Étienne Bonnot de Condillac – Lógica ou os primeiros desenvolvimentos da arte de pensar. Objeto desta obra Era natural aos homens suprir a fraqueza de seus braços pelos meios que a natureza havia colocado a seu alcance; e eles foram mecânicos antes de procurarem sê-lo. Da mesma forma, eles foram lógicos: pensaram antes de investigar como se pensa. Foi até necessário que passassem séculos para suspeitarem que o pensamento possa estar sujeito a leis; e hoje a grande maioria ainda pensa sem suspeitar disso. No entanto, um instinto feliz, que se denominava talento, isto é, uma maneira mais segura de ver e de sentir, guiava os melhores espíritos sem seu conhecimento. Seus escritos tornavam-se modelos; e procuraram-se nestes escritos quais os artifícios, ignorados pelos próprios escritores, que produziam o prazer e a luz. Quanto mais surpreendiam, mais se imaginava que eles possuíam meios extraordinários; e procuraram-se estes meios extraordinários quando se deveriam procurar apenas os simples. Portanto, bem cedo se acreditou que os homens de gênio haviam sido descobertos. Mas eles não se descobrem facilmente: seu segredo mantinha-se oculto, pois nem mesmo eles tinham o poder de revelá-lo. Procuraram-se, portanto, as leis da arte de pensar onde elas não estavam; e é neste ponto, aparentemente, que nós começaríamos nossa busca. Mas, procurando-as onde elas não estavam, vimos onde estão; e poderemos nos vangloriar de encontrá-las, se soubermos observar melhor. Ora, como a arte de mover grandes massas tem suas leis nas faculdades do corpo e nas alavancas que nossos braços aprenderam a utilizar a arte de pensar tem as suas leis nas faculdades da alma e nas alavancas que nosso espírito igualmente aprendeu a utilizar. É preciso, então, observar estas faculdades e estas alavancas. Certamente um homem não imaginaria estabelecer definições, axiomas, princípios, se quisesse, pela primeira vez, fazer algum uso das faculdades de seu corpo. Não é possível. É obrigado a começar servindo-se de seus braços e lhe é natural servir-se deles. Do mesmo modo que lhe é natural auxiliar-se de tudo aquilo que lhe for útil para alcançar este fim e, logo, transforma um bastão em uma alavanca. O uso aumenta suas forças: a experiência, que lhe mostrou o seu mau uso e, consequentemente, a maneira correta de proceder, desenvolve pouco a pouco todas as faculdades do corpo e ele aprende. E assim que a natureza nos obriga a começar, quando, pela primeira vez, fazemos algum uso das faculdades de nosso espírito. E ela e só ela que as regula, da mesma maneira que regulou as faculdades do corpo. Se, a seguir, nós somos capazes de conduzi-las, é apenas porque continuamos como a natureza nos obrigou a começar. Devemos nossos progressos a suas primeiras lições. Não começaremos então esta Lógica por definições, axiomas, princípios: começaremos por observar as lições que a natureza nos dá. Na primeira parte, veremos que a análise é um método que aprendemos da própria natureza; e explicaremos, segundo este método, a origem e a geração, seja das ideias, seja das faculdades da alma. Na segunda, consideraremos a análise em seus meios e em seus efeitos, e a arte de raciocinar será reduzida a uma língua bem feita. Esta Lógica não se assemelha a nenhuma feita até hoje. Mas a nova maneira pela qual ela é tratada não deve ser sua única vantagem; além disso, é preciso que seja a mais simples, a mais fácil e a mais luminosa. PRIMEIRA PARTE COMO A PRÓPRIA NATUREZA NOS ENSINA A ANALISE; E DE QUE MANEIRA, DE ACORDO COM ESTE MÉTODO, EXPLICAM-SE A ORIGEM E A GERAÇÃO, SEJA DAS IDEIAS, SEJA DAS FACULDADES DA ALMA. CAPÍTULO I Como a natureza nos dá as primeiras lições da arte de pensar A FACULDADE DE SENTIR É A PRIMEIRA DAS FACULDADES DA ALMA. Nossos sentidos são as primeiras faculdades que notamos. E somente através deles que as impressões dos objetos chegam até a alma. Se fôssemos privados da visão, não conheceríamos nem a luz, nem as cores; se fôssemos privados da audição, não teríamos conhecimento algum dos sons: numa palavra, se tivéssemos sentido algum, não conheceríamos nenhum dos objetos da natureza. Mas, para conhecer estes objetos, basta possuir os sentidos? Não, seguramente: pois os mesmos sentidos são comuns a todos, e, no entanto, não possuímos todos os mesmos conhecimentos. Esta desigualdade só pode provir das diferentes maneiras pelas quais utilizamos os sentidos que nos foram dados. Se eu não aprender a regulá-las, adquirirei menos conhecimentos que outro, pelo mesmo motivo que só se dança bem se se aprende a acertar os passos. Tudo se aprende e existe uma arte para conduzir as faculdades do espírito, como existe uma para conduzir as faculdades do corpo. Mas só se aprende a conduzir estas porque as conhecemos: é preciso então conhecer aquelas para aprender a conduzi-las. Os sentidos são apenas a causa ocasional das impressões que os objetos exercem sobre nós. E a alma que sente; somente a ela as sensações pertencem; e sentir é a primeira faculdade que notamos nela. Esta faculdade se distingue em cinco espécies, porque temos cinco espécies de sensações. A alma sente pela visão, pela audição, pelo olfato, pelo paladar e principalmente pelo tato. NÓS SABEREMOS REGULÁ-LA, QUANDO SOUBERMOS REGULAR NOSSOS SENTIDOS. Já que a alma sente apenas pelos órgãos do corpo, é evidente que aprenderemos a conduzir regradamente a faculdade de sentir de nossa alma, se aprendermos a conduzir regradamente nossos órgãos sobre os objetos que queremos estudar. SABEREMOS REGULAR NOSSOS ÓRGÃOS QUANDO TIVERMOS PERCEBIDO DE QUE MANEIRA ALGUMAS VEZES OS CONDUZIMOS BEM. Mas como aprender a conduzir bem nossos sentidos? Procedendo da mesma forma que procedemos quando os conduzimos bem. Não há ninguém que, pelo menos algumas vezes, não tenha conduzido bem seus sentidos. E uma coisa sobre a qual as necessidades e a experiência nos instruem prontamente: as crianças são a prova disso. Elas adquirem conhecimentos sem nossa ajuda; e os adquirem apesar dos obstáculos que colocamos ao desenvolvimento de suas faculdades. Elas têm, portanto, uma arte para adquiri-los. E verdade que seguem as regras sem conhecê-las, mas as seguem. Então, é preciso apenas fazer-lhes notar aquilo que fazem algumas vezes, para ensiná-las a fazê-lo sempre; e descobriremos que apenas lhes ensinamos aquilo que já sabiam. Como começaram sozinhas a desenvolver suas faculdades, sentirão que podem desenvolvê-las, se fizerem, para aperfeiçoar este desenvolvimento, o que fizeram para começá-lo. Elas sentirão cada vez mais que, tendo começado, antes de nada haver aprendido, começaram bem, porque é a natureza que começava por elas. É A NATUREZA, ISTO É, SÃO NOSSAS FACULDADES DETERMINADAS POR NOSSAS NECESSIDADES QUE COMEÇAM A NOS INSTRUIR. As necessidades e as faculdades são especificamente o que denominamos a natureza de cada animal e, por este meio, não queremos dizer outra coisa senão que um animal nasceu com tais necessidades e tais faculdades. Porque estas necessidades e estas faculdades dependem da organização e variam como ela, é uma consequência que, pela natureza, compreendemos a conformação dos órgãos: e, com efeito, eis o que ela é em seu princípio. Os animais que voam, os que habitam a terra, os que vivem nas águas são espécies que, tendo conformações diferentes, possuem cada um necessidades e faculdades que são próprias deles, ou, o que é o mesmo, cada um possui sua natureza. E esta natureza que começa. Começa sempre bem, porque começa só. A Inteligência que a criou assim quis; forneceu-lhe tudo para começar bem. Se assim não fosse, cada animal deveria zelar desde o nascimento pela sua sobrevivência, mas, como as lições da natureza são tão rápidas quanto seguras, ele não tem necessidade deste aprendizado. COMO UMA CRIANÇA ADQUIRE CONHECIMENTOS. Uma criança aprende apenas porque sente a necessidade de se instruir. Ela tem, por exemplo, interesse em conhecer sua ama de leite, e a conhece desde cedo; diferencia-a entre várias pessoas; não a confunde com nenhuma; e conhecer é apenas isto. Com efeito, adquirimos conhecimentos apenas na medida em que diferenciamos uma grande quantidade de coisas e notamos melhor as qualidades que as distinguem: nossos conhecimentos começam pelo primeiro objeto que aprendemos a diferenciar. Os conhecimentos que uma criança tem de sua ama de leite ou de qualquer outra coisa são para ela apenas qualidades sensíveis. Por tanto, adquiriu-os apenas pelo modo como conduziu seus sentidos. Uma necessidade premente pode conduzi-la a um juízo falso, porque a fez julgar precipitadamente, mas o erro é somente momentâneo. Enganada em sua expectativa, sente logo a necessidade de julgar uma segunda vez e julga melhor: a experiência, que zela por ela, corrige seus equívocos. Crê ver sua ama de leite, quando ela percebe a distância uma pessoa que se lhe assemelhe? Seu erro não dura muito. Se o primeiro golpe de vista falhou, o segundo corrige e ela continua procurando com os olhos. COMO A NATUREZA A ADVERTE DE SEUS EQUÍVOCOS. Assim, os próprios sentidos destroem frequentemente os erros nos quais nos fizeram cair: é porque, se uma primeira observação não corresponde à necessidade pela qual a fizemos, somos advertidos por isso que observamos mal e sentimos a necessidade de observar novamente. Estas advertências não falham nunca, quando as coisas sobre as quais nos enganamos nos são absolutamente necessárias: um juízo falso nos dará prazer e, em seguida, dor; um juízo verdadeiro sempre nos dará prazer e, em seguida, alegria. O prazer e a dor, eis então nossos primeiros mestres: eles nos esclarecem, porque nos advertem se julgamos bem ou se julgamos mal: e é por este motivo que, na infância, fazemos sem nenhuma ajuda progressos que nos parecem tão rápidos quanto surpreendentes. POR QUE A NATUREZA CESSA DE ADVERTIR A CRIANÇA. Uma arte de raciocinar nos seria totalmente inútil, se nos fosse necessário sempre julgar apenas coisas que se relacionam com as necessidades mais prementes. Raciocinaríamos naturalmente bem, porque acertaríamos nossos juízos sobre as advertências da natureza. Mas basta começarmos a sair da infância para que produzamos já uma infinidade de juízos sobre os quais a natureza não nos adverte mais. Pelo contrário, parece que o prazer acompanha tanto os juízos falsos como os juízos verdadeiros e enganamo-nos inadvertidamente: porque, nessas ocasiões, a curiosidade é nossa única necessidade; e a curiosidade ignorante se contenta com tudo. Ela desfruta seus erros com uma espécie de prazer; agarra-se a eles frequentemente com obstinação, tomando uma palavra que não significa nada por uma resposta, e não sendo capaz de reconhecer que esta resposta é apenas uma palavra. Então nossos erros se tornam duráveis. Se, como é muito comum, julgamos coisas que não estão ao nosso alcance, a experiência não nos saberia corrigir; e, se julgamos outras com precipitação, ela não nos corrigiria também, porque nossa prevenção não nos deixa consulta-la. Portanto, os erros começam quando a natureza cessa de nos advertir de nossos equívocos; isto é, julgando coisas que têm pouca relação com necessidades mais prementes, não sabemos provar nossos juízos para reconhecer se são falsos ou verdadeiros. ÚNICO MEIO DE ADQUIRIR CONHECIMENTOS. Desde que haja coisas que julgamos bem a partir da infância, temos que observar como fomos conduzidos para julgar e saberemos como devemos nos conduzir para julgar outras. Bastará continuar como a natureza nos obrigou a começar, isto é, observando e colocando nossos juízos ao exame da observação e da experiência. É o que todos fizemos em nossa primeira infância, e, se pudéssemos nos lembrar dessa idade, nossos primeiros estudos nos colocariam no caminho para fazer outros mais produtivos. Então, cada um de nós faria descobertas que deveria apenas às suas observações e à sua experiência; e as faríamos ainda hoje, se soubéssemos seguir o caminho que a natureza nos abriu. Não se trata então de imaginar para nós um sistema para saber como devemos adquirir nossos conhecimentos: precavenhamo-nos bem disso. A própria natureza constituiu esse sistema. Só ela poderia fazê-lo e o fez muito bem. Basta observar o que ela nos ensina. Parece que, para estudar a natureza, seria preciso observar nas crianças os primeiros desenvolvimentos de nossas faculdades, ou lembrar o que nos aconteceu. Tanto uma coisa como a outra são difíceis. Estaríamos frequentemente reduzidos à necessidade de fazer suposições. Mas suposições teriam o inconveniente de parecer algumas vezes gratuitas, e outras vezes de exigir que nos colocássemos em situações nas quais nem todos saberiam se colocar. Basta haver notado que as crianças adquirem verdadeiros conhecimentos somente porque, observando apenas coisas relativas às necessidades mais prementes, não se enganam, ou, se se enganam, são logo advertidas de seus equívocos. Limitemo-nos a investigar como hoje nos conduzimos quando adquirimos conhecimentos. Se pudermos nos assegurar de alguns e da maneira pela qual os adquirimos, saberemos como podemos adquirir outros. CAPÍTULO II Como a análise é o único método para adquirir conhecimento; de que maneira a aprendemos pela própria natureza. UM PRIMEIRO GOLPE DE VISTA NÃO FORNECE UMA IDEIA DAS COISAS QUE VEMOS. Imagino um castelo que domina uma vasta e abundante planície, na qual a natureza se deleitou em propagar a variedade e na qual a arte soube aproveitar situações para multiplicá-las e embelezá-las. Atingimos esse castelo durante a noite. No dia seguinte, as janelas abrem-se no momento em que o sol começa a dourar o horizonte, e se fecham em seguida. Apesar de esta planície ter-nos sido mostrada apenas durante um instante, é certo que vimos tudo o que ela abrange. Num segundo instante, receberíamos as mesmas impressões que os objetos causaram sobre nós. Aconteceria da mesma maneira num terceiro. Consequentemente, se não tivéssemos fechado as janelas, não continuaríamos a ver o que havíamos visto antes. Mas este primeiro instante não basta para conhecermos esta planície, ou seja, distinguirmos os objetos que ela abrange: é porque, quando as janelas se fecharam, nenhum de nós pôde se dar conta do que viu. Eis como se podem ver muitas coisas e não aprender nada. PARA SE FORMAR IDEIA DAS COISAS, É PRECISO OBSERVAR UMA APÓS A OUTRA. Afinal, as janelas se reabrem para não mais se fecharem enquanto o sol permanecer sobre o horizonte e veremos por muito tempo tudo o que havíamos visto antes. Mas se, como homens em êxtase, continuarmos, como no primeiro instante, a ver, de uma vez, esta infinidade de objetos diferentes, saberemos quando a noite chegar apenas o que sabíamos quando as janelas se abriam e se fechavam imediatamente. Para que se tenha o conhecimento desta planície, não basta portanto vê-la de uma vez; é preciso ver cada parte uma após a outra; e, ao invés de abranger tudo de um golpe de vista, é preciso deter nossos olhares sucessivamente de um objeto para outro. Eis o que a natureza nos ensina. Se ela nos deu a faculdade de ver uma infinidade de coisas de uma só vez, deu-nos também a faculdade de olhar apenas uma, isto é, de dirigir nossos olhares sobre uma só; graças a esta faculdade, que é uma consequência de nossa organização, devemos todos os conhecimentos que adquirimos pela visão. Esta faculdade é comum a todos. No entanto, se quisermos em seguida falar desta planície, observar-se-á que não a conhecemos todos da mesma maneira. Alguns farão quadros mais ou menos verdadeiros, onde se encontrarão muitas coisas como elas são realmente; enquanto que outros, misturando tudo, farão quadros onde não será possível reconhecer nada. Todavia, cada um de nós viu os mesmos objetos; mas os olhares de uns foram conduzidos ao acaso e os de outros se dirigiam com certa ordem. E, PARA CONCEBER AS COISAS TAIS COMO SÃO, É PRECISO QUE A ORDEM SUCESSIVA EM QUE AS OBSERVAMOS REÚNA-AS NA ORDEM SIMULTÂNEA ENTRE ELAS. Ora, qual é esta ordem? A própria natureza a indica; é aquela na qual ela oferece os objetos. Há aqueles que atraem mais particularmente os olhares; são mais impressionantes, dominam e todos os outros parecem ajustar-se em torno deles e para eles. Estes são os observados imediatamente, e quando se notou sua situação respectiva, os outros se colocam nos intervalos, cada um no seu lugar. Começa-se então pelos objetos principais: observa-se sucessivamente e compara-se, a fim de julgar as relações onde estão. Quando, por este meio, se tem sua situação respectiva, observam-se sucessivamente todos os que preenchem os intervalos, compara-se cada um com o objeto principal mais próximo e determina-se sua posição. Então, diferenciam-se todos os objetos de que aprendemos a forma e a situação e eles são abrangidos por um único olhar. A ordem que existe entre eles em nosso espírito não é mais sucessiva, é simultânea. E aquela na qual eles existem e os vemos todos ao mesmo tempo, de uma maneira distinta. POR ESTE MEIO, O ESPIRITO PODE ABRANGER UMA GRANDE QUANTIDADE DE IDEIAS. Eis os conhecimentos que devemos unicamente à arte pela qual dirigimos nossos olhares. Nós apenas os adquirimos um após o outro: mas, uma vez adquiridos, estão todos ao mesmo tempo presentes em nosso espírito, como os objetos que eles nos descrevem estão sempre presentes ao olho que os vê. Dá-se, portanto, com o espírito o mesmo que com o olho: ele vê ao mesmo tempo uma infinidade de coisas e não é preciso se surpreender, desde que é à alma que pertencem todas as sensações da visão. Esta visão do espírito se estende como a visão do corpo: se se estiver bem organizado, é preciso tanto a um como a outro apenas o exercício e não se saberia, de qualquer modo, circunscrever o espaço que eles abrangem. Com efeito, um espírito exercitado vê, num tema no qual medita, uma infinidade de relações que não percebemos; como os olhos exercitados de um grande pintor distinguem num instante, numa paisagem, uma infinidade de coisas que vemos com ele e que todavia nos escapam. Podemos, transportando-nos de castelo a castelo, estudar novas planícies, e no-las descrever como a primeira. Então nos acontecerá, ou dar preferência a uma, ou acreditar que cada uma tem seu estilo. Mas só julgamos porque comparamos: só as comparamos porque no-las descrevemos todas ao mesmo tempo. O espírito vê, portanto, mais do que o olho pode ver. PORQUE, OBSERVANDO DESTA MANEIRA, O ESPIRITO DECOMPÕE AS COISAS PARA RECOMPÔ-LAS, FAZ IDEIAS EXATAS E DISTINTAS DELAS. Se agora refletirmos sobre a maneira pela qual adquirimos conhecimentos pela visão, notaremos que um objeto tão complexo, como uma vasta planície, se decompõe de alguma maneira. Só conhecemos um objeto quando suas partes vêm, uma após a outra, se dispor ordenadamente no espírito. Vemos a ordem pela qual se processa esta decomposição. Os principais objetos vêm imediatamente se colocar no espírito; os outros vêm em seguida e se dispõem segundo as relações com os primeiros. Esta decomposição é necessária porque um instante apenas não basta para estudar todos estes objetos. Mas decompomos apenas para recompor; e, quando os conhecimentos estão adquiridos, as coisas, ao invés de serem sucessivas como no aprendizado, tem no espírito a mesma ordem simultânea que possuem fora dele. É nesta ordem simultânea que consiste o conhecimento que possuímos das coisas. Se não pudéssemos descrevê-las juntas, não poderíamos jamais julgar as relações que mantêm entre si e as conheceríamos mal. ESTA DECOMPOSIÇÃO E RECOMPOSIÇÃO É O QUE SE DENOMINA ANÁLISE. Analisar não é portanto outra coisa senão observar numa ordem sucessiva as qualidades de um objeto, a fim de lhes oferecer, no espírito, a mesma ordem simultânea na qual elas existem. É o que a natureza nos obriga a todos. A análise, que se acredita ser conhecida por filósofos, é portanto conhecida por todos, e eu não ensinei nada ao leitor; eu o fiz somente observar o que ele processa continuamente. A ANÁLISE DO PENSAMENTO SE FAZ DA MESMA MANEIRA QUE A ANÁUSE DOS OBJETOS SENSÍVEIS. Ainda que, por um golpe de vista, eu distinga uma infinidade de objetos numa planície que pesquisei, a visão só é mais distinta quando ela própria se circunscreve e quando olhamos apenas um pequeno número de objetos ao mesmo tempo: discernimos sempre menos do que vemos. O mesmo acontece com a visão do espírito. Eu tenho ao mesmo tempo presente um grande número de conhecimentos que se me tornaram familiares: eu os vejo todos, mas não os distingo do mesmo modo. Para ver de uma maneira distinta tudo o que se oferece ao mesmo tempo ao meu espírito, é preciso que eu decomponha como decompus o que se oferecia a meus olhos, é preciso que analise meu pensamento. Esta análise de meu pensamento não se faz de modo diferente da análise dos objetos exteriores. Decompõe-se da mesma maneira: descrevem-se as partes de seu pensamento numa ordem sucessiva, para restabelecê-las numa ordem simultânea. Faz-se essa composição e essa decomposição de acordo com as relações que existem entre as coisas, como principais e como subordinadas. Não se analisaria o pensamento se o espírito não o abrangesse da mesma maneira integralmente, Tanto num caso como no outro, é preciso ter uma visão completa; de outra forma, não se poderia assegurar de ter visto todas as partes uma após a outra. CAPÍTULO III Como a análise torna os espíritos justos AS SENSAÇOES, CONSIDERADAS COMO REPRESENTANTES DOS OBJETOS SENSIVEIS, SÃO O QUE SE DENOMINA ESPECIFICAMENTE IDEIAS. Cada um de nós pode notar que só conhece os objetos sensíveis pelas sensações que recebe deles: são as sensações que no-los representam. Se estivermos seguros que, na medida em que estiverem presentes, vemos os objetos apenas através das sensações que eles exercem sobre nós, não estaremos menos seguros quando estiverem ausentes, vemo-los apenas na lembrança das sensações que eles causaram. Todos os conhecimentos que podemos ter dos objetos sensíveis não são nem podem ser, no princípio, senão sensações. As sensações, consideradas como representando objetos sensíveis, denominam-se ideias, expressão figurada que no sentido próprio significa a mesma coisa que imagens. Distinguimos tanto sensações diferentes quanto distinguimos espécies de ideias, e estas ideias ou são sensações atuais ou são apenas uma lembrança das sensações que tivemos. SÓ A ANALISE FORNECE IDEIAS EXATAS OU CONHECIMENTOS VERDADEIROS. Quando adquirimos as sensações pelo método analítico, descoberto no capítulo anterior, elas se dispõem ordenadamente no espírito. Conservam nele a ordem que lhes demos e podemos facilmente descrevê-las com a mesma nitidez através da qual as adquirimos. Se, ao invés de adquiri-las por este método, acumulamo-las ocasionalmente, elas se apresentarão numa grande confusão e nela permanecerão. Essa confusão não permitirá mais ao espírito lembrar-se delas de uma maneira distinta; e se quisermos falar de conhecimentos que acreditamos ter adquirido, nada se entenderá em nossos discursos, porque até nós não entenderemos nada. Para falar de uma maneira compreensível, é preciso conceber e exprimir ideias numa ordem analítica que decompõe e recompõe cada pensamento. Esta ordem é a única que consegue manter toda a clareza e toda a precisão de que as ideias são suscetíveis; e, assim como não temos outro meio de nos instruir, não temos outro para comunicar nossos conhecimentos. Eu já o provei, mas enfatizo, e enfatizarei ainda; pois esta verdade não é bastante conhecida; ela é até combatida, embora simples, evidente e fundamental. Com efeito, quando quiser conhecer uma máquina, eu a decomporei para estudar separadamente cada parte. Quando tiver de cada uma uma ideia exata, e quando puder recolocá-las na mesma ordem onde estavam, então conceberei perfeitamente esta máquina, porque a terei decomposto e recomposto. O que é então conceber essa máquina? É ter um pensamento que seja composto de tantas ideias quantas partes houver nessa própria máquina, que as representam cada uma exatamente e que estão dispostas na mesma ordem. Quando estudei essa máquina por este método, que é o único, meu pensamento só me ofereceu ideias distintas e ele se analisou a si próprio, seja porque eu queria justificá-lo para mim, seja porque eu queria justificá-lo para os outros. ESTE MÉTODO É CONHECIDO POR TODOS. Cada um pode se convencer desta verdade por sua própria experiência; até as pequenas costureiras estão convencidas: pois, se lhes dermos um vestido e lhes propusermos fazer semelhante, elas imaginarão naturalmente desfazer e refazer esse modelo, para aprender a fazer o vestido que solicitamos. Elas conhecem a análise tão bem quanto os filósofos e conhecem a utilidade dela melhor do que aqueles que se obstinam em sustentar que existe outro método para se instruir. Acreditemos com elas que nenhum outro método pode substituir a análise. Nenhum outro pode difundir a mesma luz: teremos a prova todas as vezes que quisermos estudar um objeto um tanto complexo. Não imaginamos este método. Somente o encontramos e não devemos temer que nos engane. Nós poderíamos, como os filósofos, inventar outro e colocar uma ordem qualquer nas nossas ideias: mas essa ordem, que não teria sido a da análise, teria criado em nossos pensamentos a mesma confusão que criou em seus escritos. Parece que, quanto mais ostentam a ordem, mais se embaraçam, menos se tornam compreensíveis. Não sabem que só a análise pode nos instruir, verdade prática conhecida pelos artesãos mais grosseiros. É PELA ANÁLISE QUE OS ESPÍRITOS SÁBIOS SE FORMARAM. Existem espíritos sábios que parecem nunca ter estudado, porque parecem nunca ter pensado para instruir. Todavia, fizeram estudos e os fizeram cuidadosamente. Como estudaram sem intenção premeditada, não pensaram em tomar lições com nenhum mestre e tiveram o melhor de todos, a natureza. E ela que os fez processar a análise das coisas que estudaram, e o pouco que eles sabiam, sabiam-no bem. O instinto, guia tão seguro; o gosto, que julga tão bem e que, todavia, julga só no momento em que sente; as aptidões, que são como o gosto, quando este produz aquilo de que é o juiz; todas estas faculdades são obra da natureza, que, fazendo-nos analisar sem saber, parece querer nos esconder tudo aquilo que lhe devemos. E ela que inspira o homem de gênio, ela é a Musa que ele invoca, quando não sabe de onde provêm seus pensamentos. OS MAUS MÉTODOS FAZEM ESPÍRITOS FALSOS. Existem espíritos falsos que fizeram grandes estudos. Eles se vangloriam de possuir bastante método e só raciocinam mal porque o método não é o correto. Quanto mais insistimos num método falso, mais nos extraviamos. Tomamos por princípios noções vagas, palavras vazias de sentido; constituímos um jargão científico, no qual acreditamos ter a evidência; e no entanto não sabemos, na verdade, nem o que vemos, nem o que pensamos, nem o que dizemos. Só seremos capazes de analisar nossos pensamentos quando eles próprios forem obra de nossa análise. Mais uma vez pela análise e só pela análise devemo-nos instruir. E o caminho mais simples, porque é o mais natural, e veremos que é o mais curto. E ele que fez todas as descobertas, é através dele que reencontramos tudo o que foi encontrado. O que se denomina método de invenção não é mais do que a análise. CAPÍTULO IV Como a natureza nos faz observar os objetos sensíveis a fim de nos oferecer ideias de diferentes espécies SÓ SE PODE INSTRUIR CAMINHANDO DO CONHECIDO AO DESCONHECIDO. Só podemos nos conduzir do conhecido ao desconhecido, eis um princípio comum da teoria, quase ignorado na prática. Parece-nos que ele só é conhecido pelos homens quê nunca estudaram. Quando eles querem nos fazer entender uma coisa que não conhecemos, comparam com outra que conhecemos, e, se não são sempre felizes na escolha das comparações, deixam pelo menos ver que sabem aquilo que é preciso fazer para serem compreendidos. O mesmo não acontece com os sábios. Ainda que eles queiram instruir, esquecem facilmente de caminhar do conhecido ao desconhecido. No entanto, se quisermos fazer alguém conceber ideias que não possui, será preciso nos ater às ideias que este alguém possui. É a partir do que sei que começa tudo o que ignoro, tudo o que é possível aprender, e, se houver um método para me fornecer novos conhecimentos, ele só pode ser o método que já me outorguei. Com efeito, todos os nossos conhecimentos provêm dos sentidos, tanto aqueles que não tenho quanto aqueles que já tenho. Aqueles que são mais sábios do que eu foram tão ignorantes quanto o sou hoje. Ora, se eles se instruíram caminhando do conhecido ao desconhecido, por que não me instruiria como eles? E se cada conhecimento que adquirir me prepara para um conhecimento novo, por que não poderia ir, por uma sequência de análises, de conhecimento em conhecimento? Numa palavra, por que não encontraria aquilo que ignoro nas sensações em que eles o encontraram e que nos são comuns? Sem dúvida, eles me fariam descobrir facilmente tudo o que descobriram, se eles próprios sempre soubessem como se instruíam. Mas eles o ignoram, porque observaram mal ou nem chegaram a pensar nisso. Certamente só se instruíram quando fizeram análises. Mas não perceberam: a natureza fazia de alguma maneira por eles, sem eles. Acreditavam que adquirir conhecimentos é um dom, um talento que não se transmite facilmente. Não é preciso nos surpreender se tivermos dificuldades em compreendê-los: desde que se promovam talentos privilegiados, negligencia-se colocá-los ao alcance dos outros. De qualquer maneira, todos são obrigados a reconhecer que só podemos caminhar do conhecido ao desconhecido. Vejamos o uso que podemos tirar desta verdade. QUALQUER PESSOA QUE ADQUIRIU CONHECIMENTOS PODE CONTINUAR A FAZÊ-LO. Ainda crianças, adquirimos conhecimentos por uma sequência de observações e análises. E, portanto, destes conhecimentos que devemos partir para continuar nossos estudos. E preciso observá-los, analisá-los e descobrir, se possível, tudo o que eles encerram. Estes conhecimentos são uma coleção de ideias e esta coleção é um sistema bem organizado, isto é, uma sequência de ideias exatas, onde a análise dispôs a ordem que existe entre as próprias coisas. Se as ideias fossem pouco exatas e desordenadas, só teríamos conhecimentos imperfeitos que não seriam verdadeiros conhecimentos. Mas não há ninguém que não tenha algum sistema de ideias bem ordenadas; se não tiver sobre matérias de especulação, terá, ao menos, sobre objetos de primeira necessidade. Nada é mais necessário. E a estas ideias que é preciso prender aqueles que quisermos instruir e é evidente que é preciso fazer-lhes notar a origem e a geração, se destas quisermos conduzi-los a outras. AS IDEIAS NASCEM SUCESSIVAMENTE UMAS DAS OUTRAS. Ora, se observarmos a origem e a geração das ideias, veremos nascer sucessivamente uma das outras, e, se esta sucessão estiver de acordo com a maneira pela qual as adquirimos, então é uma análise bem feita. A ordem da análise é a própria ordem da geração das ideias. NOSSAS PRIMEIRAS IDEIAS SÃO IDEIAS INDIVIDUAIS. Dizemos que as ideias de objetos sensíveis são, em sua origem, apenas sensações que representam estes objetos. Mas na natureza existem apenas indivíduos: portanto, nossas primeiras ideias são só ideias individuais, ideias deste ou daquele objeto. CLASSIFICANDO AS IDEIAS, FORMAM-SE GÉNEROS E ESPÉCIES. Não imaginamos nomes para cada indivíduo, apenas distribuímos os indivíduos em diferentes classes que distinguimos por nomes particulares: estas classes são o que se denomina gêneros e espécies. Colocamos, por exemplo; na classe árvore, as plantas cujo tronco se eleva até certa altura, para se dividir numa infinidade de ramos e formar com todos eles uma ramagem maior ou menor. Eis uma classe geral que se denomina gênero. Quando, em seguida, se observou que as árvores diferem pela grandeza, pela estrutura, pelos frutos, etc., distinguiram-se outras classes subordinadas à primeira que abrange todas: estas classes subordinadas são o que se denomina espécies. É assim que distribuímos em classes diferentes todas as coisas que podem chegar ao nosso conhecimento. Por este meio demos a cada uma um lugar marcado e sabemos sempre onde retomá-las. Esqueçamos estas classes por um momento e imaginemos que, se houvéssemos dado a cada indivíduo um nome diferente, sentiríamos logo que a quantidade de nomes teria fatigado nossa memória, criando grande confusão, e nos teria sido impossível estudar os objetos que se multiplicam sob nossos olhos e fazer deles ideias distintas. Nada é mais razoável que esta distribuição. Quando consideramos quanto ela nos é útil e necessário, somos levados a acreditar que a fizemos de propósito. Mas nos enganamos: este propósito pertence unicamente à natureza, foi ela que começou sem sabermos. AS IDEIAS INDIVIDUAIS TORNAM-SE IMEDIATAMENTE GERAIS. Uma criança chamará árvore a primeira que lhe mostrarmos e este nome será para ela o de um indivíduo. No entanto, se lhe mostrarmos outra árvore, ela não pensará em perguntar o nome: ela a denominará árvore e atribuirá este nome comum a dois indivíduos. Ela o atribuirá da mesma maneira a três, a quatro e, enfim, a todas as plantas que lhe parecerão ter alguma semelhança com as primeiras árvores que viu. Este nome se tornará tão geral, que ela denominará árvore tudo aquilo que denominamos planta. Ela é naturalmente levada a generalizar, porque lhe é mais cômodo se utilizar de um nome que sabe do que aprender um novo. Ela generaliza sem intenção de generalizar e sem notar que generaliza. É assim que uma ideia individual se torna imediatamente geral: frequentemente ela se torna demasiado gerar, isto acontece todas as vezes que confundimos coisas que teria sido útil distinguir. AS IDEIAS GERAIS SE SUBDIVIDEM EM DIFERENTES ESPÉCIES. Esta criança sentirá isso bem cedo. Não dirá: Eu generalizei demais, é preciso que eu distinga espécies diferentes de árvores: formará, sem intenção e sem notar, classes subordinadas, como formou, sem intenção e sem notar uma classe geral. Apenas obedecerá às suas necessidades. Afirmo que ela fará estas distribuições naturalmente e sem saber. Com efeito, se for levada a um jardim e lá colher e experimentar diferentes espécies de frutos veremos que apreenderá logo os nomes da cerejeira, do pessegueiro, da pereira, da macieira, e ela distinguirá espécies diferentes de árvores. Assim, nossas ideias começam sendo individuais, para se tornarem subitamente tão gerais quanto possível e só as distribuiremos em classes diferentes na medida em que sentirmos a necessidade de distingui-Ias. Eis a ordem de sua geração. NOSSAS IDEIAS FORMAM UM SISTEMA CONFORME O SISTEMA DE NOSSAS NECESSIDADES. Desde que nossas necessidades são o motivo desta distribuição, é para elas que esta distribuição é feita. As classes que se multiplicam, formam então um sistema no qual todas as partes se ligam naturalmente, porque todas as nossas necessidades funcionam juntas e este sistema, mais ou menos extenso, está de acordo com o uso que queremos fazer das coisas. A necessidade, que nos esclarece, nos dá pouco a pouco o discernimento que nos mostra num instante diferenças onde pouco antes não percebíamos. Se estendemos e aperfeiçoamos este sistema, é porque continuamos como a natureza nos obrigou a começar. Os filósofos não imaginaram este sistema, encontram-no observando a natureza, e, se tivessem melhor observado, teriam explicado muito melhor do que o fizeram. Mas acreditaram que o sistema pertencesse a eles e o trataram como se assim fosse. Acrescentaram o arbitrário, o absurdo e cometeram um estranho abuso de ideias gerais. Infelizmente, acreditávamos aprender com eles este sistema, quando já tínhamos aprendido com um mestre melhor. Mas, porque a natureza não nos fazia notar aquilo que nos ensinava, atribuímos nosso conhecimento aos que se faziam passar por nossos mestres. Nós confundíamos, portanto, as lições dos filósofos com as lições da natureza e raciocinávamos mal. COM QUAL ARTIFICIO SE FORMA ESTE SISTEMA. Depois de tudo o que dissemos, formar uma classe de certos objetos não é mais do que dar um mesmo nome a todos os que julgamos semelhantes, e, quando subdividimos esta classe em duas ou mais, não fazemos outra coisa que escolher nomes novos, a fim de distinguir objetos que julgamos diferentes. É unicamente por este artifício que ordenamos nossas ideias: mas este artifício não faz mais do que isso, é preciso notar bem que ele não pode ir além disso. Com efeito, nos enganaríamos grosseiramente se imaginássemos que há na natureza espécies e gêneros, só porque existem espécies e gêneros em nossa maneira de conceber. Os nomes gerais não são especificamente nomes de coisa alguma existente; exprimem apenas as visões do espírito, quando consideramos as coisas sob as relações de semelhança ou diferença. Não há árvores em geral, macieira em geral, pereira em geral; há apenas indivíduos. Portanto, não há na natureza nem gêneros nem espécies. Isto é tão simples, que nos parece inútil frisá-lo, mas, frequentemente, as coisas mais simples escapam, precisamente porque são simples: desdenhamos observá-las. Eis uma das principais causas de nossos raciocínios falsos e de nossos erros. O SISTEMA NÃO SE FAZ SEGUNDO A NATUREZA DAS COISAS. Não é segundo a natureza das coisas que distinguimos classes, é segundo nossa maneira de conceber. No começo, ficamos impressionados com as semelhanças e somos como uma criança que toma todas as plantas por árvores. Em seguida, a necessidade de observar desenvolve nosso discernimento e, porque então notamos diferenças, criamos novas classes. Quanto mais nosso discernimento se aperfeiçoa, mais as classes podem se multiplicar, e, porque não há dois indivíduos que não difiram de alguma maneira, é evidente que haveria tantas classes quantos indivíduos, se a cada diferença se quisesse criar uma classe nova. Então, não haveria mais ordem em nossas ideias, e a confusão sucederia à luz que se difundiu sobre elas quando generalizávamos metodicamente. ATE QUE PONTO DEVEMOS DIVIDIR E SUBDIVIDIR NOSSAS IDEIAS. Há portanto um limite depois do qual é preciso parar: pois, se é importante fazer distinções, é mais importante não fazê-las em demasia. Quando não se pratica excessivamente, se permanecem coisas que não se distinguem e que se deveriam distinguir, há, pelo menos, o recurso de fazê-lo. Quando se faz demasiado, tudo se confunde, porque o espírito se extravia num grande número de distinções de que não sente necessidade. Perguntar-se-á: até que ponto os gêneros e as espécies podem se multiplicar? Respondo, ou antes, a própria natureza responde: até que tenhamos bastantes classes para nos regular no uso das coisas relativas a nossas necessidades. A verdade desta resposta é evidente, pois são nossas necessidades que nos determinam a distinguir classes, pois não imaginamos nomear coisas que não pretendemos utilizar. Pelo menos, é assim que os homens se conduzem naturalmente. É verdade que, quando eles se afastam da natureza para se tornarem maus filósofos, acreditam que à custa de distinções, tão sutis quanto inúteis, explicarão tudo, porém acabam por se confundir. POR QUE AS ESPÉCIES DEVEM SE CONFUNDIR. Tudo é diferenciado na natureza, mas nosso espírito é demasiado limitado para vê-la detalhadamente. Em vão analisamos, sempre permanecem coisas que não podemos analisar e que, por esta razão, vemos apenas de uma maneira confusa. A arte de classificar, tão necessária para se constituírem ideias exatas, esclarece apenas os pontos principais: os intervalos permanecem na obscuridade e nestes intervalos as classes intermediárias se confundem. Uma árvore, por exemplo, e um arbusto são duas espécies bem distintas. Mas uma árvore pode ser menor, um absurdo pode ser maior, ou ser ao mesmo tempo um e outro, isto é, não se sabe mais a qual espécie relacioná-la. POR QUE ELAS SE CONFUNDEM SEM INCONVENIENTE. Isto não é inconveniente, pois perguntar se esta planta é uma árvore ou um arbusto não é, realmente, perguntar o que ela é, é somente perguntar se devemos dar-lhe o nome de árvore ou de arbusto. Ora, pouco importa dar-lhe tanto um quanto outro: se ela for útil, nós a utilizaremos e a chamaremos planta. Não se cogitará nunca de semelhantes questões, se não se supusesse que há, na natureza como em nosso espírito, gêneros e espécies. Eis o abuso que se faz das classes: seria preciso conhecê-lo. Falta observar até onde se estendem nossos conhecimentos, quando classificamos as coisas que estudamos. NÓS IGNORAMOS A ESSÉNCIA DOS CORPOS. Já que nossas sensações são as únicas ideias que temos dos objetos sensíveis, vemos neles apenas o que elas representam: além disso, não percebemos nada e, consequentemente, não podemos nada conhecer. Não há, portanto, nenhuma resposta a dar àqueles que perguntam: Qual é o sujeito das qualidades do corpo? Qual é a sua natureza? Qual é a sua essência? Não vemos estes sujeitos, estas naturezas, estas essências: seria inútil pretender mostrá-las, seria o mesmo que mostrar cores a cegos. São palavras das quais não temos nenhuma ideia, significam apenas que há sob as qualidades algo que não conhecemos. SÓ TEMOS IDEIAS EXATAS NA MEDIDA EM QUE ESTAMOS SEGUROS DAQUILO QUE OBSERVAMOS A análise só nos dá ideias exatas na medida em que nos mostra nas coisas apenas o que vemos. E preciso nos habituar a ver apenas o que vemos. Isto é difícil para a maioria dos homens, até mesmo para a maioria dos filósofos. Quanto mais se é ignorante, mais se é impaciente para julgar; acredita-se saber tudo antes de ter observado e dir-se-ia que o conhecimento da natureza é uma espécie de adivinhação que se faz com palavras. AS IDEIAS, PARA SEREM EXATAS, NÃO PODEM SER COMPLETAS. As ideias exatas que se adquirem pela análise nem sempre são ideias completas: não podem nunca sê-lo, quando tratamos de objetos sensíveis. Descobrimos apenas algumas qualidades e podemos possuir um conhecimento parcial. TODOS OS NOSSOS ESTUDOS SE FAZEM COM O MESMO MÉTODO E ESTE MÉTODO É A ANÁLISE. Estudaremos cada objeto da mesma maneira que estudamos aquela planície que víamos das janelas do castelo: pois há, em cada objeto, como naquela planície, coisas principais às quais todas as outras devem se relacionar. E nesta ordem que é preciso apreendê-las, se se quiser ter ideias distintas e bem ordenadas. Por exemplo, todos os fenômenos da natureza supõem a extensão e o movimento. Todas as vezes que quisermos estudar alguns, consideraremos a extensão e o movimento como as principais qualidades do corpo. Vimos como a análise nos faz conhecer os objetos sensíveis e como as ideias que ela nos dá são distintas e conformes à ordem das coisas. E preciso se lembrar de que este método é o único e que ele deve ser o mesmo em todos os nossos estudos; pois estudar ciências diferentes não é mudar de método, é apenas aplicar o mesmo método a objetos diferentes, é refazer o que já se fez; o grande problema é fazê-lo bem uma vez para saber fazê-lo sempre. Eis, realmente, onde estávamos quando começamos. Desde nossa infância, adquirimos conhecimentos: temos seguido sem saber um bom método. Só nos restaria perceber: é o que fizemos e podemos doravante aplicar este método a novos objetos. CAPÍTULO V Sobre ideias que não passam pelos sentidos COMO OS EFEITOS NAS FAZEM JULGAR A EXISTENCIA DE UMA CAUSA DA QUAL NÃO NOS DÃO IDEIA ALGUMA. Observando os objetos sensíveis, elevamo-nos, naturalmente, a objetos que não passam pelos sentidos, porque, segundo os efeitos que se veem, julgam-sê causas que não se veem. O movimento de um corpo é um efeito: existe, portanto, uma causa. Está fora de dúvida que esta causa existe, ainda que nenhum de meus sentidos ma faça aparecer. Eu a denomino força. Este nome não me faz conhecê-la melhor; sei apenas o que sabia antes: que o movimento tem uma causa que não conheço. Mas posso falar dela: eu a julgo mais forte ou mais fraca, na medida em que o próprio movimento é mais forte ou mais fraco; e a meço, de alguma maneira, medindo o movimento. O movimento se faz no espaço e no tempo. Percebo o espaço vendo os objetos sensíveis que o ocupam, percebo a duração na sucessão de minhas ideias ou de minhas sensações: mas não vejo absolutamente nada nem no espaço nem no tempo. Os sentidos não saberiam me desvendar o que as coisas são em si próprias, mostram-me apenas algumas das relações que existem entre elas e mim. Se medir o espaço, o tempo, o movimento e a força que o produz, é porque os resultados de minhas medidas são apenas relações: pois procurar relações ou medir é a mesma coisa. Porque nomeamos coisas de que temos ideia, supõe-se que temos ideia de todas aquelas que nomeamos. Eis um erro contra o qual é preciso se precaver. Pode acontecer que um nome seja dado a uma coisa apenas porque estamos seguros de sua existência: a palavra força é a prova disso. O movimento, que eu considerei como um efeito torna-se uma causa para meus olhos, assim que observo que existe por toda a parte e que produz, ou concorre para produzir, todos os fenômenos da natureza. Então eu posso, a partir da observação das leis do movimento, estudar o universo, como a partir de uma janela estudo a planície: o método é o mesmo. Mas, ainda que no universo tudo seja sensível, não vemos tudo; e, ainda que a arte venha em socorro dos sentidos, eles continuam demasiado fracos. No entanto, se observarmos bem, descobriremos fenômenos; vemo-los, como uma sequência de causas e de efeitos, constituírem diferentes sistemas e fazemos ideias exatas de algumas partes do grande todo. É desta maneira que os filósofos modernos fizeram descobertas que não se teria julgado possíveis alguns séculos antes, e que fazem presumir que se podem fazer outras. COMO OS FENÔMENOS NOS FAZEM JULGAR A EXISTENCIA DE UMA CAUSA QUE NÃO PASSA PELOS SENTIDOS E COMO NOS DÃO UMA IDEIA DISSO. Mas, como julgamos que o movimento tem uma causa, porque ele é um efeito, julgaremos que o universo tem igualmente uma causa, porque ele próprio é um efeito: esta causa denominaremos Deus. Não acontece com esta palavra o mesmo que com força, de que não temos nenhuma ideia. Deus, realmente, não passa pelos sentidos, mas imprime seu caráter nas coisas sensíveis; vemo-lo aí e os sentidos nos elevam até ele. Com efeito, quando noto que os fenômenos nascem uns dos outros, como uma sequência de efeitos e de causas, vejo necessariamente uma causa primeira; e é na ideia de causa primeira que começa a ideia que eu faço de Deus. Já que esta causa é primeira, independente, necessária, ela é sempre e abrange em sua imensidade e em sua eternidade tudo o que existe. Vejo a ordem no universo: observo sobretudo esta ordem nas partes que conheço melhor. Se eu tenho inteligência, só a adquiri na medida em que as ideias, em meu espírito, estavam de acordo com a ordem das coisas fora de mim e minha inteligência é apenas uma cópia, uma cópia bem fraca da inteligência com a qual foram ordenadas as coisas que concebo e as que não concebo. Portanto, a primeira causa é inteligente: ela ordenou tudo, por toda a parte e em todo tempo; e sua inteligência, como sua imensidade e sua eternidade, abrange todos os tempos e todos os lugares. Já que a primeira causa é independente, ela pode o que quer, e, desde que é inteligente, quer com conhecimento, e consequentemente com escolha: ela é livre. Como inteligente, aprecia tudo; como livre, age consequentemente. Desta maneira, segundo as ideias que fazemos de sua inteligência e de sua liberdade, formamos uma ideia de sua bondade, de sua justiça, de sua misericórdia, numa palavra, de sua providência. Eis uma ideia imperfeita da Divindade. Ela só vem e só pode vir dos sentidos: mas se desenvolverá cada vez mais na medida em que aprofundarmos melhor a ordem que Deus colocou em suas obras. CAPÍTULO VI Continuação do mesmo tema AÇÕES E HÁBITOS. O movimento, considerado como uma causa de algum efeito se denomina ação. Um corpo se move, age sobre o ar que divide e sobre os corpos com os quais se choca: mas isto não é mais do que a ação de um corpo inanimado. A ação de um corpo animado participa do mesmo modo do movimento. Capaz de movimentos diferentes, segundo a diferença dos órgãos de que foi dotado, possui diferentes maneiras de agir. Cada espécie tem, em sua ação como em sua organização, algo que lhe é próprio. Todas estas ações passam pelos sentidos e basta observá-las para se fazer uma ideia delas. Não é tão difícil de notar como o corpo adquire ou perde hábitos: pois cada qual sabe, por sua própria experiência, que o que se repetiu frequentemente se fez sem haver necessidade de pensar e que, pelo contrário, não se faz mais com a mesma facilidade o que se cessou de fazer algo muitas vezes seguidas; e, para perdê-lo, basta não mais fazê-lo. SEGUNDO AS AÇÕES DO CORPO, JULGAM-SE AS AÇÕES DA ALMA. São as ações da alma que determinam as do corpo; e, segundo estas, que se veem, julgam-se aquelas que não se veem. Basta ter notado o que se faz quando se deseja ou quando se teme, para perceber nos movimentos dos outros seus desejos e seus temores. E desta maneira que as ações do corpo representam as ações da alma e desvendam algumas vezes até os pensamentos mais secretos. Esta linguagem é a da natureza: é a primeira, a mais expressiva, a mais verdadeira. Veremos que é segundo este modelo que aprendemos a fazer línguas. IDEIA DA VIRTUDE E DO VÍCIO. As ideias morais parecem escapar aos sentidos: escapam, pelo menos, aos daqueles filósofos que negam que nossos conhecimentos provêm das sensações. Eles perguntariam facilmente de que cor é a virtude, de que cor é o vício. Eu respondo que a virtude consiste no hábito de boas ações, como o vício consiste no hábito das más. Ora, estes hábitos e estas ações são visíveis. IDEIA DA MORALIDADE DAS AÇÕES. Mas a moralidade das ações é uma coisa que passa pelos sentidos? Por que não passaria? Esta moralidade consiste unicamente na conformidade de nossas ações com as leis: ora, estas ações são visíveis e as leis o são do mesmo modo, pois são convenções que os homens fizeram. Se as leis, dir-se-á, são convenções, logo são arbitrárias. Pode haver leis arbitrárias, há mesmo em demasia: mas as que determinam se nossas ações são boas ou más não o são nem podem sê-lo. Elas são obra nossa, porque são convenções que fizemos; no entanto, não as fizemos sozinhos; a natureza as fez conosco, no-las ditava e não estava em nosso alcance fazer outras. Sendo dadas as necessidades e as faculdades do homem, as próprias leis são dadas, e ainda que as fizéssemos, Deus, que nos criou com tais necessidades e tais faculdades, é, realmente, nosso único legislador. Seguindo estas leis de acordo com nossa natureza, é a ele que obedecemos. Eis o que aperfeiçoa a moralidade das ações. Se se acredita que nas ações do homem livre existe algumas vezes arbitrariedade, a consequência será justa, mas, se julgarmos que há somente o arbitrário, enganar-nos-emos. Como independe de nós não ter as necessidades que são uma consequência de nossa conformação, independe de nós não sermos levados a fazer aquilo para que somos determinados por estas necessidades; se não o fizermos, seremos punidos. CAPÍTULO VII Análise das faculdades da alma É A ANÁLISE QUE NOS FAZ CONHECER NOSSO ESPÍRITO. Vimos como a natureza nos ensina a fazer a análise dos objetos sensíveis e nos dá, por este caminho, ideias de todas as espécies. Não podemos portanto duvidar que todos os nossos conhecimentos provêm dos sentidos. Mas trata-se de estender a esfera de nossos conhecimentos. Ora, se para ampliá-la temos necessidade de saber conduzir nosso espírito, concebe-se que, para aprender a conduzi-lo, é preciso conhecê-lo perfeitamente. Trata-se portanto de distinguir todas as faculdades que estão envolvidas na faculdade de pensar. Para preencher este objeto e outros ainda, quaisquer que possam ser, não teremos que procurar, como se fez até agora, um novo método para cada estudo novo: a análise deve bastar para todos, se soubermos empregá-la. ENCONTRAM-SE NA FACULDADE DE SENTIR TODAS AS FACULDADES DA ALMA. Só a alma conhece, porque só a alma sente; e é próprio dela analisar tudo o que lhe é mostrado pela- sensação. No entanto, como ela aprenderá a se conduzir, se não conhece a si própria, se ignora suas faculdades? É preciso, como vimos, que ela se estude é preciso que descubramos todas as faculdades de que é capaz. Mas onde as descobriremos a não ser na faculdade de sentir? Certamente esta faculdade envolve todas aquelas que podem chegar ao nosso conhecimento. Se conhecemos os objetos que estão fora da alma somente porque ela sente, como conheceríamos o que se passa dentro dela senão porque ela sente? Tudo nos convida então a proceder à análise da faculdade de sentir. Tentemos. Uma reflexão tornará esta análise bem simples: para decompor a faculdade de sentir, basta observar sucessivamente tudo o que acontece quando adquirimos um conhecimento qualquer. Digo um conhecimento qualquer, porque o que acontece, para adquirir vários, não pode ser senão uma repetição do que acontece para adquirir um só. A ATENÇÃO. Quando uma planície se oferece à minha visão, vejo tudo com um primeiro golpe de vista e não distingo nada ainda. Para distinguir objetos diferentes e fazer uma ideia distinta de sua forma e de sua situação, é preciso que eu detenha meu olhar sobre cada um deles: é o que já observamos anteriormente. Porém, quando olho para um, os outros, ainda que os veja, estão todavia em relação a mim como se não os visse mais, e, entre tantas sensações que se dão ao mesmo tempo, parece que experimento apenas uma, a do objeto sobre o qual eu fixo meu olhar. Este olhar é uma ação pela qual meu olho tende ao objeto sobre o qual se dirige: por esta razão, dou-lhe o nome de atenção; e é evidente que esta direção do órgão é a parte que o corpo pode ter para a atenção. Qual é, então, a parte da alma? Uma sensação que experimentamos como se fosse única, porque todas as outras são como se não as experimentássemos. A atenção que damos a um objeto é, então, da parte da alma, apenas a sensação que este objeto exerce sobre nós - sensação que se torna de alguma maneira exclusiva -, e esta faculdade é a primeira que notamos na faculdade de sentir. A COMPARAÇÃO. Como damos nossa atenção a um objeto, podemos dá-la a dois, ao mesmo tempo. Então, ao invés de uma única sensação exclusiva, experimentamos duas. Dizemos que as comparamos, porque as experimentamos exclusivamente para observá-las uma ao lado da outra, sem nos distrairmos com outras sensações: ora, é precisamente o que significa a palavra comparar. A comparação é, portanto, apenas uma dupla atenção: consiste em duas sensações que se experimentam, como se fossem sozinhas, e que excluem todas as outras. Um objeto está presente ou ausente. Se estiver presente, a atenção é a sensação que ele exerce atualmente sobre nós; se estiver ausente, a atenção é a lembrança da sensação que ele exerceu. E graças a esta lembrança que devemos o poder de exercer a faculdade de comparar objetos ausentes com objetos presentes. Logo, estudaremos a memória. O JUÍZO. Só podemos comparar dois objetos ou experimentar, uma ao lado da outra, as duas sensações que eles exercem exclusivamente sobre nós quando tivermos percebido se eles se assemelham ou se diferem. Ora, perceber semelhanças ou diferenças é julgar. O juízo é então, mais uma vez, apenas sensações. A REFLEXÃO. Se, por um primeiro juízo, conheço uma relação, para conhecer outra tenho necessidade de um segundo juízo. Se eu quiser, por exemplo, saber no que duas árvores diferem, observarei sucessivamente a forma, o tronco, os ramos, as folhas, os frutos, etc. Compararei sucessivamente todas estas coisas; farei uma sequência de juízos; e porque, então, minha atenção reflete de algum modo um objeto sobre um objeto, direi que reflito. A reflexão é, portanto apenas uma sequência de juízos que se processam por uma sequência de comparações; e, desde que nas comparações e nos juízos há apenas sensações, então não há mais do que sensações na reflexão. A IMAGINAÇÃO. Quando pela reflexão se notaram as qualidades que tornam os objetos diferentes, pôde-se, pela mesma reflexão, reunir num só objeto as qualidades que estavam separadas em vários. B assim que um poeta cria, por exemplo, um herói que nunca existiu. Então as ideias que se fazem são imagens que só têm realidade no espírito. A reflexão que faz estas imagens se denomina imaginação. O RACIOCINIO. Um juízo que enuncio pode conter implicitamente outro que não enuncio. Se digo que um corpo é pesado, digo implicitamente que, se não for sustentado, ele cairá. Ora, quando um segundo juízo está assim contido num outro, pode-se enunciá-lo como sequência do primeiro, e, por esta razão, diz-se que ele é a consequência deste. Dir-se-á, por exemplo: Esta abóbada é bem pesada; se ela não estiver suficientemente segura, cairá. Eis o que se compreende por enunciar um raciocínio não é mais do que enunciar dois juízos desta espécie. Há, portanto, apenas sensações tanto em nossos raciocínios como em nossos juízos. O segundo juízo do raciocínio que acabamos de fazer está sensivelmente contido no primeiro, e é uma consequência que não se tem necessidade de procurar. Seria preciso, pelo contrário, procurar, se o segundo juízo não se mostrasse no primeiro de uma maneira tão evidente, isto é, se fosse necessário, indo do conhecido ao desconhecido, passar por uma sequência de juízos intermediários, do primeiro até o último, e vê-los todos sucessivamente contidos uns nos outros. Este juízo, por exemplo: O mercúrio se sustém a certa altura no tubo de um barômetro, está contido neste: O ar é pesado. Mas, porque não o vemos de imediato, é preciso, indo do conhecido ao desconhecido, descobrir, por uma sequência de juízos intermediários, que o primeiro é consequência do segundo. Já fizemos semelhantes raciocínios, faremos ainda, e quando tivermos contraído o hábito de fazê-los, não nos será difícil desenredar todo o artifício. Explicam-se sempre as coisas que se sabe fazer: começamos então por raciocinar. O ENTENDIMENTO. Observemos que todas as faculdades que acabamos de examinar estão contidas na faculdade de sentir. A alma adquire através delas todos os seus conhecimentos: através delas compreende de algum modo as coisas que estuda, assim como pelo ouvido compreende os sons; por este motivo, a reunião de todas as faculdades se denomina entendimento. O entendimento comporta, portanto, a atenção, a comparação, o juízo, a reflexão, a imaginação e o raciocínio. Não se poderia fazer dele uma ideia mais exata. CAPÍTULO VIII Continuação do mesmo tema Considerando nossas sensações como representativas, vimos delas nascerem todas as nossas ideias e todas as operações do entendimento: se as considerarmos como agradáveis ou desagradáveis, veremos nascer todas as operações que se relacionam com a vontade. A NECESSIDADE. Ainda que, por sofrer, entenda-se experimentar uma sensação desagradável, é certo que a privação de uma sensação agradável é um sofrimento mais ou menos grave. Mas é preciso notar que ser privado e faltar não significam a mesma coisa. Pode-se nunca ter usufruído de coisas que estão ausentes, pode-se até não conhecê-las. Ocorre o contrário com as coisas das quais somos privados: não somente as conhecemos, mas temos o hábito de desfrutá-las, ou, pelo menos, imaginamos o prazer de desfrutá-las. Ora, semelhante privação é um sofrimento, que se denomina necessidade. Ter necessidade de uma coisa é sofrer porque se está privado dela. O MAL-ESTAR. Este sofrimento, em seu grau mais fraco, é menos uma dor do que um estado em que não nos encontramos bem, em que não estamos à vontade. Eu denomino este estado mal-estar. A INQUIETUDE. O mal-estar nos conduz a fazer movimentos para conseguir aquilo de que temos necessidade. Não podemos, então, permanecer em perfeito repouso e, por esta razão, o mal-estar toma o nome de inquietude. Quantos obstáculos mais encontramos para a realização, mais nossa inquietude cresce e este estado pode se tornar um tormento. O DESEJO. A necessidade só perturba nosso repouso, só produz inquietude, porque determina as faculdades do corpo e da alma sobre os objetos dos quais a privação nos faz sofrer. Lembramos o prazer que nos proporcionam, a reflexão nos mostra o que o prazer pode ainda nos proporcionar, a imaginação o exagera e, para atingi-la, lutamos de todas as maneiras. Todas as nossas faculdades se dirigem, então, sobre os objetos dos quais sentimos a necessidade e esta direção é o que compreendemos por desejo. AS PAIXÕES. Como é natural criar o hábito de desfrutar coisas agradáveis, é também natural habituar-se a desejá-las e os desejos convertidos em hábitos denominam-se paixões. Semelhantes desejos são de certo modo permanentes, ou, pelo menos, se eles se interrompem por intervalos, se renovam na primeira ocasião. Quanto mais vivos eles forem, mais as paixões serão violentas. A ESPERANÇA. Se, ao desejar uma coisa, julgamos que a obteremos, então este juízo, ligado ao desejo, produz a esperança. A VONTADE. Outro juízo produzirá a vontade: é aquele que formamos quando da experiência criamos um hábito de julgar que não encontraremos nenhum obstáculo aos nossos desejos. Eu quero significa eu desejo e nada pode se opor a meu desejo, tudo deve concorrer. OUTRA ACEPÇÃO DA PALAVRA VONTADE. Tal é propriamente a acepção da palavra vontade. Mas é usual dar-lhe uma significação mais extensa e se entende por vontade uma faculdade que compreende todos os hábitos que nasçam da necessidade, os desejos, as paixões, a esperança, o desespero, o temor, a confiança, a presunção e vários outros, dos quais é fácil fazer ideia. O PENSAMENTO. Enfim, a palavra pensamento, mais geral ainda, compreende em sua acepção todas as faculdades do entendimento e todas as da vontade. Pois pensar é sentir, prestar atenção, comparar, julgar, refletir, imaginar, raciocinar, desejar, apaixonar-se, ter esperanças, temer, etc. Explicamos como as faculdades da alma nascem sucessivamente da sensação e vemos que elas são apenas a sensação que se transforma para se tornar cada uma delas. Na segunda parte desta obra, propomo-nos descobrir todo o artifício do raciocínio. Preparemo-nos para esta busca, tentando raciocinar sobre um tema fácil e simples, ainda que tenhamos sido levados a tratar, erroneamente, do assunto como tem sido feito até hoje. Este será o assunto do capítulo seguinte. CAPÍTULO IX Sobre as causas da sensibilidade e sobre a memória Não é possível explicar detalhadamente todas as causas físicas da sensibilidade e da memória. Mas, ao invés de raciocinar segundo falsas hipóteses, poder-se-ia consultar a experiência e a analogia. Expliquemos o que se pode explicar e não vangloriemos de dar razão a tudo. FALSAS HIPÓTESES. Uns representam os nervos como cordas tensas, capazes de movimentos e vibrações, e acreditam ter adivinhado a causa das sensações e da memória. E evidente que esta suposição é completamente imaginária. Outros dizem que o cérebro é uma substância mole, na qual os espíritos animais deixam vestígios. Estes vestígios se conservam: os espíritos animais passam e repassam, o animal é dotado de sentimento e de memória. Estes autores não perceberam que, se a substância do cérebro é demasiado mole para receber vestígios, ela não terá consistência para conservá-los, não considerando o quanto é impossível que uma infinidade de vestígios subsista numa substância onde haja uma ação, uma circulação contínua. Foi julgando os nervos como cordas de um instrumento que se imaginou a primeira hipótese e se imaginou a segunda representando as impressões que se fazem no cérebro por marcas sobre uma superfície cujas partes estavam em repouso. Certamente isto não é raciocinar segundo a observação, nem segundo a analogia: é relacionar coisas que não têm qualquer relação. HÁ NO ANIMAL UM MOVIMENTO, QUE É O PRINCIPIO DA VEGETAÇÃO. Ignoro se há espíritos animais, ignoro até se os nervos são o órgão do sentimento. Não conheço nem o tecido das fibras, nem a natureza dos sólidos, nem a dos fluidos; não tenho, numa palavra, de todo este mecanismo senão uma ideia muito imperfeita e vaga. Sei apenas que há um movimento que é o princípio da vegetação e da sensibilidade; que o animal vive tanto quanto este movimento subsistir; que ele morre desde que esse movimento cesse. A experiência me ensina que o animal pode ser reduzido a um estado de vegetação: seja naturalmente por um sono profundo, seja acidentalmente por um ataque de apoplexia. Portanto, não conjeturo sobre o movimento que se processa nele. Tudo o que sabemos é que o sangue circula, que as vísceras e as glândulas exercem as funções necessárias para conservar e reparar as forças: mas ignoramos por quais leis o movimento opera todos estes efeitos. No entanto, estas leis existem e elas fazem supor ao movimento as determinações que fazem vegetar o animal. AS DETERMINAÇÕES DE QUE ESTE MOVIMENTO É SUSCETÍVEL SÃO AS CAUSAS DE SENSIBILIDADE. Mas, quando o animal sai do estado de vegetação para se tornar sensível, o movimento obedece a outras leis e segue novas determinações. Se o olho, por exemplo, se abrir à luz, os raios que o impressionam fazem supor ao movimento que o fazia vegetar as determinações que o tornam sensível. Acontece a mesma coisa com os outros sentidos. Logo, cada espécie de sentimento é causado por um tipo particular de determinação no movimento que é o princípio da vida. Vemos por isso que o movimento, que torna o animal sensível, só pode ser uma modificação do movimento que o faz vegetar, modificação ocasionada pela ação dos objetos sobre os sentidos. ESTA DETERMINAÇÃO PASSA DOS ÓRGÃOS AO CÉREBRO. Mas o movimento que torna sensível não se faz somente no órgão exposto à ação de objetos exteriores; transmite-se ainda até o cérebro, isto é, até o órgão que a observação demonstra ser a primeira e principal mola do sentimento. A sensibilidade tem, portanto, como causa a comunicação que existe entre os órgãos e o cérebro. Com efeito, quando o cérebro, comprimido por alguma causa, não pode obedecer às impressões enviadas pelos órgãos, no mesmo instante o animal se toma insensível. Deve-se então a liberdade a este primeiro impulso? Sim, quando os órgãos agem sobre o cérebro, este reage sobre eles e o sentimento se produz. Mesmo livre, poderia acontecer que o cérebro tivesse pouca ou até nenhuma comunicação com outra parte. Uma obstrução, por exemplo, ou uma forte ligadura no braço, diminuiria ou suspenderia o comércio do cérebro com a mão. O sentimento da mão, portanto, se enfraqueceria ou cessaria completamente. Todas estas proposições foram constatadas por observações, não fiz mais do que desprendê-las de qualquer hipótese arbitrária: era o único meio de colocá-las com toda a nitidez. SÓ SENTIMOS QUANDO NOSSOS ÓRGÃOS TOCAM OU SÃO TOCADOS. Desde que as diferentes determinações dadas ao movimento que faz vegetar são a única causa física e ocasional da sensibilidade, segue-se que só sentimos quando nossos órgãos tocam ou são tocados; é pelo contato que os objetos, agindo sobre os órgãos, comunicam ao movimento que os faz vegetar as determinações que o tomam sensível. Desta maneira, podemos considerar o odor, a audição, a visão e o gosto como extensões do tato. O olho não verá, se os corpos de certa forma não vêm se chocar contra a retina; o ouvido não escutará, se outros corpos de uma forma diferente não vêm impressionar o tímpano. Numa palavra, o princípio da variedade das sensações está nas diferentes determinações que os objetos produzem no movimento, segundo a organização das partes expostas à sua ação. NÃO SABEMOS COMO ESTE CONTATO PRODUZ SENSAÇÕES. Mas como o contato de certos corpúsculos ocasionará as sensações de som, de luz, de cor? Poder-se-ia, talvez, explicar a razão, se conhecêssemos a essência da alma, o mecanismo do olho, do ouvido, do cérebro, a natureza dos raios que se espalham sobre a retina e do ar que impressiona o tímpano. Porém, é o que ignoramos e pode-se abandonar a explicação destes fenômenos àqueles que gostam de formular hipóteses ignorando a experiência. NOVOS ÓRGÃOS OCASIONARIAM EM NÓS NOVAS SENSAÇÕES. Se Deus formasse em nosso corpo um novo órgão, com novas determinações de movimento, experimentaríamos sensações diferentes das que tivemos até hoje. Este órgão nos faria descobrir nos objetos propriedades de que hoje não podemos ter ideia alguma. Seria uma fonte de novos prazeres, novas dores e, consequentemente, novas necessidades. Poder-se-ia dizer isto tanto de um sétimo sentido, de um oitavo e de todos os que se poderiam supor, qualquer que seja o número. É certo que um novo órgão em nosso corpo tornaria o movimento que o faz vegetar suscetível de muitas modificações que não saberíamos imaginar. Estes sentidos seriam removidos por corpúsculos de certa forma: eles se instruiriam, como os outros, segundo o tato e aprenderiam com ele a relacionar suas sensações sobre os objetos. NOSSOS SENTIDOS SAO SUFICIENTES. Mas os sentidos que temos bastam para nossa conservação: são até um tesouro de conhecimentos para aqueles que sabem manejá-las; e, se os outros não usufruem destas riquezas, não duvidam de seu infortúnio. Como perceberiam que se vê nas sensações, comuns a todos, aquilo que eles não conseguem ver por si próprios? COMO O ANIMAL APRENDE A SE MOVER SEGUNDO SUA VONTADE. A ação dos sentidos sobre o cérebro torna, portanto, o animal sensível. Mas isto não basta para dar ao corpo todos os movimentos de que é capaz; é preciso ainda que o cérebro aja sobre todos os músculos e sobre todos os órgãos interiores destinados a mover cada um dos membros. Ora, a observação demonstra esta ação do cérebro. Consequentemente, quando esta força principal recebe certas determinações por parte dos sentidos, comunica outras determinações a algumas das partes do corpo e o animal se move. O animal só teria movimentos incertos se a ação dos sentidos sobre o cérebro, e do cérebro sobre os membros, não tivesse sido acompanhada por sentimento algum. Movido sem' experimentar dor nem prazer, não teria tido nenhum interesse pelos movimentos de seu corpo: não os teria, portanto, observado, ele próprio não teria aprendido a regulá-las. Mas desde que ele seja informado, pela dor ou pelo prazer, a evitar ou a fazer certos movimentos, fez um estudo para evitá-las ou executá-los. Compara os sentimentos que experimenta: observa os movimentos que os precedem, e aqueles que os acompanham: tateia, numa palavra, e depois dos tateios contrai afinal o hábito de se mover segundo sua vontade. É então que há movimentos regulados. Este é o princípio de todos os hábitos do corpo. COMO O CORPO CONTRAI O HÁBITO DE CERTOS MOVIMENTOS. Estes hábitos são movimentos regulados que se processam em nós sem que pareçamos dirigi-los, porque, à força de tê-los repetido, os executamos sem necessidade de pensar. São estes hábitos que se denominam movimentos naturais, ações mecânicas, instinto, e que se supõe falsamente terem nascido conosco. Evitaremos este preconceito, se julgarmos estes hábitos por outros que se nos tornaram completamente naturais, ainda que nos lembremos de tê-los adquirido. A primeira vez, por exemplo, que toco um cravo, meus dedos têm movimentos incertos: mas, à medida que aprendo a tocar esse instrumento, adquiro imperceptivelmente um hábito de mover meus dedos sobre o cravo. No primeiro instante, eles obedecem com dificuldade às determinações que lhes quero dar: pouco a pouco superam os obstáculos; finalmente, movem-se segundo minha vontade, prevendo-a ao executar um trecho de música enquanto minha reflexão se transporta para outra coisa. Eles contraem, então, o hábito de se mover segundo certo número de determinações e, assim como não há tecla por onde uma ária não possa começar, não há determinação que não possa ser a primeira de certa sequência. O exercício combina sempre de modo diferente estas determinações, os dedos adquirem cada vez mais facilidade: enfim, eles obedecem, como por si próprios, a uma sequência de movimentos determinados, e obedecem sem esforço, sem que seja necessário que me concentre. B desta maneira que os órgãos dos sentidos, tendo contraído hábitos diferentes, se movem por si próprios, sem que a alma tenha mais necessidade de zelar continuamente sobre eles para regular seus movimentos. O CÉREBRO CONTRAI SEMELHANTES HÁBITOS. ELES SÃO A CAUSA FÍSICA E OCASIONAL DA MEMÓRIA. Mas o cérebro é o órgão principal: é um centro comum onde todos se reúnem, e de onde todos parecem nascer. Julgando, portanto, o cérebro pelos outros sentidos, teremos o direito de concluir que todos os hábitos do corpo passam por ele, e, que, consequentemente, as fibras que o compõem, cada qual, pela sua flexibilidade, com movimentos de toda espécie adquirem, como os dedos, o hábito de obedecer a diferentes sequências de movimentos determinados. Assim sendo, o poder que tem meu cérebro de me lembrar de um objeto não pode ser senão a facilidade que ele adquiriu de se mover por si próprio da mesma maneira que ele se havia movido quando este objeto impressionava meus sentidos. A causa física e ocasional, que conserva e que lembra as ideias, está, então, nas determinações de que o cérebro, este órgão principal do sentimento, constituiu um hábito, e que subsistem ou se reproduzem até quando nossos sentidos cessam de concorrer para isto. Não recordaríamos os objetos que tínhamos visto, escutado, tocado, se o movimento não recebesse as mesmas determinações no momento em que vemos, escutamos, tocamos. Numa palavra, a ação mecânica segue as mesmas leis, seja quando se experimenta uma sensação, seja quando se lembra somente de havê-la experimentado: a memória é apenas uma maneira de sentir. AS IDEIAS DAS QUAIS NÃO SE PENSA MAIS NÃO ESTÃO EM NENHUMA PARTE. Escutei frequentemente perguntar: Em que se transformam as ideias nas quais não se pensa mais? Onde elas se conservam? De onde elas voltam quando elas se apresentam novamente? É na alma que elas existem durante estes longos intervalos quando não pensamos nelas? É no corpo? Por estas perguntas e pelas respostas que dão os metafísicos, acreditar-se-ia que as ideias são como todas as coisas de que fazemos provisões e que a memória é apenas um grande armazém. Seria bastante razoável atribuir existência às figuras diferentes que um corpo teve sucessivamente e perguntar: O que acontece com a qualidade “redonda” deste corpo quando ele toma outra forma? Onde ela se conserva? E quando este corpo se torna novamente redondo, de onde lhe vem esta qualidade? As ideias são, como as sensações, maneiras de ser da alma. Elas existem enquanto a modificam; não deixam de existir desde que cessam de modificá-la. Procurar na alma aquelas que não penso absolutamente é procurá-las onde não estão mais: procurá-las no corpo é procurá-las onde elas jamais estiveram. Onde estão elas então? Em nenhuma parte. COMO AS IDEIAS SE REPRODUZEM. Não seria absurdo perguntar onde estão os sons de um cravo, quando este instrumento cessa de tocar? E não se responderia: Eles não estão em nenhuma parte: mas, se os dedos tocam o cravo e se movem como eles se moveram, reproduzirão os mesmos sons. Responderei então que minhas ideias não estão em nenhuma parte, quando minha alma cessa de pensar nelas, mas que elas voltarão a mim logo que os movimentos próprios para reproduzi-Ias se renovem. Ainda que eu não conheça o mecanismo do cérebro, posso julgar que suas diferentes partes adquiriram a facilidade de se mover por si próprias, da mesma maneira que elas foram movidas pela ação dos sentidos; que os hábitos deste órgão se conservam; que todas as vezes que ele obedece, perfaz as mesmas ideias, porque os mesmos movimentos se renovam nele. Numa palavra, têm-se ideias na memória, como se têm sob os dedos teclas de cravo: isto é, que o cérebro tem, como todos os outros sentidos, a facilidade de se mover segundo determinações às quais se habituou. Experimentamos sensações como um cravo reproduz sons. Os órgãos exteriores do corpo humano são como as teclas, os objetos que os impressionam são como os dedos sobre o cravo, os órgãos internos são como o corpo do cravo, as sensações ou as ideias são como os sons; e a memória ocorre quando as ideias que foram produzidas pela ação dos objetos sobre os sentidos são reproduzidas pelos movimentos aos quais o cérebro se habituou. TODOS OS FENÔMENOS DA MEMÓRIA SE EXPLICAM PELOS HÁBITOS DO CÉREBRO. Se a memória, lenta ou rápida, descreve as coisas, ora ordenadamente, ora confusamente, é porque a multidão de ideias cria no cérebro movimentos tão numerosos e tão variados, que não é possível que se reproduzam sempre com a mesma facilidade e a mesma exatidão. Todos os fenômenos da memória dependem de hábitos contraídos pelas partes móveis e flexíveis do cérebro. Todos os movimentos, de que estas partes são suscetíveis, estão ligados uns aos outros, como todas as ideias que eles provocam estão ligadas entre si. E desta maneira que os movimentos dos dedos sobre o cravo estão ligados entre si, como os sons do canto que se escuta: o canto é lento se os dedos se movem lentamente e ele é confuso se os movimentos dos dedos se confundem. Assim como a quantidade de peças musicais que se aprende dificulta os dedos de conservar os hábitos próprios para executá-las com facilidade e nitidez, da mesma maneira a quantidade de coisas que se quer lembrar dificulta frequentemente o cérebro de conservar os hábitos próprios para projetar as ideias com facilidade e precisão. Quando um hábil organista põe sem intenção as mãos sobre um cravo, os primeiros sons que ele faz escutar determinam seus dedos a continuar e a obedecer a uma sequência de movimentos que produzam uma sequência de sons cuja melodia e harmonia chegam a surpreendê-la. No entanto, ele conduz seus dedos naturalmente e sem esforço. E, destarte, que um primeiro movimento, provocado no cérebro pela ação de um objeto sobre nossos sentidos, determina uma sequência de movimentos que descreve uma sequência de ideias. Nossa memória está sempre em ação porque nossos sentidos, continuamente expostos a impressões de objetos, não cessam de agir sobre nosso cérebro. O cérebro, permanentemente excitado pelos órgãos, não obedece somente à impressão que recebe imediatamente, obedece ainda a todos os movimentos que esta primeira impressão deve reproduzir. Ele se conduz, por hábito, de movimento em movimento, antecipa a ação dos sentidos, descreve longas sequências de ideias. Faz mais: reage sobre os sentidos com vivacidade, reenvia-lhes as sensações que eles lhe haviam enviado antes e nos persuade que vemos o que não vemos. Assim como os dedos conservam o hábito de uma sequência de movimentos e podem, a qualquer momento, se mover como eles se moveram, o cérebro conserva igualmente seus hábitos e, tendo uma vez sido excitado pela ação dos sentidos, ele próprio passa pelos movimentos que lhe são familiares e lembra as ideias. Mas como se executam estes movimentos? Como seguem diferentes determinações? E o que é impossível de aprofundar. Se se fizessem estas perguntas sobre os hábitos dos dedos, também eu não poderia responder. Não tentarei então me perder em conjeturas. Basta-me julgar os hábitos do cérebro pelos hábitos de cada sentido: é preciso se contentar em saber que o mesmo mecanismo, qualquer que seja, dá, conserva e reproduz as ideias. A MEMÓRIA TEM SUA SEDE NO CÉREBRO E EM TODOS OS ÓRGÃOS QUE TRANSMITEM IDEIAS. Acabamos de ver que a memória tem a sua sede principalmente no cérebro: parece-me que a tem também em todos os órgãos de nossas sensações, pois deve tê-la em todas as partes onde está a causa ocasional das ideias que lembramos. Ora, se para termos pela primeira vez uma ideia foi necessário que os sentidos agissem sobre o cérebro, é evidente que a lembrança desta ideia se desprenderá quando, por sua vez, o cérebro agir sobre os sentidos. Este comércio de ação é portanto necessário para suscitar a ideia de uma sensação passada, como é necessário para produzir uma sensação atual. Com efeito, só representamos bem uma figura quando nossas mãos retomam a mesma forma que o tato lhes tinha feito conhecer. Neste caso, a memória nos fala uma linguagem de ação. A memória de uma ária que se executa tem sua sede nos dedos, no ouvido e no cérebro: nos dedos, que criaram um hábito de uma sequência de movimentos; no ouvido, que não julga os dedos, e que não os dirige necessariamente; a não ser porque ele criou por seu lado um hábito de outra sequência de movimentos; e no cérebro, que criou um hábito de se orientar pelas formas que correspondem exatamente aos hábitos dos dedos e aos do ouvido. Notam-se facilmente os hábitos que os dedos contraíram: não se pode da mesma maneira observar os do ouvido, menos ainda os do cérebro: mas a analogia prova que eles existem. Poder-se-ia saber uma língua, se o cérebro não tivesse hábitos correspondentes aos do ouvido para escutá-la, aos da boca para falá-la, aos dos olhos para lê-la? A lembrança de uma língua, então, não reside unicamente nos hábitos do cérebro, reside também nos hábitos dos órgãos da audição, da palavra e da visão. EXPLICAÇÃO DOS SONHOS. Segundo os princípios que acabo de estabelecer, seria fácil explicar os sonhos: pois as ideias que temos no sono se assemelham bastante à execução de um organista, que, nos momentos de distração, deixa seus dedos se movimentarem ao acaso. Certamente, seus dedos só fazem o que aprenderam a fazer, mas não o fazem na mesma ordem, emendam passagens diferentes tiradas de trechos diversos que estudaram. Julguemos então por analogia o que se passa no cérebro, segundo o que observamos nos hábitos de uma mão exercitada num instrumento. Concluiremos que os sonhos são o efeito da ação deste principal órgão sobre os sentidos, que, no meio do repouso de todas as partes do corpo, conserva a atividade suficiente para obedecer a alguns de seus hábitos. Ora, desde que o cérebro se mova como fora movido quando tínhamos sensações, ele age sobre os sentidos, ouvimos e vemos: é deste modo que um aleijado crê sentir a mão que não tem mais. Porém, em semelhante caso, o cérebro descreve as coisas desordenadamente, porque os hábitos, cuja ação está interrompida pelo sono, interceptam um grande número de ideias. A MEMÓRIA SE PERDE, PORQUE O CÉREBRO PERDE SEUS HÁBITOS. Agora que explicamos como se contraem os hábitos que produzem a memória, será fácil compreender como se perdem. Primeiramente, se eles não forem continuamente conservados, ou, pelo menos, renovados frequentemente. E o que acontecerá com os hábitos que não forem requisitados pelos sentidos. Em segundo lugar, se eles se multiplicam desmesuradamente, haverá alguns que negligenciaremos. Do mesmo modo, perdemos conhecimentos, enquanto adquirimos novos. Em terceiro lugar, uma indisposição no cérebro enfraqueceria ou perturbaria a memória, se ela criasse um obstáculo a alguns dos movimentos a que o cérebro se habituou. Se a indisposição impedisse todos os hábitos do cérebro, não nos lembraríamos de nada. Em quarto lugar, uma paralisia nos órgãos produziria o mesmo efeito: os hábitos do cérebro se perderiam pouco a pouco, se isolados da ação dos sentidos. Enfim, a velhice arruína a memória. Então as partes do cérebro são como dedos que não são mais flexíveis para se moverem segundo todas as determinações que lhes eram familiares. Os hábitos se perdem pouco a pouco: só restam sensações fracas que vão logo escapar: o movimento que parece entretê-las está prestes a se encerrar. CONCLUSÃO O princípio físico e ocasional da sensibilidade reside unicamente em certas determinações, de que é suscetível o movimento que faz vegetar o animal. O princípio físico e ocasional da memória está nestas determinações, quando se tornaram hábitos. E a analogia que nos autoriza a supor que, nos órgãos que não podemos observar, ocorre algo de semelhante ao que observamos nos outros. Ignoro por qual mecanismo minha mão tem mais flexibilidade e mobilidade para contrair o hábito de certas determinações de movimentos, mas sei que existe nela flexibilidade, mobilidade, exercício, hábitos, e suponho que tudo isto se reencontra no cérebro e nos órgãos que são, com ele, a sede da memória. Por isso, só tenho certamente uma ideia bastante imperfeita das causas físicas e ocasionais da sensibilidade e da memória; ignoro totalmente os primeiros princípios. Reconheço que haja em nós um movimento e não posso compreender por qual força ele é produzido. Reconheço que este movimento seja capaz de diferentes determinações e que não possa descobrir o mecanismo que os regula. Tenho apenas a vantagem de haver livrado de toda hipótese arbitrária este pouco de conhecimento que temos sobre uma matéria das mais obscuras. É, acredito, ao que os físicos devem se limitar todas as vezes que queiram fazer sistemas sobre coisas de que não é possível observar as causas primeiras. SEGUNDA PARTE A ANÁLISE CONSIDERADA EM SEUS MEIOS E EM SEUS EFEITOS OU A ARTE DE RACIOCINAR REDUZIDA A UMA LINGUA BEM FEITA Conhecemos a origem e a geração de todas as ideias, conhecemos de igual maneira a origem e a geração de todas as faculdades da alma e sabemos que a análise, que nos conduziu a estes conhecimentos, é o único método que pode nos conduzir a outros. Ela é, propriamente, a alavanca do espírito. E preciso estudá-la e vamos considerá-la por seus meios e seus efeitos. CAPÍTULO I Como os conhecimentos que devemos à natureza constituem um sistema onde tudo está perfeitamente ligado e como nos extraviamos quando esquecemos suas lições. COMO A NATUREZA NOS ENSINA A RACIOCINAR, ELA PRÓPRIA REGULANDO O USO DE NOSSAS FACULDADES. Vimos que, pela palavra desejo, só podemos entender a direção de nossas faculdades sobre as coisas de que temos necessidade. Temos, então, desejos porque temos necessidades a satisfazer. Desta maneira, necessidades, desejos, eis o motivo de todas as nossas buscas. Nossas necessidades e os meios de satisfazê-las têm sua razão na conformação de nossos órgãos e nas relações das coisas a esta conformação. Por exemplo, a maneira pela qual sou feito determina as espécies de alimentos de que tenho necessidade, e a maneira pela qual os produtos do solo estão conformados determina os que podem me servir de alimentos. Posso ter de todas estas diferentes conformações apenas um conhecimento bastante imperfeito, eu as ignoro a bem dizer: mas a experiência me ensina o uso de coisas que me são absolutamente necessárias. Sou instruído pelo prazer ou pela dor e o sou inteiramente: ser-me-ia inútil saber mais e a natureza limita aqui suas lições. Vemos em suas lições um sistema cujas partes estão perfeitamente ordenadas. Se há em mim necessidades e desejos, há fora de mim objetos feitos para satisfazê-los e tenho a faculdade para conhecê-los e desfrutá-los, Este sistema encerra naturalmente meus conhecimentos numa esfera de um pequeno número de necessidades e de um pequeno número de coisas para meu uso. Mas, se meus conhecimentos não são numerosos, estão bem ordenados, porque os adquiri na mesma ordem de minhas necessidades e na mesma ordem das relações das coisas que estão a meu alcance. Vejo, então, na esfera de meus conhecimentos um sistema que corresponde àquele que o autor de minha natureza seguiu quando me constituiu. Não é surpreendente, se minhas necessidades e minhas faculdades são dadas, minhas buscas e meus conhecimentos são ao mesmo tempo dados. Tudo está igualmente ligado tanto em um sistema quanto no outro. Meus órgãos, as sensações que experimento, os juízos que trago, a experiência que os confirma, ou que os corrige, constituem tanto um quanto o outro um sistema para minha conservação e é evidente que aquele que me fez só tenha disposto com tanta ordem apenas para zelar sobre mim. Eis o sistema que seria preciso estudar para aprender a raciocinar. Não se poderia observar as faculdades que nossa conformação nos dá, o uso que ela nos faz processar, numa palavra, não se poderia unicamente através dela observar o que fazemos. Suas lições, se as soubéssemos aproveitar, seriam a melhor de todas as lógicas. Com efeito, o que nos ensina nossa conformação? Evitar o que nos pode prejudicar e procurar o que nos pode ser útil. Mas será necessário para isso julgarmos a essência dos seres? O autor de nossa natureza não o exige. Ele sabe que não colocou estas essências ao nosso alcance: quer somente que conheçamos as relações que as coisas têm conosco e entre si, quando o conhecimento destas últimas pode nos ser de alguma utilidade. Temos um meio para julgar estas relações e é único: observar as sensações que os objetos efetuam sobre nós. Nossas sensações podem se estender, a própria esfera de nossos conhecimentos pode se estender: para além disso, toda descoberta nos é interditada. A ordem que nossa natureza ou conformação estabelece entre nossas necessidades e as coisas vai indicar-nos a ordem na qual devemos estudar as relações essenciais para o nosso conhecimento. Quanto mais dóceis formos às suas lições, mais prementes serão nossas necessidades, faremos o que ela nos indica e observaremos ordenadamente. Ela nos obriga a uma análise desde o princípio. Nossas buscas se limitam aos meios de satisfazer o pequeno número de necessidades que nossa natureza nos fornece. Se nossas primeiras observações forem bem feitas, o uso que fizermos das coisas as confirmará imediatamente: se elas forem mal feitas, este mesmo uso as destruirá rapidamente, e indicando-nos outras observações para fazer. Desta maneira, podemos desconfiar, porque elas se encontram em nosso caminho: mas este caminho é o da verdade, e para ela nos conduz. Observar relações, confirmar estes juízos por novas observações ou corrigi-los observando novamente, eis, então, o que a natureza nos obriga a fazer e assim faremos cada vez que adquirirmos um novo conhecimento. Esta é a arte de raciocinar: é simples como a natureza no-lo ensina. COMO, ESQUECENDO AS LICÕES DA NATUREZA, RACIOCINAMOS SEGUNDO MAUS HÁBITOS. Parece que conhecemos esta arte nos limites em que é possível conhecê-la. Isto seria verdade, se tivéssemos sempre sido capazes de notar que é a natureza que ensine esta arte e que só ela pode ensiná-la: pois, então, teríamos prosseguido como ela nos obrigou a começar. Mas percebemos isto demasiado tarde, ou melhor, pela primeira vez. E pela primeira vez que vemos nas lições da natureza todo o artifício desta análise, que deu aos homens de gênio o poder de criar as ciências ou de alargar os limites. Temos esquecido estas lições; e, ao invés de observar as coisas que queríamos conhecer, nós as imaginamos. De suposições falsas em suposições falsas, extraviamo-nos, entre uma infinidade de erros, estes erros tendo-se tornado preconceitos, tomo-os, por este motivo, por princípios extraviamo-nos, desta maneira, cada vez mais. Passamos, então, a raciocinar somente através dos maus hábitos que havíamos contraído. A arte de abusar das palavras foi para nós a arte de raciocinar: arbitrária, frívola, absurda, houve todos os vícios das imaginações desregradas. Para aprender a raciocinar, devemos corrigir todos estes maus hábitos. Eis o que hoje torna tão difícil esta arte, que seria fácil por si própria. Pois obedecemos a estes hábitos mais facilmente do que a natureza. Chamamo-los uma segunda natureza, para desculpar nossa fraqueza ou nossa cegueira; porém, é uma natureza alterada e corrompida. Notamos que, para contrair um hábito, basta fazê-lo, e que, para perdê-lo, basta cessar de fazê-lo. Parece que uma coisa é tão fácil quanto a outra e, no entanto, não ocorre assim. Ocorre que, ao contrair um hábito, pensamos antes de fazê-lo; e, quando queremos perdê-lo, o fazemos sem pensar. Além disso, quando os hábitos se tornaram o que denominamos uma segunda natureza, é-nos quase impossível perceber que eles são maus. As descobertas desta espécie são as mais difíceis: assim elas escapam em maior número. Eu só ouço falar em hábitos do espírito: pois, quando se trata dos hábitos do corpo, todos estão em condições de julgar. A experiência basta para nos ensinar se eles são úteis ou prejudiciais; e, quando não são nem uma coisa nem outra, o uso faz disso o que quer e julgamos segundo ele. Infelizmente, os hábitos da alma estão da mesma maneira submetidos aos caprichos do uso, que parecem não permitir nem dúvida nem exame e são muito mais contagiosos, quando o espírito tiver tanto repugnância para ver seus defeitos quanto preguiça para refletir sobre si próprio. Alguns se envergonhariam de não pensar como todos: outros se cansariam de pensar unicamente segundo eles próprios; e, se alguns têm a ambição de se destacar, frequentemente é para pensar pior ainda. Em contradição com eles mesmos, não pensarão como os outros e, no entanto, só toleram que se pense como eles. ERROS NOS QUAIS ESTES HÁBITOS NOS FAZEM CAIR. Se quisermos conhecer os maus hábitos do espírito humano, observemos as diferentes opiniões dos povos. Vejamos as ideias falsas, contraditórias, absurdas que a superstição espalhou por todo o lugar e julguemos a força dos hábitos e como a paixão faz respeitar mais o erro do que a verdade. Consideremos as nações desde o seu princípio até a sua decadência e veremos os preconceitos se multiplicarem com as desordens: surpreender-nos-emos com a pouca luz que encontraremos nos próprios séculos que se denominam iluminados. Geralmente, que legislações! Que governos! Que jurisprudência! Poucos povos tiveram boas leis! E como duraram pouco! Enfim, se observarmos o espírito filosófico nos gregos, nos romanos e nos povos que os sucederam, veremos, nas opiniões que se transmitem de era para era, o quanto a arte de regular o pensamento foi pouco conhecida em todos os séculos. A ignorância em que permanecemos até hoje nos causará espanto, se considerarmos que descendemos de homens de gênio que ampliaram nossos conhecimentos. Este é o caráter geral das seitas: ansiedade de domínio, eis sua única verdade. Elas querem, acima de tudo, se destacar. Polemizam questões frívolas, expressam-se mediante jargões ininteligíveis, observam pouco, tomam seus sonhos como interpretações da natureza; enfim, ocupadas de se prejudicarem umas às outras e de fazer novos prosélitos, empregam para este efeito todos os meios e sacrificam tudo pelas opiniões que querem difundir. A verdade é, então, difícil de reconhecer entre tantos sistemas monstruosos, que se conservaram pelas causas que os produziram, isto é, pelas superstições, pelos governos e pela má filosofia. Os erros, demasiado ligados uns aos outros, se defendem mutuamente. Em vão combater-se-iam alguns: seria preciso destruí-las todos ao mesmo tempo, isto é, seria preciso mudar completamente todos os hábitos do espírito humano. Mas estes hábitos estão muito arraigados: são conservados pelas paixões que nos cegam. Se, por acaso, existirem alguns homens capazes de abrir os olhos, são demasiado fracos para corrigirem: os poderes querem que os abusos e os preconceitos durem. ÚNICO MEIO DE COLOCAR ORDEM NA FACULDADE DE PENSAR. Todos estes erros parecem supor em nós hábitos maus e juízos falsos tomados como verdadeiros. No entanto, todos têm a mesma origem e provêm igualmente do hábito de nos servirmos de palavras antes de determinar seu significado e ter sentido a necessidade de determiná-lo. Não observamos nada: não sabemos o quanto é necessário observar. Julgamos precipitadamente sem nos darmos conta dos juízos que transmitimos e acreditamos adquirir conhecimentos aprendendo palavras que são apenas palavras. Porque, em nossa infância, pensamos segundo os outros, adotamos todos os preconceitos. Quando atingimos uma idade onde acreditamos pensar segundo nós próprios, continuamos a pensar segundo os outros, porque pensamos segundo os preconceitos que eles nos deram. Então, quanto mais o espírito parece fazer progressos, mais se extravia e os erros se acumulam de gerações em gerações. Quando as coisas atingem este ponto, há apenas um meio de recolocar a ordem na faculdade de pensar: é esquecer tudo o que aprendemos, retomar nossas ideias em sua origem, seguir a geração e refazer, como diz Bacon, o entendimento humano. Quanto mais alguém for instruído, mais dificuldade encontrará em recolocar ordem na faculdade de pensar. Desta maneira, obras que tratam das ciências com grande nitidez, precisão e ordem não estariam do mesmo modo ao alcance de todos. Aqueles que nunca tivessem estudado nada as entenderiam melhor do que aqueles que fizeram grandes estudos, e, sobretudo, do que aqueles que escreveram muito sobre as ciências. Seria quase impossível que estes lessem tais obras como devem ser lidas. Uma boa lógica faria nos espíritos uma revolução muito lenta e só o tempo poderia demonstrar utilidade algum dia. Eis portanto os efeitos de uma má educação e esta educação é má apenas porque contraria a natureza. As crianças são determinadas por suas necessidades a serem observadoras e analistas; e têm, através de suas faculdades originais, condições para tanto: já o são de algum modo, na medida em que só a natureza as conduziu. Mas quando nós começamos a conduzi-las, interditamos-lhes toda observação e toda análise. Supomos que elas não raciocinam, porque não sabemos raciocinar com elas, e, esperando uma idade de razão, que começara sem nós e que atrasamos com todo o nosso poder, condenamo-las a julgar apenas segundo nossas opiniões, nossos preconceitos e nossos erros. E preciso, portanto, que elas não tenham espírito, ou que tenham apenas um espírito falso. Se algumas se destacam, é porque tem em sua conformação bastante energia para vencer cedo ou tarde os obstáculos que colocamos ao desenvolvimento de seus talentos: as outras são plantas que mutilamos até a raiz e que morrem estéreis. CAPÍTULO II Como a linguagem de ação analisa o pensamento SÓ PODEMOS ANALISAR POR MEIO DE UMA LINGUAGEM. Só podemos raciocinar pelos meios que nos são dados ou indicados pela natureza. E preciso portanto observar estes meios e tentar descobrir como eles são seguros algumas vezes e por que nós não o somos sempre. Acabamos de ver que a causa de nossos erros está no hábito de julgar segundo palavras de que não determinamos o sentido: vimos, na primeira parte, que as palavras nos são absolutamente necessárias para formar ideias de todas as espécies. Veremos logo que as ideias abstratas e gerais são apenas denominações. Portanto, tudo confirmará que só pensamos com a ajuda das palavras. E o suficiente para compreender que a arte de raciocinar começou com as línguas, que só pôde haver progresso na medida em que elas se fizeram e que, consequentemente, devem conter todos os meios que podemos ter para analisar bem ou mal. É preciso portanto observar as línguas: é preciso até, se quisermos conhecer o que foram em seu nascimento, observar a linguagem de ação segundo a qual foram feitas. E por este caminho que vamos começar. OS ELEMENTOS DA LINGUAGEM DE AÇÃO SÃO INATOS. Os elementos da linguagem de ação nasceram com o homem e estes elementos são os órgãos que o autor de nossa natureza nos deu. Desta maneira, há uma linguagem inata, ainda que não haja ideias que o sejam. Com efeito, seria preciso que os elementos de uma linguagem qualquer, preparados antecipadamente, precedessem nossas ideias, porque, sem signos de qualquer espécie, nos seria impossível analisar nossos pensamentos, para darmos conta do que pensamos, isto é, para vê-lo de maneira distinta. Assim nossa conformação exterior é destinada a representar tudo o que se passa na alma: é a expressão de nossos sentimentos e de nossos juízos e, quando ela fala, nada pode ficar escondido. POR QUE, NO PRIMEIRO INSTANTE, TUDO ESTÁ CONFUSO NESTA LINGUAGEM, O caráter da ação não é analisar. Como ela representa os sentimentos, porque é efeito deles, representa ao mesmo tempo todos aqueles que experimentamos no próprio instante e as ideias simultâneas em nosso pensamento são naturalmente simultâneas nesta linguagem. Mas uma infinidade de ideias simultâneas se distinguiriam apenas na medida em que os habituássemos a observá-las umas após as outras, E a este hábito que devemos a vantagem de diferenciá-las imediatamente e com tal facilidade que surpreende os que não o têm. Por que, por exemplo, um músico distingue na harmonia todas as notas que ouvimos ao mesmo tempo? É que seu ouvido está exercitado a ouvir sons e apreciá-los. Os homens começam a exprimir a linguagem de ação assim que eles sentem e a exprimem sem ter o projeto de comunicar seus pensamentos. Eles não formarão o projeto de exprimi-Ia para se comunicar, a não ser quando perceberem que foram compreendidos: mas, no princípio, eles não projetam nada, porque não observaram nada. Tudo está confuso para eles em sua linguagem, não diferenciarão nada, na medida em que não tiverem aprendido a fazer a análise de seus pensamentos. Mas, embora tudo esteja confuso em sua linguagem, ela contém, no entanto, tudo o que eles sentem: contém tudo o que diferenciarem quando souberem analisar seus pensamentos, isto é, desejos, temores, juízos, raciocínios, numa palavra, todas as operações de que a alma é capaz. Enfim, se tudo não estivesse presente, a análise não encontraria nada. Vejamos como estes homens aprenderão com a natureza a analisar todas as coisas. COMO, EM SEGUIDA, A UNGUAGEM SE TORNA UM MÉTODO ANALITICO. Eles têm necessidade de se ajudar mutuamente, portanto cada um deles tem necessidade de se comunicar e, consequentemente, de compreender a si próprio. No primeiro instante, eles obedecem à natureza e, sem projeto, como acabamos de notar, exprimem ao mesmo tempo tudo o que eles sentem, porque é natural à sua ação exprimir-se desta maneira. No entanto, aquele que escuta com os olhos não conseguirá compreender, se não decompuser esta ação, para nela observar os movimentos um após o outro. Mas lhe é natural decompô-la e consequentemente a decompõe, mesmo sem ter pensado nisso. Pois, se vê na ação ao mesmo tempo todos os movimentos, só vê no primeiro golpe de vista aqueles que o impressionam mais; em segundo, vê os outros, em terceiro, os outros ainda. Portanto, ele os observa sucessivamente e a análise é feita. Cada um destes homens notará, portanto, cedo ou tarde que só compreende melhor os outros quando decompõe sua ação, e, consequentemente, poderá notar que tem necessidade, para se comunicar, de decompor a sua própria. Então, ele se habituará, pouco a pouco, a repetir os movimentos, um após o outro, que a natureza o obrigou a fazer de uma só vez, e a linguagem de ação tornar-se-á naturalmente para ele um método analítico. Chamo um método, porque a sucessão de movimentos não se processará arbitrariamente e sem regras: pois a ação sendo o efeito das necessidades e das circunstâncias em que nos encontramos, é natural que ela se decomponha na ordem dada pelas necessidades e pelas circunstâncias. Embora esta ordem possa variar, e varia, não pode jamais ser arbitrária. E desta maneira que, num quadro, o lugar de cada personagem, sua ação e seu caráter são determinados, quando o sujeito é dado com todas as suas circunstâncias. Decompondo sua ação, este homem decompõe seu pensamento para ele como para os outros; ele a analisa e se comunica, porque compreende a si próprio. Como a ação total é o quadro de todo o pensamento, as ações parciais também são quadros de ideias que fazem parte dela. Portanto, se ele decompuser ainda suas ações parciais, decomporá igualmente as ideias parciais de que são os signos e formará continuamente novas ideias distintas. Este meio, o único que ele possui para analisar seu pensamento, poderá desenvolvê-lo até nos mínimos detalhes: pois, sendo dados os primeiros signos de uma linguagem, só nos resta consultar a analogia e ela fornecerá todos os outros. Não haverá, portanto, ideias a que a linguagem de ação não possa se referir e ela se referirá a estas ideias com tanto maior clareza e precisão quanto a analogia se mostrar mais nitidamente na sequência de signos que se terá escolhido. Signos absolutamente arbitrários não serão entendidos, porque, não havendo análogos, a acepção de um signo conhecido não conduzirá à acepção de um signo desconhecido. Assim, é a analogia que faz todo o artifício das línguas: elas são fáceis, claras e precisas, à proporção que a analogia se mostrar de uma maneira mais nítida. Acabo de dizer que há uma língua inata, ainda que não haja ideias que o sejam. Esta verdade, que poderia não ter sido aprendida, é demonstrada pelas observações que a seguem e a explicam. A linguagem que denomino inata é uma linguagem que não aprendemos, porque é o efeito natural e imediato de toda a nossa conformação. Ela exprime ao mesmo tempo o que sentimos: não é um método analítico; não decompõe nossas sensações; evidencia apenas o que elas contêm; não fornece, portanto, ideias. Quando a linguagem se tornar um método analítico, então decomporá as sensações e fornecerá ideias: mas, como método, se aprende, e, consequentemente, sob este aspecto, não é inata. Pelo contrário, sob qualquer aspecto que se considerar as ideias, nenhuma seria inata. Se for verdadeiro que elas existem todas em nossas sensações, não é menos verdadeiro que elas não existem nas ideias, enquanto não soubermos observá-las. Eis o que faz com que o sábio e o ignorante não se assemelhem nas ideias, ainda que possuindo a mesma organização. Assemelham-se na maneira de sentir. Nasceram ambos com as mesmas sensações, como com a mesma ignorância: porém um analisou mais do que o outro. Ora, se é a análise que fornece as ideias, elas são adquiridas, pois a própria análise se aprende. Não há, portanto, ideias inatas. Raciocina-se mal quando se diz: Esta ideia está em nossas sensações, portanto temos esta ideia, mas, no entanto, não se para de insistir neste raciocínio. Porque ninguém havia ainda notado que nossas línguas são métodos analíticos, apenas não se notava que só analisamos através deles e se ignorava que nós devemos a eles todos os nossos conhecimentos. Também a metafísica de muitos escritores não é senão um jargão ininteligível para eles como para os outros. CAPÍTULO III Como as línguas são métodos analíticos. Imperfeição destes métodos. AS LINGUAS SÃO MÉTODOS ANALITICOS. Conceber-se-á facilmente como as línguas são métodos analíticos, se tivermos concebido como a linguagem de ação também o é e se houvermos compreendido que, sem esta última linguagem, os homens teriam permanecido na impotência de analisar seus pensamentos, reconhecer-se-ia que, havendo cessado de exprimi-la, não analisariam, se não fossem supridos pela linguagem de sons articulados. A análise não se faz e não pode se fazer a não ser com signos. E preciso notar que, se ela não fosse, de imediato, feita com os signos da linguagem de ação, não seria nunca feita com os sons articulados de nossas línguas. Com efeito, como uma palavra teria se tornado o signo de uma ideia, se esta ideia não tivesse podido se exibir na linguagem de ação? E como esta linguagem a exibiria, se ela não a tivesse distinguido de todas as outras? ELAS COMEÇARAM, COMO TODAS AS INVENÇÕES DOS HOMENS, ANTES QUE SE PROJETASSE FAZÊ-LAS. Os homens ignoram tudo o que podem, enquanto que a experiência não lhes fez ver o que fazem segundo a natureza unicamente. E porque nunca as fizeram intencionalmente que eles fizeram coisas sem elaborar o projeto de fazê-las. Acredito que esta observação se confirmará sempre e acredito ainda que, se ela não houvesse escapado, raciocinar-se-ia melhor do que se procede. Eles só pensaram em fazer análise depois de haver observado que tinham feito: não pensaram em falar a linguagem de ação para se comunicar, senão depois de haver observado que foram compreendidos. Da mesma maneira só pensaram em falar com sons articulados depois de haver observado que falavam com semelhantes sons e as línguas começaram antes que se projetasse fazê-las. É deste modo que foram poetas, oradores antes de imaginar sê-lo. Numa palavra, tudo o que eles se tornaram, o foram, no primeiro instante, unicamente pela natureza; e não estudaram para sê-lo, a não ser quando observaram o que a natureza os obrigara a fazer. Ela começou tudo e sempre bem; é uma verdade que não seria demais repetir. COMO AS LINGUAS FORAM MÉTODOS EXATOS. As línguas foram métodos exatos na medida em que se falou de coisas relativas às primeiras necessidades. Pois, se acontecesse supor numa análise o que não se devia, a experiência não poderia deixar de apontar. Corrigir-se-iam, então, os erros e se falaria melhor. Na verdade, as línguas eram, então, muito limitadas: mas não se deve acreditar que, por este motivo, fossem mal feitas; pode acontecer que as nossas sejam piores ainda. Com efeito, as línguas não são exatas porque falam de muitas coisas sem muita determinação, mas porque falam com clareza embora de poucas coisas. Se, pretendendo aperfeiçoá-las, pudéssemos ter continuado como começamos, não se teria procurado novas palavras na analogia a não ser quando uma análise bem feita tivesse, realmente, trazido novas ideias e as línguas, sempre exatas, teriam sido mais ricas. COMO ELAS SE TORNARAM MÉTODOS DEFEITUOSOS. Mal tal não pôde acontecer. Como os homens analisam sem saber, só percebem que, se tivessem ideias exatas, eles as deveriam unicamente à análise. Não conheceram, portanto, toda a importância deste método, e analisaram menos, à medida que a necessidade de analisar se fazia sentir menos. Ora, as primeiras necessidades estavam asseguradas, criaram-se outras menos necessárias: destas se passou às menos necessárias ainda e se chegou gradativamente a criar necessidades de pura curiosidade, necessidade de opinião, enfim, necessidades inúteis e cada vez mais frívolas. Então, sentiu-se cada dia menos a necessidade de analisar: cedo, sentiu-se apenas o desejo de falar e se falou antes de se possuir ideias do que se queria dizer. Passou o tempo em que os juízos se colocavam naturalmente à prova da experiência. Não se tinha o menor interesse em assegurar se as coisas que se julgavam eram as mesmas que se supunham. Era comum acreditar sem exames e um juízo, de que se criara um hábito, se tornava uma opinião de que não se duvidava mais. Estes equívocos deviam ser frequentes, porque as coisas que se julgavam não haviam sido observadas e, frequentemente, não podiam sê-lo. Então um primeiro juízo falso propicia um segundo e, subitamente, surgiu uma infinidade destes juízos. A analogia conduziu de erro a erro, porque se tornava consequente. Eis o que aconteceu aos próprios filósofos. Não faz muito tempo que eles aprenderam a análise: sabem usá-la apenas na matemática, na física e na química. Pelo menos, não conheço quem tenha sabido aplicá-la a toda espécie de ideias. Igualmente, nenhum deles imaginou considerar as línguas como métodos analíticos. As línguas tinham se tornado métodos bastante defeituosos. No entanto, o comércio aproximava os povos, que trocavam, de algum modo, suas opiniões e seus preconceitos, como as produções de seu solo e de sua indústria. As línguas se confundiam e a analogia não podia mais guiar o espírito na acepção das palavras. A arte de raciocinar pareceu ignorada: ter-se-ia afirmado que não era mais possível aprendê-la. No entanto, se os homens tivessem, no primeiro instante, sido colocados pela natureza no caminho das descobertas, poderiam, por acaso, reencontrá-la ainda alguma vez: mas eles a reencontravam sem reconhecê-la, porque nunca a haviam estudado e se extraviavam novamente. SE SE HOUVESSE NOTADO QUE AS LINGUAS SÃO MÉTODOS ANALITICOS, NÃO TERIA SIDO DIFICIL ENCONTRAR AS REGRAS DA ARTE DE RACIOCINAR. Assim se fizeram durante séculos esforços vãos para descobrir as regras da arte de raciocinar. Não se sabia onde buscá-las e eram procuradas no mecanismo do discurso, mecanismo que deixava subsistir todos os vícios das línguas. Para encontrá-las havia apenas um meio: observar nossa maneira de conceber e estudá-las nas faculdades de que nossa natureza nos dotou. Seria preciso notar que as línguas não são, na verdade, senão métodos analíticos, métodos bastante defeituosos hoje, mas que foram exatos, e que poderiam sê-lo ainda. Não se viu, porque, não havendo notado o quanto as palavras nos são necessárias para fazermos ideias de todas as espécies, acreditou-se que só tinham a vantagem de ser um meio de comunicar nossos pensamentos. Além disso, como em muitos níveis, as línguas pareceram arbitrárias aos gramáticos e aos filósofos, supôs-se que elas só tinham regras para o capricho do uso, isto é, que, frequentemente, elas não têm. Ora, todo método sempre possui regras e deve possuí-Ias. Não é preciso se surpreender se até hoje ninguém suspeitou que as línguas são métodos analíticos. CAPÍTULO IV Sobre a influência das línguas AS LINGUAS FAZEM NOSSOS CONHECIMENTOS, NOSSAS OPINIÕES, NOSSOS PRECONCEITOS. Desde que as línguas, formadas à medida que as analisamos, se tornaram métodos analíticos, concebe-se que nos é natural pensar segundo os hábitos que provêm• delas. Pensamos através delas: regras de nossos juízos criam nossos conhecimentos, nossas opiniões, nossos preconceitos. Em suma, criam todo o bem e todo o mal. Sua influência é tal que não poderia ser de outro modo. Elas nos desviam porque são métodos imperfeitos: mas, desde que são métodos, não são imperfeitos em todos os níveis e nos conduzem bem algumas vezes. Não há ninguém que, com a ajuda única de hábitos contraídos em sua língua, não seja capaz de fazer bons raciocínios. É desta maneira que todos começamos e vemos frequentemente homens sem estudo raciocinar melhor que outros que muito estudaram. AS LINGUAS DAS CIÊNCIAS NÃO SÃO FEITAS DE MODO MELHOR. Desejaríamos que os filósofos tivessem presidido a formação das línguas e acreditaríamos que elas teriam sido feitas de modo melhor. Para isso, seria preciso que fossem filósofos diferentes daqueles que conhecemos. E verdade que se fala com precisão em matemática, porque a álgebra, obra de gênio, é uma língua que não poderia fazer-se mal. E verdade ainda que algumas partes da física e da química foram tratadas com igual precisão por uma minoria de espíritos excelentes feitos para observar bem. Além disso, não vejo que as línguas das ciências tenham alguma vantagem. Elas possuem os mesmos defeitos que as outras e maiores ainda. Falamo-las muito frequentemente sem nada dizer: frequentemente ainda as falamos apenas para dizer absurdos e, em geral, não parece que as falamos com o intuito de comunicar. AS PRIMEIRAS LINGUAS VULGARES FORAM MAIS PRÓPRIAS PARA O RACIOC1NIO. Imagino que as primeiras línguas vulgares foram mais próprias para o raciocínio: pois a natureza, que presidia à sua formação, começara bem. A geração das ideias e das faculdades da alma devia ser sensível nestas línguas, quando a primeira acepção de uma palavra era conhecida e quando a analogia fornecia todas as outras. Reencontravam-se nos nomes ideias que escapavam aos sentidos, os próprios nomes das ideias sensíveis de onde provinham, e, ao invés de vê-las como nomes próprios destas ideias, as víamos como expressões figuradas que apontavam sua origem. Então, por exemplo, não se perguntava se a palavra substância significava algo mais do que aquilo que está sob; se a palavra pensamento significava algo mais do que pesar, ponderar, comparar. Em suma, não se imaginaria fazer as perguntas que fazem hoje os metafísicos: as línguas, que respondiam antecipadamente a todas, não permitiriam fazê-las e não existia má metafísica. A boa metafísica começou antes das línguas e é a ela que as línguas devem o que melhor possuem. Mas esta metafísica era menos uma ciência do que um instinto. A natureza conduzia os homens sem que soubessem e a metafísica só se tornou ciência quando cessou de ser boa. FORAM SOBRETUDO OS FILÓSOFOS QUE FIZERAM A DESORDEM NA LINGUAGEM. Uma língua seria superior se o povo que a fizesse cultivasse as artes e as ciências sem nada pedir a outra língua: pois a analogia, nesta língua, acusaria o progresso sensível dos conhecimentos e não se teria necessidade de procurar a história alhures. Esta seria uma língua verdadeiramente sábia, só ela o seria. Mas, quando são um conglomerado de línguas estrangeiras, confundem tudo: a analogia não pode mais fazer perceber, nas diferentes acepções das palavras, a origem e a geração dos conhecimentos, não sabemos mais colocar a precisão nos discursos, não a imaginamos; fazemos perguntas ao acaso, respondemo-las da mesma maneira; abusamos continuamente das palavras e até opiniões estranhas encontram partidários. São os filósofos que conduziram as coisas a este estado de desordem. Quanto pior falavam, mais queriam falar: falavam tão mal que, quando lhes acontecia de pensar como todos, cada um queria ostentar uma maneira de pensar que fosse somente sua. Sutis, singulares, visionários, ininteligíveis, frequentemente pareciam temer de não ser demasiado obscuros e ocultavam seus conhecimentos verdadeiros ou pretensos. Assim a linguagem da filosofia foi um jargão durante séculos. Afinal, este jargão foi banido das ciências. Foi banido, digo, mas ele não se baniu a si próprio: ele procura sempre um asilo, disfarçando-se sob novas formas, e os melhores espíritos têm dificuldade em lhe barrar a entrada. Mas, afinal, as ciências fizeram progressos, porque os filósofos observaram melhor e colocaram em sua linguagem a precisão e a exatidão que haviam colocado em suas observações. Corrigiram a língua em muitos níveis e raciocinou-se melhor. E desta maneira que a arte de raciocinar seguiu todas as variações da linguagem e é o que não podia deixar de acontecer. CAPÍTULO V Considerações sobre as ideias abstratas e gerais ou como a arte de raciocinar se reduz a uma língua bem feita AS IDEIAS ABSTRATAS E GERAIS SÃO APENAS DENOMINAÇÕES. As ideias gerais, de que explicamos a formação, participam da ideia total de cada um dos indivíduos aos quais convêm e são consideradas, por este motivo, ideias parciais. A de homem, por exemplo, participa das ideias totais de Pedra e de Paulo, já que a encontramos tanto em Pedra como em Paulo. Não há homem em geral. Esta ideia parcial não tem realidade fora de nós: mas tem em nosso espírito, onde ela existe separadamente das ideias totais ou individuais das quais participa. Ela tem uma realidade em nosso espírito apenas porque a consideramos como separada de cada ideia individual e, por esse motivo, a denominamos abstrata: pois abstrato não significa outra coisa do que separado. Todas as ideias gerais são, portanto, ideias abstratas e só as formamos tomando de cada ideia individual o que é comum para todos. Mas o que é no fundo a realidade senão uma ideia geral e abstrata que existe em nosso espírito? E apenas um nome ou, se é algo mais, cessa necessariamente de ser abstrata e geral. Quando, por exemplo, penso em homem, posso considerar nesta palavra apenas uma denominação comum: em tal caso, é bem evidente que minha ideia está, de alguma maneira, circunscrita neste nome, que não se estende além, e que, consequentemente, é apenas este próprio nome. Se, pelo contrário, pensando em homem, considera nesta palavra algo mais do que uma denominação, é que, com efeito, me represento um homem; e um homem, em meu espírito como na natureza, não poderia ser o homem abstrato e geral. As ideias abstratas são portanto apenas denominações. Se quiséssemos supor outra coisa, assemelhar-nos-íamos a um pintor que se obstinasse em querer pintar o homem em geral e que, no entanto, não pintaria senão indivíduos. CONSEQUENTEMENTE, A ARTE DE RACIOCINAR SE REDUZ A UMA LINGUA BEM FEITA. Esta observação sobre as ideias abstratas e gerais demonstra que sua clareza e sua precisão dependem unicamente da ordem na qual fizemos as denominações de classes e que, consequentemente, para determinar estas espécies de ideias, há apenas um meio: fazer bem a língua. Ela confirma o que já havíamos demonstrado, o quanto as palavras nos são necessárias: pois, se não tivéssemos denominações, não teríamos ideias abstratas; se não tivéssemos ideias abstratas, não teríamos nem gêneros nem espécies; e, se não tivéssemos nem gêneros nem espécies, não poderíamos raciocinar sobre nada. Ora, se raciocinamos apenas com a ajuda destas denominações, é uma nova prova de que só raciocinamos bem ou mal com a ajuda destas denominações, é uma nova prova de que só raciocinamos bem ou mal porque nossa língua está bem ou mal feita. A análise só nos ensinará, portanto, a raciocinar na medida em que nos ensinar a determinar as ideias abstratas e gerais; ensinar nos a fazer bem nossa língua e toda arte de raciocinar se reduz à arte de falar bem. Falar, raciocinar, fazer-se ideias gerais ou abstratas é então, no fundo, a mesma coisa e esta verdade, por simples que seja, poderia passar por uma descoberta. Certamente, não se duvidou disso, manifesta-se na maneira pela qual se fala e se raciocina, manifesta-se pelo abuso que se faz das ideias gerais, manifesta-se, enfim, pelas dificuldades que acreditam encontrar para conceber ideias abstratas aqueles que têm tão poucas ideias abstratas para comunicar. A arte de raciocinar só se reduz a uma língua bem feita, porque a ordem em nossas ideias é apenas a subordinação dos nomes dados aos gêneros e às espécies; e, desde que só temos novas ideias porque formamos novas classes, é evidente que só determinamos as ideias na medida em que determinamos as próprias classes. Então raciocinaremos bem, porque a analogia nos conduzirá em nossos juízos como na inteligência das palavras. ESTA VERDADE BEM CONHECIDA NOS PRECAVERÁ DE MUITOS ERROS. Convencido de que as classes são apenas denominações, só imaginaremos que existem na natureza gêneros e espécies e só veremos nestas palavras gêneros e espécies, uma maneira de classificar as coisas segundo suas relações conosco e entre si. Reconheceremos que só podemos descobrir estas relações e não pretenderemos dizer o que são. Evitaremos, consequentemente, muitos erros. Se notarmos que todas estas classes só nos são necessárias porque temos necessidade, ao fazer ideias distintas, ao decompor os objetos que queremos estudar, reconheceremos não somente a limitação de nosso espírito, veremos onde estão os limites e não pensaremos em ultrapassá-los. Não nos perderemos em indagações vãs: ao invés de procurar o que não podemos encontrar, encontraremos o que estará a nosso alcance. Será preciso para isso apenas formar ideias exatas: o que saberemos sempre fazer, quando soubermos nos servir das palavras. Ora, saberemos nos servir das palavras quando, ao invés de procurar essências que não podemos nelas colocar, apenas procuraremos o que nós nelas colocamos, as relações das coisas conosco e entre si. Saberemos servir-nos delas quando, considerando-as em relação à limitação de nosso espírito, as olharmos como um meio de que temos necessidade para pensar. Então sentiremos que a maior analogia deve determinar a escolha, que deve determinar todas as acepções, e nos limitaremos ao número de palavras de que temos necessidade. Não nos perderemos entre distinções frívolas, divisões, subdivisões sem fim e palavras estrangeiras que se tornam bárbaras em nossa língua. Enfim, saberemos servir-nos das palavras, quando a análise nos tiver feito contrair o hábito de procurar a primeira acepção em seu primeiro emprego e todas as outras na analogia. É A ANÁLISE QUE FAZ AS LINGUAS E QUE CRIA AS ARTES E AS CIÊNCIAS. E apenas à análise que devemos o poder de abstrair e de generalizar. Ela faz as línguas, dá-nos, portanto, ideias exatas de todas as espécies. Em suma, é por ela que nos tornamos capazes de criar as artes e as ciências, Ou melhor, é ela que as criou. Fez todas as descobertas e tivemos apenas que segui-la. A imaginação, pela qual atribuímos todos os talentos, não seria nada sem a análise. Ela não seria nada! Engano-me: seria uma fonte de opiniões, de preconceitos, de erros e só construiríamos sonhos extravagantes, se a análise não a regulasse algumas vezes. Com efeito, os escritores que têm apenas a imaginação fazem outra coisa? O caminho que a análise desenha é marcado por uma sequência de observações bem feitas e caminhamos por ele com um passo seguro, porque sabemos sempre onde estamos e porque vemos sempre aonde vamos. Além disso, a análise nos ajuda com tudo o que nos pode ser de alguma valia. Nosso espírito tão fraco em si próprio encontra nela alavancas de toda espécie e observa os fenômenos da natureza, de alguma maneira, como se os regulasse. É SEGUNDO A ANÁLISE QUE É PRECISO PROCURAR A VERDADE E NÃO SEGUNDO A IMAGINAÇÃO. Mas, para julgar bem o que lhe devemos, é preciso conhecê-la bem, de outra maneira sua obra nos parecerá com a da imaginação. Porque as ideias que denominamos abstratas cessam de passar pelos sentidos acreditaríamos que elas não provenham deles, e porque não veremos o que elas podem ter de comum com nossas sensações imaginaremos que são outra coisa. Preocupados com este erro não veríamos sua origem e sua geração: ser-nos-ia impossível ver o que elas são e no entanto acreditaríamos vê-lo, teríamos apenas visões. Algumas vezes as ideias seriam seres que possuem por si próprios uma existência na alma, seres inatos, ou seres acrescentados sucessivamente ao seu ser; outras vezes, serão seres que existem apenas em Deus e que só vemos nele. Semelhantes sonhos nos desviariam necessariamente do caminho das descobertas, só nos conduziriam de erro em erro. Eis, no entanto, os sistemas que a imaginação faz: quando os adotamos uma vez, não nos é mais possível possuir uma língua bem feita e estamos condenados a raciocinar quase sempre mal, porque raciocinamos mal sobre as faculdades de nosso espírito. Não é assim que os homens, como já notamos, se conduziam ao sair das mãos do autor da natureza. Ainda que procurassem sem saber o que procuravam, procuravam bem e encontravam frequentemente sem se aperceber que haviam encontrado. E que as necessidades que o autor da natureza lhes havia dado e as circunstâncias onde os havia colocado os obrigavam a observar e os advertiam frequentemente de não imaginar. A análise, que fazia a língua, a fazia bem, porque determinava sempre o sentido das palavras e a língua, que não era rica, mas que era bem feita, conduzia às descobertas mais necessárias. Infelizmente os homens não souberam observar como se instruíram. Dir-se-ia que não foram capazes de fazer bem o que faziam sem saber e os filósofos, que deveriam procurar com mais clareza, procuravam frequentemente para nada encontrar ou para se extraviar. CAPÍTULO VI Quanto se enganam aqueles que olham as definições como o único meio para remediar os abusos de linguagem AS DEFINIÇÕES SE LIMITAM A MOSTRAR AS COISAS: E NÃO SE SABE O QUE SE QUER DIZER, QUANDO SÃO TOMADAS POR PRINCIPIOS. Os vícios das línguas são sensíveis, sobretudo nas palavras onde a acepção não está determinada ou que não têm sentido. Como solução, porque existem palavras que podem ser definidas, pretendeu-se definir todas. Consequentemente, as definições foram consideradas como a base da arte de raciocinar. UM TRIÃNGULO É UMA SUPERFICIE DETERMINADA POR TRES LINHAS. Eis uma definição. Se ela dá ao triângulo uma ideia sem a qual seria impossível determinar suas propriedades, segue-se que, para descobrir as propriedades de uma coisa, é preciso analisá-la, e, para analisá-la, é preciso vê-la. Semelhantes definições mostram as coisas que se quer analisar e é tudo o que elas fazem. Nossos sentidos nos mostram da mesma maneira os objetos sensíveis e os analisamos, apesar de não podermos defini-los. Portanto, a necessidade de definir é apenas a necessidade de ver as coisas sobre as quais se quer raciocinar e, se fosse possível ver sem definir, as definições se tornariam inúteis. Seria o mais comum. Sem dúvida, para estudar uma coisa, é preciso que eu a veja: mas, quando a vejo, só tenho que analisá-la. Logo que eu descubra as propriedades de uma superfície determinada por três linhas, só a análise vai ser o princípio de minhas descobertas, se quisermos princípios. Esta definição só me mostra que o triângulo é o objeto de minhas buscas, assim como meus sentidos me mostram os objetos sensíveis. Que significa esta linguagem: As definições são princípios? Significa que é preciso começar por ver as coisas para estudá-las e que é preciso vê-las tais como são. Significa apenas isto e, no entanto, se acredita dizer algo mais. Princípio é sinônimo de começo e é com este sentido que foi empregado desde o primeiro instante: mas, em seguida, pela força do hábito, se serviu dele maquinalmente, sem ligar ideias, e se tiveram princípios que não são o começo de nada. Direi que nossos sentidos são o princípio de nossos conhecimentos, porque é nos sentidos que eles começam, e terei dito algo compreensível. Não acontecerá a mesma coisa se disser que uma superfície determinada por três linhas é o princípio de todas as propriedades do triângulo, porque todas as propriedades do triângulo começam por uma superfície determinada por três linhas. Pois gostaria igualmente de dizer que todas as propriedades de uma superfície determinada por três linhas começam por uma superfície determinada por três linhas. Em suma, esta definição não me ensina nada: apenas mostra uma coisa que conheço e de que só a análise pode me desvendar as propriedades. As definições se limitam, portanto, a mostrar as coisas: mas não as ilustram sempre com a mesma clareza. A alma é uma substância que sente é uma definição que mostra a alma de modo imperfeito a todos aqueles a quem a análise ensinou que todas as faculdades são, no princípio ou no começo, apenas a faculdade de sentir. Não é por semelhante definição que seria preciso começar a tratar da alma: pois, ainda que todas as suas faculdades sejam no princípio apenas sentir, esta verdade não é um princípio ou um começo para nós, se, ao invés de ser um primeiro conhecimento, fosse o derradeiro. Ora, ela é o derradeiro, desde que é um resultado dado pela análise. É RARO QUE SE POSSAM FAZER DEFINIÇÕES. Prevenidos de que é preciso definir tudo, os geômetras frequentemente fazem esforços vãos e procuram definições que eles não encontram. Tal é, por exemplo, a definição da linha reta: pois dizer com eles que ela é a linha mais curta de um ponto a outro não é conhecê-la, é supor que já seja conhecida. Ora, na sua linguagem, uma definição, sendo um princípio, não deve supor que a coisa seja conhecida. Eis um obstáculo onde fracassam todos os construtores de elementos, para grande escândalo de alguns geômetras, que se lamentam não ter dado ainda uma boa definição da linha reta e que parecem ignorar que não se deve definir o que é indefinível. Mas, se as definições se limitam a nos mostrar as coisas, que importa que seja antes ou depois que as conheçamos? Parece-me que o ponto essencial é conhecê-las. Ora, estaríamos convencidos de que o único meio de conhecê-las é analisá-las, se tivéssemos percebido que as melhores definições são análises. A do triângulo, por exemplo, é uma: pois, certamente, para dizer que ele é uma superfície determinada por três linhas, foi preciso observar, um após o outro, os lados desta figura e contá-los. E verdade que esta análise se faz de alguma maneira à primeira vista, porque contamos rapidamente até três. Mas uma criança não contaria assim tão depressa, e, no entanto, analisaria o triângulo tão bem quanto nós. Ela o analisaria lentamente, assim como definiríamos ou analisaríamos uma figura com um grande número de lados a serem contados. Não dizemos que é preciso, em nossas buscas, ter como princípios definições: dizemos simplesmente que é preciso começar bem, isto é, ver as coisas tais como são, e acrescentamos que, para vê-las desta maneira, é preciso sempre começar por análises. Exprimindo-nos desta maneira, falaremos com mais precisão e não teremos dificuldade em procurar definições que não se encontram. Saberemos, por exemplo, que, para conhecer uma linha reta, não é absolutamente necessário defini-Ia da maneira dos geômetras e que basta observar como adquirimos a ideia dela. ESFORÇOS VÃOS DAQUELES QUE TÊM A MANIA DE DEFINIR TUDO. Porque a geometria é uma ciência que se denomina exata, acreditou-se que, para tratar bem todas as outras ciências, havia apenas que imitar os geômetras, e a mania de definir à sua maneira se tornou a mania de todos os filósofos, ou daqueles que se tomam como tais. Abramos um dicionário da língua, veremos que em cada artigo se quer fazer definições e se malogra. Os melhores supõem, como na da linha reta, que a significação é conhecida, ou, se não supõem nada, não são compreensíveis. AS DEFINIÇÕES SÃO INOTEIS PORQUE Ê A ANÁLISE QUE DETERMINA NOSSAS IDEIAS. Ou nossas ideias são simples, ou são compostas. Se forem simples, não serão definíveis: um geômetra o tentaria inutilmente, fracassaria como no caso da linha reta. Mas, ainda que elas não possam ser definidas, a análise nos mostrará sempre como as adquirimos, porque mostrará de onde provêm e como chegam a nós. Se uma ideia é composta, só a análise pode desvendá-la, só ela pode, decompondo-a, mostrar-nos todas as ideias parciais. Assim, quaisquer que sejam nossas ideias, só a análise pode determiná-las de uma maneira clara e precisa. No entanto, permanecerão sempre ideias indetermináveis, ou que, pelo menos, não será fácil determinar segundo a vontade de todos. Isto se dá porque os homens, não concordando em compô-las da mesma maneira, fizeram com que as ideias se tornassem necessariamente indeterminadas. Tal é, por exemplo, a ideia que designamos pela palavra espírito. Porém, ainda que a análise não possa determinar o que compreendemos por uma palavra que não compreendemos todos da mesma maneira, ela determinará tudo o que é possível compreender por esta palavra, sem impedir todavia que cada um compreenda o que quiser, como acontece. Isto é, ser-lhe-á mais fácil corrigir a língua do que a nós próprios. Mas, afinal, é somente ela que corrigirá tudo o que pode ser corrigido, porque é somente ela que pode nos fazer conhecer a geração de todas as nossas ideias. Também os filósofos se extraviaram prodigiosamente quando abandonaram a análise e quando acreditaram substituí-la por definições. Extraviaram-se cada vez mais, porque não souberam dar ainda uma boa definição da própria análise. Pelos esforços que fizeram para explicar este método, dir-se-ia que há bastante mistério para decompor um todo em suas partes e recompô-lo: no entanto, basta observar sucessivamente e com ordem. Vejam, na Enciclopédia, a palavra Análise. A SINTESE, MÉTODO TENEBROSO. É a síntese que conduziu à mania das definições. Este método tenebroso começa sempre por onde é preciso acabar e, no entanto, se chama método de doutrina. Não darei uma noção mais precisa, seja porque não o compreendo, seja porque não é possível compreendê-lo. Ele escapa cada vez mais quando toma todos os caracteres dos espíritos que queiram empregá-lo e sobretudo dos espíritos falsos. Eis como um escritor célebre explica este tema. Afinal, diz ele, estes dois métodos (a análise e a síntese) diferem como o caminho que se faz subindo de um vale para uma montanha e aquele que se faz descendo da montanha para o vale. Por esta linguagem, vejo apenas que lá estão dois métodos contrários e que, se um é bom, o outro é mau. Com efeito, só se pode caminhar do conhecido ao desconhecido. Ora, se o desconhecido está sobre a montanha, não será descendo que se atingirá; se estiver no vale, não será subindo. Não pode, então, haver dois caminhos contrários para nele chegar. Semelhantes opiniões não merecem uma crítica mais séria. Supomos que é próprio da síntese compor nossas ideias e que é próprio da análise decompô-las. Eis por que o autor da Lógica acredita demonstrá-los, quando diz que um conduz do vale à montanha e o outro da montanha ao vale. Mas, ainda que se raciocine bem ou mal, é preciso necessariamente que o espírito suba e desça alternadamente, ou, mais simplesmente, lhe é tão essencial compor quanto decompor, porque uma sequência de raciocínios é e só pode ser uma sequência de composições e decomposições. É próprio, portanto, da síntese decompor e compor, é próprio da análise compor e decompor. Seria absurdo imaginar que estas duas coisas se excluem e que se poderia raciocinar proibindo tanto toda composição quanto toda decomposição. No que, então, diferem estes dois métodos? Em que a análise começa sempre bem e que a síntese começa sempre mal. Aquela, sem afetar a ordem, a possui naturalmente, porque é o método da natureza: esta, que não conhece a ordem natural, porque é o método dos filósofos, a afeta bastante fatigando o espírito sem esclarecê-lo. Em suma, a verdadeira análise, a análise que deve ser preferida, é a que, começando pelo começo, mostra na analogia a formação da língua e na formação da língua os progressos das ciências. CAPÍTULO VII O quanto o raciocínio é simples quando a própria língua é simples ERROS DAQUELES QUE PREFEREM A SINTESE À ANÁLISE. Ainda que a análise seja o único método, os próprios matemáticos, sempre prestes a abandoná-lo, parecem só utilizá-lo quando se veem obrigados. Preferem a síntese, porque a consideram mais simples e mais curta, porém seus escritos são mais confusos e maiores. Acabamos de ver que esta síntese é precisamente o contrário da análise. Ela nos coloca fora do caminho das descobertas e, no entanto, o maior número de matemáticos imagina que este método é o mais próprio para a instrução. Eles acreditam tanto neste método, que não querem que se sigam outros em seus livros elementares. Clairaut pensou de modo diferente. Não sei se MM. Euler e La Grange disseram o que eles pensaram a este respeito: mas procederam como se o houvessem feito, pois, em seus elementos de álgebra, só seguiram o método analítico. A adesão destes matemáticos é importante. É preciso, então, que os outros estejam profundamente comprometidos com a síntese, para se persuadir que a análise, método de invenção, não é ainda o método de doutrina, e que há, para apreender as descobertas de outros, um meio preferível àquele que nos levaria a fazê-las. Se a análise é, em geral, banida das matemáticas todas as vezes que se pode utilizar a síntese, é evidente que seu acesso foi interditado em todas as outras ciências e que, se ela se introduz, somente o faz sub-repticiamente, Eis por que, entre tantas obras de filósofos antigos ou modernos, existem tão poucas que sejam feitas para instruírem. A verdade é raramente reconhecível quando a análise não a mostra, e quando, pelo contrário, a síntese a envolve num conglomerado de noções vagas, opiniões, erros, cria-se um jargão que se toma como a língua das artes e das ciências. TODAS AS CIÊNCIAS SERIAM EXATAS SE FALASSEM UMA LINGUA SIMPLES. Por pouco que se reflita sobre a análise, saberemos que ela deve difundir mais clareza à proporção que for mais simples e mais precisa, e, se lembrarmos que a arte de raciocinar se reduz a uma língua bem feita, julgaremos que a maior simplicidade e a maior precisão da análise só são efeito da maior simplicidade e da maior precisão da linguagem. f preciso, então, fazermos uma ideia desta simplicidade e desta precisão, a fim de nos aproximarmos dela em todos os nossos estudos o quanto for possível. Denominam-se ciências exatas as que se demonstram rigorosamente. Por que, então, todas as ciências não são exatas? E se o forem, as que não se demonstram rigorosamente, como se demonstram? Sabe-se, então, o que se quer dizer, quando se supõem demonstrações que, rigorosamente, não são demonstrações? Uma demonstração não é uma demonstração, ou o é rigorosamente. Mas é preciso convir que, se ela não fala a língua que deve falar, ela não parecerá o que é. Desta maneira, não é defeito das ciências se não demonstram rigorosamente: é defeito dos sábios que falam mal. A língua das matemáticas, a álgebra, é a mais simples de todas as línguas. Haverá, então, demonstrações apenas nas matemáticas? E porque as outras ciências não podem almejar a mesma simplicidade, estarão elas condenadas a não poderem ser suficientemente simples para convencer que demonstram o que demonstram? E a análise que demonstra em todas as ciências e demonstra todas as vezes que fala a língua que deve falar. Sei que se distinguem espécies diferentes da análise - análise lógica, análise metafísica, análise matemática -, mas há apenas uma e é a mesma em todas as ciências, porque, em todas, conduz do conhecido ao desconhecido pelo raciocínio, isto é, por uma sequência de juízos que estão contidos uns nos outros. Construiremos uma ideia da linguagem que ela deve ter se tentarmos resolver um dos problemas que se resolvem comumente apenas com a ajuda da álgebra. Escolheremos um dos mais fáceis, porque estará mais ao nosso alcance: além disso, ele bastará para desenvolver todo o artifício do raciocínio. PROBLEMA PROBANTE. Tendo fichas em minhas duas mãos, se passar uma da minha mão direita para a esquerda terei tanto em uma quanto na outra, e se passo uma da esquerda para a direita terei o dobro nesta. Pergunto qual é o número de fichas que tenho em cada uma. Não se trata de adivinhar este número fazendo suposições: é preciso encontrá-lo raciocinando, indo do conhecido ao desconhecido por uma sequência de juízos. Há aqui duas condições dadas ou, para falar como os matemáticos, existem dois dados: um, que, se eu passar uma ficha da mão direita para a esquerda, terei o mesmo número em cada uma; o outro, que, se eu passar uma ficha da esquerda para a direita, terei o dobro nesta. Ora, veremos que, se é possível encontrar o número que dou para procurar, só pode ser observando as relações em que estes dois dados estão um para o outro e conceberemos que estas relações serão mais ou menos sensíveis, na medida em que os dados forem expressos de uma maneira mais ou menos simples. Se dissermos: O número que temos na mão direita, quando se suprime uma ficha, é igual àquele que temos na mão esquerda, quando a esta se acrescenta uma, exprimiremos o primeiro dado com muitas palavras. Dizemos, então, mais economicamente: O número de nossa mão direita, diminuído de uma unidade, é igual àquela de nossa esquerda, aumentado de uma unidade, ou, o número de nossa direita, menos uma unidade, é igual ao de nossa esquerda, mais uma unidade, ou, afinal, mais economicamente ainda, a direita, menos um, igual à esquerda, mais um. E desta maneira que, de tradução em tradução, chegamos à expressão mais simples do primeiro dado. Ora, quanto mais nosso discurso se abreviar, mais nossas ideias se aproximarão, e quanto mais elas se tiverem aproximado, mais fácil será apreendê-las sob todas as suas relações. Resta-nos então tratar o segundo dado como o primeiro, é preciso traduzi-lo na expressão mais simples. Pela segunda condição do problema, se eu passar uma ficha da esquerda para a direita, terei o dobro nesta. Portanto, o número de minha mão esquerda diminuído de uma unidade é a metade do de minha mão direita, aumentado de uma unidade, e, consequentemente, exprimiremos o segundo dado dizendo: O número de nossa mão direita, aumentado de uma unidade, é igual a duas vezes o de nossa esquerda, diminuído de uma unidade. Traduziremos esta expressão numa outra mais simples, se dissermos: À direita, aumentada de uma unidade, é igual a duas esquerdas, diminuídas cada uma de uma unidade, e chegaremos a esta expressão, a mais simples de todas, à direita, mais uma, igual a duas esquerdas, menos dois. Eis, então, as expressões nas quais traduzimos os dados: À direita, menos um, igual à esquerda, mais um. À direita, menos um, é igual a duas esquerdas, menos dois. Estas expressões se denominam em matemática equações. Elas são compostas de dois membros iguais: À direita, menos um é o primeiro membro da primeira equação; À esquerda, mais um é o segundo. As quantidades desconhecidas estão misturadas, em cada um destes membros, com as quantidades conhecidas. As conhecidas são menos um, mais um, menos dois: as desconhecidas são a direita e a esquerda, por onde exprimimos os dois números que procuramos. Enquanto os conhecidos e os desconhecidos estiverem desta maneira misturados em cada membro das equações, não será possível resolver o problema. Mas não é preciso um grande esforço de reflexão para notar que, se há um meio de transportar as quantidades de um membro no outro sem alterar a igualdade que existe entre eles, podemos, deixando num membro apenas uma das duas desconhecidas, desprendê-la das conhecidas com as quais ela está misturada. Este meio se oferece por si próprio: pois, se a direita menos um é igual à esquerda mais um, a direita inteira será igual à esquerda mais dois, e se a direita mais um é igual a duas esquerdas menos dois, só a direita será igual a duas esquerdas menos três. Substituiremos as duas primeiras equações com as duas seguintes: A direita igual à esquerda mais dois. A direita igual a duas esquerdas menos três. O primeiro membro destas duas equações é a mesma quantidade, a direita, e vejam que conheceremos esta quantidade quando conhecermos o valor do segundo membro de uma ou de outra equação. Mas o segundo membro da primeira é igual ao segundo membro da segunda, pois são iguais um e outro à mesma quantidade expressa pela direita. Podemos, consequentemente, fazer esta terceira equação: À esquerda, mais dois, igual a duas esquerdas menos três. Então, resta-nos apenas uma desconhecida, à esquerda, e conheceremos seu valor quando a tivermos desprendido, isto é, quando tivermos passado todas as conhecidas para o mesmo lado. Diremos, então: Dois mais três igual a duas esquerdas menos uma esquerda. Dois mais três igual a uma esquerda. Cinco igual a uma esquerda. O problema está resolvido. Descobrimos que o número de fichas que tenho na minha mão esquerda é cinco. Nas equações, a direita igual à esquerda mais dois, a direita igual a duas esquerdas menos três, descobriremos que sete é o número que possuo na minha mão direita. Ora, estes dois números, cinco e sete, satisfazem as condições do problema. SOLUÇÃO DESTE PROBLEMA COM SIGNOS ALGÉBRICOS. Vemos nitidamente neste exemplo como a simplicidade das expressões facilita o raciocínio e compreendemos que se a análise tem necessidade de uma linguagem similar, quando um problema é tão fácil quanto aquele que acabamos de resolver, ela tem mais necessidade ainda quando os problemas se complicam. Assim, a vantagem da análise em matemática provém de que ela fala a língua mais simples. Uma ligeira ideia da álgebra bastará para fazê-lo compreender. Nesta língua, não se tem necessidade de palavras. Exprime-se mais por +, menos por -, igual por = e se designam as quantidades por letras e por cifras. x, por exemplo, será o número de fichas que tenho em minha mão direita, e y o que tenho em minha mão esquerda. Assim x - J = y + J significa que o número de fichas que tenho em minha mão direita, diminuído de uma unidade, é igual àquele que tenho em minha mão esquerda, aumentado de uma unidade, e x + 1 = 2y - 2 significa que o número de minha mão direita, aumentado de uma unidade, é igual a duas vezes o de minha mão esquerda, diminuído de uma unidade. Os dois dados de nosso problema estão portanto encerrados nestas duas equações: x-1 = y + 1 e x + J = 2y - 2, que se tornam, desprendendo o desconhecido do primeiro membro, x = y + 2 e x = 2y - 3. Dos dois últimos membros destas duas equações faremos y + 2 = 2y - 3, que se tornam sucessivamente 2 = 2y - y - 3 .'. 2 + 3 = 2y – y .'. 2 + 3 = y .'. 5 = y. Enfim, de x = y + 2 tiramos x = 5 + 2 = 7, e de x = 2y - 3 tiramos igualmente x = 10 - 3 = 7. A EVIDÊNCIA DE UM RACIOCINIO CONSISTE UNICAMENTE NA IDENTIDADE QUE SE MOSTRA DE UM JUIZO PARA O OUTRO. Esta linguagem algébrica faz perceber de uma maneira nítida como os juízos estão ligados uns aos outros num raciocínio. Vemos que o último está encerrado no penúltimo, o penúltimo no que o precede e assim por diante, elevando-se, porque o último é idêntico com o penúltimo, o penúltimo com o que o precede, etc., e se reconhece que esta identidade faz toda a evidência do raciocínio. Quando um raciocínio se desenvolve com palavras, a evidência consiste igualmente na identidade que é nítida de um juízo para o outro. Com efeito, a sequência de juízos é a mesma e é apenas a expressão que muda. É preciso somente notar que a identidade se percebe mais facilmente e quando é enunciada com signos algébricos. Mas, para que a identidade se perceba mais ou menos facilmente, basta que ela se mostre, para ficar assegurado que um raciocínio é uma demonstração rigorosa. Não é preciso imaginar que as ciências não o sejam exatas e que não se demonstre rigorosamente a não ser quando se fala com x, a e b. Se algumas vezes não parecem suscetíveis de demonstração, é porque se acostumou a falá-las antes de haver feito a língua e sem mesmo duvidar que seja necessário fazê-la: pois todas teriam a mesma exatidão, se as falássemos mediante línguas bem feitas. E desta maneira que tratamos a metafísica na primeira parte desta obra. Explicamos, por exemplo, a geração das faculdades da alma somente porque vimos que são inteiramente idênticas à faculdade de sentir e nossos raciocínios feitos com palavras são tão rigorosamente demonstrados quanto os feitos com letras. AS CIÊNCIAS POUCO EXATAS SÃO AQUELAS CUJAS LINGUAS SÃO MAL FEITAS. Se há ciências pouco exatas, não é porque não existe álgebra nelas, é porque as línguas a utilizam mal. Não percebemos este fato e quando duvidamos dele refazemos as línguas pior ainda. Devemo-nos surpreender que não se saiba raciocinar, quando a língua das ciências é somente um jargão composto de muitas palavras, onde umas são palavras vulgares que não têm sentido determinado e outras são palavras estrangeiras ou bárbaras que se compreendem mal? Todas as ciências seriam exatas, se soubéssemos falar a língua de cada uma. Tudo confirma o que já provamos, que as línguas são métodos analíticos, que o raciocínio só se aperfeiçoa se elas se aperfeiçoarem e que a arte de raciocinar, reduzida à sua maior simplicidade, só pode ser uma língua bem feita. A ALGEBRA É APENAS UMA LINGUA. Como os matemáticos, direi que a álgebra é uma espécie de língua: digo que é uma língua e que não pode ser outra coisa. Vimos, no problema que acabamos de resolver, que é uma língua na qual traduzimos o raciocínio que havíamos feito por palavras. Ora, se as letras e as palavras exprimem o mesmo raciocínio, é evidente que, se com palavras não fazemos mais do que falar uma língua, fazemos o mesmo com letras. Faríamos a mesma observação sobre problemas mais complicados: pois todas as soluções algébricas oferecem a mesma linguagem, isto é, raciocínios ou juízos sucessivamente idênticos expressos com letras. Mas, porque a álgebra é a mais metódica das línguas e desenvolve raciocínios que não se poderia traduzir em nenhuma outra, imaginou-se que ela não é uma língua propriamente dita, que o é apenas em alguns níveis e que deve ser algo mais. A álgebra é, com efeito, um método analítico, mas não deixa de ser uma língua, pois todas as línguas são métodos analíticos. Ora, é o que elas são efetivamente. Mas a álgebra é uma prova decisiva de que os progressos das ciências dependem unicamente dos progressos das línguas e que somente línguas bem feitas poderiam dar à análise o grau de simplicidade e de precisão do qual é suscetível, seguindo o gênero de nossos estudos. Isto seria possível, pois, na arte de raciocinar, como na arte de calcular, tudo se reduz a composições e a decomposições e não se deve acreditar que sejam duas artes diversas. CAPÍTULO VIII No que consiste todo o artifício do raciocínio HÁ DUAS COISAS NUMA QUESTÃO A RESOLVER: O ENUNCIADO DOS DADOS OU O ESTADO DA QUESTÃO E O DESPRENDIMENTO DOS DESCONHECIDOS OU O RACIOCÍNIO. O método que seguimos no capítulo precedente tem por regra que não podemos descobrir uma verdade que não conhecemos, a não ser na medida em que ela se encontre nas verdades que são conhecidas e que, consequentemente, toda a questão a resolver supõe dados onde as conhecidas e as desconhecidas estão misturadas, como o estão efetivamente nos dados do problema que resolvemos. Se os dados não encerram todas as conhecidas necessárias para descobrir a verdade, o problema é insolúvel. Esta consideração é a primeira que seria preciso fazer e que nunca fizemos. Raciocinamos mal, porque ignoramos que não temos bastantes conhecidas para raciocinar bem. No entanto, se notássemos que, ao ter todas as conhecidas, somos conduzidos, através de uma linguagem clara e precisa, à solução que procuramos, duvidaríamos que não temos todas, ao manter uma linguagem obscura e confusa que não conduz a nada. Procuraríamos melhor falar a fim de melhor raciocinar e aprenderíamos o quanto estas duas coisas dependem uma da outra. Nada é mais simples que o raciocínio quando os dados encerram todas as conhecidas necessárias à descoberta da verdade: acabamos de vê-lo. Não seria necessário dizer que a questão que propomos era fácil de resolver, pois a maneira de raciocinar é uma, ela não muda, nem pode mudar, e só o objeto do raciocínio muda a cada nova questão que nos colocamos. Nas mais difíceis, é preciso, como nas mais fáceis, ir do conhecido ao desconhecido. É preciso que os dados encerrem todas as conhecidas necessárias à solução e, quando eles as encerram, só resta enunciar estes dados de uma maneira mais simples para desprender as desconhecidas com a maior facilidade. Há, portanto, duas coisas numa questão: o enunciado dos dados e o desprendimento das desconhecidas. O enunciado dos dados é particularmente o que se compreende como o estado da questão e o desprendimento das desconhecidas é o raciocínio que o resolve. O QUE SE DEVE COMPREEDER POR ESTADO DA QUESTÃO. Quando propusemos descobrir o número de fichas que possuíamos em cada mão, enunciei todos os dados de que tínhamos necessidade c é evidente que estabeleci o estado da questão. Mas minha linguagem não preparava a solução do problema. b porque, ao invés de repetirmos meu enunciado palavra por palavra, o traduzimos de modos diferentes, até chegarmos à expressão mais simples. Então, o raciocínio se fez, de algum modo, sozinho, porque as desconhecidas se desprenderam como por si próprias. Estabelecer o estado de uma questão é, portanto, traduzir os dados na expressão mais simples, porque é a expressão mais simples que facilita o raciocínio, facilitando o desprendimento das desconhecidas. Más, diremos, é assim que se raciocina nas matemáticas, onde o raciocínio se faz com equações. Será do mesmo modo com as outras ciências, onde o raciocínio se faz com proposições? Respondo que equações, proposições, juízos são, no fundo, a mesma coisa e que, por consequência, raciocina-se da mesma maneira em todas as ciências. O ARTIFICIO DO RACIOCINIO É O MESMO EM TODAS AS CIENCIAS: EXEMPLO PROBANTE. Nas matemáticas, aquele que propõe uma questão a propõe comumente com todos os seus dados e, para resolvê-la, basta traduzi-Ia em álgebra. Nas outras ciências, ao contrário, parece que uma questão não se propõe jamais com todos os dados. Perguntaremos, por exemplo, qual é a origem e a geração das faculdades do entendimento humano e deixaremos os dados a procurar, porque aquele que faz a questão não os conhece. Mas, ainda que tenhamos que procurar os dados, não seria preciso concluir que estão contidos menos implicitamente na questão que propusemos. Se não estivessem lá, não os acharíamos e, no entanto, devem se encontrar em toda questão que podemos resolver. É preciso somente notar que eles não são sempre fáceis de ser reconhecidos. Consequentemente, encontrá-los é diferenciá-los numa expressão onde se encontram apenas implicitamente e, para resolver a questão, é preciso traduzir esta expressão numa outra onde todos os dados se mostram de uma maneira explícita e distinta. Ora, perguntar qual é a origem e a geração das faculdades do entendimento humano é perguntar qual é a origem e a geração das faculdades pelas quais o homem, capaz de sensações, concebe as coisas formando ideias, e vemos logo que a atenção, a reflexão, a imaginação e o raciocínio são, com as sensações, as conhecidas do problema a resolver e a origem e a geração são as desconhecidas. Eis os dados nos quais as conhecidas se misturam com as desconhecidas. Mas como desprender a origem e a geração, que são neste problema as desconhecidas? Nada é mais simples. Pela origem, compreendemos a conhecida que é o princípio ou o começo de todas as outras, e, pela geração, compreendemos a maneira pela qual todas as conhecidas provêm de uma primeira. Esta primeira, que conheço como faculdade, não conheço ainda como primeira. Ela é exatamente a desconhecida que se mistura com todas as conhecidas e que é preciso desprender. Ora, a mais simples observação me faz notar que a faculdade de sentir está misturada com todas as outras. A sensação é, então, a desconhecida que temos que desprender, para descobrir como se torna sucessivamente atenção, comparação, juízo, etc. É o que fizemos e vimos que, com as equações x-1 = y + 1 e x + 1 = 2y - 2 passam por diferentes transformações para se tornar em y= 5 e x = 7, a sensação passa da mesma maneira por diferentes transformações para, se tornar entendimento. O artifício do raciocínio é o mesmo em todas as ciências. Como, nas matemáticas, estabelece-se a questão traduzindo-a em álgebra, nas outras ciências estabelece-se traduzindo-a na expressão mais simples e, quando a questão estiver estabelecida, o raciocínio que a resolve é ainda ele próprio apenas uma sequência de traduções, onde uma proposição que traduz a que a precede é traduzida por aquela que a segue. É desta maneira que a evidência passa com a identidade desde o enunciado da questão até a conclusão do raciocínio. CAPÍTULO IX Diferentes graus de certeza ou da evidência, das conjeturas e da analogia. Apenas indicarei os graus diferentes de certeza e volto à arte de raciocinar, que é precisamente o desenvolvimento de todo este capítulo. NA FALTA DA EVIDÊNCIA DE RAZÃO, TEMOS A EVIDÊNCIA DE FATO E A EVIDÊNCIA DE SENTIMENTO. A evidência de que acabamos de falar e que eu denomino evidência de razão consiste unicamente na identidade: é o que demonstramos. Foi necessário que esta verdade fosse bem simples para escapar a todos os filósofos, ainda que tivessem todo o interesse em se assegurar da evidência, sempre prestes a saltar-lhes da boca. Sei que um triângulo é evidentemente uma superfície determinada por três linhas, porque, para qualquer pessoa que compreenda o valor dos termos superfície determinada por três linhas é a mesma coisa que triângulo. Ora, já que sei evidentemente o que é um triângulo, conheço sua essência e posso nesta essência descobrir todas as propriedades desta figura. Veria igualmente todas as propriedades do ouro em sua essência se a conhecesse. Seu peso, sua ductilidade, sua maleabilidade, etc., seriam apenas sua própria essência se transformando e que, em suas transformações, me ofereceria fenômenos diferentes e poderia descobrir todas as suas propriedades por raciocínio que seria apenas uma sequência de proposições idênticas. Mas não é desta maneira que o conheço. Na verdade, cada proposição que faço sobre este metal, se for verdadeira, é idêntica. Como esta: O ouro é maleável, pois ela significa um corpo, que observei ser maleável e que denomino ouro, é maleável, proposição onde a mesma ideia está afirmada em si própria. Quando faço sobre um corpo várias proposições igualmente verdadeiras, afirmo, então, em cada uma o mesmo do mesmo, mas não percebo identidade de uma proposição a outra. Ainda que o peso, a ductilidade, a maleabilidade sejam verdadeiramente apenas uma mesma coisa que se transforma diferentemente, eu não a vejo. Não saberia, portanto, atingir o conhecimento destes fenômenos pela evidência de razão: só os conheço após tê-los observado e chamo evidência de fato a certeza que tenho. Poderia igualmente chamar evidência de fato o conhecimento certo de fenômenos que observo em mim, mas eu o denomino evidência de sentimento, porque é pelo sentimento que conheço estas espécies de fatos. A EVIDENCIA DE RAZÃO DEMONSTRA A EXISTENCIA DE CORPOS. Desde que as qualidades absolutas dos corpos estão fora do alcance de nossos sentidos e que só podemos conhecer qualidades relativas, segue-se que todo fato que descobrimos não é senão uma relação conhecida. No entanto, dizer que os corpos têm qualidades relativas é dizer que são alguma coisa uns em relação aos outros e dizer que são alguma coisa uns em relação aos outros é dizer que são cada um alguma coisa, independentemente de qualquer relação, algo de absoluto. A evidência de razão nos ensina, então, que existem qualidades absolutas, e, consequentemente, corpos, mas só nos ensina sua existência. O QUE SE COMPREENDE POR FENÔMENOS, OBSERVAÇÕES, EXPERIÊNCIAS. Por fenômenos, compreende-se precisamente os fatos que são uma sequência de leis de natureza e estas leis são elas próprias outros fatos. O objeto da física é o de conhecer estes fenômenos, estas leis, e apreender, se for possível, o sistema. Com efeito, damos uma atenção particular aos fenômenos, consideramo-los em todas as suas relações, não deixamos escapar nenhuma circunstância e, quando estivermos assegurado por observações bem feitas, damos-lhes ainda o nome de observações. Mas, para descobri-los, não basta sempre observar, é preciso ainda, por meios diferentes, desprendê-los de tudo o que os oculta, reaproximá-los de nós e colocá-los ao alcance de nossa visão: é o que se denomina experiências. Tal é a diferença que é preciso colocar entre fenômenos, observações, experiências. USO DE CONJETURAS. E difícil chegar instantaneamente à evidência: em todas as ciências e em todas as artes começou-se por uma espécie de tateamento. Segundo verdades conhecidas, suspeitamos de que não estamos seguros ainda. Estas suspeitas estão fundadas sobre circunstâncias que indicam menos o verdadeiro que o verossímil, mas nos colocam frequentemente no caminho das descobertas, porque_ nos ensinam o que temos para observar. Eis o que se compreende por conjeturar. As conjeturas estão no grau inferior, quando nos asseguramos de uma coisa somente porque não vemos como ela não seria. Só nos permitimos agir desta maneira quando formulamos suposições que devem ser confirmadas. Resta, então, fazer observações ou experiências. Parecemos levados a acreditar que a natureza age pelos caminhos mais simples. Em consequência, os filósofos são levados a julgar que, de todos os meios pelos quais uma coisa pode ser produzida, a natureza deve ter escolhido aqueles que imagina ser os mais simples. É evidente que semelhante conjetura só terá força na medida em que formos capazes de conhecer todos os meios e julgar sua simplicidade, o que só acontece raramente. A ANALOGIA TEM GRAUS DIFERENTES DE CERTEZA. As conjeturas estão entre a evidência e a analogia, que é frequentemente uma simples conjetura. É preciso distinguir na analogia graus diversos, já que ela está fundada sobre relações de semelhança, sobre relações com o fim ou sobre relações de causas com efeitos e de efeitos com causas. A terra é habitada: portanto, os planetas o são. Eis a mais fraca das analogias, porque só está fundada numa relação de semelhança. Mas se notarmos que os planetas possuem revoluções diurnas e anuais e que, por consequência, suas partes são sucessivamente iluminadas e aquecidas, estas precauções não parecem ter sido tomadas para a conservação de alguns habitantes? Esta analogia, que está fundada sobre a relação dos meios com o fim, tem, portanto, mais força que a primeira. No entanto, se ela prova que a terra não é o único habitado, não prova que os outros planetas o sejam, pois aquilo que o autor da natureza repete em várias partes do universo para um mesmo fim pode ser que não o mantenha como regra para o sistema geral: é possível ainda que uma revolução faça um deserto de um planeta habitado. A analogia que está fundada sobre a relação dos efeitos com a causa ou da causa com os efeitos é a que possui mais força: torna-se até uma demonstração quando é confirmada pelo concurso de todas as circunstâncias. É uma evidência de fato que haja sobre a terra revoluções diurnas e anuais e é uma evidência de razão que estas revoluções podem ser produzidas pelo movimento da terra, por aquele do sol, ou por ambos. Mas observamos que os planetas descrevem órbitas em torno do sol e asseguramo-nos da mesma forma pela evidência de fato que alguns têm um movimento de rotação sobre seu eixo mais ou menos inclinado. Ora, é uma evidência de razão que esta dupla revolução deve necessariamente produzir dias, estações e anos: então, a terra tem uma dupla revolução, desde que ela possui dias, estações, anos. Esta analogia supõe que os mesmos efeitos têm as mesmas causas, suposição que, sendo confirmada por novas analogias e novas observações, não poderá mais ser colocada em dúvida. E desta maneira que os bons filósofos se conduziram. Se quisermos aprender a raciocinar como eles, o melhor é estudar as descobertas que foram feitas desde Galileu até Newton. É assim que tentamos raciocinar nesta obra. Observamos a natureza e aprendemos, através dela, a análise. Com este método, estudando-nos e havendo descoberto, por uma sequência de proposições idênticas, que nossas ideias e nossas faculdades são apenas a sensação que toma formas diferentes, asseguramo-nos da origem e da geração de umas e outras. Notamos que o desenvolvimento de nossas ideias e de nossas faculdades só se faz mediante signos e não se faria absolutamente sem eles, que, consequentemente, nossa maneira de raciocinar só pode se corrigir corrigindo a linguagem e que toda, a arte se reduz a fazer bem a língua de cada ciência. Enfim, provamos que as primeiras línguas, em sua origem, foram bem feitas, porque a metafísica, que presidia sua formação, não era uma ciência como hoje, mas um instinto dado pela natureza. E, então, da natureza que é preciso apreender a verdadeira lógica. Eis qual foi meu objetivo e esta obra se tornou a mais nova, a mais simples e a mais curta sobre isso. A natureza não deixará nunca de instruir qualquer pessoa que souber estudá-la, ela instrui melhor, quando falamos sempre a linguagem mais precisa. Seríamos hábeis se soubéssemos falar com a mesma precisão, mas somos demasiado prolixos para raciocinar sempre bem. CONSELHO AOS JOVENS QUE QUEIRAM ESTUDAR ESTA LÓGICA. Creio dever acrescentar aqui alguns conselhos aos Jovens que queiram estudar esta Lógica. Desde que toda a arte de raciocinar se reduz a fazer bem a língua de cada ciência, é evidente que o estudo de uma ciência bem realizada se reduz ao estudo de uma língua bem feita. Mas aprender uma língua é familiarizar-se com ela, o que só pode ocorrer pelo efeito de um longo uso. É preciso, então, ler com reflexão, várias vezes, falar sobre o que se leu e reler ainda para se assegurar de haver falado bem. Compreender-se-ão facilmente os primeiros capítulos desta Lógica: mas se, porque os compreendemos, cremos poder ir imediatamente aos outros, conduzir-nos-emos muito precipitadamente. Não se deve passar a um novo capítulo a não ser depois de ter apreendido bem as ideias e a linguagem daqueles que o precederam. Se se mantiver outra conduta, não se compreenderá com a mesma facilidade e, algumas vezes, não se compreenderá absolutamente nada. Um inconveniente maior é que se compreenderá mal, se fizermos da linguagem da pessoa que estuda, que sempre conservará algo, e da minha, que se acreditará haver captado, um jargão ininteligível. Eis o que acontecerá aos que se creem instruídos, ou porque fizeram um estudo do que se denomina, frequentem ente e de maneira inadequada, filosofia, ou porque o ensinaram. De qualquer modo que eles me leiam, ser-lhes-á bem difícil esquecer o que aprenderam para aprender apenas o que ensino; eles desdenharão recomeçar comigo: farão pouco caso de minha obra, se se aperceberem que não a compreendem, e, se imaginam compreendê-la, ainda farão pouco caso, porque eles a compreenderão à sua maneira e acreditarão não haver aprendido nada. É bem comum, entre os que se julgam sábios, não ver nos melhores livros senão o que eles sabem e, consequentemente, lê-los sem nada aprender: não veem nada de novo numa obra onde tudo é novo para eles. Desta maneira, escrevo apenas para os ignorantes. Como não falam as línguas de nenhuma ciência, lhes será mais fácil apreender a minha: ela está mais a seu alcance que qualquer outra, porque eu a apreendi da natureza que lhes falará como fala a mim. Mas, se eles encontrarem trechos que os detenham, que se protejam de interrogar sábios tais como os que acabo de descrever: agirão melhor interrogando outros ignorantes que me terão lido com inteligência. Que digam: Nesta obra, só se vai do conhecido ao desconhecido: portanto, a dificuldade de compreender um capitulo provém unicamente de que os capitulas precedentes não me são demasiado familiares. Então julgarão que devem voltar para trás e, se tiverem a paciência de fazê-lo, compreender-me-ão sem necessidade de consultar ninguém. Só se compreende melhor quando se compreende sem ajuda de terceiros. Esta Lógica é breve e, consequentemente, não é atemorizada. Para lê-la com a reflexão que ela exige, será preciso dispor apenas do tempo que se perderia para ler outra lógica. Quando se souber esta Lógica - e por saber entendo que se esteja em situação de falar facilmente e de poder fazê-la se necessário -, quando se souber, digo, se poderá ler com menos lentidão os livros onde as ciências estão bem realizadas e, algumas vezes, instruir-se-á com leituras bem rápidas. Pois, para ir rapidamente de conhecimento em conhecimento, basta haver apreendido o método que é o único bom e, consequentemente, o mesmo para todas as ciências. A facilidade, que fornecerá esta Lógica, adquirir-se-á igualmente estudando as lições preliminares de meu Curso de Estudos, se se acrescentar a ele a primeira parte da Gramática. Tendo sido bem feitos estes estudos, compreender-se-ão facilmente todas as minhas outras obras. Mas quero ainda prevenir os jovens contra um preconceito que deve ser natural àqueles que começam. Para que um método para raciocinar nos ensine a raciocinar, somos levados a acreditar que em cada raciocínio a primeira coisa deveria ser pensar nas regras segundo as quais ele deve se fazer, e assim nos enganamos. Não pertence a nós pensar nas regras, pertence a elas conduzir-nos sem que nelas pensemos. Não se falaria se, antes de começar cada frase, fosse necessário se ocupar da gramática. Ora, a arte de raciocinar, como em todas as línguas, só se fala bem na medida em que se fala naturalmente. Meditem o método e meditem bastante, porém não pensem mais nele quando quiserem pensar em outra coisa. Algum dia, ele se tornará familiar: então, sempre com os senhores, ele observará seus pensamentos que se conduzirão sozinhos e zelará sobre eles para lhes impedir todo desvio. É tudo o que os senhores devem esperar do método. As balaustradas não se colocam ao longo dos precipícios para fazer o viajante ir em frente, mas para impedir que ele se precipite. Se, no início, os senhores possuem alguma dificuldade em se familiarizar com o método que ensino, não é porque seja difícil: não saberia sê-lo desde que é natural. Mas ele se tornou difícil para os senhores, pois os hábitos maus já corromperam a natureza. Desfaçam-se, então, destes hábitos e raciocinarão naturalmente bem. Parece evidente que deveria dar estes conselhos antes do começo desta Lógica: mas os senhores não haveriam compreendido. Além disso, eles ficarão bem até o fim, e ficarão bem também para os outros, que sentirão melhor a necessidade que têm deles. Esclarecimentos que me solicitou sobre a doutrina M. Poté, professor em Périgueux Deus pode agir apenas onde estiver e Deus é simples: como conciliar estas duas asserções? Estabeleçamos desde o primeiro instante que nossos conhecimentos provêm dos sentidos, eles se estendem tanto quanto nossas sensações e, além disso, não podemos descobrir nada. Somos, em relação às verdades as quais nossos sentidos não nos conduzem, como os cegos em relação às cores. Creio haver demonstrado que todo ser que compara duas ideias é necessariamente simples. Com maior razão, Deus é simples, desde que apreende todas as relações e todas as verdades possíveis. Por outro lado, é evidente que só pode agir onde estiver: portanto, ele está em toda a sua obra, ou antes, toda a sua obra está nele. NELE NOS MOVEMOS E SOMOS Eis duas verdades. Se não posso conciliá-las, é porque neste nível sou um cego a quem é impossível julgar as cores. Os corpos são realmente extensos? Ou parecem extensos sem sê-lo realmente? Por mais que interrogue meus sentidos, não podem me responder. É que eles não me foram dados para julgar o que as coisas são em si, mas somente relações verdadeiras ou aparentes que têm comigo e entre si, quando me é útil conhecê-las. Se os corpos são realmente extensos, haverá extensão em Deus, extensão num ser inextenso. Se não o forem, será próprio da extensão como das cores, isto é, será apenas um fenômeno, uma aparência. Leibniz o disse. Mas, qualquer partido que se tome, resultam disso dificuldades que minha ignorância não me permite resolver e, I or esta razão, me impeço de decidir. Serei mais ousado em julgar a duração e a eternidade. Dizem que um instante é a permanência que uma ideia faz em nossa alma. Eu não empregaria a palavra permanência, que supõe o que está em questão, isto é, que um instante é composto de vários outros. Pois permanência traz uma ideia de sucessão. Ora, se um instante é composto de vários outros, igualmente de vários outros ainda, e assim sem fim, será necessário dizer que há num instante uma sucessão infinita. Mas consideremos a ideia que nós formamos da duração e vejamos o que podemos concluir. A duração me é conhecida apenas pela sucessão de minhas ideias. Se existe outra duração que não a desta sucessão, não a conhecerei portanto: não posso conhecê-la, não posso julgá-la. Desde que a duração me é conhecida apenas pela sucessão de minhas ideias, um instante é para mim apenas a presença, sem sucessão, de uma ideia em minha alma. Presença, digo, e não permanência. Ora, um instante para mim ou a presença de uma ideia em minha alma pode coexistir com várias ideias que se sucedem em sua alma e que são outros instantes para os senhores. Eis por que digo que um instante da duração de um ser pode coexistir em vários instantes da duração de outro. Julgo minha duração sem poder julgar a sua, porque não tenho meio para perceber a sucessão de suas ideias, percebo apenas a sucessão das minhas. Da mesma maneira julgamos cada um nossa duração sem poder, nem um nem outro, julgar a duração de alguma outra coisa, porque não é nelas próprias que percebemos as sucessões que experimentam os objetos que nos rodeiam, é unicamente através da sucessão que se passa em nós. A sucessão que produz a duração em um objeto exterior é uma sequência de mudanças que o modificam de alguma maneira: a sucessão que a produz em nós é uma sequência de sensações ou de ideias. Estas duas sequências corresponderiam uma à outra, instante por instante, se cada mudança fizesse experimentar uma sensação: é o que não acontece. Por que, por exemplo, o sol parece imóvel ao olho? É que a cada mudança sucessiva que ele parece descrever em sua órbita não exerce sobre o olho uma sensação nova. Mas a duração é algo mais que as mudanças sucessivas que se fazem em cada ser criado? Há uma duração absoluta à qual coexista, instante por instante, a duração de cada criatura? Locke o afirma e crê demonstrá-lo. Penso que, se houvesse semelhante duração, não poderíamos julgar, pois só se julga na medida em que se vê e, no entanto, esta duração seria para nós o que as cores são para os cegos. Não temo dizer que semelhante duração só possui realidade em nossa imaginação, que é muito propensa a realizar quimeras. Com efeito, se esta duração tivesse lugar, seria atributo de algum ser. Ora, de qual ser? De Deus, sem dúvida, desde que ele foi sempre e será sempre. Mas, se Deus dura, há então uma sucessão nele e ele adquire consequentemente, perde, muda e não é imutável. Só pode haver sucessão no que muda, há mudança apenas nas coisas em que há progresso e decadência e as coisas em que há progresso e decadência são necessariamente imperfeitas: tais são as criaturas. Deus, criando-as, criou coisas onde há necessariamente progresso, decadência, mudança, sucessão e, consequentemente, duração. Criando-as, ele criou portanto a duração. A duração não é então um atributo de si própria, é um atributo das criaturas: é sua maneira de existir. Ora, como a duração é a maneira de existir das criaturas, a eternidade é a maneira de existir de Deus e esta eternidade é um instante que coexiste em todas as mudanças sucessivas de coisas criadas; mudanças sucessivas que não se correspondem instante por instante, como a sucessão de minhas ideias não corresponde instante por instante à sucessão das suas. A cada mudança há em cada criatura um instante e, como uma mudança em uma coexiste com várias mudanças em outra, é uma consequência que um instante coexista a vários instantes: em cada criatura cada mudança ou cada instante é indivisível, porque em cada uma cada mudança ou cada instante está sem sucessão. Consequentemente, se formos levados a Supor que haja uma duração comum, instante por instante, para cada ser, não é que haja, com efeito, semelhante duração, é que nossa imaginação generaliza a ideia de nossa própria duração e atribui a tudo o que existe esta duração, que é a única que percebemos.