Voltaire – Tratado de Metafísica INTRODUÇÃO Dúvidas sobre o Homem Poucas pessoas se preocupam em ter uma noção do que seja o homem. A única ideia que os camponeses de uma parte da Europa têm da nossa espécie é a de um animal de dois pés, de pele trigueira, articulando algumas palavras, cultivando a terra, pagando, sem saber por que, tributos a outro animal a que chama rei, vendendo suas colheitas tão caro quanto puder, reunindo-se com outros em certos dias do ano para entoar preces numa língua incompreensível. Um rei sempre encara toda a espécie humana como seres feitos para obedecer-lhe e aos seus semelhantes. Uma jovem parisiense ao entrar no mundo vê apenas o que possa servir à sua vaidade; a ideia confusa que tem da felicidade e o estrondo de tudo que a rodeia impedem sua alma de escutar a voz de todo o resto da natureza. Um jovem turco, no silêncio do serralho, olha os homens como seres superiores, obrigados por certa lei a dormir todas as sextas-feiras com suas escravas; e sua imaginação não vai muito além disso. Um padre divide todo o universo em eclesiásticos e leigos e, sem dificuldade, considera a parte eclesiástica como a mais nobre e feita para conduzir a outra etc. etc. Estaríamos profundamente enganados se acreditássemos que os filósofos têm ideias mais completas sobre a natureza humana. Se excetuardes Hobbes, Locke, Descartes, Bayle e um pequeno número de espíritos sábios, todos os outros têm uma opinião particular sobre o homem, tão limitada quanto a do vulgo e somente mais confusa. Perguntai ao Padre Malebranche o que é o homem. Ele vos responderá que é uma substância feita à imagem de Deus, muito deturpada depois do pecado original, e, no entanto, mais unida a Deus do que ao seu próprio corpo, vendo tudo em Deus, pensando, sentindo tudo em Deus. Pascal encara o mundo inteiro como uma coleção de malvados e de infelizes, criados para serem condenados, entre os quais, porém, algumas almas (isto é, uma entre cinco ou seis milhões) foram escolhidas por Deus desde toda a eternidade para serem salvas. Um diz: o homem é uma alma unida a um corpo e, quando o corpo está morto, a alma vive sozinha para sempre. Outro assegura: o homem é um corpo que pensa necessariamente. E nem um nem outro provam o que afirmam. Na investigação do homem gostaria de conduzir-me como faço no estudo da astronomia: meu pensamento se transporta algumas vezes para fora do globo terrestre, acima do qual todos os movimentos celestes parecem irregulares e confusos. E após ter observado o movimento dos planetas como se estivesse no Sol, comparo os movimentos aparentes que vejo sobre a Terra com os movimentos verdadeiros que veria se estivesse no Sol. Assim farei também ao estudar o homem: colocar-me-ei primeiramente fora de sua esfera, fora de compromissos, despojar-me-ei de todos os preconceitos de educação, de pátria e, sobretudo, dos preconceitos de filósofo. Suponho, por exemplo, que, nascido com a faculdade de pensar e de sentir que tenho presentemente, mas não tendo a forma humana, desço ao globo vindo de Marte ou de Júpiter. Posso dar uma olhada rápida em todos os séculos e países, e, consequentemente, em todas as tolices desse glóbulo. É tão fácil supor isso quanto imaginar-me no Sol para dali considerar os dezessete planetas que giram regularmente no espaço em torno desse astro. CAPÍTULO I As Diferentes Espécies de Homem Descendo sobre este montículo de lama e não tendo maiores noções a respeito do homem, como este não tem a respeito dos habitantes de Marte ou de Júpiter, desembarco às margens do oceano, no país da Cafraria, e começo a procurar um homem. Vejo macacos, elefantes e negros. Todos parecem ter algum lampejo de uma razão imperfeita. Uns e outros possuem uma linguagem que não compreendo e todas as suas ações parecem igualmente relacionar-se com certo fim. Se julgasse as coisas pelo primeiro efeito que me causam, inclinar-me-ia a crer, inicialmente, que de todos esses seres o elefante é o animal racional. Contudo, para nada decidir levianamente tomo filhotes dessas várias bestas. Examino um filhote de negro de seis meses, um elefantezinho, um macaquinho, um leãozinho, um cachorrinho. Vejo, sem poder duvidar, que esses jovens animais possuem incomparavelmente mais força e destreza, mais ideias, mais paixões, mais memória do que o negrinho e que exprimem muito mais sensivelmente todos os seus desejos do que ele. Entretanto, ao cabo de certo tempo, o negrinho possui tantas ideias quanto todos eles. Chego mesmo a perceber que os animais negros possuem entre si uma linguagem bem mais articulada e variada do que a dos outros animais. Tive tempo de aprender tal linguagem e, enfim, de tanto observar o pequeno grau de superioridade que a longo prazo apresentam em relação aos macacos e aos elefantes, arrisco-me a julgar que efetivamente ali está o homem. E forneço a mim mesmo esta definição: O homem é um animal preto que possui lã sobre a cabeça, caminha sobre duas patas, é quase tão destro quanto um símio, é menos forte do que outros animais de seu tamanho, provido de um pouco mais de ideias do que eles e dotado de maior facilidade de expressão. Ademais, está submetido igualmente às mesmas necessidades que os outros, nascendo, vivendo e morrendo exatamente como eles. Após ter passado certo tempo entre essa espécie, desloco-me rumo às regiões marítimas das Índias Orientais. Surpreendo-me com o que vejo: os elefantes, os leões, os macacos e os papagaios não são exatamente como eram na Cafraria; mas o homem, esse parece-me absolutamente diferente. Agora são homens de um belo tom amarelo, não possuem lã, mas têm a cabeça coberta de grandes crinas negras. Parecem ter sobre as coisas ideias totalmente contrárias às dos negros. Sou, portanto, forçado a mudar minha definição e a classificar a natureza humana sob duas espécies: a negra com lã e a amarela com crina. Mas, na Batávia, em Goa e em Surata, ponto de encontro de todas as nações, vejo uma grande multidão de europeus. São brancos, não possuem lã ou crina, mas cabelos louros bem soltos e barba no queixo. Mostram-me também muitos americanos, que não possuem barba. Eis minha definição e minhas espécies de homem bastante ampliadas. Em Goa encontro uma espécie ainda mais singular do que todas essas. Trata-se de um homem vestido com uma longa batina negra, dizendo-se feito para instruir os outros. Todos esses homens que vedes, diz-me ele, nasceram de um mesmo pai. E, então, conta-me uma longa história. No entanto, o que diz esse animal soa-me bastante suspeito. Informo-me se um negro e uma negra, de lã negra e nariz chato, engendram algumas vezes crianças brancas, de cabelos louros, nariz aquilino e olhos azuis, se nações imberbes vieram de povos barbados e se os brancos e as brancas engendraram povos amarelos. Respondem-me que não, que os negros transplantados, por exemplo, para a Alemanha continuam produzindo negros, a menos que os alemães se encarreguem de mudar a espécie, e assim por diante. Acrescentam que um homem instruído nunca diria que as espécies não misturadas degeneram, a não ser o Padre Dubos, que disse tal besteira num livro intitulado Reflexões sobre a Pintura e sobre a Forma etc. Quer me parecer que agora estou muito bem fundamentado para crer que os homens são como as árvores: assim como as pereiras, os ciprestes, os carvalhos e os abricoteiros não vêm de uma mesma árvore, assim também os brancos barbados, os negros de lã, os amarelos com crina e os homens imberbes não vêm do mesmo homem (Todas essas diferentes raças de homens produzem juntas indivíduos capazes de se perpetuar, o que não pode ser dito a respeito das árvores de diferentes espécies. Mas teria havido um tempo em que só existissem um ou dois indivíduos de cada espécie? Isto ignoramos totalmente. Nota do Autor) CAPÍTULO II Se Existe um Deus Devemos examinar o que é a faculdade de pensar nessas diferentes espécies de homem, como lhes vêm as ideias, se têm uma alma distinta do corpo, se essa alma é eterna, se é livre, se tem virtudes e vícios etc. Entretanto, a maioria dessas noções dependem da existência ou da não existência de um Deus. É preciso, creio, começar sondando o abismo desse grande princípio. Despojemo-nos, agora mais do que nunca, de toda paixão e de todo preconceito e vejamos de boa fé o que nossa razão pode ensinar-nos sobre a questão: Existe ou não existe um Deus? Noto, inicialmente, a existência de povos sem nenhum conhecimento de um Deus criador. Tais povos, na verdade, são bárbaros e em pequeno número, mas, enfim, são homens, e se o conhecimento de Deus fosse necessário à natureza humana, os selvagens hotentotes teriam uma ideia do Ser Supremo tão sublime quanto a nossa. Mais ainda: não há criança alguma, entre os povos policiados, que tenha em sua cabeça a menor ideia de um Deus. É com dificuldade que lhe inculcamos tal ideia e, frequentemente, pronuncia durante toda sua vida a palavra Deus sem atribuir-lhe qualquer noção precisa. Vedes, aliás, que as ideias de Deus entre os homens diferem tanto quanto suas religiões e suas leis. A esse respeito não consigo impedir a seguinte reflexão: é possível que o conhecimento de um Deus, nosso criador, nosso conservador, nosso tudo, seja menos necessário ao homem do que um nariz e cinco dedos? Todos os homens nascem com um nariz e com cinco dedos e nenhum com o conhecimento de Deus. Que seja ou não deplorável, tal é, contudo, a condição humana. Vejamos se com o tempo adquiriremos o conhecimento de um Deus assim como chegamos às noções matemáticas e a algumas ideias metafísicas. Numa investigação tão importante, o melhor que poderemos fazer será considerar os prós e os contras, para nos decidirmos por aquilo que parecer mais conforme à nossa razão. Sumário das Razões a Favor da Existência de Deus Existem duas maneiras de alcançar a noção de um ser que preside o universo. A mais natural e mais perfeita para as capacidades comuns é a de considerar não somente a ordem que existe no universo, mas também o fim com que cada coisa parece relacionar-se. Muitos e grossos livros foram compostos centrados nessa única ideia, e todos os calhamaços juntos contêm apenas este argumento: quando vejo um relógio cujo ponteiro marca as horas, concluo que um ser inteligente arranjou as molas dessa máquina para que o ponteiro marcasse as horas (O universo desconcerta-me e não posso supor. Que esse relógio exista e não haja relojoeiro. Versos 111-112 da sátira intitulada As Cabalas. Nota do Autor). Assim, quando vejo as molas do corpo humano, concluo que um ser inteligente arranjou os órgãos para serem recebidos e nutridos por nove meses na matriz; que os olhos são dados para ver, as mãos para pegar etc. Porém, só posso concluir desse único argumento que é provável que um ser inteligente e superior tenha preparado e modelado a matéria com habilidade, mas não posso concluir apenas disso que tal ser tenha feito a matéria com nada e que seja infinito em todos os sentidos. Cansei de procurar em meu espírito a conexão das seguintes ideias: "é provável que eu seja a obra de um ser mais potente do que eu", portanto, "esse ser existe desde toda eternidade", portanto, "criou tudo", portanto, "é infinito" etc. Não vejo a cadeia que conduza diretamente a essa conclusão. Vejo apenas que há alguma coisa mais potente do que eu, e nada mais. O segundo argumento é mais metafísico, menos apto para a compreensão dos espíritos rudes e conduz a conhecimentos bem mais vastos. Eis seu resumo: Existo, portanto alguma coisa existe. Se algo existe, existiu desde toda a eternidade, pois aquilo que é, ou é por si mesmo ou recebeu seu ser de outro. Se é por si mesmo, é necessariamente, sempre foi necessariamente e é Deus. Se recebeu seu ser de outro, e este segundo de um terceiro, aquele de quem este último recebeu seu ser deve ser necessariamente Deus, pois não podeis conceber um ser que dê o ser a um outro se não tiver o poder de criar. Além disso, se disserdes que uma coisa recebe, não digo a forma, mas sua existência de outra coisa, e esta de uma terceira, e esta terceira ainda de outra e, assim, regredindo ao infinito, direis um absurdo, porque nesse caso tais seres não terão causa alguma de existência. Tomados todos juntos não terão nenhuma causa externa de existência; tomados cada um em particular, não terão nenhuma causa interna. Ou seja: tomados todos juntos não devem sua existência a nada; tomados em particular, nenhum existe por si mesmo, portanto, nenhum existe necessariamente. Dessa maneira, sinto-me reduzido a confessar que há um ser que existe necessariamente por si mesmo desde toda a eternidade, sendo a origem de todos os outros seres. Disso decorre essencialmente que esse ser é infinito em duração, em imensidade, em potência, pois o que poderia limitá-lo? Mas, dir-me-eis, o mundo material é precisamente esse ser que procuramos. Examinemos de boa fé se tal coisa é provável. Se o mundo material existir por si mesmo com uma necessidade absoluta, será uma contradição nos termos supor que a menor parte desse universo possa ser diferente do que é nesse momento com uma necessidade absoluta, excluindo esta única palavra todo outro modo de ser. Ora, esta mesa sobre a qual escrevo, esta pena de que me sirvo, não foram certamente sempre o que são; estes pensamentos que traço sobre o papel não existiam nem mesmo há um momento, portanto, não existem necessariamente. Ora, se cada parte não existir com uma necessidade absoluta, será impossível que o todo exista por si mesmo. Produzo movimento, portanto, o movimento não existia necessariamente antes, portanto, o movimento não é essencial à matéria, portanto, esta o recebe de fora, portanto, há um Deus que lho dá. Assim também, a inteligência não é essencial à matéria, pois um rochedo e uma espiga não pensam. De quem, então, as partes da matéria que pensam e que sentem terão recebido a sensação e o pensamento? Não pode ser delas próprias porque sentem apesar delas mesmas. Não pode ser da matéria em geral, visto que o pensamento e a sensação não pertencem à essência da matéria. Receberam, portanto, esses dons da mão de um ser supremo, inteligente, infinito e causa originária de todos os seres. Eis, em poucas palavras, as provas da existência de um Deus e o resumo de vários volumes, volumes que cada um poderá esticar como lhe aprouver. Eis agora, com a mesma brevidade, as objeções que se podem fazer a esse sistema. Dificuldades sobre a Existência de Deus 1º Se Deus não é o mundo material, ele o criou (ou então, se quiserdes, deu a outro ser o poder de criá-lo, o que vem a dar no mesmo); mas fazendo esse mundo, ou tirou-o do nada ou tirou-o de seu próprio ser divino. Não pode tê-lo tirado do nada porque este não é; não pode tê-lo tirado de si próprio porque, então, esse mundo faria essencialmente parte da essência divina e, assim sendo, eu não poderia ter uma ideia da criação, donde se segue que não posso admitir a criação. 2º Deus teria feito esse mundo ou necessariamente ou livremente. Se o fez por necessidade, deve tê-lo feito desde sempre, pois tal necessidade é eterna. Neste caso, portanto, o mundo seria eterno e criado, o que implica uma contradição. Se Deus o fez livremente, por pura escolha, sem alguma razão antecedente, é ainda uma contradição, pois é contraditório supor o Autor infinitamente Sábio fazendo tudo sem uma razão que o determina e supor o Ser infinitamente Potente passando toda a eternidade sem fazer o menor uso de sua potência. 3º Se para a maioria dos homens parece que um ser inteligente imprimiu o selo da sabedoria sobre toda a natureza e que cada coisa parece estar feita para certo fim, é ainda mais verdadeiro, aos olhos dos filósofos, que tudo se faz na natureza segundo as leis da matemática, eternas, independentes e imutáveis, e a construção e a duração do corpo humano, segundo o equilíbrio dos licores e da força das alavancas. Quanto mais descobrimos sobre a estrutura do universo, tanto mais o encontramos organizado segundo leis imutáveis, desde as estrelas até o verme do queijo. É, portanto, permitido acreditar que tais leis, tendo operado por sua própria natureza, delas resultem efeitos necessários, tomados, porém, como determinações arbitrárias de um poder inteligente. Por exemplo, um campo produz erva porque tal é a natureza de seu terreno, regado pelas chuvas, e não porque existam cavalos que precisam de feno e de aveia. E assim com todo o resto. 4º Se o arranjo das partes do mundo e tudo o que se passa entre os seres que têm vida sensível e pensante provasse um Criador e um Senhor, provaria ainda mais um ser bárbaro, pois, se admitirmos causas finais, seremos obrigados a dizer que Deus, infinitamente sábio e infinitamente bom, deu vida a todas as criaturas para que entre si se devorassem. Com efeito, se considerarmos todos os animais, veremos que cada espécie tem um instinto irresistível forçando-a a destruir outra espécie. Diante das misérias do homem, há o suficiente para dirigirmos censuras à Divindade durante toda nossa vida. Podem dizer-nos à vontade que a sabedoria e a bondade de Deus não são feitas como as nossas. Tal argumento não terá força alguma sobre o espírito de muitas pessoas, que responderão dizendo: só podemos julgar a justiça a partir de sua ideia e esta, supõe-se, foi-nos dada por Deus. Só se pode medir com a medida que se tem, e assim sendo, é tão impossível não crermos bárbaro um ser que sé conduza como um homem bárbaro, quanto é impossível não pensarmos que um ser qualquer tenha seis pés quando o medimos com uma toesa e pareça ter esse tamanho. E acrescentarão: se nos replicarem que nossa medida é defeituosa, estarão dizendo algo que implica uma contradição, pois será o próprio Deus quem nos terá dado essa ideia falsa, e, portanto, nos terá feito apenas para nos enganar. Ora, isso equivale a dizer que um ser que só possui perfeições lança suas criaturas no erro, que é, propriamente falando, a única imperfeição. É contradizer-se visivelmente. Enfim, os materialistas acabarão dizendo: engoliremos menos absurdos no sistema do ateísmo do que no do deísmo, pois, de um lado, é preciso na verdade que concebamos o mundo que vemos como eterno e infinito, mas, de outro lado, é preciso que imaginemos outro ser infinito e eterno ao qual acrescentaremos a criação, cuja ideia, no entanto, não podemos conceber. Portanto, concluirão: é mais fácil não crer em Deus do que crer nele. Resposta a essas Objeções Os argumentos contra a criação se reduzem em mostrar que nos é impossível concebê-la, isto é, não que ela seja impossível em si, mas que nos é impossível conceber seu modo. Com efeito, para que a criação fosse impossível seria preciso provar primeiro que é impossível que haja um Deus. Ora, longe de provar tal impossibilidade somos obrigados a reconhecer a impossibilidade de sua não existência. O argumento - é preciso que haja fora de nós um ser infinito, eterno, imenso, todo-poderoso, livre, inteligente - faz com que as trevas que acompanham essa luz sirvam apenas para mostrar que ela existe, pois aquilo que nos demonstra a existência de um ser infinito vem também demonstrar-nos que para um ser finito deve ser impossível compreendê-lo. Parece-me que só se pode sofismar e dizer absurdos quando se procura esforçar-se para negar a necessidade de um ser existente por si mesmo ou quando se quer sustentar que a matéria é esse ser. Mas a coisa é muito diferente quando se trata de estabelecer e de discutir os atributos desse ser cuja existência está demonstrada. Os mestres na arte de raciocinar, os Locke, os Clarke, nos dizem: "Tal ser é um ser inteligente, pois aquele que produziu tudo deve ter todas as perfeições que colocou naquilo que produziu, se não o efeito seria mais perfeito do que a causa ou, ainda de uma outra maneira, haveria no efeito uma perfeição que não teria sido produzida por nada, o que é visivelmente absurdo. Portanto, já que existem seres inteligentes e que a matéria não pode dar a si mesma a faculdade de pensar, é preciso que o ser existente por si mesmo, Deus, seja um ser inteligente". No entanto, poderíamos retorquir a esse argumento dizendo: É preciso que Deus seja matéria, visto que existem seres materiais, pois sem isso, a matéria não teria sido produzida por nada, e uma causa teria produzido um efeito cujo princípio não estava nela. Acredita-se contornar tal argumento encaixando-se nele a palavra perfeição. O Sr. Clarke parece tê-lo previsto, porém não ousou colocá-lo às claras, fazendo unicamente a seguinte objeção: "Dir-se-á que Deus comunicou a divisibilidade e a figura à matéria, embora não seja figurado nem divisível". E dá uma resposta muito sólida e muito fácil à objeção: a divisibilidade e a figura são qualidades negativas e limitações, e embora uma causa não possa comunicar ao seu efeito qualquer perfeição que ela não possua, o efeito entretanto pode e deve necessariamente ter limitações e imperfeições que a causa não tenha. Mas, que teria respondido o Sr. Clarke àquele que lhe tivesse dito: "A matéria não é um ser negativo, uma limitação, uma imperfeição. É um ser real, positivo e que. tem seus atributos exatamente como o espírito. Ora, como Deus terá podido produzir um ser material se não é material?" É preciso então ou que admitais que a causa pode comunicar algo positivo que ela não possui ou que a matéria não possui a causa de sua existência ou, enfim, que sustenteis que a matéria é uma pura negação e uma limitação. Se essas três vias forem absurdas, será preciso que admitais que a existência dos seres inteligentes não prova que o ser existente por si mesmo seja um ser inteligente, assim como a existência dos seres materiais não prova que o ser existente por si mesmo seja matéria, pois ambos os casos são absolutamente semelhantes. O mesmo será dito do movimento. A respeito da palavra perfeição, aqui abusa-se visivelmente dela, pois quem ousará dizer que matéria é uma imperfeição e o pensamento uma perfeição? Não creio que alguém ouse decidir assim sobre a essência das coisas. E depois, o que quer dizer perfeição? Seria perfeição em relação a Deus ou em relação a nós? Sei que se pode dizer que esta opinião reconduziria ao spinozismo. A isto responderei que nada posso fazer e que meu raciocínio, se for bom, não pode tornar-se mau pelas consequências que dele se possam tirar. Além disso, nada seria mais falso do que essa consequência, pois provaria somente que nossa inteligência não se assemelha à inteligência de Deus, assim como nosso modo de ser extenso não se assemelha à maneira como Deus preenche o espaço. Deus não está na situação das causas que conhecemos; pôde criar o espírito e a matéria sem ser matéria ou espírito. Nem um nem outro derivam dele, mas são criados por ele. É verdade que não conheço o quomodo; (o como); prefiro deter-me a perder-me. Sua existência me é demonstrada, mas acredito que me é demonstrado também que não sou feito para compreender seus atributos e sua essência. Dizer que Deus não pode fazer o mundo nem necessariamente nem livremente é apenas um sofisma que cai por si mesmo, desde que se tenha provado que há um Deus e que o mundo não é Deus. A objeção reduz-se unicamente a isto: Não posso compreender que Deus tenha criado o universo num tempo mais do que noutro, portanto, não pôde criá-lo. É como se se dissesse: Não posso compreender por que tal homem ou tal cavalo não existiu milhares de anos antes, portanto, sua existência é impossível: Além disso, a vontade livre de Deus é uma razão suficiente do tempo em que criou o mundo. Se Deus existir, será livre, e não o seria se estivesse sempre determinado por uma razão suficiente e se sua vontade não lhe servisse. Ademais essa razão suficiente estaria nele ou fora dele? Se estiver fora dele, não se determina livremente; se estiver nele, será justamente sua vontade. Embora seja verdade que as leis matemáticas são imutáveis não seria necessário que tais leis fossem preferidas a outras. Não seria necessário que a Terra fosse colocada onde está. Nenhuma lei matemática pode agir por si mesma. Nenhuma age sem movimento, o movimento não existe por si mesmo, portanto, é preciso recorrer a um primeiro motor. Admito que os planetas, situados a tal distância do Sol, devem percorrer suas órbitas segundo leis que observam, e que até mesmo a sua distância pode ser regulada pela quantidade de matéria que concentram. Mas, poder-se-à dizer que seria necessário que houvesse tal quantidade de matéria em cada planeta, que houvesse um determinado número de estrelas, que esse número não possa ser aumentado nem diminuído, que sobre a Terra haja um determinado número de seres por uma necessidade absoluta e inerente à natureza das coisas?Não, sem dúvida, uma vez que esse número muda todos os dias; portanto, toda a natureza, desde a estrela mais longínqua até um pedacinho de erva, deve estar submetida a um primeiro motor. Quanto ao que se objeta, que um prado não é feito essencialmente para os cavalos, etc., não se pode concluir daí que não haja causa final, mas unicamente que não conhecemos todas as causas finais. Daí é preciso, sobretudo, raciocinar com boa fé e de forma alguma procurar enganar-se a si mesmo. Quando se vê uma coisa que tem sempre o mesmo efeito, que tem unicamente esse efeito, que é composta de uma infinidade de órgãos nos quais há uma infinidade de movimentos todos concorrendo para a mesma produção, parece-me que não se pode, sem uma repugnância secreta, negar uma causa final. O germe de todos os vegetais e de todos os animais está nesse caso. Não seria preciso ser um pouco ousado para afirmar que tudo isso não se relaciona a algum fim? Concordo que não existe demonstração propriamente dita que prove que o estômago seja feito para digerir, como não existe demonstração de que é dia, mas os materialistas estão bem longe de poder demonstrar também que o estômago não é feito para digerir. Que se julgue somente qual é a opinião mais provável, com a mesma equidade com que se julgam as coisas em seu curso ordinário! Com respeito às críticas de injustiça e de crueldade endereçadas a Deus, respondo primeiramente que, supondo-se que haja um mal moral (o que me parece uma quimera), parece-me tão impossível explicá-lo pelo sistema da matéria como por aquele de Deus. Respondo, em seguida, que os únicos ideais de justiça que temos são aqueles tomados de toda ação útil à sociedade e conformes às leis estabelecidas por nós para o bem comum. Ora, a ideia de justiça, sendo somente uma ideia da relação homem a homem, não pode ter analogia alguma com Deus. É tão absurdo, nesse sentido, dizer que Deus é justo ou injusto quanto dizer que é azul ou quadrado. É, portanto, insensato censurar a Deus porque as moscas são comidas pelas aranhas e porque os homens só vivem oitenta anos, (porque) abusam de sua liberdade para se destruírem uns aos outros, (porque) têm doenças, paixões cruéis, etc., pois não temos, certamente, nenhuma ideia de que os homens e as moscas devessem ser eternos. Para nos assegurarmos bem de que uma coisa é um mal, seria preciso ao mesmo tempo vermos se poderíamos fazê-la melhor. Certamente só podemos julgar uma máquina imperfeita pela ideia da perfeição que lhe falta. Não podemos, por exemplo, julgar que os três lados de um triângulo sejam desiguais se não tivermos a ideia de um triângulo equilátero. Não podemos dizer que um relógio é mau se não tivermos uma ideia distinta de um determinado número de espaços iguais que o ponteiro desse relógio deve percorrer igualmente. Mas, quem terá uma ideia em que se mostre a sabedoria divina derrogada neste mundo? A opinião de que há um Deus enfrenta dificuldades, mas a opinião contrária profere absurdos. É o que precisamos examinar, fazendo um pequeno resumo daquilo que o materialista é obrigado a crer. Consequências Necessárias da Opinião dos Materialistas É preciso que digam que o mundo existe necessariamente e por si mesmo, de maneira que haveria contradição nos termos se dissessem que uma parte da matéria poderia não existir ou poderia existir diferentemente do que é. É preciso que digam que o mundo material tem em si essencialmente o pensamento e o sentimento, pois não pode adquiri-los, porque nesse caso viriam do nada. Ora, não pode recebê-lo de alhures porque está suposto que é tudo o que é. É preciso, portanto, que o pensamento e o sentimento lhe sejam inerentes, como a extensão, a divisibilidade, a capacidade de movimento são inerentes à matéria. E, assim, é preciso confessar que há somente um pequeno número de partes que têm esse sentimento e esse pensamento essenciais ao total do mundo; que esses sentimentos e esses pensamentos, embora inerentes à matéria, entretanto, perecem a cada instante; ou então será preciso adiantar que há uma alma do mundo que se propaga nos corpos organizados. E, então, será preciso que esta alma seja diferente do mundo. Assim, de qualquer lado que nos viremos, só encontraremos quimeras que se destroem. Os materialistas devem ainda sustentar que o movimento é essencial à matéria. São por isso reduzidos a dizer que o movimento nunca pôde nem nunca poderá aumentar ou diminuir. Serão forçados a adiantar que cem mil homens marchando juntos e cem tiros de canhão que disparam não produzem nenhum movimento novo na natureza. Será preciso ainda que assegurem que não há liberdade alguma, e assim, que destruam todos os laços da sociedade, crendo numa fatalidade tão difícil de compreender como a liberdade, mas desmentida por eles próprios na prática. Que um leitor equânime; tendo maduramente pesado o pró e o contra da existência de um Deus criador, veja agora de que lado está a verossimilhança! Depois de nos arrastarmos assim, de dúvida em dúvida, e de conclusão em conclusão, até poder encarar a proposição Existe um Deus como a coisa mais verossímil que os homens possam pensar, e após ter visto que a proposição contrária é uma das mais absurdas, parece natural pesquisar qual a relação existente entre Deus e nós; ver se Deus estabeleceu leis para os seres pensantes, assim como existem leis mecânicas para os seres materiais; examinar se existe uma moral e o que pode ser; se há uma religião estabelecida pelo próprio Deus. Estas questões são, sem dúvida, de tal importância que diante delas tudo cede o passo, e as pesquisas com que divertimos nossa vida tornam-se bem frívolas se comparadas a elas. No entanto, essas perguntas só estarão no devido lugar quando considerarmos q homem como um animal sociável. Examinemos, primeiramente, como lhe vêm as ideias e como pensa, antes de vermos que uso faz ou deve fazer dos seus pensamentos. CAPÍTULO III Que Todas as Ideias Vêm pelos Sentidos Quem quer que submeta tudo o que se passou em seu entendimento a uma avaliação fiel admitirá sem dificuldade que seus sentidos lhe forneceram todas as ideias. E, no entanto, os filósofos que abusaram de sua razão pretenderam afirmar que tínhamos ideias inatas. E o asseguraram usando apenas o mesmo fundamento que lhes servira para dizer que Deus, tomando cubos de matéria e esfregando-os uns contra os outros, formara o mundo visível. Formaram sistemas com os quais se vangloriavam de poder arriscar qualquer explicação aparente dos fenômenos da natureza. Essa maneira de filosofar é ainda mais perigosa do que o jargão desprezível da Escola. Pois esse jargão, sendo absolutamente vazio de sentido, basta um pouco de atenção para que um espírito reto, num único lance, aperceba-se do seu ridículo e procure alhures a verdade. Mas, uma hipótese engenhosa e ousada que tenha de início algum iam pejo de verossimilhança estimula o orgulho humano a crê-la; o espírito se congratula por tais princípios sutis e serve-se de toda sua sagacidade para defendê-los. É claro que nunca se deve levantar hipóteses; nunca dizer: Comecemos por inventar princípios com os quais trataremos de explicar tudo. Mas, é preciso dizer: Façamos a análise exata das coisas e em seguida trataremos de ver, com muita desconfiança se se relacionam com alguns princípios. Os que fizeram o romance das ideias inatas se vangloriaram de dar explicação das ideias do infinito, da imensidão de Deus e de algumas noções metafísicas que supunham ser comuns a todos os homens. Entretanto, se antes de se empenhar nesse sistema tivessem querido refletir sobre o fato de que muitos homens não têm durante toda sua vida a menor tintura dessas noções; que nenhuma criança as tem sem que se lhes dê; e que, enfim, quando as adquirimos, temos apenas percepções muito imperfeitas, ideias puramente negativas, tais reflexões os levariam a envergonharem-se de suas opiniões. Se há alguma coisa demonstrada fora da matemática é que não há ideias inatas no homem. Se houvesse, todos os homens ao nascer teriam a ideia de Deus e teriam todos a mesma ideia; teriam todos as mesmas noções metafísicas. Acrescentais a isso o absurdo ridículo em que nos lançamos quando sustentamos que Deus nos deu, quando ainda no ventre materno, noções que precisam ser-nos totalmente ensinadas em nossa juventude. É, portanto, indubitável que nossas primeiras ideias sejam nossas sensações. Pouco a pouco recebemos ideias compostas daquilo que atinge nossos órgãos; nossa memória retém: estas percepções; nós as classificamos em seguida sob ideias gerais, e todos os vastos conhecimentos do homem resultam dessa única faculdade de compor e arranjar as ideias. Os que objetam que as noções do infinito em duração, em extensão, em número, não podem vir dos nossos sentidos, só têm que se voltar sobre si mesmos por um instante. Primeiramente, verão que não têm nenhuma ideia completa, e nem sequer positiva do infinito, mas que foi somente acrescentando as coisas materiais umas às outras que chegaram a compreender que nunca verão o fim de sua conta, e chamaram infinito essa impotência, que é antes uma confissão da ignorância humana do que uma ideia acima de nossos sentidos. Se se objetar que há infinito real em geometria, respondo: não. Prova-se somente que a matéria será sempre divisível; prova-se que todos os círculos possíveis passarão entre duas linhas; prova-se que uma infinidade de superfícies não possui nada de comum com uma infinidade de cubos, mas isto nos dá tanta ideia do infinito quanto a proposição Existe um Deus nos dá uma ideia do que é Deus. Mas não é suficiente estarmos convencidos de que todas as nossas ideias nos vêm pelos sentidos. Nossa curiosidade leva-nos também a querer conhecer como elas nos vêm, e, assim, todos os filósofos escreveram belos romances, o que lhes teria sido poupado se tivessem examinado com boa fé os limites da natureza humana. Quando não temos o apoio do compasso da matemática nem do archote da experiência e da física, é certo que não podemos dar um só passo. Até que tenhamos os olhos bastante agudos para distinguir as partes constituintes do ouro das partes constituintes de um grão de mostarda, é certo que não poderemos raciocinar sobre suas essências. E, até que o homem seja de outra natureza, e que tenha órgãos para perceber sua própria substância e a essência de suas ideias, como tem órgãos para sentir, é indubitável que lhe será impossível conhecê-las. Perguntar como pensamos e como sentimos, como nossos movimentos obedecem à nossa vontade, é perguntar sobre segredo do Criador. Nossos sentidos não nos fornecem vias para chegar a esse conhecimento, como não nos fornecem asas quando desejamos ter a faculdade de voar. Em minha opinião, isso prova suficientemente que todas as nossas ideias nos vêm pelos sentidos, já que, quando nossos sentidos nos faltam, as ideias nos faltam igualmente. Também é impossível saber como pensamos e, pela mesma razão, é impossível ter a ideia de um sexto sentido, pois faltam-nos órgãos que nos ensinem tais ideias. Eis por que aqueles que tiveram a ousadia de imaginar um sistema sobre a natureza da alma e de nossas concepções foram obrigados a supor a opinião absurda das ideias inatas, vangloriando-se de que, entre pretensas ideias metafísicas vindas do céu ao nosso espírito, encontrar-se-iam algumas que descobririam esse segredo impenetrável. De todos os raciocinadores ousados que se perderam na profundeza dessas investigações, o Padre Malebranche é o que pareceu extraviar-se de modo mais sublime. Eis a que se reduz seu sistema, que provocou tanto estardalhaço. Nossas percepções, que nos vêm por ocasião dos objetos, não podem ser causadas por esses próprios objetos, e certamente não têm neles mesmos a potência de produzir um sentimento; não vêm de nós mesmos, pois a esse respeito somos tão impotentes quanto os objetos; é preciso, pois, que seja Deus que no-las dê. Ora, Deus é vínculo dos espíritos, e os espíritos subsistem nele; por- tanto, é nele que temos nossas ideias e que vemos todas as coisas. Ora, pergunto a todo homem que não tenha a cabeça repleta de entusiasmo: que noção clara nos dá este último raciocínio? O que quer dizer Deus é o vínculo dos espíritos? E mesmo que as palavras sentir e ver tudo em Deus formassem em nós uma ideia distinta, o que ganharíamos com isso e em que seríamos mais sábios do que antes? Certamente, para reduzir o sistema do Padre Malebranche a algo inteligível, somos obrigados a recorrer ao spinozismo, imaginando que o total do universo é Deus, que este Deus age em todos os seres, sente nos animais, pensa nos homens, vegeta nas árvores, é pensamento e pedregulho, tem todas as partes de si mesmo destruídas a todo momento, e enfim todos os absurdos que decorrem necessariamente de tal princípio. Os extravios de todos aqueles que quiseram aprofundar o que é impenetrável para nós devem ensinar-nos a não querer ultrapassar os limites de nossa natureza. A verdadeira filosofia é saber interromper onde é preciso e jamais caminhar sem um guia seguro. Resta bastante terreno a percorrer sem viajar nos espaços imaginários. Contentemo-nos, portanto, em saber pela experiência apoiada no raciocínio, única fonte de nossos conhecimentos, que nossos sentidos são as portas por onde todas as ideias entram em nosso entendimento, e relembremos bem que nos é absolutamente impossível conhecer o segredo dessa mecânica, porque não possuímos instrumentos proporcionais às suas molas. CAPÍTULO IV Que Há Efetivamente Objetos Exteriores Não passaria por nossa cabeça tratar desta questão se os filósofos não tivessem procurado duvidar das coisas mais claras, como se vangloriaram de conhecer as mais duvidosas. Nossos sentidos nos fazem ter ideias, dizem eles, mas talvez nosso entendimento receba essas percepções sem que haja algum objeto no exterior. Sabemos que durante o sono vemos e sentimos coisas que não existem; talvez nossa vida seja um sonho contínuo e a morte será o momento de nosso despertar, ou o fim de um sono que não será sucedido por nenhum despertar. Nossos sentimentos nos enganam mesmo na vigília; a menor alteração em nossos órgãos nos faz ver, algumas vezes, objetos e escutar sons cuja causa está unicamente no desarranjo do nosso corpo; portanto, é bem possível que nos aconteça sempre o que nos acontece algumas vezes. Acrescentam que quando vemos um objeto, percebemos uma cor, uma figura, escutamos sons, e que nos agradou denominar tudo isto de: os modos deste objeto; mas, qual é a substância desse objeto? É aí, com efeito, que o objeto escapa à nossa imaginação. O que tão ousadamente denominamos a substância é somente a reunião desses modos. Despojai esta árvore desta cor, desta configuração que nos dava a ideia de uma árvore, que lhe restará? Ora, o que chamei modos são somente as minhas percepções. Posso muito bem dizer: tenho ideia da cor verde e de um corpo configurado assim, assim, mas não tenho prova alguma de que este corpo e esta cor existam: eis o que diz Sexto Empírico, sem poder encontrar uma resposta. Concedamos a esses senhores, ainda por um momento, mais do que pedem. Pretendem que não podemos provar-lhes a existência dos corpos. Permitamos-lhes que eles próprios provem que não há corpos. Que decorrerá disso? Conduziremo-nos diferentemente em nossa vida? Teremos ideias diferentes sobre nada? Bastará mudar somente uma palavra em seus discursos. Assim, por exemplo, se tiver ocorrido alguma batalha, será preciso dizer que dez mil homens pareceram ter sido mortos, que tal oficial parece ter quebrado a perna e que um cirurgião parecerá cortá-la. Assim também, quando tivermos fome, pediremos a aparência de um pedaço de pão para fingirmos digerir. Mas, eis o que poderemos responder mais seriamente: 1ª A rigor não podeis comparar a vida ao estado dos sonhos, porque dormindo sonhais apenas com as coisas cuja ideia tivestes quando despertos. Estais seguros de que vossos sonhos são apenas uma fraca reminiscência. Ao contrário, durante a vigília, quando temos uma sensação, nunca podemos concluir que seja por lembrança. Se, por exemplo, uma pedra caindo quebrar-nos o ombro, parecerá bastante difícil que isto se dê por um esforço de memória. 2º É verdade que nossos sentidos frequentemente se enganam, mas que entendemos por isso? Só temos um sentido propriamente dito, o do tato. A visão, o som, o olfato são o tato dos corpos intermediários que partem de um corpo distante. Só tenho ideia das estrelas pelo contato. Como o contato da luz, que atinge meu olho a mil milhões de léguas, não é palpável como o contato de minhas mãos, e depende do meio que aqueles corpos atravessaram, tal contato é chamado, impropriamente, enganador, pois não me deixa ver os objetos nos seus verdadeiros lugares, não me dá a ideia da sua grandeza. Nenhum desses contatos não palpáveis fornece-me ideia positiva dos corpos. A primeira vez que sinto um odor sem ver o objeto de onde vem, meu espírito não encontra relação alguma entre um corpo e esse odor, mas o contato propriamente dito; a aproximação do meu corpo de outro, independentemente dos meus outros sentidos, me dá a ideia da matéria, pois quando toco uma rocha sinto perfeitamente que não posso colocar-me em seu lugar, e que, por conseguinte, há qualquer coisa extensa e impenetrável, Assim, supondo (pois o que não supomos?) que um homem tivesse todos os sentidos fora o do tato propriamente dito, tal homem poderia muito bem duvidar da existência dos objetos exteriores e talvez até permanecer muito tempo sem ter a menor ideia deles. Entretanto, aquele que fosse surdo e cego, mas tivesse o tato, não poderia duvidar da existência das coisas cuja dureza experimentasse, pois não está na essência da matéria que um corpo seja colorido ou sonoro, mas sim extenso e impenetrável. Como os céticos indignados responderão às duas questões seguintes: 1º Se não há objetos exteriores, e se minha imaginação faz tudo, por que me queimo quando toco o fogo e não me queimo quando, em (um) sonho, creio tocar o fogo? 2º Quando escrevo minhas ideias sobre este papel e outro homem vem ler que escrevo, como posso escutar as palavras que escrevi e pensei se esse outro homem não as ler efetivamente? Como posso reencontrá-las se não estiverem aí? Enfim, qualquer que seja o esforço que faça para duvidar, estou mais convencido da existência dos corpos do que de várias verdades geométricas. Embora pareça espantoso, nada posso fazer. Podem faltar-me demonstrações geométricas para provar que tenho pai e mãe, e pode ter sido em vão demonstrar-me, ou seja, não se ter podido responder ao argumento que prova que uma infinidade de linhas curvas podem passar entre um círculo e sua tangente. No entanto, sinto perfeitamente que se um ser todo-poderoso viesse dizer-me que, das duas proposições seguintes, "há corpos" e "uma infinidade de curvas passam entre o círculo e sua tangente", uma é falsa, acrescentando: adivinhais qual delas? Adivinharia que é a última, pois, sabendo que ignorei durante muito tempo esta proposição, e, que tive necessidade de uma atenção concentrada para compreender sua demonstração; que acreditei aí encontrar dificuldades; que, enfim, as verdades geométricas só têm realidade em meu espírito, poderia suspeitar que este se enganou. Seja como for, como aqui minha principal finalidade é examinar o homem sociável, e só podemos ser sociáveis se houver uma sociedade, e, por conseguinte, objetos fora de nós, os pirronianos me permitirão começar por crer firmemente que há corpos, sem o que seria preciso que eu recusasse a própria existência desses senhores. CAPÍTULO V Se o Homem Tem uma Alma, e o que Pode Ser Temos certeza de que somos matéria, de que sentimos e de que pensamos. Estamos persuadidos da existência de um Deus de quem somos a obra, e as razões que nos levam a tal convicção não permitem que nosso espírito se revolte contra elas. Provamos a nós mesmos que Deus criou o que existe. Convencemo-nos de que nos é impossível e de que nos deve ser impossível saber como Ele nos deu o ser. Entretanto, podemos saber o que pensa em nós? Qual é essa faculdade que Deus nos deu? É a matéria que sente e que pensa? É uma substância imaterial? Em uma palavra, o que é uma alma? Aqui, mais do que nunca, é necessário recolocar-me no estado de um ser pensante vindo de outro globo, não tendo os preconceitos daqui e possuindo a mesma capacidade que eu, mas não sendo o que se chama homem, e capaz de julgar o homem de uma maneira desinteressada. Se eu fosse um ser superior a quem o Criador tivesse revelado seus segredos, vendo o homem, logo diria o que é esse animal. Definiria sua alma e todas as suas faculdades com conhecimento de causa, com tanta ousadia como o definiram tantos filósofos que nada sabiam. Porém, confessando minha ignorância e experimentando minha fraca razão, não posso fazer outra coisa senão servir-me da via da análise, bastão dado aos cegos pela natureza. Examino tudo parte por parte e vejo em seguida se posso julgar o todo. Suponho, então, que cheguei à África, cercado de negros, de hotentotes e de outros animais. Noto inicialmente que os órgãos da vida são os mesmos em todos eles, todas as operações de seus corpos partem dos mesmos princípios de vida; todos têm, a meu ver, os mesmos desejos, as mesmas paixões, as mesmas necessidades, exprimindo-os cada um em sua língua. A primeira língua que escuto é a dos animais, e não poderia ser de outra forma; os sons pelos quais se exprimem não parecem arbitrários, mas caracteres vivos de suas paixões; os signos trazem a marca do que exprimem: o grito de um cachorro que reclama comida, reunido a todas as suas atitudes, tem uma relação sensível com seu objeto. Distingo incontinenti os gritos e os movimentos com que adula outro animal daqueles com que caça, e daqueles com que se queixa. Distingo ainda se sua queixa exprime a ansiedade da solidão, ou a dor de uma ferida, ou as impaciências do amor. Assim, com um pouco de atenção, compreendo a linguagem de todos os animais. Não há sentimento algum que não exprimam, embora talvez não aconteça o mesmo com suas ideias; mas como parece que a natureza lhes deu pouquíssimas ideias, parece-me também que seria natural que tivesse uma linguagem limitada, proporcionada •às suas percepções. Que diferença encontro nos animais negros? Que posso ver aí, se não algumas ideias e algumas combinações a mais na cabeça, expressas numa linguagem articulada diferentemente? Quanto mais examino todos esses seres, mais devo suspeitar que são espécies diferentes de um mesmo gênero. A faculdade admirável de reter ideias é comum a todos, todos têm sonhos e fracas imagens durante o sono, ideias que receberam na vigília; sua faculdade sensível e pensante cresce com seus órgãos, como eles se enfraquece e perece. Se vertermos o sangue de um macaco e de um negro, haverá em breve num e noutro um grau de esgotamento que os tornará incapazes de me reconhecer. Logo depois seus sentidos exteriores não agem mais e enfim morrem. Pergunto agora o que lhes dava a vida, a sensação e o pensamento. Não era sua própria obra, também não era a da matéria, como já provei. Portanto, foi Deus quem dera a todos esses corpos a potência de sentir e de ter ideias em graus diferentes, proporcionais aos seus órgãos. Eis, seguramente, o que eu suspeitaria de início. Enfim, vejo homens que me parecem superiores aos negros, como estes o são em relação aos símios, e como estes, comparados aos outros animais dessa espécie. Os filósofos dizem-me: Não vos enganeis, o homem é inteiramente diferente dos outros animais, tem uma alma espiritual e imortal, pois (notai bem, isto), se o pensamento é um composto da matéria, deve ser necessariamente aquilo de que é composto, deve ser divisível, capaz de movimento, etc. Ora, o pensamento não pode dividir-se, portanto não é um composto da matéria, não possui partes, é simples, é imortal, é a obra e a imagem de um Deus. Escuto esses mestres e lhes respondo, sempre desconfiando de mim mesmo, mas nem por isso confiando neles. Se o homem tem uma alma, tal como assegurais, devo crer que este cão e esta toupeira têm uma semelhante. Todos me juram que não. Pergunto-lhes qual a diferença que existe entre este cão e eles. Uns me respondem: este cão é uma forma substancial; outros me dizem: não acrediteis nisso, as formas substanciais são quimeras; este cão é uma máquina como uma manivela, e nada mais. Pergunto ainda aos inventores das formas substanciais o que entendem por essa expressão, e como só me respondem com galimatias, volto-me para os inventores das manivelas e lhes digo: se estes animais são puras máquinas. certamente sereis, em comparação com eles, apenas como um relógio de repetição em comparação com a manivela de que falais; ou, se tendes a honra de possuir uma •alma espiritual, os animais terão uma também, pois são tudo o que vós sois. Possuem os mesmos órgãos com os quais tendes sensações, e se não lhes servirem para a mesma finalidade, dando-lhes tais órgãos Deus terá feito uma obra inútil. Mas de acordo com vossa própria opinião, Deus nada faz em vão. Escolhei, portanto: ou atribuís uma alma espiritual a uma pulga, a um verme, a um bicho do queijo, ou sois autômatos como eles. Tudo que tais senhores podem responder-me consiste em dizer que conjecturam a respeito das molas dos animais, molas que parecem ser os órgãos de seus sentimentos, necessárias às suas vidas, mas que neles são unicamente molas de vida. Esta resposta é apenas uma suposição irrazoável. É certo que para viver não se precisa nem de nariz, nem de orelhas, nem de olhos. Há animais que não possuem sentidos e vivem. Portanto, esses órgãos dos sentidos são dados apenas para o sentimento, donde se conclui que os animais sentem como nós e, assim, só um excesso de vaidade ridícula pode levar os homens a se atribuírem uma alma de uma espécie diferente daquela que anima os brutos. É claro, pois, que até agora nem os filósofos nem eu sabemos o que seja a alma. Está somente provado ser alguma coisa comum entre o animal chamado homem e aquele que se denomina besta. Vejamos se essa faculdade comum a todos os animais é matéria ou não. É impossível, dizem-me, que a matéria pense. Não vejo esta impossibilidade. Se o pensamento fosse um composto da matéria, como me dizem, admitiria que o pensamento deveria ser extenso e divisível; mas se o pensamento é um atributo de Deus dado à matéria, não vejo por que seja necessário que tal atributo seja extenso e divisível, pois vejo que Deus comunicou à matéria outras propriedades que não possuem extensão nem divisibilidade. Assim, por exemplo, a gravitação, que age sem corpos intermediários e na razão direta da massa e não das superfícies, e na razão inversa do quadrado das distancias, é uma qualidade real demonstrada, mas cuja causa está tão escondida como a do pensamento. Em uma palavra, só posso julgar segundo o que vejo, e segundo o que me parece mais provável. Vejo que em toda a natureza os mesmos efeitos supõem uma mesma causa. Assim, julgo que a mesma causa age nas bestas e nos homens proporcionalmente aos seus órgãos, e creio que este princípio comum aos homens e às bestas é um atributo dado por Deus à matéria. Pois, se o que se chama alma fosse um ser à parte, qualquer que fosse sua natureza, eu deveria crer que o pensamento é sua essência, ou, então, eu não teria ideia alguma dessa substancia. Mesmo todos os que admitiram uma alma imaterial foram obrigados a dizer que esta pensa sempre. Faço, então, apelo à consciência de todos os homens. Pensam sem cessar? Pensam quando dormem um sono pleno e profundo? As bestas têm ideias em todos os momentos? Alguém que desmaiou tem muitas ideias nesse estado, que é realmente uma morte passageira? Se a alma não pensa sempre é, portanto, absurdo reconhecer no homem uma substancia cuja essência seja pensar. Que poderíamos concluir senão que Deus organizou os corpos para pensar assim como para comer e para digerir? Informando-me sobre a história do gênero humano, vejo que durante muito tempo os homens tiveram a mesma opinião que eu sobre esse assunto. Leio um dos livros mais antigos do mundo, conservado por um povo que se pretende ser o povo mais antigo, e tal livro me diz que o próprio Deus parece pensar como eu. Ensina-me que outrora Deus deu aos judeus leis mais detalhadas do que quaisquer outras recebidas por uma nação. Digna-se prescrever-lhes até a maneira como devem ir à privada, mas não lhes disse uma única palavra sobre a alma, falando-lhes apenas de castigos e recompensas temporais, o que prova, pelo menos, que o autor desse livro não vivia numa nação que acreditasse na espiritual idade e na imortalidade da alma. Dizem-me que, dois mil anos depois, Deus veio ensinar aos homens que sua alma é imortal, mas eu, que pertenço a outra esfera, não posso deixar de me espantar com esse disparate debitado na conta de Deus. Parece estranho para minha razão que Deus tenha feito os homens crerem no pró e no contra, mas tratando-se de um ponto de revelação, onde minha razão nada vê, calo-me e adoro em silêncio. Não cabe a mim examinar o que foi revelado. Noto somente que os livros revelados não dizem que a alma seja espiritual, dizem apenas que é imortal. Não tenho dificuldade alguma para acreditar nisso, pois parece tão possível a Deus tê-la formado (seja qual for sua natureza) para conservá-la como para destruí-la. Esse Deus, que pode conservar ou aniquilar o movimento de um corpo conforme lhe agrade, pode seguramente fazer durar para sempre a faculdade de pensar numa parte desse corpo. Com efeito, se ele próprio nos disse que essa parte é imortal, é preciso persuadir-se de que assim é. Mas, de que é feita a alma? Isto o Ser Supremo não julgou de bom alvitre ensinar aos homens. Contando apenas com minhas próprias luzes, com o desejo de conhecer alguma coisa e com a sinceridade do meu coração para conduzir-me nessas investigações, procuro sinceramente o que minha razão pode revelar-me por si mesma. Experimento suas forças, não por crê-la capaz de carregar todos esses pesos imensos, mas para fortificá-la pelo exercício, e para saber até onde vai seu poder. Assim, sempre pronto a ceder desde que a revelação me apresente suas barreiras, continuo minhas reflexões e minhas conjecturas unicamente como filósofo, até que minha razão não possa mais avançar. CAPÍTULO VI Se o que Chamamos Alma é Imortal Este não é o lugar adequado para examinar se efetivamente Deus revelou a imortalidade da alma. Continuo supondo que sou um filósofo de outro mundo julgando apenas com minha razão. Esta ensinou-me que todas as ideias dos homens e dos animais lhes vêm pelos sentidos e confesso não poder segurar o riso quando ,me dizem que os homens ainda terão ideias quando não tiverem mais sentidos. Se um homem perdeu o nariz, assim perdido, este é uma parte dele tanto quanto a estrela polar. Ao perder todas as suas partes e não ser mais um homem, não seria estranho dizer, então, que ainda lhe sobra o resultado de tudo o que pereceu? Preferiria dizer que come e bebe após sua morte a dizer que lhe restam ideias depois dela. Essas duas suposições são igualmente inconsequentes, mas certamente escoaram-se muitos séculos antes que se ousasse fazer uma proposta tão surpreendente como a segunda. Bem sei, ainda uma vez, que Deus, tendo atado a uma parte do cérebro a faculdade de ter ideias, pode conservar essa pequena parte do cérebro com sua faculdade, pois conservar essa faculdade sem a parte seria tão impossível como conservar o riso de um homem ou o canto de um pássaro após a morte do homem e do pássaro. Deus pode também ter dado aos homens e aos animais uma alma simples, imaterial, conservando-a independentemente de seus corpos. Isso lhe é tão possível como criar um milhão de mundos a mais do que criou, bem como dar aos homens dois narizes e quatro mãos, asas e garras. No entanto, para crer que de fato fez todas essas coisas possíveis, parece-me que é preciso vê-las. Não vendo, portanto, que o entendimento, a sensação do homem, seja coisa imortal, quem provará que ela o é? Como? ! Eu, que nem sei qual é a natureza dessa coisa, afirmarei que é eterna?! Eu, que sei que o homem não existia ontem, afirmarei que há nele uma parte eterna por sua natureza?! E, enquanto recusarei a imortalidade àquilo que anima este cão, este papagaio, esta gralha, irei concedê-la ao homem só porque o homem a deseja? Com efeito, seria bem doce sobreviver a si mesmo, conservar eternamente a parte mais excelente de seu ser sob a destruição da outra, viver para sempre com seus amigos, etc.! Esta quimera (ao encará-la só nesse sentido) seria consoladora para as misérias reais. Eis, talvez, por que se inventou outrora o sistema da metem psicose. Entretanto, seria ele mais verossímil do que as Mil e Uma Noites? Não seria fruto da imaginação viva e absurda da maioria dos filósofos orientais? Suponho, porém, malgrado todas as verossimilhanças, que Deus conserva após a morte do homem o que se chama sua alma, e que abandona a da fera com o ritmo comum da destruição de todas as coisas. Pergunto o que o homem ganhará com isso; pergunto o que o espírito de Tiago terá em comum com Tiago depois de morto. O que constitui a pessoa de Tiago, fazendo com que Tiago seja ele mesmo e o mesmo que era ontem a seus próprios olhos, é a lembrança das ideias que tinha ontem, e que no seu entendimento une sua existência de ontem à sua existência de hoje, pois se tivesse perdido inteiramente a memória, sua existência passada lhe seria tão estranha quanto a de um outro homem. Não seria mais o Tiago de ontem, a mesma pessoa, como não seria Sócrates ou César. Ora, suponho que Tiago, em sua última doença, tenha perdido totalmente a memória, morrendo consequentemente sem ser o mesmo Tiago que viveu. Deus devolverá à sua alma essa memória que perdeu? Criará novamente essas ideias que não mais existem? Neste caso não será um homem completamente novo, tão diferente do primeiro quanto um hindu de um europeu? Mas pode-se dizer também que, Tiago tendo perdido inteiramente a memória antes de morrer, sua alma poderá recobrá-la assim como é recobrada após um desmaio ou após uma congestão cerebral, pois um homem que perdeu inteiramente a memória numa grande doença não deixa de ser o mesmo homem quando a recupera. Portanto, a alma de Tiago, se tiver uma, e se for imortal pela vontade do Criador, como se supõe, poderá recuperar a memória após sua morte, exatamente como a recupera após um desmaio durante a vida. E assim, Tiago será o mesmo homem. Vale a pena propor tais dificuldades, e aquele que encontrar uma maneira segura de resolver a equação dessa incógnita será, penso, um homem hábil. Não consigo avançar mais nessas trevas. Detenho-me quando me falta a luz de meu archote. Já é suficiente que consiga ver até aonde posso ir. Não asseguro que tenha demonstrações contra a espiritualidade e a imortalidade da alma, mas todas as aparências são contra elas. É igualmente injusto e desarrazoado querer uma demonstração numa pesquisa susceptível somente de conjecturas. É preciso unicamente prevenir o espírito dos que acreditariam a mortalidade da alma contrária ao bem da sociedade, e fazê-los relembrar que os antigos judeus, cujas leis admiram, acreditavam a alma material e mortal, sem contar as grandes seitas de filósofos que valiam como os judeus e que eram gente muito honesta. CAPÍTULO VII Se o Homem é Livre Talvez não haja questão mais simples do que a da liberdade, mas também não há outra que tenha sido mais emaranhada pelos homens. As dificuldades com que os filósofos eriçaram tal matéria, a temeridade com que se quis arrancar de Deus seu segredo e conciliar a presciência com o livre arbítrio, obscureceram a ideia de liberdade com a pretensão de esclarecê-la. Acostumou-se tanto a não mais pronunciar a palavra liberdade sem acompanhá-la com a sequência de todas as dificuldades em que se desdobra que hoje em dia ninguém se entende quando se pergunta: o homem é livre? Agora não há mais lugar para fingir um ser dotado de razão sem ser humano e que examina com indiferença o que é o homem. Ao contrário, agora é preciso que cada homem entre em si mesmo e dê testemunho de seu próprio sentimento. Iniciemos despojando a questão de todas as quimeras com que se costumou embaraçá-la, e definamos o que entendemos pela palavra liberdade. Liberdade é unicamente o poder de agir. Se uma pedra se movesse por sua escolha, seria livre. Os animais e os homens têm esse poder, portanto, são livres. Posso com todas as minhas forças contestar essa faculdade aos animais, posso afigurar-me, se quiser abusar de minha razão, que as bestas, semelhantes a mim em todo o resto, diferem de mim nesse único ponto. Posso concebê-las como máquinas que não têm nem sensações, nem desejos, nem vontade, embora aparentem tê-los. Forjarei sistemas, isto é, erros, para explicar sua natureza, mas, no momento de interrogar-me a mim mesmo, será preciso confessar que tenho uma vontade e que tenho o poder de agir, de mexer meu corpo, de aplicar meu pensamento em tal ou qual consideração, etc. Se alguém vier me dizer: acreditais ter essa vontade, mas não a tendes; tendes um sentimento que vos engana, como acreditais ver o Sol com dois pés de largura, embora em grandeza esteja para a Terra mais ou menos como um milhão para a unidade; responderei a esse alguém: o caso é diferente. Deus não me enganou fazendo-me ver o que está distante de mim com uma grandeza proporcional à sua distância. As leis matemáticas da óptica provaram que não posso e não devo perceber os objetos senão na razão direta de seus tamanhos e de seu afastamento, e a natureza de meus órgãos é tal que, se minha vista pudesse perceber a grandeza real de uma estrela, eu não poderia ver nenhum objeto sobre a Terra. O mesmo acontece com o sentido da audição e com o do olfato. Sendo todas as coisas iguais, só terei sensações mais ou menos fortes conforme os corpos sonoros e odoríferos estejam mais ou menos longe de mim. Não há nisso erro algum. Entretanto, se eu não tivesse vontade, crendo tê-la, Deus ter-me-ia criado expressamente para enganar-me, assim como se me fizesse acreditar que há corpos fora de mim sem que realmente houvesse. Nada resultaria dessa mentira senão um absurdo na maneira de agir de um Ser Supremo infinitamente sábio. E que não se diga ser indigno de um filósofo recorrer â Deus nesse ponto. Pois, primeiramente, estando provado esse Deus, está demonstrado que é a causa de minha liberdade, caso eu seja livre, e que é o autor absurdo de meu erro, se, tendo-me feito um ser puramente paciente sem vontade, me fizesse acreditar que sou agente e que sou livre. Em segundo lugar, se não houvesse Deus, quem me teria lançado no erro? Quem me teria dado o sentimento de liberdade, colocando-me na escravidão? Seria uma matéria que alcança a inteligência de si mesma? Não posso ser ensinado nem enganado pela matéria, nem receber dela a faculdade de querer; não posso ter recebido de Deus o sentimento da minha vontade sem ter uma; tenho realmente uma vontade, portanto sou um agente. Querer e agir é precisamente o mesmo que ser livre. O próprio Deus só pode ser livre nesse sentido. Quis e agiu segundo sua vontade. Se supuséssemos sua vontade determinada necessariamente, dizendo que teve necessidade de querer o que fez, cairíamos num absurdo tão grande quanto se disséssemos "há um Deus" e "não há um Deus", pois se Deus fosse determinado necessariamente não seria mais agente, seria paciente e não seria mais Deus. Nunca se deve perder de vista essas verdades fundamentais encadeadas umas às outras. Algo existe, portanto algum ser existe eternamente, portanto tal ser existe por si mesmo com uma necessidade absoluta, portanto é infinito, portanto todos os outros seres vêm dele sem que se saiba como, portanto pôde comunicar-lhes a liberdade assim como lhes comunicou o movimento e a vida, portanto deu-nos esta liberdade que sentimos em nós, assim como nos deu a vida que sentimos em nós. Em Deus a liberdade é o poder de pensar e de operar sempre tudo o que quer. A liberdade dada por Deus ao homem é o poder fraco, limitado e passageiro, de dedicar-se a alguns pensamentos, e de operar certos movimentos. A liberdade das crianças que ainda não refletem e das espécies animais, que nunca refletem, consiste somente em querer e operar movimentos. Sobre qual fundamento podemos imaginar que a liberdade não existe? Eis as causas desse erro: de início, notou-se que temos frequentemente paixões violentas que nos arrastam malgrado nós mesmos. Um homem quereria não amar uma amante infiel, e, no entanto, seus desejos, mais fortes que sua razão, o reconduzem para ela; somos arrebatados por ações violentas, em movimentos coléricos incontroláveis; desejaríamos levar uma vida tranquila, e, no entanto, a ambição nos impele para o tumulto dos negócios. Tantas cadeias visíveis a prostrar-nos durante quase toda nossa vida fizeram-nos crer que estamos igualmente acorrentados a todo o resto, e dizemos: ora o homem é arrastado com rapidez e violência por sacudidas que o agitam, ora é conduzido por um movimento tranquilo de que também não é senhor; é um escravo que nem sempre sente o peso e a infâmia dos seus ferros, mas é sempre escravo. Tal raciocínio, que é apenas a lógica da fraqueza humana, é em tudo semelhante a este: os homens ficam doentes algumas vezes, portanto, nunca têm saúde. Ora, quem não vê a impertinência desta conclusão? Quem não vê, ao contrário, que sentir a doença é uma prova indubitável de que se teve saúde, que sentir a escravidão e a impotência prova invencivelmente que se teve a potência e a liberdade? Quando tivestes uma paixão furiosa, vossa vontade não era mais obedecida por vossos sentidos; nessa ocasião éreis tão livres como numa paralisia que vos impedisse de movimentar o braço que queríeis mexer. Se um homem fosse durante toda sua vida dominado por paixões violentas ou por imagens que passam incessantemente em seu cérebro, faltar-lhe-ia a parte de humanidade que consiste em poder pensar algumas vezes naquilo que se quer. Tal é a situação de muitos loucos que trancafiamos e mesmo a de muitos outros que não estão trancafiados. O mesmo motivo que faz com que não sejamos todos igualmente esclarecidos, igualmente robustos, faz com que haja homens mais livres do que outros. A liberdade é a saúde da alma e em poucas pessoas é completa e inalterável. Nossa liberdade é fraca e limitada como todas as nossas outras faculdades. Nós a fortificamos acostumando-nos a refletir, e este exercício torna a alma um pouco mais vigorosa. Mas quaisquer que sejam os esforços que façamos, nunca podemos chegar a tornar nossa razão soberana de todos os nossos desejos; haverá sempre movimentos involuntários em nossa alma como em nosso corpo. Somos livres, sábios, fortes, sãos e espirituais num grau muito reduzido. Se fôssemos sempre livres, seríamos o que Deus é. Contentemo-nos com uma partilha conveniente ao lugar que ocupamos na natureza. Mas não imaginemos que nos faltam as coisas que fruímos, nem renunciemos às faculdades de um homem por não termos os atributos de um Deus. No meio de um baile ou de uma conversa animada, ou nas dores de uma doença que me oprima a cabeça, em vão poderei querer encontrar quanto é a trigésima quinta parte de noventa e cinco terços e meio multiplicados por vinte e cinco décimos nonos e três quartos; não terei a liberdade de fazer tal combinação. Mas um pouco de recolhimento devolver-me-á essa capacidade, perdida no tumulto. Os mais encarniçados inimigos da liberdade são, portanto, forçados a admitir que temos uma vontade obedecida algumas vezes por nossos sentidos. "Mas essa vontade", dizem eles, "é necessariamente determinada, como uma balança sempre é inclinada para o lado do peso maior. O homem só quer o que julga melhor, seu entendimento não é senhor de não julgar bom o que lhe parece bom. O entendimento age necessariamente. A vontade é determinada pelo entendimento; portanto, a vontade é determinada por uma necessidade absoluta, consequentemente o homem não é livre”. Tal argumento deslumbrante é, no fundo, apenas um sofisma, seduzindo muita gente, porque os homens quase sempre só entreveem o que examinam. Eis em que consiste o defeito desse raciocínio: certamente o homem só pode querer coisas cujas ideias lhe estejam presentes. Não poderia ter vontade de ir à ópera se não tivesse a ideia da ópera e não desejaria ir nem se determinaria a ir, se seu entendimento não lhe representasse o espetáculo como uma coisa agradável. Ora, sua liberdade consiste exatamente nisso, ou seja, no poder de se autodeterminar a fazer o que lhe parece bom. Querer o que não lhe dará prazer é uma contradição formal e uma impossibilidade. É incontestável que o homem se determina pelo que lhe parece o melhor, mas o nó da questão é saber se tem em si esta força movente, este poder primitivo de se determinar ou não. Aqueles que dizem que o assentimento do espírito é necessário e determina necessariamente a vontade supõem que o espírito age fisicamente sobre a vontade. Dizem um absurdo visível, pois supõem que um pensamento é um pequeno ser real que age realmente sobre outro ser chamado vontade, e não refletem que as palavras vontade, entendimento, etc. são somente ideias abstratas, inventadas para clarificar e ordenar nossos discursos, e que significam apenas o homem pensando e o homem querendo. O entendimento e a vontade, portanto, não existem realmente como seres diferentes, e é impertinente dizer que um age sobre o outro. Se não supuserem que o espírito age fisicamente sobre a vontade, é preciso que digam ou que o homem é livre ou que Deus age pelo homem, determina o homem, está eternamente ocupado a enganar o homem; e neste caso pelo menos admitem que Deus é livre. Se Deus é livre, então a liberdade é possível e o homem pode tê-la. E assim, não têm razão alguma para dizer que o homem não a tem. Em vão podem dizer: o homem é determinado pelo prazer. Ao dizê-lo, admitem, sem pensar, a liberdade, pois fazer o que dá prazer é ser livre. Deus, ainda uma vez, só pode ser livre desse modo: só pode atuar segundo seu prazer. Todos os sofismas contra a liberdade do homem atacam igualmente a liberdade de Deus. O último refúgio dos inimigos da liberdade é o seguinte argumento: "Deus sabe certamente que alguma coisa acontecerá; não está, portanto, no poder do homem deixar de fazê-la". Primeiramente, notai que esse argumento atacaria novamente a liberdade de Deus que, no entanto, somos obrigados a reconhecer. Pode-se dizer: Deus sabe o que acontecerá e não está em seu poder deixar de fazer aquilo que acontecerá. Que prova esse argumento tão banal? Nada, senão que não sabemos e nem podemos saber o que é a presciência de Deus, e que todos os seus atributos são abismos impenetráveis para nós. Sabemos demonstrativamente que, se Deus existe, é livre. Sabemos, ao mesmo tempo, que sabe tudo, mas sua presciência e sua onisciência são tão incompreensíveis para nós quanto sua imensidão, sua duração infinita já passada, sua duração infinita por vir, a criação, a conservação do universo e tantas outras coisas que não podemos negar nem conhecer. A disputa sobre a presciência de Deus causou tantas querelas só porque somos ignorantes e presunçosos. Que custaria dizer: não sei o que são os atributos de Deus e não fui feito para abarcar sua essência? Mas um bacharelou um licenciado dificilmente admitirão isso. Essa atitude tornou-os os mais absurdos dos homens, e fez de uma ciência sagrada um miserável charlatanismo. CAPÍTULO VIII Do Homem Considerado como um Ser Sociável O grande desígnio do Autor da natureza parece ser o de conservar cada indivíduo certo tempo e perpetuar sua espécie. Todo animal é arrastado por um instinto invencível a tudo o que pode tender para sua conservação e há momentos em que é arrebatado ao acasalamento e à propagação por instinto quase tão forte como o anterior, sem que jamais possamos dizer como tudo isso se passa. Os animais mais selvagens e os mais solitários saem de suas tocas quando o amor os chama e sentem-se ligados durante alguns meses por cadeias invisíveis às fêmeas e aos filhotes que nascem deles. Depois esquecem essa família passageira e retomam à ferocidade de sua solidão até que o aguilhão do amor os force de novo a sair dela. Outras espécies são formadas pela natureza para viverem sempre juntas, umas numa sociedade realmente policiada, como as abelhas, as formigas, os castores e algumas espécies de pássaros; outras, estão simplesmente agrupadas por um instinto mais cego que as une sem objeto e sem desígnio aparente, como os rebanhos em terra e os arenques no mar. O homem, certamente, não é levado por seu instinto a formar uma sociedade policiada tal como as formigas e as abelhas, mas, considerando suas carências, suas paixões e sua razão, vê-se bem que não pode permanecer muito tempo num estado completamente selvagem. É suficiente, para que o universo seja o que é hoje, que um homem tenha estado enamorado de uma mulher. O cuidado mútuo que terão tido um com o outro e seu amor natural para com seus filhos terão logo despertado sua engenhosidade e dado nascimento ao começo grosseiro das artes. Duas famílias precisarão uma da outra tão logo se tiverem constituído e dessas carências nascerão novas comodidades. O homem não é como os outros animais, que têm apenas o instinto do amor-próprio e do acasalamento: não somente possui esse amor-próprio necessário à sua conservação, como também uma benevolência natural por sua espécie, o que não se nota nos animais. Se uma cadela ao passar vê um cão, nascido da mesma mãe que ela, dilacerado em mil pedaços e todo ensanguentado, agarrará um pedaço sem ter a menor piedade, e continuará seu caminho. No entanto, essa mesma cadela defenderá seu filho e morrerá combatendo antes de deixar que o levem. Ao contrário, se o homem mais selvagem vir uma bela criança quase sendo devorada por algum animal, sentirá, apesar de si mesmo, uma inquietação, uma ansiedade que a piedade faz nascer e um desejo de ir em seu socorro. É verdade que esses sentimentos de piedade e de benevolência são frequentemente asfixiados pelo furor do amor-próprio. Aliás, a natureza sábia não poderia dar-nos mais amor pelos outros do que por nós mesmos. Já é muito que tenhamos benevolência, que nos dispõe à união com os homens. Mas essa benevolência seria ainda um fraco socorro para fazer-nos viver em sociedade; nunca poderia servir de fundamento para os grandes impérios e as cidades florescentes, sem nossas grandes paixões. Estas, cujo abuso faz tanto mal à verdade, são a principal causa da ordem que vemos hoje sobre a terra. O orgulho, sobretudo, é o principal instrumento para a construção do belo edifício da sociedade. Tão logo a necessidade agrupou alguns homens, os mais hábeis perceberam que todos haviam nascido com um orgulho indomável e também com uma tendência invencível para o bem estar. Não foi difícil persuadi-los para que fizessem qualquer coisa que, embora lhes custasse um pouco do bem-estar pessoal, revertesse para o bem comum da sociedade; seu orgulho sentia-se amplamente gratificado. Assim, desde cedo os homens se distinguiram em duas classes: a primeira, dos homens divinos que sacrificam seu amor-próprio ao bem público; a segunda, dos miseráveis, que só amam a si mesmos. Todo mundo quis e ainda quer pertencer à primeira classe, embora, no fundo do coração, todo mundo seja da segunda. Os homens mais covardes e mais agarrados aos seus próprios desejos gritaram mais alto do que os outros que era preciso imolar tudo ao bem público. O desejo de comandar, um dos ramos do orgulho, tão visível num professorzinho pedante e num bailio de aldeia como num papa ou num imperador, também excitou potentemente a engenhosidade humana para levar os homens a obedecer a outros homens, mostrando-lhes claramente que se sabia mais do que eles e que lhes seria útil. Foi preciso, sobretudo, servir-se de sua avareza para comprar sua obediência. Não se podia dar-lhes muito sem ter muito, e o furor de adquirir os bens da terra acrescentava diariamente novos progressos às artes. A máquina da sociedade também não teria ido longe sem o apoio da inveja, paixão muito natural, que os homens disfarçam sempre sob o nome de emulação. A inveja obrigou a preguiça a despertar e afiou o gênio de todo aquele que viu seu vizinho poderoso e feliz. Assim, pouco a pouco, só as paixões reuniram os homens e tiraram do seio da terra todas as artes e todos os prazeres. Foi com essa mola que Deus, chamado por Platão o eterno geômetra, e que chamo aqui o eterno maquinista, animou e embelezou a natureza: as paixões são as engrenagens que fazem andar todas as máquinas. Os raciocinadores de hoje em dia que desejam estabelecer a quimera do homem nascendo sem paixões e só as tendo por haver desobedecido a Deus, poderiam ter dito que o homem é a bela estátua que Deus formou e o diabo animou. O amor-próprio e todos os seus ramos são tão necessários ao homem como o sangue que corre em suas veias, e os que lhe querem arrancar as paixões por serem perigosas assemelham-se àquele que desejasse arrancar todo o sangue de um homem porque poderia ficar apoplético. Que diríamos daquele que pretendesse que os ventos são uma invenção do diabo porque submergem alguns navios, sem perceberem que são um benefício de Deus por cujo intermédio o comércio reúne todos os recantos da terra separados pelos mares imensos? É, portanto, muito claro que devemos às nossas paixões e às nossas carências a ordem e as invenções úteis com que enriquecemos o universo e é bem verossímil que Deus só nos tenha dado essas carências, essas paixões, a fim de que nossa engenhosidade as usasse em nosso proveito. Se muitos homens abusaram delas, não nos cabe queixar-nos de um benefício mal usado. Deus dignou-se colocar sobre a terra mil alimentos deliciosos para o homem; a gula dos que transformaram o alimento em veneno mortal para eles não pode servir de reprimenda contra a Providência. CAPÍTULO IX Da Virtude e do Vício Para que uma sociedade subsista, é preciso que haja leis, como é preciso haver regras para cada jogo. A maioria dessas leis parecem arbitrárias, dependem dos interesses, das paixões, das opiniões dos que as inventaram e da natureza do clima onde os homens se reuniram em sociedade. Num país quente, onde o vinho torna o homem furioso, julgou-se adequado considerar um crime bebê-lo. Em outros climas mais frios é uma honra embebedar-se. Aqui, um homem deve contentar-se com uma mulher, acolá, é-lhe permitido ter tantas quantas puder alimentar. Num lugar, os pais e as mães suplicam aos estrangeiros que aceitem dormir com suas filhas, em todos os outros lugares uma moça que se entregar a um homem estará desonrada. Em Esparta encorajava-se o adultério; em Atenas, era punido com a morte. Entre os romanos, os pais tinham o direito de vida e de morte sobre seus filhos. Na Normandia, um pai não pode tirar um óbolo sequer dos bens de um filho, mesmo do mais desobediente. O nome do rei é sagrado em muitas nações e abominado em outras. Mas todos os povos que se conduzem tão diferentemente reúnem-se sob o mesmo ponto: denominam VIRTUOSO o que é conforme às leis estabelecidas e CRIMINOSO o que lhes é contrário. Assim, um homem que na Holanda se opuser ao poder arbitrário será um homem muito virtuoso; e aquele que na França quiser estabelecer um governo republicano será condenado aos piores suplícios. O mesmo judeu que, em Metz, seria enviado às galeras se tivesse duas mulheres terá quatro em Constantinopla e será mais estimado pelos muçulmanos. A maioria das leis contrariam-se tão visivelmente que aquelas que governam um Estado importam muito pouco: o que importa é que, uma vez estabelecidas, sejam executadas. Assim, não há maiores consequências em que as regras para os jogos de dados ou de cartas sejam estas ou aquelas, mas ninguém poderá julgar um só momento se não seguir rigorosamente as regras arbitrárias convencionadas. (Cremos, ao contrário, que não deve haver quase nada arbitrário nas leis. 1º A razão é suficiente para nos fazer conhecer os direitos dos homens, direitos que derivam todos desta máxima simples: entre dois seres sensíveis, iguais por natureza, é contra a ordem que um faça sua felicidade à custa do outro. 2º A razão mostra igualmente que, em geral, é útil para o bem de muitas sociedades que os direitos de cada um sejam respeitados. Assegurando tais direitos de uma maneira inviolável, pode-se conseguir ou proporcionar à espécie humana toda a felicidade de que seja suscetível, ou dividi-la entre os indivíduos com a maior equidade possível. Se examinarmos, em seguida, as diferentes leis veremos que umas tendem a manter esses direitos e que outras atentam contra eles, que umas são conformes ao interesse geral e que outras são contrárias a ele. São, portanto, justas ou injustas por si mesmas. Assim, não é suficiente que a sociedade seja regida por leis, é preciso que estas sejam justas. Não é suficiente que os indivíduos se conformem às leis estabelecidas, é preciso que as próprias leis sejam conformes ao que exige a manutenção do direito de cada um. Dizer que é arbitrário fazer tal lei ou uma contrária, ou nenhuma é unicamente confessar que se ignora se tal lei é conforme ou contrária à justiça. Um médico pode dizer: é indiferente dar a este doente um emético ou uma ipecacuanha; mas isto significa que é preciso dar-lhe um vomitório e ignoro qual dos dois remédios há de convir mais a seu estado. N a legislação, como na medicina, como nos trabalhos das artes físicas, o arbitrário só existe porque ignoramos as consequências de dois meios que de imediato nos parecem diferentes. O arbitrário nasce da nossa ignorância e não da natureza das coisas. Nota do Autor) A virtude e o vício, o bem e o mal moral são, portanto, em todos os países aquilo que é útil ou daninho à sociedade; e, em todos os lugares e em todos os tempos, aquele que mais se sacrificar ao público será considerado o mais virtuoso. Parece, portanto, que as boas ações são apenas aquelas de que retiramos alguma vantagem, e os crimes, as ações que nos são contrárias. A virtude é o hábito de fazer coisas que agradam aos homens, e o vício as que lhes desagradam. Embora o que chamamos virtude em um clima seja precisamente o que chamamos vício em outro, e a maior parte das regras do bem e do mal difiram como as línguas e o vestuário, entretanto, parece-me certo que há leis naturais que, os homens são obrigados a respeitar em todo o universo, malgrado as demais leis que possuam. Na verdade, Deus não disse aos homens: "Eis as leis que de minha boca vos dou, para que vos governeis por elas." Mas, fez no homem o que fez em muitos outros animais: deu às abelhas um instinto poderoso graças ao qual trabalham e alimentam-se juntas, e deu ao homem certos sentimentos dos quais jamais poderá desfazer-se, vínculos eternos e primeiras leis da sociedade, prevista por Ele como forma da convivência humana. A benevolência por nossa espécie, por exemplo, nasceu conosco e age sempre em nós, a menos que seja combatida pelo amor-próprio, que deve sempre vencê-la. Assim, um homem é sempre levado a auxiliar outro quando nada lhe custa fazê-lo. O selvagem mais bárbaro, voltando da carnificina e saboreando o sangue do inimigo que comeu, se enternecerá vendo os sofrimentos de um seu companheiro, dando-lhe todos os socorros que dele dependerem. O adultério e a pederastia serão permitidos a muitos em muitas nações, mas não encontrareis nenhuma onde seja permitido faltar à palavra, pois a sociedade pode subsistir entre adultérios e rapazes que se amam, mas não entre pessoas glorificadas por enganarem umas às outras. O latrocínio era honrado em Esparta porque todos os bens eram comuns; mas desde que tenhais estabelecido o teu e o meu, ser-vos-á, então, impossível não encarar o roubo como contrário à sociedade e, por conseguinte, como injusto. É tão verdadeiro que o bem da sociedade é a única medida do bem e do mal moral que somos forçados a modificar, conforme a necessidade, todas as ideias do justo e do injusto que formáramos. Temos horror do pai que dorme com sua filha, e consideramos infame, com o nome de incestuoso, o irmão que abusa da irmã. Mas numa colônia nascente, onde somente sobrasse um pai com o filho e duas filhas, o cuidado tomado por esta família para não deixar perecer a espécie seria encarado por nós como uma ótima ação. Um irmão que mata seu irmão é um monstro, mas um irmão cujo único meio para salvar sua pátria fosse sacrificar seu irmão seria um homem divino. Todos amamos a verdade e dela fazemos uma virtude, porque é de nosso interesse não sermos enganados. Atribuímos mais infâmia à mentira do que a todas as outras más ações, porque é a mais fácil de esconder e a que menos custa cometer. Porém, em quantas ocasiões a mentira não se toma uma ação heroica! Quando se trata, por exemplo, de salvar um amigo, aquele que dissesse a verdade seria coberto de opróbrio; e não se faça diferença entre um homem que caluniasse um inocente e um irmão que, podendo conservar a vida de seu irmão por uma mentira, preferisse abandoná-lo, dizendo a verdade. A memória do Sr. de Thou, cujo pescoço foi cortado por não ter revelado a conspiração de Cinq-Mars, é uma bênção para os franceses. Se não tivesse mentido, seria abominado por eles. Mas, dir-me-ão, não será, portanto, com relação a nós mesmos que haverá crime e virtude, bem e mal moral, de sorte que não haverá bem em si, independente do homem? Perguntarei aos que me propõem tal questão se há quente ou frio, doce ou amargo, bom ou mau odor, a não ser com relação a nós. Um homem que pretendesse que o calor existe sozinho não seria um raciocinadar muito ridículo? Por que, então, aquele que pretende que o bem moral existe independente de nós raciocinaria melhor? Nosso bem e nosso mal físico só têm existência com relação a nós; por que nosso bem moral e nosso mal moral estariam em outro caso? As intenções do Criador, que desejou os homens vivendo em sociedade não foram suficientemente cumpridas? Se houvesse alguma lei, caída do céu, que tivesse ensinado aos seres humanos bem claramente a vontade de Deus, então o bem moral seria apenas a conformidade a essa lei. Se Deus tivesse dito aos homens: "Quero que haja muitos reinos sobre a terra e nenhuma república; quero que os caçulas tenham todos os bens dos pais e que se puna com a morte qualquer um que coma perus ou porcos", então, essas leis se tornariam certamente a regra imutável do bem e do mal. Mas como Deus não se dignou, que eu saiba, imiscuir-se assim em nossa conduta, é preciso que nos atenhamos às dádivas que nos deu: a razão, o amor-próprio, a benevolência para com a nossa espécie, as carências, as paixões, todos os meios pelos quais estabelecemos a sociedade. Muita gente estará prestes a dizer-me: "Caso meu bem-estar esteja em desorganizar vossa sociedade, em matar, roubar, caluniar, acaso não deveria eu ser detido? Acaso poderia abandonar-me sem escrúpulos a todas as minhas paixões?" Nada tenho a dizer a essa gente senão que provavelmente será enforcada, assim como mandarei matar os lobos que quiserem roubar minhas ovelhas. As leis foram feitas precisamente para tal gente, como as telhas foram inventadas contra o granizo e a chuva. No tocante aos príncipes, que têm a força nas mãos e que abusam dela para desolar o mundo; que enviam uma parte dos homens à morte e reduzem a outra à miséria, o defeito está nos homens que sofrem esses estragos abomináveis, frequentem ente chegando mesmo a honrá-los com o nome de virtude. Só devem culpar a si mesmos pelas más leis que fizeram, ou pela pouca coragem para exigir a execução das boas. Todos os príncipes que tanto mal fizeram aos homens são os primeiros a gritar que Deus deu as regras do bem e do mal. Não há um desses flagelos da terra que não faça atos solenes de religião, mas não vejo que se ganhe muito tendo tais regras. É uma infelicidade ligada à condição humana que, malgrado todo nosso desejo de autoconservação, nos destruamos mutuamente com furor e com loucura. Quase todos os animais comem-se uns aos outros, e na espécie humana os machos se exterminam pela guerra. Parece que Deus previu essa calamidade, fazendo nascer entre nós mais machos do que fêmeas. Com efeito, os povos que parecem ter chegado mais perto dos interesses da humanidade e que têm registros exatos dos nascimentos e das mortes, aperceberam-se de que, um pelo outro, nascem todos os anos um doze avos de machos mais do que de fêmeas. Será muito razoável notar como todos esses assassinatos e banditismos são funestos à sociedade e sem nenhum interesse para a Divindade. Deus colocou os homens e os animais sobre a terra, deixando-lhes a tarefa de conduzirem-se o melhor possível. Infeliz a mosca que cair na teia da aranha; infeliz o touro que for atacado por um leão, e infelizes os carneiros que forem encontrados pelos lobos! Porém, se um carneiro dissesse a um lobo: "Faltas ao bem moral, Deus te punirá", o lobo lhe responderia: "Faço meu bem físico, e parece que Deus não se preocupa muito de que eu te coma ou não". O melhor que o carneiro poderia fazer seria não se afastar do pastor e do cão, capazes de defendê-lo. Prouvera aos céus, que um Ser Supremo nos tivesse dado leis e proposto penas e recompensas! Que nos tivesse dito: "Isto é vício em si, isto é virtude em si". Mas estamos tão longe de possuir as regras do bem e do mal que, de todos aqueles que ousaram dar leis aos homens da parte de Deus, não houve um que tenha dado a décima milésima parte das regras de que precisamos na conduta da vida. Se alguém inferir disso tudo que só resta abandonar-se sem reservas a todos os furores dos seus desejos desenfreados, e que, não havendo nem vício nem virtude em si, possa fazer tudo impunemente, primeiro esse homem precisará verificar se possui um exército de cem mil soldados bem afeiçoados ao seu serviço; ainda assim arriscar-se-á muito declarando-se inimigo do gênero humano. Mas se tal homem for somente um simples particular, por pouca razão que tenha, verá que escolheu um partido mau e que será punido infalivelmente, seja por meio dos castigos, tão sabiamente inventados pelos homens contra os inimigos da sociedade, seja tão somente pelo temor do castigo, suplício bastante cruel em si mesmo. Verá que a vida daqueles que desafiam as leis geralmente é a mais miserável. Moralmente é impossível que um homem perverso não seja reconhecido, e tão logo seja somente suspeitado, perceberá que é objeto de desprezo e de horror. Ora, Deus dotou-nos sabiamente de um orgulho incapaz de suportar que os outros homens nos odeiem e nos desprezem. Ser desprezado por aqueles com quem se vive é coisa que ninguém pôde e jamais poderá suportar. Talvez seja esse o maior freio que a natureza tenha posto nas injustiças dos homens. Foi pelo temor mútuo que Deus julgou de bom alvitre vinculá-los, Assim, todo homem razoável concluirá que obviamente é do seu interesse ser honesto. O conhecimento que terá do coração humano irá persuadi-lo de que, embora não exista nem virtude em si nem vício em si, nada o impedirá de ser bom cidadão e de cumprir todos os deveres da vida. Também observamos que os filósofos (batizados com o nome de incrédulos e libertinos), em todos os tempos, foram as pessoas mais honestas do mundo. Deixando de fazer aqui uma lista de todos os grandes homens da Antiguidade, sabemos que La Mothe Le Vayer, preceptor do irmão de Luís XIII, Bayle, Locke, Spinoza, Milorde Shaftesbury, Collins e outros foram homens de virtude rígida. Não foi apenas o temor do desprezo dos homens que os fez virtuosos, mas o gosto pela própria virtude. Um espírito reto é um homem honesto pela mesma razão que aquele que não tendo o gosto depravado prefere o excelente vinho de Nuits ao de Brie, e as perdizes de Mans à carne de cavalo. Uma educação sadia perpetua esses sentimentos em todos os homens, vindo com ela o sentimento universal que chamamos honra, do qual mesmo os mais corrompidos não podem desfazer-se, e que é o eixo da sociedade. Aqueles que necessitassem do socorro da religião para serem pessoas honestas seriam lastimáveis, e monstros da sociedade, se não encontrassem em si próprios os sentimentos necessários a essa sociedade, obrigados a buscar alhures o que deve ser encontrado em nossa natureza.