Étienne Bonnot de Condillac – Tratado dos Sistemas CAPÍTULO I Que se deve distinguir três espécies de sistemas Um sistema não é outra coisa que a disposição das diferentes partes de uma arte ou de uma ciência numa ordem onde elas se sustentam todas mutuamente, e onde as últimas se explicam pelas primeiras. Aquelas que dão razão às outras; chamam-se princípios e o sistema é tão mais perfeito quanto os princípios o são no menor número: é mesmo desejável que se os reduza a um só. Podem-se notar nas obras dos filósofos três espécies de princípios dos quais se formam três espécies de sistemas. Os princípios que eu coloco na primeira classe, como os mais em moda, são as máximas gerais ou abstratas. Exige-se que eles sejam tão evidentes ou tão bem demonstrados que não se os possa colocar em dúvida. Com efeito, se eles fossem incertos não se poderia estar seguro das consequências que se extrairiam. É desses princípios que fala o autor da Arte de Pensar quando diz: "Todo mundo está de acordo que é importante ter no espírito vários axiomas e princípios que, sendo claros e indubitáveis, possam servir-nos de fundamento para conhecer as coisas mais escondidas. Mas os princípios, que se dão ordinariamente, são de tão pouco uso que se torna inútil sabê-los. Porque o que eles chamam de primeiro princípio do conhecimento - É impossível que a mesma coisa seja e não seja - é muito claro e muito certo, mas não vejo como possa servir para nos fornecer qualquer conhecimento. Creio, portanto, que os. seguintes possam ser mais úteis". O autor dá, em seguida, por primeiro princípio: Tudo o que está contido na ideia clara e distinta de uma coisa pode ser afirmado com verdade; por segundo: A existência, pelo menos possível, está contida na ideia de tudo aquilo que concebemos clara e distintamente; por terceiro: O nada não pode ser causa de coisa alguma. Ele os imaginou até onze. Mas. é inútil relatar os outros. Os princípios enumerados acima são suficientes para servir de exemplo. A virtude que os filósofos atribuem a essa espécie de princípios é tão grande que seria natural que se trabalhasse para multiplicá-los. Os metafísicos se distinguiram nisso. Descartes, Malebranche, Leibniz e outros, cada um em concorrência, nos deram com profusão, e não devemos acusar senão a nós mesmos se não penetramos nas coisas mais escondidas. Os princípios da segunda espécie são suposições que se imaginam para explicar as coisas às quais não se poderia, de outra maneira, dar a razão. Se as suposições não parecem impossíveis, e se elas fornecem alguma explicação dos fenômenos conhecidos, os filósofos não duvidam que tenham descoberto os verdadeiros motores da natureza. Seria possível, dizem eles, que uma suposição que fosse falsa desse resultados felizes? Daí nasceu a opinião de que a explicação dos fenômenos prova a. verdade de uma suposição e que não se deve julgar um sistema pelos seus princípios, mas como ele dá a razão das coisas. Não se duvida que as suposições, num primeiro momento arbitrárias, tornam-se incontestáveis pela habilidade com a qual se as empregou. Os metafísicos foram tão inventivos nessa segunda espécie de princípios quanto na primeira e, graças aos seus cuidados, a metafísica não encontrou nada mais que possa ser um mistério para ela. Quem diz meta física diz, na sua linguagem, a ciência das primeiras verdades, dos primeiros princípios das coisas. Mas é necessário convir que esta ciência não se encontra nas suas obras. As noções abstratas são apenas ideias formadas daquilo que há de comum entre várias ideias particulares. Tal é a noção de animal: ela é extraída daquilo que pertence igualmente às ideias de homem, cavalo, macaco, etc. Desta maneira, uma noção abstrata serve, em aparência, para dar razão daquilo que se nota nos objetos particulares. Se, por exemplo, se pergunta por que o cavalo anda, bebe, come, responder-se-á muito filosoficamente dizendo que não é senão porque ele é um animal. Esta resposta, bem analisada, não quer, entretanto, dizer outra coisa senão que o cavalo anda, bebe, come porque, com efeito, ele anda, bebe, come. Mas é raro que os homens não se contentem com uma primeira resposta. Dir-se-ia que sua curiosidade os conduz menos a instruir-se sobre alguma coisa do que a formular questões sobre muitas. O ar seguro de um filósofo se lhes impõe. Eles temeriam parecer muito pouco inteligentes se insistissem sobre o mesmo ponto. É suficiente que o oráculo seja formado de expressões familiares as quais eles teriam vergonha de não entender; ou, se não podem esconder a obscuridade, um único olhar de seu mestre pareceria dissipá-la. Pode-se duvidar quando aquele a quem se entrega toda confiança não duvida ele mesmo? Não há, portanto, motivo para se espantar que os princípios abstratos tenham se multiplicado com tal intensidade e tenham, sempre, sido olhados como a fonte de nossos conhecimentos. As noções abstratas são absolutamente necessárias para pôr ordem nos nossos conhecimentos porque elas indicam ii cada ideia a sua classe. Eis qual deve ser seu único uso. Mas, imaginar que elas sejam feitas para conduzir a conhecimentos particulares é uma cegueira muito grande porque elas não se formam senão segundo esses conhecimentos. Quando eu censurar os princípios abstratos não será necessário suspeitar que eu exija que não se deve servir-se mais de nenhuma noção abstrata, isso será ridículo: pretendo somente que não se os deva tomar nunca por princípios próprios para nos conduzir a descobertas. Quanto às suposições, elas são um grande recurso para a ignorância, são muito cômodas; a imaginação as forma com muito prazer, com muito pouca dificuldade. É de seu leito que se criou, que se governa o universo. Tudo isto não custa mais que um sonho e um filósofo sonha facilmente. Também não é fácil consultar bem a experiência e recolher os fatos com discernimento. É por isso que é raro que não tomemos por princípios senão fatos bem constatados, ainda que, talvez, os tenhamos em maior número do que pensamos; mas pela falta de hábito de seguir esse procedimento ignoremos a maneira de aplicá-los. Temos, verossimilmente, em nossas mãos a explicação de vários fenômenos e vamos procurá-la bem longe de nós. Por exemplo, a gravidade dos corpos foi durante todo o tempo um fato bem constatado e só em nossos dias é que foi reconhecida como um princípio. É sobre os princípios dessa última espécie que estão fundados os verdadeiros sistemas; somente eles mereceriam ter esse nome. Porque não é senão por meio desses princípios que podemos dar a razão das coisas das quais nos é permitido descobrir os motores. Chamarei sistemas abstratos aqueles que versam somente sobre princípios abstratos; e hipóteses aqueles que têm apenas suposições por fundamento. Pela combinação dessas diferentes espécies de princípios poder-se-ão ainda formar diferentes espécies de sistemas; mas, como eles remeter-se-iam sempre, mais ou menos, a um dos três que acabo de indicar, é inútil realizar novas classificações. Fatos bem constatados, eis propriamente os únicos princípios das ciências. Como, então, foi possível imaginar outros? f: o que iremos investigar. Os sistemas são mais antigos que os filósofos: a natureza ordena fazê-los e não eram maus os que eram feitos quando os homens obedeciam só a ela. Então, um sistema era e não podia ser somente fruto da observação. Não se propunha ainda dar razão a tudo; tinham-se necessidades e não se procuravam senão os meios de satisfazê-las. Só a observação podia fazer conhecer esses meios e observa-se por que se era forçado. Na ignorância disso que, mais tarde, se nomeou princípio, tinha-se, pelo menos, a vantagem de evitar os erros: porque é necessário um começo de conhecimento para extraviar-se. E parece que, frequentemente, os filósofos tiveram apenas esse começo. Os homens, portanto, observavam, isto é, notavam os fatos relativos às suas necessidades. Porque se tinham poucas necessidades, havia poucas observações a fazer, e porque as necessidades eram prementes era raro que houvesse engano; os erros, pelo menos, não podiam ser senão passageiros: era-se logo advertido porque as necessidades não eram satisfeitas. A observação se realizava, ainda, só de maneira tateante; não era, portanto, sempre possível assegurar-se de um fato logo que se acreditava percebê-lo. Suspeitava-se, supunha-se e, na falta de coisa melhor, uma suposição passava por uma descoberta que uma nova observação confirmava ou destruía. Deste modo a natureza guiava os homens e era desta maneira que eles se instruíam, sem notar que iam de conhecimentos em conhecimentos por uma sequência de fatos bem observados. Quando realizaram as descobertas relativas às suas necessidades é evidente que para realizá-las num outro campo tiveram que seguir a mesma conduta. Uma primeira observação, que teria sido apenas um tateio, teria levantado conjeturas; estas conjeturas teriam indicado outras observações a fazer e estas observações teriam confirmado ou destruído os fatos supostos. Quando tiveram os fatos em grande quantidade para explicar os fenômenos dos quais se investigava a razão, os sistemas estavam acabados, de qualquer maneira, por eles mesmos, porque os fatos se teriam arranjado a si mesmos na ordem em que se explicavam sucessivamente uns aos outros. Então, ter-se-ia visto que em todo sistema há um primeiro fato, um fato que é o começo e que, por esta razão, se teria chamado princípio: porque princípio e começo são duas palavras que significam originariamente a mesma coisa. As suposições não são, propriamente falando, senão conjunturas e se temos necessidade de formá-las é porque estamos condenados a tatear. Desde que as suposições sejam apenas conjunturas, não são fatos constatados: não podem, portanto, ser o princípio ou o começo de um sistema porque todo sistema se reduziria a uma conjuntura. Mas; se elas não são o princípio ou o começo de um sistema, são o princípio ou começo dos meios que temos para descobrir. Ora, porque são o princípio desses meios, acreditou-se que são também o princípio do sistema. Confundiram-se, portanto, duas coisas bem diferentes. À medida que adquirimos conhecimentos somos obrigados a distribuí-los em diferentes classes: não temos outros meios para colocá-los em ordem. As classes menos gerais compreendem os indivíduos e as denominamos espécies com relação às classes mais gerais que denominamos gêneros. As classes que são gêneros, com relação àquelas que lhes são subordinadas, tornam-se elas mesmas espécies com relação a outras classes mais gerais que elas: e é assim que se chega de classe em classe a um gênero que as compreende todas. Quando a distribuição está realizada possuímos um meio bem rápido para nos darmos conta de nossos conhecimentos: é o de começar pelas classes mais gerais. Porque o gênero supremo é propriamente uma expressão abreviada apenas que compreende todas as classes subordinadas e que as abarca de uma vez. Quando digo ser, por exemplo, vejo substância e modificação, corpo e espírito, qualidade e propriedade; numa palavra, vejo todas as divisões é subdivisões compreendidas entre o ser e os indivíduos. É, portanto, por unia classe geral que devo começar quando quero representar rapidamente uma multidão de coisas; e, então, pode-se dizer que ela é um começo ou um princípio. Eis o que se viu confusamente e se disse: as ideias gerais, as máximas gerais são os princípios das ciências. Eu repito, portanto: só os fatos bem constatados podem ser os verdadeiros princípios das ciências; e se se tomaram por princípio de um sistema suposições ou máximas gerais é porque, sem se dar conta do que se via, se notou que elas são o princípio ou começo de alguma coisa. CAPÍTULO II Da inutilidade dos sistemas abstratos Os filósofos que acreditam nos princípios abstratos nos dizem: considere com atenção as ideias que mais se aproximam da universalidade dos primeiros princípios, forme proposições e você terá verdades menos gerais; considere, em seguida, as ideias que mais se aproximam, pela sua universalidade, das descobertas que acabou de fazer e realize novas proposições, continue desta maneira; não se esqueça de aplicar seus primeiros princípios a cada proposição que descobrir e, então, você descerá gradualmente dos princípios gerais aos conhecimentos mais particulares. Segundo esses filósofos, Deus, criando nossas almas, contenta-se em gravar nelas certos princípios gerais e os conhecimentos que adquirimos em seguida são apenas deduções que fazemos desses princípios inatos. Sabemos que nosso corpo é maior que nossa cabeça porque às ideias de corpo e cabeça aplicamos o princípio: o todo é maior que sua parte. Mas, para que não sejamos surpreendidos ao realizar esta aplicação sem nos apercebermos, adverte-se que ela se realiza por uma operação secreta e que o hábito de termos de reiterar frequentemente os mesmos juízos nos impede de notar a verdadeira fonte. De acordo com esses filósofos, os princípios abstratos são, portanto, tão certamente a origem de nossos conhecimentos que, se de nós os tomam, não concebem que, entre as verdades mais evidentes, haja alguma ao nosso alcance. Mas eles invertem a ordem de geração das nossas ideias. É tarefa das ideias mais fáceis preparar a inteligência daquelas que o são menos. Ora, cada um pode conhecer, por sua própria experiência, que as ideias são mais fáceis na proporção em que são menos abstratas e que mais se aproximam dos sentidos, e que, ao contrário, elas são mais difíceis na proporção em que se distanciam dos sentidos e se tornam mais abstratas. A razão dessa experiência é que todos os nossos conhecimentos procedem dos sentidos. Uma ideia abstrata requer explicação por• uma ideia menos abstrata e assim sucessivamente até que se chegue a uma ideia particular e sensível. Além disso, o primeiro objetivo de um filósofo deve ser o de determinar exatamente suas ideias. As ideias particulares são determinadas por elas mesmas e somente elas o são: as noções abstratas são, ao contrário, naturalmente vagas, não oferecem nada de fixo a não ser que tenham sido determinadas por outras. Mas seria por noções ainda mais abstratas? Não, sem dúvida, porque estas noções teriam, elas mesmas, ainda mais necessidade de serem determinadas; é necessário, portanto, recorrer às ideias particulares. Com efeito, nada é mais próprio para explicar uma noção que aquela que a engendrou. Consequentemente, erramos quando queremos que nossos conhecimentos tenham origem em princípios abstratos. Mas, além disso, quais seriam esses princípios? Seriam máximas tão geralmente recebidas que ninguém as ousa contestar? É impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo; tudo aquilo que é, é; e outras semelhantes. Procurar-se-á muito tempo por filósofos que tenham daí extraído quaisquer conhecimentos. Na especulação todos eles convêm, na verdade, em que os primeiros princípios são aqueles que são universalmente adotados: seu método tem mesmo alguma coisa de sedutor pela maneira pela qual ele se apresenta inicialmente. Mas é curioso segui-los na prática, ver como se separam bem cedo e com que menosprezo uns rejeitam os princípios dos outros. Parece-me que não se poderia entrar nessa investigação sem se aperceber de que essas espécies de proposições não são suficientes para conduzir a quaisquer conhecimentos. Se os princípios abstratos são proposições gerais, verdadeiros em todos os casos possíveis, eles são menos conhecimentos que' uma maneira abreviada de tornar vários conhecimentos particulares, adquiridos antes mesmo que se tenha pensado nos princípios. O todo é maior que sua parte significa: meu corpo é maior que meu braço; meu braço do que minha mão; minha mão do que meu dedo, etc. Numa palavra, este axioma não contém senão proposições particulares dessa espécie e as verdades, as quais se imaginava que ele conduz, foram conhecidas antes que ele o fosse. Esse método seria, portanto, estéril se não tivesse por fundamento senão tais máximas. Temos, também, duas maneiras para lhe conferir uma fecundidade aparente. A primeira consiste em partir de proposições que, sendo verdadeiras em muitos casos, sobretudo por aqueles que muito surpreendem, dão margem à suposição de que o são em todos os casos. Na verdade, se se os apreciava e se tiravam consequências exatas apenas, é visível que ele seria como os princípios que acabamos de falar. Mas cuidado: ao contrário, supõe-se que sejam verdadeiros em muitos casos onde são falsos. Pode-se, então, aplicá-los a coisas onde elas não são aplicáveis e extrair consequências que parecerão muito novas porque elas não estavam aí contidas. Tal é o princípio dos cartesianos: pode-se afirmar de uma coisa tudo aquilo que está contido na ideia clara que temos. Mostrarei que ele não é sempre verdadeiro. Essa maneira de conferir uma espécie de fecundidade a um sistema abstrato é a mais hábil: a segunda é mais grosseira, mas não está em menos uso. Ela consiste em imaginar uma coisa que não se concebe, segundo outra coisa cujas ideias são mais familiares; e quando, por esse meio, se estabeleceu certa quantidade de relações abstratas e de definições frívolas, raciocinava-se sobre uma como se raciocinaria sobre outra. E assim que a linguagem usada para os corpos serve a vários filósofos para a explicação do que se passa na alma. Basta que eles imaginem algumas relações entre essas duas substâncias. Veremos alguns exemplos. Existem, portanto, três espécies de princípios abstratos em uso. Os primeiros são proposições gerais, verdadeiras em todos os casos. Os segundos são proposições verdadeiras pelos casos mais notáveis e que, por isso, se é levado a supor que são verdadeiras em todos os casos. Os últimos são relações vagas que se imaginam entre coisas de natureza totalmente diferente. Esta análise é suficiente para que se possa ver que, entre esses princípios, alguns não conduzem a nada e os outros não conduzem senão ao erro. Eis, entretanto, todo o artifício dos sistemas abstratos. Se as reflexões precedentes não forem suficientes para se convencer da inutilidade desses princípios, que se dê a alguém aqueles de uma ciência que ele ignora; poderia ele se aprofundar com tão fracos recursos? Que ele medite estas máximas: o todo é igual a todas as suas partes; a grandezas iguais junte grandezas iguais, os todos serão iguais; junte desiguais, eles serão desiguais; teria ele aí alguma coisa para tornar-se um profundo geômetra? Mas, a fim de tornar isso mais sensível, desejaria que arrancasse de seu gabinete ou da escola um desses filósofos que percebem uma tão grande fecundidade nos princípios gerais e que se ofereça a ele o comando de um exército ou governo de um Estado. Se se fizesse justiça a si mesmo, ele, sem dúvida, recusaria porque não entende nem de guerra nem de política; mas isso seria para ele a menor desculpa do mundo. A arte militar e a política têm seus princípios gerais como todas as outras ciências. Por que, portanto, não poderia ele, se lhe é ensinado, o que não é questão senão de instantes, descobrir todas as consequências e tornar-se, depois de algumas horas de meditação, um Condé, um Turenne, um Richelieu, um Colbert? Quem o impediria de escolher entre esses grandes homens? Sente-se quanto essa suposição é ridícula porque não é suficiente, para ter a reputação de bom ministro e de bom general, como para ter a de bom filósofo, perder-se em vãs especulações. Mas pode-se exigir menos de um filósofo para bem raciocinar que de um general ou ministro para bem agir? Ora! Seria necessário que estes últimos tivessem percebido ou, pelo menos, tivessem estudado com cuidado os detalhes das funções subalternas e um filósofo tornar-se-ia, de golpe, um homem sábio, um homem para quem a natureza não tem segredos, somente pelo encanto de duas ou três proposições. Outra consideração, mais pertinente ainda, para demonstrar a insuficiência dos sistemas abstratos é o fato de que, nesse caso, não é possível uma questão ser examinada em todos os seus ângulos. Porque as noções que formam esses princípios, não sendo senão ideias parciais, não se poderia fazer uso delas a não ser que se faça abstração de várias considerações essenciais. É por isso que as matérias um pouco complicadas, tendo mil maneiras pelas quais se as pode tomar, dão margem a grande número de sistemas abstratos. Pergunta-se, por exemplo, que é a origem do mal. Bayle estabelece sua resposta sobre os princípios da bondade, da santidade e da onipotência de Deus; Malebranche prefere os princípios da ordem e da sabedoria; Leibniz crê que não é necessário mais que sua razão suficiente para explicar tudo; os teólogos empregam os princípios da liberdade, da providência geral e a queda de Adão; os socinianos negam a presciência divina; os origenistas asseguram que os castigos não serão eternos; Espinosa não admite senão uma cega e fatal necessidade; enfim, os maniqueístas acumularam, todo o tempo, princípios sobre princípios, absurdos sobre absurdos. Não falo dos filósofos pagãos que, raciocinando sobre princípios diferentes, caíram em alguns desses sistemas ou em outros como a metempsicose. Vê-se, por esse exemplo, como é impossível construir sobre princípios abstratos um sistema que abarque todas as partes de uma questão. Entretanto, os filósofos não oscilam. Nesses casos, cada um tem seu sistema favorito ao qual quer que todos os outros cedam. A razão tem muito pouco a ver com a escolha que fazem; ordinariamente, são as paixões que decidem sozinhas. Um espírito naturalmente doce e generoso adotará os princípios que se extraem da bondade de Deus porque não encontra nada maior, mais belo que fazer o bem. Assim, esse deve ser o primeiro caráter da divindade ao qual tudo se deve reenviar. Outro, em quem a imaginação é grande e as ideias são preponderantes, gostará mais dos princípios que se tomam emprestados da ordem e da sabedoria porque nada lhe causa mais gosto que um encadeamento de causas ao infinito e uma combinação admirável de todas as partes do universo, e a infelicidade de todas as criaturas deve, por isso, ser uma consequência necessária. Enfim, o caráter sombrio, melancólico, misantropo, odioso a si e aos outros, gostará das palavras como destino, fatalidade, necessidade, acaso, porque, inquieto, descontente consigo e com tudo que o rodeia, é obrigado a olhar-se como um objeto de desprezo e horror ou a se persuadir de que não há nem bem nem mal, nem ordem nem desordem. Pode ele hesitar? Sabedoria, honra, virtude, probidade: eis sons vãos; destino, fatalidade, acaso, necessidade: eis o seu sistema. Seria muito presumir ou pensar que se possa corrigir todos os homens nesse ponto. Quando a curiosidade se encontra unida a um pouco de imaginação, quer-se, também, levar a vista ao longe, quer-se tudo abarcar, tudo conhecer. Nesse projeto negligenciam-se os detalhes; as coisas ao nosso alcance; voa-se sobre países desconhecidos e constroem-se sistemas. Entretanto, é uma constante que, para se realizar uma visão geral e extensa, que seja fixa e segura, é necessário começar a tornar familiares as verdades particulares. Talvez quem tenha sido encontrado nos primeiros lugares não tenha sido um espírito medíocre senão porque negligenciou esse estudo. Talvez tenha merecido os elogios dados aos grandes homens, se cuidasse com mais atenção de adquirir até os menores conhecimentos necessários às funções às quais se destina. Uma sábia conduta multiplicaria os talentos e desenvolveria os gênios. Hoje em dia, alguns físicos, os químicos sobretudo, procuram unicamente recolher os fenômenos porque reconheceram que é necessário abarcar os efeitos da natureza e descobrir a dependência mútua, antes de colocar os princípios que os explicam. O exemplo de seus predecessores lhes serviu de lição; querem, pelo menos, evitar os erros que engendra a mania dos sistemas. Seria de desejar que o resto dos filósofos os imitasse! Mas, em geral, não se tem trabalhado senão para aumentar o número dos princípios abstratos. Descartes, Malebranche, Leibniz e muitos outros viram em muitas máximas uma fecundidade que ninguém tinha notado antes. Quem sabe mesmo se, algum dia, os novos filósofos não darão nascimento a novos princípios? Quantos sistemas já não foram feitos? Quantos serão feitos ainda? Se, ao menos, se encontrasse um que fosse recebido uniformemente por todos os seus partidários! Mas qual base comum se pode formar sobre sistemas que sofrem milhares de mudanças, passando por milhares de mãos diferentes; que, joguetes dos caprichos, aparecem e desaparecem da mesma maneira; e que se sustentam tão pouco que, frequentemente, pode-se usá-los para defender o pró e o contra? Que os homens, ao sair de um profundo sono, vendo-se no meio de um labirinto, coloquem princípios gerais para descobrir as consequências - existe coisa mais ridícula? Eis, entretanto, a conduta dos filósofos. Nascemos no meio de um labirinto onde milhares de desvios são traçados para nos conduzir ao erro; se há um caminho que conduza à verdade, ele não se mostra de início; frequentemente é aquele que parece menos digno de nossa confiança. Deveríamos, portanto, tomar muita precaução. Avancemos lentamente, examinemos cuidadosamente todos os lugares por onde passamos e o conheçamos tão bem que estejamos em condição de voltar sobre nossos passos. É mais importante encontrarmo-nos onde estávamos no início do que se crer, com ligeireza, fora do labirinto. Os capítulos seguintes darão a prova. CAPÍTULO III Do abuso dos sistemas abstratos Se eu quisesse reduzir a um sistema uma matéria, a qual teria aprofundado todos os detalhes, teria que notar apenas as relações de suas diferentes partes e perceber aquelas onde estariam numa tão grande ligação que as conhecidas primeiramente seriam suficientes para dar a explicação das outras. Então eu teria princípios cuja aplicação seria tão bem determinada que não seria possível restringi-los nem estendê-los a casos de naturezas diferentes. Mas, quando se quer edificar um sistema sobre uma matéria cujos detalhes são totalmente desconhecidos, como fixar a extensão dos princípios? E, quando os princípios são vagos, como as expressões terão alguma precisão? Se, entretanto, estou prevenido de que posso adquirir conhecimentos unicamente por essa via, me entrego inteiramente; se coloco princípios sobre princípios, se extraio consequências sobre consequências, impondo-os, em seguida, a mim mesmo, admirarei a fecundidade deste método, aplaudir-me-ei de minhas pretensas descobertas e não duvidarei um instante da solidez do meu sistema: os princípios parecer-me-ão naturais, as expressões simples, claras e precisas e as consequências perfeitamente extraídas. Assim, o primeiro abuso dos sistemas, aquele que é a fonte de muitos outros, é que acreditamos adquirir verdadeiros conhecimentos quando nossos pensamentos não giram senão sobre palavras que não têm sentido determinado. Mais ainda: prevenidos pela facilidade e pela fecundidade desse método, não pensamos em submeter ao exame os princípios sobre os quais raciocinamos. Ao contrário, bem persuadidos de que são a fonte de todos os nossos conhecimentos, quanto mais os empregamos menos temos escrúpulos. Se se ousasse duvidar, a qual verdade poderíamos pretender? Eis o que consagrou essa máxima singular: não se deve colocar os princípios em questão; máxima de um abuso tão grande que não há erro que não possa engendrar. Esse axioma, irracional como é, uma vez adotado, torna natural o pensar que não se deve mais julgar um sistema senão pela maneira que dá a razão dos fenômenos. Mesmo que esteja fundado sobre ideias as mais claras, sobre fatos os mais seguros, se falha neste aspecto é necessário rejeitá-lo e deve-se adotar um sistema absurdo quando explica tudo. Tal é o excesso de cegueira em que se caiu. Darei, como exemplo, aquilo que Bayle descreveu sobre o maniqueísmo. "As ideias", diz ele, "mais seguras e mais claras de ordem nos ensinam que um ser que existe por si mesmo, que é necessário, que é eterno, deve ser único, infinito, onipotente e dotado de todas as espécies de perfeições. Assim, consultando essas ideias, não se encontra nada de mais absurdo que a hipótese de dois princípios eternos e independentes um do outro, em que um deles não tem nenhuma bondade e tem o poder de deter os desígnios do outro. Eis o que denomino razões a priori. Elas nos conduzem necessariamente a rejeitar essa hipótese e a não admitir senão um princípio de todas as coisas. Se fosse necessário só isso para a bondade de um sistema, o processo estaria entregue à confusão de Zoroastro e de todos os seus sectários. Mas não há sistema que, para ser bom, não tenha necessidade destas duas coisas: a primeira, que as ideias sejam distintas, e a segunda, que possa explicar os fenômenos”. Essas duas coisas são, com efeito, igualmente essenciais. Se as ideias claras e seguras não são suficientes para explicar os fenômenos, não se saberia formar um sistema; devemos nos limitar a olhá-las como verdades que pertencem a uma ciência da qual não se conhece ainda senão uma pequena parte. Se as ideias são absurdas, nada seria menos razoável que tomá-las por princípios; seria querer explicar as coisas que não se compreendem por outras das quais se conceberia toda a falsidade. Daí seria necessário concluir que, supondo que o sistema da unidade do princípio não é suficiente para explicar os fenômenos, isso não é uma razão para admitir como verdadeiro o sistema dos maniqueístas: falta-lhe uma condição essencial. Mas Bayle raciocina de uma maneira bem diferente. Desejando concluir que é necessário recorrer às luzes da revelação para arruinar o sistema dos maniqueístas, como se fosse necessária a revelação para destruir uma opinião que ele concorda ser contrária às ideias mais claras e mais distintas, finge uma disputa entre Melisso e Zoroastro e faz este último falar da seguinte maneira: "Você me ultrapassa na beleza das ideias e nas razões a priori e eu o ultrapasso na explicação dos fenômenos e nas razões a posteriori, e, porque o principal caráter de um bom sistema é o de ser capaz de dar a razão das experiências e só a incapacidade de explicá-las é uma prova de que uma hipótese não é boa, quão bela possa parecer, concorde que eu atinjo o alvo, admitindo dois princípios, e que você não o faz, pois não admite senão um". Bayle, supondo que o principal caráter de um sistema é o de dar a razão dos fenômenos, adota um prejuízo dos mais geralmente recebidos e que é uma consequência do princípio: não se deve colocar os princípios em questão. É fácil dar a Melisso uma resposta mais razoável que o argumento de Zoroastro. Se as razões a priori dos dois sistemas, eu o faria dizer, fossem igualmente boas, seria necessário dar preferência àquele que explicasse os fenômenos. Mas, se um está fundado em ideias claras e seguras e o outro sobre ideias absurdas, não é necessário levar em conta o último porque parece dar a explicação dos fenômenos; ele não os explica, não pode explica-los, porque o verdadeiro não poderia ter sua razão no falso. O caráter absurdo dos princípios é, portanto, uma prova de que uma hipótese não é boa. Está, portanto, demonstrado que você não atingiu o objetivo. "Quanto a isso que você diz, que uma suposição é má pela única razão de ser incapaz de explicar os fenômenos, eu distingo: ela é má, se essa incapacidade vem do fundo da suposição mesma, de maneira que por sua própria natureza seja insuficiente para explicar os fenômenos. Mas, se sua incapacidade advém dos limites do nosso espírito e do fato de que não adquirimos ainda suficientes conhecimentos para torná-la capaz de dar a razão de tudo, é falso que seja má. Por exemplo, eu reconheço somente um primeiro princípio porque, como você concorda, é a ideia mais clara e mais segura; mas, incapaz de penetrar as vias desse ser supremo, minhas luzes não me são suficientes para explicar suas obras. Limito-me a recolher as diferentes verdades que vêm ao meu conhecimento e não empreendo ligá-las e formar um sistema que explique todas as contradições que você imagina ver no universo. Que necessidade há, com efeito, para a verdade do sistema que Deus se prescreveu, que eu possa compreendê-lo? Convenha, portanto, que, se com um único princípio eu não posso dar a razão dos fenômenos, você não tem o direito de concluir que, sendo assim, há então dois." Seria necessário estar muito prevenido para não sentir o quanto esse raciocínio de Melisso seria mais sólido que aquele de Zoroastro. Os físicos contribuíram não pouco para pôr em circulação este princípio que diz: é suficiente para um sistema explicar os fenômenos. Eles tinham necessidade, sobretudo, quando queriam explicar por quais vias Deus criou e conserva o universo. Mas, se, para formar um sistema, pode-se colocar todas as espécies de princípios, tomar os mais absurdos como os mais evidentes e realizar uma complicação de causas sem razão, que mérito pode haver em obras dessa espécie? Mereceriam mesmo ser refutadas, se não fossem defendidas por autores cujos nomes se impõem? Entretanto, por mais sensível que seja tal abuso, é suficiente ser versado na leitura dos filósofos para estar convencido da pouca precaução que eles trazem para evitá-lo. Eis como se conduzem aqueles que querem formar um sistema: e quem não o quer! Prevenidos por uma ideia, frequentemente sem saber por que, tomam primeiramente todas as palavras que parecem ter com ela alguma relação. Aquele, por exemplo, que quer trabalhar sobre a metafísica capta estas: Ser, substância, essência, natureza, atributo, propriedade, modo, causa, efeito, liberdade, eternidade, etc. Em seguida, sob pretexto de que somos livres para ligar aos termos as ideias que se querem, define-as segundo seu capricho e a única precaução que toma é a de escolher as definições mais cômodas para seu projeto. Ainda que sejam bizarras essas definições, há sempre entre elas relações: ei-lo, portanto, no direito de extrair as consequências e raciocinar a perder de vista. Se repassa a cadeia de proposições que forjou por esse meio, teria dificuldade em se persuadir de que as definições das palavras possam conduzir tão longe; além disso, não poderia suspeitar que meditou para nada. Conclui, portanto, que definições nominais se tornaram definições de coisas e admira a profundidade das descobertas que crê ter feito. Mas ele se parece, como nota Locke em tais casos, com os homens que, sem dinheiro e conhecimento das espécies correntes, contariam grandes somas com fichas, que se chamariam luíses, libras, escudos. Suas somas serão sempre fichas, qualquer que seja o cálculo que façam. Quaisquer raciocínios que faça um filósofo, tal como esse de quem falo, é certo que suas conclusões sempre serão apenas palavras. Eis, portanto, a maioria, ou melhor, todos os sistemas abstratos que não giram senão sobre sons. São, ordinariamente, os mesmos termos em todos os lugares; mas, porque cada um se crê no direito de defini-los à sua maneira, extraímos, em concorrência, consequências bem diferentes e parecemos supor que a verdade depende dos caprichos de nossa linguagem. "Por exemplo, suponhamos que o homem seja o objeto do qual se quer demonstrar qualquer coisa por meio desses primeiros princípios, e veremos que, enquanto a demonstração depender desses princípios, ela será verbal apenas e não nos fornecerá nenhuma proposição certa, verdadeira e universal nem nenhum conhecimento de algum ser existente fora de nós. Primeiramente, uma criança formando a ideia de um homem, é provável que sua ideia seja justamente semelhante ao retrato que um pintor fez das aparências visíveis, que juntas constituem a forma exterior de um homem, de maneira que tal complicação de ideias unidas no seu entendimento constitui essa particular ideia complexa que ela denomina homem; e. como o branco ou a cor de carne faz parte dessa ideia, a criança pode demonstrar, em virtude deste princípio: é impossível que uma coisa seja e não seja, que um negro não é um homem, estando fundada sua certeza sobre a percepção clara e distinta que tem das ideias de branco e negro que não pode confundir. Você não saberia também demonstrar a essa criança, ou a qualquer um que tenha uma tal ideia que designa pelo nome de homem, que um homem tenha' urna alma, porque sua ideia de homem não contém uma tal noção e, por consequência, é um ponto que não pode ser provado pelo princípio: aquilo que é, é, mas que depende de consequências e observações por meio .das quais ele deve formar sua ideia complexa, designada pela palavra homem. "Em segundo lugar, outra pessoa que, formando a coleção da ideia complexa que ele chama homem, foi mais adiante e juntou à forma exterior o riso e o discurso racional, pode demonstrar que as crianças que acabaram de nascer e os imbecis não são homens, por meio desta máxima; é impossível que uma coisa seja e não seja. Com efeito, aconteceu-me discutir com pessoas muito razoáveis que negaram que as crianças e os imbecis fossem homens”. “Em terceiro lugar, talvez outro não componha sua ideia complexa que denomina homem senão das ideias dos corpos em geral e da potência de falar e raciocinar e exclua inteiramente a forma exterior. E tal pessoa pode demonstrar que um homem pode não ter mãos e ter quatro pés, porque nenhuma dessas duas coisas está contida em sua ideia de homem, em qualquer corpo ou figura que encontra a faculdade de falar unida à de raciocinar julga que aí existe um homem, porque, tendo um conhecimento evidente de tal ideia complexa, é certo que aquilo que é, é”. Usei esse longo exemplo de Locke porque ele mostra sensivelmente o quanto o uso de princípios abstratos é ridículo. Aqui, é fácil convencer-se porque são aplicados a coisas que nos são familiares. Mas, quando se trata de ideias abstratas da metafísica, das expressões pouco determinadas que esta ciência tem, pode-se julgar para onde levam as contradições e os absurdos. O método que censuro é muito acreditado para não ser, por longo tempo ainda, um obstáculo ao progresso da arte de raciocinar. Próprio para demonstrar à nossa vontade toda espécie de opiniões, ele agrada igualmente todas as paixões. Deslumbra a imaginação pela audácia das consequências a que conduz, seduz o espírito porque não se reflete quando a imaginação e as paixões se opõem a isso, e, por sequências necessárias, faz nascer e alimenta a obstinação nos erros mais monstruosos, o amor à disputa, a acidez com a qual é sustentada, o distanciamento da verdade ou a pouca sinceridade com a qual se a investiga. Enfim, se se encontra com um espírito crítico, este começa a perceber as incertezas aonde ele conduz. Então, persuadido de que não pode haver melhor método, não adota mais nenhum sistema, cai num outro extremo e assegura que não há conhecimento aos quais possamos almejar. Se os filósofos se aplicassem somente às matérias de pura especulação, poder-se-ia poupar o esforço de criticar sua conduta. E pouca coisa permitir aos homens raciocinarem mal quando seus erros não têm consequências. Mas deve-se cuidar de considerá-los mais sábios quando meditam sobre assuntos de prática. Os princípios abstratos são uma fonte abundante em paradoxos e os paradoxos são mais interessantes na medida em que se os relaciona a coisas de maior uso. Que abusos, por consequência, esse método não pode introduzir na moral e na política! A moral é um estudo de poucos filósofos; talvez seja uma felicidade. A política é a presa de um maior número de espíritos, seja porque lisonjeia a ambição, seja porque a imaginação se satisfaça mais nos grandes interesses que constituem o seu objeto. Além disso, há poucos cidadãos que não tenham alguma participação no governo. Infelizmente para o povo, esta ciência devia, portanto, ter mais princípios abstratos que nenhuma outra. A experiência ensina que muitas das máximas políticas não são verdadeiras senão em certas circunstâncias e tornam-se perigosas quando se as toma por regra geral de conduta, e ninguém ignora que os projetos daqueles que governam são defeituosos porque versam sobre princípios onde se capta apenas uma parte daquilo que se deveria abarcar inteiramente. A história instrui sobre o abuso desses sistemas. Os princípios abstratos não são propriamente mais que um jargão: percebe-se isso já e notar-se-á ainda com mais clareza nos próximos capítulos. E uma confirmação de uma grande verdade que demonstrei, que a arte de raciocinar reduz-se a uma língua bem feita. CAPÍTULO IV Primeiro e segundo exemplos sobre o abuso dos sistemas abstratos Os filósofos devem sua reputação mais à importância das matérias de que se ocupam que à maneira como as tratam. Poucas pessoas têm o direito de menosprezar a cegueira que as leva a fazer, tão frequentemente, tentativas acima de suas forças; e o comum dos homens os crê grandes porque se aplicam a grandes objetos. Nessa prevenção, descartam-se todas as suspeitas que se poderiam ter sobre suas luzes; supõe-se, contra toda razão, que há conhecimentos que não podem estar ao alcance de todo espírito inteligente, e rejeita-se, em nome da profundeza das matérias, a obscuridade dos escritos que não se entendem. Além disso, é necessária tanta atenção para estar prevenido contra uma noção vaga, contra uma palavra vazia de sentido, contra um equívoco que se deve mais admirar que criticar. Também, quanto mais são difíceis as questões que os filósofos tratam, mais segura é a sua reputação. Eles mesmos o sentem e, sem dar-se muita conta, são levados, como por instinto, a pesquisar aquelas coisas que a natureza se esforça em nos esconder. Mas retiremo-nos, por alguns momentos, desses abismos onde não podem senão se perder; apliquemos sua maneira de raciocinar sobre objetos familiares e, aí então, os defeitos de sua conduta se tornarão sensíveis. Com esse propósito, escolhi para este capítulo dois exemplos onde o ridículo saltará aos olhos de todos. Os prejuízos mais populares fornecer-me-ão exemplos para o capítulo seguinte. Num outro capítulo, relacionarei os erros que, parece, o povo e os filósofos debatem. Por fim, exporei as opiniões que, pertencendo a estes últimos, não são menos falsas nem menos ridículas. Meu objetivo, nesse plano, é fazer sentir que o filósofo e o homem do povo extraviam-se pelas mesmas causas. Isso será uma confirmação do que já provei em outro lugar. Darei um grande número de exemplos porque nada me parece mais importante do que destruir a prevenção que se tem em relação aos sistemas abstratos. Um cego de nascença, após muitas interrogações e meditações sobre as coisas, acreditou, enfim, perceber no som da corneta a ideia de escarlate. Sem dúvida, bastaria dar-lhe um par de olhos para lhe fazer conhecer como sua confiança era mal fundada. Se quisermos investigar a maneira como ele raciocinou, reconheceremos aí aquela dos filósofos. Imagino que qualquer um lhe disse que o escarlate é uma cor brilhante e ruidosa; e ele fez o seguinte raciocínio: tenho a ideia de uma coisa brilhante e ruidosa no som de uma corneta; o escarlate é uma coisa brilhante e ruidosa, portanto tenho a ideia do escarlate no som da corneta. Sobre esse princípio, esse cego teria podido igualmente formar ideias de todas as outras cores e estabelecer os fundamentos de um sistema, no qual ele teria demonstrado: 1º) que se pode executar árias com as cores como com os sons; 2º) que se pode realizar um conceito com corpos diferentemente coloridos como com os instrumentos; 3º) que se pode ver as árias como se pode ouvi-las; 4º) que um surdo pode dançar perfeitamente; e, talvez, ainda mil coisas, todas novas e mais curiosas umas que as outras. Ele não deixaria de fazer valer seu sistema pelas vantagens que dele se poderia extrair; exageraria o inconveniente di falta de ouvido naqueles que se dizem dançarinos e cantores; não esquecerá, sob este aspecto, nenhum lugar-comum e nos ensinará como poderemos suprir os olhos pelos ouvidos. O que não nos diria sobre a maneira de combinar essas duas harmonias, sobre a arte de apreciar a relação das cores com os sons e sobre os maravilhosos efeitos que deveria produzir uma música que iria simultaneamente à, alma por dois sentidos? Com qual sagacidade não conjeturaria que verossimilmente se encontrará uma que chegará a ela por um maior número? E com que modéstia não deixaria aos mais hábeis que ele o sucesso dessa descoberta? Ele admiraria, sem dúvida, que não fosse dado senão a ele descobrir coisas que escaparam a todos aqueles que veem. Ele confirmar-se-ia nos seus princípios, considerando as consequências que teria extraído, e não deixaria de ser olhado como um gênio por aqueles que como ele seriam privados da visão: mas seu triunfo seria somente entre os cegos. Há harmonia nas cores, isto é, as sensações que temos se realizam segundo certas relações e proporções agradáveis. Por essa razão, há também nos objetos do tato, do olfato e do gosto; mas todo aquele que gostasse de fazer árias para cada um desses sentidos tornaria claro que se liga: mais ao som de uma palavra que a sua significação. Na verdade, o estabelecimento de tal sistema surpreenderia muito pouco. Sempre se foi levado a supor uma verdadeira música em todos os lugares onde se pode usar a palavra harmonia. Não é por isso que se acreditou que os astros formavam por seu movimento um concerto perfeito? Não faltariam mesmo razões próprias para confirmar essa visão, por pouco que se queira aplicar sua imaginação em descobrir algumas relações entre os elementos da música e as partes desse Inundo. Fá-lo-ei e daí tirarei meu segundo exemplo. É uma coisa evidente, notarei primeiramente, que, se há sete tons na música, há também sete planetas. Em segundo lugar, posso supor que quem percebesse a grandeza desses planetas, suas distâncias e outras qualidades, encontraria entre elas uma proporção semelhante que deve existir entre sete corpos sonoros que estão na ordem diatônica. Isso posto (porque se pode supor tudo que não é impossível; e quem poderia provar o contrário?), nada impediria reconhecer que os corpos celestes formam um concerto perfeito. Deveríamos mesmo ser levados a receber essa proposição por verdadeira porque se tornaria um princípio rico e fecundo que nos conduziria a descobertas a que, sem sua ajuda, não teríamos ousado aspirar. Todo mundo concorda em que as estrelas fixas são outros sóis (terei cuidado em não avançar em nada que sê possa contestar-me). Ora, seria, sem dúvida, curioso saber quantos planetas cada estrela ilumina. Concordar-se-á comigo que, até aqui, nenhum astrônomo ou físico foi capaz de resolver esta questão; mas, no meu sistema, a coisa explicar-se-ia de uma maneira muito simples e natural. Porque, se há uma harmonia perfeita entre os corpos celestes e se não há somente sete tons fundamentais na música, deve haver só sete planetas fundamentais em torno de cada estrela. Se qualquer espírito inquieto e pouco acostumado a captar e a gostar dessas espécies de verdade pensasse que pode haver mais planetas, responder-lhe-ia que aquilo que toma por planetas fundamentais não são senão satélites. De resto, para quem existiria essa música? Vejo aqui que há criaturas cujo tamanho é prodigiosamente acima do nosso. Sem dúvida, estas que estão destinadas a gozar dessa harmonia celeste têm ouvidos proporcionais a esses concertos e, por consequência, maiores que os nossos, maiores do que o de qualquer filósofo. Feliz descoberta! Mais ainda: suas orelhas estão em proporção com as outras partes de seu corpo. O tamanho dessas criaturas ultrapassa, portanto, o nosso tanto quanto os céus ultrapassam as salas de nossos concertos. Que tamanho imenso! Eis onde a imaginação se espanta; eis onde se perde: prova convincente de que ela não tomou parte nas descobertas que acabo de fazer. Elas são obra do entendimento puro, são verdades inteiramente espirituais. Zombaria à parte, porque não sei se me perdoarão esse gracejo numa obra tão séria, é com muita precaução que os homens deveriam servir-se de expressões metafóricas. Muito cedo se esquece que não são senão metáforas; toma-se-as à letra e cai-se nos maiores ridículos. Em geral, nada é mais equívoco que a linguagem que empregamos para falar de nossas sensações. A palavra doce, por exemplo, não tem nada de preciso. Uma coisa pode ser doce de muitas maneiras: à vista, ao gosto, ao olfato, à audição, ao tato, ao espírito, ao coração, à imaginação. Em todos esses casos é um sentido tão diferente que não se poderia julgar um pelo outro. A mesma coisa passa-se com a palavra harmonia e com muitas outras. CAPÍTULO VI Quarto exemplo Da origem e consequências do prejuízo das ideias inatas Não sei a quem, se ao povo ou aos filósofos, mais pertence o sistema das ideias inatas; mas não posso duvidar que colocou grandes obstáculos aos progressos da arte de raciocinar. Reconhecer-se-á, se tenho razão, por pouco que se observem a origem e as consequências desse prejuízo. ARTIGO 1º Da origem do prejuízo das ideias inatas Na época em que a filosofia nasceu, quanto mais se estava impaciente para adquirir conhecimentos, menos se observava; a observação parecia ser muito lenta e os melhores espíritos gabavam-se de poder adivinhar a natureza. Entretanto, eles não podiam partir senão de conhecimentos grosseiros que dividiam com o resto dos homens; eram, para usar a linguagem dos geômetras, todos os seus dados; não lhes restava para se distinguirem a não ser o objetivo com que se os empregasse. Não olhavam de perto e se contentavam com as noções menos exatas. A experiência não lhes tinha ensinado, ainda, o perigo que há em mal começar; com dificuldade mesmo se é instruído em nossos dias. Os filósofos queriam explicar alguma coisa? Procuravam quais relações ela podia ter com as noções comuns; faziam uma comparação, assenhoreavam-se de uma expressão metafórica e construíam sistemas. Notavam, por exemplo, que os objetos se delineiam na água e imaginaram a alma como uma superfície polida onde estão traçadas as imagens de todas as coisas que somos capazes de conhecer. As imagens que um espelho reflete representam exatamente os objetos e não foi mais necessário nada para se acreditar que aquelas que estão em nosso espírito fossem igualmente conforme as coisas exteriores. Conclui-se que se podia, com toda segurança, julgar os objetos segundo a maneira por que elas os representam. Dá-se a essas imagens o nome de ideias, noções, arquétipos e muitos outros próprios a engendrarem a ilusão em si mesmos e a fazerem crer que se tinham sobre esse assunto conhecimentos superiores. Enfim, foram encaradas como realidades que exprimem, por assim dizer, os seres exteriores. Como, com efeito, ter-se-ia, no fundo, duvidado? Não se estava fundado em princípios? As ideias iluminam o espírito, têm maior ou menor extensão, pode-se compará-las umas com as outras, considerá-las sob diversos ângulos, encontrar entre elas relações de toda espécie. Ora, o nada pode ter tantas propriedades? Quantos motivos, então, para realizá-las até as noções mais abstratas! Mas, de onde pode provir esse grande número de ideias que a alma desfruta? Para se perceber que elas vêm do sentido teria sido necessário remontar até sua origem, desenvolver a geração e captar por quais transformações as ideias mais sensíveis tornam-se, de alguma maneira, espirituais. Mas isso requeria uma penetração e uma sagacidade de que não se podia ainda ser capaz. Mesmo hoje, quantos filósofos não podem compreender essa verdade! Além disso, há ideias mais abstratas que parecem tão distantes de sua origem que não era possível conjeturar, então, o que se demonstrou em nossos dias. Enfim, as ideias, segundo a suposição recebida, sendo realidades, como os sentidos teriam contribuído para aumentar o ser da alma? Diz-se, portanto, como muitos se obstinam ainda em dizer, que as ideias são inatas e se as encarava como realidades que fazem parte de cada substância espiritual. Com efeito, não podendo explicar como elas teriam sido adquiridas, era natural julgar que nós sempre as tivemos. Não se podia duvidar, sobretudo quando se atentava nessas ideias, que, tendo sido conhecidas antes da idade da razão, não permitiram que se notasse o tempo em que se as teve pela primeira vez. As imagens que se delineiam na água não aparecem senão quando os objetos estão presentes e elas não podem ser, para nossa imaginação, o modelo dessas ideias que se supõem nascidas com nossa alma e conservam-se aí independentemente da ação dos objetos. Foi necessário então usar do recurso de uma nova comparação. (Comparações são, para muitos filósofos, uma grande fonte.) Representou-se a alma como uma pedra sobre a qual tinham sido gravadas diferentes figuras e acreditou-se explicar claramente falando em ideias ou imagens gravadas, impressas, marcadas na alma. Porque o ar e o tempo alteram as melhores gravuras, imaginou-se que as paixões e os prejuízos alteram também nossas ideias. Entretanto, ainda que existam gravuras muito pouco profundas ou feitas sobre pedras tão moles que o tempo as apaga inteiramente, parece que não se quis levar tão longe a comparação e que se tenha pensado que nossas ideias não eram impressas tão superficialmente, que nossas almas não eram tão moles para que as impressões que Deus nelas realizou pudessem apagar-se inteiramente. Para perceber quanto uma opinião é pouco razoável, não é sempre necessário entrar em grandes detalhes; seria suficiente observar como se foi conduzido até elas. Ver-se-á que com pouca coisa passa-se por filósofo, porque, frequentemente, basta ter imaginado uma semelhança tal qual entre as coisas espirituais e corporais; e, se se considerasse que os povos não falam senão supondo certa semelhança, descobrir-se-ia nos prejuízos mais populares o fundamento de muitos sistemas filosóficos. Quando falamos da alma, de suas ideias, seus pensamentos e tudo que experimenta, temos e podemos ter apenas uma linguagem figurada. Mostrei, em outro lugar, como as operações da alma foram denominadas segundo os nomes dados às operações dos sentidos. Ora, os filósofos têm sido enganados por essa linguagem, como o povo; e é por isso que creem explicar tudo com palavras. As ideias inatas sendo estabeleci das sobre tais fundamentos, não se tratava senão de determinar seu número. Alguns não tiveram dificuldades em admitir uma infinidade e em dizer que não temos ideias que não tenham nascido conosco, não concebendo como se poderia, sem isso, perceber cada objeto particular. Mas aqueles em que a vista vai muito longe para serem detidos por tão pequeno, obstáculo encontraram uma feliz solução nos sistemas em moda. Tendo refletido que tudo aí depende de certos princípios fecundos, disseram que não havia nada de inato a não ser esses princípios; que é nas noções gerais que vemos as verdades particulares e que o finito mesmo nos é conhecido unicamente pela ideia de infinito. Mas o que são essas noções gerais, as quais, exclusivamente, estariam impressas em nossas almas? Que os filósofos se dirijam a um gravador e lhe peçam para gravar um homem em geral! Não seria pedir o impossível, porque há, segundo eles, uma tão grande conformidade entre nossas ideias e as imagens gravadas nos corpos, pois eles concebem muito bem como a imagem de um homem em geral está impressa em nós. Eles lhe dirão que, se não souber gravar um homem em geral, não gravará jamais um homem em particular, porque este último é conhecido pela ideia que se tem do primeiro. Se, malgrado a evidência desse raciocínio, o gravador afirmar sua incapacidade, eles terão, sem dúvida, o direito de tratá-lo como um homem que ignora até os primeiros princípios das coisas e concluir que não se é bom gravador sem ser bom filósofo. Mas façamos todos os esforços para descobrir, na sua linguagem, os conhecimentos que eles creem ter; veremos com eles só imagens gravadas, impressas, marcadas; imagens que se alteram, que se apagam; expressões que oferecem um sentido claro e preciso quando se fala de corpos, mas que, aplicadas à alma e às suas ideias, são apenas metáforas, termos sem exatidão onde o espírito se perde em vãs imaginações. Locke deu à crença das ideias inatas muita honra pelo número e a solidez das reflexões que opôs a elas. Não seria necessário tanto para destruir um fantasma tão vão. Se eu imaginasse um sistema com vistas a provar que há no mundo seres dos quais não poderia dar a razão, seria bem mais natural aconselhar-me a formar ideias das coisas que quero sustentar do que refutar-me seriamente. Eis precisamente onde se está com relação a todos os sistemas abstratos; refuta-se-os melhor com algumas questões do que por longos raciocínios. Pergunte a um filósofo o que ele entende por tal ou tal princípio; se você o aperta, descobrirá logo o ponto fraco; verá que seu sistema gira sobre metáforas, comparações distantes e, então, ser-lhe-á mais fácil invertê-lo do que atacá-lo. ARTIGO 2º Das consequências dos prejuízos das ideias inatas Se alguns filósofos discutiram o privilégio de as ideias particulares serem inatas, isso é devido ao fato de que é mais fácil notar por qual sentido elas se transmitem até a alma. A dificuldade de fazer a mesma observação sobre as noções abstratas impediu de se formar o mesmo juízo. A cada ermo abstrato que se imaginou, não houve ninguém que não tenha acreditado que se tinha feito a descoberta de uma nova ideia inata, isto é, de uma ideia que, tendo sido gravada em nós por um ser que não pode enganar, é clara, distinta e conforme à essência das coisas. Imbuídos desse prejuízo, quanto mais os filósofos procuraram o conhecimento da natureza nas ideias distante dos sentidos, mais eles gabaram-se que o sucesso respondia às suas atenções. Eles multiplicaram ao infinito as definições vagas, os princípios abstratos; e, graças aos termos ser, substância, essência, propriedade, etc., não encontraram nada que não tenham acreditado ter explicado. O que ainda os fez cair mais no abuso dos termos abstratos é o sucesso com que se servem deles na geometria. Como essa linguagem é suficiente para determinar a essência das grandezas abstratas, acreditaram que seria suficiente, também, para determinar a das substâncias. Minha conjetura torna-se mais verossímil porque, quando eles querem explicar suas essências, veem-se embaraçados em extrair exemplos da metafísica e os tomam emprestados da geometria. Mas eu os aconselho a aproximar suas ideias das que os geômetras formam: só essa comparação os fará ver que estão muito longe de conhecer a essência das substâncias que se• está à altura de conhecer a das figuras. A obstinação em que estão com relação ao seu método os impede de seguir esse conselho, embaraça-os numa linguagem onde não se entendem mais a si mesmos. A tal ponto que falam de ideias e não sabem o que é isso; não têm signos para reconhecer a evidência; ignoram de onde devem tomar regras e princípios. São três inconvenientes em que não podem deixar de cair. Eis a prova. No sistema em que todos nossos conhecimentos vêm dos sentidos, nada é mais fácil que formar uma noção exata das ideias, porque as sensações são ideias sensíveis se as consideramos nos objetos com os quais as relacionamos, e, se as consideramos separadamente dos objetos, elas são ideias abstratas. É assim que, partindo daquilo que se sente, parte-se de alguma coisa determinada. A mesma precisão poderá, portanto, comunicar-se a todas as noções que se queira analisar. Mas, no sistema das ideias inatas, não se pode começar senão por alguma coisa vaga. Por consequência, não será possível determinar exatamente o que se deve entender por ideia. Um cartesiano célebre tomou o partido de dizer que esta palavra está no número daquelas que são tão claras que não se pode explicá-las por outras; e, como se quisesse provar imediatamente por seu exemplo que não há ninguém que possa desenvolver o sentido delas, acrescenta uma explicação completamente ininteligível. Descartes fez muitos esforços; mas nada é mais embaraçado nem, talvez, mais absurdo do que isso que imaginou. Com relação a Malebranche, sabe-se quais foram, nesse assunto, as visões que formou. Quanto à evidência, porque ela está fundada nas ideias, vê-se bem que ela não pode ser conhecida enquanto as ideias não o são. As tentativas dos filósofos para indicar um signo pelo qual se possa reconhecê-la são a prova. Eles não têm a não ser conselhos vagos a dar. Evite, dirá Descartes, a prevenção, a precipitação e seus juízos sejam sempre claros e distintos. Consulte, diz Malebranche, o mestre que o instrui interiormente e dê seu consentimento só quando você não o possa recusar sem sentir um constrangimento interior e censuras secretas de sua consciência, porque é por aí que esse mestre responde. As mesmas razões que os impedem de assegurar-se sobre a evidência são a causa de que os filósofos não podem construir regras que sejam de alguma utilidade na prática. Com efeito, os raciocínios são compostos de proposições; as proposições de palavras e as palavras são os signos de nossas ideias. As ideias, eis, portanto, o pivô de toda a arte de raciocinar; e, enquanto não se desenvolveu o que as concerne, tudo é sem nenhum uso nas regras que os lógicos imaginam para formar proposições, silogismos e raciocínios. Aqui os exemplos apresentam-se em quantidade, mas limitar-me-ei a examinar o princípio que se encara como o primeiro de todos. Ele é de Descartes. Não conheço nenhum outro que tenha sido tão bem recebido. Ele tem, com efeito, algo de sedutor. Ei-lo. Tudo o que está contido na ideia clara e distinta de uma coisa pode ser afirmado com verdade. Em primeiro lugar, filósofos como os cartesianos, não sabendo o que é uma ideia, não saberão melhor o que a torna clara e distinta. Parece, na sua linguagem, que ela é assim só porque se vê clara e distintamente que ela é conforme seu objeto. Seu princípio se reduz, portanto, em dizer que se pode afirmar de uma coisa tudo aquilo que se vê clara e distintamente que lhe convém. Nesse caso, ele é verdadeiro; mas qual a sua utilidade? Digo, em segundo lugar, que esse princípio é de uso perigoso. Temos um grande número de ideias que são parciais, seja porque as coisas contêm, frequentemente, muitas propriedades que não conhecemos, seja porque as propriedades que conhecemos, sendo em grande número para abarcá-las de uma só vez, as dividimos em diferentes ideias que consideramos, cada uma, separadamente. Em seguida, familiarizados com essas ideias parciais, as tomamos por ideias completas e supomos na natureza tantos objetos que lhes correspondem perfeitamente e que não contêm nada mais que o que elas representam. Se, nessas ocasiões, servimo-nos do princípio cartesiano, ele não fará outra coisa senão que persistamos no erro. Vendo que várias ideias parciais são claras e distintas e ignorando que pertencem a uma só coisa, acreditar-nos-emos autorizados a multiplicar os seres segundo o número de nossas ideias. Darei um exemplo que os cartesianos não poderão contestar. Os filósofos que admitem o vazio fundam-se no princípio de Descartes. Temos, dizem eles, a ideia de uma extensão divisível, móvel e impenetrável; temos, ainda, a ideia de uma extensão indivisível, imóvel e penetrável. Ora, está clara e distintamente contido nessas ideias que uma não é outra; portanto, podemos afirmar que há fora de nós duas extensões bem diferentes, das quais uma é o vazio e a outra uma propriedade do corpo. Ainda que esse raciocínio não seja difícil de inverter, não vejo como os cartesianos tenham respondido solidamente nem mesmo que o possam. Aqueles que são um pouco versados na leitura das obras dos filósofos e, sobretudo, dos metafísicos notarão facilmente quantas quimeras nascem deste princípio: tudo o que está contido na ideia clara e distinta de uma coisa pode ser afirmado com verdade. É verdade que a primeira vez que Descartes fez uso dele, deu-lhe toda clareza que se pode desejar, porque ele o aplicou a um caso particular onde não se pode ignorar o que é uma ideia clara e distinta. Esse filósofo, depois de ter feito seus esforços para duvidar de tudo, reconheceu como uma primeira verdade que ele é uma coisa que pensa. Procurando por que motivo aderiu a essa proposição, encontrou nela uma percepção clara e distinta de sua existência e do seu pensamento, e inferiu que podia estabelecer por regra geral que tudo aquilo que percebesse clara e distintamente é verdadeiro. Aqui, a ideia ou a percepção clara e distinta é a consciência de nossa existência e de nosso pensamento; consciência que nos é tão intimamente conhecida, que nada é mais evidente. Seria necessário, portanto, todas as vezes que quisermos usar a regra, examinar se a evidência que nós temos é igual àquela de nossa existência e de nosso pensamento. A regra não deveria se estender a casos diferentes do exemplo que a fez nascer. Se os cartesianos não tivessem ultrapassado esses limites não se poderia recusar a clareza do seu princípio. Mas eles o tornam logo obscuro por aplicações indevidas e suas ideias claras e distintas não são mais que um eu não sei que, que eles não podem definir. Concluamos que os filósofos, partindo da suposição das ideias inatas, começaram muito mal para poder elevar-se a verdadeiros conhecimentos. Seus princípios, aplicados a expressões vagas, não podem dar à luz senão opiniões ridículas e que se defenderão da crítica somente pela obscuridade que os deve rodear. CAPÍTULO XII Das hipóteses Os filósofos estão muito divididos no que concerne ao uso das hipóteses. Alguns, prevenidos pelo sucesso que elas têm em astronomia, ou, talvez, deslumbrados pela audácia de algumas hipóteses da física, encaram-nas como verdadeiros princípios; outros, considerando o abuso que se faz, desejariam bani-las das ciências. Os princípios abstratos, mesmo quando são verdadeiros e bem determinados, não são propriamente princípios, porque não são conhecimentos primeiros: só a determinação abstratos já leva a julgar que são conhecimentos que supõem outros. Esses princípios não são mesmo um meio próprio para nos conduzir a descobertas; porque, sendo apenas uma expressão abreviada dos conhecimentos que adquirimos, não podem nos conduzir senão a esses conhecimentos mesmos. Numa palavra, são máximas que contêm só aquilo que sabemos; e, como o povo tem provérbios, esses pretensos princípios são os provérbios dos filósofos; são somente isso. Na investigação da verdade, os princípios abstratos são, portanto, viciosos; ou, pelo menos, inúteis, e são bons, como máximas ou provérbios, porque são a expressão abreviada daquilo que sabemos pela experiência. Ao contrário, as hipóteses ou suposições, porque empregamos indiferentemente esses termos, são, na investigação da verdade, não somente meios ou conjeturas, podem ser, ainda, princípios, isto é, verdades primeiras que explicam outras. Elas são meios ou conjeturas, porque a observação, como já notamos, começa sempre por um tateio; mas elas são princípios ou verdades primeiras quando tenham sido confirmadas por novas observações que não deem mais lugar a dúvida. Para assegurar-se da verdade de uma suposição são necessárias duas coisas: poder esgotar todas as suposições possíveis com relação a uma questão e ter um meio que confirme nossa escolha ou que nos leve a reconhecer nosso erro. Quando essas duas condições se encontram reunidas, é certo que o uso das suposições é útil; é mesmo absolutamente necessário. A aritmética o prova por exemplos que estão ao alcance de todo mundo e que, por essa razão, devem ser preferidos em vez daqueles que se poderia tomar nas outras partes das matemáticas. Primeiramente, pode-se, na solução dos problemas de aritmética, esgotar todas as suposições, porque há sempre um pequeno número a fazer. Em segundo lugar, temos meios para descobrir se uma suposição é verdadeira ou falsa, ou mesmo para chegar de uma falsa suposição à descoberta do número que procuramos. É o que se denomina a regra da falsa posição. Nós nos conduzimos com tanta segurança nas operações de aritmética porque, tendo ideias exatas dos números, podemos remontar até as unidades simples que são os elementos e seguir a geração de cada número em particular. Não é espantoso que esse conhecimento nos forneça os meios de realizar todas as espécies de composições e de decomposições, e de nos assegurar por aí a exatidão das suposições que somos obrigados a empregar. Uma ciência, na qual nos servimos de suposições, sem temer o erro, ou, ao menos, com certeza de reconhecê-lo, deve servir de modelo a todas aquelas nas quais queremos usar esse método. Seria, portanto, desejável que fosse possível em todas as ciências, como na aritmética, esgotar todas as suposições e que se tivessem regras para se assegurar da melhor. Ora, para ter essas regras, seria necessário que as outras ciências nos fornecessem ideias tão nítidas e tão completas que se pudesse, pela análise, recuar aos primeiros elementos das coisas que elas tratam e seguir a geração de cada uma. Elas estão bem distantes de reunir todas essas vantagens; mas, na proporção que elas consigam suprir por equivalentes, poder-se-á fazer um maior uso das hipóteses. Não há lugar, depois das matemáticas puras, onde as hipóteses sejam tão bem sucedidas como na astronomia. Porque uma longa cadeia de observações tendo feito notar os períodos onde as revoluções se repetem, supôs-se para cada planeta um movimento e uma direção que davam perfeitamente razão das aparências onde eles se encontravam uns com relação aos outros. As ideias que se fizeram desse movimento e dessa direção são tão exatas quanto é necessário para a bondade de uma hipótese, porque vemos nascerem os fenômenos com tanta evidência que pudemos predizê-los até a última precisão. Aqui, as observações indicam todas as suposições que se podem fazer e a explicação dos fenômenos confirma aquelas que se escolheram. A hipótese não deixa, portanto, nada a desejar. Mas, se, não contentes de dar a razão das aparências, queremos determinar a direção e o movimento absolutos de cada planeta, eis uma situação onde nossas hipóteses não podem deixar de ser defeituosas. Não saberíamos julgar o movimento absoluto de um corpo a não ser quando o vemos seguir uma direção que o aproxima ou o distancia de um ponto imóvel. Ora, as observações astronômicas não podem jamais conduzir à descoberta, nos céus, de Um ponto cuja imobilidade seja certa. Não existe, portanto, hipótese na qual se possa estar seguro de ter dado a cada planeta a quantidade precisa de movimento que lhe pertence. Quanto à direção, os planetas poderiam ter uma simples, produzida unicamente pelo movimento que é próprio a cada um; ou poderiam ter uma composta, que adviria desse primeiro movimento e de outro que teriam em comum com o Sol. Supondo esse último caso, tratar-se-ia do mesmo caso dos corpos que se movem num navio que voga. Eis os pontos onde a experiência pode nos esclarecer; não poderíamos, portanto, conhecer a direção absoluta de um planeta. Consequentemente, devemos limitar-nos a julgar sobre a direção e os movimentos relativos dos astros e nos guiar somente pela observação. Nossas suposições serão mais felizes na medida em que formos observadores mais exatos. Uma primeira observação, ainda grosseira, levou a crer-se que o Sol, os planetas e as estrelas fixas giravam em torno da Terra; foi o que deu margem à hipótese de Ptolomeu. Mas as observações dos últimos séculos ensinaram que Júpiter e o Sol giram sobre seu eixo e que Mercúrio e Vênus giram em torno do Sol. Eis uma observação que indica que a Terra pode também ter dois movimentos: um sobre ela mesma e o outro em torno do Sol. Desde então, a hipótese de Copérnico confirmou-se tanto pelas observações como pelos fenômenos, que ela explicava mais simplesmente que nenhuma outra. Quis-se ir mais longe ainda e conhecer que círculo descrevem os planetas; julgou-se sobre as primeiras aparências e supôs-se que o Sol ocupava o centro. Mas, aproximando essa suposição das observações, reconheceu-se sua falsidade e viu-se que o Sol não podia estar no centro dos círculos. Foi continuando a observar com exatidão, não formulando hipóteses a não ser que as observações sugerissem e não as corrigindo a não ser que elas as corrigissem, que os astrônomos imaginaram sistemas cada vez mais simples e ao mesmo tempo mais capazes de dar a razão de um maior número de fenômenos. Vê-se, portanto, que, se suas hipóteses não assinalam a direção e o movimento absolutos dos astros, elas têm alguma coisa de equivalente com relação a nós, quando elas explicam as aparências. Por aí, elas tornam-se tão úteis como aquelas que formamos nas matemáticas. As hipóteses da física sofrem maiores dificuldades; são perigosas se não se as faz com muita precaução; e, frequentemente, é impossível imaginá-las razoáveis. Situados, como estamos, num átomo que rola num canto do universo, quem acreditaria que os filósofos tivessem se proposto demonstrar na física os primeiros elementos das coisas, explicar a geração de todos os fenômenos e desenvolver o mecanismo do mundo inteiro? É querer predizer demais sobre os progressos da física, imaginar que se possa ter suficientes observações para formar um sistema geral. Quanto mais a experiência fornecer materiais, mais sentir-se-á o que falta para um tão vasto edifício. Sempre restarão fenômenos a descobrir. Alguns estão muito distantes de nós para serem observados, outros dependem de um mecanismo que nos escapa. Não temos meios para penetrar nos motores. Ora, essa ignorância nos deixa impotentes para recuarmos às verdadeiras causas que produzem e ligam, num só sistema, o pequeno número de fenômenos que conhecemos. Porque, estando tudo ligado, a explicação das coisas que observamos depende de uma infinidade de outras as quais jamais poderemos observar. Se formularmos hipóteses, será portanto sem ter esgotado todas as suposições e sem ter regras que confirmem tais escolhas. Não se diga que as coisas que observamos são suficientes para imaginar aquelas que não são passíveis de observação; que, combinando umas com as outras, poderemos imaginar ainda outras novas; e que, remontando de causas em causas, poderemos adivinhar e explicar todos os fenômenos, ainda que a experiência não dê a conhecer senão um pequeno número. Não haveria nada de sólido num tal sistema; os princípios variariam segundo o grau de imaginação de cada filósofo e ninguém poderia estar seguro de ter encontrado a verdade. Além disso, quando as coisas são de tal natureza que não podemos observá-las, a imaginação não poderia fazer nada de melhor que representá-las sobre o modelo daquelas que observamos. Ora, como estar certos que os princípios que imaginaríamos são os mesmos da natureza? E sobre que fundamento quereríamos que ela não saiba fazer as coisas que nos esconde da mesma maneira que faz as que nos mostra? Não existe analogia que nos faça adivinhar seus segredos; e, verossimilmente, se ela se revelasse a nós, veríamos um mundo bem diferente daquele que vemos. É em vão, por exemplo, que o químico se gaba de chegar, pela análise, aos primeiros elementos: nada lhe prova que aquilo que toma por elemento simples e homogêneo não seja um composto de princípios heterogêneos. Vimos que a aritmética não dá regras para assegurar-se da verdade de uma suposição senão porque ela nos coloca em condições de analisar tão perfeitamente todas as espécies de números que podemos remontar aos seus primeiros elementos e seguir toda geração. Se um físico pudesse analisar da mesma maneira qualquer um dos objetos de que se ocupa, por exemplo, o corpo humano; se as observações o conduzissem até o primeiro motor que movimenta todos os outros e lhe fizesse penetrar o mecanismo de cada parte, aí então poderia formar um sistema que explicaria tudo o que notamos em nós. Mas nós distinguimos no corpo humano só as partes mais grosseiras e mais sensíveis e não podemos observá-las senão quando a morte tudo paralisa. As outras partes são um tecido de fibras tão delicadas, tão sutis que não poderíamos nada distinguir; não podemos compreender nem o princípio de sua ação nem a razão dos efeitos que produzem. Se somente um corpo é um enigma para nós, que enigma não é o universo! Que pensar portanto do projeto de Descartes, quando, com cubos que faz mover, pretende explicar a formação do mundo, a geração dos corpos e todos os fenômenos? Quando do fundo de seu gabinete, um filósofo ensaia o movimento da matéria, ele a dispõe• segundo sua vontade, nada lhe resiste. É que a imaginação vê tudo que lhe agrada, e nada mais. Mas de hipóteses tão arbitrárias não brota verdade alguma; elas, ao contrário, retardam o progresso das ciências e tornam-se muito perigosas pelos erros que obrigam a aceitar. É a essas suposições vagas que se devem atribuir as quimeras dos alquimistas e a ignorância em que os físicos estiveram durante muitos séculos. Os abusos desse método fazem-se sentir sobretudo nas ciências da prática; a medicina, por exemplo. Devido à ignorância em que nos encontramos sobre os princípios da vida e da saúde, essa ciência está toda baseada em conjeturas, isto é, em suposições que não se podem provar; e os casos aí variam tanto que não se poderia estar seguro de encontrar dois perfeitamente semelhantes; os médicos que seguem o método que eu censuro formam uma ciência que se conforma constantemente a certos princípios. Eles relacionam tudo com as suposições gerais que adotaram; não consultam nem o temperamento dos doentes nem nenhuma circunstância que poderia desarranjar suas hipóteses. Provocam, portanto, todo o mal que a ignorância dessas coisas pode naturalmente ocasionar. Infelizmente esse método lhes abrevia infinitamente a prática da arte: com um sistema geral não há doença que, ao primeiro golpe de vista, eles pareçam penetrar as causas e ver os remédios. Suas suposições, aplicáveis a tudo, dão-lhes ainda um ar seguro e uma facilidade de se exprimir que, com relação a nós, fazem as vezes de conhecimentos. Malgrado a inutilidade e as consequências perigosas das hipóteses gerais, os físicos têm dificuldade em renunciar a elas. Não se esquecem de salientar as hipóteses dos astrônomos; imaginam por aí autorizar as suas. Mas que diferença! Os astrônomos se propõem medir o movimento respectivo dos astros; investigação na qual se pode ter esperanças de sucesso; os físicos pretendem descobrir por quais vias se formou e se conserva o universo e quais são os primeiros princípios das coisas, vã curiosidade onde não se pode senão fracassar. Os astrônomos partem de um princípio certo, isto é, que é absolutamente necessário que o Sol ou a Terra gire; os físicos começam por princípios dos quais não saberão jamais formar uma ideia precisa. Dizem eles que as partes que compõem os corpos têm uma essência particular? Eles não têm ideia alguma da palavra essência. Dizem que todas as partes da matéria são similares que formam diferentes corpos, segundo as diferentes formas que tomam e a quantidade de movimento que recebem? É-lhes impossível determinar a figura e o movimento. Ora, que progresso se fez quando se sabe que os primeiros princípios dos corpos têm certa essência, certa figura e certo movimento, e que não se pode assinalar exatamente qual é essa essência, essa figura e esse movimento? Tal conhecimento junta alguma coisa às qualidades ocultas dos antigos? Para os astrônomos, é suficiente supor a existência da extensão e do movimento. Vimos como se limitam a explicar as aparências e com que precauções formam seus sistemas. As hipóteses dos físicos que eu critico são destinadas a nos fazer penetrar na natureza da extensão, dos movimentos de todos os corpos; e elas são obra de pessoas que, ordinariamente, observam pouco ou que desdenham instruir-se sobre as observações que os outros fizeram. Ouvi dizer que um desses físicos se felicitava de ter um princípio que explicava todos os fenômenos da química e ousou comunicar suas ideias a um hábil químico. Este último, tendo a complacência de escutá-lo, disse-lhe que lhe faria uma objeção apenas, isto é, que os fatos eram totalmente diferentes do que ele os supunha. Muito bem, disse o físico, ensine-me-os então a fim de que eu os explique. Isso ilustra, perfeitamente, o caráter de um homem que negligencia o ensinamento dos fatos porque crê ter a razão de todos os fenômenos, quaisquer que sejam. Só hipóteses vagas podem dar uma confiança tão mal fundada. Que nossas suposições, dizem os físicos, sejam falsas ou pouco certas, nada impede que as usemos para chegar a grandes conhecimentos. É assim que, para construir um edifício, empregam-se máquinas que se tornam inúteis quando o edifício está terminado. Não estamos em dívida com o sistema cartesiano com relação às mais belas e mais importantes descobertas que se fizeram, seja no desejo de o confirmar, seja no desejo de o combater? As experiências de Huyghens, Boile, Mariot, Newton sobre o ar, o choque, a luz e as cores são exemplos famosos. Respondo, primeiramente, que as suposições estão para um sistema assim como os alicerces estão para os edifícios. Assim, não é muito justo compará-las com as máquinas de que nos servimos para construir um edifício. Digo, em seguida, que as descobertas que foram feitas sobre o ar, o choque, a luz e as cores devem-se à experiência e não às hipóteses arbitrárias de alguns filósofos. O sistema de Descartes não engendrou a não ser erros; ele não nos conduziu a algumas verdades senão indiretamente, isto é, excitando nossa curiosidade a fazer certas experiências. Deve-se esperar que, nesse sentido, os sistemas físicos modernos serão, um dia, inúteis. A posteridade terá muita obrigação com os homens que consentiram em se enganar para lhe fornecer uma ocasião de adquirir ela mesma, descobrindo seus erros, os conhecimentos que teria tido deles, se tivessem se conduzido mais sabiamente. É necessário, portanto, banir da física todas as hipóteses? Não, sem dúvida, mas seria de pouca sabedoria adotá-las sem discernimento; deve-se desconfiar, sobretudo, das mais engenhosas. Porque aquilo que não é senão engenhoso, não é simples; e, certamente, a verdade é simples. Descartes, para formar o universo, pede a Deus só a matéria e o movimento. Mas, quando esse filósofo quer executar aquilo que promete, não é senão engenhoso. Ele nota, primeiramente, com razão, que as partes da matéria devem tender a mover-se, cada uma, em linha reta. E que, se elas não encontram obstáculos, continuarão todas a mover-se segundo essa direção. Ele supõe, em seguida, que tudo é pleno, ou melhor, ele o conclui da ideia que tem dos corpos e vê que as partes da matéria, agindo em todos os sentidos possíveis, devem ser mutuamente um obstáculo ao movimento umas das outras. Serão elas, portanto, imóveis? Não. Descartes explica de uma maneira engenhosa como imagina que elas serão movidas circularmente e que formam diferentes turbilhões. Newton encontrou muitas dificuldades nesse sistema. Ele rejeita o pleno com a suposição com a qual não se poderia conciliar o movimento. Sem empreender formar o mundo, contenta-se em observá-lo; projeto menos belo que o de Descartes, ou melhor, menos audacioso, mas mais sábio. Ele não se propôs, portanto, adivinhar ou imaginar os primeiros princípios da natureza. Se sentia a vantagem de um sistema que explicaria tudo, sentia, sob esse aspecto, toda a nossa incapacidade. Ele observou e investigou se entre os fenômenos havia um que se pudesse considerar como um princípio, isto é, como um primeiro fenômeno próprio para explicar outros. Se ele o encontrasse, formaria um sistema mais limitado que o da natureza, mas tão extenso quanto os nossos conhecimentos possam ser. Seu objetivo foi explicar as revoluções dos corpos celestes. Esse filósofo observou e demonstrou que todo corpo que se move numa curva obedece, necessariamente, a duas forças: uma, que tende a movê-lo em linha reta; outra, que o desvia dessa linha em cada instante. Supôs, portanto, essas duas forças em todos os corpos que realizam sua revolução em torno do Sol. A primeira é a que nomeia força de projeção; a segunda, que nomeia atração. Essa suposição não é gratuita e sem fundamento. Porque todo corpo em movimento tende a mover-se em linha reta; é evidente que ele não pode desviar-se dessa direção para descrever uma curva em torno de um centro, a não ser que obedeça a uma segunda força que o dirige continuamente em direção ao centro da curva. Newton não designa essa força pelo nome de impulsão, porque, se a impulsão tem lugar no movimento dos corpos celestes, é, pelo menos, certo que não se pode observá-la, e que nada a indica; ele a nomeia atração, porque a atração lhe é indicada no peso. Com efeito, na superfície da Terra, todas as partes pesam em direção a um centro comum; a certa distância dessa superfície, um corpo pesa ainda em direção a esse mesmo centro; isto se dará, da mesma maneira, a uma distância maior. A Lua pesa, portanto, sobre a Terra; a Terra e a Lua, sobre o Sol, etc. Vê-se que a analogia, a observação e o cálculo completarão esse sistema, que eu já expus em outro lugar. Os cartesianos censuram aos newtonianos que não se tem a ideia da atração; eles têm razão, mas é sem fundamento que julgam a impulsão mais inteligível. Se o newtoniano não pode explicar como os corpos se atraem, desafiará o cartesiano a dar a razão do movimento que se comunica no choque. É apenas uma questão dos efeitos, e eles são conhecidos; temos exemplos de atração como de impulsão. Se se trata da questão do princípio, ele é igualmente ignorado nos dois sistemas. Os cartesianos o conhecem tão pouco que são obrigados a supor que Deus fez uma lei de mover ele mesmo todos os corpos que sofrem choque de outros. Mas por que os newtonianos não poderiam supor que Deus fez uma lei de atrair os corpos para um centro na razão inversa do quadrado da sua distância? A questão reduzir-se-ia, portanto, em saber qual das duas leis Deus prescreveu e não vejo por que os cartesianos estariam, nesse assunto, melhor instruídos. Há hipóteses que são sem fundamentos; elas versam sobre a comparação de duas coisas que, na verdade, não se assemelham e, por essa razão, não se poderia concebê-las senão de uma maneira muito confusa. Mas, porque elas dão a ideia de uma espécie de mecanismo, elas explicam uma coisa quase como o verdadeiro mecânico a explicaria se a conhecesse. Essas suposições podem ser empregadas quando têm a vantagem de tornar mais sensível uma verdade prática e de nos instruir em tirar nosso proveito; mas seria necessário tomá-las pelo que elas são e é isso que não se faz. Queremos, por exemplo, fazer notar que a facilidade de pensar é adquirida pelo exercício, como todos os outros hábitos, e que se deveria esforçar-se muito cedo para adquiri-la? Toma-se, inicialmente, por princípio fatos que ninguém pode contestar: 1º) que o movimento é a causa de todas as mudanças que se dão no corpo humano; 2º) que os órgãos têm mais flexibilidade na proporção que mais se exercitam. Supõe-se, em seguida, que todas as fibras do corpo humano são pequenos canais onde circula um líquor muito sutil (os espíritos animais) que se espalha na parte do cérebro onde está a sede do sentimento, e que aí forma diferentes traços, sinais; que esses traços estão ligados com nossas ideias, que eles as despertam; e conclui-se que, quanto mais facilmente elas são despertadas, menos obstáculos encontraremos para pensar. Nota-se, em terceiro lugar, que as fibras do cérebro são, verossimilmente, muito moles e muito delicadas nas crianças; que, com a idade, elas se endurecem, se fortificam e tomam uma certa consistência, e que, enfim, a velhice, de um lado, as torna tão inflexíveis, que elas não obedecem mais à ação dos espíritos, e, de outro, seca o corpo de tal modo que ele não tem mais espíritos para vencer a resistência das fibras. Essas suposições sendo admitidas, não é difícil imaginar como se pode adquirir o hábito de pensar. Deixarei Malebranche falar, porque esse sistema pertence mais a ele do que a qualquer outro. "Não podemos", diz ele, "estar atentos a qualquer coisa, se não a imaginamos e não a representamos no cérebro”. Ora, a fim de que possamos imaginar quaisquer objetos, é necessário que flexionemos algumas partes de nosso cérebro, ou que lhes imprimamos algum outro movimento para poder formar os traços aos quais estão ligadas as ideias que nos representam esses objetos. De maneira que, se as fibras do cérebro estiverem um pouco endurecidas, elas serão capazes apenas da inclinação e do movimento que elas tiveram anteriormente. Assim, a alma não poderá imaginar, nem, por consequência, estar atenta àquilo que queria, mas somente às coisas que lhe são familiares. "Daí, é necessário concluir que é muito vantajoso exercitar-se, em boa hora, em meditar sobre todas as espécies de assuntos, a fim de adquirir certa facilidade em pensar aquilo que se queira. Porque, assim como adquirimos uma grande facilidade em mover os dedos de nossas mãos de todas as maneiras e com grande velocidade, pelo frequente uso que fazemos, utilizando instrumentos, da mesma maneira as partes de nosso cérebro, cujo movimento é necessário para imaginar o que queremos, adquirem, pelo uso, certa facilidade de flexão, que faz com que se imaginem as coisas que se quer com muita facilidade, prontidão e, mesmo, nitidez." Essa hipótese fornece, ainda, a Malebranche explicações de muitos outros fenômenos. Ele aí encontra, entre outras coisas, a razão dos diferentes caracteres que se encontram nos espíritos dos homens. Basta-lhe para isso combinar a abundância e a miséria, a agitação e a lentidão, a grandeza e a pequenez dos espíritos animais, com a delicadeza e a grosseria, a umidade e a secura, a rijeza e a flexibilidade das fibras do cérebro. Com efeito, "porque a imaginação não consiste senão na força que tem a alma em formar imagens dos objetos, imprimindo-as, por assim dizer, nas fibras do seu cérebro, quanto mais os vestígios dos espíritos animais, que são os traços dessas imagens, sejam grandes e distintos, mais a alma imaginará forte e distintamente esses objetos. Ora, da mesma maneira que a largura, a profundidade e a nitidez dos traços de qualquer gravura dependem da força impressa ao buril e da obediência do cobre, também a profundeza e a nitidez dos vestígios da imaginação dependem dos espíritos animais e da constituição das fibras do cérebro; e é a variedade que se encontra nessas duas coisas que forma quase toda essa grande diferença que notamos entre os espíritos. Eis explicações engenhosas; mas, se se imaginasse ter por aí uma ideia exata daquilo que se passa no cérebro, nós nos enganaríamos muito. Tais hipóteses não fornecem a verdadeira razão das coisas; elas não são feitas para conduzir a descoberta, e seu uso deve estar limitado a tornar sensíveis as verdades que a experiência não permite duvidar. Em astronomia, as hipóteses têm um caráter bem diferente. Um astrônomo tem ideias dos astros, da direção à qual estão submetidos seus cursos e dos fenômenos que resultam. Mas Malebranche representa muito imperfeitamente os espíritos animais, sua circulação em todo o corpo e os traços que eles formam no cérebro. A natureza conforma-se a suposições do primeiro e parece mais disposta em, mostrar-se a ele. Para o outro, ela somente lhe permite notar que as leis da mecânica são os princípios de todas as mudanças do corpo humano; e se o sistema dos espíritos animais tem alguma relação com a verdade, é só porque é uma espécie de mecanismo. A relação pode ser mais vaga? Quando um sistema dá a verdadeira razão das coisas, todos os detalhes são interessantes. Mas as hipóteses de que falamos tornam-se ridículas quando seus autores resolvem desenvolvê-las com mais cuidado. É que, quanto mais multiplicam as explicações vagas, mais parecem aplaudir-se em ter penetrado a natureza; e não lhes perdoamos esse engano. Estas espécies de hipóteses pretendem, portanto, ser expostas brevemente, e não exigem detalhes senão quando é necessário para tornar sensível uma verdade. Pode-se julgar se Malebranche está absolutamente isento de censuras sob este aspecto. Expliquei em minha Lógica a sensibilidade, a memória e, por consequência, todos os hábitos do espírito. É um sistema no qual raciono sobre suposições; mas elas são todas indicadas pela analogia. Os fenômenos desenvolvem-se aí naturalmente, explicam-se de uma maneira muito simples; e, entretanto, aviso que suposições como as minhas, quando não são indicadas pela analogia, não têm a mesma evidência que as suposições que a própria experiência indica e que ela confirma; porque, se a analogia pode não permitir a dúvida sobre uma suposição, somente a experiência pode torná-la evidente; e, se não se deve rejeitar como falso tudo aquilo que não é evidente, não é necessário, também, encarar como verdades evidentes todas aquelas de que não duvidamos. Os corpos elétricos oferecem uma grande quantidade de fenômenos; eles atraem, repelem, emitem raios luminosos, faíscas, inflamam o álcool, produzem comoções violentas, etc. Se se imaginasse uma hipótese para explicar esses efeitos, seria necessário que ela fizesse ver uma analogia muito sensível entre eles; que eles se explicassem, todos, uns pelos outros. A experiência nos mostra tal analogia entre alguns desses fenômenos. Vemos, por exemplo, que um corpo elétrico atrai corpos que não o são e repele aqueles a que comunicou eletricidade; vemos, ainda, que um corpo eletrizado perde toda a sua virtude quando é tocado por um corpo que não o é. Ora, esses fatos explicam perfeitamente o movimento de uma pequena folha que vai alternativamente do dedo que a toca ao tubo que a repele. Ela se distancia do tubo quando lhe é comunicada eletricidade; e ela dele se aproxima quando a perde pelo contato com o dedo. A experiência nos fazendo ver alguns fatos que se explicam por outros, oferece-nos um modelo da maneira pela qual uma hipótese deveria dar a razão de todos. Assim, para assegurar-se da bondade de uma suposição, deve-se considerar se as explicações, que ela fornece para certos fenômenos, estão concordes com aquelas que a experiência fornece para outros; se ela os explica todos, sem exceção, e se não há observações que não tendem a confirmá-la. Quando todas essas vantagens se encontram reunidas não se pode duvidar que ela contribua para o progresso da física. Não se deve; portanto, interditar o uso das hipóteses aos espíritos muito vivos para preceder, algumas vezes, a experiência. Suas conjeturas, contanto que eles as deem pelo que elas são, podem indicar as investigações a fazer e conduzir a descobertas. Mas deve-se convidá-los a juntar todas as precauções necessárias e jamais prevenir-se pelas suposições que fizeram. Se Descartes não tivesse dado às suas ideias senão o caráter de conjeturas, não teria fornecido menos ocasião de se fazerem observações; mas, dando-as como o verdadeiro sistema do mundo, encaminhou para o erro todos aqueles que adotaram seus princípios e colocou obstáculos ao progresso da verdade. Resulta de todas estas reflexões que se podem extrair diferentes vantagens das hipóteses, segundo a diferença dos casos onde se as usa. Primeiramente, elas não são somente úteis, mas necessárias mesmo, quando se podem esgotar todas as suposições e quando temos uma regra para reconhecer a boa. As matemáticas fornecem exemplos. Em segundo lugar, não se poderia passar sem sua ajuda na astronomia; mas seu uso deve estar limitado à explicação das revoluções aparentes dos astros. Assim, elas começam a ser menos vantajosas na astronomia que nas matemáticas. Em terceiro lugar, não se deve rejeitá-las quando elas podem facilitar as observações, ou tornar mais sensíveis as verdades atestadas pela experiência. Tal é o caso de várias hipóteses da física, se se as reduz ao seu justo valor. Mas, as mais perfeitas, que os físicos podem usar, são aquelas que as observações indicam e que dão de todos os fenômenos explicações análogas àquelas que a experiência fornece em alguns casos. CAPÍTULO XIV Dos casos nos quais se podem formar sistemas sobre princípios constatados pela experiência Pela simples ideia que se deve ter de um sistema, é evidente que se podem só chamar sistemas essas obras onde se pretende explicar a. natureza por meio de alguns princípios abstratos. As hipóteses, quando são feitas segundo as regras que demos, podem ser o fundamento de um sistema. Mostramos as vantagens. Mas, para não deixar nada a. desejar num sistema, é necessário dispor as diferentes partes de uma arte ou de uma ciência numa ordem na qual elas se explicam umas pelas outras, e onde se relacionam todas com um primeiro fato bem constatado, do qual, unicamente, elas dependem. Esse fato será o princípio do sistema, porque ele será o começo. É evidente que se tentaria inutilmente dispô-los dessa maneira se não os conhecêssemos todos e se não víssemos todas as relações. A ordem que se imaginaria para as partes, que seriam conhecidas, não seria conveniente para aquelas que não o seriam; e, à medida que se adquirissem novos conhecimentos, notar-se-ia a insuficiência dos princípios que, apressadamente, se adotaram. Aqueles que, isentos de prevenção, tentaram formar sistemas podem, por sua própria experiência, convencer-se do que eu digo. Reconhecerão que, enquanto não tenham bem desenvolvido a matéria que querem explicar, não estarão firmes nos seus princípios. Serão obrigados a estendê-los, restringi-los, mudá-los; e eles não se tornarão precisos senão na medida em que, meditando muito seu assunto, distingam melhor todas as partes. Será, portanto, inútil querer formar sistemas sobre matérias que não foram, ainda, aprofundadas. O que aconteceria, então, se se trabalhasse sobre outras que não seria possível penetrar? Eu suponho um homem, que não tem nenhuma ideia de relojoaria nem de mecânica, tentando explicar os efeitos de um pêndulo: inutilmente observaria sons que ele produz de tempo em tempo e notaria o movimento dos ponteiros; privado do conhecimento da estática, lhe é impossível explicar esses fenômenos de uma maneira racional. Conduza-o a fazer observações sobre as coisas que levaram à invenção da relojoaria, ele poderá chegar a imaginar um mecanismo que produziria quase os mesmos efeitos. Porque não parece absolutamente impossível que uma arte, da qual os progressos são devidos aos trabalhos de várias pessoas, fosse obra de um só. Enfim, abra-lhe esse pêndulo, explique-lhe o mecanismo; imediatamente ele percebe a disposição de todas as partes, vê como elas agem umas sobre as outras e remonta até o primeiro motor de que elas dependem. Não é senão nesse momento que ele conhece com certeza o verdadeiro sistema que explica as observações que tinha feito. Este homem é o filósofo que estuda a natureza. Concluamos, portanto, que não podemos formar verdadeiros sistemas senão nos casos dos quais temos observações suficientes para perceber o encadeamento dos fenômenos. Ora, vimos que não poderemos observar nem os elementos das coisas nem os primeiros motores dos corpos vivos; podemos apenas notar os efeitos muito distanciados. Por consequência, os melhores princípios que se podem ter na física são os fenômenos que explicam outros, mas que dependem, eles mesmos, de causas que não conhecemos. Não há ciência nem arte da qual não se possam formar sistemas; mas, em alguns, propõe-se explicar os efeitos; nos outros, prepará-los e produzi-los. O primeiro objeto é o da física; o segundo, da política. Há ciências que possuem um e outro, como a química e a medicina. As artes podem, também, distinguir-se em classes, segundo aquelas dos objetos que se têm particularmente em vista. f: para produzir certos efeitos que se imaginaram alavancas, roldanas, rodas e outras máquinas. Assim, nas artes mecânicas começou-se pelos fatos que deviam servir de princípios a um sistema. Nas belas-artes, ao contrário, somente o gosto produziu os efeitos; quis-se, em seguida, investigar os princípios e acabou-se por onde se tinha começado nos outros. As regras que aí são dadas são mais destinadas a explicar os efeitos que a produzi-los. Estes são os casos onde os sistemas podem ter fatos por princípios. (Resta tratar das precauções com as quais se deve formá-los. Começarei pelos sistemas da política porque são os menos perfeitos.) CAPÍTULO XVI Do uso dos sistemas na Física Porque os físicos devem limitar-se a colocar num sistema as partes da física que lhes são conhecidas, seu único objeto deve ser observar os fenômenos, perceber o encadeamento e remontar até àqueles dos quais muitos dependem. Mas esta dependência não pode consistir numa relação vaga: é necessário explicar tão bem os efeitos que a geração seja sensível. O fenômeno que notamos como primeiro é o da extensão; o do movimento é o segundo; pela maneira como ele modifica a extensão, produz muitos outros. Mas, do fato de que não possamos remontar mais alto não se deveria concluir que• não há senão a extensão e o movimento; não se deveria, também, querer explicar esses fenômenos. A experiência nos faltaria e não poderíamos imaginar senão princípios abstratos dos quais vimos pouca solidez. É muito importante observar, na medida do possível, todos os efeitos que o movimento pode produzir na extensão e notar, sobretudo, as variedades que ele experimenta quando passa de um corpo a outro. Mas, a fim de que não se deslizem nas experiências nem erros nem detalhes supérfluos, não se deve deter o olhar senão sobre aquilo que oferece ideias inatas. Não se deve, portanto, tentar determinar aquilo que se chama a força de um corpo; isso é o nome de uma coisa da qual não temos nenhuma ideia. Os sentidos dão uma ideia do movimento; julgamos sua velocidade, medimos os graus relativos, considerando o espaço percorrido num certo tempo delimitado; o que mais é preciso? Que luz poderia ser espalhada sobre nossas observações pelos vãos esforços que faríamos para conhecer essa força que encaramos como o princípio do movimento? Não há senão um caso onde se pode empregar a palavra força; é quando se considera um corpo como uma força com relação a outro sobre o qual ele age. Os cavalos, por exemplo, são uma força com relação ao carro que puxam; mas, nesse caso, o termo não exprime o princípio do movimento, indica somente um fenômeno. Distingamos, portanto, cuidadosamente os diferentes casos onde se pode observar os móveis. São corpos sólidos ou fluidos, elásticos ou não elásticos? Quais são aqueles que lhes comunicam movimento? Quais são os meios onde se movem? Comparemos as velocidades e as massas, e notemos em quais proporções o movimento se comunica, aumenta, diminui; quando ele amortece e como toma diferentes direções. Se, na medida em que recolhemos os fenômenos, os dispusermos numa ordem onde os primeiros explicam os últimos, os veremos iluminarem-se mutuamente. Essa luz esclarecer-nos-á sobre as experiências que nos restam por fazer; indicará essas experiências e nos fará formar conjeturas que serão frequentemente, confirmadas pelas observações. Por este meio, descobriremos pouco a pouco as diferentes leis do movimento e reduziremos a um pequeno número os fenômenos que devem servir de princípios. Talvez, mesmo, encontremos uma lei que substitua todas as leis, porque será aplicável a todos os casos. Então, nosso sistema seria tão perfeito quanto possa ser e não faltaria mais nada à parte da física que trata do movimento dos corpos. Tudo consiste, portanto, na física em explicar os fatos pelos fatos. Quando um só não é suficiente para explicar todos aqueles que são análogos, devem-se empregar dois, três ou mais. Na verdade, um sistema está ainda bem longe de sua perfeição quando os princípios nele se multiplicam muito. Entretanto, não se deve dispensar de usá-los. Mostrando uma ligação entre certo número de fenômenos, pode-se ser conduzido à descoberta de um fenômeno que será suficiente para explicá-los todos. Mas uma lei essencial é nada admitir que não tenha sido confirmado por experiências bem feitas. Mais de um exemplo prova o quanto certos fatos são próprios para explicar outros e para sugerir experiências que contribuam ao progresso da física. O fenômeno da água que se eleva acima de seu nível numa bomba aspirante, e muitos outros, não podiam ser explicados pelos filósofos antigos. Prevenidos de que o ar tem uma leveza absoluta, atribuíam todos esses efeitos a um pretenso horror da natureza ao vazio. Tal princípio não era nem luminoso nem próprio para ocasionar descobertas. Assim, não foi senão quando ele pareceu suspeito que os físicos sonharam em fazer as experiências às quais eles devem o conhecimento do verdadeiro princípio desses fenômenos. Galileu observou os efeitos das bombas aspirantes, e tendo-se assegurado de que a água sobe só a trinta e dois pés e que além disso o tubo fica vazio, concluiu que não se tinha conhecido a verdadeira causa desse fenômeno. Torricelli procurou-a; é a ele que se deve a primeira experiência do tubo invertido no qual o mercúrio se sustenta na altura de vinte e sete polegadas e meia. Comparou essa coluna com outra de água de mesma base e de trinta e dois pés de altura: elas encontravam-se exatamente com o mesmo peso. Conjeturou que elas não poderiam estar sustentadas senão porque estavam em equilíbrio com uma coluna de ar; e isso foi a primeira prova do peso desse fluido. Um homem célebre que viveu muito para sua reputação mas muito pouco para o progresso da ciência, Pascal, sentiu quanto era importante assegurar-se da conjetura de Torricelli. Julgou que, se o ar é pesado, sua pressão deve fazer-se como a dos líquidos, que deve diminuir ou aumentar segundo a altura da atmosfera e que, por consequência, as colunas suspensas no tubo de Torricelli seriam mais ou menos longas segundo a altura mais ou menos elevada do lugar onde a experiência seria feita. Puy-de-Dôme em Auvergne foi escolhido para isso e o acontecimento confirmou o raciocínio de Pascal. Estando constatado o peso do ar, explicaram-se de uma maneira natural os efeitos que tinham levado a imaginar que a natureza tem horror ao vazio. Mas essa não foi a única vantagem desse princípio. O cuidado que se teve em repetir, frequentemente, a experiência de Torricelli levou logo a notarem-se as variações que se dão na altura do mercúrio no tubo. Constatou-se que o peso do ar não é constantemente o mesmo; observaram-se os graus segundo os quais varia e imaginou-se o barômetro, instrumento cujos efeitos são conhecidos hoje por todo mundo. Para melhor ainda julgar os fenômenos produzidos pelo peso do ar imaginaram-se os meios de se ter um espaço onde o ar foi bombeado. Imaginou-se a máquina pneumática; viram-se, então, vários novos fenômenos que confirmaram o peso do ar e explicaram-se por ele. É assim que um princípio deve explicar as coisas e conduzir a descobertas. Seria de desejar que os físicos empregassem somente os dessa espécie. Quanto às suposições que não podem ser objeto de observação, vimos o quanto o uso que eles podem delas fazer é limitado. Há essa diferença entre as hipóteses e os fatos que servem de princípios: uma hipótese torna-se mais incerta à medida que se descobre um maior número de efeitos que ela não explica, ao passo que um fato é sempre igualmente certo e ele não pode deixar de ser o princípio dos fenômenos dos quais deu a explicação. Se há efeitos que ele não explica, não se deve rejeitá-lo; deve-se trabalhar para descobrir os fenômenos que o ligam com eles e que formam todos um só sistema. Há, também, uma grande diferença entre os princípios da física e os da política. Os primeiros são fatos de que a experiência não permite duvidar, os últimos não têm sempre essa vantagem. Frequentemente, a multidão de circunstâncias e a necessidade de determinar-se prontamente obrigam o homem de Estado a se regular sobre aquilo que não é senão provável. Obrigado a prever ou preparar o futuro, ele não poderia ter as mesmas luzes que o físico, que raciocina sobre o que vê. A física não pode edificar sistemas senão em casos particulares; a política deve ter visões gerais e abarcar todas as partes do governo. Numa, não se deveriam derrubar muito cedo os maus princípios, não há precaução a tomar e deve-se, sempre, perceber sem atraso aqueles que a observação fornece; no outro, conformamo-nos com as circunstâncias; não podemos rejeitar de imediato um sistema defeituoso que se encontre estabelecido; toma-se muito cuidado e só se tende com lentidão para um sistema mais perfeito. Não falo do uso dos sistemas na química, na medicina, etc. Essas ciências são parte da física e o método deve ser o mesmo. Além disso, todas as pessoas instruídas conhecem os progressos que a química faz diariamente e os procedimentos dos bons espíritos que a cultivam hoje constituem o método que convém a essa ciência. CAPÍTULO XVIII Considerações sobre os sistemas ou sobre a maneira de estudar as ciências Somos, comumente, levados a crer que abstrato e difícil são a mesma coisa: eis o que eu não compreendo. Mas compreendo que há escritores que não podemos entender, não porque eles sejam abstratos mas porque não sabem analisar as ideias abstratas que eles formam; duas coisas que não se devem confundir. Se, como acredito ter demonstrado, uma ciência bem tratada é uma língua feita, não há ciência que não deva estar ao alcance de um homem inteligente, porque toda língua bem feita é uma língua que se entende. Se vocês não entendem nunca, é porque eu não sei escrever, e se lhes acontece, algumas vezes, não me entender é porque, algumas vezes, escrevo mal. Censurem-me, portanto, somente quando não me entendem e eu censurarei vocês só quando não me lerem com atenção. Com efeito, por que seriam tão difíceis as ideias abstratas? Não o saberíamos falar sem formá-las. Ora, se as formamos continuamente nos discursos, por que não saberíamos formá-las em nossos estudos? Mas uma ciência, dir-se-á... Pois bem! Uma ciência exige, sem dúvida, uma atenção contínua. Mas, se você é capaz de atenção, por que ela seria incompreensível? Por que seria difícil? Você ultrapassou muito bem outras dificuldades quando na infância aprendeu sua língua. Uma ciência bem tratada é um sistema bem feito. Ora, num sistema, não há, em geral, senão duas coisas: os princípios e as consequências. Quaisquer que sejam os princípios, uma vez que eles são admitidos, não são as consequências que são difíceis de perceber: é necessário estar muito distraído ou muito preocupado para que elas escapem e nós somos naturalmente consequentes. Do mesmo modo, quando se colocam poucas dificuldades nos princípios, o que é muito frequente, os sistemas se formam sozinhos. Observe o espírito humano, você verá em cada século que tudo é sistema tanto no povo quanto no filósofo. Você notará que se vai, naturalmente, de prejuízo em prejuízo, de opinião em opinião, de erros em erros como se iria de verdade em verdade; porque os maus sistemas não se formam de maneira diferente dos bons. Você compreende com que facilidade devemos formar sistemas se considera que a natureza forma um ela mesma, de nossas faculdades, de nossas necessidades e das coisas relativas a nós. É segundo esse sistema que nós pensamos, é segundo esse sistema que nossas opiniões, quaisquer que sejam elas, se produzem e se combinam; como, portanto, nossas opiniões não as formariam? Certamente encontraremos sistemas semelhantes nas nações mais grosseiras e mais ignorantes. Ora, se os maus sistemas são consequentes e se formam, entretanto, tão natural e facilmente, não seria pelas consequências que um bom sistema seria difícil de compreender. Será, portanto, pelos princípios? Concordo que o melhor sistema não se compreenda senão dificilmente se se escolheu a síntese para explicá-lo; e isso não é espantoso, porque esse método leva sempre a começar pelas coisas que não se entendem. Mas, quando a análise desenvolve um sistema, ela começa pelo princípio, pelo começo; e o começo é tão simples que um bom sistema se forma com a mesma facilidade que o mau. É-se levado, naturalmente, de descoberta em descoberta: basta ter o espírito consequente. De onde pode, portanto, advir a dificuldade? Porque é necessário convir que haja uma. Quando você estuda uma ciência nova, se ela está bem exposta, os começos devem ser mais fáceis: porque o conduzem do conhecido ao desconhecido. Fazem-no, portanto, encontrar, nos seus conhecimentos, as primeiras coisas que você deve notar, e parece que você as sabia antes de tê-las aprendido. Entretanto, quanto mais esse começo é fácil, mais você se apressa em ir mais longe; você o entendeu e crê que isso lhe é suficiente. Mas note que você tem uma língua para aprender e que uma língua não se sabe somente pelo fato de ter visto as palavras uma vez: é necessário falá-la, é necessário torná-la familiar. Não se espante, portanto, se, depois de ter entendido um primeiro capítulo, tenha alguma dificuldade em entender o segundo, o qual você percorre muito rapidamente. Continuando dessa maneira, lhe será muito mais difícil, ainda, entender o terceiro. Comece, portanto, lentamente e tudo lhe será fácil quando o começo lhe for familiar. Entretanto, resta uma dificuldade, e ela é grande. Ela advém de que, antes de ter estudado as ciências, você já fala a língua e você a fala mal. Portanto, com exceção de algumas palavras que lhe são novas, a língua das ciências é a sua. Ora, convenha que você fala frequentemente sua língua sem entender o que você diz, ou que você se entende mais ou menos. Isso, entretanto, lhe é suficiente e isso é suficiente aos outros porque eles lhe pagam na mesma moeda. Parece que, para manter nossas conversações, concordamos tacitamente que as palavras substituem as ideias, como o jogo das fichas substitui o do dinheiro; e, ainda que haja ao menos um grito contra aqueles que têm a imprudência de jogar, sem estarem informados do valor das fichas, cada um pode impunemente falar sem ter aprendido o valor das palavras. Você quer aprender as ciências com facilidade? Comece por aprender sua língua.