Voltaire – O Ingênuo (História verdadeira, extraída dos manuscritos do padre Quesnel) ÍNDICE I - Como a prior de N. Sª da Montanha e a senhorita sua irmã encontraram um Huron. II - O huron, chamado o Ingênuo, é reconhecido por seus parente. III - O huron, chamado o Ingênuo, é convertido. IV - O Ingênuo é batizado. V - O Ingênuo apaixonado. VI - O Ingênuo chega à casa de sua amada e fica furioso. VII - O Ingênuo repele os ingleses. VIII - O Ingênuo vai à Corte. Pelo caminho, janta com huguenotes. IX - Chegada do Ingênuo a Versalhes. Sua recepção na Corte. X - O Ingênuo encarcerado na Bastilha com um jansenista. XI - Como o Ingênuo desenvolve seu espírito. XII - O que o Ingênuo pensa das peças de teatro. XIII - A bela Saint-Yves vai a Versalhes. XIV - Progressos do espírito do Ingênuo. XV - A bela Saint-Yves resiste a propostas delicadas. XVI - Ela consulta um jesuíta. XVII - Ela sucumbe por virtude. XVIII - Ela liberta seu amado e um jansenista. XIX - O Ingênuo, a bela Saint-Yves e seus parentes se reúnem. XX - A bela Saint-Yves morre e o que acontece depois. CAPÍTULO I Como o prior de N. Sª da Montanha e a senhorita sua irmã encontraram um Huron. Um dia São Dunstan, irlandês de nacionalidade e santo de profissão, partiu da Irlanda a bordo de uma pequena montanha que navegou para a costa da França, indo aportar na baía de Saint-Malo. Depois disso, deu a bênção à sua montanha que lhe fez profundas reverências e retomou para a Irlanda pelo mesmo caminho por onde tinha vindo. Dunstan fundou nessa área um pequeno priorado, dando-lhe o nome de priorado da Montanha, denominação que ainda hoje conserva, como todos sabem. Na tarde de 15 de julho do ano de 1689, o padre de Kerkabon, prior de Nossa Senhora da Montanha, passeava pela praia do mar com a senhorita de Kerkabon, sua irmã, para refrescar-se com a brisa. O prior, já um tanto avançado em idade, era um ótimo eclesiástico, muito amado por seus vizinhos, depois de tê-lo sido outrora por suas vizinhas. O que lhe valera sobretudo grande consideração é que era o único benfeitor da região que não precisava ser carregado para a cama depois de jantar com seus confrades. Sabia com muita correção sua teologia e, quando estava cansado de ler Santo Agostinho, divertia-se com Rabelais. Por isso, todos falavam bem dele. A senhorita de Kerkabon que jamais se havia casado, embora vontade não lhe faltasse, conservava ainda o frescor aos quarenta e cinco anos de idade. De caráter bom e sensível, amava o prazer e era devota. O prior dizia à irmã, olhando o mar: - Ah! Foi aqui que embarcou nosso pobre irmão, com nossa querida cunhada, a senhora de Kerkabon, sua esposa, na fragata Hirondelle, em 1669, para ir prestar serviço no Canadá. Se não tivesse sido morto, poderíamos ter a esperança de tornar a vê-lo, - Acredita, dizia a senhorita de Kerkabon, que nossa cunhada tenha sido devorada pelos iroqueses, como nos disseram? É certo que, se não a tivessem comido, teria voltado à sua terra. Vou chorá-la toda a vida. Era uma mulher encantadora e nosso irmão, que era bastante inteligente, teria feito certamente uma bela fortuna. Enquanto assim se consolavam mutuamente com essas lembranças, viram entrar na baía de Rance uma pequena embarcação que chegava com a maré. Eram ingleses que vinham vender algumas mercadorias de seu país. Saltaram em terra, sem olhar para o prior e para a senhorita sua irmã que ficou muito chocada com a pouca atenção que tinham por ela. Não ocorreu o mesmo com um jovem de excelente compleição que, saltando por cima da cabeça de seus companheiros, acabou ficando frente a frente com a senhorita. Cumprimentou-a com a cabeça, uma vez que não tinha o costume de fazer reverência. Seu aspeto e sua indumentária atraíram os olhares do irmão e da irmã. Tinha a cabeça descoberta, as pernas nuas, os pés calçados com pequenas sandálias, a cabeça ornada de longos cabelos em tranças e uma pequena capa que lhe modelava um talhe delicado e esbelto, além de um ar marcial mas também ameno. Trazia numa das mãos uma pequena garrafa de água de Barbados e, na outra, uma espécie de bolsa na qual havia uma caneca e apetitosos biscoitos. Falava francês de maneira bastante inteligível. Ofereceu água de Barbados à senhorita de Kerkabon e a seu irmão. Bebeu com eles. Levou-os a beber novamente e tudo isso com um ar tão simples e natural que o irmão e a irmã ficaram encantados. Eles lhe ofereceram seus préstimos, perguntando-lhe quem era e para onde ia. O jovem respondeu que não sabia ao certo, que era um curioso, que quisera ver como eram as costas da França e que, assim como chegara, logo se voltaria. Julgando por seu sotaque que não era inglês, o prior tomou a liberdade de lhe perguntar qual era seu país de origem. - Eu sou huron - respondeu o jovem. A senhorita de Kerkabon, espantada e encantada por ver um huron que a cumulara de atenções, convidou o jovem para jantar. Ele não se fez de rogado e os três se dirigiram juntos para o priorado de Nossa Senhora da Montanha. A baixinha e rechonchuda senhorita fitava-o com seus pequenos olhos e, de vez em quando, dizia ao prior: - Este belo jovem tem uma pele de lírio e rosas! Que pele linda para um huron! - Tem razão, minha irmã - dizia o prior. Ela fazia cem perguntas uma após a outra e o viajante sempre respondia sempre com toda a correção. Logo se espalhou a notícia de que havia um huron no priorado. A alta sociedade do cantão apressou- se em comparecer ao jantar. O padre de Saint-Yves veio acompanhado da senhorita sua irmã, jovem baixa bretã, muito bonita e muito bem educada. O magistrado, o coletor de impostos e suas respectivas mulheres não faltaram ao jantar. O estrangeiro foi colocado entre a senhorita de Kerkabon e a senhorita de Saint-Yves. Todos o olhavam com admiração, todos falavam e o interrogavam ao mesmo tempo. O huron não se alterava. Parecia ter tomado por divisa a de milorde Bolingbroke: nihil admirari. Mas por fim, cansado de tanto barulho, disse-lhes com brandura mas também com firmeza: - Senhores, em minha terra costuma-se falar um depois do outro. Como querem que lhes responda, se me impedem de ouvi-los? A razão sempre faz com que os homens se compenetrem por alguns momentos. Estabeleceu-se um grande silêncio. O magistrado, que sempre se apoderava dos estranhos em qualquer casa que estivesse e que era o maior questionador da província, perguntou, abrindo uma boca de palmo e meio: - Como se chama o senhor? - Sempre me chamaram o Ingênuo, respondeu o huron, nome que me foi confirmado na Inglaterra, porque sempre digo singelamente o que penso e faço tudo o que quero. - Mas como, tendo nascido huron, foi parar na Inglaterra? - É que me levaram para lá. Num combate fui feito prisioneiro pelos ingleses, depois de me ter defendido bastante bem. E os ingleses, que apreciam a bravura, porque são bravos e tão honestos como os nós, propuseram-me devolver-me a meus pais ou levar-me para a Inglaterra. Aceitei a última oferta, porque, por natureza, gosto imensamente de ver terras novas. - Mas, disse o magistrado com seu tom imponente, como pôde abandonar desse modo seu pai e sua mãe? - É que nunca conheci nem pai nem mãe, respondeu o estrangeiro. Todos se comoveram e todos repeliam: "Nem pai nem mãe”! - Nós lhe serviremos de pai e mãe, disse a dona da casa a seu irmão o prior. Como é interessante esse huron! O Ingênuo agradeceu-lhe com uma nobre e altiva cordialidade e deu-lhe a entender que não tinha necessidade de nada. - Vejo, senhor Ingênuo, disse o grave magistrado, que seu francês é excelente para um huron. - Um francês, disse ele, que havíamos feito prisioneiro na terra dos hurões, na época de minha infância, e a quem dediquei grande amizade, ensinou-me sua língua. Aprendo muito depressa o que quero aprender. Ao chegar em Plymouth, encontrei um desses refugiados franceses a quem chamam huguenotes, não sei porquê. Com ele fiz alguns progressos no conhecimento de sua língua e, logo que pude expressar-me de modo inteligível, vim visitar este país, porque gosto muito dos franceses quando não fazem perguntas em demasia. O padre de Saint-Yves, apesar dessa pequena advertência, perguntou-lhe qual das três línguas preferia: o huron, o inglês ou o francês. - O huron, sem dúvida alguma, respondeu o Ingênuo. - Será possível? Exclamou a senhorita de Kerkabon. Sempre julguei que o francês fosse a mais bela de todas as línguas, depois do baixo-bretão. Houve então quem lhe perguntasse como se dizia fumo em huron, e ele respondia taya; como se dizia comer, e ele respondia essenten. A senhorita de Kerkabon fez absoluta questão de saber como se dizia fazer amor e ele respondeu trovander, e sustentou, não sem razão, que essas palavras nada ficavam devendo às correspondentes em francês e inglês. Trovander pareceu uma palavra muito bonita a todos os convivas. O prior, que tinha na biblioteca uma gramática de huron, que lhe dera de presente o reverendo padre Sagard- Théodat, recoleto e famoso missionário, retirou- se da mesa um instante, para ir consultá-la. Voltou arfando de enternecimento e alegria. Reconheceu o Ingênuo como um verdadeiro huron. Discutiram um pouco sobre a multiplicidade das línguas e chegaram à conclusão que, se não fora a aventura da torre de Babel, a terra inteira estaria falando francês. O magistrado interrogador, que até então desconfiara um pouco do personagem, começou a tratá-lo com profundo respeito. Falou-lhe com mais civilidade que antes, coisa que o Ingênuo não percebeu. A senhorita de Sairit-Yves estava muito curiosa em saber como se amava na terra dos hurões. - Praticando belas ações, respondeu ele, para agradar às pessoas que se parecem com a senhorita. Todos os convivas aplaudiram com surpresa. A senhorita de Saint-Yves enrubesceu e se sentiu muito bem. A senhorita de Kerkabon corou igualmente, mas não se sentiu tão bem, um pouco melindrada porque o galanteio não fora dirigido a ela, mas tinha tão bom coração que isso em nada diminuiu seu afeto pelo huron. Perguntou-lhe amavelmente quantas namoradas tivera em sua terra. - Só tive uma, respondeu o Ingênuo. Era Abacaba, a boa amiga de minha querida ama. Os juncos não são mais retos, o arminho mais branco, as ovelhas menos mansas, as águias menos altivas, nem os cervos mais rápidos do que Abacaba. Ela perseguia um dia uma lebre pelas redondezas, a cerca de cinquenta léguas de nossa casa. Um algonquino mal educado, que habitava cem léguas além, veio tomar-lhe sua lebre. Mal soube disso, acorri, derrubei o algonquino com um golpe de maça, amarrei-o e fui colocá-lo aos pés de Abacaba. Os pais de Abacaba queriam comê-lo, mas jamais gostei dessa espécie de festins. Restituí-lhe a liberdade e fiz dele um amigo. Abacaba ficou tão impressionada com minha ação, que me preferiu a todos os seus pretendentes. E ainda me amaria se não tivesse sido devorada por um urso. Castiguei o urso, usei durante muito tempo sua pele, mas isso não me consolou. A senhorita de Saint-Yves sentia um secreto prazer ao ouvir que o Ingênuo só tivera uma namorada e que Abacaba não existia mais, mas não discernia a causa de seu prazer. Todos fixavam os olhos em Ingênuo. Elogiavam-no muito por não ter permitido que seus camaradas comessem um algonquino. O implacável magistrado, incapaz de reprimir seu furor inquisitivo, levou a curiosidade ao ponto de perguntar qual era a religião do huron; se havia escolhido a religião anglicana ou a galicana ou a huguenote. - Eu sou de minha religião, disse, como o senhor é da sua. - Ah! Exclamou a Kerkabon. Bem se vê que esses miseráveis ingleses sequer pensaram em batizá-lo. - Meu Deus! Dizia a senhorita de Saint-Yves. Como é possível que os hurões não sejam católicos? Será que os reverendos padres jesuítas não os converteram a todos? O Ingênuo a certificou de que na sua terra não se convertia ninguém, que jamais um verdadeiro huron mudara de opinião e que em sua língua nem sequer havia um termo que significasse inconstância. Essas últimas palavras agradaram em muito à senhorita de Saint-Yves. - Nós o batizaremos, nós o batizaremos, dizia a Kerkabon ao prior. Você terá essa honra, meu caro irmão. Faço questão de ser sua madrinha e o senhor de Saint-Yves o levará à pia batismal. Será uma cerimônia brilhante, da qual se falará em toda a Baixa Bretanha e isso nos deixará sumamente honrados. Todos os presentes concordaram com a dona da casa e todos eles gritavam: "Nós o batizaremos!" O Ingênuo respondeu que na Inglaterra deixavam a gente viver como bem quisesse. Deu a entender que a proposta não lhe agradava de forma alguma e que a lei dos hurões valia pelo menos tanto quanto a lei dos baixo-bretões. Finalmente, disse que iria embora no dia seguinte. Acabaram de esvaziar a sua garrafa de água de Barbados e todos foram deitar-se. Depois que o Ingênuo se recolheu ao quarto, a senhorita de Kerkabon e sua amiga a senhorita de Saint-Yves não puderam resistir e espiaram pelo buraco da grande fechadura, para ver como o huron dormia. Viram que havia estendido a roupa de cama no chão e que repousava na mais bela atitude do mundo. CAPÍTULO II O huron, chamado o Ingênuo, é reconhecido por seus parentes. O Ingênuo, segundo seu costume, acordou com o sol, ao cantar do galo, que na Inglaterra e na terra dos hurões é chamado a trombeta do dia. Não era como a gente da alta sociedade que enlanguesce numa cama ociosa, até que o sol tenha feito a metade de seu curso, que não pode nem dormir nem levantar, que perde tantas horas preciosas nesse estado intermediário entre a vida e a morte e que ainda se queixa de que a vida é demasiado curta. Já percorrera duas ou três léguas, tinha abatido com a funda umas trinta peças de caça, quando, ao regressar, encontrou o prior de Nossa Senhora da Montanha e sua discreta irmã passeando de touca de dormir pelo pequeno jardim, Apresentou-lhes sua caça e, tirando da camisa uma espécie de talismã que trazia sempre ao pescoço, pediu-lhes que o aceitassem como agradecimento por sua boa recepção. - É O que tenho de mais precioso, disse ele. Asseguraram-me que eu seria sempre feliz enquanto o usasse e o dou de presente, para que sejam sempre felizes. O prior e sua irmã sorriram comovidos diante da simplicidade de Ingênuo. Esse presente consistia em dois pequenos retratos muito mal feitos, unidos por um cordão todo engordurado. A senhorita de Kerkabon perguntou-lhe se havia pintores na terra dos hurões. - Não, disse o Ingênuo, esta raridade foi presente de minha ama. Seu marido a adquirira por conquista, despojando alguns franceses do Canadá que haviam guerreado contra nós. É tudo o que sei. O prior examinava atentamente aqueles retratos. Mudou de cor, emocionou-se, suas mãos começaram a tremer. - Por Nossa Senhora da Montanha! Exclamou. Creio que é o retrato de meu irmão capitão e sua mulher. A senhorita, depois de os ter observado com igual emoção, também achou o mesmo. Ambos estavam tomados de espanto e de uma alegria mesclada de sofrimento; os dois se enterneciam, ambos choravam, seu coração palpitava, soltavam gritos, arrancavam os retratos um ao outro, cada um os tomava e devolvia vinte vezes por segundo, devoravam com os olhos os retratos e o hurão. Perguntavam-lhe um após outro, e os dois ao mesmo tempo, em que lugar, em que época, de que modo, tinham aquelas miniaturas ido parar nas mãos de sua ama. Comparavam as datas. Lembravam-se de ter tido notícias do capitão até sua chegada à terra dos hurões e, desde então, nada mais conseguiram saber a seu respeito. O Ingênuo lhes dissera que não havia conhecido nem pai nem mãe. O prior, que era bom observador, notou que o Ingênuo tinha um pouco de barba e sabia que os hurões não a têm. Seu queixo tem barba. O Ingênuo deve ser, portanto, filho de um europeu. Meu irmão e a minha cunhada não apareceram mais depois da expedição contra os hurões em 1669. Meu sobrinho devia ser então criança de peito. A ama huronesa lhe salvou a vida e serviu-lhe de mãe. Enfim, depois de cem perguntas e cem respostas, o prior e sua irmã concluíram que o huron era seu próprio sobrinho. Eles o abraçavam chorando e o Ingênuo ria, sem poder imaginar como é que um huron poderia ser sobrinho de um prior da Baixa Bretanha. Acorreram todos. O senhor de Saint-Yves, que era um grande fisionomista, comparou os dois retratos com o rosto do Ingênuo. Notou de forma muito hábil que ele tinha os olhos da mãe, a testa e o nariz do falecido capitão de Kerkabon e as faces que puxavam por ambos. A senhorita de Saint-Yves, que jamais vira o pai nem a mãe, assegurou que o Ingênuo se assemelhava perfeitamente a eles. Todos admiravam a Providência e a concatenação dos acontecimentos deste mundo. Estavam enfim tão persuadidos, tão convictos da origem de Ingênuo, que ele próprio consentiu em ser sobrinho do senhor prior, dizendo que gostaria tanto de tê-lo por tio como a qualquer outro. Foram agradecer a Deus na igreja de Nossa Senhora da Montanha, enquanto o huron, com um ar indiferente, se divertia bebendo em casa. Os ingleses que o tinham trazido e que estavam prestes a zarpar, vieram dizer-lhe que era hora de partir. - Pelo que vejo - lhes disse o huron, - vocês não encontraram seus tios e suas tias. Eu vou ficar aqui. Voltem para Plymouth, dou-lhes de presente todos os meus trapos, não tenho necessidade de mais nada no mundo, porquanto sou sobrinho de um prior. Os ingleses içaram as velas, pouco se importando que o huron tivesse ou não parentes na Baixa Bretanha. Depois que o tio, a tia e todas as visitas cantaram o Te Deum, depois que o magistrado encheu o Ingênuo de novas perguntas, depois que esgotaram tudo o que o espanto, a alegria e a ternura podem levar a dizer, o prior da Montanha e o padre de Saint-Yves resolveram batizá-lo o mais depressa possível. Mas um huron adulto, de vinte e dois anos, não estava na mesma situação de uma criança, a quem se regenera sem que nada saiba. Era preciso instruí-lo e isso parecia difícil, pois o padre de Saint-Yves supunha que um homem que não nascera na França não podia ser possuidor do senso comum. O prior observou à comunidade que, se de fato o Ingênuo, seu sobrinho, não tivera a ventura de nascer na Baixa Bretanha, nem por isso deixava de ter espírito, o que se podia ser avaliado por todas as suas respostas e que certamente a natureza muito o favorecera, tanto do lado paterno como do materno. Perguntaram-lhe, em primeiro lugar, se ele já tinha lido algum livro. Respondeu que havia lido Rabelais, traduzido em inglês, e alguns trechos de Shakespeare que sabia de cor. Disse que tinha encontrado esses livros com o capitão do navio que o trouxera da América para Plymouth e que muito tinha gostado muito deles. O magistrado não deixou de interrogá-lo sobre esses livros. - Confesso, disse o Ingênuo, que pensei adivinhar alguma coisa, mas não entendi o resto. A essas palavras, o padre de Saint-Yves refletiu que era assim que ele próprio sempre havia lido e que a maioria dos homens não lia realmente de outra forma. - Sem dúvida, já leu a Bíblia? Perguntou ao Ingênuo. - De modo algum, senhor padre. Não estava entre os livros de meu capitão e nunca ouvi falar dela. - Aí está como são esses malditos ingleses, gritava a senhorita de Kerkabon. Fazem mais questão de uma peça de Shakespeare, de um plum-pudding e de uma garrafa de rum do que do Pentateuco. Por isso é que nunca converteram ninguém na América. Certamente são amaldiçoados por Deus e dentro em pouco nós lhes tomaremos a Jamaica e a Virgínia. De qualquer maneira, mandaram buscar o alfaiate mais hábil alfaiate de Saint-Malo para vestir o Ingênuo dos pés à cabeça. Os representantes da comunidade se separaram. O magistrado foi fazer suas perguntas em outro lugar. A senhorita de Saint-Yves, ao partir, voltou- se várias vezes, a fim de olhar para o Ingênuo e lhe fez reverências mais profundas do que jamais as fizera a ninguém em toda a sua vida. O magistrado, antes de partir, apresentou à senhorita de Saint-Yves um simplório de filho que acabara de sair do colégio, mas ela mal lhe dirigiu o olhar, tão ocupada estava com a delicadeza do huron. CAPÍTULO III O huron, chamado o Ingênuo, é convertido. O senhor prior, vendo que envelhecia e que Deus lhe enviava um sobrinho para seu consolo, considerou que poderia transmitir-lhe o priorado, se conseguisse batiza-lo e convencê-lo a seguir a carreira do sacerdócio. O Ingênuo tinha excelente memória. A firmeza do tipo da Baixa Bretanha, fortaleci da pelo clima do Canadá, tomara-lhe a cabeça tão vigorosa que, quando batiam nela, mal o sentia. E tudo o que lhe incutiam na cabeça, nunca se apagava, jamais havia esquecido coisa alguma. E tanto mais viva e nítida era sua concepção, porquanto sua infância não fora sobrecarregada com as inutilidades e tolices que acabrunham a nossa, de maneira que as coisas penetravam em seu cérebro sem nuvens. O prior resolveu enfim induzi-lo a ler o Novo Testamento. O Ingênuo devorou-o com grande prazer, mas, não sabendo em que época nem em que local haviam acontecido as aventuras ali narradas, não duvidou que o teatro dos acontecimentos fosse a Baixa Bretanha e jurou que cortaria o nariz e as orelhas de Caifás e de Pilatos, se algum dia encontrasse esses marotos. O tio, encantado com essa boa disposição, o esclareceu em pouco tempo. Elogiou seu zelo, mas fez-lhe ver que esse zelo era inútil, visto que essas pessoas tinham morri do havia cerca de mil seiscentos e noventa anos. Logo, o Ingênuo sabia quase todo o livro de cor. Apresentava algumas vezes objeções que deixavam o prior em grande dificuldade. Via-se obrigado muitas vezes a consultar o padre de Saint-Yves que, não sabendo o que responder, mandou chamar um jesuíta da Baixa Bretanha para completar a conversão do huron. Finalmente, a graça operou. O Ingênuo prometeu tornar-se cristão. Não teve dúvidas de que deveria começar por ser circuncidado, pois, dizia ele, não vejo no livro que me deram para ler um único personagem que não o tenha sido. É evidente, portanto, que devo fazer o sacrifício de meu prepúcio e quanto mais cedo, melhor. Não vacilou. Mandou chamar o cirurgião da aldeia e pediu-lhe que fizesse a operação, esperando alegrar infinitamente a senhorita de Kerkabon e a toda a comunidade, depois que a coisa tivesse sido feita. O cirurgião, que nunca fizera essa operação, advertiu sobre os riscos a família, que explodiu em altos gritos. A boa Kerkabon temeu que seu sobrinho, que parecia resoluto e expedito, fizesse em si mesmo a operação com desastrada imperícia e disso resultassem tristes sequelas, pelas quais as damas sempre se interessam por pura bondade de alma. O prior retificou as ideias do huron. Fez-lhe ver que a circuncisão não estava mais em moda, que o batismo era muito mais suave e salutar, que a lei da graça não era como a lei do rigor. O Ingênuo, que tinha bastante bom senso e retidão, discutiu, mas reconheceu seu erro, coisa muito rara na Europa entre as pessoas que discutem. Prometeu enfim deixar-se batizar quando bem quisessem. Antes era preciso confessar-se e aí residia a maior dificuldade. O Ingênuo sempre trazia no bolso o livro que o tio lhe dera. Não encontrava nele nenhum apóstolo que se tivesse confessado alguma vez e isso o tornava bastante rebelde. O prior lhe fechou a boca, ao mostrar-lhe, na epístola de São Tiago Menor, estas palavras que causam tanta dificuldade para os hereges: "Confessa i vossos pecados uns aos outros." O huron se calou de vez e se confessou a um frade recoleto. Terminada a confissão, tirou o frade do confessionário e, segurando vigorosamente o homem, ocupou o lugar dele, obrigou-o a pôr-se de joelhos, dizendo- lhe: "Vamos, meu amigo. Está escrito: Confessai vossos pecados uns aos outros. Eu te contei os meus pecados; não sairás daqui sem que me tenhas contado os teus." Falando desse modo, apoiava seu grande joelho contra o peito da parte adversária. O frade começa a soltar gritos que retumbam pela igreja. Com o barulho, acorrem e veem o catecúmeno esmurrando o monge em nome de São Tiago Menor. Entretanto, a alegria de batizar um baixo-bretão huron e inglês era tão grande, que passaram por cima dessas singularidades. Houve até mesmo muitos teólogos que pensaram que a confissão não era necessária, uma vez que o batismo substituía tudo. Combinaram a data com o bispo de Saint-Malo que, lisonjeado, como era de esperar, por ter a oportunidade de batizar um huron, chegou em pomposa carruagem, seguido de seu clero. A senhorita de Saint-Yves, bendizendo a Deus, pôs seu mais belo vestido e mandou chamar uma cabeleireira de Saint-Malo, para brilhar na cerimônia. O magistrado perguntador acorreu com toda a região. A igreja estava magnificamente ornamentada, mas, quando chegou a hora de buscar o huron para levá-lo à pia batismal, não foi encontrado. O tio e a tia o procuraram por toda parte. Acharam que estivesse caçando, segundo seu costume. Todos os convidados à festa percorreram os bosques e as aldeias vizinhas. Nenhuma notícia do huron. Começava-se a temer que tivesse voltado para a Inglaterra. Lembravam-se de tê-lo ouvido dizer que gostava muito desse país. O prior e a sua irmã estavam persuadidos de que ali não batizariam ninguém e temiam pela alma de seu sobrinho. O bispo estava confuso e prestes a regressar, o prior e o padre de Saint-Yves se desesperavam. O magistrado interrogava a todos os passantes com sua gravidade usual. A senhorita de Kerkabon chorava. A senhorita de Saint-Yves não chorava, mas dava profundos suspiros que pareciam testemunhar o seu gosto pelos sacramentos. Elas passeavam tristemente ao longo dos salgueiros e dos caniços que margeiam o riacho de Rance, quando perceberam no meio da corrente um grande vulto bastante branco com as mãos cruzadas no peito. Soltaram um grito e desviaram o olhar. Mas a curiosidade levou logo a melhor sobre qualquer outra consideração. Deslizaram suavemente entre os juncos e, quando tiveram certeza de que não eram vistas, resolveram verificar do que se tratava. CAPÍTULO IV O Ingênuo é batizado. O prior e o padre, tendo acorrido, perguntaram ao Ingênuo o que estava fazendo ali. - Ora essa! Espero o batismo, senhores. Já faz uma hora que estou dentro da água e não é nada justo me deixarem aqui congelando. - Meu querido sobrinho, disse-lhe carinhosamente o prior, não é assim que se fazem batizados na Baixa Bretanha. Vista sua roupa e venha conosco. Ouvindo essas palavras, a senhorita de Saint-Yves disse baixinho à sua companheira: - Senhorita, será que ele já vai se vestir? O huron, no entanto, retrucou ao prior: - Agora o senhor não vai me convencer como da outra vez. Desde então tenho estudado muito e estou bem certo de que não se batiza de outra maneira. O eunuco da rainha Candace foi batizado num rio. Desafio-o a me mostrar no livro que me deu se alguma vez se batizou de qualquer outra forma. Ou não serei batizado de modo algum, ou serei batizado no rio. Não adiantou alegar que os costumes haviam mudado. O Ingênuo era cabeçudo, pois era bretão e huron. Voltava sempre ao eunuco da rainha Candace. E embora a senhorita sua tia e a senhorita de Saint-Yves, que o tinham observado dentre os salgueiros, estivessem no direito de dizer-lhe que não lhe competia citar semelhante homem, não tomaram nenhuma atitude, tamanha era a sua discrição. O próprio bispo veio falar-lhe, o que já era muito, mas não adiantou. O huron discutiu com o bispo. - Mostre-me, lhe disse, no livro que meu tio me deu, um único homem que não tenha sido batizado no rio, e eu farei tudo o que o senhor quiser. A tia, desesperada, havia notado a primeira vez que o sobrinho fizera uma reverência, havia feito uma mais profunda à senhorita de Saint-Yves do que a qualquer outra pessoa da comunidade, e que nem ao senhor bispo saudara com esse respeito mesclado de cordialidade que testemunhara a essa formosa moça. A senhorita de Kerkabon tomou a decisão de dirigir-se a esta naquele grande embaraço. Pediu-lhe que usasse de sua influência para induzir o huron a batizar-se da mesma maneira que os bretões, não acreditando que seu sobrinho pudesse realmente tornar-se cristão, se persistisse em querer ser batizado na água corrente. A senhorita de Saint-Yves enrubesceu com o secreto prazer que sentia em ser encarregada de tão importante missão. Aproximou-se modestamente do Ingênuo e, apertando-lhe a mão com um nobre gesto, disse-lhe: - Será que não fará nada por mim? Ao pronunciar essas palavras, baixava os olhos e os erguia com enternecedora graça. - Ah! Farei tudo o que quiser, senhorita, tudo o que me mandar: batismo de água, batismo de fogo, batismo de sangue, nada há que eu possa recusar-lhe. A senhorita de Saint-Yves teve a glória de conseguir com duas palavras o que não haviam conseguido as solicitações do prior, nem as sucessivas interrogações do magistrado, nem mesmo as razões do senhor bispo. Ela sentiu seu triunfo, mas não avaliava ainda toda a sua extensão. O batismo foi administrado e recebido com toda a decência, toda a magnificência, toda a distinção possível. O tio e a tia cederam ao padre de Saint-Yves e à sua irmã a honra de servir de padrinhos do Ingênuo. A senhorita de Saint-Yves estava radiante de alegria por se ver madrinha. Não sabia ao que a submetia esse grande título. Aceitou a honra sem tomar conhecimento de suas fatais consequências. Como nunca houve cerimônia que não fosse seguida de um grande banquete, sentaram-se à mesa ao sair do batismo. Os espirituosos da Baixa Bretanha diziam que não se deveria batizar o vinho. O prior dizia que o vinho, segundo Salomão, alegra o coração do homem. O bispo acrescentava que o patriarca Judá amarrava seu jumento na parreira e mergulhava seu manto no sangue da uva e que era muito triste não poder fazer o mesmo na Baixa Bretanha, à qual Deus havia negado os vinhedos. Cada um procurava dizer uma boa frase sobre o batismo do Ingênuo e dirigir galanteios à madrinha. O magistrado, sempre interrogando, perguntava ao huron se ele seria fiel às suas promessas. - Como quer que eu falte às minhas promessas, respondeu o huron, uma vez que as fiz entre as mãos da senhorita de Saint-Yves? O huron se entusiasmou. Bebeu muito à saúde de sua madrinha. - Se eu tivesse sido batizado por suas mãos, disse ele, a água fria que recebi sobre a nuca me teria queimado. O magistrado achou a frase muito poética, ignorando o quanto a alegoria é familiar no Canadá. Mas a madrinha ficou extremamente contente. O Ingênuo recebera o nome de Hércules, na pia batismal. O bispo de Saint-Malo não parava de perguntar quem era esse padroeiro, do qual nunca ouvira falar. O jesuíta, que era muito erudito, respondeu-lhe que se tratava de um santo que havia feito doze milagres. Havia ainda um décimo terceiro que valia os outros doze, mas não ficava bem a um jesuíta falar dele. Era aquele de ter transformado cinquenta meninas em mulheres, numa única noite. Um engraçado que se encontrava no local relembrou esse milagre em voz bem alta. Todas as damas baixaram os olhos e julgaram, pelo aspecto do Ingênuo, que ele era digno do santo de quem trazia o nome. CAPÍTULO V O Ingênuo apaixonado. Deve-se dizer que, desde esse batizado e esse banquete, a senhorita de Saint-Yves começou a desejar ardentemente que o bispo a convidasse ainda a participar de algum belo sacramento com Hércules, o Ingênuo. Entretanto, como era bem educada e muito discreta, não ousava sequer assumir para consigo mesma seus temos sentimentos, mas, se lhe escapava um olhar, uma palavra, um gesto, um pensamento, envolvia tudo isso num véu de pudor infinitamente amável. Era tema, viva e sábia. Logo que o bispo partiu, o Ingênuo e a senhorita de Saint-Yves se encontraram sem deixar transparecer que se procuravam. Falaram-se, sem imaginar o que diriam. O Ingênuo lhe disse primeiro que a amava de todo o coração e que a bela Abacaba, por quem estivera louco em sua terra, não lhe chegava aos pés. A senhorita respondeu-lhe, com sua modéstia usual, que era preciso o quanto antes falar disso ao prior seu tio e à senhorita sua tia e que, de sua parte, iria dizer duas palavras a seu caro irmão, o padre de Saint-Yves, e ainda que esperava um consentimento de todos. O Ingênuo retrucou que não tinha necessidade do consentimento de ninguém, que lhe parecia extremamente ridículo ir perguntar a outros o que se deveria fazer, que, quando dois estão de acordo, não há necessidade de um terceiro para arranjar as coisas. - Não consulto ninguém, disse, quando tenho vontade de comer, de caçar, de dormir. Sei muito bem que, no amor, é bom ter o consentimento da pessoa que se ama, mas, como não é por meu tio nem por minha tia que estou apaixonado, não é a eles que devo me dirigir neste caso; e, se a senhorita acreditar em mim, poderá muito bem dispensar o padre de Saint-Yves. Pode-se imaginar como a bela bretã teve de empregar toda a delicadeza de seu espírito para induzir o huron a adequar-se aos termos da conveniência. Chegou até mesmo a se zangar, mas logo se acalmou. Enfim, não se sabe como teria terminado essa conversa se, ao anoitecer, o padre não houvesse levado a irmã para seu mosteiro. O Ingênuo deixou que os tios fossem se deitar, pois estavam um pouco cansados com a cerimônia e o longo banquete. Passou parte da noite fazendo versos para sua amada, em huron, pois é sabido que não há país no mundo em que o amor não transforme os namorados em poetas. No dia seguinte, após o almoço, assim lhe falou o tio, na presença da senhorita de Kerkabon, que se achava toda emocionada: - Louvado seja Deus, meu querido sobrinho, por ter a honra de ser cristão e bretão! Mas isso não basta. Já estou ficando velho, meu irmão deixou somente um cantinho de terra que pouco vale. Tenho um bom priorado. Se quiser ao menos tomar-se subdiácono, como o espero, lhe passarei meu priorado e viverá tranquilamente, depois de ter sido o consolo de minha velhice. - Meu tio, respondeu o Ingênuo, que bom proveito lhe faça! Viva quanto puder. Não sei o que é ser subdiácono, nem o que quer passar o priorado, mas tudo ficará a meu contento, desde que tenha a senhorita de Saint-Yves à minha disposição. - Ai, meu Deus! Meu sobrinho, que está dizendo? Então você ama loucamente essa linda senhorita? - Sim, meu tio. - Ai, meu sobrinho! É impossível você casar com ela. - É totalmente possível, meu tio, pois ela, ao partir, não só me apertou a mão, como prometeu que me pediria em casamento; e sem dúvida nenhuma a desposarei. - Isso é impossível, lhe digo. Ela é sua madrinha e é um pecado terrível para uma madrinha apertar assim a mão do afilhado. Não é permitido casar com a própria madrinha, as leis divinas e humanas se opõem a isso. - Que droga, meu tio! Está brincando comigo. Por que haveria de ser proibido casar com a madrinha, quando ela é jovem e bonita? Não encontrei no livro que me deu que não ficasse bem desposar as moças que ajudam as pessoas a serem batizadas. Todos os dias descubro que aqui fazem uma infinidade de coisas que não estão em seu livro e que nada fazem de tudo o que ele diz. Confesso-lhe que isso me espanta e aborrece. Se me privarem da bela Saint-Yves, com o pretexto de meu batismo, fique sabendo que a tiro da casa dela e me desbatizo. O prior ficou confuso, sua irmã chorou. _ Meu caro irmão, disse ela, nosso sobrinho não deve perder a alma. Nosso Santo Padre poderá conceder-lhe dispensa e então poderá ser cristãmente feliz com aquela que ama. O Ingênuo abraçou a tia. - Quem é esse homem encantador, perguntou, que favorece tão bondosamente os moços e as moças em seus amores? Quero falar com ele imediatamente. Explicaram-lhe o que era o Papa e o Ingênuo ficou ainda mais espantado do que antes. - Não há uma só palavra de tudo isso em seu livro, meu caro tio. Tenho viajado, conheço o mar, estamos na costa do oceano e eu tenho que deixar a senhorita de Saint-Yves para ir pedir permissão para amá-la a um homem que mora perto do Mediterrâneo, a quatrocentas léguas daqui, e cuja língua não entendo! Isso é de um ridículo incompreensível. Vou falar imediatamente com o padre de Saint-Yves que mora a apenas uma légua daqui e garanto-lhe que desposarei hoje mesmo minha namorada. Enquanto ainda falava, entrou o magistrado que, segundo seu costume, lhe perguntou para onde ia. - Vou casar-me, disse o Ingênuo, já correndo. E dali a um quarto de hora já se encontrava em casa de sua bela e querida bretã, que ainda dormia. - Ah, meu irmão! Dizia a senhorita de Kerkabon ao prior. Jamais conseguirá fazer um subdiácono de nosso sobrinho. O magistrado ficou muito descontente com essa viagem, pois pretendia que seu filho se casasse com a Saint-Yves. E esse filho era ainda mais tolo e insuportável que o pai. CAPÍTULO VI O Ingênuo chega à casa de sua namorada e fica furioso. Logo que chegara, o Ingênuo havia perguntado a uma velha criada onde era o quarto de sua amada e, sem perda de tempo, empurrou com força a porta mal fechada, correndo para a cama. Acordando em sobressalto, a senhorita exclamou: - Como?! É você? Pare! Que está fazendo? - Estou casando contigo, respondeu. E com efeito a desposaria, se ela não se houvesse debatido com toda a honestidade de uma pessoa que tem educação. O Ingênuo não queria saber de brincadeira. Achava todas essas maneiras extremamente impertinentes - Não era assim que se comportava a senhorita Abacaba, minha primeira namorada. Você não tem caráter, prometeu-me casamento e não quer casar-se. Estás infringindo as leis mais elementares da honra. Vou ensinar-lhe a manter a palavra e vou reconduzi-la no caminho da virtude. O Ingênuo possuía uma virtude varonil e intrépida, digna de seu padroeiro Hércules, cujo nome recebera no batismo. Ia exercê-la em toda a sua extensão quando, aos gritos lancinantes da senhorita mais discretamente virtuosa, acorreu o sensato padre de Saint-Yves, com sua governanta, um velho criado devoto e mais um padre da paróquia. - Oh, Meu Deus! Meu caro vizinho, lhe disse o padre, que está fazendo aqui? - É meu dever, replicou o jovem. Estou cumprindo minhas promessas, que são sagradas. A senhorita de Saint-Yves se recompôs, enrubescendo. Levaram o Ingênuo para outro aposento. O padre censurou a monstruosidade de seu procedimento. O Ingênuo defendeu-se, alegando os privilégios da lei natural, que conhecia perfeitamente. O padre tentou provar-lhe que a lei positiva devia ter precedência e que, sem as convenções estabeleci das entre os homens, a lei da natureza não passaria quase nunca de uma violação natural. - São necessários, disse, notários, padres, testemunhas, contratos, dispensas. O Ingênuo lhe respondeu com a reflexão que sempre fizeram os selvagens: - Vocês devem ser muito desonestos, visto que é necessário tomar tantas precauções. O padre teve dificuldade para resol ver esse imprevisto. - Confesso, disse, que há muitos inconstantes e velhacos entre nós, como haveria entre os hurões, se estivessem reunidos numa grande cidade. Mas há também homens sábios, honestos, esclarecidos e foram esses homens que fizeram as leis. Quanto mais honrado é um homem, mais deve submeter-se a elas. Damos o exemplo aos dominados pelos vícios que respeitam um freio que a virtude se impôs a si mesma. Essa resposta impressionou o Ingênuo. Já foi dito que ele tinha um espírito justo. Acalmaram-no com palavras elogiosas, encheram- no de esperanças. Essas são as ciladas em que sempre caem os homens dos dois hemisférios. Foi-lhe apresentada até mesmo a senhorita de Saint-Yves, depois que tivera tempo de fazer sua toalete. Tudo se passou no maior decoro, mas, apesar de toda essa decência, os olhos flamejantes do Ingênuo Hércules faziam sempre baixar os de sua amada e tremer os presentes. Tiveram um trabalho imenso para fazê-lo voltar a seus parentes. Mais uma vez foi necessário recorrer à influência da bela Saint-Yves. Quanto mais ela sentia seu poder sobre ele, mais o amava. Obrigou-o a partir, ficando ela muito aflita. Finalmente, depois que ele partiu, o padre que, além de irmão mais velho da senhorita de Saint-Yves, era também seu tutor, tomou a decisão de subtrair sua pupila às solicitudes daquele terrível namorado. Foi consultar o magistrado que, tendo sempre em vista o casamento de seu filho com a irmã do padre, aconselhou-o a mandar a pobre moça para um convento. Foi um golpe terrível. Uma indiferente que fosse encerrada num convento haveria de pôr-se aos gritos, mas uma apaixonada, e uma apaixonada tão sábia quanto terna, era mesmo coisa de mergulhá-la no desespero. O Ingênuo, de volta à casa do prior, contou tudo com sua usual simplicidade. Recebeu as mesmas recriminações que produziram algum efeito em seu espírito e nenhum em seus sentidos. Mas, no dia seguinte, quando pretendeu voltar à casa de sua bela namorada, para discutir com ela sobre a lei natural e a lei de convenção, o magistrado informou-o, com uma insultante alegria, que a senhorita de Saint-Yves estava num convento. - Pois bem, disse, irei discutir com ela nesse convento. - Isso é impossível, disse o magistrado. Explicou-lhe longamente o que era um convento, esclareceu que essa palavra vinha do latim conventus, que significa assembleia. O huron não conseguia atinar porque não podia ser admitido numa assembleia. Logo que ficou sabendo que essa assembleia era uma espécie de prisão onde mantinham as moças encerradas, coisa horrível, desconhecida entre os hurões e os ingleses, ficou tão furioso como seu padroeiro Hércules, quando Eurites, rei da Ecália, não menos cruel que o padre de Saint-Yves, lhe recusou a linda Iola, sua filha, não menos linda que a irmã do padre. Queria partir para incendiar o convento, raptar a namorada, ou morrer queimado junto com ela. A senhorita de Kerkabon, apavorada, renunciava mais do que nunca a todas as esperanças de ver seu sobrinho subdiácono e dizia, chorando, que ele tinha o diabo no corpo desde que fora batizado. CAPÍTULO VII O Ingênuo repele os ingleses. O Ingênuo, mergulhado em negra e profunda melancolia, foi passear à beira do mar, com sua espingarda de dois canos a tiracolo, com seu facão à cinta, atirando de vez em quando em alguns pássaros e, com frequência, tentado a atirar em si mesmo; mas ainda amava a vida, por causa da senhorita de Saint-Yves. Ora amaldiçoava o tio, a tia e toda a Baixa Bretanha, e mesmo seu batismo, ora os abençoava, pois lhe haviam feito conhecer aquela a quem amava. Tomava a resolução de ir incendiar o convento e subitamente desistia, de medo de queimar a sua amada. As ondas da Mancha não são mais agitadas pelos ventos de leste e oeste do que o era seu coração por tantos movimentos contrários. Caminhava a passos largos, sem saber para onde, quando ouviu um rufar de tambores. Viu ao longe uma multidão, cuja metade corria para a margem e a outra fugia. Mil gritos se elevavam de todos os lados. A curiosidade e a coragem levam-no a precipitar-se imediatamente para o local de onde partiam esses clamores. Voa para lá em quatro saltos. O comandante da milícia, que havia jantado com ele na casa do prior, logo o reconheceu. Corre para ele de braços abertos: - Ah! É o Ingênuo. Ele combaterá por nós. E as milícias que morriam de medo, tranquilizaram-se e gritaram também: "É o Ingênuo! É o Ingênuo”! - Senhores, perguntou, de que se trata? Por que estão todos desnorteados? Puseram suas noivas no convento? Então cem vozes confusas gritam: - Não está vendo os ingleses que abordam? - Está bem! Retrucou o Ingênuo. São gente boa. Nunca pensaram em transformar-me em subdiácono, nem me roubaram a namorada. O comandante deu-lhe a entender que os ingleses vinham pilhar o mosteiro da Montanha, beber o vinho de seu tio e talvez raptar a senhorita de Saint-Yves; que o pequeno navio, em que ele havia aportado na Bretanha, viera apenas para fazer um reconhecimento da costa; que os ingleses praticavam atos de hostilidade sem haver declarado guerra ao rei da França e que a província estava exposta. - Ah! Se for assim, eles violam a lei natural. Deixem isso comigo. Morei muito tempo com os ingleses, conheço sua a língua e vou falar com eles. Não creio que possam ter tão más intenções. Durante essa conversação, a esquadra inglesa se aproximava. Nosso huron se lança num pequeno barco, corre em direção a ela, chega, sobe no navio almirante e pergunta se é verdade que eles vêm devastar a região sem ter declarado guerra honestamente. O almirante e toda a tropa a bordo desatam a rir, obrigam-no a beber punch e o mandam de volta. O Ingênuo, mordido, não pensava em mais nada, a não ser em bater-se contra seus antigos amigos por seus compatriotas e pelo prior. Os cavalheiros das redondezas acorriam de todos os lados. O Ingênuo junta-se a eles. Dispunham de alguns canhões. Ele os carrega, aponta e os dispara um após outro. Os ingleses desembarcam. Corre até eles, mata três e fere o almirante que havia zombado dele. Sua valentia anima a coragem de toda a milícia. Os ingleses reembarcam e toda a costa reboava com os gritos de vitória: "Viva o rei! Viva o Ingênuo!" Todos o abraçam, todos se apressam em estancar o sangue de alguns ferimentos leves que havia sofrido. - Ah! Dizia, se a senhorita de Saint-Yves estivesse aqui, me aplicaria uma compressa. O magistrado, que se escondera em sua adega durante o combate, veio cumprimentá-lo como os outros. Mas ficou muito surpreso ao ouvir Hércules o Ingênuo dizer a uma dúzia de jovens de boa vontade que o cercavam: - Meus amigos, não basta ter livrado o mosteiro da Montanha. É preciso libertar uma jovem. Toda essa vibrante mocidade pegou fogo, a essas simples palavras. Já o seguiam em multidão e corriam para o convento. Se o magistrado não tivesse avisado imediatamente o comandante, se não tivessem corrido ao encalce do alegre bando, estava tudo feito. Trouxeram o Ingênuo para a casa dos tios que o inundaram de lágrimas de ternura. - Bem vejo que nunca será nem subdiácono nem prior, lhe disse o tio. Será um oficial ainda mais bravo que meu irmão capitão e provavelmente tão necessitado como ele. A senhorita de Kerkabon sempre chorando, o abraçava e lhe dizia: - Vai ser morto como meu irmão. Seria muito melhor que se tornasse subdiácono. No meio do combate, O Ingênuo havia recolhido uma grande bolsa cheia de guinéus que provavelmente o almirante deixara cair. Não tinha dúvida de que, com aquela bolsa, poderia comprar toda a Bretanha e sobretudo fazer da senhorita de Saint-Yves uma grande dama. Todos o exortaram a viajar para Versalhes, a fim de receber o prêmio de seus serviços. O comandante e os principais oficiais o cumularam de certificados. O tio e a tia aprovaram a viagem do sobrinho. Devia ser, sem dificuldade, apresentado ao rei. Só isso lhe daria um prodigioso prestígio na província. As duas excelentes criaturas acrescentaram à bolsa inglesa um considerável presente tirado de suas economias. O Ingênuo dizia consigo mesmo: "Quando vir o rei vou pedir-lhe a senhorita de Saint-Yves em casamento e certamente não haverá de negá-lo." Partiu, pois, sob as aclamações de todo o cantão, sufocado de abraços, banhado pelas lágrimas da tia, abençoado pelo tio e recomendando-se à bela Saint-Yves. CAPÍTULO VIII O Ingênuo vai à Corte. Pelo caminho, janta com huguenotes. O Ingênuo tomou a estrada de Saumur, seguindo de coche, porque não havia então outra comodidade. Chegando a Saumur, surpreendeu-se ao encontrar a cidade quase deserta e ao ver várias famílias que se mudavam. Disseram-lhe que Saumur, seis anos antes, tinha mais de quinze mil almas e que agora não havia seis mil. Não deixou de falar disso à mesa na hospedaria. Vários protestantes estavam à mesa. Uns se queixavam amargamente, outros fremiam de cólera, outros choravam, dizendo: Nos dulcia linquimus arva, nos patriamjugimus. O Ingênuo, que não sabia latim, pediu explicação dessas palavras que significam: "Abandonamos nossas suaves campanhas, fugimos de nossa pátria”. - E por que fogem de sua pátria, senhores? - É porque querem que reconheçamos o Papa. - E por que não o reconhecem? Não têm, então, madrinhas com quem desejariam casar? Pois me disseram que é ele que concede permissão para isso. - Ah! Senhor, esse Papa diz que é senhor do domínio dos reis. - Mas qual é a profissão dos senhores? - Somos, na maioria, tecelões e fabricantes. - Se o Papa alega que é senhor dos tecidos e das fábricas, fazem muito bem em não reconhecê-lo, mas, quanto aos reis, isso é assunto deles. Por que os senhores se metem nisso? Um homenzinho de preto tomou então a palavra e expôs com muita sabedoria as queixas da comunidade. Falou com tanta energia da revogação do edito de Nantes, deplorou de maneira tão patética a sorte de cinquenta mil famílias fugitivas e de cinquenta mil outras convertidas pelos dragões, que o Ingênuo por sua vez desatou em pranto. - Como se explica então, dizia ele, que tão grande rei, cuja glória se estende até os hurões, se prive desse modo de tantos corações que poderiam amá-lo e de tantos braços que poderiam servi-lo? - É que o enganaram, como aos outros grandes reis. Convenceram-no de que, logo que dissesse uma palavra, todos os homens pensariam como ele e que nos faria mudar de religião como seu músico Lulli muda num instante os cenários de suas óperas. Não só perde de imediato quinhentos a seiscentos mil súditos muito úteis, como os torna seus inimigos. E o rei Guilherme, que é atualmente senhor da Inglaterra, constituiu vários regimentos desses mesmos franceses que poderiam combater por seu monarca. Tanto mais espantoso é esse desastre, que o Papa reinante, a quem Luís XIV sacrifica parte de seu povo, é seu inimigo declarado. Ambos vêm mantendo, há nove anos, uma querela violenta. Chegou a tais extremos, que a França pensou ver enfim quebrar-se o jugo que há tantos séculos a submete a esse estrangeiro e que, principalmente, não lhe enviaria mais dinheiro que é o primeiro móvel dos negócios deste mundo. Parece, pois, evidente que enganaram a esse grande rei quanto a seus interesses e à extensão de seu poder, atentando também contra a magnanimidade de seu coração. O Ingênuo, cada vez mais impressionado, perguntou quais eram os franceses que assim enganavam um monarca tão caro aos hurões. - São os jesuítas, responderam-lhe. Sobretudo o padre de La Chaise, confessor de Sua Majestade. Esperamos que Deus os haverá de punir um dia e que sejam caçados como agora nos caçam. Haverá desgraça igual à nossa? Mons. de Louvois nos envia jesuítas e dragões de todos os lados. - Pois bem, senhores, replicou o Ingênuo, que não podia mais conter-se, estou indo para Versalhes receber a recompensa devida a meus serviços. Vou falar com esse Mons. de Louvois. Disseram-me que é ele que dirige a guerra, de seu gabinete. Vou falar com o rei e dar-lhe a conhecer a verdade. É impossível que não se rendam a essa verdade quando a sentirem. Em breve estarei de volta para desposar a senhorita de Saint-Yves e convido-os a todos para o casamento. Aquela boa gente o tomou então por um senhor importante que viajava incógnito num coche. Alguns acharam que fosse o bobo da Corte. Havia à mesa um jesuíta disfarçado que servia de espião ao reverendo padre de La Chaise. Deixava-o a par de tudo e o padre de La Chaise remetia as informações a Mons. de Louvois. O espião escreveu. O Ingênuo e a carta chegaram ao mesmo tempo em Versalhes. CAPÍTULO IX Chegada do Ingênuo a Versalhes. Sua recepção na Corte. O Ingênuo desembarca no pátio das cozinhas reais. Pergunta aos portadores de liteira a que horas pode ver o rei. Os portadores riem na cara dele, como o havia feito o almirante inglês. Ele revidou da mesma forma, bateu neles. Quiseram dar-lhe o troco e a cena ia ser sangrenta, se não passasse um guarda do corpo, cavalheiro bretão, que dispersou o grupo. - O senhor, lhe disse o viajante, parece um homem correto. Sou sobrinho do prior de Nossa Senhora da Montanha, matei ingleses, venho falar com o rei. O guarda, surpreso por encontrar um bravo de sua província que não parecia estar a par dos usos da Corte, disse-lhe que não era assim que se falava com o rei e que era preciso ser apresentado a monsenhor de Louvois. - Pois bem! Leve-me então a esse monsenhor de Louvois que, sem dúvida, me conduzirá a sua Majestade. - É ainda mais difícil, replicou o guarda, falar com monsenhor de Louvois do que com Sua Majestade. Mas vou conduzi-lo ao senhor Alexandre, primeiro oficial da guerra; é como se falasse com o ministro. Dirigem-se, pois, a esse Alexandre, primeiro oficial, e não podem ser recebidos. Estava em tratativas com uma dama da corte e dera ordens para que não deixassem entrar ninguém. - Bem, disse o guarda, nada está perdido. Vamos ao primeiro oficial do senhor Alexandre. É a mesma coisa se falasse com o próprio senhor Alexandre. O huron, perplexo, o segue. Permanecem meia hora numa pequena sala de espera. - Que quer dizer isso tudo? Disse o Ingênuo. Será que todos são invisíveis neste país? É mais fácil lutar na Baixa Bretanha contra ingleses do que encontrar em Versalhes as pessoas com quem se precisa falar. Distraiu-se contando seus amores ao compatriota. Mas a hora tocou, chamando o guarda do corpo a seu posto. Prometeram encontrar-se no dia seguinte e o Ingênuo ficou ainda outra meia hora na sala de espera, pensando na senhorita de Saint-Yves e na dificuldade de falar com os reis e com os oficiais. Finalmente, o oficial apareceu. - Senhor, disse-lhe o Ingênuo, se eu tivesse esperado, para rechaçar os ingleses, tanto tempo quanto me fez esperar por minha audiência, agora estariam assolando à vontade toda a Baixa Bretanha. Essas palavras impressionaram o funcionário que finalmente disse ao bretão: - Que quer o senhor? - Recompensa, respondeu o outro. Aqui estão minhas credenciais. E mostrou-lhe todos os certificados. O funcionário os leu e disse que provavelmente lhe concederiam permissão para comprar um posto de lugar-tenente. - Como? Eu? Dar dinheiro por haver rechaçado os ingleses? Pagar o direito de expor minha vida pelo senhor, enquanto o amigo dá tranquilamente suas audiências? Acho que está caçoando. Quero uma companhia de cavalaria gratuitamente. Quero que o rei faça a senhorita de Saint-Yves sair do convento e a conceda em casamento a mim. Quero falar ao rei em favor de cinquenta mil famílias que pretendo devolver-lhe. Numa palavra, quero ser útil: que me empreguem e me promovam. - E como se chama o senhor, que fala assim tão alto? - Oh! Oh! Recomeçou o Ingênuo. Então não leu meus certificados? É assim pois que tratam a gente? Chamo-me Hércules de Kerkabon. Sou batizado, paro no Quadrante Azul e me queixarei do senhor a Sua Majestade. O funcionário concluiu, como o pessoal de Saumur, que o Ingênuo não batia muito bem da cabeça e não lhe deu maior atenção. Naquele mesmo dia, o reverendo padre La Chaise, confessor de Luís XIV, recebera a carta de seu espião que acusava Kerkabon de simpatizar com os huguenotes e de condenar a conduta dos jesuítas. Monsenhor de Louvois, por seu lado, recebera uma carta do magistrado interrogador, na qual o Ingênuo era descrito como um malandro que queria incendiar conventos e raptar moças. O Ingênuo, depois de passear pelos jardins de Versalhes, onde se aborreceu, depois de haver jantado como um huron e como bretão, deitara-se na doce esperança de ver o rei no dia seguinte, de obter a mão da senhorita de Saint-Yves, de conseguir ao menos uma companhia de cavalaria e de fazer cessar a perseguição contra os huguenotes. Embalava-se nesses sedutores pensamentos, quando a polícia entrou em seu quarto. Apoderaram-se primeiramente de sua espingarda de dois canos e de seu grande sabre. Fizeram um inventário de seu dinheiro de bolso e levaram-no para o castelo que o rei Carlos V, filho de João lI, mandou construir nas proximidades da Rua Santo Antônio, na porta Tournelles. Qual era, pelo caminho, o espanto do Ingênuo, deixo a cada um imaginar. Julgou, a princípio, que se tratava de um sonho. Ficou aturdido, mas, de repente, acometido de um furor que lhe duplicava as forças, pega pela garganta dois de seus condutores que estavam com ele na carroça, joga-os pela portinhola, atira-se sobre eles, arrastando o terceiro que o queria deter. Tomba com o esforço, amarram-no e o repõe no veículo. - Aí está, pensava, o que se ganha por repelir os ingleses da Baixa Bretanha! Que diria você, bela Saint - Yves, se me visse em tal estado? Chegam enfim à prisão que lhe era destinada. Levam-no em silêncio para a cela onde devia ser encerrado, como um morto que carregam para o cemitério. A cela já estava ocupada por um velho solitário de Port-Royal, chamado Gordon, que ali definhava havia dois anos. - Pronto! Disse-lhe o chefe dos esbirros. Aqui está um companheiro. Imediatamente baixaram os enormes ferrolhos da porta maciça, revestida de largas barras. Os dois cativos ficaram separados do universo inteiro. CAPÍTULO X O Ingênuo encarcerado na Bastilha com um jansenista. Gordon era um velho bem conservado e sereno que sabia duas grandes coisas: suportar a adversidade e consolar os infelizes. Avançou com semblante aberto e compassivo para seu companheiro, abraçando-o, disse-lhe: - Quem quer que seja, você que vem compartilhar de meu túmulo, fique certo de que sempre esquecerei a mim mesmo, para suavizar seus tormentos no abismo infernal em que estamos mergulhados. Adoremos a Providência que para aqui nos trouxe, soframos em paz e esperemos. Essas palavras causaram na alma do Ingênuo o efeito das gotas da Inglaterra que chamam um moribundo à vida e o fazem entreabrir os olhos espantados. Depois dos primeiros cumprimentos, Gordon, sem apressá-lo para lhe contasse a causa da sua desdita, inspirou-lhe, pela brandura de suas palavras e esse interesse que têm um pelo outro dois infelizes, o desejo de abrir o coração e aliviar-se do fardo que o oprimia. Mas o Ingênuo não podia adivinhar o motivo de sua desgraça. Aquilo lhe parecia um efeito sem causa e Gordon estava tão espantado quanto ele. - Não há dúvida, disse o jansenista ao huron, que Deus deve ter grandes desígnios a seu respeito, pois o conduziu do lago Ontário à Inglaterra e à França, levou-o a ser batizado na Baixa Bretanha, encerrando-o depois aqui para sua salvação. - Palavra de honra, retrucou o Ingênuo, creio que foi apenas o diabo que se meteu em meu destino. Meus compatriotas da América jamais me haveriam tratado com a barbárie que provo aqui. Eles não têm a mínima ideia disso. São chamados selvagens. São realmente criaturas bastante grosseiras, mas os homens daqui são uns pilantras refinados. Sinto-me, na verdade, muito surpreso de ter vindo do outro mundo para ser trancafiado neste, em companhia de um padre, mas penso no prodigioso número de homens que partem de um hemisfério para serem mortos no outro ou que naufragam no meio do caminho e são devorados pelos peixes. Não vejo os graciosos desígnios de Deus sobre toda essa gente. Alcançaram-lhes comida por um guichê. A conversa versou sobre a Providência, as cartas com sinete e sobre a arte de não sucumbir às desgraças a que todo homem está exposto neste mundo. - Há dois anos que estou aqui, disse o velho, sem outra consolação a não ser eu próprio e alguns livros. Não tive um só momento de mau humor. - Ah! Senhor Gordon, não ama então sua madrinha? Exclamou o Ingênuo. Se conhecesse, como eu, a senhorita de Saint-Yves, estaria no maior desespero. A essas palavras, não pôde conter as lágrimas e sentiu-se então um pouco menos deprimido. - Mas por que será que as lágrimas aliviam? Disse. Parece-me que deveriam produzir efeito contrário. - Meu filho, tudo em nós é de natureza física, disse o bom velho. Toda secreção faz bem ao corpo e tudo o que o alivia, alivia a alma. Somos as máquinas da Providência. O Ingênuo que, como o dissemos várias vezes, tinha grande profundeza de espírito, fez profundas reflexões sobre essa ideia, cuja semente parecia estar dentro dele mesmo. Perguntou depois ao companheiro por que sua máquina estava presa há dois anos. - Por causa da graça eficaz, respondeu Gordon. Passo por jansenista. Conheci Arnauld e Nicole, os jesuítas nos perseguiram. Cremos que o Papa não é mais que um bispo como qualquer outro e foi por isso que o padre de La Chaise obteve do rei, seu penitente, uma ordem para me arrebatar, sem nenhuma formalidade legal, o bem mais precioso dos homens, a liberdade. - Pois ai está, como é estranho; disse o Ingênuo. Todos os infelizes que encontrei só o são por causa do Papa. Com relação à sua graça eficaz, confesso que nada entendo, mas considero como uma grande graça que Deus me tenha feito encontrar, em minha desgraça, um homem como o senhor, que injeta em meu coração consolação de que eu me julgava incapaz. A cada dia as conversas se tornavam mais interessantes e instrutivas. As almas dos dois cativos se ligavam uma à outra. O velho sabia muito e o jovem desejava aprender muito. Depois de um mês, estava estudando geometria; devorava-a. Gordon lhe deu para ler a Física de Rohault, que estava ainda em moda, e teve o bom senso de só encontrar incertezas nessa obra. Leu depois o primeiro volume da Busca da Verdade. Essa nova luz o iluminou. - Como! Dizia, até esse ponto nos enganam nossa imaginação e nossos sentidos! Então os objetos não formam nossas ideias, nem nós próprios as podemos arquitetar. Depois de ler o segundo volume,já não ficou tão satisfeito e concluiu que é mais fácil destruir do que edificar. Seu coirmão, surpreso que um jovem ignorante fizesse uma reflexão, exclusiva de almas experientes, teve em grande consideração seu espírito e se afeiçoou mais ainda a ele. - Seu Malebranche, lhe disse um dia o Ingênuo, me parece ter escrito a metade de seu livro com a razão e a outra com sua imaginação e seus preconceitos. Alguns dias depois, perguntou-lhe Gordon: - Que pensa então da alma, da maneira como recebemos nossas ideias, da nossa vontade, da graça, do livre-arbítrio? - Nada, respondeu o Ingênuo. Se penso alguma coisa, é que estamos sob o poder do Ser eterno como os astros e os elementos; que ele faz tudo em nós que somos pequenas engrenagens na imensa máquina, da qual ele é a alma; que ele age por meio de leis gerais e não com objetivos particulares. Só isso me parece inteligível. Todo o resto é para mim um abismo de trevas. - Mas, meu filho, isso seria fazer de Deus o autor do pecado. - Mas, padre, sua graça eficaz que o senhor defende também faria de Deus o autor do pecado, pois é certo que todos aqueles, a quem essa graça fosse recusada, pecariam. E quem nos entrega ao mal não é o autor do mal? Essa simplicidade embaraçava muito o velho. Ele próprio sentia que envidava esforços inúteis para sair desse atoleiro. Acumulava tantas palavras que pareciam ter sentido e não o tinham (do tipo da premonição física) que o Ingênuo chegava a sentir piedade. Essa questão residia evidentemente na origem do bem e do mal. Era necessário então que o pobre Gordon passasse em revista a caixa de Pandora, o ovo de Orosmade perfurado por Arimânio, a inimizade entre Trifon e Osíris e, finalmente, o pecado original. Ambos corriam nessa noite profunda, sem jamais se encontrarem um ao outro. Mas afinal esse romance da alma desviava seu espírito da contemplação de sua própria miséria e, por um estranho encanto, a multidão das calamidades esparsas no universo diminuía a sensação de suas penas. Não ousavam queixar-se quando tudo sofria. Mas no repouso da noite, a imagem da bela Saint-Yves apagava no espírito de seu namorado todas as ideias de metafísica e de moral. Acordava com os olhos banhados de lágrimas. E o velho jansenista esquecia sua graça eficaz, esquecia o padre de Saint-Cyran e Jansênio, para consolar um jovem a quem supunha estar em pecado mortal. Depois de suas leituras, de suas discussões, voltavam a falar de suas aventuras. E depois de terem falado inutilmente delas, passavam a ler juntos ou em separado. O espírito do jovem se fortalecia sempre mais. Tido ido muito longe em matemática, não fossem as distrações que lhe causava a senhorita de Saint-Yves. Leu livros de História, que o entristeceram. O mundo lhe pareceu demasiadamente mau e miserável. Com efeito, a história não é mais que o quadro dos crimes e das desgraças. A multidão dos homens inocentes e pacíficos sempre desaparece nesses vastos teatros. Os principais personagens são apenas ambiciosos perversos. Parece que a história só agrada como a tragédia que aborrece quando não é animada pelas paixões, os crimes e os grandes infortúnios. É preciso armar Clio com um punhal como Melpômenes. Embora a história da França esteja repleta de horrores como todas as outras, pareceu-lhe, no entanto, tão enfadonha no princípio, tão seca no meio, tão pequena enfim, mesmo na época de Henrique IV, sempre tão desprovida de grandes momentos, tão estranha a essas belas descobertas que celebrizaram outras nações, que se via obrigado a lutar contra o tédio para ler todos aqueles detalhes de obscuras calamidades delimitadas num canto do mundo. Gordon pensava como ele. Os dois riam de piedade quando se tratava daqueles soberanos de Fezensac, de Fesansaguet e de Astarac. De fato, esse estudo só aproveitaria aos herdeiros desses, se os tivessem. Os belos séculos da república romana deixaram-no algum tempo indiferente pelo resto da terra. O espetáculo de Roma vitoriosa e legisladora das nações ocupava sua alma inteira. Extasiava-se ao contemplar esse povo que foi governado durante setecentos anos pelo entusiasmo da liberdade e da glória. Assim se passavam os dias, as semanas, os meses. E ele até se julgaria feliz na morada do desespero, se não amasse. Sua bondosa alma enternecia-se à lembrança do prior e da sensível Kerkabon. - Que pensarão eles, repetia seguidamente, sem notícias minhas? Certamente me considerarão um ingrato. Esse pensamento o atormentava. Lamentava aqueles que o amavam, muito mais do que se lamentava a si mesmo. CAPÍTULO XI Como o Ingênuo desenvolve seu espírito. A leitura engrandece a alma e um amigo esclarecido a consola. Nosso cativo gozava dessas duas vantagens que antes sequer havia suspeitado. - Sinto-me tentado,- disse, a crer nas metamorfoses, pois me transformei de bruto em homem. Formou para ele uma biblioteca selecionada com parte de seu dinheiro de que lhe permitiam dispor. O amigo o encorajou a pôr por escrito suas reflexões. Aqui vai o que escreveu sobre a história antiga: "Imagino que as nações foram por muito tempo como eu. Só se instruíram muito tarde e, durante séculos, só se ocuparam do momento presente, muito pouco do passado e jamais do futuro. Percorri quinhentas ou seiscentas léguas do Canadá sem encontrar um único monumento. Por lá, ninguém sabe nada do que fez seu bisavô. Não será esse o estado natural do homem? A espécie que habita este continente parece-me superior à do outro. Há séculos vem enriquecendo sua existência por meio das artes e dos conhecimentos. Será porque eles têm barba no queixo e Deus a recusou aos americanos? Não o creio, pois vejo que os chineses-quase não têm barba e cultivam as artes há mais de cinco mil anos. Com efeito, se possuem mais de quatro mil anos de anais, é forçoso que a nação já estivesse unida e florescente há cinquenta séculos." "O que me impressiona especialmente nessa história antiga da China é que quase tudo nela é verossímil e natural. O que mais me admira é que não há nada nela de maravilhoso." "Por que será que todas as outras nações se atribuíram origens fabulosas? Os antigos cronistas da história da França, que não são muito antigos, fazem provir os franceses de um Francus, filho de Heitor. Os romanos se consideravam descendentes de um frígio, embora não houvesse na língua deles uma única palavra que tivesse a menor relação com a língua da Frígia. Os deuses haviam habitado dez mil anos no Egito e os diabos na Cítia, onde haviam gerado os hunos. Antes de Tucídides, não vejo senão romances semelhantes a Amadis e muito menos divertidos. Há em toda parte aparições, oráculos, prodígios, sortilégios, metamorfoses, sonhos interpretados e que ditam o destino dos maiores impérios e dos menores Estados. Aqui animais que falam, acolá animais que são adorados, deuses transformados em homens e homens transformados em deuses. Ah! se é necessário que haja fábulas, que essas sejam pelo menos o emblema da verdade! Gosto das fábulas dos filósofos, acho graça daquelas das crianças, odeio aquelas dos impostores." Um dia lhe caiu nas mãos a história do imperador Justiniano. Lia-se ali que apedeutas de Constantinopla haviam baixado, em péssimo grego, um edito contra o maior comandante do século, porque esse herói havia pronunciado as seguintes palavras no calor da discussão: "A verdade brilha com sua própria luz e não se iluminam os espíritos com as chamas das fogueiras." Os apedeutas afirmaram que essa proposição era herética, cheirava a heresia, e que o axioma contrário era católico, universal e grego: "Só se iluminam os espíritos com a chama das fogueiras e a verdade não pode brilhar com luz própria." Esses linóstolos condenaram assim várias frases do comandante e baixaram um edito. - Como! Exclamou o Ingênuo. Editos baixados por esse tipo de gente! - Não eram editos, replicou Gordon, eram contra-editos, de que todo o mundo zombava em Constantinopla, a começar pelo imperador. Esse era um príncipe sábio que soubera reduzir os apedeutas linóstolos a não fazerem senão o bem. Sabia que esses senhores e vários outros pastóforos haviam esgotado a paciência dos imperadores, seus predecessores, à força de contra-editos, em matéria mais grave. - Fez muito bem, disse o Ingênuo. Deve-se apoiar os pastóforos e contê-los, Pôs por escrito muitas outras reflexões que espantaram o velho Gordon. - Pois é! disse consigo mesmo, consumi cinquenta anos para me instruir e receio não poder atingir o bom senso natural deste menino quase selvagem! Tremo ao pensar de ter laboriosamente fortalecido preconceitos, ao passo que ele só escuta a simples natureza. O homem tinha alguns desses pequenos livros de crítica, dessas brochuras periódicas, nas quais homens incapazes de produzir o quer que seja denigrem as produções dos outros, onde os Visé insultam os Racine, e os Faydit os Fénelon. O Ingênuo folheou alguns deles. - Comparo-os, dizia, a certas moscas que vão depositar seus ovos no traseiro dos mais belos cavalos. Isso não os impede de correr. Os dois filósofos mal se dignaram a lançar os olhos sobre esses excrementos da literatura. Logo passaram a ler juntos os elementos da astronomia. O Ingênuo mandou buscar esferas. Esse grande espetáculo o extasiava. - Como é duro, dizia, só começar a conhecer o céu depois que me arrebataram o direito de contemplá-lo! Júpiter e Saturno giram nesses espaços imensos. Milhões de sóis iluminam bilhões de mundos e, no cantinho de terra onde fui jogado, existem seres que me privam, a mim, ser vidente e pensador de todos esses mundos até onde minha vista poderia alcançar e daquele onde Deus me fez nascer! A luz feita para todo o universo está perdida para mim. Não me ocultavam essa luz no horizonte setentrional onde passei minha infância e minha juventude. Sem você, meu caro Gordon, eu estaria aqui no nada. CAPÍTULO XII O que o Ingênuo pensa das peças de teatro. O Ingênuo se assemelhava a uma dessas árvores vigorosas que, nascidas num solo ingrato, estendem em pouco tempo suas raízes e seus ramos quando transplantadas em terreno favorável. E era realmente extraordinário que esse terreno fosse uma prisão. Entre os livros que ocupavam o lazer dos dois cativos, havia poesias, traduções de tragédias gregas e algumas peças do teatro francês. Os versos que falavam de amor encheram, ao mesmo tempo, a alma do Ingênuo de prazer e de sofrimento. Todos lhe falavam de sua querida Saint-Yves. A fábula dos Dois Pombos cortou-lhe o coração. Ele estava bem longe de poder regressar a seu pombal. Moliêre o encantou. Fazia-lhe conhecer os costumes de Paris e do gênero humano. - Qual de suas comédias prefere? - Tartufo, sem dúvida alguma. - Penso da mesma forma, disse Gordon. Foi um tartufo que enfiou neste calabouço e talvez sejam uns tartufos que provocaram sua desgraça. O que acha dessas tragédias gregas? - Boas para os gregos, respondeu o Ingênuo. Mas quando leu a Ifigênia moderna, Fedro, Andrômaca, Atália, ficou extasiado, suspirou, derramou lágrimas, decorava-as sem ter vontade de sabê-las de cor. - Leia Rodogune, disse-lhe Gordon. Dizem que é a obra-prima do teatro; as outras peças, que tanto prazer lhe causaram, são pouca coisa se comparadas com ela. O jovem, logo depois da primeira página, lhe disse: - Isso não é do mesmo autor. - Como descobriu? - Ainda não sei, mas esses versos não me tocam nem o ouvido nem o coração. - Oh! Os versos não importam, replicou Gordon. - Para que então fazê-los? Retrucou o Ingênuo. Depois de ter lido atentamente a peça, sem outro objetivo que o de sentir prazer, fitava o amigo com uns olhos secos e espantados, sem saber o que dizer. Mas, instado a dizer o que sentira, assim respondeu: - Quase não entendi o começo; fiquei revoltado com o meio; a última cena me comoveu muito, embora me pareça pouco verossímil. Não me interessei por ninguém e não retive nem vinte versos, eu que os retenho todos, quando me agradam. - Esta peça, no entanto, é considerada a melhor que possuímos. - Se assim é, replicou, talvez seja como muitas pessoas que não merecem seus lugares. Afinal de contas, é uma questão de gosto. O meu não deve estar ainda formado. Posso me enganar, mas bem sabe que costumo dizer o que penso, ou antes, o que sinto. Desconfio que muitas vezes há ilusão, moda, capricho, nos julgamentos dos homens. Falei de acordo com a natureza. Pode ser que em mim a natureza se mostre muito imperfeita, mas pode ser também que ela seja às vezes pouco consultada pela maioria dos homens. Começou então a recitar versos de Ifigênia e, embora não declamasse bem, emprestou-lhe tanta verdade e unção, que fez chorar o velho jansenista. Em seguida leu Cinna. Não chorou, mas admirou. CAPÍTULO XIII A bela Saint-Yves vai a Versalhes. Enquanto nosso desafortunado mais se esclarecia do que se consolava; enquanto seu gênio, por tanto tempo abafado, se desenvolvia com tamanha rapidez e força; enquanto a natureza, que nele se aperfeiçoava, o vingava dos ultrajes da sorte, que teria sido do prior e de sua boa irmã, e da bela reclusa Saint-Yves? No primeiro mês, se inquietaram e, no terceiro, estavam mergulhados na dor. Eram alarmados por falsas conjeturas e rumores sem fundamento. Ao cabo de seis meses, acreditavam que estivesse morto. Finalmente, o senhor e a senhorita de Kerkabon ficaram sabendo, por uma velha carta que um guarda do rei havia escrito na Bretanha, que um jovem parecido com o Ingênuo chegara uma tarde a Versalhes, mas fora detido à noite e desde então ninguém mais ouvira falar dele. - Ai! Disse a senhorita Kerkabon, nosso sobrinho fez alguma tolice e deverá estar pagando por isso. É jovem, é bretão, não pode saber como deve se comportar na Corte. Meu querido irmão, não conheço Versalhes nem Paris. Esta é uma bela ocasião e talvez encontremos nosso pobre sobrinho. É o filho de nosso irmão e nosso dever é socorrê-lo, Quem sabe se não poderemos finalmente fazer com que se tome subdiácono, depois que o ardor da juventude se tiver amortecido? Tinha bastante inclinação para as ciências. Não lembra como discorria sobre o Antigo e o Novo Testamento? Somos responsáveis por sua alma, fomos nós que o batizamos e sua querida namorada Saint-Yves passa o dia chorando. Na verdade, é preciso ir a Paris. Se estiver escondido numa dessas escandalosas casas de diversão, de que tanto me falaram, de lá o haveremos de tirar. O prior ficou sensibilizado com as palavras da irmã. Foi falar com o bispo de Saint-Malo, que batizara o huron, e pediu sua proteção e seu conselho. O prelado aprovou a viagem. Deu-lhe cartas de recomendação para o padre de La Chaise, confessor do rei, que era o mais alto dignitário do reino, para o arcebispo de Paris, Harlay, e para o bispo de Meaux, Bossuet. Finalmente, os dois irmãos partiram, mas, chegando a Paris, viram- se perdidos como num vasto labirinto, sem linha e sem saída. Suas posses eram medíocres. Todos os dias necessitavam de viaturas para dedicar-se à busca e nada descobriam. O prior apresentou-se ao reverendo padre de La Chaise, mas ele estava com a senhorita Du Thron e não podia dar audiência a priores. Bateu à porta do arcebispo, mas ele estava de portas fechadas com a bela senhora de Lesdiguiêres, tratando de assuntos da Igreja. Correu à casa de campo do bispo de Meaux, mas este examinava, com a senhorita de Mauléon, o amor místico da senhora Guyon. Entretanto, chegou a fazer-se ouvir pelos dois últimos prelados que lhe declararam não poderem meter-se no caso de seu sobrinho, visto que ele não era subdiácono. Finalmente conseguiu ver o jesuíta. Este o recebeu de braços abertos, protestando que sempre tivera por ele particular estima, embora jamais o tivesse visto. Jurou que a sociedade dos Jesuítas sempre fora muito ligada aos bretões. - Mas, continuou, será que seu sobrinho não tem a desgraça de ser huguenote? - Certamente que não, reverendo padre. - Não seria jansenista? - Posso assegurar a Vossa Reverendíssima que é cristão recente. Faz cerca de onze meses que o batizamos. - Está muito bem, muito bem, nós nos ocuparemos dele. E seus honorários são consideráveis? - Oh! Pouca coisa e meu sobrinho me sai muito caro. - Há alguns jansenistas nas redondezas? Tome muito cuidado, meu caro prior, pois são mais perigosos que os huguenotes e os ateus. - Não há nenhum, reverendo padre. Ninguém sabe o que é jansenismo em Nossa Senhora da Montanha. - Tanto melhor. Pode ir e fique certo de que não há nada que eu não faça pelo senhor. Despediu afetuosamente o prior e não pensou mais no caso. O tempo corria e o prior e a boa irmã se desesperavam. Entrementes, o maldito magistrado apressava o casamento do retardado do filho com a bela Saint-Yves, que tinham dado um jeito de fazê-la sair rapidamente do convento. Ela continuava a amar seu afilhado, da mesma forma que detestava o marido que lhe ofereciam. A afronta de ter sido recolhida num convento aumentava sua paixão e a ordem de desposar o filho do magistrado elevava essa paixão ao cúmulo. O pesar, a ternura e o horror abalavam sua alma. O amor, como se sabe, é muito mais engenhoso e ousado numa jovem do que a amizade o é num velho prior e numa tia passando dos quarenta e cinco anos. De resto, ela havia evoluído bastante no convento, com os romances que conseguira ler às escondidas. A bela Saint-Yves se lembrava da carta que um guarda da corporação havia escrito na Baixa Bretanha e da qual muito se havia falado na província. Resolveu ir pessoalmente obter informações em Versalhes, lançar-se aos pés dos ministros se seu marido estivesse na prisão, como lhe diziam, e obter justiça para ele, Não sei o que a advertia secretamente que na Corte nada é recusado a uma bela jovem. Não sabia, porém, o que isso custava. Tomada essa resolução, sente-se consolada, está tranquila, não evita mais seu tolo pretendente. Acolhe o detestável sogro, acaricia o irmão, espalha alegria pela casa. Depois, no dia destinado à cerimônia, parte secretamente às quatro da madrugada com seus modestos presentes de núpcias e tudo o que pôde juntar. Havia tomado tão bem suas providências, que já estava a mais de dez léguas quando entraram em seu quarto, em tomo do meio-dia. A surpresa e consternação foram enormes. O interrogador magistrado fez nesse dia mais perguntas do que em toda a semana. O noivo ficou mais tolo que nunca. O padre de Saint-Yves, encolerizado, resolveu partir atrás da irmã. O magistrado e seu filho decidiram acompanhá-lo. Desse modo, o destino conduzia a Paris quase todo esse cantão da Baixa Bretanha. A bela Saint-Yves desconfiava que a estavam seguindo. Estava a cavalo. Informava-se discretamente com os agentes dos correios se não haviam encontrado um padre gordo, um enorme magistrado e um jovem pateta, a caminho de Paris. No terceiro dia, ao saber de que eles não estavam longe, tomou um caminho diferente, tendo a habilidade e a sorte de chegar em Versalhes, enquanto a procuravam inutilmente em Paris. Mas como encontrar o rumo em Versalhes? Jovem, bela, sem conselho, sem apoio, desconhecida, exposta a tudo, como atrever- se a procurar um guarda do rei? Pensou em dirigir-se a um jesuíta de baixa categoria; havia-os para todas as condições de vida, como Deus, diziam, dera diferentes alimentos às diversas espécies de animais. Dera ao rei seu confessor, a quem todos os pedintes de benefícios chamavam de chefe da igreja galicana; em seguida, vinham os confessores das princesas; os ministros, não os tinham, pois não eram tolos para tanto. Havia os jesuítas da massa e, sobretudo, os jesuítas das criadas de quarto, pelas quais se sabiam os segredos das patroas e essa não era função insignificante. A bela Saint-Yves dirigiu-se a um destes últimos, que se chamava padre Tout-à-tous. Confessou-se com ele, contou-lhe suas aventuras, seu estado, seu perigo, conjurando-o a alojá-la na casa de alguma boa devota que a pusesse ao abrigo das tentações. O padre Tout-à-tous acomodou-a na casa da mulher de um oficial da copa, uma de suas mais fiéis penitentes. Logo que se instalou, apressou- se em ganhar a confiança e amizade dessa mulher. Informou-se acerca do guarda bretão e mandou pedir-lhe o favor de vir ter com ela. Ao saber por ele que seu amado fora preso depois de falar com um funcionário de primeiro escalão, correu à casa deste. A vista de uma bela mulher o abrandou, pois cumpre confessar que Deus só criou as mulheres para domesticar os homens. O funcionário, enternecido, confessou-lhe tudo. - Seu namorado está na Bastilha há quase um ano e, se não fosse a senhorita, talvez ficasse por lá toda a vida. A terna Saint-Yves desmaiou. Quando voltou a si, o funcionário lhe disse: - Não tenho atribuições para fazer o bem. Todo o meu poder se limita a fazer o mal algumas vezes. Acredite em mim, vá ter com o senhor de Saint-Pouange, que faz o bem e o mal, primo e preferido de monsenhor de Louvois. Esse ministro tem duas almas, o senhor de Saint-Pouange é uma delas; a senhora Du Beloy, a outra. Esta, porém, não se encontra agora em Versalhes. Só lhe resta dobrar o protetor que lhe indico. A bela Saint-Yves, dividida entre um pouco de alegria e dores intensas, entre alguma esperança e tristes temores, perseguida pelo irmão, adorando o seu amado, enxugando as lágrimas e vertendo-as de novo, trêmula, enfraquecida e recobrando ânimo, correu depressa para junto do senhor de Saint-Pouange. CAPÍTULO XIV Progressos do espírito do Ingênuo. O Ingênuo fazia rápidos progressos nas ciências e sobretudo na ciência do homem. Esse rápido desenvolvimento de seu espírito era devido à sua educação selvagem, bem como à têmpera de sua alma, pois, nada tendo aprendido na infância, não havia aprendido preconceitos. Seu entendimento, não tendo sido curvado pelo erro, permanecera em toda a sua retidão. Via as coisas como são, ao passo que as ideias que nos inculcam na infância fazem com que as vejamos, durante toda a vida, como não são. - Seus perseguidores são abomináveis, - dizia a seu amigo Gordon. Lamento que o oprimam, mas também lamento que seja jansenista. Toda seita me parece uma conexão com o erro. Diga-me se há seitas em geometria? - Não, meu querido filho, disse, suspirando, o bom Gordon. Todos os homens estão de acordo sobre a verdade quando ela é demonstrada, mas estão muito divididos quanto às verdades obscuras. - Seria melhor dizer as falsidades obscuras. Se houvesse uma única verdade oculta nesse montão de argumentos que se repisam há tantos séculos, sem dúvida a teriam descoberto. E o universo estaria de acordo ao menos nesse ponto. Se essa verdade fosse necessária como o solo é para a terra, seria brilhante como ele. É um absurdo, é um ultraje ao gênero humano, é um atentado contra o Ser infinito e supremo dizer: "Há uma verdade essencial ao homem, e Deus a ocultou”. Tudo o que dizia esse jovem ignorante, instruído pela natureza, causava profunda impressão no espírito do velho sábio desafortunado. - Será mesmo verdade, exclamava, que eu me tenha tornado um infeliz por causa de quimeras? Tenho muito mais certeza de meu infortúnio do que da graça eficaz. Consumi meus dias raciocinando sobre a liberdade de Deus e do gênero humano, mas perdi a minha. Nem Santo Agostinho nem São Próspero me tirarão do abismo em que caí. O Ingênuo, entregue a sua maneira de ser, disse enfim: - Quer que lhe fale com ousada confiança? Aqueles que se deixam perseguir por essas vis disputas da escola me parecem pouco sensatos. Aqueles que perseguem me parecem monstros. Os dois cativos estavam de acordo sobre a injustiça de seu cativeiro. - Sou mil vezes mais digno de lástima que você, dizia o Ingênuo. Nasci livre como o ar. Tinha duas vidas, a liberdade e o objeto de meu amor. As duas me são tiradas. Aqui estamos os dois acorrentados, sem saber o motivo e sem poder perguntar. Vivi vinte anos como huron. Dizem que os hurões são bárbaros porque se vingam de seus inimigos, mas jamais oprimiram seus amigos. Mal pus os pés na França, derramei meu sangue por ela. Salvei talvez uma província e, como recompensa, fui jogado neste túmulo de vivos, onde teria morrido de raiva sem você. Então não há leis neste país? Condenam os homens sem ouvi-los Na Inglaterra não é assim. Ah! Não era contra os ingleses que devia lutar! Assim a nascente filosofia era incapaz de dominar a natureza ultrajada no primeiro dos seus direitos, deixando livre curso à sua justa cólera. Seu companheiro não o contradisse. A ausência sempre aumenta o amor que não é satisfeito e a filosofia não o diminui. Falava tão seguidamente de sua querida Saint-Yves como de moral e de metafísica. Quanto mais se depuravam seus sentimentos, mais ele amava. Leu alguns novos romances; encontrou poucos que lhe pintassem seu estado de alma. Sentia que seu coração ia sempre para além daquilo que lia. - Ah! Dizia. Quase todos esses autores só têm espírito e arte. Por fim, o bom do padre jansenista se tornava insensivelmente confidente de sua ternura. Antes, só conhecia o amor como um pecado de que a gente se acusa na confissão. Aprendeu a conhecê-lo como um sentimento tão nobre como delicado, que pode elevar a alma como enlanguescê-la e, algumas vezes, até mesmo produzir virtudes. Enfim, como derradeiro prodígio, um huron convertia um jansenista. CAPÍTULO XV A bela Saint-Yves resiste a propostas delicadas. A bela Saint-Yves, mais apaixonada ainda que seu namorado, foi ter com o senhor de Saint-Pouange, em companhia da amiga que a hospedava, ambas ocultas em seus xales. A primeira pessoa que viu à porta foi o padre de Saint-Yves, seu irmão, que estava saindo. Assustou-se, mas a devota amiga a tranquilizou. - Precisamente porque falaram contra a senhorita é que é preciso que fale. Fique certa de que neste país os acusadores sempre têm razão, se a gente não se apressa em confundi-los. De resto, sua presença, ou me engano redondamente, causará maior efeito que as palavras de seu irmão. Por pouco que a gente a encoraje, uma mulher apaixonada se torna intrépida. A Saint-Yves apresenta-se à audiência. Sua juventude, seus encantos, seus ternos olhos, banhados por algumas lágrimas, atraíram todos os olhares. Cada cortesão do vice ministro esqueceu por um momento o ídolo do poder para contemplar aquele da beleza. Saint-Pouange pediu-lhe que entrasse num gabinete. Ela falou com ternura e graça. Saint-Pouange ficou comovido. Ela tremia, ele a tranquilizou. - Volte esta noite, lhe disse. Seus assuntos merecem pensar bem e falar deles com tempo. Aqui há muita gente. As audiências são despachadas muito às pressas. Tenho de lhe falar a fundo de tudo o que lhe diz respeito. A seguir, depois de elogiar sua beleza e seus sentimentos, recomendou-lhe que voltasse às sete horas da noite. Não faltou ao compromisso. A devota amiga a acompanhou novamente, mas ficou na sala, lendo o Pedagogo Cristão, enquanto Saint-Pouange e a bela Saint-Yves se encontravam no gabinete contíguo. - Acredita que seu irmão veio me pedir uma carta com sinete contra a senhorita? Na verdade, de bom grado expediria uma para mandá-lo de volta à Baixa Bretanha. - Ah! Senhor, há muita liberalidade, portanto, em seus gabinetes com essas cartas, para venham a ser solicitadas do fundo do reino, como pensões. Longe de mim pedir uma contra meu irmão. Tenho muitas queixas dele, mas respeito a liberdade dos homens. Peço a de um homem a quem quero desposar, de um homem a quem o rei deve a conservação de uma província, que pode servi-lo utilmente e que é filho de um oficial morto a seu serviço. De que é acusado? Como puderam tratá-lo tão cruelmente, sem ouvi-lo? O vice-ministro lhe então a carta do jesuíta espião e aquela do pérfido magistrado. - Como! Há desses monstros na terra? E querem me forçar a desposar o ridículo filho de um homem ridículo e mau! E é com essas informações que se decide aqui o destino dos cidadãos! Prostrou-se de joelhos, pediu entre soluços a liberdade do bravo que a adorava. Seu charme, nesse estado, se evidenciou com maior brilho. Estava tão linda, que Saint-Pouange, perdendo qualquer escrúpulo, insinuou-lhe que ela havia de conseguir tudo se começasse por lhe dar as primícias do que reservava a seu noivo. A Saint-Yves, apavorada e confusa, fingiu muito tempo não compreendê-lo. Foi preciso explicar-se mais claramente. Uma palavra largada a princípio com certa reserva provocava outra mais forte, seguida de uma terceira mais expressiva. Não apenas a revogação da carta lhe foi oferecida, mas recompensas, dinheiro, honrarias, posições. E, quanto mais ele prometia, mais aumentava o desejo de não ser recusado. A Saint-Yves chorava, sentia-se sufocada, meio caída num sofá, mal acreditando no que via e no que ouvia. Saint-Pouange, por sua vez, se pôs a seus pés. Atrativos não lhe faltavam e bem poderia não espantar um coração menos prevenido, mas Saint-Yves adorava seu namorado e julgava um crime horrível traí-lo para o servir. Saint-Pouange redobrava os pedidos e as promessas. Por fim, ficou tão alucinado a ponto de declarar que era aquele o único meio de tirar da prisão o homem pelo qual ela tinha um interesse tão violento e tão apaixonado. O estranho encontro se prolongava indefinidamente. A devota da antecâmara, lendo seu Pedagogo Cristão, pensava: "Meu Deus! Que podem estar fazendo há duas horas? Nunca monsenhor de Saint-Pouange deu uma audiência tão longa. Talvez tenha recusado tudo a essa pobre moça, visto que continua suplicando." Finalmente sua companheira saiu do gabinete contíguo, totalmente desnorteada, sem poder falar, refletindo profundamente sobre o caráter dos grandes e dos semigrandes que tão levianamente sacrificam a liberdade dos homens e a honra das mulheres. Não disse palavra durante todo o caminho. Chegando na casa da amiga, desabafou e contou-lhe tudo. A devota fez grandes sinais da cruz. - Minha querida amiga, devemos consultar amanhã mesmo o padre Tout-à-tous, nosso diretor. Goza de grande prestígio junto do senhor de Saint-Pouange. Confessa várias criadas de sua casa, é um homem piedoso e complacente, que também orienta senhoras de qualidade. Abandone-se a ele, é assim que costumo fazer e sempre me dei muito bem agindo dessa maneira. Nós, pobres mulheres, temos necessidade de ser conduzi das por um homem. - Pois bem, minha querida amiga, amanhã irei falar com o padre Tout-à-tous. CAPÍTULO XVI Ela consulta um jesuíta. Logo que a bela e desolada Saint-Yves se encontrou com seu bom confessor, contou-lhe que um homem poderoso e voluptuoso lhe propunha tirar da prisão aquele a quem ela deveria desposar legitimamente e que lhe pedia um alto preço por seu serviço; que semelhante infidelidade lhe causava horrível repugnância e que, se apenas se tratasse de sua própria vida, preferiria perdê-la a sucumbir. - Que abominável pecador! Disse-lhe o padre Tout-à-tous. Deveria até mesmo revelar-me o nome desse vilão. Sem a menor dúvida é algum jansenista. Eu o denunciarei a Sua Reverendíssima o padre de La Chaise que mandará encerrá-lo no calabouço onde se encontra agora a amável pessoa que a senhorita deve desposar. A pobre moça, depois de longo embaraço e muitas hesitações, revelou enfim o nome de Saint-Pouange. - Monsenhor de Saint-Pouange! Exclamou o jesuíta. Ah! Minha filha, isso é outra coisa. Ele é primo do maior ministro que jamais tivemos, homem de bem, protetor da boa causa, bom cristão. Não pode ter tido tal pensamento. Com certeza a senhorita entendeu mal. - Ah! Padre, entendi muito bem! Qualquer coisa que eu faça, estou perdida. Só tenho a escolha da desgraça e da vergonha: meu amado há de ficar sepultado vivo ou terei de me tornar indigna de viver. Não posso deixá-lo morrer e não posso salvá-lo. O padre Tout-à-tous tratou de acalmá-la com estas doces palavras: Primeiramente, minha filha, nunca diga a expressão meu amado. Há qualquer coisa de mundano que poderia ofender a Deus. Diga meu marido, pois, embora ainda não o seja, considera-o como tal, e nada é mais decente. Em segundo lugar, embora seja seu esposo em pensamento, na esperança, não o é de fato. Assim, não cometeria adultério, pecado enorme que é preciso sempre evitar, na medida do possível. Em terceiro lugar, as ações não têm malícia de culpa quando a intenção é pura, e nada é mais puro que libertar seu marido. Em quarto lugar, existem na santa antiguidade alguns exemplos que podem servir maravilhosamente para sua conduta. Santo Agostinho relata que, sob o proconsulado de Septimius Acindynus, no ano 340 de nossa salvação, um pobre homem, não podendo pagar a César o que pertencia a César, foi condenado à morte, como é justo, apesar da máxima: Onde não há nada, o rei perde os seus direitos.Tratava- se de uma libra de ouro. O condenado tinha uma esposa a quem Deus cumulara de beleza e prudência. Um velho ricaço prometeu dar à mulher uma libra de ouro, e até mais, sob a condição de praticar com ela o pecado imundo. A dama julgou não cometer mal algum ao salvar a vida do marido. Santo Agostinho aprova com ênfase sua generosa resignação. É verdade que o velho ricaço a enganou e talvez o marido não tenha deixado de ir para a forca, mas a esposa fizera tudo o que estava a seu alcance para salvar-lhe a vida. Esteja certa, minha filha, de que, quando um jesuíta cita Santo Agostinho, é preciso que esse santo esteja mesmo com a razão. Não lhe aconselho nada. Você é sensata. Deve-se presumir que saberá ser útil a seu marido. Monsenhor de Saint-Pouange é um homem honrado, não a enganará. É tudo o que lhe posso dizer. Rezarei a Deus pela senhorita e espero que tudo se passará para a maior glória de Deus. A bela Saint-Yves, não menos estarrecida com essas palavras do que com as propostas do vice-ministro, voltou transtornada para a casa de sua amiga. Sentia-se tentada a livrar-se, pela morte, do horror de deixar num horrendo cativeiro o namorado que adorava e da vergonha de libertá-lo à custa do que ela possuía de mais caro e que só devia pertencer àquele desafortunado amante. CAPÍTULO XVII Ela sucumbe por virtude. Pedia à amiga que a matasse, mas essa mulher, não menos indulgente que o jesuíta, falou-lhe com mais clareza ainda. - Ai! Disse. Os negócios não se arranjam de outra maneira nesta Corte tão amável, tão galante e tão famosa. Os lugares mais medíocres e os mais consideráveis muitas vezes não foram concedidos senão pelo preço que exigem da senhorita. Escute, você me inspirou amizade e confiança. Confesso que, se me houvesse mostrado tão difícil como você, meu marido não teria o pequeno cargo de que vive. Ele o sabe e, longe de se zangar com isso, vê em mim sua benfeitora e considera-se criatura minha. Pensa que todos aqueles que estiveram à testa das províncias, ou mesmo dos exércitos, tenham devido as honrarias e a fortuna unicamente a seus serviços? Há os que o devem às senhoras suas esposas. As dignidades da guerra foram solicitadas pelo amor e o lugar concedido ao esposo da mais bela. A senhorita está numa situação muito mais interessante. O objetivo é libertar seu noivo e desposá-lo. Trata-se de um dever sagrado que é preciso cumprir. Ninguém censurou as belas e grandes damas de quem lhe falo. Você será aplaudida e dirão que você só se permitiu uma fraqueza por excesso de virtude. - Ah! Que virtude! Exclamou a bela Saint-Yves. Que labirinto de iniquidades! Que país! E como aprendo a conhecer os homens! Um padre de La Chaise e um magistrado ridículo mandam meu namorado para a prisão, minha família me persegue, só me estendem a mão na desgraça, para me desonrar. Um jesuíta condenou um bravo, outro jesuíta quer minha perdição. Estou cercada de armadilhas e me aproximo do momento de cair na miséria! Devo matar-me ou ir falar com o rei. Eu me jogarei a seus pés quando estiver passando para ir à missa ou ao teatro. - Não deixarão que se aproxime dele, disse-lhe a boa amiga. E, se tivesse a infelicidade de falar, monsenhor de Louvois e o padre de La Chaise poderiam enterrá-la no fundo de um convento para o resto de seus dias. Enquanto essa simpática pessoa aumentava desse modo as perplexidades dessa alma desesperada e afundava o punhal em seu coração, chega um enviado do senhor de Saint-Pouange, com uma carta e dois belos brincos. Saint-Yves recusou tudo chorando, mas a amiga se encarregou disso. Logo que o mensageiro partiu, nossa confidente leu a carta, na qual consta o convite de um singelo jantar naquela mesma noite para as duas amigas. Saint-Yves jura que não irá. A devota procura fazer com que ela prove os brincos de diamante. Saint-Yves não podia tolerar isso e lutou o dia inteiro. Por fim, só tendo em vista o amado, venci da, arrastada, sem saber para onde a levam, deixa-se conduzir ao jantar fatal. Nada pudera levá-la a usar os brincos. A confidente os levou consigo e, contra sua vontade, colocou-os antes que se sentassem à mesa. Saint-Yves estava tão confusa, tão perturbada, que se deixava atormentar e o anfitrião via nisso um presságio bem favorável. Perto do final do jantar, a amiga se retirou discretamente. Saint-Pouange mostrou então a revogação da carta, o certificado de uma considerável gratificação, o da concessão de uma companhia e não poupou promessas. - Ah! Disse-lhe Saint-Yves, como o amaria se o senhor não quisesse ser amado tanto! Finalmente, depois de uma longa resistência, depois de soluços, gritos, lágrimas, enfraquecida pela luta, transtornada, desfalecendo, teve de render-se. Não teve outro recurso senão prometer a si mesma que só pensaria no Ingênuo, enquanto o cruel desfrutasse impiedosamente da necessidade a que se via reduzida. CAPÍTULO XVIII Ela liberta seu amado e um jansenista. Ao clarear do dia, voa para Paris, munida da ordem do ministro. É difícil descrever o que se passava em seu coração durante essa viagem. Imagine-se uma alma virtuosa e nobre, humilhada com seu opróbrio, embriagada de paixão, dilacerada pelos remorsos de ter traído seu amado, repleta de alegria por libertar aquele a quem adora! Suas amarguras, suas lutas, seu triunfo compartilhavam de todas as suas reflexões. Não era mais aquela jovem simples a quem uma educação provinciana acanhara as ideias. O amor e a desgraça a tinham formado. O sentimento havia feito tantos progressos nela como a razão os fizera no espírito de seu desventurado noivo. As moças aprendem a sentir com muito mais facilidade que os homens aprendem a pensar. Sua aventura era mais instrutiva que quatro anos de convento. Seu traje era de uma simplicidade extrema. Considerava com horror os adereços com que se apresentara a seu funesto benfeitor. Havia deixado os brincos de diamante para a companheira, sem ao menos dignar-se olhá-los. Confusa e encantada, idolatrando o Ingênuo e odiando a si mesma, chega enfim à porta Desse horrível castelo, palácio da vingança, Que frequentemente aprisionou o crime e a inocência. Quando foi para descer da carruagem, faltaram-lhe as forças. Tiveram de ajudá-la. Entrou, com o coração palpitante, os olhos úmidos, o semblante consternado. Apresentam- na ao governador. Ela quer falar-lhe, sua voz some. Mostra sua ordem, articulando a custo algumas palavras. O governador gostava de seu prisioneiro. Mostrou-se muito satisfeito com sua libertação. Seu coração não estava endurecido como o de alguns honrados carcereiros, seus confrades, que, só pensando na retribuição ligada à guarda dos detentos, baseando suas rendas em suas vítimas e vivendo da desgraça alheia, sentiam em segredo uma horrenda alegria com as lágrimas dos desafortunados. Mandou trazer o prisioneiro a seu gabinete. Os dois namorados cruzam os olhares e ambos desmaiam. A bela Saint-Yves permaneceu longo tempo sem movimento e sem vida. O outro logo recobrou os sentidos. - Pelo que vejo, é a senhora sua esposa, disse-lhe o governador. Não me havia dito que era casado. Sei que é à sua generosa interferência que deve sua liberdade. - Ah! Eu não sou digna de ser sua esposa, disse a bela Saint-Yves com voz trêmula e desmaiou novamente. Quando recobrou os sentidos, apresentou, sempre trêmula, o certificado da gratificação e a promessa por escrito de uma companhia. O Ingênuo, tão espantado como enternecido, despertava de um sonho para cair em outro. - Por que fui encerrado aqui? Como pôde libertar-me? Onde estão os monstros que me perseguiram? Você é uma divindade descida do céu em meu auxílio. A bela Saint-Yves baixava o olhar, fitava o amado, corava e logo desviava os olhos banhados em lágrimas. Contou finalmente tudo o que sabia e tudo o que havia passado, exceto aquilo que desejaria ocultar a si mesma para sempre e que qualquer outro que não o Ingênuo, mais acostumado ao mundo e mais a par dos costumes da Corte, teria logo adivinhado. - Será possível que um miserável como esse magistrado tenha tido o poder de tirar-me a liberdade? Ah! Bem vejo que com os homens acontece o mesmo que com os mais desprezíveis animais: todos podem causar dano. Mas será possível que um monge, um jesuíta confessor do rei, tenha contribuído para meu infortúnio tanto quanto o magistrado, sem que eu possa imaginar sob que pretexto me perseguiu esse detestável tratante? Fez-me passar por jansenista? E como Mas, como se lembrou de mim? Eu não o merecia, eu não passava então de um selvagem. E mais, pôde, sem conselho, sem auxílio, empreender a viagem até Versalhes! Lá você apareceu e romperam-se minhas cadeias! Há, pois, na beleza e na virtude um invencível encanto que faz tombar as portas de ferro e abrandar os corações de bronze! A essa palavra, virtude, escaparam soluços à bela Saint-Yves. Não sabia o quanto era virtuosa no crime de que se acusava. O amado assim continuou: - Anjo, você que rompeu meus grilhões, se teve bastante influência (o que eu ainda não compreendo) para obrigar a me fazerem justiça, intercede para que também a façam a um velho que me ensinou a pensar, como você me ensinou a amar. A calamidade nos uniu. Amo-o como a um pai, não posso viver sem você nem sem ele. - Eu! Que eu vá pedir ao mesmo homem que... ! - Sim, quero dever tudo a você e não quero em momento algum dever nada senão a você. Escreva a esse homem poderoso, cumule-me de seus benefícios, termine o que começou, complete seus prodígios. Ela sentia que devia fazer tudo o que seu amado exigia. Quis escrever, a mão não obedecia. Três vezes começou a carta, três vezes a rasgou. Finalmente conseguiu escrevê-la e os dois namorados se retiraram, depois de ter abraçado o velho mártir da graça eficaz. A feliz e desolada Saint-Yves sabia onde morava o irmão. Para lá se dirigiu. Seu amado instalou-se num apartamento na mesma casa. Mal haviam chegado, seu protetor enviou-lhe a ordem de soltura de Gordon e marcou um encontro com ela para o dia seguinte. Assim, a cada ação honesta e generosa que praticava, sua desonra era o preço. Odiava e execrava esse costume de vender a desgraça e a felicidade dos homens. Entregou a ordem de soltura a seu amado e recusou o encontro com um benfeitor que não podia mais sem morrer de dor e de vergonha. O Ingênuo só poderia separar-se dela para ir libertar um amigo. Voou para lá. Cumpriu esse dever, refletindo sobre os estranhos acontecimentos deste mundo e admirando a corajosa virtude de uma moça, a quem dois infelizes deviam mais que a vida. CAPÍTULO XIX O Ingênuo, a bela Saint-Yves e seus parentes se reúnem. A generosa e respeitável infiela estava com o seu irmão, o padre de Saint-Yves, com o bom prior da Montanha e com a dama de Kerkabon. Todos estavam igualmente surpresos, mas suas situações e seus sentimentos eram bem diferentes. O padre de Saint-Yves chorava suas culpas aos pés da irmã, que o perdoava. O prior e sua terna irmã também choravam, mas de alegria. O ignóbil magistrado e seu insuportável filho não perturbavam a comovedora cena. Tinham partido aos primeiros rumores da libertação de seu inimigo; corriam para sepultar na província sua tolice e seu temor. Os quatro personagens, agitados por centenas de emoções diversas, esperavam que o jovem voltasse com o amigo a quem fora libertar. O padre de Saint-Yves não ousava erguer os olhos diante da irmã. A boa Kerkabon dizia: - Tornarei a ver meu querido sobrinho. - Há de revê-lo, disse a encantadora Saint-Yves, mas não é mais o mesmo homem. Seu porte, seu tom, suas ideias, seu espírito, tudo está mudado. Tornou-se tão respeitável quanto era ingênuo e estranho a tudo. Ele será a honra e o consolo de sua família. Que eu pudesse também ser a honra da minha! - Você tampouco é a mesma, disse o prior. Que foi que houve que provocou em você tamanha mudança? No meio dessa conversa, o Ingênuo chega, trazendo pela mão seu jansenista. A cena então adquire maior novidade e interesse. Começou pelos ternos abraços do tio e da tia. O padre de Saint-Yves quase se punha de joelhos diante do Ingênuo, que não era mais o Ingênuo. Os dois namorados falavam-se com olhares que exprimiam todos os sentimentos que os dominavam. No rosto de um brilhava a satisfação, o reconhecimento; nos olhos de outro, ternos e preocupados, transparecia o embaraço. Temiam que ela pudesse mesclar dor a tanta alegria. O velho Gordon, em poucos instantes, tornou-se caro a toda a família. Tinha sido infeliz com o jovem prisioneiro e isso era um grande título. Devia sua libertação aos dois namorados e isso bastava para reconcilia-lo com o amor. A rigidez de suas antigas convicções afastavam-se de seu coração. Transformara-se em homem, como o huron. Cada um contou suas aventuras antes do jantar. Os dois padres e a tia escutavam como crianças que ouvem histórias de fantasmas e como humanos que se interessavam todos por tantas desgraças. - Ah! Dizia Gordon, há provavelmente mais de quinhentas pessoas virtuosas que se encontram agora nas mesmas cadeias que a senhorita de Saint-Yves quebrou. Suas desgraças são desconhecidas. Há muitas mãos para bater na multidão dos infelizes e raramente uma que os socorra. Essa reflexão tão verdadeira aumentava sua sensibilidade e seu reconhecimento. Tudo duplicava o triunfo da bela Saint-Yves. Todos admiravam a grandeza e firmeza de sua alma. À admiração juntava-se esse respeito que a gente, sem querer, dedica à pessoa com influência na Corte. Mas o padre de Saint-Yves pensava às vezes: "Que terá feito minha irmã para conseguir tão depressa todo esse prestígio”? Iam sentar- se à mesa, quando chega a boa amiga de Versalhes, sem nada saber do que se passara. Vinha numa carruagem de seis cavalos e bem se via a quem pertencia o veículo. Entra com o ar imponente de uma pessoa da Corte que tem grandes preocupações, saúda superficialmente o grupo e, chamando à parte a bela Saint - Yves, pergunta: - Por que se fazer esperar tanto? Siga-me. Aqui estão os diamantes que esqueceu. Não pôde dizer essas palavras tão baixo que o Ingênuo não as ouvisse. Ele viu os diamantes. O irmão ficou embaraçado. O tio e a tia apenas experimentaram uma surpresa de boas criaturas que jamais haviam contemplado tal magnificência. O jovem, que amadurecera num ano de reflexões, não deixou de refletir, malgrado seu, e pareceu perturbar-se por um momento. Sua amada percebeu. Uma palidez mortal se espalhou em seu belo rosto, um tremor se apoderou dela e mantinha-se em pé a custo. - Ah! Disse à fatal amiga. Tu me perdeste! Tu me matas! Estas palavras traspassaram o coração do Ingênuo, mas já tinha aprendido a conter-se. Nada disse, com receio de inquietar a noiva diante do irmão, mas empalideceu como ela. A St. Yves, transtornada pela alteração que via no rosto do Ingênuo, arrasta a amiga para um corredor e joga-lhe os diamantes aos pés: - Ah! Não foram esses diamantes que me seduziram, bem o sabes, mas aquele que os deu nunca mais me tornará a ver. Enquanto a amiga os recolhia, a Saint-Yves acrescentava: - Que ele os retome ou que os dê a ti. Vai embora, não me faças ter ainda maior vergonha de mim mesma. A mensageira finalmente foi embora, sem compreender os remorsos de que era testemunha. A bela Saint-Yves, deprimida, experimentando em seu corpo uma revolução que a sufocava, foi obrigada a se recolher no leito. Mas, para não alarmar ninguém, nada falou do que sentia e, pretextando apenas cansaço, pediu licença para repousar. Fez isso somente depois de serenar o grupo com palavras tranquilizadores e afetuosas e de dirigir ao amado olhares que incendiavam sua alma. O jantar, que ela não animava, foi triste no princípio, mas dessa interessante tristeza que induz a conversas pertinentes e úteis, tão superiores a essa frívola alegria que todos procuram e que não passa, em geral, de um inoportuno rumor. Gordon traçou em poucas palavras a história do jansenismo e do molinismo, das perseguições com que uma facção afligia a outra e da irredutibilidade de ambos. O Ingênuo fez-lhes a crítica e lamentou os homens que, não satisfeitos com tantas discórdias que seus interesses provocam, arranjam novos males procedentes de interesses quiméricos e de absurdos ininteligíveis. Gordon narrava, o outro julgava. Os convivas ouviam com emoção e se esclareciam com novas luzes. Falaram da extensão de nossos infortúnios e da brevidade da vida. Observaram que cada profissão tem um vício e um perigo que lhe são peculiares e que, desde o príncipe até o último dos mendigos, tudo parece acusar a natureza. Como se encontram tantos homens que, por tão pouco dinheiro, se tornam perseguidores, satélites, carrascos dos outros homens? Com que desumana indiferença um homem de posição assina a destruição de uma família e com que bárbara alegria os mercenários a executam! - Na minha mocidade, disse o bom Gordon, conheci um parente do marechal Marsillac que, perseguido em sua província por causa daquele ilustre malvado, ocultava-se em Paris sob um nome falso. Era um velho de setenta e dois anos. Acompanhava-o a esposa, mais ou menos da mesma idade. Haviam tido um filho libertino que, aos quatorze anos, fugira da casa paterna. Soldado, depois desertor, passara por todos os graus da libertinagem e da miséria. Finalmente, sob outro nome, entrara para a guarda do cardeal Richelieu (pois esse padre, como Mazarino, tinha guardas). Obtivera um bastão de ajudante nessa companhia de subalternos. Esse aventureiro foi encarregado de prender o casal de velhos, desincumbindo-se com toda a dureza de um homem desejoso de agradar a seu amo. Enquanto os conduzia, ouviu as duas vítimas deplorarem a longa sequência de males que haviam experimentado desde o berço. O pai e a mãe contavam entre seus maiores infortúnios os desmandos e a perda do filho. Reconheceu-os, mas nem por isso deixou de conduzi-los à prisão, assegurando-lhes que, acima de tudo, Sua Eminência devia ser servido de preferência. Sua Eminência recompensou seu zelo. Vi um espião do padre de La Chaise trair o próprio irmão, na esperança de um pequeno benefício, que não obteve. Vi-o morrer, não de remorsos, mas de dor por ter sido enganado pelo jesuíta. O cargo de confessor, que por longo tempo exerci, levou-me a conhecer o íntimo das famílias. Não vi quase nenhuma que não estivesse mergulhada na amargura, muito em público, colocando a máscara da felicidade, aparentasse nadar na alegria. Sempre notei que os grandes desgostos eram fruto de nossa cobiça desenfreada. - Quanto a mim, disse o Ingênuo, penso que uma alma nobre, reconhecida e sensível pode viver feliz. Conto realmente em poder desfrutar de uma felicidade sem dissabores com a bela e generosa Saint-Yves, pois espero - acrescentou, dirigindo ao irmão dela um amistoso sorriso - que o senhor não o impedirá, como no ano passado, e garanto que me comportarei com mais decência. O padre se desmanchou em desculpas quanto ao passado e em protestos de uma proximidade eterna. O tio Kerkabon disse que seria aquele o mais belo dia da sua vida. A boa tia, extasiada e chorando de alegria, exclamava: - Bem lhe dizia que você nunca haveria de ser subdiácono! Este sacramento vale mais que o outro. Prouvera a Deus que eu fosse honrada com ele! Em todo caso, lhe servirei de mãe. E cada um se esmerava em elogiar a adorável Saint-Yves. O amado tinha o coração totalmente repleto por tudo aquilo que a Saint-Yves havia feito por ele e a amava muito para que a aventura dos diamantes pudesse causar em seu coração uma impressão oposta. Mas essas palavras que não deixara de ouvir, tu me causas a morte, ainda o aterravam secretamente e corrompiam toda a sua alegria, enquanto os elogios à sua bela namorada aumentavam ainda mais seu amor. Mas agora só se falava dela, só se falava da felicidade que os dois amantes mereciam. Combinavam como viver todos juntos em Paris, faziam projetos de fortuna e de engrandecimento, entregavam-se a todas essas esperanças que o mínimo lampejo de felicidade faz brotar com tamanha facilidade. Mas o Ingênuo, no fundo de seu coração, experimentava um sentimento que repelia essa ilusão. Relia as promessas assinadas por Saint-Pouange e as nomeações assinadas por Louvois. Descreveram-lhe esses homens tais como eram ou como julgavam que fossem. Todos se referiram aos ministros e ao ministério com essa liberdade da mesa, considerada na França como a mais preciosa liberdade que se possa gozar na terra. - Se eu fosse rei da França, disse o Ingênuo, escolheria o ministro da guerra desse modo: haveria de ser um homem do mais alto nascimento, pela simples razão que dá ordens à nobreza. Exigiria que ele próprio tivesse sido oficial, que tivesse passado por todos os postos, que tivesse sido pelo menos tenente-general do exército e digno de ser marechal da França, pois não é necessário ter servido ele próprio para melhor conhecer todos os detalhes do serviço? E os oficiais não obedeceriam com centenas de vezes mais disposição a um militar que tivesse, como eles, se destacada pela coragem, do que a um homem de gabinete que, quando muito, só pode adivinhar as operações de uma campanha, por mais inteligente que pudesse ser? Não me incomodaria se meu ministro fosse generoso, embora isso, às vezes, embaraçasse um pouco meu tesoureiro real. Gostaria que trabalhasse com facilidade e que se distinguisse por essa alegria de espírito, privilégio de um homem superior ligado aos negócios de Estado, tão do agrado da nação e que torna todos os deveres menos penosos. Desejava que um ministro tivesse esse caráter, porque sempre notara que o bom humor é incompatível com a crueldade. Monsenhor de Louvois talvez não se agradasse dos desejos do Ingênuo. Tinha outra espécie de mérito. Mas enquanto estavam à mesa, a doença da infeliz jovem assumia um caráter funesto. Seu sangue fervia, uma febre devoradora aparecera, sofria mas não se queixava, para não perturbar a alegria dos convivas. O irmão, sabendo que ela não dormia, foi até a cabeceira de sua cama. Ficou surpreso com seu estado. Todos acorreram, o noivo em primeiro lugar. Era sem dúvida o mais alarmado e comovido de todos, mas aprendera a acrescentar a discrição a todos os felizes dons que lhe prodigalizara a natureza e começava a dominá-lo o sentimento imediato da conveniência. Mandaram chamar um médico das vizinhanças. Era um desses que visitam os doentes correndo, que confundem a doença que acabam de ver com a que estão examinando, que exercem uma cega rotina numa ciência para a qual nem toda a maturidade de um espírito sadio e compenetrado poderá eliminar seus perigos e incertezas. Redobrou a doença com sua precipitação em prescrever um remédio então em moda. Modas até na medicina! Essa mania era muito comum em Paris. A triste Saint-Yves contribuía ainda mais que o médico em tornar perigosa sua doença. A alma consumia seu corpo. A multidão dos pensamentos que a agitavam vertia em suas veias um veneno mais perigoso que a pior febre. CAPÍTULO XX A bela Saint-Yves morre e o que acontece. Chamaram outro médico. Este, em vez de ajudar a natureza e deixá-la agir numa jovem, na qual todos os órgãos se expandiam em vida, só se preocupou em contrariar seu colega. Em dois dias a doença se tornou mortal. O cérebro, que se supõe ser a sede do entendimento, foi tão violentamente atacado quanto o coração que é, dizem, a sede das paixões. "Que incompreensível mecânica submeteu os órgãos ao sentimento e ao espírito? Como pode uma única ideia dolorosa estragar a circulação do sangue? Como é que o sangue, por sua vez, transfere suas irregularidades ao entendimento humano? Que fluido desconhecido é esse, mas cuja existência é inegável e que, mais rápido, mais ativo que a luz, percorre num piscar de olhos todos os canais da vida, produz as sensações, as lembranças, a tristeza ou a alegria, a razão ou o delírio, evoca com horror o que se desejaria esquecer e faz de um animal pensante um objeto de admiração ou um motivo de piedade e de lágrimas?" Era o que dizia o bom Gordon. E essa reflexão tão natural, que raramente os homens fazem, em nada lhe afetava a intensa preocupação, pois não era desses malfadados filósofos que se esforçam em mostrar-se insensíveis. Comovia-se com a sorte daquela jovem, como um pai que vê morrer lentamente seu filho querido, O padre de Saint-Yves estava desesperado, o prior e sua irmã derramavam rios de lágrimas. Mas quem poderia descrever o estado de seu amado? Nenhuma língua possui expressões que correspondam àquele auge da dor. As línguas são demasiadamente imperfeitas. A tia, quase sem vida, sustentava em seus frágeis braços a cabeça da moribunda, o tio estava de joelhos ao pé da cama, o noivo apertava-lhe a mão que banhava de lágrimas e rompia em soluços. Chamava-a sua benfeitora, sua esperança, sua vida, metade de si próprio, sua senhora, sua esposa. A essa palavra esposa, ela suspirou, olhou-o com inexprimível ternura e, de repente, soltou um grito de horror. Depois, num desses intervalos em que a prostração e o enfraquecimento dos sentidos e as dores suspensas deixam à alma toda a sua liberdade e força, ela exclamou: - Eu! Sua esposa! Ah! Meu amado, esse nome, essa felicidade, esse prêmio não eram mais para mim. Eu morro e o mereço. Ó Deus de meu coração! Ó Deus eu sacrifiquei aos demônios infernais, tudo está acabado, sou punida, e que você possa viver feliz. Essas apaixonadas e terríveis palavras não podiam ser compreendidas, mas levavam a todos os corações o pavor e a comoção. Ela teve a coragem de explicar-se. Cada palavra fez tremer de espanto, de dor e de piedade todos os assistentes. Todos se uniam para execrar o homem poderoso que só havia reparado uma injustiça com um crime e que havia forçado a mais respeitável inocência a ser sua cúmplice. - Quem? Você, culpada? Exclamou o noivo. Não, você não é culpada. O crime só pode estar no coração e seu coração pertence à virtude e a mim. Ele confirmava esse sentimento com palavras que pareciam trazer novamente à vida a bela Saint-Yves. Sentiu-se consolada e se espantava pelo fato de ser ainda amada. O velho Gordon a teria condenado na época em que era apenas jansenista, mas, tendo-se tornado sábio, estimava-a e chorava. Em meio a tantas lágrimas e temores, enquanto o perigo daquela jovem tão querida enchia todos os corações, quando tudo era consternação, anunciam uma correspondência da Corte. Uma correspondência! E de quem? E por quê? Era da parte do confessor do rei para o prior da Montanha. Quem escrevia não era o padre de La Chaise, mas o irmão Vadbled, seu criado de quarto, homem muito importante naquela época. Era ele quem comunicava aos arcebispos as decisões do reverendo padre, ele quem dava audiência, quem prometia benefícios, quem expedia às vezes as cartas de punição. Escrevia ao prior da Montanha que "Sua Reverendíssima havia sido informado das aventuras de seu sobrinho, o huron, que a prisão deste último fora apenas um engano, que essas pequenas desgraças ocorriam frequentemente, que não se devia dar maior importância e que, enfim, convinha que ele, prior, viesse apresentar-lhe seu sobrinho no dia seguinte, que também devia levar consigo esse Gordon, que ele, irmão Vadbled, os apresentaria a Sua Reverendíssima e a Monsenhor de Louvois, o quallhes dirigiria uma palavra na sua antecâmara." Acrescentava que a história do Ingênuo e de seu combate contra os ingleses haviam sido relatados ao rei, o qual certamente se dignaria notá-lo quando passasse pela galeria e talvez lhe fizesse até um aceno com a cabeça. Terminava a carta com a lisonjeira esperança de que todas as damas da Corte se apressariam em chamar o seu sobrinho ao camarim e que várias dentre elas lhe diriam: "Bom dia, senhor Ingênuo". Além disso, que certamente falariam a seu respeito durante o jantar do rei. A carta portava esta assinatura: "Seu afeiçoado Vadbled, irmão jesuíta." Tendo o prior lido a carta em voz alta, o sobrinho, furioso, e retendo um momento a cólera, nada disse ao portador, mas, voltando-se para seu companheiro de infortúnio, perguntou-lhe o que pensava daquele estilo. Gordon lhe respondeu: - É exatamente assim que tratam os homens, como se fossem macacos! Batem neles e os fazem dançar. O Ingênuo, recuperando seu antigo caráter, que volta sempre nas grandes comoções, rasgou a carta em pedaços e jogou-os na cara do portador: "Aí está minha resposta." Seu tio, espantado, julgou ver o raio e vinte cartas de punição cair sobre sua cabeça. Foi logo escrever, desculpando-se como podia, aquilo que ele considerava como um arroubo de jovem, mas que era o desabafo incontido de uma grande alma. Entrementes, mais dolorosos cuidados se apoderavam de todos os corações. A bela e infeliz Saint-Yves já sentia aproximar-se o fim. Estava tranquila, mas nessa terrível tranquilidade da natureza exausta, que não tem mais forças para combater. - Ó meu querido, disse ela com voz desfalecida, a morte castiga me pune por minha fraqueza, mas expiro com o consolo de saber que está livre. Eu o adorei quando o traia, e o adoro dizendo-lhe um eterno adeus. Não ostentava uma vã firmeza, não tinha essa miserável vaidade de fazer com que alguns vizinhos comentassem: "Ela morreu corajosamente". Quem é que pode perder, aos vinte anos, sem pesar e sofrimento, seu amado, sua vida e aquilo a que chamam a honra? Sentia todo o horror de seu estado e fazia-o sentir com essas palavras e com esses olhares moribundos que falam com tanta força. Chorava, enfim, como os outros, nos momentos em que teve forças para chorar. Procurem outros louvar as mortes faustosas daqueles que entram na destruição com insensibilidade: é a sorte de todos os animais. Só morremos como eles com indiferença, quando a idade ou a doença nos torna semelhantes a eles por causa da estupidez de nossos órgãos. Quem quer que sofra uma grande perda, sente-o imensamente. Se abafa seu pesar, é que leva a vaidade até nos braços da morte. Chegado o momento fatal, todos os assistentes romperam em lágrimas e gritos. O Ingênuo perdeu os sentidos. As almas fortes têm reações bem mais violentas que as outras quando se comovem. O bom Gordon, que o conhecia muito bem, temia que se matasse, ao voltar a si. Afastaram de seu alcance todas as armas. O infeliz jovem percebeu e disse a seus parentes e a Gordon, sem chorar, sem gemer, sem se comover: - Pensam então que existe alguém no mundo que tenha o direito e o poder de me impedir que eu acabe com a vida? Gordon não procurou impingir-lhe esses fastidiosos lugares-comuns com os quais tentam provar que não devemos usar da própria liberdade para deixar a vida quando nos sentimos horrivelmente mal, que não devemos abandonar nossa casa quando esta se torna inabitável e que o homem está na terra como um soldado em seu posto. Como se importasse ao ser dos seres que a reunião de algumas partes de matéria estivesse num lugar ou em outro. Razões impotentes que um desespero firme e refletido desdenha ouvir e às quais Catão só respondeu com um golpe de punhal: O morno e terrível silêncio do Ingênuo, seus olhos sombrios, seus lábios que tremiam, os frêmitos de seu corpo incutiam, na alma de todos aqueles que o contemplavam, essa mescla de compaixão e de pavor que acorrenta todas as potências da alma, que exclui qualquer discurso e que só se manifesta por frases entrecortadas. A dona da casa e sua família haviam acorrido. Todos tremiam por causa de seu desespero, guardavam-no à vista, observavam todos os seus movimentos. Já o corpo gelado da bela Saint-Yves havia sido transferido para a sala debaixo, longe dos olhos de seu amado, que ainda parecia procurá-la, embora não estivesse em condições de distinguir o que quer que fosse. No meio desse espetáculo da morte, enquanto o corpo fica exposto à porta da casa e dois padres, ao lado de uma bacia de água benta, recitam orações com ar distraído, enquanto alguns passantes, por ociosidade, jogam algumas gotas de água benta sobre o caixão e outros prosseguem com indiferença seu caminho, enquanto os parentes choram e um noivo está prestes a se matar, chega Saint-Pouange acompanhado da amiga de Versalhes. Sua passageira inclinação, apenas uma vez satisfeita, transformara-se em amor. A recusa de seus presentes o haviam deixado mordido. O padre de La Chaise jamais teria pensado em ir àquela casa, mas Saint-Pouange, tendo todos os dias diante dos olhos a imagem da bela Saint - Yves, ardendo por aplacar uma paixão que, por um único desfrute, havia traspassado seu coração com o aguilhão do desejo, não hesitou em vir procurar pessoalmente aquela a quem talvez não quisesse rever três vezes, se ela própria tivesse comparecido. Desce da carruagem. O primeiro objeto que se apresenta a ele é um esquife. Desvia os olhos com esse simples desgosto de um homem alimentado nos prazeres que julga que se deva poupar-lhe todo espetáculo que pudesse levá-lo à contemplação da miséria humana. Faz menção de subir. A mulher de Versalhes pergunta, por curiosidade, a quem vão enterrar. Pronunciam o nome da senhorita de Saint-Yves. A esse nome, ela empalidece e solta um grito pavoroso. Saint-Pouange se volta. A surpresa e a dor enchem sua alma. O bom Gordon estava lá, com os olhos rasos de lágrimas. Interrompe suas tristes orações para narrar ao cortesão toda aquela horrível catástrofe. Fala-lhe com essa força que dão a dor e a virtude. Saint-Pouange não nascera mau. A torrente das intrigas e das diversões havia arrebatado sua alma, que ainda se desconhecia. Não havia atingido a velhice, que geralmente endurece o coração dos ministros. Escutava Gordon, de olhos baixos, e enxugava algumas lágrimas que estava atônito de poder derramar. Conheceu o arrependimento. - Faço absoluta questão de ver, disse ele, esse homem extraordinário de quem me falou. Ele me comove quase tanto como essa inocente vítima cuja morte causei. Gordon O acompanhou até o quarto onde o prior, a Kerkabon, o padre de Saint-Yves e alguns vizinhos faziam de tudo para reanimar o jovem que desmaiara novamente. - Causei sua desgraça, disse-lhe o vice-ministro. Empregarei o resto de minha vida para repará-la. A primeira ideia que ocorreu ao Ingênuo foi matá-lo e matar-se depois. Nada mais lógico, mas estava sem armas e vigiado de perto. Saint-Pouange não se chocou com a repulsa, acompanhada da recriminação, desprezo e horror que ele bem merecia e não lhe foram poupados. O tempo abranda tudo. Monsenhor de Louvois conseguiu finalmente fazer do Ingênuo um excelente oficial que apareceu sob outro nome em Paris e no exército, com o aplauso de todas as pessoas de bem, e que foi ao mesmo tempo um guerreiro e um filósofo intrépido. - Jamais falava dessa aventura sem gemer. Entretanto, seu consolo era falar dela. Cultuou a memória da terna Saint-Yves até o último momento de sua vida. O padre de Saint-Yves e o prior conseguiram cada um deles um bom benefício. A boa Kerkabon estimou mais ver seu sobrinho nas honrarias militares do que no subdiaconato. A devota de Versalhes ficou com os brincos e recebeu ainda um belo presente. O padre Tout-à-tous ganhou caixas de chocolate, de café, de açúcar-cande, de frutas em compota, com as Meditações do Reverendo Padre Croiset e a Flor dos Santos encadernados em marroquim. O bom Gordon viveu com o Ingênuo até a morte, na mais íntima amizade. Recebeu também um benefício e esqueceu para sempre a graça eficaz e o concurso concomitante. Tomou por divisa: A desgraça serve para alguma coisa. Quanta gente honesta no mundo já pôde dizer: Desgraça não serve para nada!