Joseph-Marie de Gérando – Dos signos e da arte de pensar considerados em mútuas relações Introdução A linguagem e as questões referentes a ela ocuparam, durante longo tempo, muito mais os gramáticos e os retóricos do que os filósofos. Via-se aí a matéria de convenções que fora necessário fixar, um mecanismo de meios próprios para excitar certas impressões nos outros homens, o qual era preciso aperfeiçoar; percebiam-se com dificuldade nos signos os meios de desenvolvimento do nosso espírito, quando muito, suspeitava-se que era preciso fornecer leis à linguagem pela qual o homem fala a si mesmo. Procurou-se, pois antes determinar as relações da arte dos signos com a arte de falar e escrever do que pesquisar aquelas que a ligavam à arte de pensar. E quando se quis tratar desta grande arte, fundar seus princípios nesta ciência que chamamos Lógica, consideramo-la de uma maneira totalmente abstrata; pretendemos estudar a natureza de nossas ideias sem nos deter nos eixos sensíveis que as sustentam; quisemos avaliar as forças do espírito humano sem calcular o auxílio que ele recebia. Se abrirmos os numerosos volumes que nos deixaram os antigos metafísicos encontraremos aí tratados sobre os sentidos, sobre a imaginação, sobre cada uma de nossas faculdades, sobre os princípios de nossos conhecimentos, sobre as ocasiões de nossos erros; procuraremos em vão um tratado metódico sobre os signos, um trabalho destinado a determinar sua influência sobre o progresso de nosso espírito. Como não se perder no labirinto de nossas operações intelectuais quando negligenciamos seguir o único fio que poderia servir para orientar-nos aí? Como formar um sistema ao mesmo tempo completo e sólido, se considerávamos somente os fenômenos que formavam de alguma maneira as duas extremidades da cadeia e se negligenciávamos o elo intermediário destinado a uni-las e que era o único que nos podia conduzir de uma a outra? Estava reservada para a metafísica moderna a tarefa de retificar este erro e de seguir procedimentos mais conformes às lições da natureza. Já a voz de Bacon, elevando-se acima dos vãos murmúrios da escola, havia convocado todos os bons espíritos para o caminho simples e seguro da experiência; já ele advertira o gênero humano acerca dos vícios de sua linguagem e da necessidade de reformá-la. Ele havia anunciado que nossos signos possuem também uma influência que lhes é própria e pela qual eles reagem ao entendimento. Locke e Leibniz apreenderam ao mesmo tempo este grande pensamento e desenvolveram, cada um por seu lado, os primeiros resultados. Eles nos mostraram como o raciocínio se torna incerto e defeituoso numa linguagem sujeita a mil equívocos, e de que nuvens espessas o abuso das palavras cobria, para nós, o caminho que conduz à verdade. Mostraram-nos, com a preocupação de determinar com exatidão o sentido que ligamos a nossos signos, o remédio que em vão procurávamos nas fórmulas construídas pela escola de Aristóteles. Locke é admirável quando, apresentando o exemplo ao mesmo tempo que explica o preceito, relata-nos como nos enganamos com frequência por não permanecermos fiéis à própria linguagem, como frequentemente nos deixamos levar por discussões intermináveis, por não termos sabido nos entender. Foi o primeiro a nos ensinar de que maneira nomeamos nossas ideias simples, abstratas e complexas, e nos fez ver que a linguagem, até então considerada somente um meio de comunicar nossas ideias, servia também, servia sobretudo para registrá-las em nosso espírito. Foi o primeiro a penetrar, de archote em punho, nesse misterioso abismo de essências em que o gênio da filosofia estivera perdido até então; foi o primeiro que ousou atacar esta espécie de superstição que antigos preconceitos nos haviam inspirado em relação às palavras. Foi o primeiro enfim que, estabelecendo os princípios da verdadeira geração das ideias, nos colocou no caminho das boas definições e nos indicou o meio de refazer, como diz Bacon, toda a nossa ciência. Condillac, seguindo os passos de Locke , seu mestre, e profundamente influenciado por sua doutrina, chamou mais particularmente ainda a atenção para o sistema de nossos signos, e as luzes que ele aí espalhou são, a meu ver, o maior serviço que ele prestou à filosofia. Explicou-nos como a linguagem decompõe o pensamento, à força, de alguma maneira, de nos darmos conta de seus elementos, e torna-se assim, para empregar sua expressão, uma espécie de método analítico. Observando melhor do que se havia feito até então o mecanismo do raciocínio abstrato, mostrou que ele contém uma sequência de traduções. Sabia-se que os signos se ligavam a nossas ideias; mostrou que eles se ligavam também entre si. Sabia-se que era preciso fixarmo-nos nos signos que havíamos escolhido; mostrou que essa escolha não era absolutamente tão indiferente quanto se havia pensado até então, e desenvolveu as úteis propriedades de uma linguagem de analogia. Enfim, embora em algumas de suas obras não tenha levado em conta, de modo algum, o papel que os signos desempenham, como instrumentos, em certas operações de nosso espírito, “Assim, no tratado das sensações, por exemplo, ele faz com que a estátua obtenha ideias complexas e abstratas, faz com que execute julgamentos e raciocínios, fornece-lhe, numa palavra, um grau de inteligência que supõe evidentemente o uso dos signos artificiais. Essa estátua com um só sentido, o menos instrutivo de todos, é já muito mais sábia e mais hábil do que o selvagem dotado de todos os sentidos, que não teria absolutamente comunicado com seus semelhantes. (Nota do Autor)” acabou por percebê-lo, e pressentiu o que devíamos aos signos, o que podemos nos tornar através deles, e, anunciando que o aperfeiçoamento da linguagem exerceria uma grande influência sobre o progresso de nossos conhecimentos, tem, ao menos, o mérito de ter dirigido o trabalho de um grande número, e o interesse de todos, para a questão importante que nos ocupa atualmente. No número das pesquisas úteis que serviram para lançar nova luz sobre as relações dos signos à arte de pensar, é preciso contar sem dúvida as sábias pesquisas de Court de Gebelin no seu ensaio sobre a origem da linguagem e da escritura. Embora este infatigável autor seja para a filosofia apenas o que os antiquários são para a história, prestou-nos entretanto importantes serviços ao juntar os monumentos esparsos da língua primitiva. Confirmou pelos fatos o que Condillac havia dito acerca da geração sucessiva das três espécies de linguagens, natural, imitativa, arbitrária; forneceu um novo apoio para a história de nossas ideias feita por Locke. O gênio da filosofia o guiava em suas observações. Sua Gramática universal merece ser estudada pelos metafísicos, pois, não há que se enganar nisto as relações das palavras no discurso são sempre fundadas nas relações das ideias que elas representam, e se uma boa gramática pudesse nascer antes de uma boa metafísica apresentaria o molde no qual esta deveria ser modelada. O metafísico e o gramático medem proporções correspondentes, um sobre o pensamento, outro sobre sua representação. Mas, qualquer que seja o mérito das descobertas que estes diversos escritores fizeram acerca da ligação que existe entre os signos e a arte de pensar, estão longe de haver esgotado o rico assunto que ela apresenta para nossas meditações. Deveríamos apenas considerar estas descobertas como sinais colocados aqui e ali ao longo do caminho, para nos guiar. O próprio Locke sentiu que seu trabalho não estava completo; ele nos confessa que as ideias que expõe são, o mais frequentemente, antes pontos de vista que se lhe ofereciam à medida que escrevia do que o produto de meditações que o levassem a escrever. Era suficiente para sua glória ter dado vida aos elementos da metafísica e de se ter erguido sobre este vasto caos com o poder do criador; deixou a outros o cuidado de ordenar e trabalhar os materiais que ele lhes havia posto nas mãos. Limitando-se a considerar os signos sob o ponto de vista mais geral, não procura nem traçar a história de sua instituição, nem descrever as diferentes propriedades que pertencem às suas diversas espécies, nem marcar as condições de uma linguagem melhor. Condillac sem dúvida iluminou as regiões mais escuras da ciência de nossas ideias. Mas seu gênio, rápido como o raio, atravessa os espaços e não se detém nos objetos, frequentemente ele indica a verdade mais do que a expõe; o mais das vezes generaliza um princípio sem ter percorrido as diversas aplicações. Mostrou algumas relações comuns de nossos signos a nossas ideias, mas não procurou saber de modo algum como essas relações se modificam segundo a natureza desses signos e segundo a natureza dessas ideias. Fez ver que os signos formam uma parte essencial de nossos raciocínios, mas não estudou de modo algum a influência indireta que eles exercem sobre o desenvolvimento de nossas faculdades; disse em parte o que os signos são para nosso espírito, mas não disse absolutamente o que nosso espírito é para os signos, e como age sobre eles. Invocou o estabelecimento de uma língua perfeitamente análoga, mas não traçou todas as suas regras, não detalhou todas as suas vantagens, não suspeitou de seus inconvenientes, não examinou sua possibilidade. Devo acrescentar, com o risco de espantar alguns de meus leitores: se até aqui se esquecera quase inteiramente a influência dos signos, em nossos dias exagera-se a extensão dessa influência. Passou-se em pouco tempo de um extremo ao outro, atravessando a verdade, desvio muito frequente em filosofia! Pois nada está mais próximo da ignorância de um princípio do que a sua excessiva generalização. A imaginação a recebe das mãos do gênio que acaba de descobri-Ia e a leva em triunfo até o cimo de nossos conhecimentos; apraz-se em lhe deixar um domínio sem limites; a indolência do espírito, a vaidade, conspiram com ela para assegurá-lo. É tão cômodo e tão bonito explicar tudo por meio de uma solução comum e necessitar apenas conhecer um só fato para tudo saber, ou ao menos para parecer saber! Há uma moda para as opiniões como para as roupas; a novidade faz seu encanto, e a imitação a propaga. Condillac começou a dar o exemplo desses desvios. É característico de uma concepção aguda e vigorosa não se deter dentro de justos limites. Daí, neste respeitável escritor, estas máximas demasiadamente absolutas: o estudo de uma ciência se limita à aprendizagem de uma língua, uma ciência bem cuidada não é mais do que uma língua bem feita; daí esta opinião arriscada: as matemáticas possuem em relação às demais ciências apenas o privilégio de possuir uma língua melhor, e daríamos a estas igual simplicidade e certeza se soubéssemos dar-lhes signos semelhantes. O crédito que sua autoridade emprestou a essas asserções, a falsa interpretação que lhes foi dada por alguns, sobretudo a sedutora esperança, é preciso dizer, para todos os amigos da verdade, de pôr fim a todas as discussões, de prevenir todos os erros, de abrir caminho para todas as verdades, por um meio tão simples como a reforma das línguas, logo fizeram nascer e expandir-se, senão a• convicção, ao menos a suspeita de que na arte dos signos, em suas misteriosas profundezas, poderiam bem estar encerrados todos os segredos dos quais depende o aperfeiçoamento do espírito humano. Não saberia me estender mais sobre esse assunto sem inverter a ordem das coisas e sem antecipar o que tenho a dizer no curso deste trabalho. Basta-me anunciar que ele se destina a demonstrar ao mesmo tempo que até aqui se atribuiu aos signos demasiada ou demasiadamente pouca influência, que muito se negligenciou o auxilio que poderiam nos dar, ou então se esperou demasiado deles. Esta dupla demonstração se reduz, com efeito, a uma só. Se se atribuiu aos signos uma eficácia que eles não possuem, é porque não se conheceu bem a verdadeira razão da influência real que exercem, é porque se teve apenas uma ideia vaga da maneira como agem. Quando se generaliza demais um princípio, é sempre porque não se analisa com bastante cuidado para se dar conta exatamente das condições que ele encerra. Todos os objetos se parecem quando os vemos apenas de longe; e daí deriva sem dúvida o fato de que os meio-sábios creem poder julgar a respeito de tudo e são os mais afirmativos dos homens. E isso explica o que enunciei a pouco, que Condillac não disse o suficiente sobre os signos, e entretanto disse demais; porque suas observações foram imperfeitas, e que suas deduções se tornaram excessivamente extensas. Sem dúvida numerosos exemplos nos autorizam a esperar ainda do aperfeiçoamento de nossos signos uma grande ajuda para o aperfeiçoamento de nosso espírito. Observamos que os surdos-mudos de nascença, quando ainda não aprenderam a juntar os signos da escrita àqueles que fizeram para si mesmos, acham-se restritos ao mais estreito círculo de ideias, e não existe de modo algum para seu espírito mais do que as imagens sensíveis dos objetos materiais e familiares que os circundam. Observamos que a inteligência das crianças se desenvolve à medida que as iniciamos em nossos signos, e que a língua de uma sociedade se corrige, se enriquece à medida que essa nação se civiliza e se esclarece. Notamos enfim que os nossos conhecimentos que gozam de uma certeza mais absoluta são também os que possuem uma língua melhor, e que frequentemente o estabelecimento de uma nomenclatura mais razoável basta para determinar grandes progressos numa ciência. Entretanto, para somente tirar desses exemplos justas e seguras induções, seria necessário examinar três coisas que até agora não consideramos; a primeira: se alguma circunstância não concorre com a influência dos signos para os efeitos que observamos; a segunda: se o estabelecimento de uma língua melhor seria sempre igualmente possível, e se isso não supõe condições cujo preenchimento esteja fora de nosso alcance; a terceira, enfim, se o estabelecimento dessa língua seria sempre igualmente útil e se a diferença de natureza entre nossos diversos conhecimentos permite esperar em cada um deles as mesmas vantagens de semelhante procedimento. É um grande e interessante problema, o dos meios que podem conduzir o espírito humano ao seu mais alto grau de aperfeiçoamento. Mas, somente pode esperar resolvê-lo aquele que já tiver compreendido bem como nos elevamos até o ponto que ocupamos. Sem isto ele pareceria com esses práticos (empyriques) que pretendem curar nossos males e prolongar nossa vida, embora tenham apenas alguma ideia da constituição daqueles que tratam e da anatomia geral do corpo humano. Pensei, pois, que seria necessário primeiramente recolher todos os esclarecimentos que a observação nos fornece sobre nosso estado passado, antes de arriscar hipóteses, sobre nossos progressos futuros; procurei definir bem o auxílio que extraímos dos signos antes de me pronunciar sobre o que podemos ainda receber deles. Ora, o método que segui em meu trabalho regrará a ordem que seguirei neste escrito. De ordinário não há melhor caminho para conduzir os homens à verdade do que aquele que nós próprios seguimos ao procurá-la. Aliás, aqui ele me estava traçado pela própria natureza das coisas. Esta obra será, pois, dividida em duas partes. Na primeira, analisando os fatos, farei a história do que fomos, apresentarei o quadro do que somos, examinarei como nosso espírito se serviu dos signos, em que eles influíram, ou sobre o progresso ou sobre os defeitos de nossos conhecimentos. Na segunda, fundando uma teoria, procurarei calcular o que nos podemos tornar ainda, descobrir as causas que são próprias para nos conduzir, conhecer de que perfeição são os signos suscetíveis e quais os efeitos que poderíamos esperar das reformas às quais fossem submetidos. Assim, na primeira parte consultarei a experiência, na segunda prescreverei regras; uma será consagrada aos princípios, outra às deduções. Numa direi o que sei e na outra, muito mais o que espero. A primeira parte conterá a resposta em sentido literal da questão proposta pelo instituto; ela explicará qual foi a influência dos signos sobre a formação das ideias. A segunda entrará mais particularmente nos desígnios que animaram o instituto na escolha de semelhante assunto. Responderá às questões de detalhe que se encontram ligadas ao programa. Mostrará qual a influência precisa que o aperfeiçoamento da arte dos signos poderia exercer sobre a arte de pensar. “A distinção que aqui faço entre o assunto proposto pelo instituto e a visão que o levou a firmá-la, entre a questão principal e as questões de detalhe, explica por que não dei a esta obra o título enunciado na própria questão sobre a qual fôramos admitidos para contribuir. Lendo o programa, vemos; que o pensamento do instituto não está contido nesse enunciado. Apresenta-nos apenas uma questão de fato bastante simples. Mas oferece-nos nessa ocasião um imenso assunto em quatro. novas questões, solicita-nos uma vasta teoria; eis as questões: 1º - A arte de ; pensar seria perfeita se a arte dos signos fosse levada à perfeição? 2º - Nas ciências onde a verdade é; recebida sem contestação, não é à perfeição dos signos que a devemos? 3º - Naquelas que dispensam um eterno alimento para as discussões, a divisão das opiniões não é um efeito necessário da inexatidão dos signos? 4º - Há algum meio para corrigir os; signos mal feitos e tornar todas as ciências igualmente suscetíveis de demonstração? Senti-me tão à vontade, pelo convite que me foi feito para tratá-las, que bastava aperfeiçoar o assunto e torná-lo verdadeiramente interessante e útil; mas preferi então conferir um título que o' anunciasse inteiramente. (Nota do Autor)” Cada parte se dividirá por sua vez de maneira tão simples quanto natural. Na primeira, que é totalmente histórica, precisarei apenas de me deixar conduzir pela própria geração dos fatos. Ora, aqui se nos apresentam dois pontos de vista principais: um é a criação dessas ideias e desses signos; o outro é o uso que deles fazemos, uma vez criados. Assim, esta grande história do espírito humano se divide em duas épocas, uma, que nos conduz até o momento em que o homem se apropria de todos os instrumentos do pensamento; a segunda, que nos mostra o homem ocupado em obrar com esses instrumentos. Ao traçar esta primeira história explicaremos como o indivíduo, saindo do seio da ignorância absoluta e da total inação, recebe da natureza signos já feitos e inventa ele próprio novos signos, concebe ideias, retraça-as, e como essas duas operações se ligam e se encadeiam uma à outra de mil maneiras. Ao delinear a segunda história explicaremos todas as operações que o espírito executa em seguida sobre essas ideias, e, por intermédio desses signos, mostraremos como essas operações se tornam o princípio de todos os nossos conhecimentos, como sua perfeição ou seus vícios determinam nossos progressos ou nossos erros. É assim, por exemplo, que, ao estudar a anatomia do corpo humano, relata-se primeiramente a formação de cada órgão e indicam-se em seguida as funções às quais é destinado. Na segunda parte, que consiste totalmente em aplicações, deverei seguir a ordem estabelecida pela classificação de nossos conhecimentos, a fim de mostrar quais os progressos que ainda nos resta fazer em suas diversas espécies, quais são os meios de obter esses progressos, que papel enfim os signos podem desempenhar entre esses meios. Ora, eis a maneira mais simples de dividir todos os conhecimentos a que se elevou nosso espírito. Há verdades de fato que consistem na relação de nossas ideias às coisas ou aos modelos exteriores que elas representam; há verdades abstratas que consistem apenas na relação de nossas ideias entre si. Algumas vezes queremos julgar a existência dos seres, suas propriedades, sua ação, outras vezes, isolando-nos de todo o universo e encerrando-nos no âmbito de nossas próprias concepções, ocupamo-nos apenas em compará-las entre si. Assim, há segredos que arrancamos à natureza; e há descobertas que fazemos em nossos próprios pensamentos. - A primeira parte se dividirá pois em duas seções. Uma exporá A história da instituição de nossos signos e da formação de nossas ideias, a outra tratará das operações que o espírito humano executou sobre os signos e as ideias, e explicará; como elas serviram para a aquisição de nossos conhecimentos. A segunda parte se dividirá igualmente em duas outras seções; na primeira tentarei mostrar como o aperfeiçoamento da arte dos signos poderá auxiliar nossos progressos nos conhecimentos de fato; na segunda examinarei como o aperfeiçoamento da arte dos signos poderá auxiliar nossos progressos na pesquisa das verdades abstratas. Cada uma dessas quatro seções formará a matéria de um volume. SEÇÃO I DA FORMAÇÃO DAS IDEIAS E DA INSTITUIÇÃO DOS SIGNOS I. 1 Da sensação e das operações das quais ela é objeto; a percepção, a atenção, a reminiscência e o julgamento. Pensar, na linguagem habitual dos filósofos, é o termo mais genérico empregado para exprimir todos os fenômenos que compõem a história do espírito humano. Ao mesmo tempo esta palavra engloba, em sua acepção, todas as operações que servem de meios para nossos conhecimentos; ela corresponde a cada uma de nossas faculdades intelectuais. Pensar é para o espírito o que agir é para o corpo. Em virtude desta admirável luz que nos ilumina sobre o que se passa em nós próprios e deste poder não menos espantoso que temos para modificar, dirigir, retificar todas as nossas operações, o pensamento, que de início era apenas um ato qualquer do espírito, um exercício qualquer de nossas faculdades, tornou-se para nós uma verdadeira arte; a filosofia estuda a natureza e o fim desta arte, e traça suas regras. É assim que, do mesmo modo, os movimentos de nosso corpo se tornam o motivo das artes mecânicas, desde que a indústria lhe dê leis e lhe confira instrumentos. Embora a história dos signos não comece com a história do pensamento, embora entre as operações de nosso espírito haja algumas que não recebam nenhum auxílio dos signos, pareceu-me indispensável retomar aqui à primeira origem de todos os nossos conhecimentos. De início, deveria refutar a opinião daqueles que pretendem que os signos são necessários às primeiras e mais simples operações do espírito e que não veem que, para fabricarmos um instrumento, é preciso já alguma indústria. Aliás, não poderia explicar claramente a origem de nossos diversos signos, sem expor as circunstâncias que precedem e preparam seu nascimento, sem definir os meios que temos para usá-las. Enfim, seria impossível tornar compreensível como os signos agem sobre nós e nos modificam, se de início já não tivesse descrito o estado no qual nos achamos por ocasião de seu nascimento e o que somos sem seu auxílio. Mas, mesmo supondo que essas primeiras noções não constituíssem uma parte necessária de meu plano ou que fossem muito simples e muito familiares para necessitarem de uma nova explicação, deveria ao menos reconsiderá-las para estabelecer o dicionário da língua que vou falar. Talvez não haja nenhuma outra que seja mais vaga e mais incerta, e disso veremos a razão ao longo desta obra. Somente as duas palavras, signo e ideia, que compõem o enunciado do problema proposto pelo Instituto Nacional, receberam entre os filósofos um grande número de interpretações diversas. Alguns dão o nome de ideia a toda sensação apercebida e distinguida pelo espírito; outros a restringem às simples relações que as sensações mantêm entre si; ainda outros, em grande número, chamam ideia aos traços que a imaginação conserva das impressões que recebemos; outros apenas veem nas ideias abstrações. Quanto à palavra signo, às vezes a aplicamos aos elementos da linguagem, Isto é, aos meios exteriores que os homens empregam para comunicar entre si os seus pensamentos; outras vezes a ligamos a todos os objetos estranhos que ocasionam impressões que experimentamos; e há até aqueles que dão o nome de signo aos órgãos de nosso corpo como sendo o instrumento da sensação; enfim, outros conciliando essas diversas acepções, consideram como signos todos os objetos que têm o poder de acordar em nós uma ideia. Conforme adotemos uma ou outra destas interpretações, a questão de que trato se apresentará sob aspectos muito diferentes; poderia ter perto de vinte soluções igualmente justas e todas diferentes limas das outras. Diante de tantas línguas diferentes, enquanto depender de mim, evitarei agregar uma nova. Escolherei entre as acepções já adotadas aquela que me parecer reunir ao mesmo tempo a dupla vantagem de ser a mais geral e de ser a que melhor classifica os fatos. Apenas me permitirei recorrer a uma nova acepção quando tiver necessidade de nomear um fenômeno particular que ainda não tenha recebido seu nome. Em todos os casos, sempre advertirei acerca da interpretação à qual me ativer; no próprio momento em que expuser os fatos prevenirei a respeito dela, e o quadro que se vai ler se tornará conjuntamente uma nomenclatura e uma história. Parto aqui do princípio hoje reconhecido por todos os filósofos de que a origem de todos os nossos conhecimentos está em nossas sensações, e é pela análise da sensação que começo. Suponho portanto o indivíduo isolado de todo comércio com seus semelhantes e por consequência privado do auxílio dos signos que este comércio o leva a instituir. Suponho-o também no início de sua existência moral e por consequência privado das luzes da experiência. Um objeto “Atribuo o nome geral de objeto a tudo o que serve de ocasião ou de termo para a, operações do pensamento. (Nota do Autor)” exterior impressiona a extremidade de seu órgão; a estimulação se comunica até o cérebro. O indivíduo se acha nesta ocasião modificado de certa maneira. “Quando aventei as expressões impressão, estimulação para designar o jogo físico de nossos órgãos que serve de causa próxima da sensação, não pretendi de modo algum explicar através dessa palavra a maneira como esse jogo se realiza realmente. Apenas tomo essas palavras, na falta de outras, para exprimir um fenômeno cuja existência é demonstrada, mas cujo mecanismo me é desconhecido. As descobertas dos anatomistas nos mostraram que os nervos são os ministros de nossas sensações, que é no interior desses canais que se executa a correspondência das extremidades de nossos sentidos ao centro de nosso cérebro; mas todos os seus esforços não lograram até aqui explicar-nos qual é a natureza da substância, fluida ou concreta, contida nesses condutos tão sutis: qual o efeito que nela causa a presença dos objetos; como este efeito se comunica e se transmite; e não conhecemos melhor a relação da ação exercida pelos objetos sobre nossos sentidos com aquela que se passa no sensorium, do que a relação do, que se passa no sensorium com a, maneira de ser que ele nos dispensa. (Nota do Autor) A modificação que ele experimenta ganha o nome de sensação. Como se distinguem cinco espécies de órgãos que servem para nos transmitir as impressões dos objetos exteriores, distribuem-se em cinco classes principais as sensações que nos afetam: os sons, os odores, os sabores, as cores e o tato. O indivíduo pode encontrar em seu próprio corpo a ocasião de várias sensações diferentes, e isto de duas maneiras. De inicio, as partes externas de seu corpo podem afetar seus órgãos, precisamente da mesma maneira que os objetos exteriores; seus membros se conjugam reciprocamente; ele ouve seus gritos, ele se vê a si próprio. Em seguida, as partes internas de seu corpo às vezes agem umas sobre as outras como acontece quando temos dor de cabeça ou de estômago, quando sentimos pulsar nosso coração ou ainda quando experimentamos a sensação de fome, de sede, de fadiga, etc. Estas sensações podem ser referidas à classe das do tato seja porque compreendemos sob este nome todas aquelas que não têm um órgão particular, seja porque provavelmente resultam de uma pressão ou de uma dilatação bastante forte nas partes sensíveis do interior do corpo humano. A sensação que modifica o indivíduo é de natureza agradável ou desagradável. Então um sentimento natural o leva ou a nela permanecer ou a rechaçá-la para longe dele. Dá-se o nome de necessidade a um sentimento: aqui está a origem da vontade. A sensação assim recebida torna-se para o espírito o motivo de várias operações. A primeira é a que chamo aperceber. No momento em que uma sensação modifica o indivíduo, ela começa a ser apercebida. Aperceber e sentir são em nós duas coisas tão distintas, embora simultâneas, que frequentemente mais nos apercebemos quando menos vivamente sentimos, como cada um o sabe por sua experiência familiar. Recebendo a sensação parecemos ser apenas passivos; apercebendo-a, começamos a exercer nossa atividade. No primeiro caso, é uma impressão que nos afeta: no segundo, é uma luz que nos ilumina. Aqui está a origem de toda a ciência. A sensação assim apercebida ganha o nome de percepção e a faculdade que temos de aperceber recebeu o nome de entendimento. Nada se apercebe que não o tenhamos notado; assim, é pela atenção que a sensação se transforma em percepção e ganha, se assim posso dizer, um caráter filosófico. A atenção é o ato do espírito que se fixa num objeto para apercebê-lo. Assim, a atenção procede de nós como a sensação procede de fora. O espírito pode fixar-sé com maior ou menor aplicação. Então, a atenção terá maior ou menor força e a percepção se tornará menos ou mais clara. No estado em que suponho o indivíduo, duas coisas determinarão o grau de atenção que ele dará aos objetos: uma é a força da impressão que receberá; a outra, o interesse que eles lhe apresentam. A força de impressão recebida, sem dúvida, depende da sensação que a produziu. Mas depende também das circunstâncias em que esta sensação se dá; assim, a surpresa muito agrega à vivacidade da sensação e o efeito da surpresa é ainda acrescido pelo contraste. O interesse que os objetos apresentam a um indivíduo resulta de relações deles com suas necessidades. É preciso notar que, se as necessidades têm o poder de determinar, a atenção, por sua vez, modifica as necessidades. Nossas dores e nossos prazeres apenas nos afetam em razão da atenção que lhes damos. O poder da distração é imenso; não existe dor tão viva à qual ela não possa nos tornar insensíveis. Para que a atenção se fixe num objeto é necessário que o órgão, atingido por este objeto, reaja com certa força para aumentar e continuar a estimulação que experimentou. Assim, o ato da atenção é sempre acompanhado de um esforço físico. Mas a impotência natural ou a lassidão põem um fim a este esforço. Todos os homens não são capazes do mesmo esforço de atenção; o mesmo indivíduo não é igualmente capaz disso em diferentes idades e em diferentes momentos de sua vida. Entre as diversas espécies de sensações que acabo de definir, há uma que merece, por parte do filósofo, uma atenção particular. Quero falar das sensações do tato. Estas sensações têm a notável circunstância de serem as primeiras que devem afetar o indivíduo, de serem também a que devem afetá-lo de uma maneira mais constante e mais durável de serem enfim as que o modificam de uma maneira mais universal. Mas as sensações do tato se distinguem das outras sensações por uma segunda circunstância bem mais importante. Se, antes de receber as instruções do tato, o indivíduo escutasse um som ou fosse afetado por um odor, não aperceberia outra coisa além da impressão que destas resulta; não pensaria em referi-Ia a um acontecimento estranho, nem mesmo em olhá-la como uma modificação de seu eu, como dizem alguns filósofos. Pois, de início, nada há nestas sensações que seja próprio para adverti-lo da existência de um objeto estranho a ele mesmo; e enquanto não conhecesse nada de estranho a seu eu, como notaria seu eu? Como a percepção do eu se destacaria diante de seu espírito, de sua maneira de ser? O sentimento desta maneira de ser sempre se confundiria com o de sua existência em um único sentimento. Apenas notamos distinguindo e apenas distinguimos pela oposição. Se, ao contrário, suponho que a mão do indivíduo esteja naturalmente apoiada sobre um corpo, sobre uma bola, por exemplo, para escolher a sensação mais simples, duas novas percepções virão unir-se à da sensação. O indivíduo experimentará um sentimento de resistência. O sentimento de resistência se compõe de dois outros: do sentimento de algo estranho a ele e do sentimento de algo que é ele. Terá duas percepções, a de um corpo, a de seu eu, e compreenderá que um não é o outro, que um está fora do outro e é pela oposição que reina entre eles que aprenderá a distingui-los. Sem dúvida não penetrará a natureza deste corpo; mas sente seus limites; sente que existe; e que está fora dele. Estas duas percepções, reunindo-se àquela que o indivíduo tinha da sensação, fazem com que ele comece a apercebê-la como sua própria maneira de ser. Uma vez que tenha notado seu eu, também o reconhecerá, embora menos claramente, nas sensações de outra espécie, das quais ele se apropriará, e a percepção da qual ela será objeto se comporá de duas percepções reunidas. Aqui começam os primeiros julgamentos. Uma percepção isolada no espírito ainda não é absolutamente um julgamento. Mas quando, ao mesmo tempo, havendo a percepção de uma sensação e a do eu que esta sensação modifica ou a do objeto estranho que a produz, o indivíduo refere esta sensação seja a este objeto como à sua causa, seja a seu eu como a seu motivo; a sensação se torna um fato; estas percepções associadas se tornam um conhecimento, e o ato pelo qual o espírito as associa é um julgamento. Chamo portanto um fato à sensação considerada um estado de realidade e de existência e às relações que dela nascem; chamo julgamento o conhecimento que temos de um fato. Vê-se a razão pela qual o verbo ser, que serve para anunciar um fato exprimindo a existência, é sempre necessário para a expressão de nossos julgamentos. Sem ele teríamos apenas nomes; com ele formamos proposições e nos tornamos capazes de afirmações. Vê-se também por que o verbo ser foi chamado verbo de ligação, em latim copula; pois é na existência que as percepções se unem e se associam. Assim, do mesmo modo que pela atenção nossas sensações se convertiam em percepções, é pelo julgamento que nossas percepções se convertem em conhecimentos e passam para o reino da ciência. Portanto, não adotarei a definição que alguns filósofos dão de julgamento, quando dizem que ele consiste na comparação de duas sensações. Sem dúvida, esta comparação serve também de matéria para nossos julgamentos, como logo vamos ver; mas uma sensação muito simples pode ser, já, a oportunidade de um julgamento. Um indivíduo que em toda a sua vida tivesse apenas uma sensação, faria entretanto julgamentos; pois esta única afirmação: eu sinto, basta para constituir um julgamento. Não diria que o julgamento é a comparação de duas percepções. Pois a comparação pode se dar entre duas percepções isoladas uma da outra. Quando digo eu sinto, não me limito a comparar a percepção que tenho de meu eu com a percepção de uma sensação. A comparação abstrata da percepção de meu eu com a de tal ou tal sensação nada me ensina; pois posso muito bem existir sem ter esta sensação, e esta sensação pode existir alhures e não em mim. Quando digo: eu sinto, agrego, portanto, ainda algo, agrego o liame de uma mútua associação entre estas percepções; esta associação está fundada no conhecimento que tenho do concurso destas duas coisas numa existência comum. Não teríamos de modo algum julgamentos, se jamais apercebêssemos fatos; e todo fato exige o concurso de duas ou várias circunstâncias. E que não se diga que neste julgamento: eu sinto compara-se a percepção do eu que sente com a do sentimento, que se compara o próprio fato com uma percepção. Pois um julgamento desta espécie não seria outro senão este: quando eu sinto, tenho um sentimento, e semelhante julgamento, supondo o fato e não o afirmando, não produziria nenhuma ciência. Mas, sem me empenhar aqui numa discussão inútil sobre uma definição que será suficientemente justificada ao longo desta obra, limitar-me-ei a esta reflexão: não há ninguém que não concorde que aperceber um fato seja para o espírito a origem de todos os conhecimentos. Ora, é a este ato primitivo e fundamental, de qualquer maneira que o expliquemos, que refiro todos os julgamentos. Como há duas percepções principais às quais podemos referir e unir a da sensação, a saber, a percepção do eu e a percepção de um objeto estranho, desde a origem nossa ciência se divide em dois ramos principais, dos quais um serve de fundamento aos conhecimentos físicos, o outro aos conhecimentos morais e filosóficos. A primeira conserva o nome de ciência, ou às vezes ganha o de ciência de observação, a segunda ganha o nome de ciência de si mesmo ou consciência. Tal é a natureza desta preciosa e admirável luz da consciência, pela qual não somente apercebemos que nosso eu é modificado, que ele o é de uma maneira agradável ou desagradável, mas que somos também capazes de aperceber nossos próprios julgamentos, todas as operações de nosso espírito, como todos os atos de nossa vontade. A atenção, enquanto atua sobre as percepções que servem de objeto à consciência, ganha o nome de reflexão, pois ela reage então sobre si própria. Esta reflexão, tal como descrevi aqui suas operações, ainda é apenas uma faculdade no indivíduo que supus. Para que esta faculdade seja reduzida, para que ela desenvolva toda sua força, é-lhe preciso uma ocasião, motivos, auxílios, um exercício que ainda falta para este indivíduo. Terei oportunidade no que se segue de fazer sentir a necessidade destes diversos meios e de explicar como os obtemos. Expus todas as operações que pertencem a uma primeira sensação simples; façamos com que o indivíduo dê mais um passo. Ele dormiu, e ao despertar uma sensação que já o tinha modificado vem afetá-lo novamente. A percepção que dela tem é então acompanhada de uma nova percepção; ele reconhece esta sensação, reencontra nela seu primeiro eu, sua primeira existência. Este fenômeno recebeu o nome de reminiscência. Entretanto a reminiscência não se dá sempre no retorno de uma sensação que já nos afetou. Ela supõe duas condições; uma, que, nos dois instantes de seu aparecimento, esta sensação tenha recebido uma suficiente atenção, outra, que nossos órgãos tenham conservado alguns traços da impressão que receberam. A reminiscência é ordinariamente acompanhada de um secreto prazer. A reminiscência é também a matéria de um julgamento, pois o passado é um fato como o presente. Afirmamos um fato reconhecendo a maneira de ser que nos afetou e associamos nosso eu de outro momento a nossa sensação atual. Em vão me solicitariam uma definição mais completa dos atos simples pelos quais o espírito apercebe e julga. Há e deve haver na história do homem fenômenos primitivos que não suportam nenhuma análise e que são pontos de partida para o filósofo; se assim não fosse, remontaríamos ao infinito, de explicação em explicação. Basta que ao expô-los digamos a verdade, relatemos o que todos sabem. Todos os nossos esforços se limitam a chegar até estes fatos primitivos, a bem observá-los; então eles nos ajudam a explicar todos os outros. Portanto, agora vou supor o indivíduo numa situação mais complexa. Duas sensações ao mesmo tempo o afetam. Se estas duas sensações são novas para ele, ou ainda, se ambas constantemente o afetaram de uma maneira simultânea, a experiência nos diz que ele não poderá isolá-las uma da outra, dando-lhes uma atenção separada; ele as confundirá numa só maneira de ser. Mas, se das duas sensações que ao mesmo tempo o modificam, uma for inteiramente nova, a outra for reconhecida por tê-lo já afetado, a reminiscência de alguma maneira se interporá entre das para isolá-las uma da outra diante do ato da atenção. Uma lhe fará experimentar, por sua novidade, um espanto que lhe será inteiramente próprio e de início fixará seu espírito sobre ela; a outra se tornará o objeto de um julgamento da reminiscência que não lhe será menos particular e que por sua vez fixará o espírito. Assim, o indivíduo as distinguirá entre elas, do mesmo modo que distingue sua existência de hoje de sua existência de ontem: ele terá duas percepções independentes. Três outras circunstâncias poderão ainda concorrer para tornar estas duas percepções mais distintas. A primeira é a diferença ou a oposição que reinaria entre estas próprias sensações. Distingue-se mais facilmente um som de uma cor do que o distinguimos de outro som. Distingue-se também mais facilmente o preto do branco do que o azul do verde, etc. A segunda é a força da atenção que seria dada a estas simultâneas sensações; quanto mais notamos os objetos, mais suas diferenças se tornam sensíveis. A terceira é a relação que ela manteria com dois objetos exteriores. Pois, quando ao mesmo tempo tocamos dois corpos diferentes, sentimos que são exteriores um ao outro, do mesmo modo que ambos estão fora de nós. Os limites que existem entre eles, portanto, parecem estender-se às modificações que cada um deles nos faz experimentar. Cada um se torna como que o centro de uma esfera particular, onde vão se alojar as impressões que lhe referimos. Entretanto, seria absurdo querer olhar esta relação que fazemos de nossas maneiras de ser aos objetos exteriores, como o único princípio da distinção que estabelecemos entre as primeiras. Pois, como apenas conhecemos estes objetos pelas nossas próprias sensações, como os distinguiríamos entre si, se nossas sensações já não fossem distintas para nosso espírito? A partir do momento em que duas sensações se tornaram para o indivíduo a ocasião de duas percepções distintas e independentes, se ele as abarca numa atenção comum, se as opõe, executará uma comparação. É a última operação que lhe resta realizar sobre a sensação. Comparando duas sensações, o indivíduo aperceberá se uma é mais ou menos viva, mais ou menos agradável do que a outra; se elas têm algo de semelhante ou se diferem inteiramente; ele aperceberá, numa palavra, o que a primeira é em relação à segunda. Sua similitude ou sua diferença, suas relações de agrado ou de intensidade, são fatos. O conhecimento que delas o indivíduo tem é um novo julgamento. Assim, todo julgamento supõe uma relação entre duas ou várias percepções; mas esta relação pode ser de duas espécies: ou uma relação de associação ou uma relação de comparação. A primeira é independente da natureza intrínseca destas percepções, do estudo que delas poderemos fazer; funda-se apenas sobre a união e o apoio das circunstâncias que as determinam; a segunda, ao contrário, apenas resulta da atenção que damos à natureza destas duas percepções e não supõe sua ligação e sua dependência. Seria talvez ainda mais exato ver a comparação como o resultado de dois julgamentos, porque ela se compõe do conhecimento de dois fatos. Antes de decidir qual das duas sensações me afeta mais vivamente e de modo mais agradável, é preciso que eu já tenha apercebido que cada uma delas me afeta com tal grau de força e de agrado. Embora a comparação nasça da distinção e a suponha, ela concorre ainda para torná-la mais luminosa. É que a oposição, assim como vimos, torna a atenção mais ativa. A comparação determina as preferências da vontade. Cada objeto ordinariamente nos afeta, ao mesmo tempo, por meio de várias sensações. Estamos submetidos costumeiramente à ação reunida de vários objetos. A situação do indivíduo, mesmo no primeiro instante de sua existência, será portanto, talvez, muito complexa. Mas, o que acabamos de dizer das operações que se teriam efetuado numa ou duas sensações, nos explica o que se passaria se seu número fosse mais considerável. É preciso somente observar que a atenção apenas pode, ao mesmo tempo, abarcar um número muito pequeno de objetos e que a luz resultante de seus esforços decresce sempre na medida em que ela quer dar-lhe maior alcance. Um indivíduo reduzido somente às sensações apenas conheceria os objetos atualmente presentes que o afetariam de uma maneira imediata. Portanto, não teria desejos; pois o desejo se refere sempre a uma coisa ausente e distanciada. Ele não executaria uma ação refletida e voluntária. Pois a ação requer um motivo, e o motivo apenas pode ser um desejo. Assim, as preferências da vontade seriam sem efeito. Uma vez que este indivíduo distinguisse algumas das sensações que o afastassem simultaneamente, faria algumas análises. Pois analisar é decompor uma percepção complexa para dar aos seus elementos uma atenção separada. Mas estas análises seriam raras e imperfeitas, porque faltariam motivos para aí se deter e meios exteriores para lhe facilitar o trabalho. Estas análises apenas o conduziriam, aliás, à sensação como a seu último termo. Pois, embora a percepção de uma sensação seja sempre composta, embora contenha um grande número de percepções elementares, como estas percepções não podem existir isoladamente porque a sensação é indivisível, não terá razão nem meios para deslindá-las. Logo veremos como estes motivos e estes meios virão se oferecer a ele. Tal indivíduo não teria absolutamente signos, e os signos não lhe seriam necessários para nenhuma das operações que descrevi. Querer-se-ia dar o nome de signos aos objetos exteriores, quaisquer que sejam, ou porque são as ocasiões das sensações que o indivíduo experimenta e daí as percepções que obtém, ou porque a advertência que recebe de sua presença é também a primeira ocasião que o conduz a notar seu eu e a formar julgamentos? Sem dúvida, poder-se-á então dizer que os signos lhe são necessários. Mas notarei que este uso da palavra signo é absolutamente oposto ao que acostumamos fazer. Pois supõe-se sempre no signo uma coisa presente, vizinha de nós, que nos ajuda a compreender uma outra mais distanciada ou a nos representar uma que não está mais presente. Ora, os objetos exteriores são mais distantes de nós do que nossas próprias sensações; frequentemente não notamos os objetos exteriores, recebendo as sensações que eles nos transmitem; enfim a existência destes objetos é misteriosa, submetida às deduções, e nossas sensações são claras e imediatamente apercebidas. Também nossas sensações seriam, antes, elas próprias os signos dos objetos, uma vez que é por elas que chegamos a eles. Também a palavra sema, em grego, que está na origem de nossa palavra signo, serviria igualmente para exprimir a forma, as aparências, a imagem. Portanto, deixemos de lado uma linguagem que apenas confundiria as noções em lugar de servir para classificá-las. Querer-se-ia dar o nome de signos aos órgãos de nosso corpo, porque servem de instrumentos para a sensação? Então, sem dúvida, poderíamos ainda olhá-los como necessários às primeiras percepções. Mas esta definição seria ainda viciosa. Pois, se os signos são um instrumento para nosso espírito, é porque endereçando-se ao nosso próprio espírito, eles se fazem notar e o conduzem aos objetos que representam. Ora, de início o homem não nota seus próprios órgãos. Certamente não está aí sua primeira operação; como o que ignoramos seria o signo do que vemos? Mas, definindo os signos como o farei em seguida: meios que servem para substituir no espírito as percepções imediatas, fazendo-nos obter a ideia do que não mais apercebemos, depreende-se que não existirão signos para o indivíduo reduzido unicamente às sensações; depreende-se também que em nada lhe seriam necessários para ter percepções e distingui-Ias. Com efeito, estes próprios signos apenas podem ser sensações; mas, como estas sensações agiriam sobre nós, se elas já não fossem apercebidas e distintas? Se não notamos, se não distinguimos as percepções, como notaríamos e distinguiríamos os signos? Expondo assim o estado de um indivíduo que se encontre reduzido unicamente à sensação, sem dúvida apresento apenas uma hipótese; pois não temos exemplo de semelhante estado; mas esta hipótese nos era necessária para explicar a verdadeira história do pensamento. Agreguemos ainda mais uma faculdade, a imaginação, e teremos o homem por inteiro. I . 2 Da imaginação e da memória. - Primeiras ideias; ideias sensíveis; operações às quais elas dão lugar. A sensação é a primeira fonte de nossas maneiras de ser e de nossos conhecimentos; a imaginação é a segunda. Vou expor os fenômenos que ela origina, e em seguida examinarei as leis que ela segue. Em filosofia é sempre melhor remontar dos efeitos às causas; ademais, vejo aqui a vantagem de acabar o dicionário da língua antes de começar a falar. O órgão que havia sido estimulado pela ação de um objeto externo estimula-se de novo em sua ausência; a estimulação, em lugar de abarcar toda a extensão do sistema nervoso que compõe o órgão, permanece talvez encerrada no interior do cérebro. Disto resulta para o indivíduo uma nova maneira de ser que não é mais a sensação e a qual é preciso estudar. Uma rosa havia sido objeto de seu olhar, veio a noite, ele não mais a vê, e entretanto pensa talvez ainda na rosa que o impressionara. Ele não experimenta nenhuma sensação, entretanto algo o modifica. Esta modificação assemelha-se extremamente à sensação, embora não seja absolutamente a própria sensação. O caráter das duas maneiras de ser é o mesmo; elas apenas diferem pelo seu grau de força, de presença, de verdade. se assim posso dizer. É que sempre o mesmo órgão se acha estimulado, embora o seja em menor escala e com menos força. Aí está por que dou o nome de imagem a esta nova modificação, pois ela está para a primeira como um retrato está para o original. Chamarei imaginação à faculdade que reproduz em nós estas novas modificações. A imaginação ao reproduzir, assim como acabo de dizer, a sensação passada, o faz com todas as suas circunstâncias, isto é, imaginamos também o eu, imaginamos as operações do espírito e os atos da vontade que uma sensação pode determinar, imaginamos mesmo a advertência que recebemos da existência dos corpos quando com eles estamos em contato, imaginamos, numa palavra, tudo o que faz o objeto da percepção e da consciência. É fácil convencer-se disso através de exemplos: imaginamos um eu cada vez que pensamos em outros homens; imaginei diversas operações do espírito quando apresentei o quadro delas no capítulo precedente. Desta similitude que subsiste entre a imagem e a sensação resulta que tudo o que dissemos acerca das operações que nosso espírito efetua sobre esta, deve repetir-se em relação àquela. Eis pois um novo campo aberto para nossa faculdade de aperceber; apercebemos essas imagens, apercebemos o que elas são, apercebemos que elas nos pertencem. Como as sensações, e segundo as mesmas leis, elas são notadas pela atenção de nosso espírito e distinguidas uma das outras. O espírito as compara, e como elas são também agradáveis ou desagradáveis por natureza, escolhe entre elas e decide suas preferências. Ele as compara às sensações, apercebe o que elas têm de comum, o que elas têm de diferente, e reconhece em suas imagens a representação de sensações que o impressionaram. Uma vez que as compara, ele as analisa e, analisando-as, reencontra nelas elementos, relações, como os que apercebera nas sensações. Mas, aqui, como há pouco, este poder de decompor é apenas, no homem privado de signos, uma faculdade ainda ociosa; ele tem muito poucos motivos e meios para exercê-la. Ora, agora compreenderei sob o nome geral de ideias as imagens e os elementos ou relações que o espírito apercebe nelas, bem como as circunstâncias que as acompanham; numa palavra, compreenderei aí tudo o que imaginamos. Assim, diremos: a ideia da rosa, a ideia do eu, a ideia das operações do espírito, a ideia das relações que existem entre os objetos. Vê-se que coloco sob a palavra ideia toda uma classe de fenômenos. Em seguida, dividi-los-ei em famílias, segundo a diferença de suas origens e as características que os distinguem. Creio que, interpretando desta maneira a palavra ideia, estou conforme, ao mesmo tempo, com a etimologia rigorosa e com o uso mais geral. A palavra grega Eideia, da qual veio idea para os latinos e ideia para nós, é geralmente traduzida por imagem, simulacro. Todas as vezes que dizemos: tenho ideia de uma ação, de uma coisa, queremos dizer que a imagem desta ação, desta coisa, está presente no espírito; não supomos nunca que esta ação ou esta coisa se oferece no próprio momento ao nosso olhar. Não dizemos, de modo algum, que temos ideia de um objeto quando o tocamos, nem a de uma cor quando a vemos; e isto é tão verdadeiro que, se queremos falar de uma coisa absolutamente imaginária e sem realidade, limitamo-nos a dizer que é uma ideia, que apenas existe como ideia. Assim a ideia será para a percepção o que a imagem é para a sensação, e serão também duas classes correspondentes. Uma ideia pode ser considerada de duas maneiras, ou em sua relação com o eu que ela modifica, ou em sua relação com a percepção da qual ela se origina; mas é sobretudo sob este último aspecto que costumamos considerá-la. Como nossas simples maneiras de ser, elas nos interessariam pouco, pois de ordinário não nos afetam vivamente. Mas, como as representações de nossas sensações e de tudo o que as acompanha, elas têm para nós um alto grau de interesse, como o veremos dentro em pouco, da mesma forma que esses enviados, revestidos de um caráter público, cuja pessoa absolutamente não estimamos, que se tornam importantes e respeitáveis pelo poder que representam e de que tiram o lugar que ocupam entre os homens. Também podemos notar que em nossas línguas não procuramos jamais dar um nome diferente a uma ideia e à percepção que representa em nosso espírito; limitamo-nos a dizer: a ideia de tal coisa, como diríamos: o retrato de tal homem. As ideias, assim como as sensações, servem de objeto para a reminiscência; mas esta faculdade se exerce aqui de duas maneiras diferentes. Primeiramente, se uma ideia que a imaginação já havia aí recebido reaparece pela segunda vez, e se for suficientemente notada em cada aparição, reconheceremos que já tivemos essa ideia. Assim, lendo Rabelais, eu teria concebido a ideia da Ilha das Lanternas, e neste momento, ao retraçá-la, lembro-me de que meu espírito já a havia imaginado. Em seguida, mesmo quando uma ideia se mostra pela primeira vez a nosso espírito em sua função de ideia, se assim posso dizer, isto é, se imaginamos pela primeira vez uma sensação que nos impressionou, reconheceremos nesta ideia a representação da sensação que nos modificou. Não diremos: tive esta ideia, mas: experimentei a sensação da qual ela é a imagem. Assim, teria ido ontem ver um novo espetáculo; hoje meu espírito retraça os detalhes, lembra-se das cenas; tem as ideias das sensações que experimentou, e são essas sensações que ele reconhece nas ideias. A reminiscência assim aplicada à imaginação é o que chamo memória. Assim, quando a memória nos evoca o passado, é porque retemos as ideias dos estados em que nos encontramos, e que a isto agregamos um ato de reminiscência. De maneira que não somente julgamos o que somos, mas ainda o que fomos, quando cessamos de sê-lo. Fenômeno verdadeiramente admirável, o de poder ver ainda, pelo artifício da memória, o que não somos mais, conservar uma espécie de consciência, quando o sentimento já se extinguiu, e que nossas maneiras de ser, após seu desaparecimento, possam reaparecer em nossa imaginação, quase como essas sombras misteriosas que errariam no Eliseu, despojadas de tudo o que possuíam de material, e as quais reconheceríamos ainda, embora não pudéssemos tocá-las ou apoderarmo-nos delas! Aqui temos pois já duas espécies de julgamentos. Uns, pelos quais tomamos consciência do que somos; outros, pelos quais conhecemos o que fomos. Outra espécie de julgamentos nascerá, e sua origem merece tanto mais atenção, por ser muito importante, quanto menos ela atraiu, até o dia de hoje, a atenção da maior parte dos filósofos. Da mesma maneira que, em virtude da reminiscência, relacionamos frequentemente nossas ideias a estados que não existem mais, como acabo de explicar, acontece-nos muitas vezes também relacioná-las a objetos que supomos atualmente existentes, mas distanciados de nós, e os quais nosso espírito não pode aperceber. Isto sucede em virtude de uma lei de nosso ser, que procurarei explicar. Suponho que, ao entrar num apartamento, seja afetado pelo odor de uma rosa, embora a própria rosa não se ofereça ao meu olhar. As ideias de sua forma e de sua cor se delineiam em seguida à minha imaginação. Meu espírito então se relaciona a um objeto cuja presença não o afeta de modo algum, mas cuja existência ele supõe. Digo a mim mesmo: aqui há seguramente um ramo de rosas! Disto estou quase tão certo quanto se o tivesse visto e tocado. O mesmo ocorre quando ouço numa peça vizinha o som da voz de um amigo; não duvido absolutamente de que ele lá esteja, embora não o abraçando ainda. Conheço ou creio conhecer um fato que não apercebo. Ei-lo! exclamo, levantando-me para ir ao seu encontro; e se me perguntam como sei que ele está lá? Não é, digo então, como se o visse? Há pois, de algum modo, uma maneira de ver sem ver ou, dizendo melhor, de supor fatos que não apercebemos. Ora, estendo a esses novos atos de nosso espírito o nome geral de julgamentos. Assim, um julgamento será o ato pelo qual apercebemos ou supomos um fato que assim vem fazer parte de nossos conhecimentos; e os julgamentos se dividirão em duas grandes classes: uns, pelos quais apercebemos os fatos que afetam nossos sentidos por serem atualmente presentes; outros, pelos quais supomos sua existência, embora não possamos mais percebê-los. Chamaremos julgamentos de evidência aos que se fundam numa percepção imediata; daremos o nome de simples crença aos que são determinados apenas por aquela suposição do espírito. Qual é, pois, esta disposição singular pela qual nosso espírito supõe assim fatos que não pode mais atingir por uma intuição direta? Que é julgar, quando não é mais aperceber? Apenas saberia definir este fenômeno em si mesmo pelo que experimentamos no momento em que ele se dá. Direi, pois, que, quando o espírito não mais tem a percepção imediata dos objetos, acontece-lhe entretanto algumas vezes achar-se de novo, apenas por ocasião das representações que a imaginação lhe apresenta, numa disposição semelhante àquela em que se encontrava ao apercebê-las. Direi que todas as circunstâncias que acompanham o ato de aperceber, os efeitos que ele produz em nós, o estado em que ele coloca o espírito, tudo isto então se renova, exceto apenas este ato de percepção; de maneira que esses novos julgamentos mantêm com os julgamentos de evidência mais ou menos a mesma relação que as imagens mantêm com a sensação; que eles têm tudo em comum, exceto o fundamento em que repousam; direi enfim que é uma espécie de confiança que nosso espírito dispensa às suas ideias, em virtude da qual adota as mesmas determinações que adotaria sob o domínio das próprias sensações, dá a sua aprovação à nossa conduta e experimenta, agindo dessa forma, uma paz total, e uma verdadeira segurança. É esta segurança, esta paz, esta confiança, que exprimimos pela palavra certeza, e como ela pode ser mais ou menos perfeita, como veremos dentro em pouco, há também diferentes graus de certezas; e é isto que enunciamos através desta expressão plena de verdade que é como que o grito da natureza: Eu não vejo, dizemos, mas é COMO se eu visse. Seria vão pedirem-me uma definição mais analítica deste espantoso fenômeno. Ele faz parte desses fatos primitivos que os pensadores tentarão sempre inutilmente submeter à dissecação, e que têm muita dificuldade em admitir pela única razão de que não podem explicá-los. Todos os meus esforços apenas podem servir para ajudar cada um a anotá-lo, a reconhecê-lo em si mesmo, quando dá crédito a alguma coisa que não vê. Pois não existe ninguém a quem não suceda frequentemente, mesmo quando privado da luz da percepção, experimentar unicamente em presença de suas ideias, num grau mais ou menos forte, a mesma segurança que lhe daria a sensação, ser por ela conduzido às mesmas ações, submetido aos mesmos sentimentos, e que não esteja pronto a dizer, efetuando um julgamento sobre um fato: Eu não sinto, mas eu creio, ou eu sei, e nada mais me é preciso para meu repouso. De resto, não pretendo ainda de modo algum examinar aqui os motivos ou as causas que nos determinam a crer, nem as condições necessárias para tornar esta crença certa e legítima, ou os defeitos que a tornam viciosa. Limito-me somente a explicar o que é crer, o que se passa em nós quando cremos. Aqui está para nós uma nova espécie de conhecimentos. Conhecemos, ou cremos conhecer, coisas que absolutamente não vemos, nas representações que a imaginação delas nos fornece, e assim nossas ideias não são apenas pinturas ociosas, feitas para satisfazer nossa curiosidade, são instruções mais ou menos fiéis que consultamos em nossas necessidades. Somente que, então, os fatos, em vez de se colocarem nessa proximidade em que a sensação os mostrava, transportam-se para certa distância, a que nossos sentidos não se podem estender e que somente a imaginação pode percorrer. Este afastamento se forma de duas maneiras, ou pelo intervalo de tempo, ou pelo intervalo das distâncias. O intervalo das distâncias pode ser tomado em tantos sentidos diferentes quantas direções houver que venham desembocar em nós como em seu centro, quer dizer, espécies de movimentos possíveis para nosso corpo; e o intervalo de tempo pode ser tomado em dois sentidos, pois há duas séries opostas de tempo que terminam no presente, a saber, o passado e o futuro, isto é, há duas ordens diferentes de sucessão que podemos estabelecer entre nosso estado atual e a coisa imaginada, conforme olhemos para frente ou para trás do ponto em que estamos. Tal é o artifício ou o meio pelo qual despertamos a voz da consciência, que nos adverte não ser uma coisa atualmente presente, com a necessidade que temos de crê-la entretanto existente. Nós a transportamos para um lugar, para um tempo, que estão fora do alcance da consciência. Assim a imaginação sacode o jugo desta austera vigilância, que teria contido seu arrojo e desmentido suas afecções. Assim, transpondo os limites do estreito círculo da sensação, ela vê as portas de um mundo novo e desconhecido se abrirem diante de si, e aí nos mantém, livre e dominante, quando não faz mais do que complementar a evidência que seria, contudo, impotente para contradizê-la. Assim, nos dois exemplos que citei há pouco, supúnhamos a rosa, cujo odor nos afetava, presente em alguma parte do apartamento em que nossos olhos não podiam atingi-Ia; supúnhamos o amigo, cuja voz escutávamos, presente na sala vizinha à nossa. Eis o intervalo das distâncias. Notando na poeira os traços aí deixados pelas rodas de um carro, supomos que o carro passou por ali num tempo anterior ao instante atual; percebendo um clarão, supomos o barulho da trovoada que se vai seguir; eis o duplo intervalo de tempo. É como se possuíssemos o meio de ver além do alcance de nossos olhos, de sentir no futuro, no passado, nesse passado que a memória não atinge. Temos, pois, ao mesmo tempo, em nossos julgamentos de simples crença, um suplemento da percepção, um suplemento da memória e o instrumento de previsão. Algumas vezes uma imagem é tão viva, o mecanismo físico que a produz se aproxima tanto daquele que dá origem à sensação, que a modificação que recebemos dela se confunde com a que a sensação nos faria experimentar. Então não mais supomos as coisas distantes, passadas, futuras; nós as supomos simplesmente atuais, próximas de nós; nós as colocamos sob o domínio da consciência. É um fenômeno a que chamaria visão, e de que existem numerosos exemplos. A vontade, ligando-se aos traços da imaginação, segue-a nos vastos espaços em que ela se lançou. Conforme as coisas passadas, distantes, futuras, que ela descobre nos delineiem um prazer ou uma dor, veremos nascer o arrependimento, o temor, a esperança, o desejo, todos os sentimentos que se relacionam a objetos distantes de nós e a que chamamos afecções da alma. Uma paixão é o hábito de uma afecção muito viva. De todas essas afecções novas vão nascer também novos motivos para nossa atenção. Todas as nossas faculdades receberão, na presença desse estímulo, uma atividade totalmente nova. Grande e precioso efeito da imaginação! Os julgamentos que ela engendra dão o primeiro sinal para o nosso ser. Mas, se eles exercem sobre nós por seus efeitos uma influência útil, são contudo pouco seguros em si mesmos. Se eles sempre determinam nossos movimentos, frequentemente também eles nos desorientam. O voo de Ícaro foi o emblema da crença. Ela nos fornece asas, elevamo-nos com elas acima das nuvens; mas, não mais em terra, devemos temer a queda, e nossas novas forças tornam-se o princípio de nossos perigos. Com efeito, aos julgamentos da crença devemos atribuir o nascimento da triste distinção entre erro e verdade. Quando conhecemos ou cremos conhecer os fatos distanciados de nós pelo intervalo de espaço ou de tempo, que fazemos, com efeito? Supomos que, transportados para tal tempo ou tal lugar, experimentaríamos as sensações cujas ideias nossa imaginação retraça nesse momento. Mas essa suposição nem sempre é exata; as ideias presentes em nosso espírito não são sempre conformes às sensações que experimentaríamos no instante e no lugar determinados. Ora, a conformidade das sensações que imaginamos com a que experimentaríamos no lugar e no tempo supostos, eis a verdade. A diferença entre essas sensações constitui o erro. Assim a verdade ou o erro consistem apenas na fidelidade ou na infidelidade das relações que a imaginação estabelece e que a crença admite. Vê-se quão frívola é a questão, levantada por alguns filósofos, acerca da certeza do julgamento de evidência. Não há propriamente, em relação aos julgamentos de evidência, nem erro, nem verdade; pois não há nenhuma relação feita pelo espírito entre uma ideia e seu modelo. Errar supõe sempre uma meta longínqua à qual nos dirigimos e que não sabemos atingir; aquele que não procura de modo algum sair do círculo de sua existência atual e se transportar para onde não está não poderia se perder. A exatidão, a justeza, se dizem de um retrato na proporção em que ele for mais semelhante ao original, mas não se aplicam de modo algum ao original. É tão inútil quanto insensato querer exigir uma prova para justificar a certeza que os julgamentos de evidência nos inspiram. Jamais um filósofo, com todos os seus argumentos, conseguirá fazer duvidar um homem que vê, se ele vê, com efeito; a confiança que ele experimenta não é absolutamente um ato de seu espírito, mas sim uma lei da natureza. É a este sentimento primitivo que a filosofia devia procurar nos reconduzir, mas é aí que ela devia se deter; de outra forma ela não faria mais do que se perder num inútil labirinto. Assim o óptico dirige a luz e não a cria, assim o mecânico põe em jogo forças da natureza e não lhes dá o ser. Uma vez que, sob o aspecto da imaginação, admitimos um fato que não apercebemos, podemos estabelecer em torno dele novos julgamentos de crença; isto é, podemos supor que outro fato depende dele, acompanha-o, precede-o ou o segue; atendo-nos da mesma forma a este segundo fato, podemos supor sua ligação com um terceiro. Ora, uma sequência de julgamentos assim ligados é o que chamamos um raciocínio. O primeiro fato da cadeia é o que chamamos um princípio, pois é por ele que começamos; enfim o julgamento pelo qual reunimos o primeiro elo ao último é o que chamamos uma consequência. Vê-se por aí que os julgamentos de evidência podem servir de princípios, mas não de consequências; que eles podem ser as bases de um raciocínio e não seus resultados. Mostraremos mesmo em seguida que a arte do raciocínio consiste apenas em transmitir a outros julgamentos a luz que pertence aos julgamentos de evidência, e que uma verdade qualquer só é para nós motivo de uma certeza real, se tomar a evidência dos primeiros princípios. Expliquei a natureza das ideias e dos julgamentos. É necessário expor agora as causas que fazem nascer essas ideias, os motivos que nos determinam a efetuar esses julgamentos. Detalhei os fenômenos que nos apresenta esta grande faculdade que chamamos imaginação; resta-me examinar as leis que ela segue em sua produção. Esta pesquisa terminará o quadro de nossas faculdades naturais e a história filosófica do homem solitário. I. 3. Das leis às quais está submetida a aparição de nossas ideias. Causas que a determinam. De uma primeira espécie de signos. Suas funções. Dissemos que, na ausência dos objetos que determinaram nossas sensações, o mecanismo físico dessas sensações se renovaria frequentemente em parte, e daria então origem aos fenômenos da imaginação. Ora, que sucede para que este mecanismo seja acionado quando lhe faltam ocasiões externas? Qual é a causa que determina a estimulação do órgão quando este não está mais submetido à ação de objetos estranhos? Muitas causas concorrem para isto e agem cada uma à sua maneira. A primeira está no jogo natural das forças animais. Várias dentre elas podem estender seus efeitos sobre o cérebro e, pelo choque ou pela pressão a que submetem este órgão, podem determinar uma estimulação nas extremidades dos nervos que vêm aí reunir-se. É assim, por exemplo, que durante as horas de sono o sangue agitado seguidamente pela disposição momentânea em que se encontra o corpo, ou pelos vapores que exalam do estômago, ou enfim por qualquer outro fluido que é levado com abundância até o cérebro, tira algumas de suas partes do estado de repouso e de ociosidade em que a ausência de sensações havia deixado. A extremidade dos nervos que desemboca no sensorium é acionada, enquanto aquela que termina na superfície de nosso corpo está em repouso. Certas imagens nascem então e aparecem a nosso espírito. Elas são tanto mais abundantes quanto mais fortes forem as causas agentes, e tanto mais desordenadas quanto mais convulsiva for a maneira como agem essas causas. O mesmo fenômeno se reproduz no estado de embriaguez, devido a causas mais ou menos semelhantes. As ideias então parecem surgir ao acaso, pois sua aparição não é de modo algum regulada pela ordem de sua ligação, nem submetida ao domínio do espírito, mas unicamente determinada pelos abalos momentâneos que experimentam alternativamente as diversas partes do cérebro comprimidas pelo sangue ou pelos vapores. Enfim, mesmo no estado de vigília e de razão, o trabalho da digestão, os desarranjos que surgem no equilíbrio de nossos humores, mil circunstâncias da situação anterior de nosso corpo, as quais deixo aos anatomistas o cuidado de detalhar e de explicar os efeitos, estendem sua influência até o cérebro e produzem a aparição de certas imagens. “É preciso não confundir de modo algum o efeito que explico aqui com aquele de que falei no capítulo primeiro. Então, eu fazia notar que as ramificações nervosas espalhadas no interior de nosso corpo tornam-se, de alguma maneira, um sentido particular, e nos transmitem algumas vezes sensações. de uma espécie totalmente diferente das que temos através dos órgãos exteriores. Tais são, por exemplo, a dor de cabeça e o peso do estômago. Aqui, quero. dizer que os desarranjos que se dão no interior do nosso corpo excitam e despertam algumas vezes em nós as imagens das sensações que teríamos recebido pelos sentidos exteriores; assim, por exemplo, vemos em certas afecções nervosas todas as lembranças das dores morais da vida se retraçarem ao mesmo tempo no espírito e produzirem, por sua presença, habitual, esta disposição a que chamamos melancolia. (Nota do Autor)” Mas esta primeira espécie de causas não exerce absolutamente sobre nós uma ação habitual e contínua, e devemos considerar esta ação mais como um acidente do que como uma lei geral de nosso ser. Uma segunda espécie de causas está no poder que nós próprios exercemos sobre nossos órgãos. Como vários pares de nervos obedecem nossas ordens, basta um ato da vontade para determinar movimentos no interior de nosso corpo. Esses movimentos, por sua vez, podem reagir sobre nossos nervos e produzir neles estimulações. Tal é o exercício que faz com frequência um poeta que procura se exaltar, ou um filósofo que procura se entregar à meditação. Não é que tenhamos o poder de excitar em nós, à vontade, e de uma maneira imediata, tal ou qual ideia particular, como temos a faculdade de levantar tal ou qual dedo; mas podemos, ao menos, somente pelo efeito da atenção, produzir uma estimulação vaga e geral, mesmo prolongá-la em certos órgãos, e tornar assim mais abundantes as ideias ou mais durável a sua aparição. Mas este fenômeno, assim como os precedentes, não se apresenta de uma maneira habitual. Aliás, ele só acontecerá quando nos tenhamos exercitado em refletir sobre nós mesmos. Pois só saberíamos fazer uso de um poder depois de notar que o possuímos; e na época em que estamos a faculdade de reflexão ainda está, no indivíduo, numa inação quase absoluta. “É preciso também notar algo muito singular, isto é, não parece que nenhuma das causas que eu acabo de enumerar possa jamais estimular no cérebro um nervo que a sensação não tenha acionado alguma vez. Jamais um homem, nem por sua, vontade, nem em nenhuma crise nervosa, nem em nenhum caso possível imaginará ou um odor, ou uma cor, ou uma sensação simples qualquer que não tenha experimentado de modo algum. Digo uma sensação simples, pois ele poderia, com sensações já conhecidas, formar novos compostos; assim, podemos imaginar um hexágono sem tê-lo jamais visto. Mas, não falo aqui ainda do poder que temos para combinar nossas ideias. (Nota do Autor)” Enfim, uma última causa determina em nosso cérebro essas estimulações que dão origem às imagens, e é somente a ela que devemos atentar. Pois, além de ser a causa principal, habitual, a que devemos nossas ideias em cada momento, somente ela está sujeita a uma marcha regular e constante, somente ela produz efeitos ordenados entre si, somente ela pode ser modificada, em sua influência, pelos procedimentos da filosofia e tornar-se, em suas mãos, uma fonte de luzes e um meio de aperfeiçoamento. Esta causa é a lei de uma dependência recíproca estabelecida entre os órgãos do cérebro, que servem de ministros às sensações de toda espécie. Esses órgãos, quaisquer que sejam, cuja misteriosa natureza escapará por muito tempo e talvez para sempre às nossas observações, e que serão apenas o objeto de nossas hipóteses, esses órgãos, digo, se ligam entre si de tal maneira que a estimulação sobre um deles faz suceder por sua vez uma estimulação semelhante em um ou em vários outros. De tal maneira que, se um desses órgãos vier a ser novamente acionado pela ação de um objeto exterior, não será preciso mais que aqueles que lhe estão associados em virtude desta lei sejam despertados conjuntamente com ele e acompanhem sua estimulação total com a estimulação parcial deles; e que a ação exercida no exterior sobre um só ponto de nossas extremidades sensitivas determine assim, por contragolpe, uma ação múltipla sobre o centro de nosso cérebro. E a sensação produzida pelo nervo que o objeto externo afetou será seguida em nós por imagens que excitarão os outros nervos, associados ao primeiro; de maneira semelhante ao cortejo que se forma, em torno de um grande personagem, pela dependência do hábito ou do interesse, e que se apressa em seguir em tudo seus passos. Ora, esta associação se formará de três maneiras: 1º - Ela ocorrerá se os órgãos correspondentes a duas ou várias sensações foram estimulados ao mesmo tempo, desde que, todavia, as maneiras de ser que nos fizeram experimentar tenham recebido uma atenção suficiente; com frequência mesmo será necessário que esta estimulação simultânea se renove várias vezes. É assim que, habituados a receber conjuntamente a impressão do odor de uma rosa, de sua cor e de sua forma, não poderíamos mais ser afetados por uma delas sem que a imagem das outras apareça ao espírito. É necessário notar que a estimulação simultânea dos nervos terá de ser tanto mais repetida quanto menor tiver sido a atenção, e, reciprocamente, a atenção terá que ser tanto maior quanto menos frequente tiver sido a estimulação simultânea. Apenas no caso de uma atenção extraordinária será suficiente uma só estimulação para formar a associação. Assim, o homem a quem ocorreu um acidente grave numa estrada, que aí tenha sido atacado por ladrões, ou fraturado um membro, não poderia passar novamente pelo mesmo lugar sem retraçar as principais circunstâncias do acontecimento. 2º - Os órgãos correspondentes a duas ou mais sensações contrairão uma ligação recíproca se forem estimulados em tempos imediatamente ou quase imediatamente sucessivos. Assim, tomar uma pera, comê-la, sentir a fome diminuída, eis três sensações sucessivas. Depois que as experimentar não sucederá mais que tome uma pera sem que pense em comê-la, sem que me represente a ideia do estado agradável em que me encontraria no instante seguinte. As ideias, para se ligarem nessa nova relação, exigem as duas mesmas condições da relação precedente. 3º - Enfim, os órgãos correspondentes a duas ou mais sensações estabelecem uma ligação natural somente pelo fato de existir uma analogia próxima e sensível entre suas sensações correspondentes. É assim que, quando passamos por alguma dor, a imagem de todas aquelas que experimentamos durante a vida se retraça em nosso pensamento. É assim que, na conversação, se alguém relata uma aventura, cada um apresta-se a contar uma semelhante. Parece que uma analogia relativa àquela que existe entre as sensações subsiste da mesma maneira entre os órgãos, ou ao menos que esta supõe entre eles alguma simpatia, alguma afinidade em virtude da qual estejam submetidos a leis comuns. Quanto mais estreita for a analogia mais forte se tornará a associação, e também mais fácil e seguro será despertar a ideia. Simultaneidade, sucessão, analogia, eis pois os três princípios diversos sobre os quais se funda a ligação mecânica que determina a aparição e o retorno das ideias ao nosso espírito. Haveria uma grande quantidade de coisas curiosas a notar nos efeitos dessas leis. Como todas as leis da natureza, elas são tanto variadas, ricas nos seus resultados, quanto simples nos seus princípios. Mas esses detalhes seriam estranhos ao nosso objetivo, e podemos, por outro lado, remeter aqui cada um à sua experiência cotidiana. A lei de associação entre os órgãos não implica que um órgão, para estimular outro, tenha necessidade de ser ele próprio estimulado totalmente; assim, uma imagem pode excitar em nós outra imagem, e da mesma maneira uma série de imagens podem excitar-se umas às outras. Mas é sempre necessário que uma primeira sensação, ligada a alguma das imagens, sirva de ocasião para este movimento geral e venha impulsionar, se assim posso dizer, toda esta cadeia. Assim, as nossas sensações são propriamente as autoras da aparição de nossas ideias, e a grande lei da associação é o fundamento do poder que exercem. Se tivéssemos um registro exato do que se passa em nós próprios, veríamos todas as ideias que se ofereceram para nós distribuídas em grupos em torno das sensações que as teriam excitado, ou, se se prefere, repousando sobre cada uma delas como sobre seu eixo. E do mesmo modo, se pudéssemos também prever antecipadamente a sequência das sensações que deverão nos afetar, aperceberíamos em torno delas todas as ideias que poderão se oferecer ao nosso espírito no momento em que essas Sensações de alguma maneira vierem produzir a comoção elétrica em nosso ser. As sensações são, de certa forma, as guardiãs colocadas no limiar de nosso espírito. Unicamente elas o abrem às ideias. Começarei aqui a usar a palavra signo. Darei este nome a toda sensação que excita em nós uma ideia em virtude do liame que reina entre elas. Advirto que não é à própria sensação que este nome é dado, ela apenas o tem em relação à função que exerce. Assim, direi que o odor de uma rosa, por exemplo, é o signo das ideias de cor e de forma que ela excita. A visão do clarão será o signo da ideia de trovão. A visão de uma casa será para mim o signo da ideia daqueles que a habitam e dos prazeres que talvez saboreei sob seu teto. Esta acepção da palavra signo parece-me ser a que Condillac adotou ordinariamente. Parece-me também que é a mais conforme ao uso geral e às leis da etimologia. Signo, signum, em sua origem, exprimia algo de sensível, destinado a notar, marcar, anunciar outras coisas que não a si mesmo, ou, se melhor aprouver, um fato presente aos nossos olhos destinado a nos informar acerca de outros fatos invisíveis ou desconhecidos. Daí o uso entre nós das palavras assinar, significar, designar, etc. Ora, este efeito do signo apenas pode ser produzido pelo liame da sensação que o compõe com as ideias que por sua vez ela excita em nosso espírito. Assim, diz-se frequentemente: um signo de bom tempo ou de chuva, um signo de infelicidade ou de alegria, os signos de uma próxima revolução, etc. Assim, a palavra signo não é restrita unicamente aos elementos da linguagem, isto é, aos meios que os homens empregam para comunicar seus mútuos pensamentos; é também aplicado aos meios que a natureza emprega para determinar os pensamentos de um indivíduo. Os signos não nos representam somente as ideias dos outros homens; representam-nos também nossas próprias ideias. Decidi-me sobretudo a adotar este uso da palavra signo porque serve para classificar um gênero de fenômenos que para nós se tornarão muito importantes, quero dizer, aqueles que resultam do liame de nossas ideias com certas sensações que as excitam, porque ele exprime a propriedade comum na qual se fundam os efeitos da linguagem, porque ele exprime a relação mais filosófica que a linguagem tem com o espírito. Pois, se um signo se torna um meio de correspondência entre dois ou vários indivíduos, é porque excitou certas ideias no espírito de cada um deles, e, se os efeitos da linguagem se ligam por uma estreita relação ao progresso de nosso conhecimento, é em virtude desta propriedade que os signos têm, e da qual ele se compõe, de excitar em nós certas ideias; admirável propriedade na qual se fundam ao mesmo tempo as concepções do poeta e as meditações do filósofo e a influência que exercem sobre os outros homens! A ligação das ideias é o misterioso agente que põe o homem em relação com as coisas e com os seus semelhantes, que forma a cadeia de nossos conhecimentos e os vínculos da sociedade; é o secreto princípio que une num conjunto todas as partes do mundo intelectual e moral e que assim se torna para os espíritos e para o pensamento o que as afinidades são para a matéria. Entretanto, como importa não confundir de modo algum os signos que servem às comunicações humanas com os que apenas estendem seu efeito sobre o espírito de um único homem, ou para dizer melhor, como importa distinguir a propriedade que têm os signos de excitar certas ideias em nós daquela que em seguida eles adquirem e que os torna capazes de evocar ao mesmo tempo as mesmas ideias em vários indivíduos, terei sempre o cuidado de tratar em separado estas duas relações diferentes, e as designarei por nomes particulares. Todas as vezes que disser signo, apenas pretenderei considerar nos signos sua propriedade relativa ao indivíduo, a de lhe dar certas ideias. Direi signos da linguagem, quando também quiser considerar neles a função que preenchem em nossas comunicações com nossos semelhantes. Até o momento os signos dos quais fiz a história em nada ainda desfrutam desta segunda propriedade. Ainda em nada têm o poder de fazer conhecer a um homem o pensamento de outro homem. Logo mostraremos como os signos adquirirão esse poder. São unicamente signos pessoais, signos mudos, se assim posso dizer. Apenas representam para o indivíduo seu próprio pensamento. Estes signos também nada devem à nossa própria instituição, à nossa escolha. O valor que desfrutam está determinado por causas estranhas, pelas que decidem acerca da ligação de nossas ideias. Estas causas, dissemos ainda há pouco, são três: a simultaneidade das sensações, sua sucessão imediata, a analogia que existe entre elas. Assim, poderíamos distinguir três espécies de signos segundo a natureza da ligação que subsiste entre a sensação e as ideias que ela excita, e que constituem a virtude representativa do signo. Uma sensação que acorda a ideia daquelas que nos modificaram juntamente com ela pertencerá à primeira espécie. Uma sensação que acorda a ideia daquelas que a precederam ou a seguiram pertencerá à segunda. Enfim, uma sensação que acorda a ideia daquelas que se lhe assemelham, em qualquer momento que nos tenham afetado, se referirá à terceira. Vemos que as duas primeiras espécies extraem sua força das circunstâncias que nos fizeram experimentar certas sensações, numa certa ordem, e que a terceira espécie extrai antes sua força da própria natureza dessas sensações. Ora, como às vezes a ordem das circunstâncias é uma lei constante da natureza e outras vezes um puro acaso, teremos signos naturais e signos fortuitos. “As duas primeiras espécies de signos, supondo uma repetição mais, ou menos frequente e, assim, repousando nesta disposição mecânica do cérebro que nomeamos hábito, se chamarão signos de hábito. A terceira espécie manterá o nome de signos de analogia. (Nota do Autor)” É preciso não esquecer que a atenção é sempre uma condição necessária para o liame das ideias. Assim, os signos lhe devem também uma parte de seu valor, e entre as sensações simultâneas, sucessivas ou análogas, unicamente aquelas que forem suficientemente notadas se tornarão signos. Diversas observações agora se impõem a respeito desses signos. A primeira, que uma sensação já conhecida será para nós ordinariamente um signo, pois não terá deixado de se ligar a quaisquer outras. A segunda, que duas sensações podem ser os signos recíprocos de suas imagens correspondentes. Quero dizer, por exemplo, que como o odor de uma rosa acorda em nós a ideia de sua forma e de sua cor, a visão de sua forma e de sua cor despertaria em nós a ideia de seu odor, se ainda não o sentimos. A terceira, que uma ideia ordinariamente tem vários signos, porque, estando ligada a várias outras, ela pode ser excitada pelas sensações das quais elas são a imagem. Assim, o odor da rosa pode nos ser retraçado igualmente por sua forma e por sua cor ou mesmo pela simples visão da haste que a sustenta. A quarta, que uma sensação ordinariamente é o signo comum de várias ideias e que assim ela excita ao mesmo tempo um feixe de imagens no espírito. Esta verdade se liga à precedente. Algumas vezes as ideias que uma sensação excita estão ligadas diretamente à própria sensação; outras vezes uma ideia não está ligada diretamente à sensação, mas somente a outra ideia que esta sensação excita. Outras vezes, as ideias que uma sensação acorda não têm entre elas outros liames além daqueles que devem sua origem às circunstâncias; ainda outras vezes elas estão associadas em virtude de sua analogia simpática. No primeiro caso, o quadro que elas apresentam por sua reunião é apenas a cópia de um fato que aconteceu, ou, ao menos, a cópia das circunstâncias deste fato que foram por nós notadas. No segundo caso, este quadro pode apresentar algo de novo. Os seus elementos são mantidos, mas a combinação será nova. Isto me conduz a uma verdade importante: a imaginação é a faculdade que compõe, como a atenção é a faculdade que decompõe. Dou ao trabalho que ela aqui executa o nome de síntese, palavra grega que corresponde ao de composição, e que se acha em oposição ao de análise. Explica-se aqui a diferença que anunciara entre a imaginação considerada como faculdade passiva e como faculdade ativa. Ela é passiva ao receber as ideias que servem de elementos a seus quadros; ela é ativa combinando-os. Assim, o operário encontra os materiais existentes e em seguida é a sua mão que os trabalha. Seja que a imaginação, combinando suas ideias, se limite a copiar modelos existentes, seja que ela forme novas combinações segundo a lei da analogia, em nada lhe é dado até aqui formar combinações arbitrárias ou que estejam fundadas numa escolha arrazoada do espírito. Ainda não chegou o momento em que as veremos nascer. “Já indiquei a sua razão. O espírito apenas conseguiria, ele próprio dirigir a imaginação, quando reconhecesse o domínio que tem sobre ela. Mas tão somente a reflexão pode lhe revelar, esse domínio. A faculdade da reflexão, para se desenvolver e se exercer, exige ao mesmo tempo motivos e meios que unicamente a linguagem poderá lhe fornecer ou conduzi-la, a obter. (Nota do Autor)” Dou o nome de ideias complexas aos quadros assim formados pelo anúncio simultâneo de um feixe inteiro de ideias. Assim, o homem que desfrutasse destes signos mudos e unicamente pessoais e ainda estivesse privado da linguagem, teria já ideias complexas; mas ainda não teria nenhuma das que pertencem a esta classe, que são formadas sobre um modelo arbitrário. Uma nova observação se apresenta: os signos dos quais aqui falo apenas poderiam ser signos de imagens inteiras e não de um fragmento ou de uma circunstância destas imagens. Com efeito, observei que uma sensação, embora nos apresente ao mesmo tempo vários lados diferentes, sempre nos afeta em seu conjunto, é sempre completa ao nos modificar, e assim também a sua imagem. Portanto, é evidente que nossas sensações, quando entre elas se associam, ao mesmo tempo se unam em sua integridade; quando excitam as imagens no espírito, aí as excitam sem desmembramento. Não há possibilidade de uma imagem aparecer apenas em uma ou várias de suas partes; não há razão para que uma sensação acorde antes certas partes do que outras. Dando portanto o nome de ideias sensíveis às imagens, e o nome de ideias abstratas aos fragmentos ou às relações destas imagens, vemos que o homem privado dos signos da linguagem terá ainda apenas signos de ideias sensíveis e não signos de ideias abstratas; seu espírito apenas fixará imagens particulares e de modo algum se deterá ainda em noções gerais. Enfim, a última observação: os signos dos quais aqui falo ainda não são produzidos por nós pela reflexão, não se apresentam para nós quando queremos, como os que fundamentam a linguagem. Estes signos nada mais são do que as circunstâncias em que estamos colocados. É uma ordem de coisas estranhas para nós e que de modo algum determinamos. Para que o indivíduo que supomos pudesse procurar obter essas sensações, tendo em vista adquirir certas ideias, seria preciso que notasse nas sensações esta função de signos que elas exercem, que raciocinasse sobre o efeito que elas produzem em seu espírito. Mas suas faculdades, assim como o veremos, podem receber da linguagem apenas um desenvolvimento que o torne capaz de fazer este raciocínio e esta observação. Portanto ele tem signos, mas dos quais não dispõe de modo algum e que não conseguiria sujeitar a nenhum método. Agora que determinamos a acepção das palavras signos e ideias, e expusemos a formação das ideias e o emprego dos primeiros signos, a primeira questão proposta pelo Instituto Nacional se resolverá por si mesma. Perguntou-se se nossas primeiras ideias supõem essencialmente o auxilio signos. Esta questão se traduz pela seguinte: pode uma ideia nos aparecer de outro modo além da presença de uma sensação à qual está ligada? Esta questão, segundo o que acabamos de dizer, se resolveria pela afirmativa para os casos comuns, mas não de uma maneira absoluta; pois vimos que o liame das ideias às sensações não é a única causa da aparição daquelas, mas somente a causa mais geral. Se, conservando a mesma acepção dada à palavra signo; quiséssemos estender o nome de ideia a toda sensação distinta, estaria demonstrado que os signos em nada seriam necessários para a formação das ideias. Pois, uma vez que os próprios signos são apenas sensações repetidas, reconhecidas, e, por conseguinte, distinguidas, como sem sensações distintas poderia haver signos? Se, ao contrário, conservando a acepção com a qual revesti a palavra ideia nesses dois capítulos, restringíssemos a da palavra signo aos signos da linguagem, estaria ainda demonstrado que os signos não são de maneira alguma necessários para a formação de nossas primeiras ideias; pois, como poderíamos traduzir nossas ideias antes de ter ideias? Mas, embora os signos da linguagem não sejam necessários para a formação de nossas primeiras ideias, são, como logo o veremos, necessários para a formação de certas ideias; e a influência que sob esta relação eles exercem é a que por sua importância merece toda a atenção do filósofo, porque é aquela que se alia a nossas mais difíceis e mais importantes operações, porque é a que apresenta meios úteis de aperfeiçoamento. Já entrevimos neste capítulo quantas circunstâncias devem influir no estado do entendimento humano. Não terminarei sem observar também quais efeitos as leis da organização devem produzir e qual relação a diversidade das organizações deve ter com a diversidade do sistema de ideias que encontramos nos diferentes indivíduos. Em primeiro lugar, segundo a diversidade das organizações, o cérebro se acha disposto a dar mais ou menos vivacidade às ideias que ele reproduz. Ora, observa-se que dois tipos de temperamentos tornam-se próprios para retraçar mais vivamente as ideias: uns são aqueles em que os espíritos parecem mais pujantes ou mais desprendidos; outros são aqueles em que a fraqueza dos órgãos parece maior. Os primeiros, os reencontramos entre os habitantes dos países quentes, os segundos, entre as crianças e as mulheres. Em segundo lugar, conforme a diversidade das organizações, o cérebro pode achar-se disposto a contrair hábitos mais ou menos facilmente ou a conservá-los mais ou menos solidamente. Notemos que estas duas qualidades de modo algum poderiam se encontrar ao mesmo tempo em alto grau no mesmo homem e que ordinariamente elas estão em razão inversa uma da outra. Em terceiro lugar, a diversidade de nossas organizações introduz uma diversidade semelhante em nossas necessidades; ao menos a diversidade muda a proporção que as necessidades têm entre si. As mesmas sensações não são igualmente agradáveis ou desagradáveis para todos os homens. Portanto, não chamarão sua atenção no mesmo grau e segundo as mesmas relações; as associações de ideias, portanto, não se farão no mesmo plano. Enfim, é preciso também referir à organização a disposição particular, que encontramos em diversos indivíduos, de ligar antes as ideias segundo tal ou tal analogia. Aí está o que constitui, por exemplo, a diferença entre o que chamamos um espírito frívolo e um espírito sério. O primeiro junta antes as ideias segundo as relações próprias para engendrar o ridículo. O outro as associa antes segundo as relações constitutivas de sua natureza. Resulta daí que, antes da instituição da linguagem, o sistema de ideias de um indivíduo de alguma maneira poderia estimar-se por esta fórmula geral: O produto das circunstâncias pela organização. As circunstâncias ofereceram a matéria; a organização determinou a escolha. A dupla relação do espírito a umas e outras deu as associações das ideias. I. 4. Das diferentes funções que os signos desempenham em relação às ideias abstratas e complexas e de suas diferentes espécies Quando no capítulo terceiro atribuímos o nome de signo a toda sensação que, associada em nosso espírito a alguma ideia, guarda deste liame o poder de rememorá-la por sua presença, nós apenas consideramos nos signos uma propriedade, a que resulta de sua função excitadora, se me for permitido empregar este termo. Até o momento em que a linguagem começa a se instituir, com efeito, os signos não gozam de nenhuma outra propriedade: não conservam outra relação com as ideias que lhes pertencem. Eles determinam a aparição da ideia no espírito; em nada conduzem a atenção sobre ela. O espírito ao mesmo tempo afetado pela presença da sensação que faz a função de signo e pela aparição de uma ou de várias ideias que lhe estão ligadas apenas dirige sua atenção para cada uma delas em razão da relação que elas têm com as necessidades do indivíduo. A sensação goza, como as ideias que ela evoca, uma atenção que lhe é própria e que resulta do interesse que ela apresenta. Ela divide sempre a atenção, frequentemente a absorve quase que inteiramente. Se as ideias excitadas também a salientam, não é de forma alguma ao signo, mas à sua própria natureza, ao seu interesse relativo, que elas o devem. Assim, quando um sofrimento, evocando as imagens dos meios próprios para aliviá-lo, torna-se o signo dessas imagens, este sofrimento ocupa diretamente o espírito, ocupa-o mais do que qualquer outra coisa porque lhe interessa mais do que tudo. Mas com a instituição da linguagem começa uma nova propriedade dos signos, que logo se torna sua propriedade principal e que merece ser cuidadosamente observada. O signo então não determina somente a presença das ideias em nosso espírito, serve também para nos fazer notá-las. Ele não mais distrai a atenção; mas a dirige para elas. Se ele próprio merece ainda um olhar, é apenas para remetê-lo às ideias. Ele deixa de ser interessante para o espírito, ou, se ainda o é, é apenas porque lhe serve de meio para chegar às ideias sobre as quais tem necessidade de se fixar. Um nome qualquer tomado em si mesmo nada é para nós; está sem relação sensível com nossas necessidades, a atenção não se interrompe absolutamente nele, nem aí se concentra. Ele apenas lhe serve de condutor. Vê-se que vantagem esta nova propriedade confere aos signos da linguagem em relação a todos os outros. Como as forças da atenção são limitadas, um signo que excitando as ideias divide esta atenção com elas, ou talvez até mesmo a saliente mais intensamente que elas, prejudica sensivelmente a clareza do conhecimento que possuiríamos dessas ideias; as forças da atenção apenas deixam que as percebamos numa espécie de distância obscura e confusa. Mas o signo que apenas se mostra para excitar as ideias não desvia o espírito da atenção que lhes é devida, até mesmo lhes envia a luz que o ofuscaria; tal signo auxilia maravilhosamente as operações que necessitamos executar sobre essas ideias; para nós é apenas um instrumento e jamais um obstáculo. Mas os signos da linguagem absolutamente não exercem sempre no mesmo grau nem da mesma maneira esta função de condutores. Ela se acha modificada segundo a natureza das ideias que estes signos representam e segundo a natureza dos próprios signos. Examinando a influência destas duas ordens de circunstâncias, seremos capazes de conhecer como os signos podem ser instrumentos mais ou menos perfeitos, mais ou menos úteis. Começo por estudar como as diversas funções que os signos desempenham se acham modificadas pela natureza das ideias que representam; e esta classe de ideias, que chamei imagens simples, é a primeira que se oferece para mim. Aqui se mostra da maneira a mais sensível a reunião das funções excitadora e condutora; aqui elas seguem as leis comuns. Digo: uma rosa, pronuncio a palavra fome; a ideia de rosa, a de sentimento de fome, despertam no espírito; e a atenção, por assim dizer deslizando sobre as palavras que as evocam, vai se fixar unicamente sobre elas. Se passarmos para as ideias abstratas, veremos estas duas funções se dividir e seguir leis diferentes. Com efeito, do mesmo modo que nada há de abstrato na natureza, a imaginação também não poderia se representar nada de abstrato. Portanto a ideia abstrata não poderia aparecer por ela mesma para o espírito; sempre se apresenta para ele envolvida por ideias que se unem a ela na imagem sensível da qual ela está separada e que eu chamaria seu complemento sensível. Não existe de modo algum homem abstrato, o espírito jamais o imagina; e, quando ele quer estudar a espécie, é no indivíduo que a contempla. Portanto, um signo não pode despertar a ideia abstrata completamente só e neste estado de isolamento no qual queremos considerá-la. Ele desperta com ela todo o conjunto do complemento sensível que lhe pertence; e quando digo: o homem, esta palavra evoca para mim inevitavelmente algum homem em particular. Assim, o signo em sua função de excitador não pertence somente à ideia abstrata, mas também a todas aquelas que formam seu complemento sensível. Ele apenas pertence mais especialmente àquela, pois se encontra mais constantemente ligado a ela; entretanto, de modo algum, ele se une sempre às mesmas ideias complementares. Pois, dizendo o homem, posso igualmente pensar em Pedro ou em Paulo, evoco tanto um como o outro; nas comparações das quais resulta a abstração, a ideia abstrata permaneceu sempre comum, os complementos sempre variaram. Mas é em sua função de condutor que o signo irá restringir o que ele tem de muito vago e de muito extenso neste primeiro efeito; e é propriamente esta segunda função que o constitui como signo nesta relação. Não somente nada absorve em si mesmo a atenção do espírito, mas ainda ele não lhe permite deter-se nas ideias complementares; ele a leva diretamente para a ideia abstrata, ele a concentra apenas nela. Não podendo evitar despertar mais ideias do que as necessárias, ao menos ele ensina para o espírito aquelas às quais deve se ater; e faz de tal maneira que, se as outras também se introduzem, sejam entretanto o menos possível importunas. Embora as duas principais funções do signo não concordem absolutamente entre si, e não se exerçam de forma alguma de uma maneira uniforme, quando ele deve nos representar uma ideia abstrata, não é preciso temer, sendo a linguagem bem feita, que isso possa resultar num obstáculo ao efeito que se deve esperar dele, seja no comércio que os homens têm entre si, seja nas meditações nas quais um só indivíduo se entretém consigo próprio. Com efeito, o fim que nos propomos ao falar é o de fazer conhecer o pensamento que se tem no espírito. Para levar isto a cabo é preciso haver duas condições essenciais; a primeira, que as ideias que compõem este pensamento estejam presentes ao espírito daquele que nos escuta; a segunda, que ele lhes preste atenção; pois, o que são no espírito ideias que nele apenas se notam? Assim também na meditação, e por razões semelhantes. Só se descobrem as relações de uma ideia quando a notamos; o espírito apenas existe em sua própria atenção. Portanto, não importa que o signo, na qualidade de excitador, desperte precisamente tal ou qual extensão de ideias, contanto que excite justamente aquelas que se têm necessidade de notar, e que apenas dirija a atenção unicamente para elas. Passo às ideias complexas e começo por aquelas que chamei ideias complexas de primeira ordem. Distingui então quatro espécies; as ideias complexas sensíveis, sensíveis abstratas, abstratas mistas, enfim as ideias complexas dos modos simples. 1º - O signo de uma ideia complexa sensível desempenha, ao mesmo tempo, o papel de excitador e o de condutor da atenção em relação às ideias sensíveis elementares das quais ela se compõe. Somente sua função de condutor é aqui mais extensa e nesta ocasião nos presta um novo serviço. Pois ele não se limita a nos fazer notar cada uma dentre elas; anuncia-nos que devemos olhá-las como formando um só todo, ao mesmo tempo que nos ajuda, com efeito, a envolvê-las num olhar comum. De alguma maneira ele empresta àquela reunião sua própria unidade; reflete ao mesmo tempo em todas as ideias a luz de que ele próprio goza; torna-se para o espírito como que um centro comum, no qual as percebe, como que um eixo ao qual estão ligadas. Sem o signo de ideia complexa não teríamos nela mais do que uma pluralidade de imagens; com este signo temos um verdadeiro quadro. 2º - Para conceber a maneira como o signo se comporta em relação a estas ideias complexas que resultam de ideias abstratas e variadas, é necessário apenas lembrar o que dissemos sobre o papel que ele desempenha em relação à ideia abstrata elementar e supor em seguida que ele nos ajuda a uni-las em uma atenção comum, assim como o fazia quanto à ideia complexa sensível. Portanto, há aqui três operações devidas aos signos: a primeira é o despertar desta ideia abstrata elementar acompanhada de seu complemento sensível; a segunda, o ato pelo qual a atenção separa esta ideia abstrata de seu complemento; enfim, a terceira, aquilo pelo que ela une todas essas abstrações que formou. Assim, a função de excitador e a de condutor têm aqui, sob duas relações diferentes, uma diferente extensão. 3º - É apenas necessário reunir as observações que acabamos de fazer sobre as duas primeiras espécies de ideias complexas para compreender o auxílio que retiramos dos signos em relação àquelas que são formadas por sua mistura. Aqui a ação dos signos é ainda mais variada, embora não se exerça de nenhuma maneira nova. 4° - Esta ação é muito mais simples em relação às ideias da quarta espécie, seja considerando os signos agindo como excitadores de ideias ou como condutores da atenção. De início, como excitadores, sem dúvida, despertam a ideia abstrata elementar e o complemento sensível que lhe pertence; mas, uma vez produzido este primeiro despertar, eles nada mais têm de novo para nos rememorar, não mais têm necessidade de agir sobre nós em virtude de algum outro liame; eles se limitam a nos fazer somente repetir certo número de vezes a mesma imagem, como o operário que com o mesmo molde reproduz muitas vezes a mesma estampa. De alguma maneira, trata-se do exercício contínuo da mesma potência. Em seguida, como condutores, sem dúvida, eles devem nos fazer separar pela atenção a ideia abstrata fundamental; mas, uma vez executado este trabalho em relação a ela, o mesmo se acha realizado para cada uma das outras, pois é a mesma abstração tirada do mesmo fundo. Trata-se apenas de prolongar a linha de demarcação traçada sobre a primeira; uma só operação fornece todas as outras. E, quanto a este ato que consiste em reuni-Ias, é evidente que se torna muito mais fácil. Com efeito, quando os elementos variavam em sua natureza, nós nos achávamos obrigados, para cada um, a dispensar uma atenção distinta a fim de não confundir os traços que os caracterizavam, e esta atenção separada apenas podia ser concedida graças àquela que devia uni-los. Mas, quando a atenção não é mais chamada a se interpor entre eles para estudá-los à parte, quando ela nada percebe de singular em cada um deles e quando eles apresentam para ela todas as cores como semelhantes, então ela tem necessidade, para ajuntá-las, de um esforço bem menor. De alguma maneira ela as vê como uma só e a comunidade de suas relações prepara a do olhar que eles obtêm. As quatro classes de ideias que acabo de percorrer se encontram na segunda ordem de composição, como na primeira; as mesmas reflexões aí se aplicam. Encontram-se somente modificadas por uma observação geral: os signos aqui não mais agem de uma maneira direta e imediata, qualquer que seja a função que eles exerçam. Com efeito, o signo da ideia complexa de segunda ordem não desperta ele próprio no espírito as ideias elementares das quais é formado, pois seu feixe é bastante extenso para que se possa contemplá-las em seu conjunto. Ele se limita a nos lembrar os signos das ideias intermediárias que serviram de meio para sua combinação. Ele toma em seguida a virtude excitadora desses segundos signos para retraçar detalhadamente os elementos que lhes pertencem. Às vezes será necessário chamar em seu socorro várias séries de signos intermediários, e a cadeia pela qual ele nos reconduzirá às ideias primeiras será tanto mais longa quanto mais extensa era a própria combinação. Os signos das ideias complexas de segunda ordem são antes, portanto, signos de signos do que signos de ideias. Poderíamos compará-los ao papel moeda e ao "bilhete de banco" (cheque), que não são por eles mesmos, como o dinheiro, meios de troca, porque não têm nenhum valor intrínseco, mas recebem de nossas convenções o poder de circular no comércio, pois representam então o numerário que podemos, por meio deles, obter quando quisermos. O mesmo dizemos da maneira como se exerce aqui nos signos a função de condutor. A atenção despertada pela presença do signo não se dirige desde logo para as ideias primeiras que serviram de base para a combinação; ela se concentra de início nos signos que nos são evocados; em seguida ela se reúne em particular, alternativamente, em cada um deles para atingir ou as ideias que ele excita, ou ao menos os signos que ele próprio representa, até que, de salto em salto, ela redescerá aos elementos primitivos donde havia partido. Assim, o signo de segunda ordem não nos mostra os objetos, mas somente o caminho que é preciso seguir para descobri-los; é para nós como que o guarda exterior de um palácio, que se limita a abrir as portas de entrada e nos confia em seguida a outros guias, para os pormenores da visita. Entretanto, como nos acostumamos a olhar nossos signos como representando nossas ideias, quando reunimos essas ideias sob um denominador comum, pensamos verdadeiramente em congregá-la num centro único e não mais vemos nelas somente os caracteres que constituem a noção particular de cada uma delas, mas nós as consideramos ainda como as partes de um só todo; dessa maneira, o signo simples, ao mesmo tempo que nos enuncia ideias que não percebemos, mas que ele nos dá a faculdade de obter, nos exprime também a condição de sua ligação numa unidade comum. E que não se pense que seria indiferente para nós representar todas essas ideias elementares por uma série de signos capazes de mostrá-las para nosso espírito; pois, além do signo simples, sob o qual combinamos todos esses signos detalhados, e que abrevia singularmente nossos discursos, e assim, de uma só vez, economiza o tempo daquele que fala e daquele que escuta, se oferece um grande número de circunstâncias nas quais necessitamos estudar essas ideias em sua relação com o todo que elas concorrem para formar; e essas relações se tornam, como logo mostraremos, os assuntos mais úteis e mais fecundos de nossas meditações. Portanto, pode-se dizer que não existem realmente para nós ideias complexas de segunda ordem. Pois não existem ideias para o espírito senão aquelas que ele percebe; apenas existem, a bem dizer, signos dessas ideias. Estes signos representam, para nós, o poder de que gozamos para evocar todos os seus elementos primitivos e a vontade que temos de dar a esses elementos uma atenção comum. Possuímos, no momento, no signo da ideia de segunda ordem, como o comerciante em sua caixa, somas ocultas a nossos olhos; mas das quais podemos tomar conhecimento enumerando-as detalhadamente quando o julgamos conveniente. As forças físicas do homem produzem, ao se desenvolverem, um efeito tanto mais sensível quanto menor for a massa sobre a qual elas se exerçam. O mesmo se dá em relação às forças de seu espírito. Os signos que agirão com maior sucesso serão portanto aqueles que, seja evocando ideias, seja fazendo com que nós as notemos, deverão dividir esta ação entre assuntos menos variados. É preciso concluir que, após os signos das imagens simples, os das ideias complexas da quarta classe composta de elementos idênticos serão aqueles que encontrarão na própria natureza dessas ideias a razão de uma mais perfeita influência. Resta-nos examinar como esta influência pode ser modificada pela natureza dos signos. Já observamos no começo deste capítulo que os signos anteriores à instituição da linguagem exerciam, em relação às nossas ideias, apenas a função de excitadores. Portanto, se queremos considerar a função de condutor como a mais importante de todas aquelas que pertencem aos signos, se ao menos nós a inserimos no número daquelas que lhes são essenciais, o nome signos não mais convirá rigorosamente às sensações que apenas servem para excitar em nós certas ideias; ele se restringirá unicamente aos elementos da linguagem. Mas, permanecendo fiéis às acepções que adotamos, nos limitaremos a dizer que estes primeiros signos são os mais imperfeitos de todos, que são signos apenas para a Imaginação enquanto que os da linguagem o são, ao mesmo tempo, para a imaginação e para a atenção; esta observação basta para traçar entre eles uma linha de demarcação tão exata quanto simples. Os signos indicadores têm um caráter precisamente oposto; pois apenas exercem a única função de condutor: tais são, por exemplo, um grande número de palavras que costumeira mente chamamos pronomes demonstrativos e artigos, como também algumas proposições, conjunções e advérbios que são em nossas línguas apenas signos indicadores e que dirigem a atenção para as ideias expressas pelos signos que os precedem ou que os seguem sem excitar nenhuma por eles próprios. Portanto, trata-se ainda de signos imperfeitos; pois eles supõem que os objetos nos são apresentados no próprio momento ou que, ao menos, suas ideias nos são retraçadas por outros meios; estão na linguagem ou na percepção apenas como simples auxiliares; servem para completar e determinar o efeito dos outros signos ou o que os objetos que nos afetam exercem sobre nós por sua presença. Quanto aos signos que reúnem neles as propriedades dessas duas primeiras espécies, nós os distinguimos em quatro classes: signos naturais, análogos, figurados e arbitrários. “Quando digo signos arbitrários, é necessário sempre lembrar que não quero dizer de modo algum que haja signos, inteiramente arbitrários, e cuja instituição não tenha ao menos sido dirigida por algum motivo; quero dizer somente que a analogia que eles conservam é tão fraca, e tão longínqua, o motivo de sua instituição tão profundamente esquecido, que eles parecem, com efeito, arbitrários para a maior parte daqueles que os empregam. (Nota do Autor)” 1° - Os signos naturais foram de início simples excitadores; pois em nada diferiam, em sua origem, dos signos que precederam a instituição da linguagem e quando empregados, em seguida, com reflexão para exprimir as ideias das quais eram já o resultado natural, não mais foram considerados como fatos, como coisas, mas como simples expressões; eles se confundiram em seus efeitos com os signos arbitrários; quero dizer que eles não deveram, como estes, suas propriedades a nenhuma analogia, mas unicamente a uma longa repetição, com a única diferença de que eles pertenciam a um mais antigo hábito e, por conseguinte, agiam com uma força maior. 2° - O signo arbitrário não tem por ele próprio nenhuma relação direta com a ideia que ele representa. Oferecido ao olho ou ao ouvido de um homem que de modo algum ainda não o conheceu, não retraça nele nenhuma ideia, não dá nenhuma direção para a atenção de seu espírito; o hábito resultante de uma longa repetição lhe dá somente a faculdade de despertar as ideias que lhe foram associadas e acostuma o espírito a tomá-lo por guia quando ele quer nelas se fixar. Assim, seja como excitador, seja como condutor, sua função é tão limitada quanto poderia sê-lo: excitando a ideia, ele não a torna mais sensível; traça seu caminho para a atenção, mas não lhe fornece nenhum auxílio para percorrê-la. 3° - O signo análogo se mostra bem mais eficaz. De início, como excitador, junta a força da analogia à do hábito; portanto, ele desperta a ideia toda mais pronta e vivamente. Em seguida, como condutor, não se limita a mostrar os objetos; aproxima-os ainda mais de nós; tira as ideias abstratas do mundo intelectual no qual elas parecem ter-se refugiado e as transporta para a região dos sentidos; de alguma maneira torna presentes as coisas afastadas de nós pelas distâncias do espaço e do tempo: é como se ele reduzisse para nós o trabalho tão penoso da meditação pela simples ação de ver e ouvir. Semelhantes a estas ficções das primeiras idades que personficavam todas as noções intelectuais e morais, os signos análogos se tornam, nas mãos da filosofia, um suplemento para nossa fraqueza e ignorância, eles parecem reconduzir as ideias mais abstratas para o domínio dos sentidos, eles dão um corpo a todos os nossos pensamentos, sob todos os títulos merecem ser considerados, seja em relação à imaginação, seja em relação à atenção, como os mais perfeitos de todos os signos. Esta perfeição, entretanto, não é sempre igual; depende da natureza da analogia referente a estes signos. Quanto mais fraca for esta analogia, mais os signos se aproximarão da imperfeição dos signos arbitrários; ao contrário, quanto mais a imitação se tornar completa, mais potentes se tornarão os efeitos. Aliás, observamos que há duas espécies de analogias; uma que chamei sensível e que consiste na relação de semelhança que liga o signo radical à ideia elementar a qual ele está destinado a representar de maneira que aquela se torne a imagem sensível desta; a outra, que chamei lógica, é particular aos signos das ideias complexas ou abstratas e consiste na relação de suas desinências ou de sua composição com a classificação ou formação dessas ideias. Ora, os signos que, ao mesmo tempo, reunirão esta dupla espécie de analogia e que sob uma e outra relação apresentarão a analogia mais completa terão atingido o mais alto grau da perfeição possível. 4° - Os signos figurados, considerados sob a relação de excitadores, participam das vantagens que acabamos de reconhecer na linguagem da analogia. Como ela, exercem um grande poder sobre a imaginação; frequentemente exercem até mesmo um poder ainda maior. Às vezes, particularizam uma ideia que era bastante geral ou então simplificam uma ideia que era bastante complexa para representá-la vivamente ao espírito. Outras vezes, chamam em seu auxílio as circunstâncias que acompanham uma coisa ou os efeitos que dela resultam para tornar esta coisa mais facilmente presente e, ao mesmo tempo, excitá-la com a ajuda de várias alavancas. Outras vezes, enfim, atribuem aos objetos propriedades que eles não têm e isto para torná-los mais sensíveis. O sucesso será tanto maior quanto melhor se souber escolher entre estes diversos meios ou reuni-los em maior número. Vê-se que, para obter este efeito, o signo figurado deve frequentemente excitar mais ideias do que realmente se destinou a representar; mesmo frequentemente é por essas ideias estranhas que ele começa; é a elas que ele deve sua influência mais ativa. Outras vezes, ao contrário, ele começa por despertar menos ideias do que na realidade deve exprimir e se atém de preferência, no grupo, a algumas que lhe parecem ser dotadas de uma maior energia. A perfeição da qual ele goza, como excitador, deve-se portanto entender unicamente na força pela qual ele desperta as ideias e jamais na exatidão dos resultados aos quais ele conduz. Teremos ainda ocasião de desenvolver esta reflexão mais adiante. A observação que acabamos de fazer nos leva a notar a imperfeição que se encontra inevitavelmente ligada aos signos figurados, olhando-os sob a relação de condutores; Com efeito, ampliam ou restrigem bastante a atenção de nosso espírito. Algumas vezes interpõem entre nós e os objetos formas estranhas e então a atenção que dedicamos a estas prejudica a atenção que aquelas exigem. Outras vezes concentram toda a luz numa única face do objeto e então, de alguma maneira, eles estendem sombras sobre as outras, mascarando-as para a nossa vista de maneira que o espírito não mais discerne as diversas partes de sua ideia e não mais sabe reuni-Ias num só feixe. Eles desfiguram, em todos os casos, as formas reais dos objetos, desnaturam as proporções deles, molestam a liberdade de nossas operações intelectuais. Que importa que deem ao espírito um impulso mais vigoroso se o desviam do atalho que ele deve seguir? Portanto, se os signos figurados, de todos, são os mais eficazes sob a primeira relação, são também, de todos, os mais imperfeitos sob a outra relação. As reflexões recolhidas neste capítulo nos conduzem a uma consequência geral - o valor de um signo qualquer pode ser definido da seguinte maneira: A reunião de ideias que este signo nos faz notar, ou nos conduz a notar, como estando a ele associadas. Digo: ou nos conduz a notar, para tornar esta definição aplicável aos signos das ideias complexas de segunda ordem que nada nos fazem notar imediatamente. Apenas falo da propriedade que eles têm de nos fazer notar as ideias porque a de excitá-las está aí compreendida como sua condição essencial, e, aliás, ela é apenas necessária como preparatória do efeito daquela. Estudando as propriedades dos signos, até aqui nós os supomos ligados de uma maneira fixa e invariável às ideias que eles representam. Examinamos a força e não a certeza de seus efeitos. Agora importa observar se estes signos, com efeito, são sempre fiéis em suas funções, se eles retêm constantemente as ideias que queremos fazê-los representar; é preciso traçar a história das causas que determinam sua incerteza. I. 5 Das ideias complexas cujos signos se ressentem de erros cometidos na instituição e emprego da linguagem. Cada um pode notar por sua própria experiência como a estreita conexão que o hábito efetuou em nosso espírito entre as ideias principais que se acham fixadas em torno de um signo coloca obstáculos para a atenção distinta que necessitaríamos dispensar-lhes para fazer uma completa enumeração delas. À força de as considerar conjuntamente, acabamos por confundi-las, perdemos o poder de nos deter na linha que as separa. Assim, o estudo das combinações, como o das abstrações, tem suas dificuldades embora talvez elas sejam menos gerais e menos difíceis de transpor. Disporíamos sem dúvida de uma medida comum para fixar as acepções dos signos das ideias complexas se, quando temêssemos um mal entendido pudéssemos sempre retomar aos signos das ideias elementares que lhes servem de fundamento. Pois estas, uma vez que sempre se prestam menos a enganos, será suficiente que se encontrem em nossa enumeração para que estejamos quase seguros de estar de acordo sobre o conjunto. Mas estamos, a maior parte do tempo, na impossibilidade de recorrer a semelhante procedimento, e a causa disto é a pobreza de nossas línguas. As ideias elementares são frequentemente desprovidas de signos, enquanto os atribuímos sempre às suas compostas; a prova disto está neste grande número de sensações que jamais receberam nomes em nossas línguas, ainda que elas se encontrem todas nos objetos que estudamos, aos quais atribuímos signos, embora muitas vezes mesmo elas formem aos nossos olhos o caráter distintivo de sua espécie. Não necessito dizer que essas observações adquirem maior grau de força na medida em que as ideias complexas resultam de uma mais alta combinação. Quanto mais numerosas se tornam as condições que elas reúnem, e mais fácil omitir alguma, mais provável se torna que a omitamos de fato. Enfim, embora seja possível reunir num alto grau as analogias sensível e lógica nos signos das ideias complexas que não se distanciam muito das ideias simples, estes auxílios se perdem ainda na medida em que nos elevamos a composições mais vastas. Pois, então, se apreendemos apenas um só traço do objeto, a analogia será fraca e incerta; se queremos aprender todos, será preciso um discurso em lugar de um signo. Excetuemos entretanto as ideias complexas dos modos simples que desfrutam, sob este aspecto, de um privilégio particular, como logo mostraremos. Notaremos que é de preferência no comércio das ideias abstratas e complexas que os sofistas têm sempre procurado enganar os homens. Elas são como essas moedas usadas cuja efígie se reconhece com dificuldade ou como esses cheques (billets de banque) que contêm tantas designações que apenas uma longa pesquisa pode nos garantir contra o perigo da falsificação. Mas quanta gente possui a vista demasiadamente fraca para examinar bem a moeda que se lhes apresenta, ou demasiados afazeres para consagrar a isto o tempo conveniente! Quantos sistemas de filosofia deveram sua aparente novidade apenas à arte, que seus autores possuíam, de mudar a linguagem dos que os tinham precedido, e quantos anos não foram necessários muitas vezes para remetê-los a seu verdadeiro lugar, reconhecendo o artifício no qual estavam fundados! E que o julgamento exigiria a determinação exata e a comparação atenta das ideias empregadas nas antigas e nas novas obras; isto é, que seria preciso refazer, de alguma forma, essas próprias obras. Uma ideia revestida de um novo signo é como um rosto oculto sob a máscara; um olho penetrante e exercitado pode reconhecê-lo, mas a multidão é sempre enganada. Pelo contrário, quantos espíritos sábios e profundos foram esquecidos por seus contemporâneos, por não terem podido fazer-se compreender, e receberam apenas da posteridade a justa admiração que seus trabalhos mereceram, porque somente a posteridade soube entender sua linguagem! Mas, se não se tivesse chegado a penetrá-los, não é porque não se soube elevar-se à altura de suas concepções, e que o pensamento de seu século permaneceu sempre mais estreito que o pensamento deles? A palavra morre ao chocar-se com uma superfície opaca; ela só ressoa num corpo ele próprio elástico e sonoro. Enfim, quanto tempo perdido em discussões metafísicas, políticas ou morais, por não ter-se podido assegurar, através de provas certas e fáceis, da acepção que se ligava às palavras! Se o homem com o qual trato chama ouro aquilo a que chamo prata, o erro é logo percebido e retificado. Se o moralista com o qual raciocino chama sábia uma ação que acho condenável, a última coisa que faremos será suspeitar que essas palavras tenham para nós uma acepção idêntica, e necessitaremos um longo discurso para lograr transmitir nossas mútuas definições. Entretanto, as ideias abstratas e complexas são, como logo mostraremos, as únicas que desfrutam do augusto privilégio de nos conduzirem à ciência. Consolemo-nos, pois, dos esforços que elas nos custam para ser bem determinadas; e não nos espantemos absolutamente se o campo de nossa inteligência necessita, para tornar-se fértil, ser regado com nosso suor. Como as mesmas causas que ocasionam a variedade das acepções dadas aos signos entre os homens determinam também a inconstância daquelas que um único indivíduo a eles atribui, devemos concluir que a língua das ideias abstratas e complexas, pelo fato mesmo de se prestar mais aos equívocos daqueles que conversam, deve também estar mais exposta às infidelidades daquele que pensa; e que não nos lembraremos melhor do valor que demos aos signos dessas duas línguas do que adivinharíamos aquele que os outros a eles atribuem. Se percorremos agora detalhadamente as quatro classes gerais de ideias complexas que distinguimos, necessitaremos apenas aplicar as mais simples consequências das observações que acabamos de fazer, para reconhecer que aquelas que forem formadas de ideias sensíveis se determinarão mais facilmente do que as que resultam ao mesmo tempo de ideias sensíveis e abstratas; e que essas últimas, por sua vez, se ressentirão menos das imperfeições da linguagem do que as ideias complexas formadas de ideias abstratas e mistas. Quanto àquelas dos modos simples, elas exigem considerações particulares. SEÇÃO II DAS OPERAÇÕES QUE NOSSO ESPÍRITO EXECUTA SOBRE AS IDEIAS E SOBRE OS SIGNOS E COMO ELAS SERVEM PARA A AQUISIÇÃO DE NOSSOS CONHECIMENTOS II. 1 Emprego que fazemos dos julgamentos abstratos. Primeira espécie de descobertas às quais eles nos conduzem. Novas verdades abstratas. Se as ideias não nos interessam absolutamente por elas próprias mas somente pela relação que elas mantêm com os fatos, que utilidade podemos reconhecer em compará-las entre si? Se os raciocínios que formamos com as ideias apenas concernem à identidade, se se limitam a reconhecer o mesmo no mesmo, a que descobertas podem eles nos conduzir? Se o emprego que fazemos dos signos no raciocínio se reduz a retraçar, por intermédio deles, a sequência de nossas próprias operações, que novos conhecimentos podemos obter com seu auxílio e como chegaremos alguma vez a sair, através de semelhante trabalho, do âmbito de nosso primeiro pensamento? A solução desse problema, que apresenta um paradoxo aparente, e cujo só enunciado frequentemente espantou os filósofos e os geômetras, foi tentada algumas vezes e jamais fornecida, parece-me, de maneira satisfatória. À solução deste problema se referem entretanto as questões mais importantes. Somente ela pode nos esclarecer acerca da verdadeira utilidade da metafísica e sobre sua ligação com os conhecimentos positivos. Somente ela pode nos mostrar como cada ciência tem necessariamente sua metafísica particular e qual o apoio que esta lhe fornece. Somente ela enfim pode nos conduzir ao objetivo que almejamos neste trabalho, quer dizer, a apreciar a influência direta que nossos signos podem exercer sobre nossos conhecimentos e fornecer-nos assim o meio de aplicar todas as investigações que fizemos precedentemente. E necessário não dissimulá-lo de modo algum. A falsa ideia que se fez acerca da eficácia dos julgamentos abstratos “Chamei julgamentos abstratos os que têm por objeto apenas fixar a relação que nossas ideias possuem entre. si, não que eles não sirvam às vezes para fixar também a relação de duas ideias sensíveis, mas porque consideram as ideias apenas como estão em nosso espírito, e independentemente de sua ligação com a ordem das realidades. Empregarei essa expressão algumas vezes de modo abreviado. Mas determino aqui o seu sentido, pois poderia estar sujeito a algum equívoco. (Nota do Autor)” foi uma fonte fecunda dos mais graves erros em filosofia. Tal é, com efeito, a triste consequência de todos os julgamentos viciosos que carregamos acerca da natureza de nossas operações intelectuais que, fazendo-nos adotar maus métodos, fazendo-nos tomar falsos caminhos, conduzem-nos a abusar de nossas próprias forças e induzem os melhores espíritos a um grande número de desvios. A antiga filosofia atribuía um poder excessivo, uma espécie de virtude mágica aos julgamentos abstratos, e a exagerada confiança que ela tinha neles foi a principal causa desta funesta indiferença que ela manteve em relação às luzes da observação e ao trabalho das experiências. Como esforçamo-nos por observar quando estávamos convencidos de que bastava combinar as próprias ideias para tudo adivinhar e tudo saber? Quando olhávamos como falíveis, imperfeitos, desprezíveis todos os conhecimentos ministrados por nossos sentidos, e que, ao contrário, as verdades extraídas da comparação de nossas ideias estavam decoradas com o belo nome de verdades puras, intelectuais, e pareciam ser a fonte eterna da mais cristalina, da mais sublime luz? Que digo? Quando, a crer em Malebranche, elas eram uma emanação da própria essência divina? Despojando-se dos preconceitos escolásticos, libertando-se desta superstição ridícula a respeito dos julgamentos abstratos, os modernos metafísicos não souberam fixar ainda, de maneira exata e constante, o justo grau de confiança que merecem os julgamentos abstratos e a utilidade precisa que devemos esperar deles. Ou, subestimando sua verdadeira eficácia, clamaram demasiadamente os inconvenientes dos sistemas metafísicos e acreditaram que' esses sistemas não podiam nos conduzir a nenhum resultado; ou, ao contrário, no extremo oposto, sem perceber a contradição em que caíam em relação a si mesmos, pensaram que toda ciência se reduzia a um sistema de signos, o que significa, em outros termos, que toda ciência se reduz a uma meditação abstrata. “Condillac deu o exemplo desses dois erros opostos; e poderemos nos convencer disso se compararmos o segundo volume de seu Ensaios de Metafísica com sua Lógica, sua Gramática e a Língua dos Cálculos. A maior parte de seus discípulos recebeu dele esses erros e não sei de nenhum, dentre os que o sucederam, que tenha pensado em repará-los. (Nota do Autor)” Pois, assim como já o demonstrei, e como se compreenderá melhor ainda pelo que se segue, esses julgamentos abstratos são os únicos nos quais os signos cumprem uma função essencial. As verdades novas que nos podem ser úteis descobri-las se dividem em duas grandes classes. Umas são tomadas no reino de nossas ideias, outras na ordem dos fatos; ou, se se prefere, umas consistem nas relações que nossas ideias mantêm entre si e as outras nas relações que nossas ideias mantêm com os objetos que representam. As primeiras são as verdades abstratas, como um axioma das matemáticas. As outras são as verdades experimentais, como o conhecimento das leis da natureza. E, primeiramente, como, comparando nossas ideias, podemos encontrar nelas alguma outra coisa além do que aí havíamos visto ao formá-las? Que nova luz se pode fazer, a seu respeito, nos julgamentos fundados na identidade? Sei, que como nossas ideias são a obra de nosso espírito, apenas encontraríamos nelas o que nós mesmos colocamos. Mas seria errado crer que percebemos sempre tudo o que aí introduzimos, ou que notamos todas as relações, e que assim não resta nenhum novo conhecimento para ser obtido sobre suas propriedades através de um novo estudo. Quando recebemos pela primeira vez ideias simples ou ideias complexas de primeira ordem, percebemos ordinariamente de maneira suficiente o que constitui a sua natureza e os elementos de que resultam. Mas, se não podemos esperar nenhuma nova luz sobre formação intrínseca, quantas relações não podemos entretanto descobrir entre elas e outras ideias, e como chegar a isto sem as submeter a uma nova sequência de comparações e análises? Assim, quando formei as ideias de dois e de quatro, e dei-lhes seus signos, notei, sem dúvida, suficientemente bem o que constitui cada uma delas em particular para que me reste ainda alguma coisa a apreender. Entretanto, quando, aproximando uma da outra, observo que quatro é o dobro de dois, o resultado desta comparação é para mim uma verdadeira descoberta. Formando a ideia, determinando a sua essência, localizamos sem dúvida nela o fundamento, a condição de todas as suas relações. Mas a própria relação absolutamente não existe ainda para o nosso conhecimento, não se mostra ainda de modo algum para os olhos de nosso espírito, e é somente efetuando novas comparações acerca desta ideia que ela pode se desvelar a nossos olhos. O que dissemos sobre as ideias simples e sobre a primeira ordem de ideias complexas aplica-se também, como vemos, às ideias complexas de segunda ordem. Mas estas nos fornecem, mesmo depois de sua formação, assunto para um estudo bem mais variado e para bem mais numerosas descobertas. Primeiramente, nisto bem diferentes das ideias de uma ordem inferior, elas contêm frequentemente elementos que não percebêramos e de cuja existência não suspeitávamos. Com efeito, uma ideia complexa pode ser muito bem determinada por nós, embora ignoremos os elementos primitivos que a constituem. Uma ideia complexa não é absolutamente urna ideia percebida por nosso espírito; ela está colocada, por sua natureza, fora do alcance do espírito. Ela apenas existe para ele graças ao poder que ele tem de se retraçar todos os detalhes dela. Ela é pois verdadeiramente determinada quando este poder é para nós inteiro e completo; isto é, a partir do momento em que possuímos um signo capaz de nos evocá-la em todos os detalhes. Mas frequentemente instituímos ou admitimos este signo, assinalamos-lhe seu valor, sem levar em conta todas as ideias elementares que ele deverá representar; contentamo-nos com fixar a escolha dos diversos signos intermediários cujos valores queremos reunir apenas nele, e cujas acepções haviam sido já determinadas por operações anteriores. É assim, por exemplo, que, associando as duas palavras cinquenta e mil, determino o número cinquenta mil, embora não tenha fixado de modo algum no mesmo momento a ideia de unidade, nem mesmo a ideia de cinco, que serve de base a esta combinação. Executamos apenas de alguma forma, nesta ocasião, uma operação mecânica e gramatical. As condições são estabelecidas embora não se tenha ainda procurado saber os resultados que elas devem produzir. As ideias são colocadas a nossa disposição ainda que não tenhamos de modo algum feito uso do poder quê temos sobre elas; somos como um comerciante ao qual se remete ou uma sacola de dinheiro ou um fardo de mercadorias. Ele os possui, embora lhes ignore o conteúdo. Toca apenas a ele examiná-los à vontade, para contar o primeiro e fazer o inventário do segundo. Será pois para nós uma descoberta, quando, usando este poder que a formação de nossa linguagem nos deu, mas que não tínhamos ainda absolutamente exercido, quando, chamando em nosso auxílio essas ideias intermediárias em relação às quais não havíamos feito mais do que associar seus signos, viermos a reconhecer que certas ideias elementares faziam parte deste todo desconhecido cujas condições havíamos fixado. Sabíamos apenas que o signo da ideia complexa de segunda ordem nos representava certos signos médios; saberemos agora que ele nos representa tais e tais ideias primeiras. Teremos feito o inventário de nossas próprias riquezas. Poder-se-ia pois considerar, sob este aspecto, a linguagem como uma espécie de álgebra, em que se contenta primeiramente com indicar as operações sem executá-las; poder-se-ia comparar as descobertas que ela nos dá ocasião de fazer a esses resultados que" obtemos reestabelecendo as quantidades primeiras no lugar das letras de que nos tínhamos servido para designá-las. Tal é, por exemplo, o raciocínio de que se servirá para provar que é da essência de um governo sábio e prudente possuir um caráter de moderação. Pois, decompondo a ideia de sabedoria, aí reencontramos a de regular as suas forças a fim de fazer delas um uso mais duradouro; esta nova ideia nos reconduz ao dever de empregar apenas com reserva os meios de temor e de rigor. Havíamo-nos contentado primeiramente com associar os signos de duas ideias, sabedoria, governo; unindo-os assim, não havíamos absolutamente percebido todas as condições de que se compõe a primeira; e quando chegamos a reconhecê-las e a referi-Ias à ideia complexa de um governo sábio, obtemos uma nova verdade, embora tenhamos apenas feito a estimativa do valor dos signos que usávamos. Em segundo lugar, as ideias complexas de segunda ordem encerram também ideias intermediárias que não havíamos percebido de modo algum ao formá-las e que chegamos a encontrar ao submetê-las à análise. Lembremos aqui que uma mesma ideia complexa de segunda ordem pode ser formada por vários sistemas de combinação muito diferentes entre si, isto é, os mesmos elementos podem se agrupar de diversas maneiras antes de se reunirem em um só todo. Mas, como para obter a ideia complexa é suficiente seguir um só desses diversos métodos, poderemos, decompondo-a, utilizar outro método que havíamos negligenciado, e restarão tantas ideias intermediárias novas a descobrir quantos sistemas possíveis diferentes daquele que julgamos conveniente adotar. Suponhamos a ideia complexa N de segunda ordem, formada pelas quatro ideias elementares a, b, c, d, reunidas pelas duas intermediárias A, B, da seguinte maneira: a____ A___ b____ N c____ B___ d____ Suponhamos também que, combinando as quatro, ideias elementares de outra maneira, tivesse formado duas ideias complexas A', B', fazendo: a__ b__ A’ B’ c__ d__ Pela comparação dessas duas ideias novas A', ou B', com a ideia N, e a análise desta, saberei que ela contém as duas, o que ignorava antes; uma vez que, formando-a, só havia percebido nela as duas ideias A e B muito diferentes destas últimas. Assim, quando, formando pela primeira vez a ideia de 9, eu a obtive repetindo três vezes o número 3, ela é sem dúvida determinada para meu espírito tanto quanto possa sê-lo. Entretanto, não percebi absolutamente nela as ideias dos números 5 e 4 que ela contém, como a de 3, ideias que eu aí encontraria, no entanto, seguindo o caminho de uma nova análise. Dá-se o mesmo quando, tomando o diâmetro de um círculo como base de um triângulo inscrito neste círculo, concluo daí que este triângulo será retângulo, isto é, terá um ângulo reto. Teria podido igualmente, traçando um triângulo-retângulo e colocando então o ângulo reto como condição, inscrevê-lo num círculo e concluir que a hipotenusa era o diâmetro deste círculo. Conforme tenha escolhido um ou outro sistema para a formação do triângulo, deverá oferecer-se a mim uma descoberta, ao seguir retrospectivamente o sistema dantes negligenciado. Enfim, analisando duas ou várias ideias complexas, descobriremos entre elas relações que não havíamos absolutamente notado ao formá-las, que não teríamos mesmo jamais podido perceber atendo-nos à ordem observada na sua formação. É este o terceiro e último gênero de descobertas às quais nos conduzem os julgamentos efetuados sobre as ideias complexas de segunda ordem. Esta nova propriedade, nesses julgamentos, resulta da precedente. Com efeito, todas as relações de nossas ideias se reduzem, como vimos, a uma identidade total ou parcial. Só poderíamos pois reconhecer as relações de duas ideias complexas de segunda ordem aprendendo-as através de intermediários comuns que servem de fundamento ou à sua igualdade perfeita, ou à sua semelhança, ou à compreensão de uma na outra. É assim que, para comparar as ideias de filosofia e de tolerância, retorno à de justiça que é seu intermediário comum. Se, pois, ao formar as diversas ideias complexas que se trata de comparar entre si, não tivesse absolutamente recorrido a esses intermediários determinados que unicamente podem fazer conhecer sua mútua dependência, conquanto não me desviasse de maneira alguma em minha análises do modo de combinação que vinha seguindo, não chegaria absolutamente a conhecer o que essas diversas ideias fazem umas às outras. Mas esta verdade que procuro e que ainda não obtive, embora possua, sem dúvida, todas as suas condições, se desvelará a meus olhos no momento em que soube encontrar um modo de decomposição mais favorável. Os matemáticos e os geômetras convirão comigo que é à arte de apreender os intermediários comuns entre duas combinações variadas que se reduz o talento de descobrir sua propriedades respectivas, e que é da dificuldade que se tem para deslindar esta ordem de decomposição conveniente em meio a todas aquelas que se oferecem que nasce toda a dificuldade de semelhante trabalho; donde resulta naturalmente que as descobertas se tornam tanto mais difíceis quanto mais complexas forem as ideias sobre as quais trabalhamos. Propõe-se esta questão: quais são as instituições mais apropriadas para formar a moral de um povo? Decomponho a ideia da moral de um povo, e aquela dos meios que podem servir para formá-la, para aí destacar as ideias dos meios que podem se referir às instituições. De outro lado, decomponho também as diversas ideias das instituições conhecidas ou possíveis para destacar todas as circunstâncias que se referem à moral pública e examino como a ideia complexa dessas circunstâncias se liga à das condições que havia reconhecido como necessárias para o progresso da moral no seio de uma nação. Assim executei, sobre as ideias complexas que me haviam sido apresentadas, uma dupla análise, numa ordem diferente da que havia servido para sua composição, para encontrar entre elas intermediários comuns que pudessem fundar sua ligação recíproca. Da mesma maneira ainda, quando quero calcular o valor dos três ângulos de um triângulo, isto é, a relação que manteriam entre si, e com a circunferência total os arcos de círculo interceptados por cada um deles num círculo comum, de que seus lados seriam as cordas, traço um círculo pelos três pontos que formam as três extremidades do triângulo; e, considerando então esses ângulos como outros tantos ângulos inscritos neste círculo, chego a descobrir que seu valor total é igual à metade deste mesmo círculo, pois, de um lado, cada ângulo inscrito tem a medida da metade do arco que ele intercepta; e, de outro, os arcos reunidos que interceptam aqui esses três ângulos formam a totalidade do círculo. Vê-se que para chegar à relação desejada recorri a uma nova ideia intermediária, a do arco interceptado entre os dados do ângulo inscrito, arco que, sendo precisamente o dobro daquele que mede este ângulo, ofereceu-me consequentemente o termo comum que me era necessário para calcular seu valor. Qualquer que seja a demonstração matemática, geométrica ou metafísica, qualquer que seja, numa palavra, o raciocínio abstrato que queiramos analisar, seremos sempre conduzidos a uma das três descobertas que expliquei, isto é, a encontrar numa ideia complexa ou um elemento, ou um intermediário, ou enfim uma relação que não havíamos de modo algum percebido ao formá-la. Os desenvolvimentos que acabamos de fazer nos explicam em que sentido devemos dizer que uma proposição está contida numa proposição, e que todo artifício do raciocínio consiste apenas em nos fazer encontrar uma na outra. Uma proposição abstrata é apenas a expressão de certa relação entre as ideias. Ora, uma relação está contida em outra relação precisamente da mesma maneira e pela mesma razão que uma ideia esta contida em outra ideia. Se possuíssemos apenas ideias simples não haveria absolutamente ligação, geração entre os julgamentos de que ela seria o objeto. A relação que existe entre duas ideias complexas é apenas a reunião das relações simples que subsistem entre seus elementos. Aquela resulta pois necessariamente destas e as supõe quando é estabelecida. Ora, da mesma maneira que há ideias demasiado complexas para que possamos perceber todos os seus elementos, há relações demasiado compostas para que possamos notar imediatamente todos os elementos que elas contêm. O raciocínio, fazendo-nos traduzir nossos signos, ajuda-nos a reconhecer nas ideias muito complexas os elementos aí introduzidos; ele nos ajuda a descobrir também a ligação da relação simples à relação composta. A ideia elementar ou intermediária que o espírito não percebe, não existe, com efeito, em parte alguma; ele possui apenas o poder de obtê-la. A relação simples ou composta que não é absolutamente notada no mesmo momento também não existe, e temos apenas igualmente o poder de descobri-la. Este poder repousa em nossos signos e seremos necessariamente reconduzidos à ideia e à relação pelas próprias condições de nossa linguagem, se sabemos a isto ser fiéis. Não é necessário, pois, tomar num sentido próprio e rigoroso esta expressão contida que nos oferece a máxima que citei acima: ela quer somente dizer que uma proposição contém as condições essenciais sobre as quais outra proposição está fundada, porque ela encerra as mesmas ideias que aí se reproduzem, disfarçadas em outros signos ou, ao menos, porque ela própria se compõe de signos que representam estas ideias e que devem a elas nos reconduzir. Teremos alguma dificuldade, sem dúvida, para encontrar à primeira vista em todos os raciocínios abstratos o trabalho que acabo de descrever. Mas, se refletirmos que em todos esses raciocínios apenas seguimos a grande cadeia da identidade, isto é, não fazemos mais do que reconhecer, através dessas diversas combinações, a identidade total ou parcial das ideias revestidas de signos diferentes, nos convenceremos sem dificuldade que todas as nossas meditações abstratas têm igualmente por objetivo seguir uma série de relações idênticas. Pois, como essas relações se associariam entre si por uma estreita dependência, senão em virtude da grande e eterna lei da identidade? Eis por que se costuma dizer que uma verdade geral contém todas as verdades particulares que com ela se relacionam, que um princípio contém todas as suas consequências. Pois a verdade geral se forma das mesmas ideias que se reproduzem nas verdades particulares. O princípio contém as mesmas ideias sobre as quais se desenvolvem as deduções. Isto nos explica ainda ç que é a fecundidade particular a certos princípios. Um princípio será tanto mais fecundo quanto mais as ideias que ele compara se reencontrarem num maior número de combinações. Pois a cadeia da identidade se tornará tanto mais extensa e nos conduzirá a resultados tanto mais numerosos. Se nos lembramos que as ideias complexas foram instituídas por nós apenas para nelas encontrarmos um apoio para a extrema fraqueza de nossa concepção, que a impossibilidade em que estamos de apreender ao mesmo tempo um grande número de objetos foi só o que nos levou a essas combinações cujo instrumento é a linguagem, concordaremos que é apenas esta fraqueza que torna também os raciocínios necessários. Um espírito cuja atenção fosse bastante vasta para abarcar de uma vez tudo o que se lhe oferecesse não necessitaria distinguir a relação composta das relações simples, a ideia complexa das ideias elementares. Não haveria pois para ele nenhuma verdade de dedução. Todas seriam princípios. Os novos conhecimentos abstratos que obtemos através dos julgamentos sobre nossas ideias não consistem pois, de modo algum, em obter ideias primitivas de uma nova espécie; isto é, um cego de nascença, por exemplo, não chegaria jamais, apenas com o auxílio de seus julgamentos, a obter a ideia de vermelho. Mas eles nos revelam a ligação e a dependência que existem entre as ideias que obtivemos e nos dão, assim, o poder de estender de umas às outras a cadeia de nossas deduções. É necessário reconhecer, entretanto, que seria uma utilidade bem limitada, esta dos julgamentos efetuados sobre nossas ideias, se todas as descobertas às quais eles nos conduzem se reduzissem a novas relações entre nossas ideias mesmas. Pois, uma vez que nossas ideias, consideradas nelas próprias, não nos apresentam nenhum interesse sensível, uma vez que em nada importa para nós saber quais são as ideias que possui nosso espírito, mas sim quais são os fatos presentes, passados ou futuros que se referem à nossa existência, não conheceríamos nada, através desses longos e penosos raciocínios, do que temos verdadeiramente necessidade de saber. Mas, se, descobrindo novas relações entre nossas ideias, eles nos ajudam a estabelecer também novas relações entre nossas ideias e os fatos, então estas primeiras instruções, longe de serem estéreis, adquirirão para nós o mais alto grau de importância. A solução da primeira parte do problema nos reconduz pois à solução da segunda, e, mostrando como os julgamentos abstratos nos fornecem novas luzes sobre os fatos, farei conhecer o valor que eles deram às relações de nossas ideias. II. 2 Influência exercida pela língua sobre o desenvolvimento das faculdades do espírito. Pode-se notar quanto o desejo de compreender nossas palavras exercita ativamente a atenção das crianças. Se um objeto se oferece aos seus olhos elas o notam com dificuldade; se um nome ressoa em seus ouvidos, elas se empenham em que ele lhes seja explicado, e agrada-lhes repeti-lo, fixando a coisa à qual elas o relacionam. O abade de l'Epée conta que, tendo dado aos seus surdos-mudos cartas sobre as quais estavam escritos os nomes de diversos objetos sensíveis, era para eles uma ocupação muito divertida, e a qual não abandonavam, recordar a interpretação que eles acreditavam ligar a essas palavras e propor uns aos outros adivinhá-las. Quando uma criança sabe rudimentarmente sua língua, ela já fez uma infinidade de observações e de comparações cuja ideia não lhe teria surgido em toda a sua vida se ela tivesse permanecido em estado selvagem. Aí está, para dizê-lo de passagem, a razão pela qual nos é tão difícil observar nelas a natureza. São já pequenos sábios quando começam a nos falar e frequentemente apenas devolvem nossas próprias ideias quando cremos compreender as suas. Sem dúvida, daí decorre que entre os antigos a mesma palavra logos significava ao mesmo tempo ciência e fala. Tinha-se reconhecido que cada palavra representava uma observação ou um conhecimento adquirido; tinha-se visto que a linguagem se enriquecia cada dia pelas descobertas e que as descobertas por sua vez se propagavam pela linguagem. A instituição e o emprego da linguagem, ao mesmo tempo em que nos fornecem novos motivos para observar, nos apresentam também novos assuntos de observação. Quantos sons, quantas figuras que não teriam jamais impressionado nossos olhos ou nosso ouvido vêm preencher o lugar talvez o mais importante na ordem de nossas sensações, constituir a mais longa ocupação de nossa vida! Exigirão uma atenção muito penetrante uma vez que os matizes que os distinguem são frequentemente muito delicados; exigirão uma atenção constante uma vez que a distração, ao nos fazer perder um só signo, frequentemente por isso mesmo nos faz perder também a inteligência de todos os outros. Se se agrega a este solo de trinta ou quarenta mil palavras que formam nossas línguas todas as modificações que cada uma delas pode sofrer segundo as funções que desempenha no discurso; se se pensa que a cada palavra falada corresponde uma palavra escrita que frequentemente não tem com ela nenhuma analogia, quantas observações não se encontrarão acumuladas unicamente no estudo mecânico de uma língua! Que trabalho para o espírito, o de distinguir somente o material desses signos, de notar suas analogias, de estudar as leis às quais estão submetidos, de aplicar essas leis em cada circunstância particular! Mas os objetos novos que a linguagem submete a nossas observações não se reduzem a uma nomenclatura de palavras escritas e faladas. Ela oferece ao nosso espírito assuntos bem mais importantes, bem mais graves que sem ela jamais teriam sido notados. Trata-se das abstrações que, sem o auxílio dos signos, jamais poderíamos atingir; trata-se também dos fatos muito complexos para serem apreendidos imediatamente e que jamais poderíamos abarcá-los. Um caminho maior e mais útil se abre para o espírito humano; a natureza, percebida sob um aspecto inteiramente novo, parece ter mudado de face; ela nos deixa entrever as maravilhosas e inesgotáveis relações que ligam todas as suas produções; elas nos deixa penetrar no segredo de suas leis. Concebe-se que a linguagem, levando-nos a fazer novas observações, multiplicará nossas necessidades na proporção de nossos conhecimentos. Ora, por sua vez, essas necessidades determinarão novas observações; a vontade, achando-se mais esclarecida, tornará a atenção também mais ativa. Multiplicando as necessidades dos homens, o progresso da razão disciplinou a violência daqueles que as experimentaram; pois, em moral como em mecânica, quanto mais uma força se divide, mais ela perde sua intensidade. Os costumes se amenizaram, e o entendimento, deixando de ser dominado por impetuosas e brutais paixões, insensivelmente adquiriu lima doce e agradável liberdade. Logo ele teve também suas necessidades, suas paixões; começou a trabalhar para si próprio e a encontrar sua recompensa em seus próprios esforços. A curiosidade do espírito despertando na serenidade da alma rompeu as estreitas barreiras nas quais a atenção do homem estava enclausurada e, abrindo diante delas as portas do universo, a curiosidade lhe disse: "Vê e admira". Novas necessidades ao lado de novos conhecimentos nos conduzirão a novas ações e estas ações, por sua vez, produzirão certos efeitos. Eis mais um assunto presente para nossas observações e, por conseguinte, uma nova ocasião para o exercício de nossa atenção. Enfim, a linguagem multiplicará singularmente para nós o número das ideias arquétipas; pois, sem seu auxílio, apenas poderíamos ter ideias arquétipas sensíveis e fechadas na primeira ordem de composição. Ora, como as ideias servem, assim como os fatos, de matéria para a atenção de nosso espírito, a criação das ideias arquétipas, embora nada agregue aos fatos que nos são conhecidos, permitirá também um novo e salutar exercício. Nada repetirei aqui sobre o que disse na primeira seção acerca do auxílio mecânico que a linguagem fornece à atenção, seja para fixar os objetos presentes, fornecendo-lhes como guia os signos indicadores, seja para distinguir suas próprias ideias, dando-lhes, nos signos, uma espécie de eixo sensível; limitar-me-ei a indicar que o uso repetido deste auxílio, assim como o feliz hábito de ser fixado por estes signos, deve dar enfim à atenção algo de mais forte e de mais constante. É se acostumando a fixar que o olho aprende a ver. O último e talvez o mais importante serviço que a linguagem presta à atenção, aquele que a prepara sobretudo para os trabalhos filosóficos, consiste em tornar a própria atenção dependente do espírito, em nos ensinar a arte de fixá-la e de dirigi-la convenientemente. Que é nossa atenção para nós enquanto não sabemos dela dispor? E como dela disporíamos antes do uso dos signos artificiais? Mas como apenas podemos falar depois de nos termos dado conta de nosso pensamento, como apenas podemos encontrar um signo conveniente para uma ideia depois de ter analisado esta mesma ideia, como é preciso que nossas falas, para que tenham um sentido, apresentem entre elas alguma ligação e sequência, achamo-nos constrangidos a recolher nossa atenção sobre nós mesmos, a subtraí-Ia da ação dos objetos externos, a nos garantir das distrações que nos assediam; assim, pouco a pouco, acostumamo-nos a dar leis para nossa pressa e um freio à nossa impaciência. Ora, é preciso notar que, no mesmo instante em que aprendemos a dispor de nossa atenção, aprendemos também a dar-lhe a direção mais conveniente; descobrimos os métodos, acostumamo-nos a usá-los. Sabe-se que o método natural e usual de observação é a análise; ora, a linguagem nos faz analisar antes mesmo que tenhamos ideia deste procedimento e que suspeitemos de sua utilidade; insensivelmente a análise torna-se-nos familiar, a experiência nos mostra suas vantagens, e nosso espírito, despertando dessa profunda letargia em que transcorrera sua primeira infância, acha-se naturalmente no rumo que conduz à verdadeira ciência. A reflexão, da maneira como a defini, não é mais do que a própria atenção, enquanto voltada para as operações de nosso espírito e os atos de nossa vontade. E tempo de salientar esta máxima importante, tão frequentemente anunciada ao longo desta obra, de que "sem a linguagem, a reflexão seria sempre estéril; que a linguagem determina sua atividade e seu progresso". O homem começa por estudar tudo que o rodeia, antes de sonhar em estudar a si próprio. As mais simples experiências lhe mostram que certos objetos externos podem prejudicá-lo ou ser-lhe úteis; e suas necessidades, que são seus primeiros mestres, o obrigam a distingui-Ias. Mas, enquanto ele permanece solitário, nenhuma experiência lhe ensina ainda o que pode ganhar com se conhecer; para ele seu interior é como um país obscuro, cujas riquezas ignora, cuja existência mesma desconhece. Que motivo o conduziria a tentar através dele uma viagem? Qual rota tomaria para ali chegar? As primeiras tentativas para se comunicar com seu semelhante referem-se apenas aos objetos exteriores; um se contenta em mostrar ao outro os objetos que olha como úteis ou como prejudiciais à sua existência, a lhe descrever as ações que permitam obter esses objetos ou afastá-los de si. Mas, logo estas vagas indicações não são mais suficientes para o grande fim da linguagem; quero dizer, a necessidade de ser assistido. Já não basta mais fazer conhecer um objeto, é preciso anunciar qual é sua relação com nosso bem-estar. Já não basta mais pintar um fato; é preciso agora exprimir se ele serve de objeto ao desejo, à esperança ou ao temor; é preciso dizer se o testemunhamos ou se apenas o prevemos. Se omitimos qualquer uma dessas circunstâncias, o indivíduo que não tem toda a nossa experiência, que não pode adivinhar nosso pensamento, não saberá encontrá-la em nosso discurso e a linguagem permanecerá sem efeito, pois a análise não terá sido completa. Daí a necessidade de conhecê-la o mais possível a fim de melhor traduzi-Ia; daí o movimento que nos dobra sobre nós mesmos para melhor nos mostrar aos outros; daí o trabalho da reflexão que, de início, é apenas um instinto cego e no qual nós apenas procuramos as vantagens que nos proporciona. Passa-se com nossas próprias faculdades o mesmo que com todas as grandes descobertas que são apenas devidas a uma espécie de acaso. Como a absoluta ignorância é necessariamente apática, a natureza parece querer encarregar-se do cuidado de nos fazer encontrar estes primeiros conhecimentos que não procuraríamos obter porque nem mesmo desconfiaríamos de sua possibilidade. De início, a linguagem, que era apenas destinada a instruir os outros acerca de nossas necessidades físicas, nos conduziu ao estudo de nosso próprio pensamento; o segredo de nosso ser se desvela ao nosso olhar surpreso. Assim a grelha do arado bate e levanta um mármore antigo e então as ruínas de uma célebre cidade são reencontradas e atraem a curiosidade dos cientistas. Entretanto, para deslindar o que se passa no fundo de nosso pensamento não é suficiente necessitá-lo e desejá-lo. E preciso um guia que nos introduza neste obscuro labirinto. O primeiro olhar que se lança em seu próprio interior nada apreende, precisamente porque descobre demais. Sem dúvida, de longe abarcamos mais objetos; mas é apenas deles se aproximando que os distinguimos. Ora, a linguagem, assim como a vimos, nos obriga a este estudo detalhado de nossas modificações Íntimas. Como frequentemente seu conjunto não pode exprimir-se por um único signo, também o espírito não pode contentar-se em apreendê-los por um único ato da atenção. Aquele que escuta, como aquele que fala, encontra-se igualmente conduzido para esta análise. O primeiro procurando compreender um discurso, o segundo procurando discursar. Como apenas vemos os outros homens em nós mesmos, aprendemos a perceber nosso próprio pensamento, supondo penetrar naquele que os ocupa. Diria rapidamente: negligenciamos e desprezamos muito a arte de escutar. Aquele que escuta bem, também pensa bem. A conversação é como o vento que carrega consigo as sementes e as espalha em sua passagem. Por sua própria natureza, o estudo de si mesmo apresenta grandes dificuldades. Aqueles que se entregaram a este estudo o sabem muito bem por sua experiência: o progresso mínimo que se fez nas ciências do homem o atesta para todos os outros. Nosso eu, embora presente em cada pensamento, nele sempre se disfarça. É um ser leve que foge diante do olhar; é algo de rebelde que sacode sem cessar o jugo ao qual a atenção quereria sujeitá-lo. Ele está todo em nossa existência, mas parece nada ser para o espírito. Por fim, a linguagem vem nos oferecer um meio para apreender esta ideia fugitiva e cadeias para fixá-la. Um som, uma figura ligando-se a estas percepções abstratas, as aproximam de nossa fraca inteligência; as analogias das palavras conferem uma forma e uma cor a estas modificações internas que pareciam escapar ao império dos sentidos. A imaginação, que parecia ser a inimiga natural da reflexão, ao contrário, vem lhe prestar seus serviços; encontrando um meio de pintar o eu, de alguma maneira ela o transporta para fora de nós e então refletir não é mais do que ver. O uso frequente e habitual dos signos, forçando-nos a repetir o trabalho necessário para sua instituição, tornou cada dia mais abundante a luz que esta instituição nos havia feito obter. Pois, cada discurso que se mantém necessita sempre de algum retorno sobre si mesmo. A reflexão, portanto, se aperfeiçoará na medida em que soubermos falar melhor e tivermos mais ocasião de fazê-lo. Enfim, chegará o momento em que a reflexão, reagindo sobre si própria, e se contemplando numa espécie de espelho, descobrirá toda a utilidade de seus próprios trabalhos. Aprendendo qual é o domínio que exercemos sobre nossas próprias faculdades, desejaremos melhor conhecê-las para fazer delas um melhor uso: o homem espantado, pela grandeza e excelência de seu ser, sentir-se-á chamado por um poderoso encanto a fazer delas assunto de suas mais sérias meditações. Cedendo a esta sublime necessidade, encontrará em si próprio uma sociedade frequentemente mais útil e mais delicada do que a de seus semelhantes; a sabedoria terá seus discípulos como a ciência, e o comércio interior que cada um entretém com sua própria inteligência completará o que as comunicações exteriores da linguagem tinham começado. II. 3 Dos efeitos próprios à linguagem da ação Não é de modo algum suficiente ter fixado de uma maneira geral os princípios que determinam a influência de cada espécie de signos, é preciso ainda aplicar esses princípios aos diversos sistemas de linguagem adotados pelos homens; é preciso acrescentar àquelas explicações as observações que se referem ao material de signos empregados em cada um desses sistemas; é preciso, enfim, comparar os resultados obtidos nessas diferentes pesquisas para julgar a influência relativa que as diferentes linguagens exerceram sobre o progresso do espírito humano. Três meios se ofereceram naturalmente ao homem que procurava traduzir o seu pensamento; o primeiro estava nos movimentos de seu corpo; o segundo nos órgãos da voz; o terceiro nos objetos exteriores, estranhos a ele, mas aos quais ele podia dar certa disposição, ou ao menos à presença dos quais ele podia ligar certas lembranças. Daí resultaram, depois de um grande número de modificações sucessivas, esses três sistemas de linguagem que chamamos a linguagem da ação, a fala e a escritura. Se queremos emitir um juízo verdadeiramente filosófico acerca dessas três espécies de linguagem, não basta considerá-las apenas na forma que elas conservam entre nós, é preciso ainda estudá-las tais como deviam ser em sua origem, tais como puderam ser nas diferentes épocas da sociedade; é preciso examinar quais as propriedades de que estavam então revestidas. Assim, por exemplo, teríamos apenas uma ideia bem falsa e bem incompleta da linguagem da ação, se quiséssemos reduzi-la a este pequeno número de gestos de que se compõe a maneira de falar de nossos oradores. Para conceber todos os recursos da linguagem da ação, para estabelecer sua verdadeira natureza, é necessário observá-la nas comunicações daqueles que não têm absolutamente outro meio de se entender; quero dizer, por exemplo, na comunicação dos surdos-mudos de nascença, quando se encontram reunidos, ou ainda nas relações que os viajantes tiveram algumas vezes com povos cuja língua lhes era desconhecida; é preciso também estudar as leis da arte da pantomima, que não é mais do que uma linguagem da ação muito aperfeiçoada. Considerando a linguagem da ação sob tal ponto de vista, reconheceremos primeiramente que ela deve conter um número muito grande de signos naturais. Com efeito, é por meio dos signos naturais que esta linguagem exprime a maior parte das ideias que se relacionam ao físico do homem. As diversas situações de nosso corpo, as ações que podemos executar, se enunciam reproduzindo algumas circunstâncias dessas mesmas ações ou situações. Indicam-se da mesma maneira todos os efeitos produzidos pelos objetos exteriores sobre nosso corpo, quando eles são ocasiões para alguma ação ou alguma situação nova de nossa parte. A linguagem da ação fornece ainda signos naturais para todas as operações internas do entendimento ou da vontade que se manifestam exteriormente por algum efeito determinado. Enfim, signos semelhantes servem para pintar os movimentos e as atitudes dos animais que têm conosco uma semelhança particular, assim como as causas próximas que deveriam produzir neles esses movimentos e essas atitudes. A linguagem da ação contém também um número muito grande de signos figurados. Primeiramente, é com a ajuda das figuras que ela anunciará todas as modificações do sentimento e do pensamento, que não produzem, no nosso exterior, um efeito suficientemente fixo e preciso para que possa lhes servir de signo geral e permanente. É ainda com a ajuda de figuras que ela descreverá todas as qualidades dos objetos materiais que não consistem num movimento ou numa forma que pudéssemos imitar com o jogo de nossos membros. Enfim, é através do uso de figuras que ela exprimirá todas as noções abstratas e gerais; pois a linguagem da ação só pode conduzir imediatamente nosso espírito à imagem de um objeto sensível e particular. Mas é sobretudo dos tesouros da analogia que a linguagem da ação tirará seus métodos mais fecundos. Com efeito, a analogia fornece a esta linguagem meios suficientes para imitar uma grande quantidade de movimentos e de formas. Ora, a maior parte dos objetos físicos não se distingue por uma forma e um movimento que lhes são peculiares? As principais classes de animais não se as reconhecem pela sua postura, ou por uma maneira particular de se mover? As diversas famílias, em cada classe, não se as reconhecem também pelo tamanho, pelo número de membros, pela configuração desses membros, pelo andar, por qualquer ação usual e característica, etc., etc.? Servindo-se sempre dos mesmos meios, e somente levando mais longe as comparações, não se imaginará também uma descrição particular dos diversos indivíduos de uma mesma espécie? Não há no reino vegetal duas produções que tenham absolutamente a mesma forma. Todos os fenômenos da natureza, todas as revoluções que sofrem as substâncias materiais, todos os acidentes físicos da vida são acompanhados de certos movimentos que podem servir para figurá-los, Enfim, a analogia fornece à linguagem da ação signos para exprimir as relações de tempo, de lugar e de situação, de número e de quantidade. Pois o tempo se mede pelo movimento regular dos corpos; a mobilidade de nossos membros permite dar-lhes uma situação respectiva que se julga conveniente; contar nos dedos é uma aritmética simples e natural; o intervalo compreendido entre as mãos, o prolongamento de certo gesto podem tornar-se uma espécie de medida para indicar dimensões geométricas, e mesmo um meio para exprimir as grandezas intensivas, e as diversas relações de quantidades indeterminadas. A linguagem da ação nunca pôde englobar senão poucos - ou até mesmo nenhum - signos arbitrários, e isso por muitas razões. A primeira é a riqueza mesma de suas analogias; só se recorre às convenções quando não se encontra nenhum meio mais certo e mais fácil para comunicar-se. A segunda razão se deduz de uma espécie de impossibilidade física; pois é difícil encontrar uma ação que não descreva alguma coisa, e, quando um signo possui já uma analogia que lhe é própria, como lhe dar uma acepção arbitrária? Mas a razão principal se descobre quando refletimos sobre a maneira como nasceram os signos arbitrários. É preciso nunca esquecer que a maior parte dos signos arbitrários, ou, ao menos, que nos parecem tais, não foram absolutamente o resultado de uma convenção expressa, e que eles foram devidos, o mais frequentemente, à corrupção de certas analogias primitivas que se foram insensivelmente alterando pelo uso. Mas as analogias deveram se alterar tanto mais prontamente quanto menos patentes e menos completas elas fossem; pois elas eram então, por sua própria natureza, mais vizinhas do arbitrário; aliás, os que empregavam os signos notavam menos então o motivo que havia determinado sua instituição, tinham menos escrúpulos em deturpá-los para dar-lhes uma forma mais cômoda. Ora, as analogias que pertencem à linguagem da ação são ordinariamente tão bem caracterizadas que estão quase ao abrigo deste primeiro inconveniente. Há outra circunstância que deve ter facilitado ainda mais a alteração das analogias primitivas; quando um signo análogo é geralmente reconhecido, entre os que conversam, por ser aquele que pertence a uma ideia determinada, e que recebeu assim a sanção de um hábito comum, este hábito, tornando a analogia menos necessária, permite algumas mudanças que a desfiguram de maneira que o valor do signo se sustenta mesmo quando a condição primeira deste valor se perde e se destrói. Ora, é visível que quanto mais pobres e limitadas são as analogias de uma linguagem tanto melhor deve ser o acordo sobre o uso a ser feito de cada uma delas; quanto menos signos análogos houver que possam representar uma ideia, mais unânime deve ser a escolha. A linguagem da ação, cujas analogias são muito numerosas e variadas, que apresenta habitualmente muitos meios para representar uma mesma ideia, deve então assumir frequentemente uma modificação particular em cada indivíduo; ela deve trazer a marca do gênio particular dos que a falam, ela deve oferecer pouco acordo quanto aos meios, embora apresente um grande acordo quanto aos efeitos. Cada um descreverá à sua maneira, pois ele tem sempre a certeza de se fazer entender; e esta é uma última razão pela qual a alteração das analogias é aí muito mais difícil; permanecemos mais fiéis à analogia porque é apenas nela que podemos fundar a esperança de ser compreendidos. Resulta dessas diversas reflexões que a linguagem da ação deve ser muito mais favorável ao desenvolvimento da imaginação do que ao progresso das faculdades meditativas; pois esta linguagem deve imitar os efeitos que pertencem às três espécies de signos de que se compõe. É notável que na linguagem da ação não haja um só signo que não seja composto; pois todo gesto nos apresenta necessariamente ou uma forma, ou uma dimensão, ou um movimento, e cada uma destas três coisas é uma sensação composta de muitas outras. Ademais, a linguagem da ação tem ainda de particular o fato de reunir frequentemente muitos signos para descrever um só objeto; um único signo será raramente bastante expressivo, pois retraçaria apenas uma ideia demasiadamente geral. Asseguramo-nos disto obervando os surdos-mudos quando nos querem fazer algum relato. Não será suficiente, por exemplo, ter-nos designado a forma de um animal, se eles não nos indicarem ao mesmo tempo sua postura, seu tamanho ou seu andar. Numa linguagem em que tudo é pintura, cada signo deve ser um quadro. Resulta daí que, agindo sobre a imaginação, a linguagem da ação deve sobretudo lhe dar este caráter de energia que multiplica e reforça todas as associações de ideias; pois cada signo nos evoca a ligação que estabelecemos entre muitas circunstâncias, e nos faz ainda repetir a mesma operação de que esta ligação foi o efeito. Ademais, como para compreender o valor de um signo na linguagem da ação é preciso que o espírito combine de uma vez todos os detalhes que formam este signo, como ele só pode receber luz de seu conjunto, é compreensível que os efeitos particulares de cada signo elementar devam se reunir num centro único, e esta simplicidade do término de uma descrição deve estabelecer um liame mais estreito entre todos os detalhes de que ela se compõe. A propriedade da linguagem da ação de só empregar signos compostos fornece entretanto à atenção auxílios que é preciso não negligenciar; pois ela procura também esta analogia fundada em razões da qual demonstramos os efeitos úteis. Oferecendo-nos assim um quadro mais completo do pensamento, os gestos nos fornecem mais meios para decompô-lo, tornam-se frequentes ocasiões de análise. Aliás, uma vez que os signos da linguagem da ação pouco devem às convenções e ao hábito, eles só podem, em cada ocasião, tirar sua eficácia de uma reflexão atual e particular; os que os empregam, os que procuram compreendê-los, necessitam executar várias comparações secretas e estudar, ao menos de maneira superficial, o objeto acerca do qual desejam se entender antes de se porem de acordo sobre a descrição que dele é feita. Detendo-nos mais particularmente a estudar as propriedades da linguagem da ação que resultam da natureza material dos signos que ela emprega, nela encontraremos ainda, em relação ao exercício da atenção, três vantagens que são de se notar. A primeira consiste em que os signos da linguagem da ação servem melhor para fixar uma atenção ainda pouco exercitada ou demasiadamente distraída pelos objetos exteriores. Eles lhe oferecem um apoio mais sensível, concentram mais sua atividade. Pois o homem que ouve sons pode se ocupar ainda de tudo que se passa ao redor; mas, se ele se aplica a observar; a estudar os gestos de que se compõe uma pantomima, ser-lhe-á difícil notar qualquer outra coisa. Um som, a menos que seja muito agudo, impressiona menos nosso ouvido do que uma ação o faz em relação à nossa vista; o olho é, aliás, por ele próprio, mais observador do que o ouvido. A segunda vantagem deriva de que os signos da linguagem da ação formam em geral um conjunto mais coeso e mais sistemático do que aqueles que pertencem aos outros meios de comunicação. Os elementos da fala são mais numerosos e variados; os da pintura e da escritura não o são menos. O que não se pode enumerar de sons e de articulações, de cores e de caracteres que é possível empregar como signos! Mas a linguagem da ação tem de particular o fato de que seus elementos são muito simples. É sempre o mesmo instrumento, somente disposto• de maneira diferente. A linguagem da ação apenas nos apresenta formas e movimentos; ora, cada movimento, como cada forma, se relaciona, como se sabe; a elementos idênticos. Conclui-se daí que há relações bem mais estreitas, bem mais fundadas em razões, entre os signos compostos que delas resultam. As leis de tal linguagem possuem pois alguma coisa de mais simples e de mais fundado em razão; o espírito se acostuma melhor, pelo seu uso, à prática dos métodos. A terceira vantagem, enfim, resulta de que os signos da linguagem da ação possuem, se assim me posso exprimir, algo de mais geométrico. Com efeito, as sensações às quais a linguagem da ação nos conduz imediatamente são as sensações táteis; ou, se se preferir, são ao menos as sensações que são comuns ao tato e à vista. Ora, sabe-se que o tato e a vista, considerada como o auxiliar deste primeiro sentido, são os órgãos que nos transmitem todas as ideias geométricas; que é a eles que devemos tanto as noções mais positivas quanto as mais exatas; que é através de seu auxílio que medimos todas as proporções; que eles são, numa palavra, como que o compasso natural do espírito humano. Assim, enquanto o uso habitual de semelhante instrumento se tornará para nós ocasião de um exercício útil e nos acostumará cada vez mais à precisão e à exatidão das observações, a analogia particular de cada signo terá ordinariamente o mérito singular de nos apresentar acerca de cada ideia os indícios que, por sua natureza, são os mais instrutivos e os mais preciosos para o nosso espírito. Mas essas vantagens se acham compensadas, talvez, por alguns outros inconvenientes que também resultam das propriedades materiais dos signos dessa mesma linguagem. Primeiramente, a mesma circunstância que pode representar um auxílio a uma atenção fraca e pouco exercitada torna-se frequentemente prejudicial a uma atenção mais desenvolvida e à qual o trabalho da meditação seria já familiar. O signo patente e sensível que serve para fixar e manter a primeira torna-se para a segunda uma distração e um obstáculo. Se apresentamos à primeira uni signo simples e pouco aparente, ela se dissipa e se desvia; mas a segunda torna-se então mais ativa e mais poderosa, ela aproxima melhor as ideias, penetra-lhes mais o segredo. O espetáculo de uma ação ocupa demasiadamente os olhos de um filósofo para deixar ao seu pensamento toda a liberdade que ele exige. O homem acostumado a refletir é, diante dele próprio, como o são entre si dois indivíduos que se conhecem há muito tempo; o menor indício lhes é suficiente para se compreenderem. Há, na linguagem da ação, a circunstância particular de que vários signos são apresentados aos nossos olhos de maneira simultânea e que ao mesmo tempo sua passagem é extremamente rápida; pois na pantomima temos que notar ao mesmo tempo a atitude geral do corpo, o movimento da cabeça, a expressão do rosto, enfim o gesto executado com cada braço e cada mão. Todas essas ações acontecem no mesmo instante e desaparecem no instante seguinte para deixar lugar a outras. É-nos pois impossível deter-nos sobre cada uma em particular e não podemos compreendê-las senão em seu conjunto. Mas toda observação, que deve ser ao mesmo tempo muito rápida e muito complexa, conduz a um conhecimento obscuro e confuso. A linguagem da ação perde, ao mesmo tempo, sob este aspecto, para a fala e para a escritura; pois a fala, ao menos, expõe os signos de uma maneira sucessiva; e a escritura, dando aos seus signos uma existência duradoura, deixa-nos todo o tempo de que temos necessidade para deslindar as ideias que eles representam. A linguagem da ação pode expor muito frequentem ente aqueles que dela se servem a equívocos e a enganos. Primeiramente pode-se tomar com frequência o signo pela coisa significada e reciprocamente. É o que deve ocorrer todas as vezes que se emprega para exprimir o pensamento um meio que não é exclusivamente reservado para este uso; e eis aí, penso, uma das razões que fizeram com que se preferisse a fala e a escritura para as comunicações ordinárias; pois uma fala, uma palavra escrita, não podem jamais tornar-se por elas mesmas algo de interessante, nem ser consideradas por nós como, um objeto real; vemos imediatamente que só pode ser um signo, e só buscamos penetrar-lhe o sentido. Mas acontecerá frequentemente que considerando uma ação hesitaremos em dizer se é uma verdadeira ação ou somente um gesto. Quando um homem quer exprimir a ideia de cólera poder-se-á crer algumas vezes que ele está irritado, e, se ele está irritado, não acontecerá algumas vezes também que se imaginará que ele quer representar a cólera? Uma segunda razão que deve deixar a linguagem da ação bastante sujeita a equívocos é que para conferir-lhe este caráter de analogia que, somente,torna seus signos infalíveis é necessário ordinariamente desenvolver um aparato de movimento que é incompatível coro qualquer outra ocupação. Ora, como acontecerá frequentemente que os homens necessitarão comunicar-se nos momentos de trabalho, como alguma circunstância particular poderá não deixá-los inteiramente livres em seus movimentos, as analogias então se tornarão imperfeitas e ambíguas. Como um doente poderia empregar a linguagem da ação para conversar com os que o rodeiam? Enfim, a linguagem da ação só nos fornece auxílio muito limitado e muito insuficiente para a meditação solitária. Com efeito, quando nossas meditações apenas se desenvolvem sobre ideias ao mesmo tempo sensíveis e simples, não necessitamos, para pensar, a assistência de signos artificiais; pois todas as ideias sensíveis, uma vez que se podem servir reciprocamente de signos naturais, nos conduzirão umas às outras. Mas, se devemos introduzir em nossas meditações alguma ideia abstrata ou alguma ideia complexa de segunda ordem (e qual é a meditação útil que não supõe um grande número de ideias desta espécie?), seremos constrangidos então a recorrer à intervenção de signos artificiais, sem os quais semelhantes ideias não podem ser conhecidas. Algumas vezes, produziremos estes próprios signos para melhor manter nossa atenção, como acontece quando escrevemos ou quando falamos sozinhos. Algumas vezes contentar-nos-emos com evocar estes signos na memória; e cada um pode observar com efeito que, quando pensa, repete tacitamente certas palavras que servem de ponto de apoio para o seu pensamento. Ora, nessas duas ocasiões, encontramos na linguagem da ação uma sensível desvantagem. Se se trata de imaginar os signos, haverá aí dois inconvenientes: primeiramente, os signos da linguagem da ação, sendo originariamente muito compostos, torna-se muito mais difícil para a imaginação representá-los com exatidão. Em seguida, há no comportamento de nossos órgãos esta notável lei segundo a qual não podemos de maneira alguma imaginar a ideia que pertence a um sentido quando ele próprio está afetado por uma sensação atual; é difícil representar certos sons quando outros sons reais afetam vivamente nosso ouvido; e daí deriva também o fato de que baixamos os olhos quando procuramos retratar algumas lembranças. Mas o ouvido não se encontra habitualmente ocupado com sons; ele goza o mais frequentem ente de um repouso que nos permite imaginar as palavras com a conveniente liberdade. O olho, ao contrário, está sem cessar impressionado pela presença de algum objeto, a menos que nós o fechemos voluntariamente, ou que estejamos envolvidos pelas mais densas trevas. É pois muito raro que possam?s imaginar com facilidade ideias de forma e de movimento, a menos que exerçamos sobre nossos sentidos um domínio absoluto e que, colocados no centro de numerosas perspectivas não prestemos entretanto a menor atenção a nenhuma delas. Porque se queremos reproduzir exteriormente os signos de nossas ideias para dar a nosso espírito um ponto de apoio mais sólido, como acontece em todas as meditações muito sérias, a linguagem da ação nos apresentará ainda inconvenientes. Pois podemos ouvir todas as palavras que pronunciamos e ver todos os caracteres que nossa pena traçou; mas quando representamos a pantomima não podemos perceber todos os sinais que executamos, a menos que estejamos colocados diante de um espelho. Não duvido absolutamente de que, se a reflexão dos surdos-mudos de nascença é habitualmente bem menos desenvolvida que aquela dos outros indivíduos da mesma idade, isto se deve atribuir em parte ao fato de que eles não possuem outros signos que não os da linguagem da ação, e assim todas as vezes que eles se encontram sós seu pensamento pode se deter unicamente nas ideias sensíveis. “Na 4ª seção desta obra consagrarei um capítulo ao estudo das causas desta inferioridade que notamos nas faculdades intelectuais dos surdos-mudos. de nascença, aos meios que empregamos para remediá-la e ao exame de como esses meios poderiam ser aplicados à educação habitual. Acreditei que seria melhor juntar, numa só perspectiva, todas as reflexões que essas interessantes experiências sugerem ao filósofo. (Nota do Autor)” Encontramo-nos pois sempre de volta a esta opinião, a de que a linguagem da ação é uma linguagem muito imperfeita, se a consideramos apenas corno uma linguagem filosófica. Condillac, pois, deu-nos acerca da linguagem da ação apenas uma ideia muito insuficiente quando se limitou a nos mostrar como a linguagem da ação decompõe o pensamento. Ele deveria ter acrescentado que esta decomposição nunca é perfeita, seja porque a linguagem da ação engloba signos naturais que não analisa de forma alguma, seja porque ela engloba signos figurados que não analisa exatamente, seja enfim porque os signos análogos que ela contém apenas começam a análise e não a acabam jamais. Seria preciso acrescentar que a esta decomposição do pensamento, sem dúvida favorável ao progresso do espírito filosófico, juntam-se na linguagem da ação outros efeitos que contrariam este progresso, que retardam a atenção ou que dão à imaginação uma energia demasiadamente grande. SEÇÃO III DO APERFEIÇOAMENTO DOS CONHECIMENTOS DE FATO E DOS AUXÍLIOS QUE PODERIAM RECEBER DO APERFEIÇOAMENTO DOS SIGNOS. III . 1 Dos conhecimentos hipotéticos - Influência dos preconceitos sobre estes conhecimentos, e dos signos sobre os preconceitos. Chamei conhecimentos hipotéticos aqueles que têm por objeto os fatos colocados fora do alcance atual de nossos sentidos, os fatos que não vemos, mas em que cremos; esses conhecimentos não resultam somente, como os precedentes, do testemunho da observação; mas exigem certas suposições do espírito associadas às lições da experiência. O aperfeiçoamento de nossos conhecimentos se compõe de duas condições essenciais: a correção dos erros, a aquisição de verdades novas. É necessário corrigir os julgamentos mal feitos. É necessário multiplicar as instruções úteis. A ordem natural das coisas exige que a filosofia se ocupe primeiramente da correção de nossos erros. Pois importa tornar nossos conhecimentos mais certos, antes de procurar estendê-los mais; é necessário lembrar aos homens os caminhos em que se perdem, antes de querer conduzi-los pela verdadeira rota. Nossos erros se distribuem por si mesmos em duas classes muito distintas. Há em nós, se assim se pode dizer, o homem da razão e o homem da natureza. O homem da natureza se deixa levar em seus julgamentos pelo cego e mecânico impulso de seu instinto; ele julga, mas sem se dar conta de seus motivos. Suas afirmações são simples e absolutas, e seus erros não são desculpados, ao menos, por nenhuma forma, de lógica. O homem da razão duvida e examina, admite regras e métodos; mas frequentemente faz deles um mau uso. Forma princípios, mas com frequência deduz mal. Ele tende para a verdade, mas se perde ao procurá-la. A primeira espécie de erros pertence mais ao vulgo, e a segunda aos filósofos. A primeira é um obstáculo às luzes, a segunda não é mais do que o abuso das luzes. A primeira é uma escravidão do espírito, a segunda apenas um erro que ele comete ao empregar as suas forças. A primeira espécie de erros recebe o nome de preconceitos; pois, ao cometê-los, o espírito julga antes de ter conhecido, antes mesmo de ter procurado conhecer. Ele conclui sem premissas, ele antecipa a ordem essencial das ideias. Só esta definição já nos mostra como é estreita a aliança que os preconceitos estabeleceram com a ignorância. Procurarei, neste capítulo, dar a conhecer a natureza e o caráter desses preconceitos, fazer a estimativa da extensão de sua influência, indicar suas causas e seus remédios; enfim, fazer sentir a ligação que eles podem ter com os signos que usamos. Todos os nossos preconceitos me parecem remeter-se a duas fontes principais: o império dos hábitos, a vivacidade da imaginação. O hábito nos faz associar tão estreitamente em nosso espírito as imagens dos fatos que se nos apresentaram frequentem ente de maneira simultânea, que não podemos mais perceber um deles sem supor ao mesmo tempo os outros, como uma consequência inevitável do primeiro, embora não sejam eles próprios percebidos por nossos sentidos. O hábito nos faz confundir as ligações de nossas ideias com as leis da natureza. A imaginação, ao nos representar as imagens de certos fatos, lhes dá algumas vezes tanta força que elas subjugam nossa razão, que elas exigem nosso assentimento e que as assimilamos, de alguma maneira, às próprias sensações. A imaginação nos faz tomar ilusões por realidades. Explicamos, na primeira parte, o mecanismo dessas duas espécies de julgamentos; uns referem-se aos hábitos, os outros à imaginação. Essas duas espécies de preconceitos reúnem-se às vezes para nos levar aos mesmos erros; e então elas se dão mutuamente uma força nova. Habitualmente elas agem em direções diferentes e então cada uma produz os erros que lhe são próprios. Com frequência elas agem em direções absolutamente opostas e então tendem a nos levar a erros contrários. Com efeito, a imaginação cria e o hábito conserva. A primeira se vale de todas as impressões do momento e o segundo de todas as impressões passadas. Este nos torna escravos de nossas lembranças, aquela, de nossas esperanças. A menor volta sobre nós próprios, a mínima observação da sociedade são suficientes para nos fornecer numerosos e tristes exemplos dessas duas espécies de preconceitos, da diversidade ou da oposição de seus efeitos. Um homem expôs-se durante longo tempo aos caprichos da fortuna e às injustiças de seus semelhantes. Desencorajado, não mais crê na felicidade, nem na virtude; ele vê no futuro apenas o passado. Aqui se manifesta o império do hábito. Um homem passa diante de uma casa lotérica. Se ele compra um bilhete, este pode ser sorteado e trazer-lhe um considerável benefício. A imagem da riqueza se oferece ao seu espírito, absorve logo todos os seus pensamentos, mergulha-o num devaneio profundo. Ele já distribui o uso de sua nova fortuna; crê-se livre de todas as suas fadigas, possuindo todos os prazeres. Aqui se desenvolve de uma maneira sensível o poder da imaginação. Uma revolução acontece: quantas perspectivas se descortinam! Quantas lembranças são evocadas! Os espíritos se exaltam e logo se dividem. Aqueles que se acham mais acessíveis à influência da imaginação, seduzidos pelos encantos da novidade, não percebem de modo algum os perigos. Aqueles que dependem mais do hábito não podem se submeter às novas instituições; não percebem de modo algum as vantagens. Assim se formam as opiniões extremas. Essas duas espécies de preconceitos, não seguindo absolutamente as mesmas leis, não se desenvolvendo de maneira alguma nas mesmas circunstâncias, não produzindo os mesmos efeitos, exigem, cada uma, uma análise particular. I. Preconceitos do hábito Uma lei simples explica ao filósofo toda a história desses preconceitos e lhe fornece o meio de determinar seus efeitos com uma exatidão quase rigorosa. Para definir antecipadamente os preconceitos do hábito aos quais um homem deve estar submetido, é suficiente saber por quais circunstâncias passou este homem, e quais são, dentre elas, aquelas às quais ele dispensou maior atenção. Ora, há, primeiramente, uma primeira ordem de circunstâncias que devem ser comuns a todos os indivíduos da espécie humana, pois elas pertencem às leis gerais de sua natureza, e que devem também fixar a atenção de cada um deles, já que possuem uma relação constante e imediata com suas primeiras necessidades. Daí devem resultar certos preconceitos universais que se reproduzem igualmente em todos os homens. Tais são, por exemplo, algumas ilusões dos sentidos. Tal é o preconceito que nos faz relacionar aos objetos exteriores as impressões que nos modificam, e das quais eles são apenas as ocasiões. A sociedade universal do gênero humano se divide em um grande número de sociedades particulares, subordinadas umas às outras, cujos membros estão unidos por laços mais ou menos estreitos. Em virtude desses laços, deve haver aí certo número de circunstâncias particulares a cada sociedade, mas comuns aos membros que as compõem. Cada século, cada região, cada lugar, cada instituição modifica a existência dos homens e apresenta à sua atenção perspectivas que lhe são próprias. Daí nascerão muitos preconceitos gerais, mais ou menos estendidos, que variarão com o tempo, os lugares, as instituições. Cada época terá seus preconceitos, que se manifestarão e desaparecerão com ela. Haverá preconceitos nacionais que influenciarão os costumes e deles receberão também uma influência recíproca. Encontraremos preconceitos particulares em cada país, em cada casta, em cada reunião, em cada família. Haverá preconceitos para o rico e para o pobre, para o fraco e para o forte. Haverá os preconceitos do povo e os dos sábios. Cada um deles será determinado pela comunidade dos hábitos. Enfim, existem circunstâncias que são inteiramente particulares a um indivíduo e delas se compõe uma última ordem de preconceitos absolutamente individuais. Assim, os homens poderiam de alguma forma ser classificados pelos seus erros, assim como pelas suas formas sensíveis. Dessa maneira, poderíamos traçar num mapa-múndi o domínio assinalado a cada preconceito pelas leis da natureza. A atenção de nosso espírito é determinada pela relação que os objetos mantêm com as nossas necessidades e pela impressão que eles fazem em nossos sentidos. Ora, esta impressão depende muito da disposição em que estamos, e esta disposição não é a mesma em todos. Nossos interesses são ordinariamente opostos. Tendo em vista que nossos hábitos são modificados pela atenção que prestamos às circunstâncias em que estamos colocados, a diversidade de motivos que regulam esta atenção deverá produzir certo número de exceções aos preconceitos gerais, e multiplicar as variedades dos preconceitos individuais. Não é ainda o momento de aplicar estes princípios e de procurar mostrar os efeitos que o hábito deve ter produzido em cada classe de nossos conhecimentos. Limito-me aqui a fazer duas observações que nos farão compreender antecipadamente qual deve ser a extensão desses efeitos. Primeira: é ao hábito que se deve relacionar quase todos os preconceitos da educação; segunda: é também pelo hábito que se deve explicar, em grande parte, o singular poder que a imitação tem sobre os homens. A educação é o conjunto de nossos primeiros hábitos; ora, os hábitos que são cronologicamente os primeiros devem ser os mais duráveis, pois são os mais entranhados, e esta é a razão por que eles parecem se reavivar com uma força na época da velhice. A imitação é a continuação de um grande hábito geral que contraímos: o de atribuir aos outros homens motivos suficientes para suas ações, e crer que o que é útil e bom para eles deve também sê-los para nós. Muita gente chama de sua experiência o que é apenas a reunião de seus hábitos. E que o hábito tende a nos fazer repetir sempre o que já fizemos. Os signos desempenham um papel demasiadamente essencial nos hábitos de nossas ideias para que fiquem estranhos aos hábitos de nossos julgamentos. Primeiramente, para que, por ocasião de um fato, sejamos conduzidos a supor um segundo fato que teria acompanhado o primeiro em outras circunstâncias, é preciso que as ideias desses dois fatos se tenham associado no espírito, e que uma sirva de signo natural à outra. Nossos signos naturais nos representam, pois, ordinariamente, julgamentos de hábito. Os signos instituídos nos dão também, às vezes, ocasião de formar certos julgamentos de hábito. Quando, para formar uma ideia arquétipa qualquer, reunimos varias circunstâncias por meio de um signo convencional, a ligação destas circunstâncias pode tornar-se bastante forte em nosso espírito para dar lugar a uma associação de julgamentos. Ê suficiente, para isto, que nos tenhamos ocupado com frequência desta ideia arquétipa e que nos tenhamos acostumado a considerá-la apenas como um todo indivisível. Isto é o que acontece frequentemente aos jovens que se iniciam no mundo: eles trazem certos modelos de caracteres que formaram pela meditação ou pela leitura, e que aplicam de uma maneira absoluta e, por isso mesmo, sempre defeituosa, aos primeiros indivíduos que vêm a considerar, e que lhes apresentam algumas das condições prescritas. Frequentemente também é suficiente que duas ou várias palavras tenham com certa constância impressionado nosso ouvido de maneira simultânea, para que os fatos expressos por essas palavras se tenham também associado entre si na ordem de nossos julgamentos. É isto que se passa quando instruímos as crianças; não lhes ocorre nunca exigir provas do que lhes propomos, e a maior parte do tempo seus mestres não lhes permitiriam de modo algum questões tão impertinentes, se elas as ousassem formular. Tudo o que pretendem com esta instrução se limita a repetir sempre as mesmas coisas, a fim de que a frequente associação de palavras determine certos hábitos do espírito que tomaremos por conhecimentos. Quantas máximas não se estabelecem e se mantêm em evidência no mundo, sem outro apoio que sua constante repetição tornada o fundamento de um hábito geral? Por que os ruídos mais absurdos assumem, à força de serem reproduzidos, uma espécie de consistência capaz de perturbar os espíritos mais sábios? Por que as opiniões de cada um de nós recebem inevitavelmente o verniz da sociedade em que vivemos? É que as palavras que ouvimos mais habitualmente determinam as ligações de nossas ideias, estas determinam, em longo prazo, as associações de nossos julgamentos. A credulidade é apenas, com frequência, uma disposição para os hábitos ocasionados pela fala e, se assim podemos dizer, certa subordinação dos hábitos do espírito aos hábitos do ouvido. Um dos hábitos mais patentes em seus efeitos e dos mais fáceis de explicar por seus princípios é o que nos faz, de alguma forma, identificar aos nomes as ideias das coisas que eles exprimem; de tal forma que esses nomes pareceriam desfrutar de uma virtude própria e natural para representar as coisas, e que mesmo frequentemente pareceriam inseparáveis da realidade dessas coisas. Daí resultaram não somente grandes preconceitos sobre a origem, a natureza e os efeitos da linguagem, “Um dos recursos mais poderosos da magia consistiu, em se apoderar desse respeito supersticioso que os homens têm pelas palavras: Ismen, che al suon de' mormoranti carmi, Fin nella reggia sua pluto spaventa. TASSO. Todas as nações tiveram certas palavras terríveis às quais elas atribuíam o poder de causar os maiores males àqueles contra quem fossem lançadas. A história das diversas superstições nos mostra sempre palavras misteriosas e todo-poderosas, que os iniciados se transmitiam sob o segredo mais profundo; mesmo atualmente ainda vemos homens, elevados acima do vulgo por suas luzes, considerar a linguagem como um conjunto de leis eternas e ligadas à natureza das coisas. O abade de l'Épée foi obrigado, a sustentar com todas as forças da lógica, contra os argumentos de Pereyra e contra o preconceito universal, que os sons não são os signos essenciais das ideias e os instrumentos necessários do espírito.(Nota do Autor)” mas também uma grande quantidade de erros nas ciências, onde as palavras foram frequentemente dadas - e recebidas - por ideias, onde os equívocos se tornaram irremediáveis devido à confiança que se tinha na virtude da língua, onde as identidades gramaticais não se converteram em necessidades metafísicas. Daí resultaram ainda muitos erros bem mais funestos no seio das sociedades. Um nome ilustre quase sempre faz desculpar muitos crimes relativamente àquele que o possui, assim como um nome ao qual estejam ligadas ideias de infâmia desonra aqueles aos quais foi transmitido. Viram-se homens comandarem, em nome da moral, o assassínio, a destruição e todas as crueldades. Viu-se, em nome da liberdade, estabelecer-se o mais absoluto despotismo; em nome da igualdade ordenarem-se as mais iníquas proscrições; e encontraram-se sempre espíritos bastante dóceis para que os hábitos ligados às palavras vencessem neles a evidência dos fatos e o testemunho dos sentidos. Se os signos dão aos hábitos do espírito uma nova força e uma nova extensão, os hábitos dão, por sua vez, aos signos uma energia, uma eficácia que eles jamais teriam obtido apenas pelo despertar das ideias. Os signos tornaram-se para eles instrumentos de crença. Quando abusamos muito de certas palavras e este abuso vem a ser notado e sentido, produz-se um efeito totalmente contrário. Essas palavras caem num absoluto descrédito; não possuem mais nem mesmo a força de representar as ideias verdadeiras que lhes pertencem. Com frequência mesmo, quando o abuso teve consequências funestas para o bem-estar dos homens, há espíritos que adquirem por essas expressões assim desnaturadas tal antipatia, que elas bastam para lhes inspirar uma injusta prevenção contra aqueles que delas se servem, e contra as coisas boas e respeitáveis a que elas estavam ligadas originalmente. Nos séculos corrompidos todas as expressões que pertencem à moral e ao sentimento experimentam uma extrema profanação; então parecem perder seu valor mesmo na boca das pessoas de bem, e é um grande mal para a virtude não haver uma língua que lhe pertença. Observamos ainda aqui um efeito do hábito determinado pelos liames vinculados aos signos. Os julgamentos do hábito associados à fala são um dos meios mais poderosos, e ao mesmo tempo mais secretos, para garantir os triunfos da eloquência. Podem-se opor muitas espécies de remédios aos preconceitos do hábito. O primeiro está nas lições da experiência. Este meio é o que age, dentre todos, de maneira mais violenta e mais espontânea. Quando o evento contraria a expectativa na qual o preconceito nos colocara, ele nos adverte da maneira mais evidente sobre a infidelidade do guia no qual confiávamos, e força-nos a voltar sobre nós mesmos com uma severidade inteiramente nova. Foi preciso a experiência de Cheselden com os cegos de nascença para destruir o preconceito que atribuía ao olho o poder de avaliar as distâncias. Dificilmente resistimos a semelhante luz; mas nem sempre ela pode vir em nosso auxílio e, frequentemente, quando ela se mostra, já é muito tarde; é pelas frustrações a que nos expomos que reconhecemos nosso erro. O segundo meio consiste numa severa inspeção das próprias opiniões e dos motivos que as fundamentam. Como os julgamentos do hábito subsistem por si mesmos no espírito e são desprovidos de formas lógicas, eles não responderão de modo algum a esta exigência da razão e este é um dos sinais mais certos pelos quais podemos reconhecê-los, Tudo aquilo que não suporta absolutamente a crítica do espírito é um preconceito. Tudo aquilo que não se presta de modo algum à análise é um hábito. Mas esta grande reforma não poderia ser executada de maneira incompleta. Todas as opiniões estão ligadas em nosso espírito, e o preconceito que se vincula a uma delas pode viciar os julgamentos de que se compõem muitas outras, embora, aliás, deduzidas de maneira bastante exata. É preciso, pois, dar-se conta de maneira exata do sistema inteiro de seus conhecimentos, e sobretudo percorrê-lo segundo a ordem de geração que existe entre eles. Pois é este o único meio de ver se eles se apoiam reciprocamente, e se esta imensa cadeia possui falha em algum ponto. O último meio é mais lento e mais afastado do sensível, mas não menos necessário, e talvez mais seguro. Consiste no desenvolvimento de nossas faculdades de reflexão e de análise. Pois não basta dizer aos homens, como o fazem com muita frequência os filósofos, refleti, analisai - é preciso ainda torná-los capazes de empreender esta tarefa e de levá-la a cabo com êxito. É sobretudo fazendo-os contrair bons hábitos que lograremos prevenir e destruir os hábitos viciosos. Estas reflexões nos mostram qual o auxílio que podemos tirar da linguagem para a reforma de nossos hábitos. Primeiramente, as comunicações estabelecidas entre os homens por meio da linguagem ocasionam uma espécie de choque entre hábitos contrários, ou, ao menos, entre os hábitos de uns e a razão de outros. As contradições que daí resultam tornam-se outras tantas experiências próprias para nos esclarecer acerca do vício de nossos julgamentos. Os preconceitos do hábito assumem sempre a nossos olhos as formas da evidência, tanto porque lhes faltam motivos que os justificam, quanto pela força e energia com as quais comandam o espírito. Mas a evidência deve agir igualmente sobre o espírito de todos os homens. A contradição é, pois, para o sábio, uma advertência salutar que o ensina a desconfiar dessa evidência enganadora; ele sente a necessidade de examinar, e o exame é a sentença de morte do preconceito. Eis aí por que os preconceitos da educação se dissipam ordinariamente no relacionamento dos homens, e os preconceitos nacionais, nas viagens. A linguagem nos fornece ao mesmo tempo a ocasião e os meios para dispor de nosso pensamento, para decompô-lo, recompô-lo, transformá-lo de mil maneiras. Ora, a liberdade do espírito é o grande, remédio para os hábitos. Nessas diversas transmutações, o pensamento inevitavelmente perde as formas primeiras que havia recebido da experiência, e que o hábito tornara necessárias. As ideias se desembaraçam, se movem, se aproximam do tom da analogia. As combinações do espírito previnem as impressões externas; a razão as analisa no instante em que elas nos modificam. A vigilância da razão é excitada pela necessidade de nos darmos conta do que experimentamos para transmiti-lo aos outros. O homem que possuísse um diário minucioso em que fosse consignada a história de seus próprios pensamentos preveniria, desde sua origem, quase todos os preconceitos do hábito. Uma língua metódica e fundada na analogia seria para nós como um monumento sensível que nos retraçaria a geração de nossas ideias. Vemos pois que magníficas defesas semelhante língua oporia aos preconceitos de que falamos. Ela prepararia todas as análises; ela auxiliaria maravilhosamente este trabalho de revisão que cada um de nós deve executar relativamente às noções adquiridas; ela nos traçaria a ordem que deveríamos seguir em sua execução. Cada signo traria consigo um raciocínio. As bizarras associações do julgamento seriam desmentidas pelas próprias fórmulas que serviriam para exprimi-Ias. Explicarei no fim desta seção a influência que os signos poderiam ter sobre o desenvolvimento de nossas faculdades. Os preconceitos do hábito não se estabelecem todos com igual facilidade, nem subsistem com a mesma perseverança em todos os indivíduos, nem no mesmo indivíduo em todas as circunstâncias. A força dos hábitos depende da repetição mais ou menos frequente das circunstâncias que os ocasionaram. Existem hábitos por tal forma arraigados que resistem a todos os esforços da razão. O filósofo mais esclarecido cede, como o vulgo, à tendência que nos faz avaliar as distâncias e as formas a partir das impressões da vista. A força dos hábitos depende também de certas disposições orgânicas. Os hábitos do espírito estão submetidos àqueles de nossos órgãos. Há homens dispostos a contrair mais rapidamente, outros a conservar por mais longo tempo, as impressões do hábito. O velho a isto está submetido mais exclusivamente do que o jovem. Uma vida sedentária muito acrescenta ao poder dos hábitos. A razão, esclarecendo-nos sobre nossos preconceitos, não anula de modo algum, sempre, esta espécie de domínio mecânico que eles exercem sobre nosso espírito. Raramente destruímos um hábito confirmado; mas fazemos com que não mais influa de maneira alguma sobre a conduta. O filósofo e o vulgo ressentem-se frequentem ente das mesmas impressões; mas um se deixa levar por elas sem desconfiança, o outro as condena e as reprime. Se os hábitos acarretam os mais funestos efeitos, quando antecedem o trabalho da razão, possuem entretanto uma utilidade muito grande quando o sucedem, embora não façam mais do que se apropriar de uma boa análise. Então eles são apenas, se assim me posso exprimir, os ministros da filosofia, e os executores de seus decretos. Conservam na memória as verdades obtidas; ajudam-nos a reencontrá-las com mais segurança, a aplicá-las com mais rapidez. Se quando quero andar, por exemplo, não confiasse nos hábitos de meu olho para avaliar as distâncias e a situação dos objetos, se fosse necessário pensar cada passo antes de dá-lo, poderia eu gozar o prazer de passear? Poderia fazer uma longa caminhada? Se a ligação dos conhecimentos adquiridos não se tivesse tornado, para o sábio, uma espécie de hábito, como poderia ele dar-se conta deles a cada instante, segundo a necessidade? Como poderia usar verdades que resultam de uma longa demonstração, e tratá-las como princípios? O filósofo, sob este aspecto, é semelhante ao músico que despende primeiramente toda a atenção de que é capaz para se conformar, ao tocar, às regras de harmonia que lhe são traçadas, mas que se abandona em seguida aos hábitos que contraiu, e que tira do próprio hábito a elegância e a rapidez pelas quais sua execução encanta nossos ouvidos. Não destruamos pois, de modo algum, os hábitos, mas esforcemo-nos por somente formar os bons. II . Preconceitos da imaginação Compreendo sob o título de preconceitos da imaginação todos os que resultam da demasiada vivacidade de impressão com que os objetos nos afetam. E suficiente reconhecer cuidadosamente quais são as ocasiões que determinam a extrema vivacidade destas impressões, para que se explique todo o sistema desta segunda espécie de preconceitos. Algumas vezes essas causas nos são estranhas; elas têm seu princípio na natureza mesma dos objetos que nos afetam ou, ao menos, na natureza das imagens sob as quais os representamos. Outras vezes essas causas nos são pessoais; elas têm seu princípio na disposição em que nos encontramos com respeito às impressões que chegam até nós. Tratando primeiramente das causas exteriores, creio poder referir a causa da impressão muito viva com que os objetos afetam às vezes nossa imaginação a cinco principais circunstâncias. A primeira é a extensão das perspectivas que nos são oferecidas. A impressão total é então como que a soma de todas as impressões simples que nos chegam. Daí a disposição, que todos os homens possuem, para se deixar ofuscar pelo brilho do sucesso, das riquezas, das honras, da glória e do poder. A segunda é a unidade de efeito na qual todas essas múltiplas impressões vêm se reunir. Quanto mais harmonia reina entre elas, mais elas se acham estreitamente associadas, e melhor se concentra, então, sua ação. O impulso comunicado ao espírito é calculado, se assim se pode dizer, como o dos corpos, através da multiplicação das massas pelas velocidades. Ora, a unidade do conjunto não é mais do que a rapidez da concepção. Daí deriva, por exemplo, o atrativo dos sistemas das hipóteses e de todas as soluções simples e absolutas. A terceira circunstância é o caráter vago e indefinido que acompanha por vezes as impressões. A imaginação teme os limites: ela é como todos os sedutores que se aprazem na obscuridade. Daí o crédito que certas doutrinas recebem pelo próprio segredo com o qual são comunicadas. Daí este estilo misterioso que engendrou tantas superstições. A quarta circunstância é a surpresa que certas impressões nos causam. Isto nos explica os atrativos que a novidade apresenta para a maior parte dos espíritos. Daí, entre os filósofos, o amor do paradoxo, entre o vulgo, a credulidade em relação aos fatos extraordinários e, entre todos os homens, a inclinação pelas opiniões, extremas. Enfim, a última circunstância é a intensidade própria às impressões elementares que um objeto tende a excitar. Uma ideia abstrata deve produzir um menor efeito do que uma ideia sensível. Todas as sensações não têm um grau de energia igual. Eis por que os exemplos têm sempre mais força do que as máximas. Se agora consideramos as causas pessoais do indivíduo, a influência das disposições em que nos encontramos sobre a vivacidade ,das impressões que nos afetam se explicará por duas leis gerais de nossa natureza. A primeira é que uma impressão é tanto mais viva quanto nossa atenção - menos distraída e mais livre - pode se dirigir mais exclusivamente a ela. Eis por que certas ilusões, que têm lugar durante a noite, jamais se reproduzem durante o dia. Eis também por que certos preconceitos que se apoderam dos solitários não logram sucesso algum no mundo. Eis por que a própria meditação possui por vezes seus abusos. A segunda lei é que a vivacidade de uma impressão cresce sempre em razão do interesse que ela nos inspira. Com efeito, o interesse excita e dirige nossa atenção; a atenção, reagindo sobre as imagens, dá-lhes uma força nova. Os efeitos desta lei serão tão numerosos e tão variados quanto às formas sob as quais nosso interesse se disfarça. Quantos comentários se oferecem aqui ao nosso pensamento! Aqui se explica a influência dos costumes sobre as ideias. Aqui se demonstra uma das causas mais fecundas e mais funestas de nossos erros, quero dizer, nossas paixões. Uma paixão poderia se definir assim: toda a vivacidade da imaginação, associada a toda intensidade do desejo, dirigidos para um objeto comum. Aqui percebemos a razão pela qual a esperança nos torna presunçosos e o medo nos desencoraja: Aqui descobrimos o princípio de que derivam todas as ilusões do amor-próprio. Devido ao fato de que as impressões pelas quais os objetos nos afetam somente se sustentam na imaginação graças ao auxílio dos signos, concebe-se que os signos devam exercer uma grande influência sobre os preconceitos que têm na imaginação a sua fonte. Um primeiro efeito dos signos é o de reunir impressões muito diversas e muito numerosas numa ação muito simples. Assim se reúnem duas das circunstâncias mais apropriadas para excitar a vivacidade da imaginação. Quantas impressões todo-poderosas não resultaram do poder que tivemos de representar através de signos simples todas as grandes perspectivas dos interesses da sociedade, dos julgamentos dos homens, do conjunto das coisas, todas as ideias do eterno, do imenso, do infinito! Observemos todos os oradores que procuram obter êxito entre os homens, e que sentem necessidade de suplementar a fraqueza de suas razões com o poder de sua eloquência! Que seria deles se estivessem privados dessas expressões abreviadas que, evocando por uma rapidez quase mágica as perspectivas mais extensas, causam na alma uma comoção que a razão não sabe mais dominar? Que seria deles se não pudessem criar certas máximas sucintas nas quais resumem toda a substância de seus discursos, e que lançam como um dardo no espírito de seus ouvintes? Um segundo efeito dos signos consiste em transformar as noções abstratas em impressões sensíveis, e isto se opera de duas maneiras. Algumas vezes personificamos ideias morais e intelectuais, como nas alegorias; outras vezes reduzimos as ideias gerais a fatos abstratos, como nos exemplos; algumas vezes vinculamos um feixe de ideias mistas a certos objetos colocados perto de nós, como nos emblemas e nos signos; outras vezes transportamos a, ideia da causa para a de seu efeito, a do todo em uma de suas partes, a de urna coisa nas suas circunstâncias, como nas metáforas. Mas, seja qual for o meio que adotemos, adquirimos por ele um grande domínio sobre os espíritos aos quais nos dirigimos. Os poetas não têm necessidade de seduzir por um instante nossa razão, e não é através da ilusão que eles nos conduzem ao prazer? Todos os instrumentos dos oradores populares não se reduzem a descrições? A autoridade inspira mais respeito aos homens pelo aparato que a rodeia do que pelas forças reais de que dispõe. Todas as seitas que se constituem preocupam-se muito com adotar certas formas exteriores que lhes sejam particulares; pois seus fundadores sabem muito bem que nos atemos com frequência mais a estas formas do que ao fundo das coisas. Um homem que não respeite a ideia de dever por ela mesma, frequentemente respeita a aparência de que ela se reveste. Todos os que procuram estimular grandes revoluções no seio da sociedade, se munem de algumas divisas com as quais possam impressionar o ouvido da multidão, e procuram criar alguns sinais que possam permanecer sob seus olhos. Os preconceitos da idolatria resultaram, em parte, do abuso dos signos, e nos dão uma larga ideia de seu poder. As estátuas, as imagens, os símbolos de toda espécie destinaram-se na origem a representar as ideias morais e religiosas; mas logo se apoderaram de todos os sentimentos de que essas ideias eram o princípio: tornaram-se o objeto imediato do culto dos homens; houve dias e lugares consagrados ou proscritos na lembrança dos povos. A religião passou a consistir somente em observâncias, em cerimônias, tanto a imaginação necessita repousar em circunstâncias simples, em formas exteriores, e tudo referir às impressões dos sentidos! Se os signos são caros e sagrados para as paixões é porque são um dos meios mais necessários para a existência delas, é porque são de alguma forma o elo que une as necessidades da alma às concepções do pensamento. Todos os sentimentos que vivem apenas de ilusões necessitam signos que emprestem uma espécie de realidade às vagas imagens do entendimento. Todas as paixões apresentam uma espécie de idolatria. A vaidade e a ambição possuem seus signos: são as honras, os privilégios, os títulos, as marcas distintivas e a pompa do luxo. A paixão da fortuna tem seu signo, é o ouro, que representa ao mesmo tempo, sob uma ideia simples, todas as variedades do gozo e do poder. A fama não é mais que o signo da glória, e a glória por sua vez não é mais do que o signo da verdadeira grandeza. Entretanto, esses signos são os únicos em que se apoia a imaginação; é em sua presença que ela se exalta; ela lhes sacrifica com frequência a própria realidade das coisas. O amor possui signos que lhe são necessários: um retrato, um nome, um presente servem para lembrar continuamente, para reunir numa forma simples todas as ideias que se relacionam ao objeto amado. Os signos despertam, excitam, sustentam o entusiasmo, como o mostram esses prodígios de valor que se operam num campo de batalha à vista de um chefe, sob um estandarte; como o mostram também todos os relatos dos tempos de cavalaria em que nos deparamos constantemente com divisas, escudos e mil emblemas aos quais se vinculavam sempre todas as ideias romanescas. Observemos todas as explosões do fanatismo, nós as veremos sempre precedidas, dirigidas pela aparição de alguns signos extraordinários. Digamos melhor: se existe uma característica certa pela qual o fanatismo pode ser reconhecido, esta é a necessidade que ele tem de converter seus signos em verdadeiros dogmas, e fazer deles uma espécie de potência à qual todos os homens rendem culto. Aqui se apresenta em toda a sua clareza uma verdade que já anunciamos algures; é que se a filosofia exige que todos os termos que usamos sejam definidos cuidadosamente, que as suas acepções sejam determinadas e circunscritas com exatidão, a imaginação tem necessidades totalmente contrárias; ela deseja expressões vagas e incertas, ela se apraz com o abuso da linguagem. Não há, em geral, nada de menos determinado, de menos preciso do que essas ideias todo-poderosas com as quais se entusiasmam os homens. A felicidade, à qual se relacionam todas as ilusões da vida; a honra, que leva a tão grandes ações, obtiveram jamais definições exatas? Se a luz da análise iluminasse de perto essas ideias, e nos fizesse perceber seus elementos e seus limites, elas perderiam logo tudo o que possuem de mágico. O atrativo das revoluções vem em grande parte deste caráter indefinido que nos apresentam todas as situações por que ainda não passamos. Os desejos impetuosos, a esperança presunçosa se alimentam de imagens confusas; todas as perspectivas do futuro seduzem em grande parte pela obscuridade que as recobre. A língua dos poetas se compõe apenas de palavras desviadas de suas acepções próprias e verdadeiras. A precisão da linguagem prejudica muito os efeitos do estilo, porque estes, como os da pintura, começam sempre por um instante de ilusão e por uma surpresa feita à razão. Os signos são os instrumentos da atenção; e esta é ainda uma nova relação sob a qual eles podem auxiliar os efeitos da imaginação. Um charlatão preocupa-se sempre bastante com apresentar-se vestido de modo extraordinário, com disfarçar-se o quanto possa cobrir-se de plumas, de galões, etc.; através disto ele fixa a atenção da multidão e logo a cativa. Um adivinho, um feiticeiro se aproveitará das sombras da noite, se colocará num lugar em que nada possa distrair os tolos que o rodeiam; desenvolverá grandes preparativos, e os espíritos estarão antecipadamente dispostos a ver tudo o que ele quiser que vejam. Os oradores tiram dos signos um poderoso artifício para manejar, à vontade, as surpresas e os contrastes que eles julgam próprios para nos comover; pois eles sabem muito bem que o talento para nos comover é o grande meio de nos persuadir. Os erros da imaginação são mais fáceis, sem dúvida, de prevenir antes de seu nascimento, do que de dissipá-las uma vez estabelecidos. Uma severa vigilância sobre nós próprios, uma justa desconfiança das impressões que nos afetam, são ordinariamente suficientes para nos pôr em guarda contra essas ilusões súbitas que subjugam nossa razão. Assim também, os sedutores cujo poder está fundado em semelhantes ilusões, nada negligenciam para afastar de nós toda espécie de suspeita e essa atenção refletida que lhes oporia um obstáculo intransponível. Eles exigem de nós uma confiança absoluta como uma preparação necessária. Os feiticeiros, que abusam da credulidade do povo, nunca deixam de subtrair aos olhares dos tolos todos os objetos que, chamando-os de volta à realidade das coisas e ao testemunho dos sentidos, os arrancariam desta espécie de sonho no qual eles querem mergulhá-los. A dúvida metódica, que é a primeira máxima de uma sábia filosofia, foi sempre o primeiro objeto das proscrições do fanatismo. Os erros da imaginação têm de particular o fato de exigirem o concurso dos remédios da moral com os da filosofia. Essas impressões, cuja vivacidade nos exalta e nos cega, têm frequentemente sua fonte ou sua ocasião nas emoções da alma. Por isto, é preciso fornecer leis à nossa sensibilidade antes de procurar doá-las a nosso espírito. A moderação dos desejos talvez nos garanta contra um maior número de ilusões do que o faria a lógica mais exata. A verdade serve de regra à sabedoria; mas a sabedoria, por sua vez, reconduz à verdade. É verdade que frequentemente também a vivacidade das impressões precede e determina a das necessidades, e que a paixão tem sua origem nos erros do espírito. Então, todos os esforços da filosofia devem tender a moderar o arrojo da imaginação, a encerrá-la dentro de justos limites. Dois meios podem ser empregados com êxito para isto. Um é o exercício da faculdade de reflexão que, fazendo com que nos apreendamos a nós próprios, forçando-nos a nos dar conta das impressões que nos modificam, nos arranca desta espécie de encanto pelo qual nos deixaríamos levar; o outro é a distração que, dividindo nossa atenção entre um grande número de pontos, enfraquece aquela que dispensaríamos ao objeto privilegiado, permite comparações que nos esclarecem e restabelece uma espécie de equilíbrio no entendimento. Isso nos explica um fato bastante notável: as pessoas mundanas se garantem com frequência, unicamente pelo seu gênero de vida, contra certos erros que seduzem os filósofos. É preciso, pois, incluir no número dos meios que servem de remédios aos erros de que falamos, todos aqueles que concorrem para dar mais liberdade à atenção da espírita ou para desenvolver melhor a faculdade de reflexão; todos aqueles que nas ensinam a melhor habitar em nós mesmas e a aí exercer um maior domínio. Os preconceitos da imaginação dependem, bem mais ainda do que os do hábito, das disposições orgânicas, da idade, do clima, do temperamento, do regime de vida. Têm, em geral, mais influência na juventude da que na idade madura, mais sobre as mulheres da que sobre os homens, sobre as habitantes dos países quentes mais da que sobre as das regiões setentrionais. Há certos estados de doença nos quais eles exercem um grande e terrível domínio. O auxílio que poderíamos retirar do usa dos signos para prevenir ou para corrigir as erras da imaginação se explica facilmente a partir das reflexões que acabamos de fazer. O exercício habitual que a linguagem nas dá ocasião de praticar tende igualmente, como mostramos com frequência, a tornar a atenção mais livre e a reflexão, mais ativa. Assim, a linguagem já é, por si mesma, uma espécie de remédio para estes erros. Também não podemos duvidar de que o silêncio contribua muita a este poder que tem a solidão de exaltar a imaginação dos homens. Mas esses primeiros efeitos da linguagem tomar-se-ão bem mais marcantes se nos ativermos a fazer dela apenas um bom uso, se nos, aplicarmos a determinar cuidadosamente todas as acepções. Então, preveniremos a tom vaga das ideias e acostumaremos a espírito a velar sobre si mesma para se dar conta de suas próprias operações. Uma língua estabelecida sobre os princípios da analogia apresentaria ao mesmo tempo a dupla vantagem de tornar todas as definições mais fáceis e mais exatas, de nas ajudar a conservar maior domínio sobre nosso espírito, lembrando-nos sem cessar os métodos. Pois os métodos são as leis pelas quais a entendimento se governa, e a ordem mantém constantemente a vigilância da razão. As verdades que expus neste capítulo seriam suscetíveis de um desenvolvimento bem maior e aparecerão a meus leitores muitos aspectos que eu negligenciei; mas foi suficiente para a meu objetivo explicar como os abusos da linguagem contribuem para a estabelecimento de preconceitos, embora não sejam a única, nem mesma a principal causa deles, e provar que a correção e o bom emprego da linguagem poderiam também servir para corrigir os preconceitos, contanto que as usássemos juntamente com as outros remédios cuja necessidade mostrei e cuja natureza indiquei. III. 2 Influência da moral sobre nossos julgamentos. Nos motivos que determinam as preferências da atenção, encontramos a origem de um grande número de erros e os dados que servem para caracterizar suas diversas espécies. De início, a lei em virtude da qual a atenção se dirige sempre para os objetos que a atingem mais vivamente, esta lei, digo, descobre uma nova razão das seduções que a novidade exerce sobre os espíritos. Ela nos ensina por que a maior parte dos homens apenas julga segundo as aparências. Ela nos define este espírito de contradição que engendra tantos debates e que tão frequentemente conduz os homens a extremos opostos; com efeito, a visível parcialidade com a qual certos espíritos negligenciam uma parte dos dados da questão os faz aparecer mais vivamente aos olhos dos outros, experimenta-se em relação a eles o efeito do contraste. O choque das opiniões apenas serve para melhor confirmar cada um no sentimento das razões que faz valer. E natural que os objetos que nos atingem mais sejam ordinariamente aqueles que se localizam mais próximos. A situação que ocupamos na sociedade, as ideias habituais para as quais estamos dirigidos, as circunstâncias locais, decidindo a relação de proximidade que os objetos mantêm com nosso espírito, devem ter uma influência mar cante sobre o aspecto de nossas opiniões. Há acontecimentos que apenas julgamos reta mente quando nos encontramos a certa distância deles. E que, quando deles somos bastante vizinhos, certos detalhes particulares, absorvendo toda a nossa atenção, não a deixam suficientemente livre para abarcar o conjunto e para dar a nossas comparações toda a extensão que solicitam. A segunda lei nos explica o estreito liame que existe entre nossas opiniões e nossos interesses. Uma vez que nossos julgamentos apenas são os resultados de nossas observações, uma vez que nossa atenção se atém sempre às relações que os objetos têm com nosso bem-estar, deve ocorrer que numa questão complexa cada um tão somente veja aquilo que lhe é vantajoso e que, de boa-fé, acabemos de nos persuadir de tudo o que nos importa crer. Eis por que o coração tão frequentemente confunde o espírito e porque a paixão é sempre cega. Eis por que é tão difícil pronunciar-se com certeza em questões nas quais nós próprios estamos envolvidos. Ora, é preciso observar que nossas necessidades ganham mil formas diversas e que a influência que exercem sobre nossos julgamentos se mascara de tantas outras maneiras. Os caprichos do humor também são necessidades; com efeito, quanto os julgamentos que sustentamos não se ressentem do humor que nos domina! Nossa maneira de ver se modifica segundo o estado de nossa saúde, segundo o estado de nosso coração; ela segue todas as revoluções de nossas tendências e de nossos gostos; ela muda com os anos, muda com a situação de nossos negócios; frequentemente ela muda várias vezes num mesmo dia, segundo a disposição na qual nos encontramos. Há homens para os quais é uma necessidade entristecerem-se; estes homens apenas veem em si próprios e em tudo o que os envolve perspectivas de infelicidade. O espírito cáustico se atém exclusivamente aos vícios e ao ridículo dos homens; a alma benfazeja e delicada apenas vê, nos seres com os quais está em relação, as circunstâncias que podem justificar e satisfazer a necessidade que ela tem de amar, desculpar e perdoar. As afecções mais virtuosas podem tornar nossos julgamentos inexatos, tornando nossa atenção bastante parcial. A amizade nos cega diante daqueles aos quais o sentimento nos une. O zelo do bem prepara para si próprio numerosas e cruéis frustrações. O homem probo lançado num mundo corrompido é a cada dia enganado pela própria honestidade de seu caráter. A bondade do coração torna-se muito frequentemente a fraqueza e credulidade do espírito. Seria vão procurarmos na linguagem qualquer meio para prevenir esta última espécie de erros; pois a linguagem apenas serve para nos reconduzir aos métodos e aqui os métodos não podem nos dar nenhum auxílio. Com efeito, os métodos estarão sempre subordinados às motivações. Os métodos são apenas instrumentos; os motivos são o próprio princípio da ação. Antes de indicar aos homens o que é preciso fazer, deve-se comprometer sua vontade. Os remédios que a filosofia oporá a este gênero de erros consistirão bem mais em conselhos práticos do que em máximas abstratas. De início, ela nos prescreverá encerrar todos os nossos sentimentos em seus justos limites, sermos moderados até nos movimentos mais legítimos, desconfiarmos ao menos da influência que exercem sobre nossos julgamentos; ela nos recomendará apenas nos entregarmos aos trabalhos da razão na serenidade da alma; ela sobretudo nos convidará a bem compreender nossos próprios interesses, a procurá-los apenas nos da moral. Com efeito, é notável que ordinariamente é o sentimento exclusivo da personalidade que falseia nossos julgamentos nas questões que nos são submetidas. É à personalidade que pertencem todas as visões estreitas. Ela comprime as ideias porque concentra os sentimentos do coração. Ela nos distrai de tudo o que não somos. Os sentimentos generosos e grandes, referindo-se sempre a perspectivas mais amplas nos dão noções mais justas. Se o sentimento da felicidade geral superasse em nós a procura de nosso bem-estar pessoal, nosso espírito se deteria menos raramente no exame das questões políticas, em certos aspectos isolados. Quantos erros seriam retificados nos juízos que fazemos sobre os outros homens e sobre as relações que a eles nos unem, se a necessidade da justiça se fizesse sentir mais poderosamente em nossa alma do que a de nossas próprias vantagens! Quantas discussões diante dos tribunais seriam prevenidas, se a consciência daquele que advoga fosse sempre a mesma daqueles que julgam! Mas, sobretudo, quantas observações incompletas, quantas noções viciosas, quantas induções precipitadas teriam sido evitadas em todas as ciências, se o amor da verdade tivesse sempre prevalecido, no coração daqueles que as estudaram, sobre os secretos conselhos da vaidade, sobre o movimento da impaciência e sobre os hábitos da indolência! Sim, a verdade quer antes de tudo corações retos e puros; ela quer almas devotadas a seu culto, enamoradas de seus encantos, voltadas tão somente para ela, prontas a tudo lhe sacrificar. E qual outro sentimento além desta augusta paixão do verdadeiro seria bastante potente para triunfar sobre todos os obstáculos, consumir todas as fadigas e para nos inspirar esta perseverança heroica que, unicamente, pode nos proporcionar conhecimentos exatos e seguros? Mas onde estão aqueles tomados por este movimento sublime? Onde estão aqueles que têm a coragem de aprofundar uma ideia até o ponto em que não reste nenhuma obscuridade, de seguir uma procura até que tenham tudo esgotado? Observem, por exemplo, como costumamos tomar partido nas questões políticas! E por acaso após longas, imparciais e silenciosas meditações? E após uma completa e metódica análise dos fatos e das ideias? Não; ouvimos qualquer argumentação casual, corremos os olhos sobre alguns livros que seria vergonhoso não ter lido, colhemos aqui e ali algumas observações; e em seguida nós abandonamos ao sentimento que resulta dessas confusas impressões e a isto chamamos ter uma opinião. Vejam como a maior parte dos homens teme as discussões verdadeiramente filosóficas! Vejam o quanto fugimos da leitura das obras que apresentam as formas do método! Qual é aquele que não se cansa de seguir, durante alguns momentos, um encadeamento de ideias análogas? Qual é aquele que não se espanta diante de um raciocínio bem urdido? Queremos apenas ciências para nos distrairmos durante um momento e para mostrarmos uma superioridade no mundo. A esperança de ter noções mais exatas não indenizaria o tempo que lhes dedicássemos e as dificuldades que custassem. Lisonjeamo-nos de muito saber, mas somos pouco inquietos de saber bem ou mal. Ah! Enquanto semelhantes disposições nos acompanharem no estudo, não teremos o direito de solicitar melhores métodos, de acusar as ciências de incertas; com efeito, se nos perdemos, só podemos nos recriminar a nós próprios. Peço perdão aqui por insistir sobre máximas tão antigas como a filosofia. Mas esta própria antiguidade frequentemente prejudica a confiança na verdade. Tenho necessidade de me erguer com veemência contra este crédito absoluto que hoje damos a nossos métodos, contra essas ideias exageradas que concebemos sobre o poder do raciocínio. Sem dúvida esta doutrina foi feita para ter um grande sucesso entre os homens; de início, porque tem o encanto das ideias simples, e depois porque é bem mais fácil reformar seus raciocínios do que dominar os movimentos de seu coração. Esta doutrina deve obter êxito sobretudo num século que une as luzes à corrupção; então, as pessoas aprendem com rapidez essas máximas que deleitam o orgulho do espírito, sem molestar o arrojo das paixões. Mas o filósofo aí apenas poderia ver um preconceito funesto que multiplica nossos erros, pois aumenta nossa presunção que salvaguarda os nossos erros que importaria sobretudo prevenir, quero dizer, aqueles que se ligam aos nossos vícios; um preconceito sobretudo mais funesto porque entre os homens é o mais saliente, uma vez que a corrupção apenas o propaga porque dele necessita para que este, por sua vez, o proteja. Fala-se hoje incessantemente em fazer a filosofia servir o progresso da moral; mas por que se fala tão pouco em fazer a moral servir o progresso da filosofia? "As paixões", diz-se, "não resistem à luz da evidência." Mas não se refletiu que a própria luz da evidência exige, para ser obtida, certas operações do espírito e que precisamente são estas operações do espírito que se tornam imperfeitas e defeituosas quando as paixões nos dominam. Aliás, nossas paixões não se compõem somente de nossas ideias, mas ainda de nossos hábitos e os hábitos não se destroem com máximas abstratas. O domínio de si próprio não se obtém por uma dedução da lógica, mas por um esforço da vontade. SEÇÃO IV DO ESTUDO DAS QUESTÕES ABSTRATAS E DAS VANTAGENS QUE PODERIA OBTER DO APERFEIÇOAMENTO DOS SIGNOS IV. 1 Debate sobre as palavras; definições, raciocínios e experiência; uso e abuso metafísicos. Após termos examinado os meios que podem nos favorecer na busca da verdade, encontramo-nos naturalmente conduzidos ao estudo do que pode servir para demonstrá-la aos outros homens. Ora, não poderíamos expor corretamente as regras da demonstração da verdade, se de início não voltarmos ao exame dos obstáculos que impedem sua manifestação e à origem dos debates que são ao mesmo tempo obra e amparo da ignorância. Todo debate, nas questões abstratas, supõe que não estejamos de acordo sobre o valor dos termos que usamos. Pois as questões abstratas têm sempre como objeto apreciar o valor de nossos signos e, se comparados, os signos oferecerem para cada espírito as mesmas ideias, todos os homens reconhecerão as mesmas relações e o resultado que parece verídico para alguns não poderá ser falso aos Outros. Assim, quando dois tradutores atribuem o mesmo sentido à palavra de uma língua estrangeira e à de sua língua natural, não podem deixar de estar de acordo em suas traduções. Entretanto, não poderíamos concluir desta primeira reflexão que todos os debates, nas questões abstratas, sejam apenas debates sobre palavras. Frequentemente, é porque também não pensamos da mesma maneira que não falamos a mesma linguagem; cada paixão e cada preconceito fazem para si próprios uma língua que lhes é própria. O homem que raciocina mal muda as acepções de seus termos e, deixando de se entender consigo próprio, não é espantoso que ele não mais possa se entender com os outros. As definições são os resultados de um sistema na mesma medida em que são os seus princípios; eis por que elas são ordinariamente tão caras à seita e ao partido que as adota; pois elas se tornam a divisa em torno da qual os seus seguidores se congregam; elas parecem englobar numa expressão sumária todas as opiniões que lhes são caras. Então, é visível que a diversidade das acepções que os homens dão aos termos está em continuidade com a oposição que reina entre suas ideias e que não se trata mais de um simples debate sobre palavras, mas de uma verdadeira discussão sobre o fundo das coisas. Os meios que devemos empregar para terminar estas duas espécies de debates são necessariamente diferentes como a origem destes próprios debates. Nos debates sobre palavras cada um tem igualmente razão e basta que cada um se explique. Nos outros, alguém está certamente no erro e é necessário convencê-lo. Portanto, importa antes de tudo possuir uma maneira certa de distinguir os debates sobre palavras daqueles que têm outra origem, para que quando surja uma discussão não lhe procuremos outros remédios senão aqueles que são verdadeiramente próprios para terminá-la e que não se agregue ao inconveniente já tão funesto da contradição, o de prolongá-la por raciocínios inúteis. Quando a proposição discutida circula unicamente sobre ideias simples ou complexas de primeira ordem, pode-se estar certo que há apenas um debate sobre palavras. Pois então, podendo cada um abarcar pelo espírito todos os elementos pelos quais se compõe a acepção dos signos, pode haver apenas diferença em relação à própria convenção na qual esta acepção está fundada. Neste caso, o valor dos termos não sendo o resultado de uma dedução, não pode estar sujeito a nenhum erro de lógica. Assim, supondo que dois homens debatessem sobre a proposição duas vezes dois são quatro, não se poderia duvidar que um e outro não tivessem atribuído às palavras dois e quatro ideias diferentes. Quando o debate circula sobre ideias mais complexas há um meio fácil e seguro para logo reconhecer se sua origem está somente nas palavras ou se antes ela está nos julgamentos do espírito. Este meio consiste em empregar sucessivamente, para explicar os termos da proposição, as duas definições que distinguimos no segundo capítulo e se possível os outros meios acessórios que também indicamos e que servem para fixar o valor dos termos. Pois estas diferentes definições destinam-se a se servirem mutuamente como provas. Portanto, se o debate é sobre as palavras, não nos poremos de acordo com nenhuma dessas definições; se nos pomos de acordo com uma das definições, será certo que a diferença das opiniões tem outra origem e que ela é produzida pelos julgamentos do espírito. Com efeito, se queremos examinar por que a diversidade das acepções atribuídas aos termos resulta às vezes entre nós da diversidade dos julgamentos que fazemos sobre as coisas, notaremos que há sempre nesse caso uma primeira definição comum àqueles que raciocinam e que esta similitude de uma primeira definição é precisamente a causa da diferença que se manifesta nas definições secundárias. Assim, vários indivíduos chegarão por seus raciocínios a conceber diversamente a ideia da causa primeira dos fenômenos do universo. Alguns o representação com uma causa imaterial, inteligente e sábia, outros como uma força cega e ainda outros como um princípio corporal; mas todos encontraram na língua a palavra Deus já consagrada por uma convenção geral para exprimir a ideia da causa primeira e todos adotarão esse nome para representar o princípio que conceberam. Ainda do mesmo modo, numa questão que se liga a seus interesses pessoais, cada um dos dois indivíduos apenas considerará a relação que lhe é vantajosa e que pode justificar suas pretensões; mas encontram na língua as palavras direito e justiça já consagradas para enunciar o que é devido e garantido pela sociedade a todos os seus membros; portanto, cada um aplicará as palavras direito e justiça em favor de suas pretensões particulares. Vê-se que se aqueles que debatem não pudessem, nessas duas hipóteses, se apoiar numa definição comum não usariam os mesmos termos; mas, como a diversidade de seus julgamentos sobre o fundo das coisas lhes fez ligar ideias diferentes a uma mesma ideia principal, é natural que, encontrando uma palavra já influenciada por esta ideia principal, estendam-na às ideias subordinadas que julgaram conveniente associar a esta e que a oposição que reina nos liames do espírito produza uma semelhante nos liames da fala. Ao contrário, quando o debate tem a sua primeira origem nas palavras e ainda quando aqueles que discutem estão de acordo sobre o fundo das coisas, isentos de erros em seus julgamentos, devem divergir igualmente em todas as definições que possam dar do mesmo termo. Com efeito, as acepções secundárias não tendo sido em nada alteradas entre eles pelos julgamentos do espírito, apenas podem ser o resultado da acepção primitiva e fundamental; a diversidade que reina por ocasião das primeiras deve portanto proceder da diversidade que se estabelecera por ocasião destas. Se, estando de acordo sobre uma definição, se divergisse sobre outra, seria visível que um dos que raciocinam se encontraria em contradição consigo próprio, uma vez que suas definições não concordariam; então, certamente haveria algum erro em seus juízos, algum vício •em seus raciocínios e não mais teríamos um simples debate sobre palavras. Disse que para deslindar a verdadeira origem do debate é preciso reunir todos os métodos de definição e não apenas recorrer à definição pelas ideias mais simples; pois vimos que a definição primeira e fundamental dos termos não se opera pelo mesmo sistema em todos os espíritos. Alguns adquirem pela definição sintética a ideia que outros devem à análise. Tudo depende das circunstâncias nas quais cada um se encontra. Alguns, por exemplo, formam a ideia de virtude segundo uma ação particular, outros segundo certas condições gerais que lhes foram traçadas pelos mestres que presidiram sua educação. Quando conseguimos reconhecer a verdadeira fonte do debate resta aplicar os remédios mais convenientes. Se o debate procede duma diversidade real nos julgamentos, um dos que raciocinam está necessariamente no erro e o único meio de restabelecer o acordo é fazer com que retifique as operações mal feitas. Na refutação dos erros, as questões abstratas têm uma grande vantagem sobre as questões de fato. Os erros cometidos nas questões de fato procedem frequentemente de observações que foram mal executadas; portanto, é preciso recomeçar então essas observações com um cuidado novo e para aí chegar é necessário fazer com que o indivíduo que se engana passe outra vez por certas circunstâncias que nem sempre podemos reproduzir. Mas, nas questões abstratas, todos os elementos de nossos julgamentos se encontram sempre à nossa disposição no espírito. Portanto, basta então voltar a ideias simples, claras, e igualmente bem determinadas para aqueles que discutem e, segundo uma boa lógica, tender em seguida para os resultados a respeito dos quais se diverge. Se portanto as discussões que surgem a propósito de questões abstratas são aquelas comumente intermináveis e inúteis para o progresso da verdade, é preciso procurar a causa delas apenas na pouca atenção que pomos em seguir a marcha natural do raciocínio, na ignorância onde aquele que procura convencer se encontra em relação às operações de seu espírito, como também em relação aos meios próprios para dirigir o espírito- dos outros, no embaraço que experimenta ao se dar conta dos métodos que o conduziram à verdade, se não deve entretanto a verdade antes a uma espécie de acaso do que ao esforço de seu raciocínio; enfim, na má-fé que temos muito frequentemente no debate, na presunção que nos impede de querer recomeçar nossas próprias operações, no amor-próprio que não nos deixa escutar com calma e reflexão as objeções que nos são endereçadas e de seguir aqueles que querem nos esclarecer nos detalhes de suas provas. A espécie de argumentação que chamamos redução ao absurdo tem, na refutação dos erros, a vantagem de regular o amor-próprio e os preconceitos daqueles que combatemos e assim pode oferecer em algumas ocasiões certa conformidade. Pois, mostrando o absurdo das consequências às quais seríamos conduzidos pela opinião adotada, o erro se encontra antes indicado do que posto à luz e permanece em relação ao princípio que o causou uma espécie de indeterminação da qual a vaidade pode tirar algum consolo. Aliás, fazendo aquele que refutamos percorrer uma cadeia de novas proposições, não nos expomos a reencontrar em seu caminho as ideias falsas que o enganaram; ele admite uma a uma a verdade que lhe apresentamos porque ele está em relação a elas num estado de imparcialidade e ainda não prevê o resultado ao qual elas devem conduzi-lo. Entretanto, esta maneira de raciocinar apresenta também aos olhos do filósofo um inconveniente muito sensível; trata-se do fato de ela não trazer o remédio para a origem do mal. Talvez faremos o homem que refutamos renunciar à opinião que ele tinha admitido; mas não lhe mostraremos qual o erro preciso de que seu espírito se fez culpado; não lhe ensinaremos como operar melhor em outras circunstâncias e o erro que corrigimos poderá ainda se reproduzir sob outras formas. Talvez mesmo, reconhecendo o absurdo das consequências às quais é conduzido, apenas encontrará nesse novo raciocínio uma força igual àquela do raciocínio no qual sua opinião se fundara; então, ele permanecerá na hesitação do ceticismo; outras vezes, ele preferirá admitir um paradoxo a crer em seu próprio erro. Assim, mesmo quando julgamos conveniente empregar a forma da redução ao absurdo, consideremo-la apenas como uma preparação para uma refutação mais direta, como um meio de dispor o espírito daqueles aos quais nos endereçamos a reconhecer a ilusão na qual estão perdidos. Os debates sobre as palavras sem dúvida são os mais funestos de todos na medida em que não podem ser de nenhuma utilidade para o exercício do espírito e a reforma da verdade. Mas, sob outro ponto de vista, eles têm isto de bom: praticamente terminam a partir do momento em que são reconhecidos no que são, isto é, um simples mal-entendido sobre as palavras. Então, resta apenas saber quais são as palavras sobre cuja acepção não nos entendemos mais. Quando o debate sobre palavras transcorre sobre os termos das ideias adquiridas, esta segunda questão pode ser muito facilmente resolvida. É necessário então apenas invocar o testemunho dos sentidos, recorrer aos fatos dos quais estas ideias são a pintura; mas, quando as palavras que servem de objeto para tais debates representam ideias arquétipas, é preciso às vezes uma pesquisa suficientemente longa para reconhecer os termos acerca dos quais divergimos. Com efeito, a diversidade de acepções que atribuímos aos termos das ideias primitivas e fundamentais carrega inevitavelmente uma variedade proporcional nas acepções dos termos afetados pelas ideias mais ou menos distanciadas que são engendradas pelas precedentes. Então, para descobrir a fonte verdadeira do mal-entendido, somos obrigados a retomar aos primeiros elementos da linguagem. Existem pessoas que, até mesmo quando o mal-entendido é reconhecido e tido como fonte única da discussão, não querem, entretanto, ainda renunciar ao direito de debater, que se atêm a definições de palavras tanto quanto podemos nos ater a opiniões sobre as coisas e que, não contentes com o nosso acordo sobre seu pensamento, ainda querem que nos exprimamos segundo a sua maneira. "Suas acepções", dizem, "são as únicas boas." Isto é, eles as creem as mais gerais e cedem ao preconceito que faz considerar as convenções da linguagem como leis necessárias, e as ideias representadas por uma palavra como essencialmente ligadas a esta palavra. Em lugar de perder um precioso tempo em reconhecer e terminar os debates sobre palavras que surgem em torno de nós, sem dúvida, seria bem mais proveitoso procurar preveni-los antes de seu aparecimento, e, uma vez que esses debates se dão em decorrência da grande variedade de acepções que a si próprias palavras recebem entre os homens, talvez atingiríamos este desejável fim se lográssemos refazer as convenções da linguagem e fundá-las em bases universalmente admitidas por todos aqueles que devem falar uma mesma língua. Mas vê-se, unicamente pela natureza desse projeto, o quanto é difícil executá-lo; pois como convocar todos que deveriam participar desta convenção? Como, mesmo que os convocássemos, fazê-los consentir com semelhantes definições? O hábito, os preconceitos, o amor-próprio, a ignorância da verdadeira geração das ideias não trariam numerosos obstáculos para a unanimidade que desejaríamos obter? O trabalho das definições só pode ser executado pelos filósofos; e não vemos todos os dias quão pouco os próprios filósofos conseguem pôr-se de acordo na explicação dos termos mais simples? Se não admitirmos nesta convenção todos aqueles que nela deveriam tomar parte, como contar com a fidelidade deles na sua observância? Os italianos têm sua academia de La Crusca especialmente encarregada de velar pelo acervo da língua; esta função pertence também às atribuições de nossa Academia de Belas Letras. Mas o que pode fazer uma academia? Fixar o uso e não mudá-lo; conservar a língua e não reformá-la. Ela recebe a lei dos escritores existentes e apenas a transmite aos escritores futuros. Ela nos ensina quantas acepções diferentes podemos atribuir a uma mesma palavra; ela em nada impede que no discurso essas acepções sejam tomadas umas pelas outras. Ela previne os solecismos e não os equívocos; ela dá regras aos literatos e não aos filósofos. Aliás, sua autoridade é sempre reconhecida? Cada um não se crê no direito de questionar suas decisões? Ou antes suas decisões não são simples conselhos que a maior parte das pessoas não entende e os outros frequentemente não querem entender? Sem dúvida, as academias foram úteis para a língua, ao menos por chamar a atenção sobre ela; mas sua vigilância apenas era uma frágil proteção contra os efeitos, em seu conjunto tão funestos e tão escondidos, da indeterminação da linguagem. Entre os melhores frutos que se poderiam retirar do estabelecimento de uma escola Normal, destinada a reunir num mesmo preparo todos aqueles que devem um dia concorrer para a educação pública, sem dúvida é preciso contar este: dar maior unidade e fixidez à linguagem. De início, ter-se-ia a grande vantagem de que a língua seria feita pelos sábios e não pelos literatos; isto é, por aqueles que têm verdadeiramente o direito de formá-la porque estão em condição de melhor fazê-lo; unicamente podem determinar o sentido das palavras aqueles que por muito longo tempo meditaram sobre as ideias que elas representam e observaram as leis de sua geração. Dessa maneira, as definições uniformes, adotadas pelos homens mais instruídos, se difundiriam no mundo filosófico e daí se comunicaria para o resto da sociedade. Mas esta unidade de ensino, talvez, teria alguns inconvenientes bastante prejudiciais para o progresso dos conhecimentos humanos: seria de se temer que, enquanto se adotasse a mesma linguagem, só fossem adotadas exclusivamente as mesmas ideias e que não mais se abrisse uma carreira suficientemente livre para emulação do gênio. Tanto é útil que os sábios se entendam, quanto é perigoso que se entreguem a uma imitação servil. Em meio a esta triste e geral incerteza da linguagem, resta ainda um recurso ao filósofo. Se ele não pode destruir esta incerteza em seu princípio, ao menos pode impedir que ela não estenda sua influência sobre os efeitos que seus escritos devem produzir. Todas as vezes que ele empregar um termo cuja acepção não for universalmente determinada, terá cuidado de defini-la com exatidão através de outras expressões mais convenientes e em seguida aplicar-se-á a permanecer constantemente fiel às acepções que tiver. Assim, prevenindo que devemos sempre estendê-la no sentido que se formou, ele conseguirá de alguma maneira se isolar dos abusos que reinam no seio da sociedade. Esses esforços individuais, a longo prazo, poderão mesmo ter um efeito mais geral: oferecendo o modelo de uma linguagem bem feita, os filósofos tornarão mais sensíveis os inconvenientes daquela que existe; mostrarão como deveríamos proceder para corrigi-la; e, aliás, se eles usam para expor verdades úteis ao bem da sociedade, para tornar a ciência popular entre os homens, se seus livros se tornam uma espécie de manual para os homens esclarecidos, se obtêm a preciosa vantagem de se consagrarem à educação, a autoridade de" seus exemplos será bem mais eficaz para a reforma da língua do que toda a influência dos preceitos e máximas que cada pessoa repete sem praticá-las, e que a própria antiguidade tornou triviais sem torná-las mais úteis. “O preceito de definir os termos antes de usá-los é tão antigo quanto a filosofia. Aristóteles insiste nisso frequentemente. Bacon, Descartes, Leibniz, Locke reproduziram-no com uma nova força. Mas, a que servia recomendar tanto essas definições se não, se davam regras, seguras para bem elaborá-las, ou se essas regras não estavam apoiadas no auxílio dos exemplos? (Nota do Autor)” De resto, há aqui outro perigo contra o qual é preciso se garantir: o de crer que o cuidado de definir as palavras que se empregam autoriza um escritor a delas fazer o emprego que julgue conveniente e que podemos começar por determinações arbitrárias, contanto que nos apliquemos em seguida a permanecer fiéis a elas. Este abuso é bastante comum entre os filósofos. Sob o pretexto de que a língua recebida é má, cada um pensa que tem o direito de refazê-la a seu bel-prazer. Esta licença seria permitida, quando muito, se escrevêssemos apenas para nós próprios; mas, uma vez que escrevemos sobretudo com a intenção de ser lidos, é um dever procurar aproximar-nos o mais possível das acepções mais gerais. Em vão teremos nos preocupado com definir rigorosamente as acepções novas que queremos dar às palavras existentes, o hábito poderá ainda frequentemente, ao longo da leitura, reconduzir os espíritos dos outros às antigas acepções e expô-los a nos entender mal, se isto não vier a acontecer conosco próprios e assim viciar nossos próprios raciocínios. E certo ao menos que o esforço que será preciso fazer para aprender nossa linguagem e reter todas as convenções que a fundam prejudicará singularmente a atenção que se poderia dar ao fundo das coisas. Alguns renunciarão diante de um estudo que se tornou muito difícil; outros conceberão mal verdades que se tornaram muito obscuras; e, por termos querido melhor falar, apenas conseguimos ser ininteligíveis. Enfim, se cada autor, particularmente, se atribuísse a prerrogativa de introduzir acepções estranhas àquelas que são adotadas, que limites se importam à anarquia e à desordem dos caprichos individuais? O número, já tão grande, de diferentes interpretações atribuídas às mesmas palavras aumentaria cada dia; a memória não poderia retê-las, nem a atenção reconhecê-las; a confusão que queríamos remediar seria aumentada e, em meio a tantos idiomas, a sociedade não mais possuiria linguagem. Há apenas três hipóteses segundo as quais uma palavra pode ser desviada sem inconveniente, e até mesmo com vantagem, de sua acepção admitida; a primeira é o caso no qual as acepções seriam de tal modo múltiplas e confusas que não se poderia encontrar no uso nenhuma regra fixa e precisa para se conduzir, tornando-se mais simples fazer tudo novamente do que pretender reaproveitar os restos do que existe; a segunda é aquela devido à qual as palavras seriam empregadas evidentemente contra o caráter marcado em sua analogia; a terceira é aquela segundo a qual a acepção da palavra se acharia fundada numa classificação viciada, uma classificação que exigiria ser reformada para o progresso e o ensino da ciência. Então, conservando os nomes dos gêneros e das espécies, seria necessário mudar seu valor, uma vez que seria necessário mudar as atribuições dessas espécies e desses gêneros. Enquanto a verdadeira filosofia deplora a incerteza da linguagem, há alguns indivíduos que lhe devem dar graças. Com efeito, é bastante comum ouvir dizer de um autor, cujas ideias são combatidas, que ele não foi compreendido por aqueles que o atacam; certamente é difícil encontrar uma resposta, ao mesmo tempo, cômoda para o sistema que se defende e mais adequada para abrigar a vaidade de seus apologistas. De início, é completamente supérfluo discutir com pessoas que não nos ouvem; portanto, isentamo-nos de lhes apresentar argumentos e os remeteremos novamente à própria obra para que tentem, se eles o podem, melhor compreendê-la. Este nevoeiro de palavras obscuras se tornará um obstáculo que oporemos a todas as objeções, por mais precisas que possam ser; pois basta então recusar tudo o que elas supõem; reconhecemos que as objeções são muito justas, mas agregando que elas não têm relação alguma com a questão que queremos tratar; o sistema torna-se assim semelhante ao Proteu da fábula que ganha mil formas diferentes na medida em que queremos apreendê-lo. Ainda mais, com este silêncio tão prudente ostentamos uma espécie de superioridade, retiramos até mesmo alguma vantagem do número de nossos adversários; pois deixamos supor que, se não fomos ouvidos, é porque habitamos uma esfera mais elevada do que a dos espíritos vulgares. Os discípulos e os seguidores do sistema aplaudirão entusiasmados uma suposição que os eleva e os honra; crer-se-ão tanto maiores quanto mais distanciados se virem do resto dos homens. O privilégio no qual foram iniciados lhes parecerá mais precioso na proporção em que for mais raro; eles se aterão a estas ideias pelos próprios esforços que elas lhes custaram. A multidão frequentemente será seduzida por esta aparência misteriosa; ela acreditará esses homens inspirados unicamente por sua fala; sua obscuridade aos seus olhos será apenas uma prova da elevação de sua doutrina e da grandeza de seu gênio; quanto menos ela for compreendida, mais ela será suscetível de admiração e de respeito. Tomemos cuidado entretanto em autorizar o uso dessas frívolas desculpas e não deixemos os sofistas gozarem em paz um triunfo usurpado. Sem dúvida, a confusão da linguagem é grande: entretanto, as palavras não são de tal modo incertas e os esforços da filosofia não são de tal modo impotentes, que, nas línguas existentes, ainda não se possa exprimir-se com clareza e que não se possa elevar-se ao pensamento daqueles que falam. Não os escutamos, dizem! - Mas de quem é o erro? Se pretenderam tomar as palavras em suas acepções mais gerais, como a generalidade dos homens não pode penetrar no segredo de suas ideias? Se quiseram adotar novas acepções, por que não as explicaram segundo termos conhecidos e determinados? Qual é, portanto, esta filosofia tão sublime que começa por negligenciar o preceito mais antigo, mais importante de toda a filosofia, que é o de não empregar nenhuma expressão antes de ter explicado bem a interpretação que se lhe atribui? - Não os escutamos? - Mas, com efeito, não procuram portanto se fazer ouvir? Se eles não conseguem, não é uma prova visível que não sabem se compreender a si próprios e que suas ideias são obscuras em sua linguagem porque são vagas e indeterminadas em seu espírito? Para atingir essas ideias tão elevadas, não deveriam de início trabalhar sobre ideias simples e sensíveis e seguir com ordem seu desenvolvimento sucessivo? Por que não podem pois nos indicar as noções primitivas das quais partiram? E se não podem nos reconduzir através do caminho que seguiram, não é evidente que eles próprios o ignoram, que não notaram a marcha de suas próprias operações, isto é, que raciocinaram sem método, e por conseguinte sem verdadeira lógica? O piloto que não pode me traçar a rota que é preciso seguir para chegar a uma praia desconhecida demonstra que errou como um cego e os próprios êxitos não poderiam me inspirar a confiança de me entregar à sua orientação. Não é que o pensamento do filósofo não possa por vezes encontrar-se além do alcance vulgar, desse mesmo vulgar que lê e raciocina. Mas, quais são as circunstâncias nas quais esta obscuridade é inevitável? É quando as ideias que ele trata supõem certo conjunto de fatos que em nada são conhecidos de todos ou ainda quando ele raciocina sobre combinações muito elevadas ou abstrações bastante profundas que não são absolutamente acessíveis àqueles que não executaram as operações intermediárias ou, enfim, quando ele exprime máximas que parecem estar encobertas pelos preconceitos estabelecidos. Mas nenhuma dessas circunstâncias pode, ao menos, se aplicar aos verdadeiros princípios da Metafísica. Sendo o fim desta ciência apenas observar a geração de nossas ideias, ela deve começar, se for bem feita, pelas noções mais familiares a todos os homens; ela deve apoiar-se nas máximas não obscurecidas pelos preconceitos a fim de atacar com superioridade esses próprios preconceitos; ela deve refazer as abstrações e combinações, e, por conseguinte, não omitir nenhuma das mediações que lhes são necessárias. Seu estudo deve ser para todos os homens apenas um contínuo exercício de reminiscência. É possível que uma atenção fraca e pouco exercitada não possa segui-Ia em suas últimas operações; mas os primeiros elementos jamais podem ser um mistério. Ela deve ser como nossa língua materna que apenas aprendemos gradualmente, mas não como algo cuja chave é desconhecida e que se explica de uma vez logo que a possuímos. Isso me reconduz a uma observação que queria fazer: os debates sobre palavras não devem ser tão frequentes, nem quando ocorrem diferentes expressões, nem quando ocorrem diversas ideias. À proporção que uma ideia é mais fácil de ser determinada segundo sua natureza e que o papel que desempenha nas comunicações sociais é maior, torna-se mais provável que nos ponhamos de acordo para fixá-la sob certo termo. Do mesmo modo, à proporção que um termo tem mais do que uma estreita analogia com a ideia que representa, ele deve lembrar melhor àqueles que dele se servem as convenções gerais que lhe serviram de fundamento. De resto, mesmo quando chegássemos a reformar a linguagem geral da sociedade, restabelecendo de uma maneira clara e precisa as convenções sobre as quais repousa, seria preciso que não nos persuadíssemos que todos os debates sobre palavras fossem evitados por esta única precaução e que exercêssemos, ao falar, uma exata vigilância sobre nós próprios e um justo grau de atenção ao escutar os outros. As imperfeições de nossa linguagem advêm sobretudo das falhas e da leviandade de nosso espírito. Dois filósofos que jamais estabeleceram uma única convenção entre eles poderiam facilmente se entender, se ambos se aplicassem a notar a geração de suas ideias. Dois homens superficiais não concordariam mais em suas ideias do que em suas observações, abusariam da melhor linguagem, porque não conseguiriam permanecer fiéis às convenções que fixaram. O bom uso dos termos, corno tudo aquilo que depende das operações do espírito, consiste sobretudo na arte de bem dirigir sua atenção. O homem que sabe analisar o seu próprio pensamento encontra sempre o meio de se fazer entender pelos outros. IV. 2 Necessidade e contingência. Ao meditarmos sobre uma ideia, tudo o que deduzimos através de um raciocínio exato é dito necessário a esta ideia, isto é, esta ideia arrasta inevitavelmente consigo este resultado, pois esse resultado não é outra coisa senão ela própria submetida a uma transformação qualquer. Sendo admitido um fato do qual conhecemos a ideia, tudo o que descobrirmos nesta ideia, pela meditação, será chamado necessário a este fato, isto é, que este fato não poderia existir sem esse resultado que não é outra coisa senão o próprio fato visto sob uma luz diferente. Um fato será portanto necessário quando ele for a transformação de um fato já reconhecido e estabelecido e a necessidade do primeiro será sempre consequente à suposição do segundo. Uma verdade de fato, contingente, será aquela que se nos oferecerá sem ser necessária, isto é, sem se encontrar já contida numa verdade de fato que possuímos. Daí resulta que a necessidade e a contingência apenas existem realmente para nosso espírito e são, tão somente, modificações diferentes de nossa maneira de conceber. Não possuímos nenhuma ideia de uma necessidade e de uma contingência que se alojem na própria natureza dos seres, pois não temos luz alguma acerca do princípio íntimo de sua existência. Daí resulta ainda que não há para nós nenhuma necessidade absoluta e que as primeiras verdades das quais nosso espírito se apossa podem ser apenas verdades contingentes; pois sendo a necessidade apenas a identidade, sendo, a nossos olhos, o fato necessário apenas a consequência do fato observado ao qual ele se liga, a necessidade nada agrega aos verdadeiros elementos de nossos conhecimentos; ela os supõe e seria preciso uma primeira ordem de fatos notados sem ser previstos para dela deduzir, transformando suas ideias, outros fatos secundários que lhe sejam ligados e que assim pudéssemos afirmar a partir deles. Se de início não tínhamos o sentimento da existência de nenhuma coisa, não poderíamos jamais estabelecer pelo raciocínio a existência de qualquer coisa, por menor que ela fosse. Estando o verdadeiro uso dos raciocínios abstratos vinculado a regras simples e precisas, será fácil determinar em que consiste o abuso que dele se possa fazer. O primeiro abuso dos raciocínios abstratos consistira em supor que todas as verdades devem e podem ser teoricamente demonstradas e em rejeitar certos fatos primitivos que nos são somente permitidos ver e sentir, sem que nos seja possível sobre eles raciocinar. Encontramos numerosos exemplos de semelhante abuso em questões suscitadas a propósito de certos pontos de filosofia e moral. Pretendemos submeter a demonstração o sentimento que temos da realidade dos corpos e dos primeiros fenômenos de nossa própria existência. Pretendemos estender o poder da análise sobre as noções elementares de nossos deveres. Aqueles que pretenderam confirmá-las por deduções abstratas caíram apenas num círculo vicioso e provaram o mesmo pelo mesmo. Aqueles que apreciaram essas deduções segundo as regras de uma sã dialética acharam-nas insuficientes; é desta obstinação em solicitar provas de tudo que nasceram os argumentos do ceticismo sempre em contradição consigo próprio, pois ele cede na prática à voz todo-poderosa do sentimento no próprio instante em que parece combater a autoridade deste com as armas da lógica. Desse abuso nasceu a mania tão comum aos filósofos e tão funesta à filosofia de querer tudo explicar e pretender incessantemente remontar às causas primeiras, quando a experiência apenas nos oferece efeitos subordinados; daí ainda derivam as inúteis e intermináveis discussões sobre a natureza do movimento e da extensão, sobre os pontos matemáticos e sobre os elementos da matéria. O segundo abuso dos raciocínios abstratos consiste em considerar os princípios metafísicos como próprios para formar, ao menos em parte, os elementos do conhecimento humano, e não reparar que esses elementos somente podem ser fatos primitivos, que toda luz começa com a observação, que os princípios metafísicos, sendo apenas a expressão da identidade, podem ser, tão somente, instrumentos para transformar e traduzir os fatos primitivos em fatos novos para nosso espírito, embora já realmente contidos nos primeiros. Foi sobre esses abusos que se fundaram sistemas abstratos, dos quais Condillac, em primeiro lugar, nos fez sentir tão bem o absurdo. Por esses princípios serem verdadeiros por si mesmos, concluía-se que eram também úteis por si próprios, enquanto deveríamos concluir precisamente o contrário; pois sua evidência fora devida à identidade das ideias comparadas e toda comparação nada mais pode fazer do que transmitir a um objeto os conhecimentos já adquiridos em relação a outro objeto. Acumulando assim verdades infecundas fazia-se um volumoso livro e acreditava-se ter feito uma ciência; mas que acontecia? Ou o resultado, sendo ele próprio abstrato, não fornecia nenhuma noção positiva ou, pelo auxílio dos equívocos seria preciso conferir aos princípios uma espécie de fecundidade artificial e ilusória. Com efeito, foi o que tentaram bastante frequentemente os metafísicos escolásticos, sem excluir o próprio Descartes, esse filósofo que teria produzido grandes coisas se tivesse empregado melhores métodos, pois, seguindo métodos viciosos, ele ainda desenvolveu um tão espantoso gênio e seus próprios erros foram úteis para o espírito humano. O terceiro abuso consiste em nos persuadirmos de que, se não se pode unicamente com o auxílio dos raciocínios abstratos fundarem os princípios da ciência, pode-se ao menos recuar seus limites de uma maneira direta e positiva, seja agregando-lhe algum novo fato elementar que não se encontrava implicitamente compreendido nos fatos observados, seja descobrindo um liame novo entre dois fatos distintos cuja observação não estabelecera o encadeamento com algum fato intermediário, com algum elo comum. “Não entendo absolutamente derrogar aqui o que disse em outra parte acerca do emprego que podemos fazer dos julgamentos da analogia e do cálculo das probabilidades para chegar aos fatos que não foram objeto de observação. (Nota do Autor)” Foi sobretudo pelo exemplo dos geômetras que os metafísicos se creram autorizados a estabelecer, a partir dos fatos primitivos ou princípios, consequências mais amplas do que os próprios princípios; notaram que um geômetra, por exemplo, chega a descobrir a altura de uma montanha inacessível através de algumas operações que executa ao pé dela, onde se encontra. Mas, para dissipar este erro basta mostrar, como o fizemos no segundo volume desta obra, que os próprios geômetras somente obtêm por seus cálculos fatos já contidos na observação e que não abandonam o âmbito demarcado gela identidade. Quantas leis novas, por exemplo, os filósofos não quiseram introduzir no universo pela estrita virtude desse princípio abstrato, que a natureza age pelas vias mais simples? É verdade que para aplicá-la seria preciso supor que aquilo que parecia mais simples para nosso espírito era também mais simples em si mesmo; mas esta suposição era muito fácil para a modéstia dos filósofos. O quarto abuso localiza-se na facilidade com que os metafísicos muito frequentemente esquecem que as ideias sobre as quais raciocinam são apenas suas próprias maneiras de conceber e transportam para o teatro da natureza todas ás noções que se formaram em seu espírito. Daí a importância que atribuíram, por exemplo, à questão da necessidade e da contingência, pois pensavam que estas noções se aplicavam à própria natureza dos fatos e não notaram que elas resultam somente da maneira pela qual raciocinamos sobre esses fatos. Daí, ainda, este erro que fez do acaso uma verdadeira causa que nada mais é do que a expressão de nossa ignorância sobre as causas. A pretensão dos metafísicos não tem aí o seu limite; quiseram ainda realizar ideias que não podiam conceber e raciocinar sobre estas estranhas hipóteses como se delas possuíssem os dados. Tais foram, por exemplo, as sutilezas e paradoxos aos quais se entregaram a propósito da natureza dos infinitamente grandes e dos infinitamente pequenos, e dos quais o ilustre secretário da Academia Francesa não soube se defender. “Ver os Elementos da Geometria do Infinito, de Fontenelle. O erro desse filósofo foi querer realizar o infinito numérico que, mesmo em nós, é apenas uma ideia negativa, como o termo sói indicar suficientemente. (Nota do Autor)” O quinto abuso consiste em nos cingirmos exclusivamente aos fatos simples que compõem as leis gerais e em negligenciarmos as modificações acidentais a que circunstâncias subordinadas, frequentemente escondidas aos nossos olhos, podem sujeitá-los. Quando um metafísico examinou exatamente a natureza do fato que lhe apresentou a experiência, combinou todos os resultados e todas as aplicações dela, crê ter tudo previsto; ele não mais admite nem exceções nem variações. Daí esse caráter absoluto e de alguma maneira inflexível que ganham ordinariamente em sua linguagem as máximas fornecidas pelas primeiras observações. Encontramos aqui uma das origens mais frequentes do divórcio entre a Metafísica e a experiência; pois os acontecimentos frequentemente desmentem os cálculos rigorosos em seu encadeamento, mas facilmente referidos aos fenômenos da natureza. As primeiras aplicações que se quis fazer das noções geométricas na astronomia fizeram supor que os corpos celestes descreviam curvas perfeitamente regulares; observações mais bem feitas levaram a ver que estas aplicações foram muito precipitadas e que as irregularidades notadas anunciavam que ainda existiam certas leis que não tínhamos feito entrar no número dos dados sobre os quais os raciocínios foram estabelecidos. Descartes foi o primeiro que soube deduzir as leis do movimento a partir de uma simples teoria abstrata, fundada na própria ideia do movimento; mas essas leis foram bastante inexatas porque ele não prestou suficiente atenção às circunstâncias que podiam modificar os fatos que quisera submeter ao cálculo. Enfim, o sexto e último abuso dos raciocínios abstratos advém da confiança excessiva que algumas vezes outorgamos aos procedimentos do espírito na formação de suas teorias. Do fato de as deduções metafísicas gozarem, quando bem feitas, de uma certeza absoluta, frequentemente conclui-se então que basta usá-las para obter de alguma maneira o privilégio da infalibilidade. Para estarmos autorizados a nelas confiar plenamente, precisaríamos estar seguros, com efeito, que procedemos com uma perfeita regularidade. Ora, a experiência nos ensina que é muito fácil nos deixarmos enganar por um equívoco, suprimir uma mediação essencial, ceder, associando duas ideias, unicamente ao poder do hábito, omitir nas ideias sobre as quais meditamos algum elemento que não chamou muito a atenção; enfim, sem percebermos, realizar alguma suposição do espírito. Então, a evidência que pertence aos primeiros princípios e que parece se comunicar às consequências, torna-se para nós uma luz enganosa, e daí nascem os paradoxos; isto é, essas proposições que ao mesmo tempo parecem evidentemente verdadeiras e evidentemente falsas, porque os raciocínios que apoiam as duas contrárias são na aparência igualmente bem deduzidos. Portanto, seria mais exato apenas considerar os resultados de nossos raciocínios abstratos como uma espécie de probabilidade, a fim de reservar desta maneira algumas oportunidades para os erros que podemos ter cometido ao raciocinar. Essas probabilidades se minimizariam na proporção em que as ideias sobre as quais tivéssemos raciocinado fossem, segundo sua natureza, mais difíceis de determinar, na proporção em que o raciocínio estabelecido se compusesse de um maior número de termos, que os signos fossem mais incertos, enfim, à proporção que nós próprios dedicássemos menos tempo e atenção ao nosso trabalho. Entretanto, esta probabilidade às vezes poderá se confundir com uma completa certeza quando as ideias comparadas forem muito claras e as deduções que ocasionarem forem muito simples. Assim atribuindo aos nossos raciocínios abstratos apenas uma espécie de probabilidade, não nos espantaremos que seus corolários se encontrem por vezes desmentidos pela experiência ou contraditos pelos resultados mais regulares do cálculo. Não admitiremos então paradoxos demonstrados; mas reconheceremos que ao raciocinar nos escapou algum erro sutil de que uma atenção maior nos teria resguardado. Portanto, devemos às vezes renunciar aos resultados metafísicos, apesar do aparente rigor de suas formas, para nos ater a mais seguras e diretas instruções. Espantar-nos-emos ainda menos quando as consequências das deduções abstratas se encontrarem em contradição com as probabilidades que resultam dos fatos; pois, então, nenhuma das duas afirmações pode ser absoluta; neste caso nos restará comparar exatamente a probabilidade dos fatos com a boa qualidade do raciocínio, a fim de ceder àquela que for mais forte; e, frequentemente, se soubermos fazer justiça, a presunção mais poderosa não será a que milita em favor de nossa lógica. Mas os conselhos do amor-próprio não poderiam em nada concordar, aqui, com os da prudência: eis aí o grande perigo ao qual nos expomos. Quem consente em admitir no número das oportunidades a possibilidade de ter raciocinado sem precisão? Quem, mesmo reconhecendo esta possibilidade, consente em lhe dar uma justa latitude e, devendo se pronunciar entre o testemunho dos fatos e as asserções de sua razão, põe-se como juiz de sua própria causa e não se pronuncia com alguma parcialidade? Sobretudo, qual é o metafísico que reconhece, sem dificuldade, a insuficiência dessas formas de raciocínio que meditou com tanto cuidado, que seja suficientemente modesto para conservar em relação a si próprio uma justa desconfiança na prática de uma arte que durante tão longo tempo exerceu e que parece fundar toda a sua superioridade em relação a todos os outros homens? Remetendo assim os raciocínios metafísicos a seu verdadeiro espírito, distinguindo seu legítimo emprego daquele que nada mais é do que seu abuso, justificamos a máxima que anunciáramos no começo deste capítulo; demonstramos que a Metafísica e a experiência, em lugar de serem duas adversárias que se combatem sem cessar, são, ao contrário, duas aliadas que prestam uma à outra um auxílio muito eficaz, desde que se compreendam; reconhecemos que a Metafísica, privada do apoio da experiência, seria impotente para começar qualquer coisa, como a experiência, privada da Metafísica, seria inábil para acabar qualquer outra. Portanto, compararemos a Metafísica a um industrioso operário que não conseguiria produzir a menor coisa, apesar de todo o seu talento, se alguns materiais lhe fossem fornecidos; compararemos a experiência a uma mina de metal precioso que, entretanto, seria inútil, qualquer que fosse sua riqueza, se a mão da arte não soubesse extrair e trabalhar os materiais que ela contém. Explicar-se-ão assim, ao mesmo tempo, os desvios nos quais os raciocínios abstratos frequentemente lançam aqueles que não meditaram o suficiente sobre sua natureza e a virtude que por vezes adquiriram sob a direção de bons espíritos. Assim, serão refutadas as objeções desses homens que incessantemente dão a entender que relevam os erros e as questões ociosas produzidas pela Metafísica e que encobrem os serviços por ela prestados. Com efeito, não é à Metafísica que se deve a engenhosa ideia de aplicar à Geometria os métodos da álgebra, esta ideia à qual as ciências exatas devem um tão espantoso progresso? Não foi a Metafísica que sugeriu o projeto de submeter ao cálculo as probabilidades dos fatos? Não foi a Metafísica que permitiu descobrir a relação dos fenômenos da natureza com as leis da Geometria, que inspirou ao espírito humano esta grande temeridade pela qual se lançou até os astros, mediu seus movimentos, traçou antecipadamente sua rota no espaço, que forneceu ao gênio esta balança espantosa na qual pesou os mundos? Não foi a Metafísica que simplificou todas as ciências de observação, classificando os objetos dos quais elas se ocupam, e generalizando seus princípios? Não foi o gênio da Metafísica que dirigiu a reforma das nomenclaturas e ditou melhores definições? Vejam esses homens que professam desprezar a arte do raciocínio e, como dizem, ater-se apenas à experiência! Eles próprios, sem o saber, não fazem a cada instante Metafísica, quando querem tirar dos fatos observados a arte de descobrir certos fatos ainda desconhecidos? Eles desdenham tudo o que traz a forma de máximas ou de princípios e não percebem que essas máximas são apenas uma maneira de encerrar sob uma expressão abreviada os resultados sumários das próprias experiências. Com efeito, se se recusam a conferir qualquer transformação às noções da experiência, então qual não será seu embaraço para aplicá-las? Quanto não são cegas e casuais as aplicações que eles tentam? Tudo os espanta, pois, nada tendo meditado, não penetraram no passado o segredo do futuro. Sua pretendida experiência é para eles apenas uma cadeia inútil e pesada, pois, sempre exigindo o retorno de todas as condições que notaram, sempre se encerram em hipóteses particulares, exigem dos fenômenos uma regularidade à qual eles não podem se submeter. Espectadores passivos do teatro do universo, eles não sabem interrogar a natureza, nem ir adiante dela pela rota do raciocínio. Esta sabedoria, da qual tanto se orgulham, no fundo é apenas a ociosidade do espírito ou a rotina do hábito. Neles o gênio seria eternamente estéril, porque não ousaria se entregar às indicações da analogia; todas as suas criações lhes seriam suspeitas porque não sabem que criar é apenas transformar. Mas o gênio não habita imaginações tão frias e sua inspiração seria suficiente para dissipar o erro que as seduz; pois o primeiro efeito do gênio é dar ao pensamento a consciência de suas próprias forças. IV. 3 Aplicação das máximas contidas nos capítulos precedentes às ciências morais e políticas. Quando, no capítulo precedente, procurei mostrar como os raciocínios abstratos se associam às verdades da experiência, preferi extrair a maior parte dos exemplos, de um lado das ciências exatas e de outro das ciências físicas, seja porque, sendo mais claras e mais sensíveis, esses exemplos lançavam mais luz sobre a questão, seja porque nesta ocasião a eficácia do raciocínio abstrato frequentemente tendo sido confirmada pela própria experiência, esses exemplos davam também uma maior solidez aos resultados que procuravam estabelecer. Mas esses princípios devem se aplicar da mesma maneira a todas as ciências mistas; pois elas apenas apresentam também uma combinação das verdades da experiência COITI as deduções abstratas. Aqui as observações são somente ligadas de modo mais estreito aos raciocínios, e as ideias dos fatos, sendo formadas segundo leis menos simples e menos regulares, o poder das abstrações não poderia se desenvolver de uma maneira também extensa e as operações do espírito exigem por parte da razão uma vigilância mais ativa e mais severa. Se portanto observarmos a natureza particular dos fatos nos quais repousam as ciências morais e políticas, descobriremos como se pode aplicar-lhes as regras que acabamos de estabelecer; apreciaremos a utilidade que elas devem receber dos raciocínios meta físicos e os erros aos quais podem se expor empregando-os; assim, reuniremos em relação a cada urna as principais consequências das máximas expostas no começo desta seção. Basta refletir um momento sobre as noções da Moral para reconhecer que esta ciência deve admitir um grande número de deduções abstratas. Os fatos primitivos que lhe servem de princípios são muito simples e limitados e, ao contrário, as combinações são tão numerosas quanto variadas. De início, supondo um individuo isolado na terra, o dever pelo qual ele está compromissado para trabalhar pelo seu bem-estar, facilmente se deduz do mais simples dobrar-se sobre si próprio e dos signos evidentes pelos quais se manifesta a destinação da natureza. Uma vez estabelecido este primeiro fato, ele engendra já um grande número de deveres dos quais se compõem todas as ideias da temperança e da sabedoria; pois a procura de seu verdadeiro bem-estar exige ao mesmo tempo os cuidados necessários para sua conservação e para seu aperfeiçoamento, o cultivo de suas faculdades físicas e de suas faculdades intelectuais, a vigilância necessária para garantir-se dos erros que o tiram do bom caminho e das paixões que conturbam e envenenam sua vida. Agora, se colocamos vários indivíduos na terra, repete-se o mesmo raciocínio para cada um deles e da similitude de sua destinação resulta a reciprocidade de seus deveres. Tendo cada um direito ao bem-estar, tem também direito de dispor dos meios que a natureza lhe deu para obtê-lo; daí a primeira ideia da propriedade que, de início, se aplica às faculdades de cada um e depois aos objetos que estas faculdades o ajudam a adquirir. O direito de todos ao bem-estar, sendo assim consagrado, segue-se que cada um deve respeitar o bem-estar do outro e os meios que emprega para consegui-lo, segundo a destinação da natureza; esses deveres em nada se contradizem, apenas se incluem; traçam, entre as esferas nas quais os diversos indivíduos se movem, uma linha de demarcação que serve de fundamento para todas as ideias de justiça. Ao nos atermos a alguns indivíduos, ou ao nos estendermos ao conjunto de uma sociedade particular, ou até mesmo englobarmos a sociedade universal do gênero humano, vemos surgir desta ideia fecunda os princípios do direito privado, do direito social e do direito das nações. Por semelhante raciocínio, uma vez que é bom para o indivíduo trabalhar para aumentar sua própria felicidade, será conveniente e útil para cada um trabalhar também para aumentar a felicidade do outro e a felicidade de todos. Daí o dever da benevolência, o mérito do devotamento, a origem de todas as virtudes patrióticas; daí o caráter sublime desta intenção que engloba o bem geral da humanidade e que refere a este grande fim todos os interesses e todos os esforços. Seguindo mais ou menos esta marcha da qual aqui somente marcamos os principais pontos, é que a Metafísica desenvolve toda a teoria de nossos deveres gerais; é aperfeiçoando essas deduções, determinando suas bases com uma maior precisão, fixando sua ordem com mais cuidado, melhor caracterizando seus resultados; enfim, dando-lhes uma nova extensão, que ela propagará uma luz mais favorável no estudo da moral. Em seguida, quando quisermos passar às aplicações, as diversas ações particulares se apresentarão como outros tantos problemas dos quais as circunstâncias relativas a esta ação ou aos assuntos que ela concerne serão os dados, e aos quais os princípios da teoria servirão de métodos. Portanto, aqui a observação e o raciocínio terão, um e outro, uma nova função para preencher. A observação nos mostrará quais são os efeitos que esta ação deve produzir; o raciocínio nos ajudará a encontrar nesses efeitos as relações pelas quais a ação se liga às leis gerais de nossos deveres. Não há ninguém entre nós que, quando examina se uma ação está conforme ou não aos princípios da moral, não analise as diversas relações desta ação e não as compare às noções abstratas que se formaram sobre os deveres; isto confirma o que eu dizia ainda há pouco, que frequentemente fazemos Metafísica sem o saber. Pois esta análise e esta comparação das ideias não são outra coisa senão um raciocínio metafísico. Mas frequentemente este raciocínio é executado com tanta rapidez que seus termos nos escapam e que cremos julgar por uma espécie de instinto. Esses raciocínios frequentemente são também executados ocasionalmente, sem que procuremos estabelecer entre eles esta ordem e este liame necessários para formar um sistema. Assim, a única diferença que existe a este respeito entre nós e o filósofo é que, retomando a princípios, gerais, ele reúne e simplifica ao mesmo tempo todos os elementos de uma ciência que nós apenas encaramos em seus detalhes. É fácil notar, quanto à moral, qual é o limite no qual terminam as abstrações assim como as combinações úteis. As abstrações se interrompem nesta noção primeira e geral do dever, que aos nossos olhos consagra nosso próprio bem-estar assim como o bem-estar dos outros homens. As combinações não poderiam propagar-se além das ideias das ações possíveis e das diversas formas que ganham as relações do homem com o homem, aquelas do indivíduo com a sociedade e aquelas das sociedades entre si. Daí resulta que, quando as relações sociais adquiriram entre os homens certo grau de desenvolvimento, a esfera das ideias morais sobre as quais podemos raciocinar com proveito se encontra mais ou menos circunscrita no número das noções adquiridas e que as operações que nos restam a executar sobre elas se limitam a comparações mais repetidas, mais exatas, mais metódicas. O pequeno número de combinações úteis que ainda poderemos executar com proveito serão as que tiverem por objeto imaginar novas instituições próprias para fecundar o progresso da moral entre os homens. Digo, o pequeno número; pois creio que o progresso da moral depende sobretudo da influência do exemplo, dos cuidados da educação e que aqui todas as meditações dos filósofos devem menos tender para preparar novos efeitos do que desenvolver no coração dos homens as disposições cujo germe nele foi posto pela natureza. Se após determinarmos a utilidade que se pode retirar em moral do uso dos raciocínios abstratos, queremos examinar também quais são os erros aos quais esses raciocínios podem nos conduzir, notaremos nesta ciência dois inconvenientes principais; um, que resulta da natureza das ideias que a compõem, e outro, da imperfeição de sua linguagem. De início, a maior parte das ideias primitivas sobre as quais a moral se funda é precisamente da classe daquelas que é mais difícil de determinar. As afecções da alma que sobretudo a moral procura analisar para regulá-las e conduzi-las pertencem todas ao domínio da reflexão; elas não repousam em nenhuma forma sensível; frequentemente se reduzem a modificações rápidas e fugitivas; os matizes que as distinguem são difíceis de apreciar; os diversos graus de sua intensidade não podem se referir a nenhuma escala geométrica. Elas mal se conservam nas lembranças; raramente elas se concebem com exatidão quando não estão presentes; enfim, elas pouco suportam. a análise porque o próprio do sentimento é de se fundar ordinariamente em fortes associações e que o efeito do bem moral, como do bem físico, resulta comumente de um certo conjunto. Quanto às composições, elas reúnem frequentemente as duas circunstâncias que tornam as combinações mais• difíceis para fixar e para circunscrever com exatidão; elas são quase sempre mistas, isto é, formadas de elementos heterogêneos; elas são também, quase sempre, muito complexas e fora do alcance da intuição imediata. Assim, os deveres do homem para com o homem se formam de várias relações de natureza diversa; assim, o julgamento que queremos atribuir a uma ação exige que se englobem suas diversas circunstâncias e seus diversos efeitos. A ideia de ambição, por exemplo, contém ao mesmo tempo a de uma necessidade, a de um hábito, a de um julgamento do espírito, a de certos objetos exteriores e propriedades que pertencem a este objeto, como a consideração e o poder, ideias que são elas próprias muito complexas. A ideia de parricídio encerra a de uma intenção, de uma ação por parte daquele que é seu autor, de um efeito sobre aquele que é sua vítima, de uma relação entre a vítima e o criminoso, ideias que, como vemos, não possuem entre elas quase nenhuma analogia. As únicas ideias de modos simples, às vezes encontradas na moral, são as de nossos hábitos, que consistem numa certa repetição dos mesmos atos, e a da sociedade considerada independentemente das circunstâncias de sua organização, que então apenas apresenta a simples imagem de uma reunião de homens possuidores das mesmas faculdades e que exercem os mesmos direitos. Encontramos já nessas observações sobre as noções da moral uma das razões que tornaram a língua desta ciência incerta e arbitrária: pois, quanto menos analogia reinar entre as ideias, menos fácil será estabelecê-las na linguagem; não podemos dar aos signos uma forma analítica da qual as noções que retraçam não apresentem modelos; enfim, a fixidez das acepções, a claridade das definições, a uniformidade das interpretações, antes de tudo, supõem que as ideias se prestem a uma determinação exata e se refiram a um tipo imutável. Mas encontraremos ainda, em diversas circunstâncias, várias outras razões de imperfeição desta língua. A primeira é a sua pobreza. Quanto menos palavras houver para exprimir certo fundo de ideias, mais seremos forçados a multiplicar as acepções que queremos dar a cada uma de as; daí os equívocos e os mal-entendidos; daí o tom vago que sempre acompanha cada acepção; pois deve suceder que as acepções, vinculadas ao mesmo termo e estando estreitamente ligadas conjuntamente por esse elo comum, ordinariamente se apresentam ao mesmo tempo ao espírito e produzem por seu conjunto uma confusão tanto maior quanto sejam elas próprias mais numerosas; como distinguir nitidamente as ideias entre si, quando não podemos referi-Ias a signos diferentes? Daí ainda a impossibilidade de dar às palavras um caráter patente de analogia; pois, ou esta analogia seria extraída de uma acepção particular e então seria errônea em relação às outras, ou ela estaria fundada no que as diversas acepções têm de comum e então ela seria vaga e imperfeita, e ela em nada serviria para marcar o limite que separa essas acepções uma das outras. Ora, de todas as ciências, é talvez a moral a que possui um fundo mais limitado de signos. As palavras sentimento, amar, sofrer devem suprir um número muito grande e diversificado de maneiras de ser; quantas impressões íntimas, quantas ações exteriores carecem de palavras próprias para exprimi-Ias e apenas podem ser designadas recorrendo à descrição de seus efeitos ou de seus detalhes! A segunda circunstância é a necessidade que se teve de extrair os nomes de todas as ideias morais dos objetos sensíveis e o pouco de sagacidade que' frequentemente se pôs na escolha dos termos de comparação que se quis tomar. Daí resultou que a maior parte das expressões desta língua apresenta metáforas muito inexatas e que frequentemente é ainda mais fácil apreender a noção moral nela própria do que descobrir a relação que ela possa ter com o objeto que com ela se comparou. O nome virtude, por exemplo, foi tomado da ideia de torça e das qualidades viris. Entretanto, em sua acepção moral, este nome é empregado igualmente para exprimir as afecções delicadas como a benevolência, a sensibilidade em relação à infelicidade dos outros; e igualmente dizemos virtudes fracas, virtudes fortes e generosas. A palavra sabedoria tem sua origem no sentido do gosto e sapere designava inicialmente ter sabor ou julgar sabores. Paixão, que ordinariamente exprime um estado muito ativo da alma, era destinada inicialmente para figurar uma situação precisamente oposta, o estado passivo, como ainda se diz, do sofrimento. A terceira circunstância está na extrema variedade das modificações que o mesmo sentimento moral frequentemente ganha em diversos indivíduos ou no mesmo indivíduo, seja em diferentes circunstâncias de sua vida, seja em diferentes épocas de suas lembranças, seja enfim em diferentes estados de sua imaginação. Daí decorre que é muito difícil nos pormos de acordo sobre a definição dos termos; da mesma maneira que o belo musical não é o mesmo para o italiano e para o francês, o bem moral não é o mesmo para o solitário e para o mundano, para o voluptuoso epicurista e para o austero estoico. Daí decorre que quando um homem experimenta uma emoção viva ele se lastima de jamais encontrar alguma expressão própria para traduzi-la; pois os termos que são geralmente empregados lhe parecem figurar apenas impressões bastante comuns e as emoções que ele próprio experimentou em outro momento conservaram pouca força em suas lembranças para que ele possa contentar-se ainda com a mesma linguagem que lhe havia servido para exprimi-las. É verdade que a moral tem sobre as outras ciências esta vantagem particular, isto é, possui uma maior abundância de signos naturais, aos quais ela pode recorrer para suplementar os signos instituídos ou ao menos para apoiar sua definição. Mas nos séculos corrompidos, quando o uso mundano nos ensinou a arte de compor nosso exterior segundo certas regras, esses signos se tornaram também mais raros e mais incertos e os homens se acharam constrangidos a cobrir suas afecções com o véu da reserva, de juntar a polidez à indiferença e frequentemente ao ódio. IV. 4 Tentativas para uma língua filosófica; reduzir a arte do raciocínio a um cálculo? Na falta de uma língua filosófica na qual todas as nossas ideias se encontrassem representadas por signos perfeitamente análogos, alguns metafísicos imaginaram ao menos criar certos caracteres simples que, exprimindo as relações que servem de objeto comum ao raciocínio, possam converter a arte de raciocinar numa espécie de trabalho mecânico e assimilar as pesquisas metafísicas aos cálculos da álgebra. Tal foi inicialmente a invenção de Raimundo Lulo, tão famoso em seu tempo, atualmente tão esquecido. Lulo dividiu em seis classes essas ideias fundamentais que, segundo ele, serviam de base para todos os raciocínios: as questões, os princípios absolutos, que são os modos gerais, os princípios respectivos, que são as relações, os assuntos universais, que são as principais substâncias, as virtudes e os vícios. Em seguida subdividiu cada classe em nove espécies. Designou cada espécie por um caráter próprio. Imaginou depois um grande número de fórmulas, ou mesmo de operações mecânicas, que exprimiam todas as diferentes maneiras pelas quais estas diversas ideias podiam ser combinadas, seja para formar proposições mais ou menos complexas, seja para estabelecer silogismo. O movimento de várias rodas umas nas outras, figuras formadas com linhas que se cruzavam em todos os sentidos, com certa disposição de seus caracteres, seja sobre as partes dessas rodas, seja na extremidade dessas linhas, representavam para ele todas as combinações possíveis. A multiplicidade dessas regras, a metafísica abstrata sobre a qual estavam fundadas, tornou seu estudo tão difícil que logo se renunciou a usá-las. O Pe. Kircher, um dos hábeis matemáticos de seu tempo, tentou simplificar os métodos de Lulo e os reduziu a um novo sistema que expôs numa obra intitulada: Da Arte das Combinações. Admitiu apenas as quatro primeiras classes de Lulo; procurou dar signos imitativos às ideias que elas continham. Supôs que cada uma dessas ideias correspondia em nossas línguas a um grande número de termos idênticos, aos quais se podia transmitir pelo raciocínio as propriedades e as relações ligadas a essas ideias. Em seguida dedicou-se a imaginar as diversas combinações que podíamos formar com essas ideias fundamentais e as comparações das quais estas combinações podiam ser o objeto. Teve mesmo a paciência de calcular até onde se podia elevar o número possível de cada espécie de operações. Enfim, indicou como podíamos, por meio da identidade, aplicar estas operações aos outros termos de nossas línguas. Essas tabelas, segundo ele, deviam oferecer ao mesmo tempo um meio de reduzir as questões aos seus verdadeiros princípios metafísicos, de executar as divisões e definições pelas regras mais simples, deviam também fornecer uma imensa coleção de lugares de retórica e de lugares de argumentação. Entretanto, essas brilhantes promessas não preservaram seu sistema do abandono que Lulo experimentara. É apenas pelo mérito de um prodigioso trabalho e de uma grande erudição que o sistema desses autores une aquele de apresentar às vezes pontos de vista muito engenhosos sobre a formação do raciocínio. Mas, entre vários outros, este sistema apresenta ao filósofo três principais inconvenientes que são suficientes para tornar seu uso inadmissível. O primeiro consiste em que não ministram nenhum remédio à incerteza da linguagem, verdadeira causa da imperfeição dos raciocínios metafísicos, e que eles repousam até mesmo sobre ideias muito mal determinadas, difíceis de definir, como seus primeiros fundamentos. O segundo consiste em nos fornecer apenas proposições abstratas, próprias para servir de princípios aos métodos sintéticos, ordinariamente estéreis na aplicação, sempre muito simples para conceber por elas próprias se as ideias das quais elas se compõem foram bem determinadas. O terceiro consiste em não nos dar nenhuma luz sobre os raciocínios relativos às ideias mais complexas que são o objeto comum de nossas meditações, ou que as regras que pretendem nos dar a seu respeito são mais difíceis para conceber e empregar do que podem ser em qualquer caso de bom raciocínio unicamente segundo os preceitos da lógica sã. Esta identidade que sempre supõem entre as ideias, para submetê-las a seus métodos, é precisamente o que o espírito tem muita dificuldade em descobrir; e é sobretudo para simplificar este trabalho que deveria tender um bom sistema de metafísica e um plano verdadeiramente útil de signos metódicos. Encontra-se no segundo volume das Memórias da Academia Real de Turim o ensaio de uma Álgebra Filosófica ou Sciagraphia de Luís Richer. Para aplicar à metafísica métodos semelhantes aos da álgebra, o autor se limita a fixar um número muito pequeno de ideias abstratas, a de impossível, de possível, de nada, de ser, do que é determinado ou indeterminado, determinável ou indeterminável, necessário ou contingente, mutável ou imutável. Acrescenta a estas as de razão ou de causa e as de ligado ou não ligado. Sobre este pequeno número de ideias expressas por signos muito simples, o autor estabelece certa sequência de raciocínios abstratos que têm também a vantagem de ser enunciados em expressões muito abreviadas, mas que, aliás, em nada são ajudados pela analogia dos termos, nem reduzidos, como as equações algébricas, a simples transformações, porque os signos permanecem isolados e não se combinam uns com os outros. Para sentirmos quão pouca vantagem poderíamos esperar do emprego de semelhante método, basta observar que ele se limitará necessariamente, enquanto não abusarmos do raciocínio, a deduzir dessas ideias fundamentais o que nelas pode estar contido, isto é, em nos mostrar o que pode haver de comum entre a ideia de impossível ou de possível e a de necessário ou de contingente, e assim por diante: com efeito, tais são os resultados que o citado autor retira de suas fórmulas. Portanto, elas apenas serviriam para executar comparações que uma sábia lógica facilmente realizaria sem elas; se as ideias estivessem bem definidas; elas não nos ajudariam a melhor determiná-las, forneceriam apenas proposições extremamente gerais, e ainda muito distanciadas dos problemas comuns que se apresentam para nós na análise de nossos pensamentos. Quanto ao mais, sem nós empenharmos na crítica detalhada dessas diversas espécies de álgebra filosófica, que Hook e alguns outros já tinham tentado ou indicado antes do autor que acabamos de citar, bastarão algumas simples reflexões para nos demonstrar quanto os procedimentos de álgebra matemática são pouco aplicáveis às questões da metafísica geral. Com efeito, o cálculo sempre tem por objeto descobrir entre duas quantidades uma relação de igualdade ou de proporção segundo outra relação de proporção ou de igualdade já admitida ou suposta; temos portanto de antemão todos os termos necessários para a questão e é suficiente somar ou subtrair, multiplicar ou dividir, nos diferentes quadros de comparação; eis aí o que executam os signos algébricos. Mas, em metafísica tem-se ordinariamente por objeto descobrir entre duas ideias uma dessas relações que chamamos de compreensão, isto é, reconhecer se uma pertence à outra, se está contida nela como seu atributo; portanto, somos obrigados a chamar em seu auxílio certas ideias intermediárias que não eram expressas no enunciado do problema e não se pode; como no caso precedente, fazer com que os termos que possuímos sofram diversas alterações. Além disso, as ideias primitivas, expressas pelos signos r algébricos, têm a notável e particular virtude de comunicar subitamente um valor mais extenso: um signo de multiplicação posto entre duas quantidades, um signo de potenciação posto sobre uma quantidade, dão um produto muito considerável. Essas ideias primitivas são em pequeno número, são elas próprias engendradas umas pelas outras e suas combinações apresentam resultados análogos. Assim, necessariamente bastam algumas condições muito simples para fixar os dados •de um problema muito complicado e temos necessidade apenas de nos deixarmos conduzir pela identidade para deduzir desses dados a solução do problema proposto. Mas as ideias primitivas da metafísica apenas se associando ou se agregando umas às outras, muito pouco acrescem seu valor recíproco. Sendo estas ideias díspares e heterogêneas, não permutam suas recíprocas propriedades e suas combinações frequentemente têm muito pouca analogia. Enfim, estas• ideias primitivas sendo muito numerosas, com frequência há também muitas condições para fixar. Portanto, se desejamos nos limitar, como o faz a maior parte desses algebristas-metafísicos, a apenas conferir signos a um pequeno número de ideias primitivas, somente obteremos proposições muito simples e muito gerais que serão de pouco uso e fornecerão quando muito alguma luz. Se queremos conferir signos a todas as ideias primitivas, seremos barrados a cada passo, nas transformações, pela diversidade de suas ideias; e nos encontraremos envolvidos por um aparato de fórmulas muito complicadas que precisamente carecerão das duas qualidades principais da álgebra-matemática; quero dizer, a simplicidade das formas e a rapidez da execução. Não poderemos, em nenhum caso, obter este espantoso privilégio do cálculo de poder tirar, de uma verdade muito simples, deduções mais amplas. Portanto, é preciso tomar cuidado para não confundir o método de raciocínio dos geômetras com os procedimentos mecânicos de seus cálculos: o método, como o mostrei no capítulo 17, lhes é comum com o dos metafísicos; os procedimentos mecânicos do cálculo são reservados exclusivamente aos primeiros e a simplicidade dos signos que empregam é o efeito necessário da simplicidade das ideias sobre as quais operam.