se existem casos onde esse terceiro é útil, não é no fundo absurdo admiti-lo em outros casos? Concede-se que fazemos uma infinidade de movimentos sem o recurso a esse terceiro, Nossos olhos se fecham rapidamente com o súbito lampejo de uma luz imprevista; nossos braços e nossas pernas se arranjam em equilíbrio com o medo de uma queda; mil outras operações demonstram pelo menos que nem sempre um terceiro preside à ação dos nossos órgãos. (...) Mas houve um bom entendimento quando se disse que havia no homem um pequenino ser que comanda pés e mãos e que não pode comandar o coração, o estômago, o fígado e o pâncreas? E esse pequenino ser não existe nem no elefante, nem no símio, que fazem uso de seus membros exteriores tanto quanto nós, e que são escravos de suas vísceras tanto quanto nós. Foi-se ainda mais longe, falou-se: não há nenhuma relação entre os corpos e uma sensação; são coisas inteiramente diferentes; a Inteligência suprema estaria, portanto, ordenando em vão à luz que penetre em nossos olhos para nos fazer ver, e às partículas elásticas do ar que entrem em nossos ouvidos para nos fazer ouvir, se a Inteligência não tivesse colocado, no nosso cérebro, um ser capaz de receber essas percepções. Esse ser, conforme se disse, tem de ser simples; é puro, intangível; está num lugar, sem ocupar espaço; não pode ser tocado, e recebe impressões; não tem absolutamente nada da matéria; é continuamente afetado pela matéria. Em seguida se disse: este pequenino personagem que não pode ter nenhum lugar, estando localizado no nosso cérebro, não pode na verdade ter qualquer sensação por si mesmo, nenhuma ideia pelos próprios objetos. O Ser inteligente rompeu, portanto, essa barreira que o separa da matéria e quis que ele tivesse sensações e ideias na ocasião da matéria. A Inteligência suprema quis que ele visse quando nossa retina fosse pintada pela luz, e que ouvisse quando nosso tímpano fosse estimulado. É verdade que todos os animais recebem suas sensações sem o recurso a esse pequeno ser; mas é necessário dar um ao homem; é mais nobre: o homem combina mais ideias do que os outros animais; é necessário portanto que ele tenha suas ideias e suas sensações de modo diferente do deles. Se isso é assim, Senhores, com que vantagem o autor da natureza investiu tanto esforço? Se esse pequeno ser que os senhores localizam no cérebro não pode, pela própria natureza, nem ver nem ouvir, se não há nenhuma proporção entre os objetos e ele, não haveria necessidade nem de olho, nem de ouvido, nem tímpano, nem martelo; a bigorna, a córnea, a úvea, o cristalino, a retina, tudo isso seria absolutamente inútil. Uma vez que esse pequeno personagem não tem nenhuma conexão, nenhuma analogia, nenhuma proporção com qualquer arranjo de matérias, esse arranjo se torna inteiramente supérfluo. O Ser supremo só teria que dizer: você terá o sentimento da visão, do ouvido, do paladar, do cheiro, do tato - sem que ele disponha de qualquer instrumento, de qualquer órgão. A opinião de que haja no cérebro humano um ser, um personagem estranho que não existe nos outros cérebros, está, portanto, pelo menos sujeita a muitas dificuldades; ela contradiz qualquer analogia, ela multiplica os seres sem necessidade; ela transforma todo o artifício do corpo humano numa obra vã e enganosa. ( ... ) Inventou-se a palavra alma para exprimir fracamente as energias de nossa vida; como a vegetação é uma palavra da qual nos servimos para significar a maneira inexplicável pela qual a Inteligência suprema faz com que as plantas tirem os sucos da terra. Todos os animais se movem, e esse poder de se mover é o que se chama de força ativa; mas não existe um ser distinto que seja a força; essa força deve portanto vir de outra parte? Temos paixões, memória, razão; mas essas paixões, essa memória, essa razão não são certamente coisas à parte; não são seres que existem em nós; não são pequenas pessoas que tenham uma existência particular, são palavras genéricas, inventadas para fixar nossas ideias. A alma, que significa nossa memória, nossa razão, nossas paixões, não é, pois, ela mesma mais do que uma palavra. ( ... ) O que seria essa alma que se confere tão livremente a nosso corpo? De onde viria? Seria necessário que esta Inteligência suprema estivesse continuamente na espreita da cópula entre homens e mulheres; que ela observasse atentamente o momento no qual uma semente deixa o corpo do homem e entra no corpo de uma mulher, e que então ela enviasse rápido uma alma para essa semente? E, se a semente morre, o que será dessa alma, Ela terá sido criada inutilmente, ou aguardará outra ocasião. Eis aí, vos confesso, uma estranha ocupação para o mestre da natureza; não só é necessário que ele esteja sempre vigiando a copulação da espécie humana, mas é necessário que faça o mesmo com todos os animais, já que eles têm memória, ideias, paixões tanto quanto nós; e se uma alma é necessária para formar esses sentimentos, essa memória, essas paixões, é necessário que a Inteligência suprema trabalhe continuamente para forjar almas para todos os animais da natureza. Que conceito posso ter do artesão de globos, que seria obrigado, continuamente, a fazer cavilhas invisíveis para perpetuar sua obra? Para que me serviria essa alma, uma vez que sou animado pela própria Inteligência suprema? Eis uma parte muito pequena das razões que podem me fazer duvidar da sua existência. Não somos nós que nos damos ideias, temo-Ias quase sempre apesar de nós; temo-Ias quando estamos dormindo; tudo se faz em nós sem que intervenhamos. A alma estaria em vão dizendo ao sangue e aos espíritos animais: corra, eu vos peço, dessa maneira, para me agradar; eles circulariam sempre da maneira que lhes foi prescrita pela Inteligência suprema. Prefiro antes ser a máquina desta Inteligência que me foi demonstrada, a ser a máquina de uma alma da qual duvido.