Claude-Adrien Helvétius - Cartas l - CARTA A MONTESQUIEU (1748) Sobre seu manuscrito do Espírito das Leis. Reli até três vezes, meu caro presidente, o manuscrito que me mandastes comunicar. Vós me fizestes ficar vivamente interessado nessa obra em Brede. Não a conhecia em seu conjunto. Não sei se nossas cabeças francesas serão bastante amadurecidas para apreender-lhe todas as grandes belezas; quanto a mim, elas me arrebatam. Admiro a grandeza do espírito que as criou, e a profundidade das pesquisas às quais ti vestes de vos entregar para fazer jorrar luz nessa confusão de leis bárbaras das quais sempre acreditei haver tão pouco proveito a ser tirado para a instrução e a felicidade dos homens. Eu vos imagino, como o herói de Milton, embaralhando-vos no meio do caos, sair vitorioso das trevas. Vamos ser, graças a vós, bem instruídos acerca do espírito das legislações gregas, romanas, vândalas e visigodas; conheceremos o dédalo tortuoso através do qual o espírito humano se arrastou para civilizar alguns infelizes povos oprimidos por tiranos ou charlatães religiosos. Dizeis: eis o mundo, como foi governado, e como ainda se governa. Vós lhe emprestais frequentemente uma razão e uma sabedoria que no fundo é apenas a vossa e a respeito das quais ele ficaria bem surpreso por lhe fazerdes as honras. Compondes com o preconceito, como um rapaz ao entrar para a sociedade emprega com as velhas mulheres que têm ainda pretensões e junto às quais só pretende ser cortês e parecer bem educado. Mas será que não o adulais demais? Para os padres, admito. Dando o seu bocado a esses cérberos da Igreja, vós os fazeis calar-se sobre a vossa religião; sobre o resto, não vos entenderão. Nossos togados não estão em estado nem de vos ler, nem de vos julgar. Quanto aos aristocratas, e a nossos déspotas de todo tipo, se vos entendem não vos devem apreciar muito; é a censura que sempre fiz a vossos princípios. Lembrai-vos que discutindo em Brede eu convinha convosco que eles se aplicavam ao estado atual; mas que um escritor que quisesse ser útil aos homens devia preocupar-se mais com máximas verdadeiras numa ordem melhor de coisas futuras do que se dedicar àquelas que são perigosas, do momento que o preconceito delas se apodera para usá-los e perpetuá-los. Empregar a filosofia para dar-lhes importância é dar ao espírito humano um andamento retrógrado e eternizar abusos que o interesse e a má fé são apenas muito hábeis em fazer valer. A ideia da perfeição diverte nossos contemporâneos, mas ela instrui a juventude e serve à posteridade. Se nossos descendentes possuem senso comum, duvido que se acomodem a nossos princípios de governo e que se adaptem a constituições, sem dúvida melhores que as nossas, vossos balanços complicados de poderes intermediários. Os próprios reis, se ficarem mais esclarecidos acerca de seus verdadeiros interesses (e por que não o perceberiam?), procurarão, desembaraçando-se desses poderes, fazer com mais segurança sua felicidade e a de seus súditos. Ao passo que na Europa, hoje a menos pisada das quatro partes do mundo, que é um soberano, enquanto que todas as fontes de rendas públicas se perderam nos cem mil canais da feudalidade, que os desvia incessantemente de seu lucro? A metade da nação se enriquece com a miséria da outra; a nobreza insolente faz cabala e o monarca que ela adula é ele mesmo oprimido sem que o perceba. A história bem meditada é uma lição perpétua disto. Um rei cria para si ordens intermediárias; logo eles são os mestres e os tiranos de seu povo. Como conteriam o despotismo? Eles só apreciam a anarquia e são ciosos apenas de seus privilégios, sempre opostos aos direitos naturais daqueles que oprimem. Eu vos disse, e o repito, meu caro amigo, vossas combinações de poderes só fazem separar e complicar os interesses individuais em lugar de uni-los. O exemplo do governo inglês vos seduziu. Estou longe de pensar que essa constituição seja perfeita. Teria muita coisa a vos dizer sobre esse assunto. Esperemos, como dizia Locke ao Rei Guilherme, que reveses estrepitosos, que terão como causa o vício dessa instituição, nos tenham feito sentir seus perigos; que a corrupção, que se tornou necessária para vencer a força de inércia da câmara alta, seja estabelecida pelos ministros nas comunas, e não faça mais ninguém enrubescer: então ver-se-á o perigo de um equilíbrio que será preciso romper sem cessar para acelerar ou retardar os movimentos de uma máquina tão complicada. Com efeito, em nossos dias não se chegou ao ponto de que foram precisos impostos para subvencionar parlamentos, que dão ao rei o direito de arrecadar impostos do povo? A própria liberdade de que goza a nação inglesa estará exatamente dentro dos princípios dessa constituição, mais do que em duas ou três boas leis que não dependem dela, que os franceses poderiam dar a si, e que somente elas tornariam talvez seu governo mais suportável? Estamos ainda longe de pretendê-lo, Nossos padres são demasiado fanáticos e nossos nobres demasiado ignorantes para se tornarem cidadãos e sentirem as vantagens que teriam em ser e formar uma nação. Cada um sabe que é escravo, mas vive na esperança de ser um subdéspota por sua vez. Um rei é também escravo de suas amantes, de seus protegidos e de seus ministros. Se ele se zanga, o pontapé que recebem seus cortesãos se devolve e se propaga até o último grosseirão. Eis, imagino, num governo o único emprego ao qual podem servir os intermediários. Num país governado pelas fantasias de um chefe, esses intermediários que o importunam procuram ainda enganá-lo, impedi-lo de ouvir as confissões e as queixas do povo sobre os abusos de que apenas eles aproveitam. Será que é o povo, que se queixa, que achamos perigoso? Não: é aquele que não se ouve. Nesse caso, as únicas pessoas a temer numa nação são aquelas que a impedem de ser ouvida. O mal chega ao auge quando o soberano, apesar das bajulações dos intermediários, é forçado a ouvir os gritos de seu povo que chegam até ele. Se ele não os remedia prontamente, a queda do império está próxima. Ele pode perceber tarde demais que seus cortesãos o enganaram. Como podeis ver, por intermediários eu entendo os membros dessa vasta aristocracia de nobres e de sacerdotes cuja cabeça repousa em Versalhes, que usurpa e multiplica à vontade quase todas as funções do poder, pelo único privilégio do nascimento, sem direito, sem talento, sem mérito; e retém na sua dependência até o soberano a quem ela impõe a sua vontade e faz mudar de ministro de acordo com a conveniência de seus interesses. Terminarei, meu caro presidente, por vos confessar que nunca compreendi direito as sutis distinções, repetidas sem cessar, sobre as diferentes formas de governo. Só conheço duas espécies: os bons e os maus. Os bons que estão ainda por fazer; os maus, em que toda a arte consiste, por diferentes meios, em passar o dinheiro da parte governada à bolsa da parte governante. Aquilo que os governos antigos arrebatavam pela guerra, nossos modernos obtêm com mais segurança pelo fiscalismo. É apenas a diferença desses meios que constitui sua variedade. Creio no entanto na possibilidade de um bom governo em que, respeitadas a liberdade e a propriedade do povo, ver-se-ia resultar o interesse geral, sem todos os vossos balanços, do interesse particular. Seria uma máquina simples, cujas molas, fáceis de dirigir, não exigiriam esse grande aparato de engrenagens e de contrapesos tão difíceis de consertar pelas pessoas inábeis, que se intrometem o mais das vezes no governo. Elas querem fazer tudo e agir sobre nós como sobre uma matéria morta e inanimada que moldam a seu bel-prazer, sem consultar nem nossas vontades nem nossos verdadeiros interesses, o que revela sua tolice e ignorância. Depois disso surpreendem-se de que o excesso dos abusos provoque a reforma deles; atribuem a tudo, menos à sua inabilidade, o movimento bastante rápido que as luzes e a opinião pública imprimem aos negócios. Ouso predizê-lo: atingimos essa época. Eu sou, etc. 2 - CARTA A M. SAURIN (1748) Sobre o manuscrito do Espírito das Leis Como havíamos combinado, escrevi, meu caro Saurin, ao presidente sobre a impressão que seu manuscrito causou em vós assim como em mim. Envolvi meu julgamento com todas as deferências do interesse e da amizade. Ficai tranquilo, nossas opiniões não o feriram de modo algum. Ele aprecia em seus amigos a franqueza que usa para com eles. Aceita de bom grado as discussões, responde a elas com chistes e raramente muda de opinião. (...) Custe o que custar, é preciso ser sincero com seus amigos. Quando o dia da verdade brilha e desengana o amor-próprio, não convém que eles possam nos censurar por ter sido menos severos que o público. Eu vos envio a resposta, pois não podeis vir buscar-me no campo. Vereis que ela é aquilo que eu havia previsto. Vereis que ele tinha necessidade de um sistema que ligasse todas as suas ideias e que, não querendo perder nada daquilo que havia pensado, escrito ou imaginado desde a juventude, segundo as disposições particulares em que se encontrava, teve de se deter naquilo que menos contrariava as opiniões recebidas. Com o tipo de espírito de Montaigne, ele conservou seus preconceitos de homem de toga e de fidalgo: esta é a origem de todos os seus erros. Seu belo talento o havia elevado na juventude até as Cartas Persas. Com mais idade, parece ter-se arrependido de ter dado pretexto ao desejo de prejudicar sua ambição. Preocupou-me mais em justificar as ideias recebidas do que com o cuidado de estabelecer novas e mais úteis. Seu estilo é deslumbrante. É com a mais elevada arte do talento que formou a liga das verdades e dos preconceitos. Muitos de nossos filósofos poderão admirá-la como uma obra-prima. Essas matérias são novas para todos os espíritos; e, quanto menos vejo contraditores e bons juízes, tanto mais receio que nos desencaminhe por muito tempo. Mas que diabo quer ele nos ensinar com seu Tratado das Leis? Será uma matéria que um espírito sábio e razoável devia tentar destrinçar? Que legislação pode resultar desse caos bárbaro de leis estabelecidas pela força, repetidas pela ignorância e que se oporão sempre a uma boa ordem de coisas? Sem os conquistadores que tudo destruíram, em que pé estaríamos com todas essas mixórdias de instituições? Teríamos então herdado todos os erros acumulados desde a origem do gênero humano? Elas ainda nos governariam e, transformadas em propriedade do mais forte e do mais velhaco, seria um terrível remédio sermos desembaraçados disso pela conquista. É no entanto o único meio, se a voz dos sábios se mistura com o interesse dos poderosos, para erigi-los em propriedades legítimas. E que propriedades senão aquelas de uma minoria, prejudiciais a todos, àqueles mesmos que as possuem e que elas corrompem pelo orgulho e a vaidade? Com efeito, se o homem só é feliz por virtudes e luzes asseguradas pelo princípio, que virtudes e que talentos esperar de uma ordem de homens que desfrutam de tudo e podem pretender a tudo na sociedade pelo simples privilégio de seu nascimento? O trabalho da sociedade só será feito para eles; todos os lugares lucrativos e honrosos lhes serão destinados. O soberano governará apenas por eles e tirará subsídios de seus súditos apenas para eles. Não é isto subverter todas as ideias do bom senso e da justiça? É essa ordem abominável que falseia tantos bons espíritos e desnatura entre nós todos os princípios de moral pública e particular. O espírito de corporação invade-nos de todas as partes. Sob o nome de corporação, é um poder que se erige às custas da grande sociedade. E por usurpações hereditárias que somos governados. Sob o nome de franceses existem apenas corporações de indivíduos e nenhum cidadão que mereça esse título. Os próprios filósofos desejariam formar corporações. Mas, se eles favorecem o interesse particular às custas do interesse comum, eu o predigo, seu reino não será longo. As luzes que terão difundido iluminarão cedo ou tarde as trevas com que envolverão os preconceitos; e nosso amigo Montesquieu, despojado de seu título de sábio e de legislador, não passará de um homem de toga, fidalgo e um homem de talento. Eis o que me aflige quanto a mim e quanto à humanidade que ele teria podido servir melhor. Sou, etc.