Jean-Jacques Rousseau – Discurso Sobre a Desigualdade Discurso sobre a seguinte questão, proposta pela academia de Dijon: Qual é a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela lei natural? Non in depravatis, sed in his quae bene secundum naturam se habent, considerandum est quid sit naturale. Aristóteles, Politica. Livro I. cap. II. ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS Juntei algumas notas a este trabalho, de acordo com meu hábito preguiçoso de trabalhar em intervalos irregulares. Essas notas, por vezes, distanciam-se bastante do assunto e não servem, por isso, para serem lidas com o texto. Coloquei-as, pois, no fim do Discurso, no qual me esforcei por seguir, do melhor modo que pude, o caminho mais reto. Os que tiverem a coragem de recomeçar poderão distrair-se, na segunda vez, levantando a caça e tentando percorrer as notas. Não terá importância que os outros não as leiam. À REPÚBLICA DE GENEBRA Magníficos, Honradíssimos e Soberanos Senhores. Convencido de que só ao cidadão virtuoso cabe prestar à sua pátria as honras que ela possa consentir, há trinta anos esforço-me por merecer oferecer-vos uma homenagem pública. Esta feliz ocasião substituindo em parte o que meus esforços não puderam fazer, acreditei ser-me permitido aqui levar em consideração mais o zelo que me anima do que o direito que deveria autorizar-me. Tendo a felicidade de haver nascido entre vós, como poderia meditar sobre a igualdade que a natureza estabeleceu entre os homens e sobre a desigualdade instituída por eles sem pensar na profunda sabedoria com a qual uma e outra, felizmente combinadas neste Estado, concorrem, da maneira mais próxima à lei natural e mais favorável à sociedade, para a manutenção da ordem pública e a felicidade dos particulares? Procurando as melhores máximas que o bom senso possa ditar acerca da constituição de um Governo, fiquei tão impressionado de vê-las todas em execução no vosso, que, mesmo sem ter nascido dentro de vossos muros, teria acreditado não poder isentar-me de oferecer esse quadro da sociedade humana àquele, dentre rodos os povos, que me parece possuir as suas maiores vantagens e melhor ter prevenido os seus abusos. Se tivera de escolher o lugar de meu nascimento, teria escolhido uma sociedade de tamanho limitado pela extensão das faculdades humanas, isto é, pela possibilidade de ser bem governada e na qual, bastando cada um a seus encargos, ninguém fosse obrigado a incumbir outros das funções de que fora encarregado; um Estado no qual todos os particulares se conhecessem entre si, onde as manobras obscuras do vício e a modéstia da virtude não pudessem furtar-se aos olhos e ao julgamento do público, e onde esse hábito agradável de ver-se e de conhecer-se transformasse o amor da pátria em amor dos cidadãos, mais do que em amor da terra. Teria desejado nascer num país no qual o soberano e o povo não pudessem alimentar senão um único e mesmo interesse, afim de que todos os movimentos da máquina tendessem somente para a felicidade comum. Não podendo tal coisa suceder, a menos que o povo e o soberano não sejam senão uma mesma pessoa, conclui-se que eu desejaria ter nascido sob um governo democrático, sabiamente equilibrado. Teria desejado viver e morrer livre, isto é, de tal modo submetido às leis que nem eu, nem ninguém, pudesse sacudir o honroso jugo, esse jugo salutar e suave que as cabeças mais orgulhosas tanto mais docilmente suportam, quanto mais afeitas são a não suportar qualquer outro. Teria, pois, desejado que ninguém no Estado pudesse considerar-se acima da lei, e que ninguém de fora pudesse impor-se-lhe, sendo o Estado obrigado a reconhecê-lo, pois, seja qual for a constituição de um Governo, se encontrarmos um único homem que não se submeta à lei, todos os outros estarão certamente à discrição dele (a) o e, se houver um chefe nacional e um outro estrangeiro, seja qual for a divisão de autoridade que possam efetuar, é impossível que um e outro consigam ser bem obedecidos, e o Estado bem governado. Não desejaria, de modo algum, morar numa república de instituição nova, ainda que tivesse leis boas, temendo que o Governo, constituído talvez de modo diferente daquele que devesse ser para o momento, não conviesse aos novos cidadãos, ou os cidadãos ao novo Governo, e ficasse o Estado sujeito a abalar-se e destruir-se quase desde o nascimento. Porque acontece com a liberdade o que se dá com esses alimentos sólidos e suculentos ou com esses vinhos generosos, apropriados para nutrir e fortificar os temperamentos robustos que têm o hábito deles, mas que abatem, arruínam e atordoam os fracos e delicados, que absolutamente não lhes são efeitos. Os povos, uma vez acostumados a possuírem senhores, não conseguem viver sem eles. Se tentam sacudir o jugo, distanciam-se a tal ponto da liberdade que, tomando por ela uma licença desenfreada que lhe é oposta, as suas revoluções quase sempre os entregam a sedutores que só Jazem agravar suas cadeias. O próprio povo romano, esse modelo de todos os povos livres, não foi capaz de governar-se ao sair da opressão dos Tarqúinios. Aviltados pela escravatura e pelos trabalhos ignominiosos que eles lhes impuseram, a princípio não foi senão a uma populaça estúpida que se precisou dirigir e governar com a maior sabedoria a fim de que, acostumando-se pouco a pouco a respirar o ar salutar da liberdade, essas almas abatidas, ou antes, embrutecidas pela tirania, adquirissem paulatinamente a severidade de costumes e a altivez da coragem, que por fim o tornariam o mais respeitável de todos os povos. Eu teria, pois, procurado para minha pátria uma república feliz e tranquila, cuja ancianidade de certo modo se perdesse na noite dos tempos, que só tivesse experimentado os golpes necessários para suscitar e fortalecer em seus habitantes a coragem e o amor pela pátria, e na qual os cidadãos, habituados de há muito a uma independência sábia, fossem não somente livres mas dignos de sê-lo. Desejaria ter escolhido para mim uma pátria despida, por feliz impotência, do feroz amor das conquistas, e garantida, por situação ainda mais feliz, do temor de tornar-se suscetível da conquista por outro Estado; uma cidade livre, colocada entre numerosos povos, nenhum dos quais com interesse de invadi-la e cada um dos quais com interesse de impedir os demais de invadi-la; em uma palavra, uma república que de modo algum tentasse a ambição de seus vizinhos e que com justiça pudesse contar, na necessidade, com socorro. Conclui-se que, numa posição tão feliz, ela nada teria a temer a não ser de si mesma e que, se esses cidadãos fossem adestrados nas armas, antes seria para manter entre eles o ardor guerreiro e a altivez da coragem, que assentam tão bem à liberdade e alimentam o seu gosto, do que pela necessidade de atender à própria defesa. Teria procurado um país no qual o direito de legislação fosse comum a todos os cidadãos, pois quem melhor do que eles pode saber quais as condições em que lhes convém viver juntos numa mesma sociedade? Mas não aprovaria plebiscitos como os dos romanos, nos quais os chefes de Estado e os mais interessados em sua conservação estavam excluídos das deliberações de que frequentemente dependia a sua salvação, e, por inconsequência absurda, privavam-se os magistrados dos direitos usufruídos pelos simples cidadãos. Teria desejado, pelo contrário, para sustar os projetos interessados e mal concebidos, e as inovações perigosas que, por fim, puseram a perder os atenienses, que cada um não possuísse o poder de propor novas leis segundo sua fantasia, que esse direito pertencesse somente aos magistrados, que até eles o usassem com circunspecção, que o povo, por sua parte, mostrasse tanta reserva ao dar seu consentimento a essas leis, e sua promulgação só se pudesse fazer com tanta solenidade que, antes de ser a constituição destruída, contassem com tempo de se convencerem de que sobretudo a grande antiguidade das leis é que as torna santas e veneráveis, de que o povo logo despreza aquelas que vê mudar todos os dias e de que, habituando-se a menosprezar os usos antigos a pretexto de melhorá-los, frequentemente se introduzem grandes males para corrigir outros menores. Teria evitado, sobretudo, como necessariamente mal governada, uma república cujo povo, acreditando poder dispensar os magistrados ou conceder-lhes apenas uma autoridade precária, reservasse imprudentemente para si a administração dos negócios civis e a execução de suas próprias leis; tal deve ter sido a constituição grosseira dos primeiros governos imediatamente saídos do estado de natureza e tal foi ainda um dos vícios que puseram a perder a república de Atenas. Teria, porém, escolhido aquela na qual os particulares, contentando-se em dar sanção às leis e em decidir, enquanto corpo e segundo o parecer dos chefes, os mais importantes negócios públicos, estabelecessem tribunais respeitados; distinguissem com cuidado os vários departamentos; elegessem cada ano os mais capazes e os mais íntegros de seus concidadãos para administrar a justiça e governar o Estado, e na qual, assim prestando a virtude dos magistrados testemunho da sabedoria do povo, aqueles e este se honrassem mutuamente. De modo que, se algum dia funestos mal-entendidos viessem a turvar a tranquilidade pública, até esses tempos de cegueira e de erros se caracterizariam por provas de moderação, de estima recíproca e de um respeito comum pelas leis, que equivalem a prenúncios e garantias de uma reconciliação sincera e perpétua. Tais são, MAGNÍFICOS, HONRADÍSSIMOS E SOBERANOS SENHORES, as vantagens que eu procuraria na pátria que escolhesse para mim. Se a Providência lhe acrescentara uma localização encantadora, um clima temperado, uma terra fértil e a perspectiva mais deliciosa que existisse sob o céu, eu não desejaria, para rematar a minha felicidade, senão gozar todos esses bens no seio dessa pátria feliz, vivendo tranquilamente numa agradável sociedade com meus concidadãos, praticando com eles. e segundo seu exemplo, a humanidade, a amizade e todas as virtudes, e deixando após mim a honrada memória de um homem de bem e de um patriota honesto e virtuoso. Se, menos feliz ou muito tardiamente prudente, eu me visse reduzido a acabar em outros climas uma carreira insegura e fraca, lastimando inutilmente o repouso e a paz de que me privara uma juventude imprudente, pelo menos alimentaria em minha alma esses mesmos sentimentos que não poderia ter aproveitado em meu país, e, imbuído de uma terna e desinteressada afeição por meus concidadãos distantes, dirigir-lhes-ia, do fundo de meu coração, mais ou menos o seguinte discurso: "Meus caros concidadãos, ou antes, meus irmãos, uma vez que tanto os laços de sangue quanto as leis nos unem quase que a todos, é-me agradável não poder pensar em vós sem ao mesmo tempo pensar em todos os bens de que gozais e cujo valor talvez nenhum de vós alcança melhor do que eu, que os perdi. Quanto mais reflito sobre vossa situação política e civil, menos consigo imaginar que a natureza das coisas humanas possa comportar outra melhor. Em todos os demais governos, quando se trata de assegurar o maior bem do Estado, todas as coisas se limitam sempre a projetos de ideias ou, pelo menos, a simples possibilidades; em vosso caso, vossa felicidade é completa - basta somente usufruir dela - e, para vos tornardes bastante felizes, basta somente contentar-vos com sê-lo. Vossa soberania adquirida ou conquistada à ponta de espada e conservada, durante dois séculos, graças a vosso valor e sabedoria, é enfim plena e universalmente reconhecida. Tratados dignos fixam vossas fronteiras, asseguram vossos direitos e fortalecem vosso repouso. Vossa constituição é excelente, ditada pela mais sublime razão e garantida por potências amigas e respeitáveis; vosso Estado é tranquilo, não tendes nem guerras, nem conquistadores a temer, não conheceis outros senhores senão as sábias leis que fizestes, administradas por magistrados íntegros que são de vossa escolha; não sois nem suficientemente ricos para enlanguescer-vos com a preguiça e perder com delícias vãs o gosto da verdadeira felicidade e o das virtudes sólidas, nem tão pobres para necessitardes de socorro estrangeiro que vossa indústria não exige. E quase nada vos custa conservar essa liberdade preciosa, que só se alcança nas grandes nações com impostos exorbitantes. "Possa durar sempre, para a felicidade de seus cidadãos e exemplo dos povos, república tão sábia e felizmente constituída! Tal o único voto que vos falta fazer e o único cuidado que vos resta a tomar. E, só a vós, de agora em diante, caberá, não constituir vossa felicidade, pois vossos antepassados já vos pouparam esse trabalho, mas sim torná-la duradoura pela sabedoria que tiverdes de bem utilizar-vos dela. É da vossa união perpétua, de vossa obediência às leis, do respeito que tiverdes pelos seus ministros, que dependerá vossa conservação. Se subsistir entre vós o menor germe de amargor ou de desconfiança, apressai-vos em destruí-lo como um fermento funesto, do qual, cedo ou tarde, resultariam vossas infelicidades e a ruína do Estado. Conjuro-vos a que penetreis todos o fundo de vosso coração e consulteis a voz secreta de vossa consciência. Alguém dentre vós conhecerá no universo corpo mais íntegro, mais esclarecido, mais respeitável do que o de vossos magistrados? Todos os seus membros não vos dão o exemplo de moderação, de simplicidade de costumes, de respeito pelas leis e de reconciliação a mais sincera? Rendei, pois, sem reservas, a chefes tão sábios, esta confiança salutar que a razão deve à virtude; pensai que eles são de vossa escolha, que eles a justificam e que as honras, devidas àqueles que constituístes em dignitários, recaem necessariamente sobre vós mesmos. Nenhum de vós será pouco esclarecido a ponto de ignorar que, onde cessa o vigor das leis e a autoridade de seus defensores, não pode existir segurança ou liberdade para ninguém. De que se trata, pois, em vosso caso, senão de fazer, de boa vontade e com sincera confiança, o que sempre serieis obrigados afazer por um interesse verdadeiro, por dever e pela razão? Que uma culposa e funesta indiferença pela manutenção da constituição não vos leve jamais a desprezar, quando necessário, as opiniões sábias dos mais esclarecidos e dos mais zelosos dentre vós, mas que a equidade, a moderação, a mais respeitosa firmeza, continuem a regulamentar vossas decisões e a mostrar em vós, para todo o universo, o exemplo de um povo altivo e modesto, tão cioso de sua glória quanto de sua liberdade. Livrai-vos, sobretudo, e este será meu último conselho, de jamais ouvir interpretações sinistras e discursos envenenados, cujos motivos secretos são frequentemente mais perigosos do que as ações que representam seu objeto. Todas as casas despertam e se mantêm alarmadas aos primeiros sinais de um guarda fiel e bom, que só ladra quando se aproximam os ladrões, mas odeia-se o oportunismo desses animais barulhentos que incessantemente atrapalham o repouso público e cujos avisos contínuos e extemporâneos não se fazem sequer ouvidos quando necessários. E vós, MAGNÍFICOS E HONRADÍSSIMOS SENHORES, vós, dignos e respeitáveis magistrados de um povo livre, permiti-me particularmente oferecer-vos minhas homenagens e meus respeitos. Se houver, nesse mundo, posição propícia a honrar aqueles que a ocupam, será, sem dúvida, a atribuída pelo talento e pela virtude, aquela de que vos tornastes dignos e à qual fostes elevados pelos vossos concidadãos. Seu próprio mérito ainda acrescenta ao vosso um brilho novo e, escolhidos por homens capazes de governar outros, para a eles próprios governar, eu vos considero tão acima dos outros magistrados quanto um povo livre, principalmente o povo que tendes a honra de conduzir, fica, por suas luzes e por sua razão, acima da populaça dos outros Estados. Que me seja permitido citar um exemplo do qual deveriam restar vestígios mais firmes e que estará sempre presente no meu coração. Nunca deixo de lembrar-me, com a mais agradável emoção, da memória do virtuoso cidadão a quem devo a luz e que, frequentemente, alimentou minha infância com o respeito que vos era devido. Eu o vejo ainda vivendo do trabalho de suas mãos e alimentando sua alma com as mais sublimes verdades. Vejo Tácito, Plutarco e Grócio misturados, à sua frente, com os instrumentos do ofício. Vejo a seu lado um filho querido recebendo, com frutos bem parcos, as instruções ternas do melhor dos pais. Se os desvarios de uma juventude louca me fizeram, durante certo tempo, esquecer lições tão sábias, tenho a felicidade de, por fim, demonstrar que, ainda que se tenha alguma tendência para o vício, dificilmente ficará perdida para sempre uma educação na qual o coração estiver presente. Tais são, MAGNÍFICOS E HONRADÍSSIMOS SENHORES, os cidadãos e até os simples habitantes nascidos no Estado em que governais; tais são esses homens instruídos e sensatos dos quais, sob o nome de operários e de povo, se têm nas outras nações ideias tão baixas e falsas. Meu pai, confesso-o com alegria, não se distinguiria de modo algum entre seus concidadãos, não era mais do que todos eles eram, e, tal como era, não havia região em que o seu convívio não fosse procurado, cultivado, mesmo com proveito, pelas pessoas mais honestas. Não me cabe, e, graças ao céu, não tenho necessidade de falar-vos da consideração que podem esperar de vós homens dessa têmpera - vossos iguais tanto pela educação quanto pelos direitos da natureza e do nascimento, vossos inferiores por vontade própria -, pela preferência que devem a vosso mérito, que reconheceram, e pelo qual, por vossa vez, lhes deveis certo reconhecimento. Sei, com viva satisfação, com quanta doçura e condescendência temperais, para eles, a gravidade que convém aos ministros das leis, como lhes retribuis em estima e atenções o que vos devem em obediência e respeito: conduta cheia de justiça e de sabedoria, propícia a distanciar cada vez mais a memória dos acontecimentos infelizes, que é preciso esquecer para jamais rever; conduta ainda mais criteriosa na medida em que esse povo equitativo e generoso transforma seu dever num prazer, ama naturalmente respeitar-vos, e os mais ardentes em sustentar seus direitos são os mais inclinados a respeitar os vossos. Não surpreende que os chefes de uma sociedade civil prezem-lhe a glória e a felicidade; mas chega a inquietar os homens testemunharem que os que se consideram magistrados, ou antes, os senhores de uma pátria mais santa e mais sublime, demonstrem algum amor pela pátria terrestre que os alimenta. Como me é agradável poder abrir em nosso favor exceção tão rara e colocar, à altura de nossos melhores cidadãos, esses depositários zelosos dos dogmas sagrados autorizados pelas leis, esses veneráveis pastores de almas, cuja eloquência viva e agradável leva com mais facilidade ao coração as máximas do Evangelho, posto que sempre começam por praticá-las eles mesmos! Todo o mundo sabe com que sucesso a grande arte da tribuna é cultivada em Genebra. Mas, acostumados demais a ouvir dizer de um modo e ver agir de outro, poucas pessoas sabem até que ponto reinam entre nossos ministros o espírito do cristianismo, a santidade dos costumes, a severidade para consigo mesmo e a suavidade para com o próximo. Talvez caiba somente à cidade de Genebra mostrar o exemplo edificante de união tão perfeita numa sociedade de teólogos e de letrados; é, em grande parte, em sua sabedoria e sua moderação reconhecidas, em seu zelo pela prosperidade do Estado, que baseio a esperança de sua tranquilidade eterna, e noto, num misto de prazer, admiração e respeito, como têm horror pelas tremendas máximas daqueles homens sagrados e bárbaros de quem a história fornece mais de um exemplo, e que, para sustentar os pretensos direitos de Deus, isto é, seus interesses, eram tanto menos avaros do sangue humano quanto mais se jactavam de ser o seu sempre respeitado. Poderia esquecer essa preciosa metade da república que faz a felicidade da outra, e cuja doçura e sabedoria mantêm nesta a paz e as boas maneiras? Amáveis e virtuosas cidadãs, o destino de vosso sexo será sempre governar o nosso. Excelente vosso casto poder, quando, exercido unicamente na união conjugal, não se faz sentir senão em favor da glória do Estado e da felicidade pública! Assim as mulheres mandavam em Esparta e assim merecereis mandar em Genebra. Que homem bárbaro poderia resistir à voz da honra e da razão na boca de uma terna esposa? E quem não desprezaria o luxo vão, vendo vossa aparência simples e modesta que, pelo brilho que lhe advém de vós, parece ser a mais favorável à beleza? Cabe a vós manter sempre, por vosso império gentil e inocente e por vosso espírito insinuante, o amor das leis no Estado e a concórdia entre os cidadãos, e também reunir, por meio de casamentos felizes, as famílias divididas e sobretudo corrigir, por meio da doçura persuasiva de vossas lições e pelas graças modestas de vossa convivência, os defeitos que nossos jovens vão adquirir em outros países, de onde, em lugar de tantas coisas úteis, que lhes seriam proveitosas, só relatam, com tom pueril e ares ridículos adquiridos entre mulheres perdidas, a admiração por não sei que pretensas grandezas, frívolas compensações da servidão, que jamais valerão a augusta liberdade. Sede sempre, pois, o que sois: as castas guardiãs dos costumes e os doces liames da paz, e continuai a fazer valer, em todas as ocasiões, os direitos do coração e da natureza em proveito do dever e da virtude. Orgulho-me de não ter sido desmentido pelos acontecimentos, baseando em tais garantias a esperança da felicidade comum dos cidadãos e a glória da república. Confesso que, com todas essas vantagens, ela não brilhará com esse esplendor com o qual a maioria dos olhos se ofusca e cujo gosto pueril e funesto é o mais mortal inimigo da felicidade e da liberdade. Que uma juventude dissoluta vá procurar alhures os prazeres fáceis e arrependimentos profundos, que as pessoas de pretenso bom gosto admirem, em outros lugares, a grandeza dos palácios, a beleza das equipagens, os mobiliários soberbos, a pompa dos espetáculos e todos os refinamentos da ociosidade e do luxo - em Genebra só se encontrarão homens. Todavia, tal espetáculo tem certamente seu preço, e aqueles que o procurarem não valerão menos que os admiradores do resto. Dignai-vos, MAGNÍFICOS, HONRADÍSSIMOS E SOBERANOS SENHORES, receber, todos com a mesma bondade, os testemunhos respeitosos de interesse que tenho pela vossa prosperidade comum. Se fui bastante desastrado para ser culpado por qualquer transporte indiscreto nessa viva efusão de meu coração, suplico-vos que me perdoeis, levando em consideração a terna afeição de um verdadeiro patriota e o zelo ardente e legítimo de um homem que não almeja nenhuma felicidade maior, para si mesmo, do que vos ver a todos felizes. Sou, com o mais profundo respeito, MAGNÍFICOS, HONRADÍSSIMOS E SOBERANOS SENHORES, vosso humílimo e obedientíssimo servidor e concidadão J.-J. Rousseau Chambéry, 12 de junho de 1754. PREFÁCIO O mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem e ouso afirmar que a simples inscrição do templo de Delfos continha um preceito mais importante e mais difícil que todos os grossos livros dos moralistas. Considero, ainda, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor e, infelizmente para nós, como uma das mais espinhosas a que possam responder os filósofos, pois, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar a conhecer a eles mesmos? E como o homem chegará ao ponto de ver-se tal como o formou a natureza, através de todas as mudanças produzidas na sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas, e separar o que pertence à sua própria essência daquilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram a seu estado primitivo ou nele mudaram? Como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries tinham desfigurado de tal modo que se assemelhava mais a um animal feroz do que a um deus, a alma humana, alterada no seio da sociedade por milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão de conhecimentos e de erros, pelas mudanças que se dão na constituição dos corpos e pelo choque contínuo das paixões, por assim dizer mudou de aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível e, em lugar de um ser agindo sempre por princípios certos e invariáveis, em lugar dessa simplicidade celeste e majestosa com a qual seu autor a tinha marcado, não se encontra senão o contraste disforme entre a paixão que crê raciocinar e o entendimento delirante. O que há de mais cruel ainda é que, todos os progressos da espécie humana distanciando-a incessantemente de seu estado primitivo, quanto mais acumulamos novos conhecimentos, tanto mais afastamos os meios de adquirir o mais importante de todos: é que, num certo sentido, à força de estudar o homem, tornamo-nos incapazes de conhecê-lo. É fácil de ver que nessas mudanças sucessivas da constituição humana é que se deve procurar a origem primeira das diferenças que distinguem os homens, os quais, na opinião comum, são naturalmente tão iguais entre si quanto o eram os animais de cada espécie antes que várias causas físicas tivessem introduzido em algumas espécies as variedades que nelas notamos. Com efeito, não é concebível que essas primeiras mudanças, sejam quais forem os meios pelos quais se deram, tenham alterado, a um só tempo e da mesma maneira, todos os indivíduos da espécie; porém, tendo-se uns aperfeiçoado ou deteriorado e adquirido várias qualidades, boas ou más, que de modo algum eram inerentes à sua natureza, ficaram outros por mais longo tempo em seu estado original. Foi isso que determinou entre os homens a primeira fonte de desigualdade, que é mais fácil demonstrar assim em geral do que assinalar-lhe com precisão as verdadeiras causas. Que meus leitores não pensem que ouso iludir-me julgando ter visto o que me parece tão difícil de ser visto. Iniciei alguns raciocínios, arrisquei algumas conjeturas, antes com intenção de esclarecer e de reduzir a questão ao seu verdadeiro estado do que na esperança de resolvê-la. Outros poderão, desembaraçadamente, ir mais longe na mesma direção sem que para ninguém seja fácil chegar ao término pois não constitui empreendimento trivial separar o que há de original e de artificial na natureza atual do homem, e conhecer com exatidão um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e sobre o qual se tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente. Àquele que pretender determinar exatamente as precauções a serem tomadas para fazer sobre esse assunto observações sólidas, tornar-se-á mesmo necessário mais filosofia do que se pensa e não me pareceria indigna dos Aristóteles e dos Plínios de nosso século uma boa solução do seguinte problema: "Quais as experiências necessárias para chegar-se a conhecer o homem natural e quais os meios para fazer tais experiências no seio da sociedade?” Longe de tentar resolver esse problema, creio ter meditado bastante sobre o assunto para ousar de antemão responder que os maiores filósofos não serão suficientemente bons para dirigir essas experiências, nem os mais poderosos soberanos para fazê-las, não sendo razoável contar com tal concurso, sobretudo com a perseverança ou, antes, a sucessão de luzes e de boa vontade necessárias, tanto duma quanto doutra parte, para alcançar bom êxito. Essas pesquisas, tão difíceis de fazer-se e sobre as quais se pensou tão pouco até aqui, constituem todavia os únicos meios que nos restam para remover uma multidão de dificuldades, que nos ocultam o conhecimento dos fundamentos reais da sociedade humana. Essa ignorância da natureza do homem é que lança tanta incerteza e obscuridade sobre a definição verdadeira do direito natural, pois, como diz o Sr. Burlamaqui, a ideia do direito e, mais ainda, a do direito natural, são evidentemente ideias relativas à natureza do homem. É, pois, dessa mesma natureza - continua ele - de sua constituição e de seu estado, que se devem deduzir os princípios dessa ciência. Não é sem surpresa e sem escândalo que se nota a pequena concordância que reina sobre esse importante assunto entre os diversos autores que já trataram dele. Entre os escritores mais sérios, encontram-se com dificuldade dois que sejam da mesma opinião sobre esse ponto. Sem falar dos antigos filósofos, que parecem ter-se esforçado para se contradizer entre si sobre os princípios mais fundamentais, os jurisconsultos romanos submetem o homem e todos os outros animais à mesma lei natural, por atribuírem esse nome antes à lei, que a natureza impõe a si mesma, do que à que prescreve, ou melhor, por causa da acepção particular que esses jurisconsultos dão à palavra lei que, segundo parece, só empregaram, nessa ocasião, como expressão das relações gerais estabelecidas pela natureza entre todos os seres animados visando à sua conservação comum. Os modernos só reconhecem como lei uma regra prescrita a um ser moral, isto é, inteligente, livre e considerado nas suas relações com os demais seres, limitando consequentemente ao único animal dotado de razão, isto é, ao homem, a competência da lei natural; definindo, porém, esta lei cada um a seu modo, estabelecem tudo sobre princípios tão metafísicos que há, mesmo entre nós, muito poucas pessoas em situação de compreender esses princípios, em lugar de poderem encontrá-los por si mesmos. De forma que todas as definições desses homens sábios, aliás em perpétua contradição entre si, concordam unicamente quanto a ser impossível compreender a lei da natureza e, consequentemente, obedecê-la, sem ser grande pensador e profundo metafísico. Tal coisa significa, precisamente, que os homens tiveram de utilizar, para o estabelecimento da sociedade, luzes que só se desenvolvem com muito trabalho e para poucas pessoas, no próprio seio da sociedade. Conhecendo tão mal a natureza e concordando tão pouco quanto ao sentido da palavra lei, seria muito difícil convir numa boa definição da lei natural. Assim, todas as que encontramos nos livros, além do defeito de não serem uniformes, têm ainda o de serem extraídas de vários conhecimentos que os homens, em absoluto, não têm naturalmente, e de vantagens cuja ideia só podem ter depois de sair do estado de natureza. Começa-se por procurar regras sobre as quais, para proveito comum, conviria que os homens concordassem entre si, e depois dá-se o nome de lei natural à coleção dessas regras, sem outra prova além do bem que, segundo acham, resultaria de sua prática universal. Aí está certamente um meio muito cômodo de compor definições e explicar a natureza das coisas por conveniências arbitrárias. Enquanto, porém, não conhecermos homem natural, em vão desejaremos determinar a lei que ele recebeu ou aquela que melhor convém à sua constituição. Quanto podemos apreender bem claramente sobre o objeto dessa lei é que não somente é preciso, para ser lei, que a vontade daquele a que obriga possa submeter-se a ela com conhecimento, como, também, para ser natural, é preciso que se exprima imediatamente pela voz da natureza. Deixando de lado, pois, todos os livros científicos, que só nos ensinam a ver os homens como eles se fizeram, e meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana, creio nela perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa profundamente ao nosso bem-estar e à nossa conservação, e o outro nos inspira uma repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes. Do concurso e da combinação que nosso espírito seja capaz de fazer desses dois princípios, sem que seja necessário nela imiscuir o da sociabilidade, parecem-me decorrer todas as regras do direito natural, regras essas que a razão, depois, é forçada a restabelecer com outros fundamentos quando, por seus desenvolvimentos sucessivos, chega a ponto de sufocar a natureza. Desse modo, não se é mais obrigado afazer do homem um filósofo em lugar de fazê-lo um homem; seus deveres para com outrem não lhe são unicamente ditados pelas lições tardias de sabedoria e, enquanto resistir ao impulso interior natural da comiseração, jamais fará qualquer mal a outro homem, nem mesmo a um ser sensível, exceto no caso legítimo em que, encontrando-se em jogo sua conservação, é obrigado a dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam também as antigas disputas quanto à participação dos animais na lei natural, pois é claro que, desprovidos de luzes e de liberdade, não podem reconhecer tal lei. Mas, possuindo algo de nossa natureza, devido à sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devam também participar do direito natural e que o homem esteja obrigado para com eles a certos deveres. Parece, com efeito, que, se estou obrigado a não praticar qualquer mal para com meu semelhante, é menos por ser ele um ser razoável do que por ser um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, pelo menos deve dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro. Esse mesmo estudo do homem original, de suas verdadeiras necessidades e dos princípios fundamentais de seus deveres, representa ainda o único meio que se pode empregar para afastar essa multidão de dificuldades que se apresentam sobre a origem da desigualdade moral, sobre os verdadeiros fundamentos do corpo político, sobre os direitos recíprocos de seus membros e sobre inúmeras questões semelhantes, tão importantes quanto mal esclarecidas. Considerando a sociedade humana de modo calmo e desinteressado, a princípio ela só parece mostrar a violência dos homens poderosos e a opressão dos fracos; o espírito se revolta contra a dureza de uns ou é levado a deplorar a cegueira dos outros e - como nada é menos estável entre os homens do que essas relações exteriores produzidas mais frequentemente pelo acaso do que pela sabedoria, e que chamam de fraqueza ou poder, riqueza ou pobreza -, os estabelecimentos humanos parecem, à primeira vista, fundamentados em montões de areia movediça. Só quando os examinamos de perto, só quando removemos o pó e a areia que cobrem o edifício, percebemos a sólida base sobre a qual se ergue e se aprende a respeitar os seus fundamentos. Ora, sem o estudo sério do homem, de suas faculdades naturais e de seus desenvolvimentos sucessivos, jamais se chegará a fazer essas distinções e, no estado atual das coisas, separar o que a vontade divina fez daquilo que a arte humana pretendeu fazer. As pesquisas políticas e morais sugeridas pela importante questão que examino são, pois, de todos os modos úteis, e a história hipotética dos governos representa, para o homem, uma lição sob todos os aspectos instrutiva. Considerando aquilo em que nos teríamos tornado se tivéssemos sido abandonados a nós mesmos devemos aprender a bendizer aquele cuja mão benfazeja, corrigindo nossas instituições e dando-lhes uma posição estável preveniu as desordens que deveriam resultar delas e fez com que de nossa felicidade nascessem os meios que pareciam dever cumular nossa miséria. Quem te Deus esse Jussit, et humana qua parte locatus es in re, Disce. Pérsio, Sátiras. III. v. 71. DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS É DO HOMEM que devo falar e a questão que examino me diz que vou falar a homens pois não se propõem questões semelhantes quando se tem medo de honrar a verdade. Defenderei, pois, com confiança, a causa da humanidade perante os sábios que me convidam a fazê-lo e não ficarei descontente comigo mesmo se me tornar digno de meu assunto e de meus juízes. Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou pelo menos autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles. Não se pode perguntar qual a fonte da desigualdade natural, porque a resposta estaria enunciada na simples definição da palavra. Pode-se, ainda menos, procurar a existência de qualquer ligação essencial entre essas duas desigualdades, pois, em outras palavras, seria perguntar se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os que obedecem e se a força do corpo ou do espírito, a sabedoria e a virtude sempre se encontram, nos mesmos indivíduos, na proporção do poder ou da riqueza: tal seria uma boa questão para discutir entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a homens razoáveis e livres, que procuram a verdade. De que se trata, pois, precisamente neste Discurso? De assinalar, no progresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, submeteu-se a natureza à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real. Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram todos a necessidade de voltar até o estado de natureza, mas nenhum deles chegou até lá. Uns não hesitaram em supor, no homem, nesse estado, a noção do justo e do injusto, sem preocuparem-se com mostrar que ele deveria ter essa noção, nem que ela lhe fosse útil. Outros falaram do direito natural, que cada um tem, de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que entendiam por pertencer. Outros dando inicialmente ao mais forte autoridade sobre o mais fraco, logo fizeram nascer o Governo, sem se lembrarem do tempo que deveria decorrer antes que pudesse existir entre os homens o sentido das palavras autoridade e governo. Enfim, todos, falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportaram para o estado de natureza ideias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil. Não chegou mesmo a surgir, no espírito da maioria dos nossos, a dúvida quanto a ter existido o estado de natureza, conquanto seja evidente, pela leitura dos livros sagrados, que, tendo o primeiro homem recebido imediatamente de Deus as luzes e os preceitos, não se encontrava nem mesmo ele nesse estado e que, acrescentando aos escritos de Moisés a fé que lhe deve todo filósofo cristão, é preciso negar que, mesmo antes do dilúvio, os homens jamais se tenham encontrado no estado puro de natureza, a menos que não tenham tornado a cair nele por causa de qualquer acontecimento extraordinário - paradoxo bastante difícil de defender e completamente impossível de provar. Comecemos, pois, por afastar todos os fatos, pois eles não se prendem à questão. Não se devem considerar as pesquisas, em que se pode entrar neste assunto, como verdades históricas, mas somente como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem e semelhantes àquelas que, todos os dias, fazem nossos físicos sobre a formação do mundo. A religião nos ordena a crer que, tendo o próprio Deus tirado os homens do estado de natureza logo depois da criação, são eles desiguais por que assim o desejou; ela não nos proíbe, no entanto, de formar conjeturas extraídas unicamente da natureza do homem e dos seres que o circundam, acerca do que se teria transformado o gênero humano se fora abandonado a si mesmo. Eis o que me perguntam e o que me proponho a examinar neste Discurso. Interessando meu assunto ao homem em geral, esforçar-me-ei por empregar uma linguagem que convenha a todas as nações, ou melhor, esquecendo os tempos e os lugares para só pensar nos homens a quem falo, supor-me-ei no Liceu de Atenas, repetindo as lições de meus mestres, tendo os Platões e os Xenócrates como juízes e o gênero humano como ouvinte. Oh! Homem, de qualquer região que sejas, quaisquer que sejam tuas opiniões, ouve-me; eis tua história como acreditei tê-la lido não nos livros de teus semelhantes, que são mentirosos, mas na natureza que jamais mente. Tudo o que estiver nela será verdadeiro; só será falso aquilo que, sem o querer, tiver misturado de meu. Os tempos de que vou falar são muito distantes; como mudaste! É, por assim dizer, a vida de tua espécie que vou descrever de acordo com as qualidades que recebeste, e que tua educação e teus hábitos puderam falsear, mas que não puderam destruir. Há, eu sei, uma idade em que o homem individual gostaria de parar; de tua parte, procurarás a época na qual desejarias que tua espécie tivesse parado. Descontente com teu estado presente, por motivos que anunciam à tua infeliz posteridade maiores descontentamentos ainda, quem sabe gostarias de retrogradar. Tal desejo deve constituir o elogio de teus primeiros antepassados, a crítica de teus contemporâneos e o temor daqueles que tiverem a infelicidade de viver depois de ti. PRIMEIRA PARTE Por importante que seja, para bem julgar o estado natural do homem, considerá-lo desde sua origem e examiná-lo, por assim dizer, no primeiro embrião da espécie, não seguirei sua organização através de seus desenvolvimentos sucessivos; não me deterei procurando no sistema animal o que poderia ter sido inicialmente para ter-se tornado o que é. Não examinarei se, como pensava Aristóteles, suas unhas compridas não foram a princípio garras retorcidas, se era peludo como um urso e se, andando com quatro pés, seus olhares dirigidos para a terra e limitados a um horizonte de alguns passos não assinalavam, ao mesmo tempo, o caráter e os limites de suas ideias. Não poderei formular sobre esse assunto senão conjeturas vagas e quase imaginárias. A anatomia comparada progrediu muito pouco até hoje, as observações dos naturalistas ainda são muito incertas para que se possa, sobre tais fundamentos, estabelecer a base de um raciocínio sólido; assim, sem ter recorrido aos conhecimentos naturais que temos sobre esse ponto e sem levar em consideração as mudanças que se deram na conformação, tanto interior quanto exterior do homem, à medida que aplicava seus membros a novos usos e se nutria com novos alimentos, eu o suporei conformado em todos os tempos como o vejo hoje: andando sobre dois pés, utilizando suas mãos como o fazemos com as nossas, levando seu olhar a toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu. Despojando esse ser, assim constituído, de todos os dons sobrenaturais que ele pôde receber e de todas as faculdades artificiais que ele só pôde adquirir por meio de progressos muito longos, considerando-o, numa palavra, tal como deve ter saído das mãos da natureza, vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, em conjunto, organizado de modo mais vantajoso do que todos os demais. Vejo-o fartando-se sob um carvalho, refrigerando-se no primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto e, assim, satisfazendo a todas as suas necessidades. A terra abandonada à fertilidade natural e coberta por florestas imensas, que o machado jamais mutilou, oferece, a cada passo, provisões e abrigos aos animais de qualquer espécie. Os homens, dispersos em seu seio, observam, imitam sua indústria e, assim, elevam-se até o instinto dos animais, com a vantagem de que, se cada espécie não possui senão o seu próprio instinto, o homem, não tendo talvez nenhum que lhe pertença exclusivamente, apropria-se de todos, igualmente se nutre da maioria dos vários alimentos que os outros animais dividem entre si e, consequentemente, encontra sua subsistência mais facilmente do que qualquer deles poderá conseguir. Habituados, desde a infância, às intempéries da atmosfera e ao rigor das estações, experimentados na fadiga e forçados a defender, nus e sem armas, a vida e a prole contra as outras bestas ferozes ou a elas escapar correndo os homens adquirem um temperamento robusto e quase inalterável; os filhos, trazendo para o mundo a excelente constituição de seus pais e fortificando-a pelas mesmas atividades que a produziram, adquirem, desse modo, todo o vigor de que a espécie humana é capaz. A natureza faz com eles precisamente como a lei de Esparta com os filhos dos cidadãos; torna fortes e robustos aqueles que são bem constituídos e leva todos os outros a perecerem, sendo quanto a isso diferente de nossas sociedades, onde o Estado, tornando os filhos onerosos para os pais, mata-os indistintamente antes de seu nascimento. Sendo o corpo o único instrumento que o homem selvagem conhece, é por ele empregado de diversos modos, de que são incapazes, dada a falta de exercício, nossos corpos, e foi nossa indústria que nos privou da força e da agilidade que a necessidade obrigou o selvagem a adquirir. Se tivesse um machado, seu punho romperia galhos tão resistentes? Se tivesse uma funda, lançaria com a mão, com tanto vigor, uma pedra? Se possuísse uma escada, subiria a uma árvore tão ligeiramente? Se tivesse um cavalo, seria tão veloz na corrida? Dai ao homem civilizado o tempo de reunir todas essas máquinas à sua volta; não se poderá duvidar que, com isso, sobrepasse, com facilidade, o homem selvagem. Se quiserdes, porém, ver um combate mais desigual ainda, deixai-os nus e desarmados uns defronte dos outros, e logo reconhecereis qual a vantagem de sempre ter todas as forças à sua disposição, de sempre estar pronto para qualquer eventualidade e de transportar-se, por assim dizer, sempre todo inteiro consigo mesmo. Hobbes pretende que o homem é naturalmente intrépido e não procura senão atacar e combater. Um filósofo ilustre pensa o contrário, e Cumberland e Pufendorf asseguram também que nenhum ser é tão tímido quanto o homem em estado de natureza, e que ele está sempre tremendo e pronto a fugir ao menor ruído que o alcance, ao menor movimento que perceba. Tal coisa pode ser verdadeira em relação aos objetos que não conhece e não duvido que se atemorize com todos os novos espetáculos que se lhe oferecem, sempre que não pode distinguir o bem e o mal físicos que deles deva esperar, nem comparar suas forças com os perigos pelos quais deve passar - são circunstâncias raras no estado de natureza, no qual todas as coisas se desenvolvem de uma maneira tão uniforme e no qual a face da terra não está sujeita às mudanças bruscas e contínuas que determinam as paixões e a inconstância dos povos congregados. Mas o homem selvagem, vivendo disperso entre os animais e vendo-se desde cedo na iminência de medir forças com eles, logo fez a comparação e, verificando que mais os ultrapassa em habilidade do que eles o sobrepujam pela força, aprende a não mais temê-los. Colocai um urso ou um lobo em disputa com um selvagem robusto, ágil, corajoso como todos eles o são, armado de pedra e de um bom bastão, e vereis que o perigo será, no mínimo, recíproco e que, depois de várias experiências semelhantes, as bestas ferozes, que não gostam de atacar-se mutuamente, com pouca vontade atacarão o homem, pois já verificaram ser tão feroz quanto elas. Em relação aos animais que têm realmente força maior do que a destreza do homem, este encontra-se no caso das demais espécies mais fracas, que não deixam de subsistir; o homem contando ainda com a vantagem de, não menos disposto do que os animais à caminhada e encontrando nas árvores um refúgio quase seguro, dispor sempre da aceitação ou recusa do embate, e da escolha entre a fuga ou o combate. Acrescentemos que, segundo parece, nenhum animal guerreia naturalmente com o homem, a não ser no caso de sua própria defesa ou de uma fome extrema, nem lhe testemunha essas antipatias violentas, que parecem anunciar ser uma espécie destinada pela natureza a servir de pasto a outra. Aí estão, sem dúvida, os motivos pelos quais os negros e os selvagens dão tão pouca importância aos animais ferozes que possam encontrar nos bosques. Os caraíbas da Venezuela, entre outros, vivem, a esse respeito, na mais profunda segurança e sem o menor inconveniente. Embora vivam quase nus, diz François Correal, não deixam de corajosamente expor-se nas matas, armados unicamente de flecha e arco. Jamais se ouviu falar, no entanto, que alguns deles tenham sido devorados pelos animais. Outros inimigos, mais temíveis e em face dos quais o homem não conta com os mesmos meios para defender-se, são as enfermidades naturais, a infância, a velhice e as doenças de toda espécie; sinais muito tristes de nossa fraqueza, os dois primeiros são comuns a todos os animais e o último pertence principalmente ao homem que vive em sociedade. Observo até, em relação à infância, que, levando a mãe consigo o filho para todos os lugares, tem muito mais facilidade para alimentá-lo do que as fêmeas de inúmeros animais que são forçadas, continuamente e com muita fadiga, a ir e vir, de um lado para outro para procurar pasto e, de outro, para amamentar e nutrir seus filhotes. É verdade que, se a mulher morre, o filho corre grande risco de perecer com ela. Esse perigo, porém, é comum a muitas outras espécies, nas quais os menores, durante algum tempo, não são capazes de procurar por si mesmos a alimentação e, se a infância é mais longa entre nós, a vida sendo mais longa também, neste ponto tudo é quase igual, havendo não obstante sobre a duração da primeira idade e sobre o número das crianças outras regras que não se prendem ao meu assunto. Entre os velhos, que agem e transpiram pouco, a necessidade de alimentos diminui com a faculdade de atendê-la e, como a vida selvagem distancia deles os reumatismos e a gota, e como a velhice, entre todos os males, é aquele que o socorro humano menos pode aliviar, extinguem-se um dia, sem que nos apercebamos que deixaram de viver e quase sem que eles mesmos percebam. Quanto às doenças, não repetirei as declamações inúteis e falsas que faz contra a medicina a maioria das pessoas de boa saúde, mas perguntarei se há uma observação sólida da qual se possa concluir que, no país em que essa arte é mais descuidada, a vida do homem seja mais breve do que naqueles em que a cultivam com o maior dos cuidados. E como poderia acontecer, se nós nos causamos males mais numerosos do que os remédios que a medicina pode nos fornecer? A extrema desigualdade na maneira de viver; o excesso de ociosidade de uns; o excesso de trabalho de outros; a facilidade de irritar e de satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade; os alimentos muito rebuscados dos ricos, que os nutrem com sucos abrasadores e que determinam tantas indigestões; a má alimentação dos pobres, que frequentemente lhes falta e cuja carência faz que sobrecarreguem, quando possível, avidamente seu estômago; as vigílias, os excessos de toda sorte; os transportes imoderados de todas as paixões; as fadigas e o esgotamento do espírito, as tristezas e os trabalhos sem-número pelos quais se passa em todos os estados e pelos quais as almas são perpetuamente corroídas - são, todos, indícios funestos de que a maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado. Quando se pensa na constituição dos selvagens, pelo menos daqueles que não estragamos com nossos licores fortes, quando se sabe que eles quase não conhecem outras doenças senão as feridas e a velhice, fica-se bastante inclinado a crer que com facilidade se faria a história das doenças humanas seguindo a das sociedades civis. Pelo menos é a opinião de Platão que, de acordo com alguns remédios empregados ou aprovados por Podalírio e Macaão no cerco de Tróia, acha não serem ainda conhecidas entre os homens várias doenças que esses remédios deveriam excitar, e Celso conta que a dieta, hoje tão necessária, só foi inventada por Hipócrates. Com tão poucas fontes de males, o homem, no estado de natureza, não sente, pois, necessidade de remédios e, menos ainda, de médicos; a espécie humana não está, pois, a esse respeito, em condições piores do que todas as outras e é fácil perguntar aos caçadores se, nas suas caminhadas, encontram muitos animais enfermos. Muitos encontraram animais que apresentavam ferimentos enormes muito bem cicatrizados, que tiveram ossos e até membros quebrados e reconstituídos sem outro cirurgião além do tempo, sem outro regime além de sua vida comum e que não deixaram de curar-se perfeitamente por não serem atormentados por incisões, envenenados por drogas e extenuados por jejuns. Finalmente, por mais útil que possa ser entre nós a medicina bem administrada, será sempre certo que o selvagem doente, abandonado a si mesmo, nada espera senão da natureza e, em compensação, nada deve temer senão o seu mal, o que frequentemente torna sua situação preferível à nossa. Evitemos, pois, confundir o homem selvagem com os homens que temos diante dos olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a seus cuidados com uma predileção com que parece querer mostrar quanto é ciosa desse direito. O cavalo, o gato, o touro, o próprio asno têm, na maioria, uma estatura mais alta, e todos uma constituição mais robusta, mais vigor, força e coragem quando nas florestas do que em nossas casas; perdem a metade dessas vantagens tornando-se domésticos e poder-se-ia dizer que todos os nossos cuidados para tratar bem e alimentar esses animais só conseguem degenerá-los. Acontece o mesmo com o próprio homem. Tornando-se sociável e escravo, torna-se fraco, medroso e subserviente, e sua maneira de viver frouxa e afeminada, acaba por debilitar ao mesmo tempo sua força e sua coragem. Acrescentemos que, entre a condição selvagem e a doméstica, a diferença de homem para homem deverá ser ainda maior do que a existente de animal para animal, pois sendo o animal e o homem tratados igualmente pela natureza, todas as comodidades que o homem a si mesmo oferece, mas não aos animais, são outras tantas causas particulares que fazem com que mais perceptivelmente degenere. Não constituem, pois, para esses primeiros homens, nem tão grande mal, nem, sobretudo, tão grande obstáculo à sua conservação, a nudez, a falta de moradia e a privação de todas as inutilidades que consideramos tão necessárias. Se não têm a pele peluda, de modo algum disso necessitam nas regiões quentes e, nas frias, desde logo sabem apropriar-se da dos animais que dominaram; se só têm dois pés para correr, têm dois braços para atender à sua defesa e às suas necessidades. Seus filhos talvez andem tardiamente e com dificuldade, mas as mães os carregam com facilidade, o que constitui uma vantagem, que falta às demais espécies, nas quais, ao ser a mãe perseguida, vê-se obrigada a abandonar seus filhotes ou a regular seus passos pelos deles. Finalmente, a menos que se suponham esses singulares e fortuitos concursos de circunstâncias dos quais falarei em seguida e que poderiam muito bem jamais ter acontecido, é claro e sem contestação possível que o primeiro a arranjar vestes e uma habitação ofereceu a si mesmo, desse modo, coisas pouco necessárias, pois tinha passado até então sem elas e também por não se poder imaginar como não poderia ele suportar, feito homem, um gênero de vida em que vivia desde a infância. Só, desocupado e sempre próximo do perigo, o homem selvagem deve gostar de dormir e ter o sono leve, como os animais que, pensando pouco, dormem, por assim dizer, todo o tempo em que não estão pensando. Constituindo a própria conservação quase sua única preocupação, as faculdades mais exercitadas deverão ser aquelas cujo objetivo principal seja o ataque e a defesa, quer para subjugar a presa, quer para defender-se de tornar-se a de outro animal; os órgãos que só se aperfeiçoam pela lassidão e pela sensualidade devem, ao contrário, permanecer num estado de grosseria que deles excluirá qualquer delicadeza; ficando seus sentidos, nessa direção, divididos, terá o tato e o gosto de uma rudez extrema, e a vista, a audição e o olfato de uma enorme sutileza. E esse o estado animal em geral e também, de acordo com os relatos dos viajantes, o da maioria dos povos selvagens. Eis por que não devemos espantar-nos com o fato de os hotentotes do cabo da Boa Esperança descobrirem navios em alto mar a olho nu tão longe quanto os holandeses os divisam com óculos, nem, por igual, que os selvagens da América sintam os espanhóis no seu encalço como o poderiam fazer os melhores cães, nem, também, que todas essas nações bárbaras suportem sem sacrifício sua nudez, agucem seu paladar com pimenta e bebam licores europeus como água. Até aqui levei em consideração somente o homem físico; esforcemo-nos por encará-lo, agora, em seu aspecto metafísico e moral. Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade, razão por que o animal não pode desviar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, frequentemente se afasta dela. Assim, um pombo morreria de fome perto de um prato cheio das melhores carnes e um gato sobre um monte de frutas ou de sementes, embora tanto um quanto outro pudessem alimentar-se muito bem com o alimento que desdenham, se fosse atilado para tentá-lo; assim, os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes causam febre e morte, porque o espírito deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se cala. Todo animal tem ideias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas ideias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. Alguns filósofos chegaram mesmo a afirmar que existe maior diferença entre um homem e outro do que entre certo homem e certa besta. Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritual idade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica. Mas, ainda quando as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre diferença entre o homem e o animal, haveria outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação - é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares. Por que só o homem é suscetível de tornar-se imbecil? Não será porque volta, assim, ao seu estado primitivo e - enquanto a besta, que nada adquiriu e também nada tem de bom a perder, fica sempre com seu instinto - o homem, tornando a perder, pela velhice ou por outros acidentes, tudo o que sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, volta a cair, desse modo, mais baixo do que a própria besta? Seria triste para nós, vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males do homem; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original na qual passaria dias tranquilos e inocentes; que seja ela que, fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza. Seria horrível ter de louvar como um ser benfeitor o primeiro a sugerir aos habitantes das margens do Orinoco o uso dessas tabuazinhas que aplicam nas têmporas de seus filhos e que, pelo menos, lhes asseguram uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original. O homem selvagem, abandonado pela natureza unicamente ao instinto, ou ainda, talvez, compensado do que lhe falta por faculdades capazes de a princípio supri-lo e depois elevá-lo muito acima disso, começará, pois, pelas funções puramente animais. Perceber e sentir será seu primeiro estado, que terá em comum com todos os outros animais; querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase as únicas operações de sua alma, até que novas circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos. Apesar do que dizem os moralistas, o entendimento humano muito deve às paixões, que, segundo uma opinião geral, lhe devem também muito. É pela sua atividade que nossa razão se aperfeiçoa; só procuramos conhecer porque desejamos usufruir e é impossível conceber por que aquele, que não tem desejos ou temores, dar-se-ia a pena de raciocinar. As paixões, por sua vez, encontram sua origem em nossas necessidades e seu progresso em nossos conhecimentos, pois só se pode desejar ou temer as coisas segundo as ideias que delas se possa fazer ou pelo simples impulso da natureza; o homem selvagem, privado de toda espécie de luzes, só experimenta as paixões desta última espécie, não ultrapassando, pois, seus desejos a suas necessidades físicas. Os únicos bens que conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme, a dor e a fome. Digo a dor e não a morte, pois jamais o animal saberá o que é morrer, sendo o conhecimento da morte e de seus terrores uma das primeiras aquisições feitas pelo homem ao distanciar-se da condição animal. Ser-me-ia fácil, caso fosse necessário, apoiar essas opiniões em fatos e fazer ver que, em todas as nações do mundo, os progressos do espírito se proporcionaram precisamente segundo as necessidades que os povos receberam da natureza ou aquelas às quais as circunstâncias os obrigaram e, consequentemente, as paixões que os levavam a atender às suas necessidades. Mostraria, no Egito, as artes nascendo e espalhando-se segundo o transbordamento do Nilo; acompanharia seu progresso entre os gregos, onde as viram germinar, crescer e elevar-se até os céus entre as areias e os rochedos da Ática, sem poder lançar raízes nas bordas férteis do Eurota; observaria que em geral os povos do norte são mais industriosos do que os do sul por menos poderem se privar disso, como se a natureza quisesse assim igualar as coisas, conferindo aos espíritos a fertilidade que recusa à terra. Mas, sem recorrer aos testemunhos incertos da história, quem não verá que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de deixar de ser selvagem? Sua imaginação nada lhe descreve, o coração nada lhe pede. Suas módicas necessidades encontram-se com tanta facilidade ao alcance da mão e encontra-se ele tão longe do grau de conhecimento necessário para desejar alcançar outras maiores que não pode ter nem previdência, nem curiosidade. O espetáculo da natureza, por muito familiar, torna-se-lhe indiferente; é sempre a mesma ordem, são sempre as mesmas revoluções; não possui espírito para espantar-se com as maiores maravilhas e não é nele que se deve procurar a filosofia de que o homem tem necessidade para saber observar por uma vez o que sempre viu. Sua alma, que nada agita, entrega-se unicamente ao sentimento da existência atual sem qualquer ideia do futuro, ainda que próximo, e seus projetos, limitados como suas vistas, dificilmente se estendem até o fim do dia. É esse, ainda hoje, o grau de previdência dos caraíbas: de manhã vende o colchão de algodão e de tarde chora, querendo readquiri-lo, por não ter previsto que na noite seguinte necessitaria dele. Quanto mais se medita sobre esse assunto tanto mais aumenta, aos nossos olhos, a distância entre as puras sensações e os mais simples conhecimentos, sendo impossível conceber-se como um homem teria podido, unicamente por suas forças, sem o auxílio da comunicação e sem a premência da necessidade, vencer intervalo tão grande. Quantos séculos talvez tenham decorrido antes de chegarem os homens à altura de ver outro fogo que não o do céu! Quantos acasos não lhes foram necessários para aprender os usos mais comuns desse elemento! Quantas vezes não deixaram que ele se extinguisse antes de ter adquirido a arte de reproduzi-lo! E quantas vezes, talvez, cada um desses segredos não morreu com aquele que o descobrira! Que diremos da agricultura, arte que exige tanto trabalho e previdência, que se liga a tantas outras artes, que evidentemente só pode ser praticada numa sociedade pelo menos em início e que não nos serve tanto para extrair da terra os alimentos que forneceria sem a sua prática quanto para forçá-la às preferências que são mais de nosso gosto? Suponhamos, porém, que os homens se tivessem multiplicado de tal modo que as produções da natureza não fossem mais suficientes para alimentá-los, suposição que, digamos de passagem, indicaria à espécie humana uma grande vantagem nessa maneira de viver; suponhamos que, sem forjas e sem oficinas, os instrumentos agrícolas tivessem caído do céu nas mãos dos selvagens, que esses homens tivessem vencido o ódio mortal que todos têm por um trabalho contínuo, que tivessem aprendido primeiramente a bem prever suas necessidades, que tivessem adivinhado como se deve cultivar a terra, semear as sementes e plantar as árvores, que tivessem encontrado a arte de moer o trigo e de fazer com que a uva fermentasse, enfim, todas as coisas que preciso fora que os deuses lhes ensinassem por não se poder conceber como as poderiam prender por si mesmos - qual seria, depois disso, o homem suficientemente insensato para atormentar-se com a cultura de um campo de que o despojaria o primeiro a chegar, fosse indiferentemente homem ou besta, e a quem conviesse essa colheita? E como poderia cada um resolver-se a passar sua vida num trabalho penoso, cujo prêmio tem tanto mais certeza de não recolher quanto de ser-lhe muitíssimo necessário? Em uma palavra, como poderia essa situação levar os homens a cultivarem a terra enquanto não fosse dividida entre eles, isto é, enquanto não estivesse suprimido o estado de natureza? Quando quiséssemos supor um homem selvagem tão hábil na arte de pensar quanto o dizem os filósofos, quando dele fizéssemos, segundo o exemplo destes, um filósofo, a descobrir por si só as mais sublimes verdades, a construir, graças a conjuntos de raciocínios muito abstratos, máximas de justiça e de razão extraídas do amor à ordem em geral ou da vontade conhecida de seu Criador; em uma palavra, quando supuséssemos em seu espírito o quanto de inteligência e de luzes que devera ter e que, na realidade, só se encontra nele de lentidão e estupidez, que utilidade a espécie tiraria de toda essa metafísica impossível de ser comunicada e destinada a perecer com o indivíduo que a tivesse inventado? Que progresso poderia conhecer o gênero humano esparso nas florestas entre os animais? E até que ponto poderiam aperfeiçoar-se e esclarecerem-se mutuamente homens que, não tendo domicílio fixo nem necessidade uns dos outros, se encontrariam talvez, somente duas vezes na vida, sem se conhecer e sem se falar? Lembre-se de quantas ideias devemos ao uso da palavra; como a gramática exercita e facilita as operações do espírito; pense-se nos trabalhos inimagináveis e no tempo infinito que custou a primeira invenção das línguas; juntem essas reflexões às precedentes e ter-se-á ideia de como foram precisos milhares de anos para sucessivamente desenvolverem-se no espírito humano as operações de que era capaz. Que me seja permitido examinar, por um instante, as dificuldades relativas à origem das línguas. Poderia contentar-me em citar ou repetir aqui as pesquisas do Sr. Padre de Condillac sobre esse assunto, as quais, todas, confirmam inteiramente minha opinião e talvez me tenham sugerido a primeira ideia. Mas, de acordo com o modo pelo qual esse filósofo resolve as dificuldades, que apresenta a si mesmo, sobre a origem dos sinais instituídos, mostrando dar por suposto o que coloco como problema - a saber: uma espécie de sociedade já estabelecida entre os inventores da língua -, creio, voltando às suas reflexões, dever juntar-lhes as minhas, para expor as mesmas dificuldades à luz mais conveniente a meu assunto. A primeira que se apresenta será imaginar como elas puderam tornar-se necessárias, pois, não tendo os homens qualquer correspondência entre si, nem necessidade alguma de tê-la, não se conceberia nem a necessidade dessa invenção nem a sua possibilidade se não fora indispensável. Diria, como muitos outros, que as línguas nasceram no comércio doméstico dos pais, das mães e dos filhos, mas, além de tal coisa não resolver as objeções, seria cometer a falta daqueles que, raciocinando sobre o estado de natureza, transportam para ele as ideias pertencentes à sociedade e veem sempre a família reunida numa mesma habitação e seus membros guardando entre si uma união tão íntima e permanente quanto entre nós, onde tantos interesses comuns os reúnem, enquanto que, nesse estado primitivo, não tendo nem casas, nem cabanas, nem propriedades de qualquer espécie, cada um se abrigava em qualquer lugar e, frequentemente, por uma única noite: os machos e as fêmeas uniam-se fortuitamente segundo o acaso, a ocasião e o desejo, sem que a palavra fosse um intérprete necessário das coisas que tinham a dizer-se, e separavam-se com a mesma facilidade. A mãe a princípio aleitava seus filhos devido à sua própria necessidade; depois, tendo o hábito lhos tornado caros, alimentava-os por causa da necessidade deles. Os filhos, assim que tinham forças para procurar pasto, não tardavam a abandonar a própria mãe e, como quase não havia outro meio de encontrarem-se senão o de não se perderem de vista, logo se encontravam em situação de nem sequer se reconhecerem uns aos outros. Notai, ainda, que, tendo o filho todas as suas necessidades para exprimir e, consequentemente, mais coisas para dizer à mãe do que esta ao filho, deveu fazer os maiores esforços de invenção e a língua empregada por ele devera ser, em grande parte, obra sua - o que multiplica as línguas em tantas quantos indivíduos houver para falá-las, contribuindo ainda para tanto a vida errante e vagabunda que não dá tempo a que nenhum idioma adquira consistência. Dizer que a mãe dita ao filho as palavras de que deverá servir-se para pedir-lhe isto ou aquilo mostra bem como se ensinam as línguas, mas nada adianta quanto à sua formação. Suponhamos essa primeira dificuldade vencida; transponhamos, por um momento, o espaço imenso que, com certeza, existiu entre o estado puro de natureza e a necessidade de línguas, e procuremos, supondo-as necessárias, como puderam elas começar a estabelecer-se. Nova dificuldade, pior ainda do que a precedente, pois, se os homens tiveram necessidade da palavra para aprender a pensar, tiveram muito mais necessidade ainda de saber pensar para encontrar a arte da palavra e, quando se chegasse a compreender como os sons da voz foram tomados como intérpretes convencionais de nossas ideias, ainda restaria por saber quais puderam ser os intérpretes dessa convenção para aquelas ideias que, não tendo de modo algum um objeto sensível, não se poderiam indicar nem pelo gesto, nem pela voz. Isso faz com que somente possamos formar conjeturas toleráveis sobre o nascimento dessa arte de comunicar os pensamentos e de estabelecer um comércio entre os espíritos, arte sublime que já está tão longe de sua origem, mas que o filósofo ainda vê a uma distância tão grande de sua perfeição que, absolutamente, não há homem bastante ousado para assegurar que um dia a alcançaria, desde que as revoluções, que o tempo necessariamente traz, se detivessem em seu proveito, os preconceitos abandonassem as academias ou se calassem diante delas, e estas pudessem, durante séculos inteiros sem interrupção, ocupar-se desse assunto espinhoso. A primeira língua do homem, a língua mais universal, a mais enérgica e a única de que se necessitou antes de precisar-se persuadir homens reunidos, é o grito da natureza. Como esse grito só era proferido por uma espécie de instinto nas ocasiões mais prementes, para implorar socorro nos grandes perigos ou alívio nas dores violentas, não era de muito uso no curso comum da vida, onde reinam sentimentos mais moderados. Quando as ideias dos homens começaram a estender-se e a multiplicar-se, e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais íntima, procuraram sinais mais numerosos e uma língua mais extensa; multiplicaram as inflexões de voz e juntaram-lhes gestos que, por sua natureza, são mais expressivos e cujo sentido depende menos de uma determinação anterior. Exprimiram, pois, os objetos visíveis e móveis graças a gestos, e aqueles que atingem a audição, graças a sons imitativos; mas, como o gesto só indica os objetos presentes ou fáceis de serem descritos e as ações visíveis, como o gesto não é de uso universal, porquanto a obscuridade ou a interposição de um corpo o torna inútil, e como o gesto mais exige do que excita a atenção, resolveram então substituí-lo pelas articulações da voz que, sem ter a mesma relação com certas ideias, são mais apropriadas a representá-las como sinais instituídos. Tal substituição só pôde fazer-se com o consentimento comum e de maneira bastante difícil para ser praticada por homens cujos órgãos grosseiros não possuíam ainda qualquer exercício, sendo essa substituição mais difícil de conceber-se em si mesma, posto que aquele acordo unânime teve que ser motivado e a palavra parece ter sido muito necessária para estabelecer-se o uso da palavra. Deve-se acreditar que as primeiras palavras utilizadas pelos homens tiveram em seu espírito significação muito mais extensa do que aquela que possuem nas línguas já formadas e que, ignorando a divisão do discurso em suas partes constitutivas, os homens, a princípio, deram a cada palavra o sentido de uma proposição inteira. Quando começaram a distinguir o sujeito do atributo e o verbo do substantivo, o que não representou pequeno esforço de espírito, os substantivos não foram de início senão outros tantos nomes próprios, o presente do infinito foi o único tempo dos verbos, e, quanto aos adjetivos, a noção só se desenvolveu com muita dificuldade, visto que todo adjetivo é uma palavra abstrata e as abstrações, operações penosas e pouco naturais. Cada objeto, a princípio, recebeu um nome particular, sem levar em consideração os gêneros e as espécies, que esses primeiros instituidores não estavam em condições de distinguir - todos os indivíduos se apresentaram isolados a seu espírito como o são no quadro da natureza. Se um carvalho se chamava A, um outro chamava-se B, pois a primeira ideia que se tem de duas coisas é que não são a mesma coisa e, frequentemente, necessita-se de muito tempo para observar o que possuem de comum; eis como quanto mais se limitavam os conhecimentos mais extenso se tornava o dicionário. A confusão de toda esta nomenclatura não pôde resolver-se com facilidade, pois, para classificar os seres sob denominações comuns e genéricas, precisava-se conhecer as propriedades e as diferenças, eram necessárias observações e definições, isto é, a história natural e a metafísica, muito mais do que aquilo com que os homens desse tempo poderiam contar. Aliás, as ideias gerais só podem introduzir-se no espírito com o auxílio das palavras e o entendimento só as aprende por via de proposições. É essa uma das razões pelas quais não poderão os animais formar tais ideias, nem jamais adquirirem a perfectibilidade que depende delas. Quando um macaco vai, sem hesitar, de uma a outra noz, imaginar-se-á que tenha a ideia geral dessa espécie de fruto e que compare seu arquétipo com esses dois indivíduos? Não, está claro; mas a visão de uma dessas nozes faz com que surjam na sua memória as sensações que recebeu da outra, e seus olhos, modificados de certa maneira, anunciam ao seu paladar a modificação por que passará. Toda ideia geral é puramente intelectual e, por pouco que a imaginação nela se imiscua, a ideia logo se torna particular. Tentai traçar-vos a imagem de uma árvore em geral e jamais conseguireis; mesmo que não o queirais, será preciso vê-la pequena ou grande, pouco densa ou copada, clara ou escura, e, se dependesse de vós nela não ver senão o que se encontra em todas as árvores, essa imagem já não se pareceria com uma árvore. Os seres puramente abstratos são assim vistos ou só se concebem pelo discurso. Basta a definição do triângulo para dar-vos a ideia verdadeira; assim que figurardes um deles em vosso espírito, será um determinado triângulo e não qualquer outro, e não podereis evitar tornar as linhas sensíveis ou o plano colorido. Precisa-se, portanto, enunciar proposições, falar para ter ideias gerais, pois, assim que a imaginação para, o espírito só se movimenta à custa do discurso. Se os primeiros inventores, por isso, não puderam dar nomes senão às ideias que já tinham, conclui-se que os primeiros substantivos nunca puderam ser senão nomes próprios. Mas quando, por meios que não conheço, nossos novos gramáticos começaram a estender suas ideias e a generalizar suas palavras, a ignorância dos inventores obrigou esse método a sujeitar-se a limites muito estreitos e como, a princípio, eles tinham multiplicado demasiado os nomes dos indivíduos por não conhecerem seus gêneros e espécies, demarcaram, depois, muito poucas espécies e gêneros, por não terem considerado nos seres todas as suas diferenças. Para levar as divisões bastante longe, necessitar-se-iam mais experiências e luzes do que ele poderia possuir, e mais pesquisas e trabalhos do que desejaria realizar. Ora, se, mesmo hoje, se descobrem cada dia novas espécies que até aqui tinham escapado a todas as nossas observações, pode-se imaginar como escaparam a homens que só julgavam as coisas pelo seu primeiro aspecto. Quanto às classes primitivas e às noções mais generalizadas, é supérfluo acrescentar que deveriam ainda escapar-lhes. Como teriam podido, por exemplo, imaginar ou compreender as palavras matéria, espírito, substância, moda, figura, movimento, uma vez que nossos filósofos, que há tanto tempo se utilizam delas, demonstram grande dificuldade para entendê-las, e as ideias relativas a tais palavras, sendo puramente metafísicas, não se poderiam encontrar delas qualquer modelo na natureza? Detenho-me nestes primeiros passos e peço a meus juízes que suspendam aqui a leitura para refletir, partindo da invenção unicamente dos substantivos físicos, isto é, da parte da língua mais fácil de encontrar, sobre o caminho que falta fazer para exprimir todos os pensamentos dos homens, para tomar uma forma constante, para poder ser falada em público e influir na sociedade. Peço-lhes que reflitam como foram necessários tempo e conhecimentos para encontrar os números, as palavras abstratas, os aoristos e todos os tempos dos verbos, as partículas, a sintaxe, ligar as proposições, os raciocínios, e formar toda a lógica do discurso. Quanto a mim, atemorizado com as dificuldades que se multiplicam e convencido da impossibilidade quase demonstrada de terem podido as línguas nascer e estabelecer-se por meios puramente humanos, deixo, a quem o desejar, empreender a discussão desse problema difícil de saber o que foi mais necessário - a sociedade já organizada quando se instituíram as línguas, ou as línguas já inventadas quando se estabeleceu a sociedade. Quaisquer que sejam tais origens, vê-se, pelo menos, o pouco cuidado que teve a natureza ao reunir os homens por meio de necessidades mútuas e ao facilitar-lhes o uso da palavra, como preparou mal sua sociabilidade e como pôs pouco de si mesma em tudo que fizeram para estabelecer os seus laços. Com efeito, é impossível imaginar por que, nesse estado primitivo, um homem sentiria mais necessidade de outro homem do que um macaco ou um lobo de seu semelhante; ou ainda - uma vez supondo-se essa necessidade -, qual o motivo que poderia levar o outro a atendê-lo; ou, finalmente, neste último caso, como poderiam estabelecer condições entre si. Sei que incessantemente nos repetem que nada teria sido tão miserável quanto o homem nesse estado; e, se é verdade, como creio tê-lo provado, que só depois de muitos séculos poderia sentir ele o desejo e a oportunidade de sair dessa condição, tal acusação fora de fazer-se à natureza e não àquele assim constituído por ela. Mas, se compreendo bem o termo miserável, é ele uma palavra sem sentido algum ou que só significa uma privação dolorosa e sofrimento do corpo ou da alma. Ora, desejaria que me explicassem qual poderia ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o corpo com saúde. Pergunto qual das duas - a vida civil ou a natural - é mais suscetível de tornar-se insuportável àqueles que a fruem. À nossa volta, vemos quase somente pessoas que se lamentam de sua existência, inúmeras até que dela se privam assim que podem, e o conjunto das leis divinas e humanas mal basta para deter essa desordem. Pergunto se algum dia se ouviu dizer que um selvagem em liberdade pensou em lamentar-se da vida e em querer morrer. Que se julgue, pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira miséria. Pelo contrário, nada seria tão miserável quanto um selvagem ofuscado por luzes, atormentado por paixões e raciocinando sobre um estado diferente do seu. Deveu-se a uma providência bastante sábia o fato de as faculdades, que ele apenas possuía potencialmente, só poderem desenvolver-se nas ocasiões de se exercerem, a fim de que não se tornassem supérfluas e onerosas antes do tempo, nem tardias e inúteis ao aparecer a necessidade. O homem encontrava unicamente no instinto todo o necessário para viver no estado de natureza; numa razão cultivada só encontra aquilo de que necessita para viver em sociedade. Parece, a princípio, que os homens nesse estado de natureza, não havendo entre si qualquer espécie de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem maus ou possuir vícios e virtudes, a menos que, tomando estas palavras num sentido físico, se considerem como vícios do indivíduo as qualidades capazes de prejudicar sua própria conservação, e virtudes aquelas capazes de em seu favor contribuir, caso em que se poderia chamar de mais virtuosos àqueles que menos resistissem aos impulsos simples da natureza. Sem nos afastarmos do senso comum, é oportuno suspender o julgamento que poderíamos fazer de tal situação e desconfiar de nossos preconceitos até que, de balança na mão, se tenha examinado se há mais virtudes do que vícios entre os homens civilizados; ou se suas virtudes são mais proveitosas do que funestos seus vícios; ou se o progresso de seus conhecimentos constitui compensação suficiente dos males que se causam mutuamente à medida que se instruem sobre o bem que deveriam dispensar-se; ou se não estariam, na melhor das hipóteses, numa situação mais feliz não tendo nem mal a temer nem bem a esperar de ninguém, ao invés de ter-se submetido a uma dependência universal e obrigar-se a receber tudo daqueles que nada se obrigam a lhe dar. Não iremos, sobretudo, concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma ideia da bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque não conhece a virtude; que nem sempre recusa a seus semelhantes serviços que não crê dever-lhes; nem que, devido ao direito que se atribui com razão relativamente às coisas de que necessita, loucamente imagine ser o proprietário do universo inteiro. Hobbes viu muito bem o defeito de todas as definições modernas de direito natural, mas as consequências, que tira das suas, mostram que o toma num sentido que não é menos falso. Raciocinando sobre os princípios que estabeleceu, esse autor deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele no qual o cuidado de nossa conservação é o menos prejudicial ao de outrem, esse estado era, consequentemente, o mais propício à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Ele diz justamente o contrário por ter incluído, inoportunamente, no desejo de conservação do homem selvagem a necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são obra da sociedade e que tornaram as leis necessárias. O mau, diz ele, é uma criança robusta. Resta saber se o homem selvagem é uma criança robusta. Mesmo que se concordasse com ele, que se concluiria? Que, sendo esse homem, quando robusto, tão dependente dos outros quanto quando fraco, não haveria espécie alguma de excessos a que não se entregasse; que bateria em sua mãe quando tardasse muito a dar-lhe o peito, que estrangularia um de seus irmãos mais moços quando o incomodasse, que morderia a perna de semelhante quando estivesse ferido ou perturbado. Constituem, porém, duas suposições contraditórias ser, no estado de natureza, robusto e dependente. O homem é fraco quando dependente e, antes de ser robusto, se emancipa. Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a razão, como o pretendem nossos jurisconsultos, os impede também de abusar de suas faculdades, como ele próprio acha; de modo que se poderia dizer que os selvagens não são maus precisamente porque não sabem o que é ser bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a tranquilidade das paixões e a ignorância do vício que os impedem de proceder mal: Tanto plus in illis proficit vitiorum ignoratio, quam in his cognitivo virtutis. Há, aliás, outro princípio que Hobbes não percebeu: é que, tendo sido possível ao homem, em certas circunstâncias, suavizar a ferocidade de seu amor-próprio ou o desejo de conservação antes do nascimento desse amor, tempera, com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante, o ardor que consagra ao seu bem-estar. Não creio ter a temer qualquer contradição, se conferir ao homem a única virtude natural que o detrator mais acirrado das virtudes humanas teria de reconhecer. Falo da piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem quando nele precede o uso de qualquer reflexão, e tão natural que as próprias bestas às vezes são dela alguns sinais perceptíveis. Sem falar da ternura das mães pelos filhinhos e dos perigos que enfrentam para garanti-los, comumente se observa a repugnância que têm os cavalos de pisar num ser vivo. Um animal não passa sem inquietação ao lado de um animal morto de sua espécie; há até alguns que lhes dão uma espécie de sepultura, e os mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a impressão que tem do horrível espetáculo que o impressiona. Vê-se, com prazer, o autor da Fábula das Abelhas forçado a reconhecer o homem como um ser compassivo e sensível, sair, no exemplo que nos dá, de seu estilo frio e sutil para oferecer-nos a imagem patética de um homem aprisionado que descobre lá fora uma besta feroz arrancando um filho do seio de sua mãe, estraçalhando com os dentes assassinos seus fracos membros e rasgando com as unhas as entranhas palpitantes dessa criança. Que agitação tremenda não experimenta essa testemunha de um acontecimento pelo qual não tem nenhum interesse pessoal! Que angústias não sofre com esse espetáculo, sem poder levar socorro algum à mãe desfalecida ou à criança moribunda! Tal o movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão; tal a força da piedade natural que até os costumes mais depravados têm dificuldade em destruir, porquanto se vê todos os dias, em nossos espetáculos, emocionar-se e chorar por causa das infelicidades de um desafortunado, aquele mesmo que, se estivesse no lugar do tirano, agravaria ainda mais os tormentos de seu inimigo, como o sanguinário Sila, tão sensível aos males que não tinha causado, ou aquele Alexandre de Fers, que não ousava assistir à representação de uma tragédia, temendo que o vissem chorar com Andrômaca e Príamo, enquanto ouvia sem emoção os gritos de tantos cidadãos que, por sua ordem, eram degolados cada dia. Mollissima corda Humano generi dare se natura fatetur, Quae lacrymas dedit Mandeville compreendeu muito bem que, com toda a sua moral, os homens jamais passariam de uns monstros se a natureza não lhes tivesse conferido a piedade para apoio da razão; não compreendeu, no entanto, decorrerem somente dessa qualidade todas as virtudes sociais que quer contestar nos homens. Com efeito, que são a generosidade, a clemência, a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados ou à espécie humana em geral? Até a benquerença e a amizade são, bem entendidas, produções de uma piedade constante fixadas num objeto especial, pois desejar que alguém não sofra não será desejar que seja feliz? A ser verdadeiro que a comiseração não passa de um sentimento que nos coloca no lugar daquele que sofre, sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mas fraco no homem civil, que importará tal ideia para a verdade do que digo, senão para dar-lhe mais força? A comiseração, com efeito, mostrar-se-á tanto mais enérgica quanto mais intimamente se identificar o animal espectador com o animal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação deveu ser infinitamente mais íntima no estado de natureza do que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor-próprio e a reflexão o fortifica; faz o homem voltar-se sobre si mesmo; separa-o de quanto o perturba e aflige. É a filosofia que o isola; por sua causa, diz ele, em segredo, ao ver um homem sofrendo: "Perece, se queres; quanto a mim, estou seguro". Nada, além dos perigos da sociedade inteira, atrapalha o sono tranquilo do filósofo e o arranca do leito. Podem impunemente degolar um seu semelhante sob sua janela, ele só terá de levar as mãos às orelhas e ponderar um pouco consigo mesmo para impedir a natureza, que nele se revolta, de identificar-se com aquele que se assassina. O homem selvagem de modo algum possui esse talento admirável e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo cada dia entregar-se temerariamente ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas arruaças, a populaça se reúne, o homem prudente se distancia; a canalha, as mulheres do mercado, é que separam os contendores e impedem as pessoas de bem de se degolarem mutuamente. Certo, pois a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão, socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o lugar das íeis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz; ela impedirá qualquer selvagem robusto de tirar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida com dificuldade, desde que ele mesmo possa encontrar a sua em outra parte; ela, em lugar dessa máxima sublime da justiça raciocinada - Faze a outrem o que desejas que façam a ti -, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, mas talvez mais útil do que a precedente - Alcança teu bem com o menor mal possível para outrem. Numa palavra, antes nesse sentimento natural do que nos argumentos sutis deve procurar-se a causa da repugnância que todo homem experimentaria por agir mal, mesmo independentemente das máximas da educação. Ainda que possa ser próprio de Sócrates e dos espíritos de sua têmpera adquirirem a virtude pela razão, há muito tempo o gênero humano não existiria mais, se sua conservação só dependesse dos que pertencem a esse grupo. Com paixões tão pouco ativas e freio tão salutar, os homens, mais ferozes do que maus e mais preocupados em se defender do mal que possam receber do que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam sujeitos a disputas muito perigosas. Como não tinham entre si nenhuma espécie de comércio, como consequentemente não conheciam nem a vaidade, nem a consideração, a estima ou o desprezo; como não possuíam a menor noção do teu e do meu, nem qualquer ideia verdadeira de justiça; como consideravam as violências, que podiam tolerar, como um mal fácil de ser reparado e não como uma injúria que deve ser punida; e como não pensavam na vingança senão maquinalmente e no momento, à maneira do cão que morde a pedra que lhe atiram - suas disputas raramente teriam consequências sangrentas, se não conhecessem assunto mais excitante do que o alimento. Percebo, porém, outro mais perigoso, de que devo falar. Entre as paixões que agitam o coração do homem, há uma, ardente, impetuosa, que torna um sexo necessário ao outro, paixão tremenda que enfrenta perigos, anula todos os obstáculos e que, nos seus furores, parece capaz de destruir o gênero humano, a cuja conservação se destina. Que aconteceria aos homens, entregues a essa raiva desenfreada e brutal, sem pudor, sem comedimento e diariamente disputando entre si os amores ao preço de seu sangue? Impõe-se convir, inicialmente, em que, quanto mais violentas são as paixões, mais necessárias as leis para contê-las. Mas, se as desordens e crimes, que essas paixões cotidianamente causam entre nós, já mostram à saciedade a insuficiência das leis nesse particular, além disso seria útil examinar se tais desordens não nasceram com as próprias leis, pois, nesse caso, mesmo que fossem as leis capazes de reprimir as desordens, o menos que se poderia exigir é que sustassem um mal que não existiria sem elas. Comecemos por distinguir, no sentimento do amor, o moral do físico. O físico é esse desejo geral que leva um sexo a unir-se a outro. O moral é o que determina esse desejo e o fixa exclusivamente num só objeto ou que, pelo menos, faz com que tenha por esse objeto preferido um grau bem maior de energia. Ora, é fácil de compreender que o moral, no amor, é um sentimento artificial, nascido do costume da sociedade e celebrado com muita habilidade e cuidado pelas mulheres, que visam a estabelecer seu império e tornar dominante o sexo que deveria obedecer. Esse sentimento, baseando-se em certas noções de mérito ou de beleza, que um selvagem é incapaz de ter, e em comparações que não está em condição de fazer, deve ser quase nulo para ele. Isso porque, posto que seu espírito não pôde engendrar ideias abstratas de regularidade e de proporção, seu coração também não é capaz dos sentimentos de admiração e de amor que, mesmo sem se perceber, nascem da aplicação dessas ideias. Ele ouve unicamente o temperamento que recebeu da natureza e não o gosto que não pôde adquirir - qualquer mulher lhe convém. Limitados unicamente ao aspecto físico do amor e bastante felizes para ignorar essas preferências que irritam o sentimento e lhes aumentam as dificuldades, os homens devem sentir menos frequentes e menos vivamente os ardores do temperamento e, em consequência, disputar com menor frequência e crueldade. A imaginação, que determina tantos prejuízos entre nós, não atinge corações selvagens; cada um recebe calmamente o impulso da natureza, entrega-se a ele sem escolha, com mais prazer do que furor, e, uma vez satisfeita a necessidade, extingue-se todo o desejo. É, pois, incontestável que o próprio amor, assim como todas as outras paixões, só na sociedade adquiriu esse ardor impetuoso que muito frequentemente o torna tão funesto aos homens e é tanto mais ridículo figurar selvagens esganando-se sem tréguas para satisfazer à sua brutalidade, quanto essa opinião é diretamente contrária à experiência. Os caraíbas, que são o povo que até agora menos se distanciou do estado de natureza, são justamente o mais calmo nos seus amores e o menos sujeito ao ciúme, apesar de viver num clima abrasador que sempre parece emprestar a tais paixões uma atividade muito maior. Quanto às induções que se poderiam inferir, em muitas espécies de animais, dos combates dos machos que sempre ensanguentam nossos quintais ou que, por ocasião da primavera, fazem nossas florestas retinir com seus gritos ao disputarem a fêmea, é preciso começar por excluir todas as espécies nas quais a natureza estabeleceu, no poder relativo dos sexos, relações nitidamente diferentes das nossas: assim, a briga dos galos não serve como indução para a espécie humana. Nas espécies em que a proporção é melhor observada, esses combates não podem ter outras causas além da raridade das fêmeas em relação ao número de machos ou os intervalos exclusivos nos quais a fêmea recusa constantemente a aproximação do macho, o que nos leva à primeira causa, pois, se cada fêmea só suporta o macho durante dois meses em cada ano, isso faz com que o número de fêmeas pareça cinco sextos menor. Ora, nenhum desses dois casos se aplica à espécie humana, na qual o número de fêmeas sobrepassa em geral o de macho e na qual jamais se observou, mesmo entre os selvagens, as fêmeas, como as de outras espécies, terem período de cio e de isolamento. Além disso, entre inúmeros desses animais, entrando toda a espécie ao mesmo tempo em efervescência, surge um momento terrível de ardor comum, de tumulto, de desordem e de combate, momento que não aparece na espécie humana, na qual nunca o amor é periódico. Não se pode, pois, concluir do combate de certos animais pela posse das fêmeas que a mesma coisa acontecesse ao homem no estado de natureza e, se de qualquer modo se pudesse chegar a essa conclusão, como essas dissensões não destruíram as outras espécies, não se deve pelo menos julgar sejam elas mais funestas à nossa. É bem possível, nesse caso, que elas ainda causassem menos devastações do que em sociedade, sobretudo nos países em que, valendo os costumes ainda alguma coisa, o ciúme dos amantes e a vingança dos esposos determinam diariamente duelos, assassínios e coisas piores, onde o dever de uma fidelidade eterna só serve para proporcionar adultérios e onde as próprias leis da continência e da honra expandem forçosamente a devassidão e multiplicam os abortos. Concluamos que, errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus semelhantes, bem como sem qualquer desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do que a vaidade. Se por acaso descobria qualquer coisa, era tanto mais incapaz de comunicá-la quanto nem mesmo reconhecia os próprios filhos. A arte perecia com o inventor. Então não havia nem educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre criança. Estendi-me desse modo sobre a suposição dessa condição primitiva porque, devendo destruir antigos erros e preconceitos inveterados, achei que devia pulverizá-los até a raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta realidade e influência quanto pretendem nossos escritores. É fácil de ver, com efeito, que entre as diferenças que distinguem os homens, inúmeras, consideradas como naturais, são unicamente obra do hábito e dos vários gêneros de vida que os homens adotam em sociedade. Assim, um temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza, que dele derivam, resultam mais frequentem ente da maneira dura ou afeminada pela qual se foi educado do que da constituição primitiva dos corpos. A mesma coisa acontece com as forças do espírito; a educação não só estabelece diferença entre os espíritos cultos e os que não o são, como também aumenta a que existe entre os primeiros na proporção da cultura, pois, quando um gigante e um anão andam pelo mesmo caminho, cada passo, que um e outro deem, trará uma vantagem a mais ao gigante. Ora, se se fizer uma comparação entre a diversidade prodigiosa de educação e de gêneros de vida que reina nas várias ordens do estado civil, e a simplicidade e uniformidade da vida animal e selvagem, na qual todos se alimentam com os mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas coisas, compreender-se-á quanto deve a diferença de homem para homem ser menor no estado de natureza do que no estado de sociedade e quanto aumenta a desigualdade natural na espécie humana por causa da desigualdade de instituição. Mas, mesmo se a natureza mostrasse na distribuição desses dons todas as preferências que se pretende que tenha, qual a vantagem alcançada pelos favorecidos em prejuízo dos demais, num estado de coisas que não admitiria quase nenhuma espécie de relação entre eles? De que servirá a beleza onde não houver amor de espécie alguma? De que serve o espírito a pessoas que não falam e a astúcia aos que não têm interesses? Ouço sempre dizer que os mais fortes oprimirão os fracos. E preciso, porém, que me expliquem o que querem dizer com a palavra opressão. Uns dominarão com violência, outros gemerão submetidos a todos os seus caprichos. Aí está precisamente o que observo entre nós, mas não sei como se poderia dizer isso de homens selvagens, com os quais se teria mesmo grande dificuldade para fazer compreender o que é servidão e dominação. Um homem poderá muito bem apossar-se dos frutos colhidos por outro, da caça morta por ele, do antro que lhe servia de abrigo, mas como chegaria ao ponto de fazer-se obedecer? E quais poderão ser as cadeias da dependência entre homens que nada possuem? Se me expulsam de uma árvore, sou livre de ir a outra; se me perseguem num certo lugar, que me impedirá de ir para outro? Se encontrar um homem com força bem superior à minha e, além disso, o bastante depravado, preguiçoso e feroz para obrigar-me a prover a sua subsistência enquanto nada fizer, será preciso que ele se resolva a não me perder de vista um só instante e ter-me amarrado com muito cuidado enquanto dormir, temendo que eu escape ou que o mate, isto é, será obrigado a expor-se voluntariamente a um trabalho muito maior do que deseja evitar e do que dá a mim mesmo. Depois de tudo isso, sua vigilância amaina um pouco, um ruído imprevisto faz com que volte a cabeça, ando vinte passos em direção à floresta, meus grilhões se quebram e ele nunca mais me vê em toda a sua vida. Sem prolongar inutilmente esses detalhes, cada qual deve ver como, por serem os laços da servidão formados unicamente pela dependência mútua dos homens e pelas necessidades recíprocas que os unem, é impossível subjugar um homem sem antes tê-lo colocado na situação de não viver sem o outro, situação essa que, por não existir no estado de natureza, nele deixa cada um livre do jugo e torna inútil a lei do mais forte. Depois de ter provado ser a desigualdade apenas perceptível no estado de natureza, e ser nele quase nula sua influência, resta-me ainda mostrar sua origem e seus progressos nos desenvolvimentos sucessivos do espírito humano. Depois de ter mostrado que a perfectibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades que o homem natural recebera potencialmente jamais poderão desenvolver-se por si próprias, pois para isso necessitam do concurso fortuito de inúmeras causas estranhas, que nunca poderiam surgir e sem as quais ele teria permanecido eternamente em sua condição primitiva, resta-me considerar e aproximar os vários acasos que puderam aperfeiçoar a razão humana, deteriorando a espécie, tornar mau um ser ao transformá-lo em ser social e, partindo de tão longe, trazer enfim o homem e o mundo ao ponto em que o conhecemos. Confesso que os acontecimentos que tenho de descrever podendo sobrevir de inúmeros modos, só por conjeturas posso decidir-me na escolha. Mas, além dessas conjeturas se tornarem verdadeiras razões quando são as mais prováveis que se possam extrair da natureza das coisas e os únicos meios que se possa ter para descobrir a verdade, as consequências que eu quero deduzir das minhas conjeturas, por isso não serão conjeturais, porquanto, sobre os princípios que acabo de assentar não se poderia estabelecer qualquer outro sistema que me fornecesse os mesmos resultados e do qual pudesse inferir as mesmas conclusões. Isso me dispensará de estender minhas reflexões sobre a maneira pela qual o transcurso de tempo compensa a pequena verossimilhança dos acontecimentos; sobre o poderio impressionante de causas minúsculas quando agem sem interrupção; sobre a impossibilidade de, por um lado, destruírem-se certas hipóteses, no caso de estar-se, de outro lado, impossibilitado de lhes atribuir o grau de certeza de fato; sobre a razão pela qual, sendo dois fatos considerados como bastante reais para ligar uma sequência de fatos intermediários, desconhecidos ou considerados como tais, cabe à história, quando existe, apresentar os fatos que os ligam e porque, faltando a história, à filosofia cabe determinar os fatos semelhantes que podem ligá-los, e porque, enfim, em matéria de acontecimentos, a semelhança reduz os fatos a um número de classes diferentes muito menor do que se imagina. Basta-me oferecer esses objetos à consideração de meus juízes; basta-me ter agido de modo a não terem os leitores vulgares necessidade de considerá-los. SEGUNDA PARTE O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!" Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como eram, pois essa ideia de propriedade, dependendo de muitas ideias anteriores que só poderiam ter nascido sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer-se muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração para geração, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais longe ainda e esforcemo-nos por ligar, de um único ponto de vista, em sua ordem mais natural, essa lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos. O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência, sua primeira preocupação a de sua conservação. As produções da terra forneciam-lhe todos os socorros necessários, o instinto levou-o a utilizar-se deles. Como a fome e outros apetites o fizessem experimentar sucessivamente novas maneiras de existir, houve um que o convidou a perpetuar sua espécie e essa tendência cega, desprovida de qualquer sentimento do coração, não engendrou senão um pacto puramente animal; uma vez satisfeita a necessidade, os dois sexos não se reconheciam mais e o próprio filho, assim que podia viver sem a mãe, nada mais significava para ela. Essa foi a condição do homem nascente; essa foi a vida de um animal limitado inicialmente às sensações puras que, tão só se aproveitando dos dons que a natureza lhe oferecia, longe estava de pensar em arrancar-lhes alguma coisa. Mas logo surgiram dificuldades e impôs-se aprender a vencê-las; a altura das árvores, que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais que procuravam nutrir-se deles, a ferocidade daqueles que lhe ameaçavam a própria vida, tudo o obrigou a entregar-se aos exercícios do corpo; foi preciso tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais, que são os galhos de árvore e as pedras, logo se encontraram em sua mão. Aprendeu a dominar os obstáculos da natureza, a combater, quando necessário, os outros animais, a disputar sua subsistência com os próprios homens ou a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte. À medida que aumentou o gênero humano, os trabalhos se multiplicaram com os homens. A diferença das terras, dos climas, das estações pôde forçá-los a incluí-la na sua própria maneira de viver. Anos estéreis, invernos longos e rudes, verões escaldantes, que tudo consomem, exigiram deles uma nova indústria. À margem do mar e do rio, inventaram a linha e o anzol, e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas, construíram arcos e flechas, e se tornaram caçadores e guerreiros. Nas regiões frias, cobriam-se com as peles dos animais que tinham matado. O trovão, um vulcão ou qualquer acaso feliz, fez com que conhecessem o fogo, novo recurso contra os rigores do inverno; aprenderam a conservar esse elemento, depois a reproduzi-lo e, por fim, a preparar as carnes que antes devoravam cruas. Essa adequação reiterada dos vários seres a si mesmos e de uns a outros levou, naturalmente, o espírito do homem a perceber certas relações. Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande, pequeno, forte, rápido, lento, medroso, ousado e outras ideias semelhantes, comparadas ao azar da necessidade e quase sem pensar nisso, acabaram por produzir-lhe certa espécie de reflexão, ou melhor, uma prudência maquinal, que lhe indicava as precauções mais necessárias à sua segurança. As novas luzes, que resultaram desse desenvolvimento, aumentaram sua superioridade sobre os demais animais, dando-lhe consciência dela. Aplicou-se a preparar-lhes armadilhas, revidou-lhes os ataques de mil maneiras e, embora inúmeros deles o sobrepassassem em força no combate ou em rapidez na corrida, daqueles que poderiam servi-lo ou nutri-lo veio a tornar-se, com o tempo, o senhor de uns e o flagelo de outros. Assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo produziu-lhe o primeiro movimento de orgulho; assim, apenas distinguindo as categorias por considerar-se o primeiro por sua espécie, dispôs-se desde logo a considerar-se o primeiro como indivíduo. Embora seus semelhantes não fossem para ele o que são para nós e não tivesse mais comércio com eles do que com os outros animais, não foram esquecidos nas suas observações. As conformidades, que o tempo pôde fazê-lo perceber entre eles, sua fêmea e sua própria pessoa, levaram-no a ajuizar aquelas que não percebia e, vendo que todos se comportavam como teria feito em circunstâncias idênticas, concluiu que suas maneiras de pensar e de sentir eram inteiramente conformes à sua. Uma vez bem estabelecida em seu espírito, essa importante verdade levou-o a seguir, por meio de um pressentimento tão seguro e mais rápido do que a dialética, as melhores regras de conduta que, para seu proveito e segurança, achou melhor manter para com eles. Ensinando-lhe a experiência ser o amor ao bem-estar o único móvel das ações humanas, encontrou-se em situação de distinguir as situações raras em que o interesse comum poderia fazê-lo contar com a assistência de seus semelhantes e aquelas, mais raras ainda, em que a concorrência deveria fazer com que desconfiasse deles. No primeiro caso, unia-se a eles em bandos ou, quando muito, em qualquer tipo de associação livre, que não obrigava ninguém, e só durava quanto a necessidade passageira que a reunira. No segundo caso, cada um procurava obter vantagens do melhor modo, seja abertamente, se acreditava poder agir assim, seja por habilidade e sutileza, caso se sentisse mais fraco. Eis como puderam os homens insensivelmente adquirir certa ideia grosseira dos compromissos mútuos e da vantagem de respeitá-los, mas somente tanto quanto poderia exigi-lo o interesse presente e evidente, posto que para eles não existia a providência e, longe de se preocuparem com um futuro distante, não pensavam nem mesmo no dia de amanhã. Se era caso de agarrar um veado, cada um sentia que para tanto devia ficar no seu lugar, mas, se uma lebre passava ao alcance de um deles, não há dúvida de que ele a perseguiria sem escrúpulos e, tendo alcançado a sua presa, pouco se lhe dava faltar a dos companheiros. Facilmente se compreende que tal comércio não exigia uma linguagem muito mais rebuscada do que a das gralhas ou dos macacos que se reúnem quase do mesmo modo. Gritos inarticulados, muitos gestos e alguns ruídos imitativos compuseram durante muito tempo a língua universal; juntando-se-lhes, em cada região, alguns sons articulados e convencionais - cuja instituição, como já disse, não é muito fácil explicar -, obtiveram-se línguas particulares, porém grosseiras, imperfeitas, quase como as que até hoje possuem várias nações selvagens. Salto multidões de séculos, forçado pelo tempo que decorre, pela abundância das coisas que tenho a dizer e pelo progresso quase insensível desses preliminares, pois, quanto mais lentos são os acontecimentos em sua sucessão, tanto mais prontos para serem descritos. Esses primeiros progressos puseram por fim o homem à altura de conseguir outros mais rápidos. Quanto mais esclarecia o espírito, mais se aperfeiçoava a indústria. Logo, deixando de adormecer sob a primeira árvore, ou de recolher-se a cavernas, encontrou alguns tipos de machados de pedra duros e cortantes, que serviam para cortar lenha, cavar a terra e fazer choupanas de ramos, que logo resolveu cobrir de argila e de lama. A essa época se prende uma primeira revolução que determinou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade da qual nasceram talvez brigas e combates. No entanto, como os mais fortes possivelmente foram os primeiros a fazer habitações que se sentiam capazes de defender, é de crer que os fracos acharam mais rápido e seguro imitá-los do que tentar desalojá-los e, quanto aos que já possuíam cabanas, nenhum deles certamente procurou apropriar-se da de seu vizinho, menos por não lhe pertencer do que por ser-lhe inútil e não poder apossar-se dela sem expor-se a um combate violento com a família ocupante. Os primeiros progressos do coração resultaram de uma situação nova que reunia numa habitação comum os maridos e as mulheres, os pais e os filhos. O hábito de viver junto fez com que nascessem os mais doces sentimentos que são conhecidos do homem, como o amor conjugal e o amor paterno. Cada família tornou-se uma pequena sociedade, ainda mais unida por serem a afeição recíproca e a liberdade os únicos liames e, então, se estabeleceu a primeira diferença no modo de viver dos dois sexos, que até aí nenhuma apresentavam. As mulheres tornaram-se mais sedentárias e acostumaram-se a tomar conta da cabana e dos filhos, enquanto os homens iam procurar a subsistência comum. Os dois sexos começaram, assim, por uma via um pouco mais suave, a perder alguma coisa de sua ferocidade e de seu vigor. Mas, se cada um em separado tornou-se menos capaz de combater as bestas selvagens, em compensação foi mais fácil reunirem-se para resistirem em comum. Nesse novo estado, numa vida simples e solitária, com necessidades muito limitadas e os instrumentos que tinham inventado para satisfazê-las, os homens, gozando de um lazer bem maior, empregaram-no na obtenção de inúmeras espécies de comodidades desconhecidas por seus antepassados; foi o primeiro jugo que, impensadamente, impuseram a si mesmos e a primeira fonte de males que prepararam para seus descendentes, pois, além de assim continuarem a enfraquecer o corpo e o espírito, essas comodidades, perdendo pelo hábito quase todo o seu deleite e degenerando ao mesmo tempo em verdadeiras necessidades, a privação se tornou muito mais cruel do que doce fora sua posse, e os homens sentiam-se infelizes por perdê-las, sem terem sido felizes por possuí-las. Nesse ponto, podemos entrever um pouco melhor como o uso da palavra se estabeleceu ou se aperfeiçoou insensivelmente no seio de cada família e pode-se ainda conjeturar como várias causas particulares puderam aumentar a linguagem e acelerar seu progresso, tornando-se assim mais necessária. Grandes inundações ou tremores de terra cercaram com água ou com precipícios regiões habitadas; revoluções do globo separaram e cortaram em ilhas porções do continente. Concebe-se que, entre homens aproximados desse modo e forçados a viver juntos, teve de formar-se um idioma comum, mais facilmente do que entre aqueles que erravam livremente nas florestas da terra firme. Portanto, é muito possível que, depois de suas primeiras tentativas de navegação, alguns insulares tenham trazido até nós o uso da palavra e é pelo menos bastante verossímil que a sociedade e as línguas tenham nascido nas ilhas e aí se aperfeiçoado antes de serem conhecidas no continente. Tudo começa a mudar de aspecto. Até então errando nos bosques, os homens, ao adquirirem situação mais fixa, aproximam-se lentamente e por fim formam, em cada região, uma nação particular, una de costumes e caracteres, não por regulamentos e leis, mas, sim, pelo mesmo gênero de vida e de alimentos e pela influência comum do clima. Uma vizinhança permanente não pode deixar de, afinal, engendrar algumas ligações entre as famílias. Jovens de sexo diferente habitam cabanas vizinhas; o comércio passageiro, exigido pela natureza, logo induz a outro, não menos agradável e mais permanente, pela frequentação mútua. Acostumam-se a considerar os vários objetos e a fazer comparações; insensivelmente, adquirem-se ideias de mérito e de beleza, que produzem sentimentos de preferência. À força de se verem, não podem mais deixar de novamente se verem. Insinua-se na alma um sentimento terno e doce, e, à menor oposição, nasce um furor impetuoso; com o amor surge o ciúme, a discórdia triunfa e a mais doce das paixões recebe sacrifícios de sangue humano. À medida que as ideias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração entram em atividade, o gênero humano continua a domesticar-se, as ligações se estendem e os laços se apertam. Os homens habituaram-se a reunir-se diante das cabanas ou em torno de uma árvore grande; o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a distração, ou melhor, a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloquente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja. A fermentação determinada por esses novos germes produziu, por fim, compostos funestos à felicidade e à inocência. Assim que os homens começaram a apreciar-se mutuamente ti se lhes formou no espírito a ideia de consideração, cada um pretendeu ter direito a ela e a ninguém foi mais possível deixar de tê-la impunemente. Saíram daí os primeiros deveres de civilidade, mesmo entre os selvagens, e por isso toda afronta voluntária tornou-se um ultraje porque, junto com o mal que resultava da injúria ao ofendido, este nela via desprezo pela sua pessoa, frequentemente mais insuportável do que o próprio mal. Eis como, cada um punindo o desprezo que lhe dispensavam proporcionalmente à importância que se atribuía, as vinganças tornaram-se tremendas e os homens sanguinários e cruéis. Aí está precisamente o grau a que chegara a maioria dos povos selvagens que conhecemos e, por não ter distinguido suficientemente as ideias e observado como os povos já estavam longe do primeiro estado de natureza, inúmeras pessoas apressaram-se a concluir ser o homem naturalmente cruel e ter necessidade de polícia para abrandar-se. Ora, nada é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civil, e compelido tanto pelo instinto quanto pela razão a defender-se do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer mal a alguém sem ser a isso levado por alguma coisa ou mesmo depois de atingido por algum mal. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, "não haveria afronta se não houvesse propriedade". É preciso observar, porém, que a sociedade iniciada e as relações já estabelecidas entre os homens exigiam deles qualidades diversas daquelas que deviam à sua constituição primitiva; que começando a moralidade a introduzir-se nas ações humanas, e constituindo cada um perante as leis o único juiz e vingador das ofensas que recebia, a bondade que convinha ao estado puro de natureza não era mais a que convinha à sociedade nascente; que as punições se tornavam mais severas à medida que as ocasiões de ofensa se tornavam mais frequentes e que caberia ao terror das vinganças ocupar o lugar de freio das leis. Assim, embora os homens se tornassem menos tolerantes e a piedade natural já sofresse certa alteração, esse período de desenvolvimento das faculdades humanas, ocupando uma posição média exata entre a indolência do estado primitivo e a atividade petulante de nosso amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e a mais duradoura. Mais se reflete sobre isso e mais se conclui que esse estado era o menos sujeito às revoluções, o melhor para o homem, que certamente saiu dele por qualquer acaso funesto que, para a utilidade comum, jamais deveria ter acontecido. O exemplo dos selvagens, que foram encontrados quase todos nesse ponto, parece confirmar que o gênero humano era feito para sempre nele permanecer, que esse estado é a verdadeira juventude do mundo e que todos os progressos ulteriores foram, aparentemente, outros tantos passos para a perfeição do indivíduo e, efetivamente, para a decrepitude da espécie. Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a costurar com espinhos ou com cerdas suas roupas de peles, a enfeitar-se com plumas e conchas, a pintar o corpo com várias cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus arcos e flechas, a cortar com pedras agudas algumas canoas de pescador ou alguns instrumentos grosseiros de música - em uma palavra: enquanto só se dedicaram a obras que um único homem podia criar, e a artes que não solicitavam o concurso de várias mãos, viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de um comércio independente; mas, desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas. A metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja invenção produziu essa grande revolução. Para o poeta foram o ouro e a prata, mas para o filósofo foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gênero humano. Um e outro eram também desconhecidos dos selvagens da América que, por isso, sempre permaneceram nesse estado; os outros povos parecem ter continuado ainda bárbaros enquanto praticaram uma dessas artes sem a outra. E talvez uma das melhores razões por que a Europa foi, senão mais cedo, pelo menos mais constantemente e melhor policiada do que as outras partes do mundo, é ser ela, ao mesmo tempo, a mais abundante em ferro e a mais fértil em trigo. É muito difícil conjeturar como os homens chegaram a conhecer e a empregar o ferro, pois não é crível que tenham imaginado por si mesmos extrair a matéria da mina e dar-lhe o preparo necessário para pô-la em fusão, antes de saber o que resultaria disso. Por outro lado, menos ainda se poderá atribuir essa descoberta a algum incêndio acidental, posto que as minas se formam em lugares áridos e desprovidos de árvores e de plantas, podendo-se até imaginar que a natureza tomara precauções para esconder-nos esse segredo fatal. Não resta, pois, senão a circunstância extraordinária de algum vulcão que, vomitando matérias metálicas em fusão, deu aos observadores a ideia de imitar essa operação da natureza. Precisa-se ainda supor, nesses observadores, muita coragem e previdência para empreender um trabalho tão penoso e imaginar, com tal antecedência, as vantagens que dele poderiam tirar, coisa que só tentariam espíritos já mais desenvolvidos do que esses deveriam ser. Quanto à agricultura, conheceu-se o princípio muito antes de ser a prática estabelecida e absolutamente não é possível que os homens, ocupados continuamente em obter sua subsistência das árvores e das plantas, não formassem rapidamente a ideia das vias empregadas pela natureza para a geração dos vegetais; sua indústria, porém, só muito tarde voltou-se para esse lado, seja porque as árvores, que, juntamente com a caça e a pesca, forneciam sua alimentação, não necessitavam de seus cuidados, seja por falta de conhecer o uso do trigo, ou, ainda, por falta de instrumentos para cultivá-lo, por não preverem uma necessidade futura ou, afinal, por falta de meios para impedir os outros de se apropriarem do fruto de seu trabalho. Tornando-se mais industriosos, pode-se imaginar que, com pedras agudas e paus pontudos, começaram a cultivar à volta de sua cabana alguns legumes ou raízes muito antes de saber preparar o trigo e de contar com instrumentos necessários para a cultura em grande escala, mesmo sem levar em consideração que, para dedicar-se a essa ocupação e semear as terras, é preciso inicialmente resolver-se a perder alguma coisa para depois ganhar mais - preocupação muito distanciada da tendência de espírito de um homem selvagem que, como disse, sente muita dificuldade para, de manhã, pensar nas necessidades da noite. A invenção das outras artes foi, pois, necessária para forçar o gênero humano a dedicar-se à arte agrícola. Desde que se tornaram necessários homens para fundir e forjar o ferro, precisou-se de outros para alimentar a estes. Na medida em que se multiplicou o número de trabalhadores, menos mãos houve para atender à subsistência comum, sem que com isso houvesse menos bocas para consumi-la, e, como uns precisaram de comestíveis em troca do ferro, outros por fim encontraram o segredo de empregar o ferro na multiplicação dos comestíveis. Nasceram assim, de um lado, a lavoura e a agricultura e, de outro, a arte de preparar os metais e de multiplicar-lhes o emprego. Da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa; além disso, começando os homens a alongar suas vistas até o futuro e tendo todos a noção de possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália dos danos que poderia causar a outrem. Essa origem mostra-se ainda mais natural, por ser impossível conceber a ideia da propriedade nascendo de algo que não a mão de obra, pois não se compreende como, para apropriar-se de coisas que não produziu, o homem nisso conseguiu pôr mais do que o seu trabalho. Somente o trabalho, dando ao cultivador um direito sobre o produto da terra que ele trabalhou, dá-lhe consequentemente direito sobre a gleba pelo menos até a colheita, assim sendo cada ano; por determinar tal fato uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade. Quando os antigos, diz Grócio, emprestaram a Ceres o epíteto de legisladora e a uma festa celebrada em sua honra o nome de Tesmoforia, com isso quiseram dar a entender ter a partilha das terras produzido uma nova espécie de direito, isto é, o direito de propriedade, diverso daquele resultante da lei natural. Estando as coisas nesse estado, teriam assim continuado se os talentos fossem iguais e se, por exemplo, o emprego de ferro e a consumação dos alimentos sempre estivessem em exato equilíbrio. Mas a proporção, que nada mantinha, logo se rompeu; os mais fortes realizavam mais trabalho, o mais habilidoso tirava mais partido do seu, o mais engenhoso encontrava meios para abreviar a faina, o lavrador sentia mais necessidade de ferro ou o ferreiro mais necessidade de trigo e, trabalhando igualmente, um ganhava muito enquanto outro tinha dificuldade de viver. Assim, a desigualdade natural insensivelmente se desenvolve junto com a desigualdade de combinação, e as diferenças entre os homens, desenvolvidas pelas diferenças das circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes em seus efeitos e, em idêntica proporção, começam a influir na sorte dos particulares. Tendo as coisas chegado a tal ponto, facilmente se imagina o resto. Não me deterei descrevendo a invenção sucessiva das outras artes, o progresso das línguas, o ensaio e o emprego dos talentos, a desigualdade das fortunas, o uso e o abuso das riquezas, nem todos os detalhes complementares que cada qual pode sem esforço imaginar. Limitar-me-ei unicamente a lançar um golpe de vista sobre o gênero humano posto na nova ordem de coisas. Eis, pois, todas as nossas faculdades desenvolvidas, a memória e a imaginação em ação, o amor-próprio interessado, a razão em atividade, alcançando o espírito quase que o termo da perfectibilidade de que é suscetível. Aí estão todas as qualidades naturais postas em ação, estabelecidos a posição e o destino de cada homem, não somente quanto à quantidade dos bens e o poder de servir ou de ofender, mas também quanto ao espírito, à beleza, à força e à habilidade, quanto aos méritos e aos talentos e, sendo tais qualidades as únicas que poderiam merecer consideração, precisou-se desde logo tê-las ou afetar possuí-las. Para proveito próprio, foi preciso mostrar-se diferente do que na realidade se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes. Dessa distinção resultaram o fausto majestoso, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhes formam o cortejo. Por outro lado, o homem, de livre e independente que antes era, devido a uma multidão de novas necessidades passou a estar sujeito, por assim dizer, a toda a natureza e, sobretudo, a seus semelhantes dos quais num certo sentido se torna escravo, mesmo quando se torna senhor: rico, tem necessidade de seus serviços; pobre, precisa de seu socorro, e a mediocridade não o coloca em situação de viver sem eles. É preciso, pois, que incessantemente procure interessá-los pelo seu destino e fazer com que achem, real ou aparentemente, residir o lucro deles em trabalharem para o seu próprio. Isso faz com que seja falso e artificioso para com uns, e, para com outros, imperativo e duro, e o coloca na contingência de iludir a todos aqueles de que necessita, quando não pode fazer-se temer por eles ou não considera de seu interesse ser-lhes útil. Por fim, a ambição devoradora, o ardor de elevar sua fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para colocar-se acima dos outros, inspira a todos os homens uma negra tendência a prejudicarem-se mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para dar seu golpe com maior segurança, frequentem ente usa a máscara da bondade; em uma palavra, há, de um lado, concorrência e rivalidade, de outro, oposição de interesses e, de ambos, o desejo oculto de alcançar lucros a expensas de outrem. Todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente. Antes que se tivessem inventado os sinais representativos das riquezas, elas só podiam consistir em propriedades e animais, os únicos bens reais que os homens podiam possuir. Ora, quando as heranças cresceram em número e em extensão, a ponto de cobrir todo o solo, e tocaram-se umas às outras, uns só puderam prosperar a expensas dos outros, e os supranumerários, que a fraqueza ou a indolência tinham impedido por seu turno de adquiri-las, tendo se tornado pobres sem nada ter perdido, porque, tudo mudando à sua volta, somente eles não mudaram, viram-se obrigados a receber ou roubar sua subsistência da mão dos ricos. Daí começaram a nascer, segundo os vários caracteres de uns e de outros, a dominação e a servidão, ou a violência e os roubos. Os ricos, de sua parte, nem bem experimentaram o prazer de dominar, logo desdenharam todos os outros e, utilizando seus antigos escravos para submeter outros, só pensaram em subjugar e dominar seus vizinhos, como aqueles lobos famintos que, uma vez comendo carne humana, recusam qualquer outro alimento e só querem devorar homens. Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos, as extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, abafando a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o direito do mais forte e o do primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates e assassinatos. A sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar sobre seus passos nem renunciar às aquisições infelizes que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar senão para sua vergonha, abusando das faculdades que o dignificam. Attonitus novitate Mali, divesque, miserque Effugere optat opes, et quae modo voverat odit Ovídio, Metamorfoses, XI, v. 127 Não é possível que os homens não tenham, afinal, refletido sobre tão miserável situação e as calamidades que os afligiam. Os ricos, sobretudo, com certeza logo perceberam quanto lhes era desvantajosa uma guerra perpétua cujos gastos só eles pagavam e na qual tanto o risco da sua vida como o dos bens particulares eram comuns. Aliás, qualquer que fosse a interpretação que pudessem dar às suas usurpações, sabiam muito bem estarem estas apoiadas unicamente num direito precário e abusivo e que, tendo sido adquiridas apenas pela força, esta mesma poder-lhes-ia arrebatá-las sem que pudessem lamentar-se. Os enriquecidos só pela indústria não podiam basear sua propriedade em melhores títulos. Por mais que dissessem: "Fui eu quem construiu este muro; ganhei este terreno com meu trabalho", outros poderiam responder-lhes: "Quem vos deu as demarcações, por que razão pretendeis ser pagos a nossas expensas, de um trabalho que não vos impusemos? Ignorais que uma multidão de vossos irmãos perece e sofre a necessidade do que tendes a mais e que vos seria necessário um consentimento expresso e unânime do gênero humano para que, da subsistência comum, vos apropriásseis de quanto ultrapassasse a vossa?" Destituído de razões legítimas para justificar-se e de forças suficientes para defender-se, esmagando com facilidade um particular, mas sendo ele próprio esmagado por grupos de bandidos, sozinho contra todos e não podendo, dados os ciúmes mútuos, unir-se com seus iguais contra os inimigos unidos pela esperança comum da pilhagem, o rico, forçado pela necessidade, acabou concebendo o projeto que foi o mais excogitado que até então passou pelo espírito humano. Tal projeto consistiu em empregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam, fazer de seus adversários seus defensores, inspirar-lhes outras máximas e dar-lhes outras instituições que lhe fossem tão favoráveis quanto lhe era contrário o direito natural. Com esse desígnio, depois de expor a seus vizinhos o horror de uma situação que os armava, a todos, uns contra os outros, que lhes tornava as posses tão onerosas quanto o eram suas necessidades, e na qual ninguém encontrava a segurança, fosse na pobreza ou na riqueza, inventou facilmente razões especiosas para fazer com que aceitassem seu objetivo: "Unamo-nos", disse-lhes, "para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence; instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a conformar-se, que não abram exceção para ninguém e que, submetendo igualmente a deveres mútuos o poderoso e o fraco, reparem de certo modo os caprichos da fortuna. Em uma palavra, em lugar de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da associação, expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna". Fora preciso muito menos do que o equivalente desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de seduzir, que aliás tinham questões para deslindar entre si, que não podiam dispensar árbitros e possuíam demasiada ambição para poder por muito tempo dispensar os senhores. Todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade, pois, com muita razão reconhecendo as vantagens de um estabelecimento político, não contavam com a suficiente experiência para prever-lhe os perigos: os mais capazes de pressentir os abusos eram precisamente aqueles que contavam aproveitar-se deles, e até os prudentes compreenderam a necessidade de resolverem-se a sacrificar parte de sua liberdade para conservar a do outro, como um ferido manda cortar um braço para salvar o resto do corpo. Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. Vê-se, com facilidade; como o estabelecimento de uma única sociedade tornou indispensável o de todas as outras e como foi preciso se unirem, por sua vez, para enfrentar forças conjuntas. As sociedades, multiplicando-se ou estendendo-se rapidamente, logo cobriram toda a superfície da terra e não mais se pôde encontrar um único ponto do universo em que se conseguisse escapar ao jugo e subtrair-se ao gládio, frequentemente mal dirigido, que cada homem perpetuamente passou a ver suspenso sobre a sua cabeça. Tornando-se, deste modo, o direito civil a regra com um dos cidadãos, a lei natural só encontrou lugar, entre as diversas sociedades, onde, sob o nome de direito das gentes, foi moderada por algumas convenções tácitas para tornar o comércio possível e fazer as vezes da comiseração natural que, perdendo entre as sociedades quase toda a força que tinha entre os homens, só reside ainda em algumas grandes almas cosmopolitas capazes de transpor as barreiras imaginárias que separam os povos e, a exemplo do ser soberano que os criou, agasalham todo o gênero humano na sua benevolência. Os corpos políticos, deste modo permanecendo, entre si, em estado de natureza, logo se ressentiram dos inconvenientes que haviam forçado os particulares a sair dele, e tal estado tornou-se ainda mais funesto entre esses grandes corpos do que fora, antes, entre os indivíduos dos quais se compunham. Daí nasceram as guerras nacionais, as batalhas, os assassinatos, as represálias que levam a natureza a agitar-se e chocam a razão, e todos esses preconceitos horríveis que consideram como virtude a honra de derramar o sangue humano. As pessoas de bem passaram a incluir entre seus deveres o de degolar seus semelhantes; viu-se, por fim, os homens se massacrarem aos milhares sem saber por que e cometeram-se mais assassinatos num só dia de combate e mais horrores na tomada de uma única cidade do que se cometera, no estado de natureza, em toda a face da terra, durante séculos inteiros. Tais são os primeiros efeitos que se discernem na divisão do gênero humano em diferentes sociedades. Voltemos à sua instituição. Sei que muitos atribuíram outras origens às sociedades políticas, como as conquistas do mais potente ou a união dos fracos. A escolha entre essas causas é indiferente ao que desejo estabelecer; no entanto, a que acabo de expor me parece a mais natural pelas seguintes razões: 1º porque, no primeiro caso, não sendo o direito de conquista, de modo algum, um direito, não pôde fundamentar nenhum outro, ficando sempre o conquistador e os povos conquistados em estado de guerra entre si, a menos que a nação, reposta em plena liberdade, escolha voluntariamente seu vencedor como chefe; até então, como só se basearam na violência, umas poucas capitulações feitas, sendo consequentemente por si mesmas nulas, não pode haver nesta hipótese nem verdadeira sociedade, nem corpo político, nem outra lei senão a do mais forte; 2º porque essas palavras forte e fraco são, no segundo caso, equívocas; porque, no intervalo que se encontra entre o estabelecimento do direito de propriedade ou do primeiro ocupante, e o dos governos políticos, as palavras pobre e rico dão melhor o sentido desses termos, porquanto, com efeito, um homem não tinha, antes das leis, quaisquer outros meios de dominar seus iguais senão atacando seus bens ou lhes transmitindo certa porção do seu; 3º porque os pobres, não tendo senão sua liberdade para perder, seria uma tremenda loucura de sua parte destituir-se voluntariamente do único bem que lhes restava, para nada ganhar em compensação; porque os ricos, ao contrário, sendo por assim dizer sensíveis em todas as partes de seus bens, era muito mais fácil causar-lhes mal; porque, consequentemente, tinham estes mais precauções a tomar para defender-se disso, e, porque, por fim, é razoável crer-se ter sido uma coisa inventada antes por aqueles a quem é útil do que por aqueles a quem causa mal. O Governo nascente não teve uma forma constante e regular. A falta de filosofia e de experiência só deixava perceber os inconvenientes presentes, e só se pensava em remediar os outros na medida em que se apresentavam. Malgrado todos os trabalhos dos mais sábios legisladores, o estado político permaneceu sempre imperfeito, porque era quase obra do acaso e porque, apenas iniciado, o tempo, descobrindo os defeitos e sugerindo os remédios, nunca pôde corrigir os vícios de constituição. Remendava-se continuamente, quando fora preciso ter começado por limpar a eira e afastar todo o material velho, como fez Licurgo em Esparta, para depois construir um edifício sólido. A sociedade, a princípio, constituiu-se somente de algumas convenções gerais que todos os particulares se comprometeram a observar e das quais a comunidade se tornou fiadora perante cada um deles. Foi necessário que a experiência demonstrasse como tal constituição era fraca e como os infratores podiam facilmente evitar a acusação ou o castigo das faltas, das quais somente o público deveria ser testemunha e juiz; foi preciso que se iludisse a lei de mil modos, que os inconvenientes e as desordens se multiplicassem continuamente para que, por fim, se pensasse em confiar a particulares a perigosa custódia da autoridade pública e se delegasse a magistrados o cuidado de fazer observar as deliberações do povo. É suposição que não se pode contraditar seriamente aquela que diz terem sido os chefes escolhidos antes de organizar-se a confederação, e os ministros escolhidos antes de existirem as próprias leis. Não seria mais razoável crer que os povos se tenham inicialmente lançado nos braços de um senhor absoluto, sem condições nem compensações, e que lançar-se na escravidão fosse o primeiro meio que pudessem imaginar homens orgulhosos e desconfiados para atender à segurança comum. Com efeito, por que se darem a superiores, senão para defender-se da opressão e proteger seus bens, suas liberdades e suas vidas que, por assim dizer, representam os elementos constitutivos de seu ser? Ora, como nas relações de homem para homem o pior que pode acontecer a um é ver-se à discrição do outro, não contrariaria o bom senso começar por despojar-se, nas mãos de um chefe, das únicas coisas para cuja conservação necessitavam de seu auxílio? Que equivalente poderia oferecer-lhes o chefe pela concessão de tão belo direito? E, se tivesse ousado exigi-lo, a pretexto de defendê-los, não receberia logo a resposta do apólogo: "Que nos fará a mais o inimigo?" Incontestável, pois, e máxima fundamental de todo o direito político, é que os povos se deram chefes para defender sua liberdade e não para serem dominados. "Se temos um príncipe" dizia Plínio a Trajano, "é para que nos preserve de ter um senhor. Os políticos fazem sobre o amor à liberdade os mesmos sofismas que os filósofos sobre o estado de natureza - pelas coisas que veem, julgam coisas muito diferentes, que não viram; atribuem aos homens uma tendência natural à servidão pela paciência com a qual aqueles, que têm sob os olhos, suportam a sua, sem pensar que com a liberdade acontece o mesmo que com a inocência e a virtude, cujo valor só se percebe à medida que a própria pessoa usufrui delas e cujo gosto se perde assim que se as perdem. "Conheço as delícias de tua terra", dizia Brásidas a um sátrapa que comparava a vida de Esparta à de Persépolis, "mas não podes conhecer os prazeres da minha”. Assim como um corcel indomável eriça a crina, bate com o pé na terra e se debate impetuosamente só com a aproximação do freio, enquanto que um cavalo domado aguenta pacientemente o chicote e a espora, também o homem bárbaro não dobra sua cabeça ao jugo que o homem civilizado carrega sem murmurar e prefere a mais tempestuosa liberdade a uma tranquila dominação. Não é, pois, pelo aviltamento dos povos dominados que se devem julgar das disposições naturais do homem a favor ou contra a servidão, mas sim pelo prodígio realizado por todos os povos livres para se defenderem da opressão. Sei que os primeiros nada fazem senão enaltecer continuamente a paz e o sossego de que gozam sob seus grilhões e que miserrimam servitutem pacem appellant, mas quando vejo os outros sacrificarem os prazeres e o repouso, a riqueza, o poder e a própria vida pela conservação desse único bem tão desprezado por aqueles que o perderam, quando vejo animais, nascidos livres e detestando o cativeiro, esmagarem a cabeça contra as grades da prisão, quando vejo multidões de selvagens nus desprezarem as volúpias europeias e enfrentarem a fome, o fogo, o ferro e a morte para conservar somente sua independência, concluo não poderem ser os escravos os mais indicados para raciocinar sobre a liberdade. Quanto à autoridade paterna, da qual muita gente fez derivar o governo absoluto e toda a sociedade, sem examinar as provas em contrário de Locke e Sidney, basta observar que nada no mundo mais se distancia do espírito feroz do despotismo do que a doçura dessa autoridade, que leva em consideração antes o benefício daquele que obedece do que a utilidade daquele que comanda. Além disso, o pai, pela lei da natureza, só é senhor do filho enquanto necessário seu auxílio, tornando-se depois disso iguais e, então, o filho, inteiramente independente do pai, só lhe deve respeito sem nenhuma obediência, pois o reconhecimento representa um dever que se deve cumprir, mas não um direito que se possa exigir. Em lugar de dizer que a sociedade civil deriva do poder paterno, dever-se-ia, pelo contrário, dizer que dela tira esse poder sua principal força. Um indivíduo só foi reconhecido como pai de outros quando estes se reuniram à sua volta. Os bens do pai, dos quais é verdadeiramente senhor, são os laços que retêm seus filhos em sua dependência, e só pode fazê-los participar de sua sucessão na medida em que se tornarem merecedores do pai por contínua deferência a seus desejos. Ora, longe de poderem esperar os súditos por qualquer favor semelhante de seu déspota, por lhe pertencerem como um próprio seu - eles e tudo o que possuem -, ou pelo menos por pretender ele que assim seja, veem-se obrigados a receber como favor o que lhes deixa de seus próprios bens: faz justiça quando os despoja, presta-lhes um favor quando os deixa viver. Continuando assim a examinar os fatos segundo o direito, não se encontrará mais solidez do que verdade no estabelecimento voluntário da tirania e seria difícil mostrar a validade de um contrato que só obrigaria uma das partes, no qual tudo caberia a um lado e nada a outro, e que só resultaria em prejuízo de quem nele se compromete. Esse sistema odioso está bem longe de ser, mesmo hoje, o dos sábios e bons monarcas, e sobretudo dos reis de França, como se pode verificar em várias passagens de seus editos, e, em especial, no seguinte trecho de uma obra célebre, publicada em 1667, em nome e por ordem de Luís XIV: "Que em absoluto se diga não estar o soberano sujeito às leis de seu Estado, pois que a proposição contrária é uma verdade do direito das gentes, que a adulação algumas vezes atacou, mas que os bons príncipes sempre defenderam como uma divindade tutelar de seus Estados. Quanto mais legítimo é dizer-se com o sábio Platão, que a felicidade perfeita de um reino consiste em ser o príncipe obedecido pelos seus súditos, em o príncipe obedecer a lei e em ser a lei justa e visar sempre ao bem do público!” Não me deterei procurando saber se, sendo a liberdade a mais nobre das faculdades do homem, não equivaleria a degradar a natureza pôr-se ao nível das bestas escravas do instinto, ofender mesmo o autor de seu ser quando se renuncia sem reservas ao mais precioso de todos os seus dons, quando se submete a cometer os crimes proibidos para agradar a um senhor feroz e insensato, e ainda se o operário sublime deverá ficar mais irado em ver destruir do que em ver desonrar sua mais bela obra. Não levarei em consideração, em se querendo, a autoridade de Barbeyrac, que declara precisamente, de acordo com Locke, não poder ninguém vender sua liberdade senão ao ser submetido a uma potência arbitrária que o trate de acordo com sua fantasia. "Pois", acrescenta ele, "isto seria vender sua própria vida, da qual não se é senhor.” Perguntarei, somente, com que direito aqueles que não temem aviltar-se até tal ponto, puderam submeter sua posteridade à mesma ignomínia e em seu nome renunciar a bens que ela não recebe de sua liberalidade e sem os quais a própria vida é onerosa a todos dignos dela. Pufendorf diz que, assim como por meio de convenções e de contratos se transfere a fortuna a outrem, pode-se abrir mão da liberdade em proveito de alguém. Eis o que me parece um raciocínio bastante falho, pois, em primeiro lugar, o bem que alieno tornase-me coisa inteiramente estranha cujo abuso me é indiferente, mas é de meu interesse que não abusem de minha liberdade e não posso, sem tornar-me culpado do mal que me forçarão a fazer, expor-me a tornar-me instrumento do crime. Além disso, o direito de propriedade sendo apenas de convenção e instituição humana, qualquer homem pode a seu arbítrio dispor daquilo que possui; isso, porém, não acontece com os bens essenciais da natureza, tais como a vida e a liberdade, de que cada um pode gozar e dos quais é pelo menos duvidoso se tenha o direito de despojar-se. Destituindo-se de uma, degrada-se o ser; destituindo-se de outra, anula-se quanto existe em si próprio, e, como nenhum bem temporal pode dispensar-se de uma e de outra, constituiria ofensa às leis da natureza e à razão renunciar a elas a qualquer preço. Mas, ainda que se pudesse alienar sua liberdade como a seus bens, a diferença seria muito grande para os filhos que só gozam dos bens do pai pela transmissão de seu direito, enquanto, sendo a liberdade um dom que lhes advém da natureza pela qualidade de homem, seus pais não têm qualquer direito de despojá-los dele. De modo que, assim como para estabelecer a escravidão precisou-se violentar a natureza, foi necessário modificá-la para perpetuar esse direito e os jurisconsultos que pronunciaram gravemente nascer escravo o filho de um escravo resolveram, em outras palavras, que um homem não nasceria homem. Parece-me, portanto, certo não somente que os governos não começaram pelo poder arbitrário que não passa da corrupção, termo extremo e que afinal reduz os governos simplesmente à lei do mais forte, do qual foram inicialmente o remédio, mas também que, ainda quando tivessem assim começado, sendo esse poder por sua natureza ilegítimo, não pôde servir de base aos direitos da sociedade e, consequentemente, à desigualdade de instituição. Sem entrar, nesse momento, nas pesquisas que ainda restam por fazer sobre a natureza fundamental de qualquer governo, limito-me, seguindo a opinião comum, a considerar aqui o estabelecimento do corpo político como um verdadeiro contrato entre o povo e os chefes que escolhe, contrato pelo qual as duas partes se obrigam à observância das leis nele estipuladas e que formam os liames de sua união. Tendo o povo, quanto às relações sociais, reunido todas as suas vontades numa só, tornam-se todos os assuntos, sobre os quais essa vontade se exprime, outras tantas leis fundamentais que obrigam todos os membros do Estado sem exceção, regulamentando uma delas a escolha e o poder dos magistrados encarregados de zelar pela execução das outras. Esse poder se estende a quanto possa manter a constituição, sem chegar a mudá-la. Juntam-se-lhe honrarias que tornam respeitáveis as leis e seus ministros e, para estes, pessoalmente, prerrogativas que os compensam dos trabalhos penosos acarretados por uma boa administração. O magistrado, por seu lado, obriga-se a só utilizar o poder que lhe é confiado segundo a intenção dos que confiaram nele, a manter cada um no gozo tranquilo do que lhe pertence e, em todas as ocasiões, a preferir a utilidade pública a seu próprio interesse. Antes que a experiência o demonstrasse, ou o conhecimento do coração humano fizesse prever os abusos inevitáveis de tal constituição, ela certamente pareceu a melhor, por serem aqueles que estavam encarregados de sua conservação os mais interessados nisso, pois, não se baseando a magistratura e seus direitos senão nas leis fundamentais, assim que fossem estas destruídas, os magistrados deixariam de ser legítimos e o povo não mais estaria obrigado a obedecer-lhes, e como não era o magistrado, mas a lei, que constituíra a essência do Estado, cada um de direito voltaria de novo à sua liberdade natural. Por menos que se reflita atentamente sobre o assunto, tal coisa se confirmaria por novas razões e, pela natureza do contrato, ver-se-ia que não poderia ser irrevogável, pois, se não houvesse poder superior capaz de fazer-se fiador da fidelidade dos contratantes, nem de forçá-los a cumprir seus compromissos recíprocos, somente as partes ficariam como juízes em causa própria e cada uma delas sempre estaria no direito de renunciar ao contrato assim que achasse que a outra estivesse infringindo as condições ou desde que estas cessassem de convir-lhes. Sobre tal princípio parece legítimo fundamentar-se o direito de abdicar. Ora, considerando apenas, como o fazemos, a instituição humana, se o magistrado, que está com todo o poder em suas mãos e se apropria de todas as vantagens do contrato, tivesse o direito de renunciar à autoridade, com muito mais razão deveria o povo, que paga por todas as faltas dos chefes, ter o direito de renunciar à dependência. Mas as dissensões profundas, as desordens infinitas, que esse poder perigoso necessariamente acarretaria, mostram, mais do que qualquer outra coisa, como os governos humanos tinham necessidade de uma base mais sólida do que a pura razão e como era necessário à tranquilidade pública que a vontade divina interviesse para dar à autoridade soberana um caráter sagrado e inviolável que privasse os súditos do direito funesto de dispor dela. Ainda que a religião tivesse prodigalizado somente este bem aos homens, já bastaria para que todos devessem adorá-la e adotá-la, mesmo com seus abusos, porquanto ela poupa muito mais sangue do que aquele que o fanatismo faz correr. Mas sigamos o fio de nossa hipótese. As várias formas de governo têm sua origem nas diferenças mais ou menos profundas encontradas entre os particulares por ocasião da instituição. Um homem era eminente pelo poder, pela virtude, riqueza ou crédito; só ele foi eleito magistrado e o Estado tornou-se monárquico. Se inúmeros homens, quase iguais entre si, se sobrepunham aos demais, eram eleitos conjuntamente e fez-se uma aristocracia. Aqueles, entre os quais a fortuna ou os talentos eram menos desproporcionais e se encontravam menos distanciados do estado de natureza, tomaram em comum a administração suprema e formaram uma democracia. O tempo demonstrou qual dessas formas era a mais vantajosa para os homens. Uns submeteram-se unicamente às leis, outros logo obedeceram a senhores. Os cidadãos quiseram conservar sua liberdade, os súditos só pensaram em arrancá-la de seus vizinhos, não podendo conceber que outros gozassem de um bem do qual eles próprios não mais gozavam. Em uma palavra, de um lado ficaram as riquezas e as conquistas, e, do outro, a felicidade e a virtude. Nesses diversos governos, todas as magistraturas foram a princípio eletivas e, quando a riqueza não a arrebatava, a preferência distinguiu o mérito, que dá um ascendente natural, e a idade, que dá experiência nos negócios e calma nas deliberações. Os antepassados dos hebreus, os gerontes de Esparta, o senado de Roma e a própria etimologia da palavra de nossa língua seigneur mostram como outrora era a velhice respeitada. Quanto mais as eleições recaíam sobre homens de idade avançada, tanto mais se tornavam frequentes e as dificuldades ainda mais se faziam sentir; as tramas apareceram, as facções se formaram, os partidos se exasperaram, as guerras civis se atearam, enfim, sacrificou-se o sangue dos cidadãos à pretensa felicidade do Estado e se esteve a ponto de cair na anarquia dos tempos anteriores. A ambição dos principais aproveitou-se dessas circunstâncias para perpetuar seus mandatos em suas famílias; o povo, já acostumado com a dependência, com a calma e as comodidades da vida, e já incapaz de quebrar seus grilhões, consentiu em deixar aumentar a sua servidão para assegurar sua tranquilidade. Assim, tendo se tornado hereditários, os chefes acostumaram-se a considerar a magistratura como um bem de família e a si próprios proprietários do Estado, do qual a princípio não seriam senão funcionários; a chamar seus concidadãos de escravos, a incluí-los, como o gado, entre as coisas que lhes pertenciam e chamar a si mesmos de iguais aos deuses e de reis dos reis. Se seguirmos o processo da desigualdade nessas diferentes revoluções, verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a instituição da magistratura, o segundo; sendo o terceiro e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário. Assim, o estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira época; o de poderoso e de fraco pela segunda; e, pela terceira, o de senhor e escravo, que é o último grau da desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem, até que novas revoluções dissolvam completamente o Governo ou o aproximem da instituição legítima. Para compreender a necessidade desse progresso, é preciso considerar menos os motivos do estabelecimento do corpo político do que a forma que assume na sua prática e os inconvenientes que traz consigo, pois os vícios que tornam as instituições necessárias são os mesmos que tornam inevitável o abuso. E como - salvo a exceção única de. Esparta, onde a lei velava principalmente pela educação das crianças e onde Licurgo estabeleceu costumes que quase o dispensavam de acrescentar-lhes leis - as leis, menos fortes do que as paixões, contêm os homens sem mudá-los, seria fácil provar que todo Governo que, sem se corromper nem se alterar, andasse sempre exatamente de acordo com a finalidade de sua instituição, teria sido instituído sem necessidade e que um país, no qual ninguém ludibriasse as leis nem abusasse da magistratura, não teria necessidade nem de magistrados, nem de leis. As distinções políticas levam necessariamente às distinções civis. Crescendo a desigualdade entre o povo e seus chefes, faz-se ela logo sentir entre os particulares e nesse meio se modifica de inúmeras maneiras segundo as paixões, os talentos e as ocorrências. O magistrado não poderia usurpar um poder ilegítimo sem engendrar criaturas às quais é forçado a dar certa parte dele. Aliás, os cidadãos só se deixam oprimir quando, levados por uma ambição cega e olhando mais abaixo do que acima de si mesmos, a dominação torna-se-lhes mais cara do que a independência e quando consentem em carregar grilhões para por sua vez poder aplica-los. É muito difícil reduzir à obediência aquele que não procura comandar e o político mais esperto não conseguiria submeter homens que só desejassem ser livres. Mas a desigualdade se expande, sem dificuldade, entre almas ambiciosas e covardes, sempre prontas a correr os riscos da fortuna e a quase indiferentemente dominar ou servir, conforme lhes seja a fortuna favorável ou contrária. Eis como, seguramente, veio um tempo no qual os olhos do povo foram fascinados a tal ponto que aos seus condutores bastava dizer ao menor dos homens: "Sê grande, tu e toda a tua raça", para que logo ele parecesse grande aos olhos de todos e aos seus próprios, e seus descendentes se elevassem ainda mais à medida que dele se distanciavam; quanto mais a causa fosse distante e incerta, mais aumentava o efeito; quanto mais se pudesse contar com indolentes numa família, tanto mais ela se tornava ilustre. Se aqui coubesse entrar em pormenores, explicaria facilmente como, sem sequer imiscuir-se o Governo, torna-se inevitável entre os particulares a desigualdade de consideração e de autoridade, desde que, reunidos em uma mesma sociedade, são forçados a comparar-se entre si e a tomar conhecimento das diferenças reveladas no uso contínuo que têm de fazer uns dos outros. Essas diferenças são de várias espécies. Mas a riqueza, a nobreza ou a condição, o poder e o mérito pessoal sendo, em geral, as distinções principais pelas quais as pessoas se medem na sociedade, provarei que o acordo ou o conflito dessas forças diversas são a indicação mais certa de um Estado bem ou mal constituído; mostrarei depois que, entre esses quatro tipos de desigualdade, constituindo as qualidades pessoais a origem de todas as outras, a riqueza é a última a que por fim elas se reduzem, porque, sendo a mais imediatamente útil ao bem-estar e a mais fácil de comunicar-se, servem-se dela com facilidade para comprar todo o resto. Essa observação permite julgar com bastante precisão como cada povo se distanciou de sua instituição primitiva e do caminho que percorreu até o termo extremo da corrupção. Salientaria como esse desejo universal de reputação, de honrarias e de preferências, que nos devora, a todos adestra e põe em confronto os talentos e as forças, excita e multiplica as paixões e como, tornando todos os homens concorrentes, rivais, ou melhor, inimigos, cotidianamente determina desgraças, acontecimentos e catástrofes de toda espécie, fazendo com que tantos pretendentes entrem num mesmo combate. Mostraria que é a tal ânsia de fazer falar de si, a esse furor de distinguir-nos, quase sempre nos colocando fora de nós, que devemos o que há de melhor e de pior entre os homens: nossas virtudes e nossos vícios, nossas ciências e nossos erros, nossos conquistadores e filósofos, isto é, uma multidão de coisas más contra um pequeno número de coisas boas. Provaria, por fim, que, se vemos um punhado de poderosos e de ricos no cume das grandezas e das fortunas, enquanto a multidão rasteja na obscuridade e na miséria, é porque os primeiros só dão valor às coisas de que gozam por estarem os demais privados delas e porque, sem mudar de estado, deixariam de ser felizes se o povo deixasse de ser miserável. Mas tais pormenores sozinhos constituiriam assunto de uma obra considerável, na qual se pesariam as vantagens e os inconvenientes de todos os povos em relação aos direitos do estado de natureza e no qual se mostrariam todas as várias faces sob as quais a desigualdade se apresentou até hoje e poderá apresentar-se nos séculos futuros, segundo a natureza desses governos e as revoluções que o tempo necessariamente lhes trará. Ver-se-ia a multidão premida interiormente pelas consequências das mesmas precauções, que tomaria contra o que a ameaça de fora; ver-se-ia a opressão crescer continuamente, sem que os oprimidos pudessem jamais saber qual seu termo, nem quais os meios legítimos que lhes restariam para sustá-la; ver-se-iam os direitos dos cidadãos e as liberdades nacionais apagarem-se pouco a pouco e as reclamações dos fracos serem consideradas como murmúrio sedicioso; ver-se-ia a política restringir a uma porção mercenária do povo a honra de defender a causa comum; ver-se-ia daí nascer a necessidade dos impostos, o agricultor desencorajado abandonar seu campo, mesmo durante a paz, e deixar a charrua para cingir a espada; ver-se-iam nascer as regras funestas e singulares relativas aos pontos de honra; ver-se-iam os defensores da pátria tornarem-se, mais tarde ou mais cedo, seus inimigos e manterem continuamente um punhal alçado contra seus cidadãos, e chegaria o tempo em que se ouviria dizerem ao opressor de seu país: Pectore si fratris gladium juguloque parentis Condere me jubeas gravidaeque in viscera partu Conjugis, invita peragam tamen omnia dextra. Lucano, F. I, v. 376 Da extrema desigualdade das condições e das fortunas, da diversidade das paixões e dos talentos, das artes inúteis, das artes perniciosas, das ciências frívolas, surgiria uma multidão de preconceitos, igualmente contrários à razão, à felicidade e à virtude; ver-se-ia fomentado pelos chefes tudo o que, desunindo-os, pudesse enfraquecer os homens reunidos, tudo o que pudesse dar à sociedade um ar de concórdia aparente e nela implantar um germe de divisão real, tudo o que pudesse inspirar às várias ordens uma desconfiança e um ódio mútuos graças à oposição de seus direitos e de seus interesses, e, consequentemente, fortificar o poder que os contém a todos. É do seio dessa desordem e dessas revoluções que o despotismo, elevando aos poucos sua horrenda cabeça e devorando tudo o que percebesse de bom e de sadio em todas as partes do Estado, conseguiria por fim esmagar sob seus pés as leis e o povo, e estabelecer-se sobre as ruínas da república. Os tempos que precederiam esta última mudança seriam períodos de agitações e de calamidades, mas, no fim, tudo seria devorado pelo monstro e os povos não mais teriam nem chefes, nem leis, mas unicamente tiranos. Desde esse momento também deixariam de interessar os costumes e a virtude, pois em todo lugar onde reina o despotismo, cui ex honesto nulla est spes, não suporta ele qualquer outro senhor; desde que fale, não há nem probidade nem dever a consultar, e a única virtude que resta aos escravos é a mais cega obediência. É este o último grau da desigualdade, o ponto extremo que fecha o círculo e toca o ponto de que partimos; então, todos os particulares se tornam iguais, porque nada são, e os súditos, não tendo outra lei além da vontade do senhor, nem o senhor outra regra além de suas paixões, as noções do bem e os princípios da justiça desfalecem novamente; então tudo se governa unicamente pela lei do mais forte e, consequentemente, segundo um novo estado de natureza, diverso daquele pelo qual começamos, por ser este um estado de natureza em sua pureza, e o outro, fruto de um excesso de corrupção. Aliás, há tão pequena diferença entre esses dois estados e o contrato de Governo é de tal modo desfeito pelo despotismo, que o déspota só é senhor enquanto é o mais forte e, assim que se pode expulsá-lo, absolutamente não lhe cabe reclamar contra a violência. A rebelião que finalmente degola ou destrona um sultão é um ato tão jurídico quanto aqueles pelos quais ele, na véspera, dispunha das vidas e dos bens de seus súditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba; todas as coisas se passam, assim, segundo a ordem natural e, seja qual for o resultado dessas revoluções breves e frequentes, ninguém pode lamentar-se da injustiça de outrem, mas unicamente de sua própria imprudência ou de sua infelicidade. Descobrindo e seguindo, deste modo, os caminhos esquecidos e perdidos que levaram o homem do estado natural ao estado civil, restabelecendo, com auxílio das posições intermediárias que acabo de assinalar, àqueles que o tempo premente me tez suprimir ou a imaginação não me sugeriu, qualquer leitor atento deverá impressionar-se com o espaço imenso que separa esses dois estados. É nessa lenta sucessão de coisas que encontrará a solução de uma infinidade de problemas de moral e de política, que os filósofos não podem resolver. Compreenderá que o gênero humano de uma época não sendo o gênero humano de outra, esta é a razão por que Diógenes não encontrava um homem, pois ele procurava entre seus contemporâneos o homem de uma época já passada. Catão, dirá ele, pereceu com Roma e com a liberdade, por que se encontrava deslocado no seu século e o maior dos homens simplesmente surpreendeu o mundo que deveria ter governado quinhentos anos antes. Em uma palavra, explicará como a alma e as paixões humanas, alternando-se insensivelmente, mudam, por assim dizer, de natureza; por que nossas necessidades e nossos prazeres mudam de objeto com o decorrer dos tempos; por que, desaparecendo gradativamente o homem natural, a sociedade só oferece aos olhos do sábio uma reunião de homens artificiais e de paixões factícias que são obra de todas essas relações novas e não têm nenhum fundamento na natureza. O que a reflexão nos ensina a esse propósito, a observação o confirma perfeitamente: o homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo, tanto no fundo do coração quanto nas suas inclinações, que aquilo que determinaria a felicidade de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro só almeja o repouso e a liberdade, só quer viver e permanecer na ociosidade e mesmo a ataraxia do estoico não se aproxima de sua profunda indiferença por qualquer outro objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida para adquirir a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para obter a honra de servi-las; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e, orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que não gozam a honra de partilhá-la. Que espetáculo não seriam para um caraíba os trabalhos penosos e invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não preferiria esse selvagem indolente ao horror de tal vida que frequentemente nem sequer se ameniza pelo prazer de bem proceder! Mas, para aquilatar o objetivo de tantos cuidados, seria preciso que as palavras poder e reputação tivessem um sentido para seu espírito e que soubesse existir uma espécie de homens que dão valor aos olhos do resto do mundo e se sentem satisfeitos consigo mesmos mais pelo testemunho de outrem do que pelo seu próprio. Tal, com efeito, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento destes. Não cabe no meu assunto mostrar como de tal disposição nasce tamanha indiferença pelo bem e pelo mal, com tão belos discursos sobre a moral; como, tudo reduzindo-se às aparências, tudo se torna artificial e representado, seja a honra, a amizade, a virtude, frequentemente mesmo os próprios vícios com os quais por fim se encontra o segredo de se glorificar; como, em uma palavra, perguntando sempre aos outros o que somos e não ousando jamais interrogarmo-nos a nós mesmos sobre esse assunto, em meio a tanta filosofia, humanidade, polidez e máximas sublimes, só temos um exterior enganador e frívolo, honra sem virtude, razão sem sabedoria e prazer sem felicidade. Basta-me ter provado não ser esse, em absoluto, o estado original do homem e que unicamente o espírito da sociedade e a desigualdade, que ela engendra, é que mudam e alteram, desse modo, todas as nossas inclinações naturais. Esforcei-me por expor a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das sociedades políticas, quanto possam essas coisas deduzir-se da natureza do homem unicamente pelas luzes da razão e independentemente dos dogmas sagrados, que dão à autoridade soberana a sansão do direito divino. Conclui-se dessa exposição que, sendo quase nula a desigualdade no estado de natureza, deve sua força e seu desenvolvimento a nossas faculdades e aos progressos do espírito humano, tornando-se, afinal, estável e legítima graças ao estabelecimento da propriedade e das leis. Conclui-se, ainda, que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural sempre que não ocorre, juntamente e na mesma proporção, com a desigualdade física - distinção que determina suficientemente o que se deve pensar, a esse respeito, sobre a espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei da natureza, seja qual for a maneira por que a definamos, uma criança mandar num velho, um imbecil conduzir um sábio, ou um punhado de pessoas regurgitar superfluidades enquanto à multidão faminta falta o necessário. NOTAS Heródoto conta que, depois do assassínio do falso Smerdis, tendo se reunido os sete libertadores da Pérsia para resolver que forma dariam ao Estado, Otanes opinou firmemente pela república, opinião tanto mais extraordinária na boca de um sátrapa, quanto, além da pretensão ao império que poderiam ter, os poderosos temem mais do que a morte uma espécie de governo que os force a respeitar os homens. Otanes, como se pode imaginar, não foi atendido e, vendo que se ia proceder à eleição de um monarca, ele, que não queria nem obedecer nem mandar, voluntariamente cedeu aos outros concorrentes seu direito à coroa, pedindo como única compensação serem, tanto ele quanto sua descendência, livres e independentes, tendo-se-lhe concedido tal coisa. Ainda que Heródoto não nos conte a restrição que foi imposta a esse privilégio, ter-se-á necessariamente de supô-la, pois, caso não existisse, Otanes, não reconhecendo nenhuma lei e não tendo de prestar contas a ninguém, seria todo-poderoso no Estado e até mais poderoso do que o próprio rei. Mas não havia qualquer probabilidade de um homem, capaz de contentar-se em tal caso com esse privilégio, mostrar-se capaz de abusar dele. Com efeito, não se sabe que tenha esse direito determinado a menor perturbação no reino, nem causada pelo sábio Otanes, nem por qualquer de seus descendentes. Desde meu primeiro passo, apoio-me com confiança numa dessas autoridades respeitáveis para os filósofos, por virem de uma razão sólida e sublime que somente eles sabem encontrar e compreender. "Qualquer que seja o interesse que tenhamos por nos conhecer a nós mesmos, não sei se não conhecemos melhor tudo aquilo que não se refere a nós. Providos pela natureza de órgãos unicamente destinados à nossa conservação, só os empregamos para receber as impressões estranhas, só procuramos voltar-nos para fora e existir fora de nós; demasiadamente ocupados em multiplicar as funções de nossos sentidos e em aumentar a extensão exterior de nosso ser, raramente nos utilizamos desse sentido interior que nos reduz às nossas verdadeiras dimensões e que distingue de nós tudo que não nos pertence. No entanto, é desse sentido que devemos utilizar-nos se desejarmos conhecer-nos; somente por ele poderemos julgar-nos. Como dar, porém, a esse sentido, toda a sua atividade e extensão? Como desembaraçar nossa alma, na qual reside, de todas as ilusões de nosso espírito? Perdemos o hábito de invocá-la; ela ficou sem aproveitamento em meio do tumulto de nossas sensações corporais, fanou-se ao fogo de nossas paixões; o coração, o espírito, os sentidos, tudo trabalhou contra ela." Rist. Nat., Da Natureza do Homem. As mudanças que pode produzir na conformação do homem o prolongado hábito de andar sobre dois pés, as relações que ainda se observam entre os braços e as pernas anteriores dos quadrúpedes e a indução feita sobre o seu modo de andar fizeram com que nascessem dúvidas acerca da posição que nos deveria ser mais natural. Todas as crianças começam andando com quatro pés e precisam de nosso exemplo e de nossas lições para aprenderem a manter-se de pé. Há mesmo nações selvagens, como a dos hotentotes, que, descuidando bastante das crianças, deixam que andem tanto tempo sobre as mãos, que depois têm muito trabalho para endireitá-las; a mesma coisa acontece com os filhos dos caraíbas das Antilhas. Há inúmeros exemplos de homens quadrúpedes e, entre outros, poderia citar o exemplo daquela criança que encontraram, em 1344, perto de Hesse, onde fora criada por lobos e que depois dizia, na corte do Príncipe Henrique, que, se dependesse unicamente dela, preferiria voltar a viver com os lobos do que continuar a viver entre os homens. De tal modo se habituara a andar como esses animais, que foi preciso atar-lhe pedaços de madeira que a obrigavam a manter-se ereta em equilíbrio sobre os dois pés. A mesma coisa sucedeu com a criança que, em 1694, foi encontrada nas florestas da Lituânia e que vivia entre os ursos. Não apresentava, conta o Sr. de Condillac, qualquer sinal de razão, andava sobre os pés e as mãos, não possuía qualquer linguagem e emitia sons que de modo algum se assemelhavam aos de um homem. O pequeno selvagem de Hanover, que há muitos anos foi conduzido à corte da Inglaterra, sentia a maior das dificuldades para resignar-se a andar sobre os dois pés e, em 1719, encontraram-se dois outros selvagens nos Pireneus que corriam pelas montanhas como se fossem quadrúpedes. Quanto à objeção de que tal coisa levaria a nos privarmos do uso das mãos, do qual nos advêm tantas vantagens, além do exemplo dos macacos, que mostram poderem as mãos ser muito bem empregadas dos dois modos, isso só poderia provar que o homem pode dar a seus membros uma destinação mais cômoda do que a da natureza e não que a natureza destinou o homem a andar de um modo diferente do que lhe ensina. Há, porém, parece-me, muito melhores razões a apresentar para afirmar que o homem é um bípede. Primeiro, mesmo que se fizesse ver que ele poderia ter anteriormente conformação diversa da que conhecemos e nesse ínterim transformar-se por fim naquilo que é, não seria o bastante para concluir que tal se teria passado dessa maneira, porquanto, após ter mostrado a possibilidade dessas mudanças, seria preciso ainda, antes de admiti-las, mostrar pelo menos sua verossimilhança. Além disso, se os braços do homem parecem ter podido, quando necessário, servir-lhe de pernas, será essa a única observação favorável a esse sistema contra um grande número de outras que lhe são contrárias. As principais são: o modo pelo qual a cabeça do homem se acha ligada ao corpo, pois, em lugar de dirigir seu olhar horizontalmente, como o fazem todos os outros animais e como ele próprio tem ao andar de pé, ficaria ele, andando com quatro pés, com os olhos diretamente fixados na terra, situação pouco favorável para a conservação do indivíduo; o fato de lhe faltar a cauda, de que não precisa andando com dois pés, mas que é útil aos quadrúpedes, não faltando a nenhum destes; estar o seio da mulher muito bem situado para um bípede, que carrega o filho nos braços, e tão mal para um quadrúpede, que nenhum o tem colocado dessa maneira; que, sendo a parte traseira de altura excessiva proporcionalmente às pernas da frente, isso determina que, quando andamos com quatro pés, nos arrastemos sobre os joelhos, formando tudo isso um animal mal proporcionado e que anda pouco comodamente; que, se homem colocasse espalmados tanto pé quanto a mão, teria na perna traseira uma articulação a menos que os outros animais, a saber, aquela que une o cânon à tíbia; que, pousando somente a ponta do pé, como sem dúvida seria obrigado a fazê-lo, o tarso, sem falar da pluralidade dos ossos que o compõem, pareceria muito grosso para ocupar o lugar do cânon e de suas articulações, com o metatarso e a tíbia demasiado unidos para, nessa situação, dar à perna humana a mesma flexibilidade que tem a dos quadrúpedes. O exemplo das crianças, tomado numa época em que as forças naturais ainda não se desenvolveram nem os membros ainda se fortaleceram, nada conclui absolutamente; poder-se-ia, pelo mesmo motivo, dizer que os cães não são destinados a andar, porque algumas semanas depois do seu nascimento só rastejam. Os fatos particulares pouco peso têm ainda contra a prática universal de todos os homens e até das nações que, não dispondo de nenhuma comunicação com as outras, nada puderam imitar delas. Uma criança abandonada na floresta antes de poder andar, e alimentada por alguma besta, terá seguido o exemplo de sua ama, tentando andar como ela; dando-lhe o hábito algumas facilidades que de modo algum lhe advinham de sua natureza e, como os manetas conseguem, à força de exercício, fazer com os pés tudo o que fazemos com as mãos, conseguirá finalmente empregar as mãos como se fossem pés. Caso se encontre entre meus leitores algum físico suficientemente fraco para apresentar-me dificuldades quanto à suposição dessa fertilidade natural da terra, desejo responder-lhe com este trecho: "Como os vegetais extraem, para se alimentarem, muito mais substâncias do ar e da água, do que da terra, acontece que, ao perecerem, dão à terra muito mais do que dela extraíram; aliás, uma floresta, retendo os vapores, causa as águas da chuva. Assim, numa floresta, em que durante muito tempo não se tocasse, muito aumentaria a camada de terra que serve à vegetação; mas os animais dando à terra menos do que extraem dela e tendo os homens um consumo enorme de lenha e de plantas para o fogo e para outros usos, conclui-se que a camada de terra vegetal de uma região habitada deverá sempre diminuir e, por fim, ficar como a terra da Arábia Pétrea e como a de tantas outras províncias do Oriente que, efetivamente, é a região há mais tempo habitada, e onde só se encontram sal e areia, pois o sal fixo das plantas e dos animais permanece, enquanto todas as outras partes se volatilizam". Hist. Nat, Provas da Teoria da Terra, art. 7º. Pode-se a isso juntar a prova de fato relativa à quantidade de árvores e de plantas de toda a espécie, de que estavam repletas quase todas as ilhas desertas descobertas nestes últimos séculos e pelo que a história nos conta das imensas florestas que se precisou abater em toda a terra à medida que se povoou ou policiou. Sobre o assunto farei ainda as três observações seguintes: a primeira é que, caso haja uma variedade de vegetais que possa compensar o desperdício de matéria vegetal feito pelos animais, segundo o raciocínio do Sr. de Buffon, serão sobretudo os bosques, cujas copas e folhas acumulam e retêm uma quantidade maior de água e de vapores do que o fazem as outras plantas; a segunda consiste em que a destruição do solo, isto é, a perda da substância apropriada à vegetação, deve acelerar-se à medida que a terra é mais cultivada e os habitantes mais industriosos consomem em quantidade muito maior seus produtos de toda a espécie. Minha terceira observação, e a mais importante, consiste em que os frutos das árvores fornecem ao animal uma alimentação mais abundante do que o podem fazer os outros vegetais; é essa uma experiência que eu mesmo fiz comparando os produtos de dois terrenos iguais em tamanho e em qualidade, um coberto de castanheiros e outro semeado de trigo. Entre os quadrúpedes, as duas distinções mais universais das espécies vorazes baseiam-se uma na forma dos dentes e a outra na conformação dos intestinos. Os animais que só vivem de vegetais têm todos os dentes chatos, como o cavalo, o boi, o carneiro, a lebre; mas os vorazes, ao contrário, os têm pontudos, como o gato, o cão, o lobo, a raposa. Quanto aos intestinos, os frutívoros possuem-nos de certa espécie, como o cólon, que não se encontra entre os vorazes. Parece, pois, que o homem, tendo os dentes e os intestinos como os dos animais frutívoros, deveria ser incluído nessa classe; não somente as observações anatômicas confirmam essa opinião, mas os monumentos da antiguidade depõem ainda favoravelmente. "Dicearco", diz São Jerônimo, "conta, nos seus livros de antiguidades gregas, que, sob o reinado de Saturno, no qual a terra ainda era fértil por si mesma, nenhum homem comia carne e todos viviam dos frutos e dos legumes que cresciam naturalmente." (Liv. 11, Adv. Jovinian.) Essa opinião pode ainda basear-se nos relatos de inúmeros viajantes modernos; François Correau afirma, entre outros, que a maioria dos habitantes das Lucaias, que os espanhóis transportaram para as ilhas de Cuba, de São Domingos e outros lugares, morreram por terem comido carne. Pode-se ver, por aí, que deixo de lado muitas vantagens que poderia salientar. Porquanto, sendo a presa quase que o único motivo de luta entre os animais carniceiros e vivendo os frutívoros entre si numa paz contínua, se a espécie humana fosse deste último gênero, sem dúvida houvera muito maior facilidade para subsistir no estado de natureza e muito menos necessidade e ocasiões para dele sair. Todos os nossos conhecimentos que exigem reflexão, todos aqueles que só se adquirem pelo encadeamento de ideias e que só se aperfeiçoam sucessivamente, parecem estar completamente fora do alcance do homem selvagem, por falta de comunicação com seus semelhantes, isto é, por falta do instrumento que serve a essa comunicação e das necessidades que a tornam imprescindível. Seu saber e sua indústria limitam-se a saltar, correr, lutar, lançar uma pedra, escalar uma árvore. Mas, se ele só sabe essas coisas, em compensação as sabe muito melhor do que nós, que delas não temos a mesma necessidade; como elas dependem unicamente do exercício do corpo e não são suscetíveis de qualquer comunicação ou progresso de um indivíduo para outro, o primeiro homem pôde ser tão hábil quanto seus últimos descendentes. Os relatos dos viajantes estão cheios de exemplos da força e vigor dos homens nas nações bárbaras e selvagens; não deixam de louvar, ainda e não menos, sua habilidade e ligeireza e, como bastam dois olhos para observar as coisas, nada impede que acreditemos nos testemunhos oculares a esse respeito. Extraio ao acaso alguns exemplos dos primeiros livros que me caem sob a mão. "Os hotentotes", disse Kolben, "conhecem melhor a pesca do que os europeus do Cabo. São igualmente hábeis na rede, no anzol e no arpão, tanto nas enseadas quanto nos rios. Não mostram menos habilidade para agarrar o peixe com a mão. São de uma habilidade incomparável no nadar. Seu modo de nadar tem qualquer coisa de surpreendente e que lhes é inteiramente particular. Nadam com o corpo direito e as mãos estendidas fora da, água, de modo que parecem andar sobre a terra. Quando o mar está mais agitado e as ondas como que formam montanhas, parecem dançar na crista das vagas, subindo e descendo como um pedaço de cortiça”. "Os hotentotes", diz ainda o mesmo autor, "apresentam uma habilidade surpreendente na caça e a velocidade do seu andar ultrapassa a imaginação”. Admira-se de não se utilizarem mais frequentemente para fins reprováveis de sua habilidade, o que, não obstante, acontece por vezes, como se pode ver pelo exemplo que disso apresenta: "Um marinheiro holandês, desembarcando no Cabo, encarregou", conta ele, "um hotentote de segui-lo à cidade com um rolo de tabaco aproximadamente de vinte libras. Quando os dois estavam a alguma distância do grupo, o hotentote perguntou ao marinheiro se ele sabia correr. - Correr? - respondeu o holandês. - Sim, e muito bem. - Vejamos - disse o africano e, fugindo com o tabaco, desapareceu quase imediatamente. O marinheiro, confundido com tal velocidade, não pensou em persegui-lo e nunca mais viu nem o seu tabaco nem o carregador". "Possuem o golpe de vista tão pronto e a mão tão certa, que os europeus ficam em grande desvantagem. A cem passos acertaram com uma pedra num alvo do tamanho de uma moeda de meio-soldo, e o que há de mais espantoso é que, em lugar de fixar como nós os olhos no alvo, fazem movimentos e contorsões contínuas. Parece que a sua pedra é levada por uma mão invisível." O Padre du Tertre escreve sobre os selvagens das Antilhas quase a mesma coisa que acabamos de ler sobre os hotentotes do cabo da Boa Esperança. Enaltece sobretudo a sua precisão para acertar com as flechas os pássaros em voo e os peixes nadando. Os selvagens da América setentrional não são menos célebres pela sua força e agilidade; segue-se um exemplo que poderá facilitar o julgamento da dos índios da América meridional: "Em 1746, um índio de Buenos Aires, sendo condenado às galés em Cádiz, propôs ao governo resgatar sua liberdade expondo a vida numa festa pública. Prometeu atacar sozinho o touro mais furioso sem outra arma além de uma corda, derrubá-lo, amarrá-lo com a corda pela parte que lhe indicassem, selá-lo, bridá-lo, montá-lo e combater, assim montado, dois outros touros dentre os mais furiosos que fizessem sair do Torillo e que ele mataria a todos, um depois do outro, no momento em que ordenassem e sem o auxílio de ninguém. Foi-lhe concedido. O índio cumpriu sua palavra e obteve bom êxito em tudo que prometera. Sobre o modo como se saiu nisso e sobre os pormenores do combate, pode-se consultar o primeiro tomo in-12 das Observações sobre a História Natural do Sr. Gautier, de onde esse fato é extraído, na página 262. "A duração da vida dos cavalos", diz o Sr. de Buffon, "é, como em todas as outras espécies, proporcional à duração do seu tempo de crescimento. O homem, que leva catorze anos crescendo, pode viver seis ou sete vezes esse tempo, isto é, noventa ou cem anos; o cavalo, cujo crescimento se realiza em quatro anos, pode viver seis ou sete vezes quatro anos, isto é, vinte e cinco ou trinta anos. São tão raros os exemplos que podem ser contrários a essa regra, que nem mesmo se deve considerá-los como uma exceção da qual se possam extrair consequências, e, como os cavalos rústicos crescem em menos tempo do que os cavalos finos, vivem também menos tempo e estão velhos aos quinze anos." Hist. Nat. - Do Cavalo. Creio existir entre os animais carniceiros e os frutívoros outra diferença ainda mais geral do que a salientada na nota e, pois esta alcança até os pássaros. Tal diferença consiste no número dos filhotes, que em geral nunca excede de dois de cada vez para as espécies que só vivem de vegetais e que ordinariamente vai além desse número para os animais vorazes. E fácil conhecer, a esse respeito, a destinação da natureza pelo número de tetas, que não passa de duas nas fêmeas da primeira espécie, como a jumenta, a vaca, a cabra, a corça, a ovelha, e que sempre é de seis ou de oito nas outras fêmeas, como a cadela, a gata, a loba e o tigre fêmeo, etc. A galinha, a gansa, a pata, que todas são aves vorazes, assim como a águia, a gaivota, a coruja, também põem e chocam um grande número de ovos, o que jamais acontece com a pomba e a rola, nem aos pássaros que exclusivamente comem os grãos, os quais só põem e chocam dois ovos de cada vez. O motivo que se pode dar para essa diferença reside no fato de que os animais, que só vivem de ervas e de plantas, passam quase o dia todo no pasto e, sendo forçados a empregar muito tempo para se nutrirem, não poderiam ser capazes de criar muitos filhotes, enquanto que os vorazes, que fazem seu repasto quase num instante, podem, com mais facilidade e mais frequentem ente, voltar aos seus rebanhos e à caça, reparando assim o gasto de uma quantidade tão grande de leite. A respeito de tudo isso, poder-se-ia fazer observações especiais e reflexões, mas, não sendo este lugar apropriado para tanto, basta-me ter mostrado nesta parte o sistema mais geral da natureza, sistema que fornece uma nova razão para excluir o homem da classe dos animais carniceiros e para colocá-lo entre as espécies frutívoras. Um autor célebre calculando os bens e os males da vida humana e comparando as duas somas, achou que a última ultrapassa de muito a primeira e que, afinal de contas, a vida era para o homem péssimo presente. Não me surpreende essa conclusão. O autor tirou todas as suas conclusões da constituição do homem civil; se tivesse se informado sobre o homem natural, pode-se imaginar que encontraria resultados muito diversos; perceberia que o homem só tem aqueles males que a si mesmo se infligiu e que a natureza está justificada. Não foi sem esforço que conseguimos tornar-nos tão infelizes. Quando, por um lado, se consideram os imensos trabalhos dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes inventadas, tantas forças empregadas, abismos superados, montanhas arrasadas, rochas arrebentadas, rios tornados navegáveis, terras arroteadas, lagos sulcados, pântanos esgotados, enormes construções erguidas sobre a terra, o mar coberto de navios e de marinheiros, e, por outro lado, se procuram as verdadeiras vantagens que resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie humana, não se pode deixar de ficar impressionado com a imensa desproporção que reina entre essas coisas, e deplorar a cegueira do homem que, para alimentar seu louco orgulho e não sei que vã admiração por si próprio, faz com que corra com ardor atrás de todas as misérias de que é suscetível e que a natureza benfazeja tivera o cuidado de afastar dele. Os homens são maus - uma experiência triste e contínua dispensa provas; no entanto, o homem é naturalmente bom creio tê-lo demonstrado; o que, pois, poderá tê-lo depravado a esse ponto senão as mudanças sobrevindas em sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Por mais que se admire a sociedade humana, não será menos verdadeiro que ela necessariamente leva os homens a se odiarem entre si à medida que seus interesses se cruzam, a aparentemente se prestarem serviços e a realmente se causarem todos os males imagináveis. Que se poderá pensar de um comércio no qual a razão de cada particular lhe dita máximas diferentemente contrárias às que a razão pública prega ao corpo da sociedade e onde cada um encontra seu lucro na infelicidade de outrem? Não haverá, certamente, um homem de fortuna a quem herdeiros ávidos e, frequentemente, seus próprios filhos não desejem intimamente a morte; nenhum navio naufragado deixou de constituir uma boa notícia para certo negociante; não há uma casa que um devedor de má fé não gostaria que se incendiasse com todos os papéis que contém; todos os povos se regozijam com os desastres de seus vizinhos. Assim, encontramos nossos lucros no prejuízo de nossos semelhantes e a perda de um quase sempre determina a prosperidade de outro. Mas o que existe de mais perigoso ainda é que as calamidades públicas constituem a expectativa e a esperança de uma multidão de particulares; uns desejam doenças, outros a mortalidade, outros a guerra, outros a fome. Vi homens indignos chorarem de dor sabendo da possibilidade de um ano fértil, e o grande e funesto incêndio de Londres, que custou a vida e os bens a tantos infelizes, fez a fortuna a mais de dez mil pessoas. Sei que Montaigne censura o ateniense Demades por ter mandado punir um artesão que, vendendo esquifes caríssimos, ganhava muito com a morte dos cidadãos. Mas, alegando Montaigne razão para punir-se todo o mundo, é evidente que tal razão confirma as minhas. Penetremos, pois, através de nossas frívolas demonstrações de benevolência, no que se passa no fundo dos corações e reflitamos sobre como deva ser um estado de coisas no qual todos os homens são forçados a agradar-se e a destruir-se mutuamente, e no qual nascem inimigos por dever e traidores por interesse. Caso me respondam que a sociedade é constituída de tal modo que cada homem lucra auxiliando os outros, replicarei que isso seria muito bom se ele não lucrasse mais ainda prejudicando-os. Não há, absolutamente, um lucro legítimo que não possa ser ultrapassado por aquele que se pode fazer ilegitimamente e o dano que se faz ao próximo é sempre mais lucrativo do que os serviços. Não se trata, pois, senão de encontrar os meios para assegurar-se a própria impunidade e para isso os poderosos empregam todas as forças e os fracos todas as artimanhas. O homem selvagem, depois de ter comido, fica em paz com toda a natureza e é amigo de todos os seus semelhantes. Caso, por vezes, tenha de disputar a alimentação, jamais avança desferindo golpes, sem antes ter comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar em outro lugar sua subsistência, e como o orgulho não interfere no combate, este acaba com alguns murros; o vencedor come, o vencido vai tentar a sorte e tudo fica em paz. Mas, com o homem em sociedade, as coisas se passam muito diferentemente: trata-se, em primeiro lugar, de atender ao necessário e, depois, ao supérfluo; depois, vêm as delícias e, depois, as imensas riquezas; depois, os súditos e os escravos. Não há um momento de descanso. O que há de mais singular é que, quanto mais naturais e prementes são as necessidades, tanto mais aumentam as paixões e, o que é pior, o poder de satisfazê-las, de forma que, depois de longas prosperidades, depois de terem se devorado muitos tesouros e arruinado muitos homens, meu herói acabará por tudo sufocar até que seja ele o único senhor do universo. Esse, abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo menos das pretensões secretas do coração de todo homem civilizado. Comparai, sem prevenção, o estado do homem civil com o do homem selvagem e indagai, se puderdes, como, além de sua maldade, suas necessidades e misérias, o primeiro abriu novas portas à dor e à morte. Se considerardes as penas do espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos arruínam, os trabalhos excessivos com os quais se sobrecarregam os povos, a preguiça ainda mais perigosa à qual os ricos se abandonam, e que fazem que morram uns de suas necessidades e os outros de seus excessos; se pensardes nas misturas monstruosas de alimentos, nos temperos perniciosos, nas mercadorias adulteradas, nas drogas falsificadas, nas trapaças daqueles que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno das vasilhas em que são preparados; se prestardes atenção às doenças epidêmicas oriundas do ar confinado entre as multidões de homens reunidos, às que ocasionam a delicadeza de nosso modo de vida, às passagens alternadas do interior de nossas casas para o ar livre, ao uso da roupa vestida ou desvestida com pouquíssima precaução e a todos os cuidados que nossa sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente a vida ou a saúde; se levardes em consideração os incêndios e os tremores de terra que, consumindo ou revirando cidades inteiras, fazem que os habitantes morram aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas essas causas juntam continuamente sobre nossas cabeças, vereis como a natureza faz que paguemos caro o desprezo que demos às suas lições. Neste ponto, não repetirei acerca da guerra o que já disse alhures, mas desejaria que as pessoas instruídas quisessem ou ousassem, por uma vez, mostrar ao público a minúcia dos horrores que são cometidos nos exércitos pelos arrendatários de víveres e de hospitais; ver-se-ia que suas manobras, não demasiado secretas, devido às quais os exércitos mais brilhantes se transformam em menos do que nada, matam mais soldados do que ceifa o ferro do inimigo. Constitui ainda um cálculo não menos impressionante o relativo aos homens que o mar traga todos os anos pela fome, pelo escorbuto, pelos piratas, pelo fogo ou, ainda, pelos naufrágios. É preciso ainda, está claro, lançar à conta da propriedade estabelecida e, consequentemente, da sociedade, os assassínios, os envenenamentos, os assaltos nas estradas e as próprias punições desses crimes. São punições necessárias para prevenir males maiores, mas se, por causa do assassínio de um homem, dois ou mais perdem a vida, tal fato não deixa de realmente duplicar a perda da espécie humana. Inúmeros são os meios vergonhosos para impedir o nascimento dos homens e enganar a natureza; quer por esses gostos brutais e depravados que insultam sua obra mais encantadora, gostos que jamais foram conhecidos tanto dos selvagens quanto dos animais e que nos países policiados nasceram de uma imaginação corrompida; seja por esses abortos secretos, dignos frutos da depravação e da honra viciada; seja pelo enjeitamento e assassínio de uma multidão de crianças, vítimas da miséria de seus pais ou da vergonha desumana de suas mães; seja, enfim, pela mutilação desses infelizes, uma parte de cuja existência e toda descendência são sacrificadas a canções vãs ou, o que é ainda pior, ao ciúme brutal de alguns homens - mutilação que, neste último caso, ultraja duplamente a natureza, tanto pelo tratamento que recebem aqueles que são atingidos, quanto pelo uso a que se destinam! Mas não haverá mil casos mais frequentes e mais perigosos ainda, nos quais os direitos paternais ofendem abertamente a humanidade? Quantos talentos enterrados e inclinações forçadas pela coerção imprudente dos pais! Quantos homens, que se teriam distinguido numa situação apropriada, morrem infelizes e desonrados numa dada situação para a qual não tinham o menor gosto! Quantos casamentos felizes, mas desiguais, foram rompidos ou perturbados e quantas castas esposas desonradas por essa ordem de condições sempre em contradição com a da natureza; quantas outras uniões insuportáveis formadas pelo interesse e condenadas pelo amor e pela razão! Até mesmo quantos esposos honestos e virtuosos se supliciam, mutuamente, por se terem unido mal! Quantas vítimas jovens e infelizes da avareza dos pais não se lançam ao vício ou passam seus dias tristes entre lágrimas e gemendo sob laços indissolúveis, que o coração repele e que somente o ouro forjou! Felizes aqueles que, por vezes, a coragem ou a virtude arrancam da vida antes que uma bárbara violência os force a se entregarem ao crime ou ao desespero! Perdoai-me, pai e mãe para sempre deploráveis; aumentei, contra minha vontade, vossas penas, mas possam elas servir de eterno e terrível exemplo a quem quer que ouse violar o mais sagrado de seus direitos, em nome da própria natureza! Como só me referi a essas uniões mal formadas, produtos de nossa polícia, poderíeis pensar que aquelas que o amor e a simpatia presidiram estejam isentas desses inconvenientes. Que aconteceria se tentasse mostrar a espécie humana atacada na sua própria fonte e até no mais santo de todos os laços, nos quais só se ousa ouvir a natureza depois de ter consultado a fortuna e onde, confundindo a desordem civil com as virtudes e os vícios, a continência se torna uma precaução criminosa e a recusa de dar a vida pelo seu semelhante um ato de humanidade? Mas, sem rasgar o véu que cobre tantos horrores, contentemo-nos com indicar aquele mal a que outros devem dar remédio. Que se acrescente, a tudo isso, esse número de ofícios insalubres que abreviam a vida ou destroem o temperamento, como os trabalhos das minas, as várias preparações dos metais, dos minerais, sobretudo do chumbo, do cobre, do mercúrio, do cobalto, do arsênico, do rosalgar; esses outros ofícios perigosos que todos os dias custam a vida a inúmeros operários, como telhadores, carpinteiros, pedreiros ou, ainda, aqueles que trabalham nas pedreiras; que se reúnam, digo, todos esses objetos e poder-se-ão ver, no estabelecimento e no aperfeiçoamento das sociedades, os motivos da diminuição da espécie observada por mais de um filósofo. O luxo, impossível de ser prevenido entre homens ávidos de suas próprias comodidades e da consideração dos demais, rapidamente termina a obra do mal que as sociedades começaram e, a pretexto de permitir que vivam os pobres, coisa que não devera fazer, empobrece todo o resto e, cedo ou tarde, despovoa o Estado. O luxo é um remédio muito pior do que o mal que pretende sanar, ou melhor, ele mesmo, em qualquer Estado, grande ou pequeno, é o pior de todos os males que possam advir e, para sustentar uma multidão de criados e de miseráveis engendrados por ele, oprime e arruína o operário e o cidadão. É como aqueles ventos escaldantes do Sul que, cobrindo a erva e a verdura de insetos devoradores, subtraem a substância dos animais úteis e levam a todos os lugares em que se fazem sentir a penúria e a morte. Da sociedade e do luxo engendrado por ela, nascem as artes liberais e mecânicas, o comércio, as letras e todas essas inutilidades que fazem a indústria florescer, que enriquecem e perdem os Estados. E muito simples o motivo dessa ruína. É fácil ver que, por sua natureza, a agricultura deverá ser a menos lucrativa de todas as artes, pois sendo seus produtos, quanto ao uso, os mais indispensáveis para todos os homens, deverá o seu preço ser proporcional às posses de todos os pobres. Do mesmo princípio pode-se extrair a seguinte regra: as artes, em geral, são lucrativas na razão inversa de sua utilidade e as mais necessárias deverão por fim tornar-se as mais descuidadas. Por aí se vê o que se deve pensar das verdadeiras vantagens da indústria e do efeito real que resulta de seus progressos. Tais são as causas visíveis de todas as misérias a que a opulência acaba por lançar as nações mais admiradas. À medida que a indústria e as artes se estendem e florescem, o cultivador desprezado, sobrecarregado de impostos necessários à manutenção do luxo e condenado a passar uma vida de trabalho e fome, abandona seus campos para ir procurar nas cidades o pão que deveria levar para lá. Quanto mais as capitais enchem de admiração os olhos estúpidos do povo, tanto mais se deveria sofrer vendo os campos abandonados, as terras incultas e as estradas inundadas de infelizes cidadãos transformados em mendigos ou ladrões, e destinados a um dia acabarem a sua miséria no suplício ou num monturo. É assim que o Estado, enriquecendo por um lado, se enfraquece e se despovoa por outro, e as monarquias mais poderosas, depois de muitos esforços para se tornarem opulentas e desertas, acabam por se tornar a presa das nações pobres que sucumbem à tentação funesta de invadi-las e que, por sua vez, se enriquecem e se enfraquecem até que sejam, elas próprias, invadidas e destruídas por outras. Que se dignem explicar-nos o que puderam produzir essas ondas de bárbaros que durante tantos séculos inundaram a Europa, a Ásia, a África. Será que deviam sua prodigiosa população à indústria de suas artes, à sabedoria de suas leis, a excelência de sua polícia? Que tenham os nossos sábios a bondade de dizer-nos por que, ao invés de se multiplicarem desse modo, esses homens ferozes e brutais, sem luzes, sem freio, sem educação, a cada momento não se entredevoram mutuamente para disputar suas pastagens e sua caça; que nos expliquem como esses miseráveis tiveram simplesmente a audácia de enfrentar pessoas tão hábeis como éramos, com tão bela disciplina militar, códigos tão perfeitos e leis sábias, enfim por que, depois de aperfeiçoar-se a sociedade nas regiões do Norte e de ter-se tanto trabalho para nelas ensinar aos homens seus deveres mútuos e a arte de conviver agradável e tranquilamente, não mais se viu aparecer algo de semelhante a essas multidões de homens que outrora lá se produziam? Tenho muito receio de que, afinal, alguém se disponha a dizer-me que todas essas grandes coisas, a saber: as artes, as ciências e as leis, foram muito sabiamente inventadas pelos homens como uma peste salutar para prevenir a multiplicação excessiva da espécie, temendo que este mundo que nos é destinado se tornasse por fim demasiado pequeno para seus habitantes. Pois então será preciso destruir as sociedades, suprimir o teu e o meu, e voltar a viver nas florestas com os ursos? É essa uma consequência à moda de meus adversários, que prefiro antes prevenir do que possibilitar-lhes a vergonha de formulá-la. Oh! Vós, a quem a voz celeste não se fez ouvir e que não reconheceis para vossa espécie outro destino senão o de terminar em paz esta curta vida; vós, que podeis deixar no meio das cidades vossas funestas aquisições, vossos espíritos inquietos, vossos corações corrompidos e vossos desejos desenfreados; retomai, posto que depende de vós, vossa antiga e primeira inocência, ide aos bosques esquecer o espetáculo e a memória dos crimes de vossos contemporâneos e não tem ais aviltar vossa espécie renunciando às suas luzes para renunciar a seus vícios. Quanto aos homens semelhantes a mim, cujas paixões destruíram para sempre a simplicidade original, que não podem mais alimentar-se de ervas e de bolotas, nem viver sem leis e sem chefes; aqueles que foram honrados, na pessoa de seu primeiro pai, por lições sobrenaturais; aqueles que verão, na intenção de dar inicialmente às ações humanas uma moralidade que não adquiriram ao fim de muito tempo, a razão de um preceito indiferente em si mesmo e inexplicável por qualquer outro sistema, em uma palavra, aqueles que estão convencidos de ter a voz divina chamado todo o gênero humano às luzes e à felicidade das inteligências celestes - todos esses, pelo exercício das virtudes que se obrigam a praticar ao aprender a conhecê-las, esforçar-se-ão por merecer o prêmio eterno que devem esperar; respeitarão os sagrados laços da sociedade de que são membros; amarão seus semelhantes e os servirão com todas as suas forças; obedecerão escrupulosamente às leis e aos homens que são seus autores e ministros; honrarão, sobretudo, os bons e sábios príncipes que saberão prevenir, sanar ou paliar essa chusma de abusos e de males sempre prontos a oprimir-nos; animarão o zelo desses dignos chefes mostrando-lhes, sem temor e sem adulação, a grandeza de sua tarefa e a austeridade de seu dever, mas nem por isso desprezarão menos uma constituição que só pode manter-se com o auxílio de tantas pessoas respeitáveis, que mais frequentemente se deseja ter do que de fato se obtém e da qual, malgrado todos os seus cuidados, nascem sempre mais calamidades reais do que vantagens aparentes. Entre os homens que conhecemos, por nós mesmos, pelos historiadores ou pelos viajantes, uns são negros, outros brancos e outros vermelhos; uns têm cabelos longos, outros só têm lã encarapinhada; uns são quase todos cobertos de pelos, outros nem mesmo têm barba. Houve, e talvez haja ainda, nações de homens com uma estatura gigantesca e, deixando de lado a fábula dos pigmeus, que pode muito bem não passar de um exagero, sabe-se que os lapões e, sobretudo, os groenlandeses estão muito abaixo da estatura média do homem. Pretende-se ainda existirem povos inteiros que, como os quadrúpedes, possuem caudas. E, sem depositar fé cega nos relatos de Heródoto e de Ctesias, pode-se pelo menos aproveitar deles aquela opinião, muito plausível, de que, se fora possível praticar boas observações nesses tempos antigos, quando os vários povos apresentavam modos de vida mais diferentes entre si do que acontece atualmente, ter-se-ia então notado, no aspecto e na compleição do corpo, variedades bem mais notáveis. Todos esses fatos, dos quais é fácil fornecer provas incontestáveis, só podem surpreender os habituados a olhar unicamente os objetos que os circundam, e que ignoram os efeitos poderosos da diversidade dos climas, do ar, dos alimentos, do modo de viver, dos hábitos em geral e, sobretudo, a força surpreendente dessas mesmas causas quando agem continuamente sobre muitas gerações seguidas. Atualmente, quando o comércio, as viagens e as conquistas mais unem os vários povos e suas maneiras de vida aproximam-se incessantemente pela comunicação frequente, percebe-se terem diminuído certas diferenças nacionais e cada um, por exemplo, pode observar que os franceses de hoje não possuem mais esses grandes corpos brancos e louros descritos pelos historiadores latinos, se bem que o tempo, juntamente com a mistura dos francos e dos normandos, que também eram brancos e louros, deverá ter restabelecido o que o convívio com os romanos pudesse excluir da influência do clima na constituição natural e na cor da tez dos habitantes. Todas essas variedades, que inúmeras causas podem produzir e efetivamente produziram na espécie humana, fazem com que, quanto a vários animais semelhantes aos homens - que os viajantes, sem um exame acurado, consideraram como feras, por causa de algumas diferenças que notaram na conformação exterior, ou unicamente porque tais animais não falavam - eu desconfie serem, com efeito, verdadeiros homens selvagens, cuja raça, dispersada antigamente nos bosques, não encontrara ocasião de desenvolver qualquer de suas faculdades virtuais, não adquirindo nenhum grau de perfeição e encontrando-se ainda no estado primitivo de natureza. Demos um exemplo do que desejo dizer. "Encontra-se", diz o tradutor da História das Viagens, "no reino do Congo, um certo número desses grandes animais que nas Índias Orientais chamam de orangotangos e que são como o meio-termo entre a espécie humana e os bugios. Battel conta que nas florestas de Mayomba, no reino de Loango, se podem ver duas espécies de monstros: os maiores chamam-se pongos e os outros enjocos. Os primeiros têm uma semelhança exata com o homem, mas são muito mais largos e de estatura muito alta. Possuindo um rosto humano, têm os olhos muito encovados. As mãos, as faces, as orelhas não são cobertas de pelo, com exceção das sobrancelhas, que são muito longas. Ainda que tenham o resto do corpo muito peludo, o pelo aí não é muito espesso e sua cor é escura. Por fim, a única parte que os distingue dos homens é a perna, que não tem barriga. Andam eretos, segurando com a mão o pelo do pescoço; abrigam-se nos bosques e dormem em cima das árvores, onde constroem uma espécie de teto que os protege da chuva. Seus alimentos são frutos ou nozes selvagens. Jamais comem carne. Os negros que atravessam as florestas costumam acender fogueiras durante a noite; notam eles que, pela manhã, depois de sua partida, os pongos tomam o seu lugar à volta do fogo e só se retiram quando ele se extingue, pois, embora sendo muito habilidosos, não têm inteligência suficiente para alimenta-lo com lenha. "Algumas vezes andam em grupo e matam os negros que atravessam as florestas. Chegam até a atacar os elefantes que vêm pastar nas regiões habitadas por eles e os incomodam tanto com socos ou pauladas que os forçam a fugir soltando gritos. Nunca se agarra um pongo vivo, porque são tão robustos que dez homens não seriam capazes de prendê-lo; mas os negros agarram muitos deles quando ainda novos, matando a mãe, ao corpo da qual o filhote se agarra fortemente. Quando um desses animais morre, os outros cobrem seu corpo com um montão de ramos ou de folhas. Purchass acrescenta que, nas conversações que tivera com Battel, ouvira dele próprio que um pongo lhe arrebatou um negrinho que passou um mês inteiro entre esses animais, pois eles não fazem nenhum mal ao homem que os surpreende, pelo menos quando este não os olha, como observara o negrinho. Battel não descreveu a segunda espécie de monstro. "Dapper confirma que o reino do Congo está cheio desses animais que na Índia são chamados de orangotangos, isto é, moradores dos bosques e que os africanos chamam de quojas morros. Esse animal, diz ele, é tão semelhante aos homens, que certos viajantes chegaram a julgá-lo fruto de uma mulher e de um macaco, quimera que os próprios negros rejeitam. Um desses animais foi transportado do Congo para a Holanda e apresentado ao Príncipe de Orange, Frederico Henrique. Era da altura de uma criança de três anos e de nediez medíocre, mas atarracado e bem proporcionado, muito ágil e vivo, as pernas carnudas e robustas, toda a parte da frente nua mas o traseiro coberto de pelos negros. Seu semblante, à primeira vista, parecia-se com o de um homem, mas possuía o nariz achatado e recurvado; suas orelhas eram também como as da espécie humana; seu seio, pois era uma fêmea, era carnudo, o umbigo enterrado, os ombros muito juntos, suas mãos divididas em dedos e polegares, a barriga da perna e o calcanhar gordos e carnudos. Comumente andava ereto sobre as pernas e era capaz de levantar e carregar fardos bem pesados. Quando queria beber, pegava com uma das mãos a tampa do vaso e com a outra segurava a base, enxugando em seguida, graciosamente, os lábios. Deitava-se para dormir pondo a cabeça sobre um travesseiro e cobrindo-se com tanto jeito que poderia ser tomado como um homem na cama. Os negros contam coisas estranhas sobre esses animais; asseguram que não só forçam as mulheres e as moças, como também ousam atacar homens armados. Em uma palavra, há forte aparência de tratar-se do sátiro dos antigos. Merolla talvez se refira a esses animais quando conta que os negros algumas vezes agarram nas suas caças homens e mulheres selvagens." Fala-se ainda dessas espécies de animais antropoformes no terceiro tomo da mesma História das Viagens, sob o nome de beggos e de mandrills; mas, para limitarmo-nos aos relatos precedentes, encontra-se na descrição desses pretensos monstros semelhanças chocantes com a espécie humana e diferenças menores do que as que se poderiam notar de homem para homem. De modo algum se encontram nessas passagens os motivos nos quais os autores se fundamentam para recusar a esses animais o nome de homens selvagens, mas é fácil imaginar dever-se isso à sua estupidez e, também, a não falarem; são razões fracas para aqueles que sabem que, apesar de o órgão da palavra ser natural ao homem, a palavra em si, todavia, não lhe é natural e até que ponto sua perfectibilidade pôde elevar o homem civil acima de seu estado original. O pequeno número de linhas em que são feitas essas descrições permite-nos imaginar como esses animais foram mal observados e com que preconceitos foram vistos. Por exemplo, são qualificados de monstros, mas convêm em que eles geram. Num certo trecho, Battel diz que os pongos matam os negros que atravessam as florestas, num outro, Purchass acrescenta que eles não lhes causam nenhum mal, mesmo quando os surpreendem, pelo menos quando os negros não começam a olhá-los. Os pongos se reúnem em torno das fogueiras acesas pelos negros, quando estes se afastam, e por sua vez se retiram, quando o fogo se extingue. Aí está o fato; vejamos o comentário do observador: "Pois, embora sendo muito habilidosos, não têm inteligência suficiente para alimentá-lo com lenha". Gostaria de descobrir como Battel ou Purchass, seu compilador, pôde saber que a retirada dos pongos era um resultado antes de sua estupidez do que de sua vontade. Num clima como o de Loango, o fogo não é uma coisa muito necessária para os animais e, se os negros o acendem, é mais para amedrontar os animais ferozes do que contra o frio, sendo pois muito possível que depois de, durante certo tempo, ter-se deleitado com a chama ou de ter-se aquecido bem, os pongos se aborreçam de ficar sempre no mesmo lugar e se retirem para o seu pasto, que exige mais tempo do que se comessem carne. Aliás, sabe-se que a maioria dos animais, sem excetuar o homem, é naturalmente preguiçosa e se furta a todas as espécies de cuidados que não sejam de absoluta necessidade. Finalmente, parece muito estranho que os pongos, cuja habilidade e força se enaltecem, que sabem enterrar os seus mortos e construir abrigos com galhos, não saibam lançar lenha ao fogo. Lembro-me de ter visto um macaco fazer essa mesma manobra que não querem admitir poderem os pongos fazer; é verdade que, não estando então minhas ideias voltadas para esse lado, cometi eu mesmo a falta que censuro em nossos viajantes, e descuidei de verificar se a intenção do macaco era, com efeito, manter o fogo ou simplesmente, como creio, imitar a ação de um homem. Seja como for, está bem demonstrado que o macaco não é uma variedade do homem, não somente por não possuir a faculdade de falar, mas, sobretudo, porque se tem a certeza de que sua espécie não é capaz de aperfeiçoar-se, o que constitui o caráter específico da espécie humana; parece que essas experiências não foram feitas relativamente aos pongos e os orangotangos com cuidado suficiente para poder tirar a mesma conclusão. Haveria, no entanto, um meio pelo qual, se o orangotango ou outros seres fossem da espécie humana, as observações mais grosseiras poderiam disso certificar-se, até mesmo demonstrando; mas, além de uma única geração não ser suficiente para essa experiência, ela parece impraticável, porque seria necessário que aquilo que não passa de uma suposição fosse demonstrado como verdadeiro, antes que a prova destinada a verificar o fato fosse tentada inocentemente. Os julgamentos precipitados, que não são fruto de uma razão esclarecida, estão sujeitos a chegar ao excesso. Nossos viajantes sem-cerimoniosamente apresentam bestas, sob os nomes de pongos, mandrills, orangotangos, que são os mesmos seres que os antigos, sob o nome de sátiros faunos e silvanos, consideravam divindades. Verificar-se-á talvez, depois de pesquisas mais exatas, não serem nem bestas nem deuses, mas homens. Esperando, parece-me haver muitos motivos para, nesse assunto, basearmo-nos mais em Merolla, religioso culto, testemunha ocular e que, com toda a sua ingenuidade, não deixava de ser homem de espírito, do que no comerciante Battel, em Dapper, em Purchass e nos outros compiladores. Que julgamento cremos poderiam expender tais observadores sobre a criança encontrada em 1694, de quem já falei atrás, que não apresentava nenhum sinal de razão, andava sobre os pés e as mãos, não possuía nenhuma linguagem e soltava sons que de modo algum se pareciam com os de um homem? "Passou-se muito tempo", continua mesmo filósofo que me forneceu esse fato, "antes de poder ela proferir algumas palavras ainda que de modo bárbaro. Assim que pôde falar, interrogaram-na quanto ao seu primeiro estágio, mas não se lembrava dele mais do que nós nos recordamos do que nos aconteceu no berço”. Se, infelizmente para ela, essa criança tivesse caído nas mãos de nossos viajantes, não se pode duvidar que, depois de ter notado seu silêncio e sua estupidez, não tivessem resolvido mandá-la de volta para o campo ou presa para um parque de aclimação - e, depois, falariam dela, em belos relatos, como de uma besta singularíssima que se parecia muito com o homem. Depois de, por trezentos ou quatrocentos anos, os habitantes da Europa inundarem as outras partes do mundo e incessantemente publicarem novos repositórios de viagens e de relatos, estou persuadido de que, quanto aos homens, só reconhecemos os europeus; parece até, devido aos preconceitos ridículos que ainda não se extinguiram entre os letrados, que cada um, sob o título pomposo de estudo do homem, só faz o dos homens de seu país. Os particulares podem satisfazer-se indo e vindo; parece que a filosofia não sai do lugar, de modo que a de cada povo é pouco adaptável a outro. A causa disso é manifesta, pelo menos para as regiões distantes. Somente quatro tipos de homens fazem viagens de longo curso - os marinheiros, os comerciantes, os soldados e os missionários. Ora, não se deve esperar que as três primeiras classes forneçam bons observadores e, quanto aos da quarta, possuídos pela vocação sublime que os inspira, mesmo que não fossem como todos os outros, sujeitos aos preconceitos próprios ao seu estado, pode-se crer que não se dedicariam de boa vontade a buscas aparentemente de pura curiosidade e que os desviariam dos trabalhos mais importantes a que se destinam. Aliás, para pregar eficientemente o Evangelho, basta o zelo, e Deus dá o resto, mas, para estudar os homens, são necessários talentos que Deus não se esforça para dar a ninguém e que nem sempre os santos possuem. Não se abre um livro de viagens em que não se encontrem descrições de caracteres e de costumes, mas fica-se espantado ao verificar que essas pessoas, que tanto descreveram coisas, só disseram o que cada um já sabia, só souberam perceber, no outro lado do mundo, o que poderiam notar sem sair de sua rua e que os verdadeiros traços que distinguem as nações e atingem olhos feitos para ver quase sempre escaparam aos seus. Daí veio esse belo provérbio de moral, tão repisado pela turba filosofesca - que os homens, em todos os lugares, são os mesmos e que, possuindo em todos os lugares as mesmas paixões e os mesmos vícios, é bastante inútil tentar caracterizar os vários povos -, o que é aproximadamente tão bem raciocinado quanto se disséssemos não se poder distinguir Pedro de João porque ambos têm um nariz, uma boca e olhos. Veremos, algum dia, renascer os tempos felizes em que os povos não se intrometiam querendo filosofar, mas quando os Platões, os Tales e os Pitágoras, tomados por um desejo ardente de saber, empreendiam as maiores viagens unicamente para se instruir e iam longe sacudir o jugo dos preconceitos nacionais, conhecer os homens por suas conformidades e diferenças, e adquirir seus conhecimentos universais, que não são exclusivamente os de um século ou de uma região, mas, sendo de todos os tempos e de todos os lugares, são, por assim dizer, a ciência comum dos sábios? Admira-se a magnificência de alguns curiosos que, com grandes despesas, fizeram ou custearam viagens ao Oriente, com sábios e pintores, para lá desenhar ruínas e decifrar ou copiar inscrições; custo, porém, a compreender como, num século que se vangloria de altos conhecimentos, não se encontrem dois homens bem ligados, ricos, um em dinheiro e outro em gênio, ambos amando a glória e aspirando à imortalidade, um dos quais sacrifique vinte mil escudos de sua fortuna e outro dez anos de sua vida para uma célebre viagem em volta do mundo, a fim de, pelo menos uma vez, em lugar de estudar sempre pedras e plantas, estudarem os homens e os costumes e, depois de tantos séculos dedicados a medir e considerar a casa, se resolvam por fim a conhecer-lhe os habitantes. Os acadêmicos que percorreram as partes setentrionais da Europa e meridionais da América tinham mais por objeto visitá-las como geômetras do que como filósofos. No entanto, como eram simultaneamente tanto uma coisa como outra, não se pode considerar como totalmente desconhecidas as regiões vistas e descritas pelos La Condamine e Maupertuis. O joalheiro Chardin, que viajou como Platão, nada pôde dizer sobre a Pérsia. Parece que a China foi bem observada pelos jesuítas. Kempfer dá uma ideia passável do pouco que viu no Japão. Salvo esses relatos, não conhecemos, em absoluto, os povos das Índias Orientais, visitadas unicamente por europeus mais interessados em encher suas bolsas do que suas cabeças. Ainda precisa ser observada toda a África e seus numerosos habitantes, tão singulares pelo seu caráter quanto pela cor; a terra toda está coberta de nações das quais só conhecemos os nomes, e ainda queremos julgar o gênero humano! Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um Duelos, um d'Alembert, um Condillac ou homens dessa têmpera, viajando para instruir seus compatriotas, observando e descrevendo, como o sabem, a Turquia, o Egito, a Barbária, o Império de Marrocos, a Guiné, o país dos Cafres, o interior da África e suas costas orientais, as Malabares, o Mogol, os rios do Ganges, os reinos do Sião, de Pegu e de Ava, a China, a Tartária e, sobretudo, o Japão; depois, no outro hemisfério, o México, o Peru, o Chile, as Terras Magelânicas, sem esquecer os patagões verdadeiros ou falsos, o Tucumã, Paraguai, se fosse possível, o Brasil e, por fim, as Caraíbas, a Flórida e todas as regiões selvagens. Seria a viagem mais importante de todas e a que se deveria fazer com o maior cuidado. Suponhamos que esses novos Hércules, de volta das jornadas maravilhosas, escrevessem depois, à vontade, a história natural, a moral e a política do que tivessem visto: veríamos nós mesmos sair de sua pena um mundo novo e aprenderíamos assim a conhecer o nosso. Afirmo que quando tais observadores, referindo-se a certo animal, dissessem ser um homem e de outro ser uma besta, dever-se-ia crer. Constitui, porém, enorme simplicidade basear-se, a esse respeito, em viajantes grosseiros, em relação aos quais se é algumas vezes tentado a fazer a mesma pergunta que eles se metem a resolver acerca de outros animais. Tal coisa me parece evidentíssima e eu não poderia conceber de onde nossos filósofos puderam tirar todas as paixões que emprestam ao homem natural. Excetuando-se, unicamente, a necessidade física, que a própria natureza exige, todas as nossas outras necessidades são devidas ao hábito, antes do qual não eram necessidades, ou aos nossos desejos, e não se deseja aquilo que não se está em condições de conhecer. Conclui-se daí que o homem selvagem, não desejando senão as coisas que conhece e não conhecendo senão aquelas cuja posse tem ou é fácil de adquirir, nada deve ser tão tranquilo quanto a sua alma e nada tão limitado quanto seu espírito. Encontro no Governo Civil, de Locke, uma objeção que me parece demasiado especiosa para que possa ocultá-la: "O fim da sociedade entre o macho e a fêmea", diz esse filósofo, "não sendo unicamente procriar, mas continuar a espécie, tal sociedade deve perdurar até depois da procriação, pelo menos durante o tempo necessário à alimentação e à conservação dos procriados, isto é, até que sejam capazes de atender por si próprios às suas necessidades. Podemos verificar que essa regra, estabelecida pela sabedoria infinita do Criador para as obras de suas mãos, é constante e exatamente observada pelas criaturas inferiores ao homem. Entre esses animais que vivem das ervas, a sociedade entre o macho e a fêmea não dura mais do que o tempo da copulação, pois que, sendo as mamas da mãe suficientes para nutrir os filhotes até que sejam capazes de pastar a erva, contenta-se o macho com gerar e, depois disso, não se preocupa mais com a fêmea e os filhotes, para a subsistência dos quais nada pode trazer. Mas, com relação às bestas de presa, a sociedade dura um tempo maior, porque, não podendo a mãe atender à própria subsistência e, ao mesmo tempo, alimentar os filhotes, recorrendo unicamente à sua presa, que é uma via de se alimentar ainda mais trabalhosa e mais perigosa do que a de se alimentar de ervas, a assistência do macho torna-se inteiramente necessária para a manutenção de sua família comum - caso se possa empregar tal expressão -, a qual, até que possa procurar alguma presa, só poderia subsistir pelos cuidados do macho e da fêmea. Observa-se a mesma coisa entre todas as aves, excetuando-se algumas aves domésticas que se encontram nos lugares em que a abundância contínua de alimentação isenta o macho do cuidado de alimentar os filhotes; vê-se que, enquanto os filhotes, no ninho, têm necessidade de alimentos, o macho e a fêmea a eles os levam, até que eles possam voar e atender à sua subsistência. "E, a meu ver, isso constitui a principal, senão a única razão por que o macho e a fêmea no gênero humano são obrigados a uma sociedade mais longa do que a mantida pelas outras criaturas. Esse motivo consiste em ser a mulher capaz de conceber e novamente engravidar e gerar um novo filho muito antes que o precedente possa dispensar o socorro de seus pais e por sua parte atender às necessidades. Desse modo, sendo um pai obrigado a tomar cuidado daqueles que gerou e a ocupar-se disso durante muito tempo, está também na obrigação de continuar a viver na sociedade conjugal com a mesma mulher de que os teve e de permanecer nessa sociedade por muito mais tempo do que as outras criaturas entre as quais, podendo os filhotes subsistir por si mesmos antes que chegue o tempo de uma nova procriação, o laço entre o macho e a fêmea se rompe por si mesmo e ambos ficam em inteira liberdade, até que a estação que costuma solicitar os animais a ficarem juntos os obriga a escolherem novas companhias. E aqui não se poderia admirar suficientemente a sabedoria do Criador que, tendo dado ao homem qualidades próprias para atender tanto ao futuro quanto ao presente, quis e obrou de modo a que a sociedade do homem durasse muito mais tempo do que a do macho e da fêmea entre as outras criaturas, a fim de que assim fosse mais excitada a indústria do amem e da mulher e seus interesses mais unidos, visando formar provisões para seus filhos e deixar-lhes algum bem, nada podendo ser mais prejudicial aos filhos do que uma conjunção incerta e vaga ou uma dissolução fácil e frequente da sociedade conjugal". O mesmo amor da verdade, que me fez expor sinceramente essa objeção, incita-me a acompanhá-la de algumas observações, senão para resolvê-la, ao menos para esclarecê-la. 1. Observarei, em primeiro lugar, que as provas morais não têm uma grande força em matéria de físico e que servem, antes para dar conta dos fatos existentes do que para verificar a existência real desses fatos. Ora, é esse o gênero de prova que o Sr. Locke emprega no trecho que acabo de apresentar, pois, ainda que possa mostrar-se vantajoso para a espécie humana ser permanente a união entre o homem e a mulher, não se conclui que tal tenha sido estabelecido pela natureza; de outro modo, dever-se-ia dizer que ela também instituiu a sociedade civil, as artes, o comércio e tudo que se pretende seja útil aos homens. 2. Ignoro onde o Sr. Locke descobriu que, entre os animais de presa, a sociedade entre o macho e a fêmea dura mais do que entre os que vivem de erva e que um ajuda o outro a alimentar os filhotes, pois não se vê o cão, o gato, o urso ou o lobo reconhecerem melhor sua fêmea do que o cavalo, o carneiro, o touro, o veado ou todos os demais animais quadrúpedes reconhecem a sua. Ao contrário, parece que, se fora necessário à mulher o socorro do macho para atender à conservação dos filhotes, o seria sobretudo nas espécies que vivem de ervas, porque a mãe leva muito tempo para pastar e, durante todo esse intervalo, vê-se forçada a descuidar de sua ninhada, enquanto a presa de uma ursa ou de uma loba é devorada num instante e ela, sem sofrer fome, tem mais tempo para aleitar seus filhotes. Esse raciocínio é confirmado por uma observação sobre o número relativo de tetas e de filhotes que distingue as espécies carniceiras das frutívoras, e à qual me referi na nota h. Caso a observação seja justa e geral, a mulher, não tendo senão dois seios e não gerando de cada vez mais do que um filho, constitui isso mais um motivo para duvidar que a espécie humana seja naturalmente carniceira, parecendo pois que, para concluir como Locke, seria preciso inverter inteiramente seu raciocínio. Não há maior solidez na mesma distinção aplicada aos pássaros, pois quem poderia se convencer de ser mais durável a união de macho e fêmea entre os abutres e os corvos do que entre as rolas? Possuímos duas espécies de pássaros domésticos, o pato e o pombo, que nos fornecem dois exemplos diretamente contrários ao sistema desse autor. O pombo, que só vive de grãos, fica junto de sua fêmea e ambos nutrem em comum os filhotes. O pato, cuja voracidade é bem conhecida, não reconhece nem a fêmea nem os filhotes e em nada ajuda sua subsistência; entre as galinhas, espécie que de modo algum é menos carniceira, vê-se que o galo não tem nenhum trabalho com a ninhada. Se, em outras espécies, o macho partilha com a fêmea o cuidado de nutrir os filhotes, tal acontece porque os pássaros, que a princípio não podem voar e cuja mãe não pode aleitar, estão muito menos em estado de dispensar a assistência do pai do que os quadrúpedes, a quem, pelo menos durante algum tempo, é suficiente a teta da mãe. 3. Há muita incerteza quanto ao fato principal que serve de base a todo o raciocínio do Sr. Locke, pois para saber, como ele pretende, que no estado de natureza a mulher comumente fica novamente grávida e gera um novo filho muito antes que o precedente possa por si mesmo atender às suas necessidades, seriam necessárias experiências que certamente o Sr. Locke não fez e ninguém está em situação de fazer. A coabitação contínua do marido e da mulher é uma ocasião tão tangível de expor-se a uma nova gravidez que é bem difícil de crer que o encontro fortuito ou somente o impulso do temperamento produza efeitos tão frequentes no estado puro de natureza quanto no da sociedade conjugal; essa lentidão contribuiria talvez para tornar as crianças mais robustas, o que aliás poderia ser compensado pela faculdade de conceber, prolongada até uma idade mais avançada nas mulheres que abusassem menos na sua juventude. Quanto aos filhos, há muitos motivos para crer que suas forças e órgãos se desenvolvam mais tardiamente entre nós do que acontecia no estado primitivo de que falo. A fraqueza original, que devem à constituição dos pais, o cuidado que se tem de envolver e embaraçar todos os seus membros, a frouxidão em que são educados, talvez o uso de outro leite que não o da mãe, tudo contraria e retarda neles os primeiros progressos da natureza. A aplicação que se lhes obriga a dar a mil coisas nas quais continuamente se fixa a sua atenção, enquanto não se proporciona qualquer exercício às suas forças corporais, pode ainda causar um desvio considerável no seu crescimento, de forma que, se em lugar de primeiro sobrecarregar e fatigar seus espíritos de mil modos, deixássemos seus corpos se exercitarem nos movimentos contínuos que a natureza parece pedir-lhes, pode-se crer que estariam muito mais cedo em estado de andar, de agir e de atender, por si próprios, às suas necessidades. 4. Por fim, o Sr. Locke prova, no máximo, que bem poderia haver no homem um motivo para permanecer ligado à mulher quando ela tem um filho, mas não prova, de modo algum, que a ela se prendeu antes do parto e durante os noves meses de gravidez. Se tal mulher é indiferente ao homem durante esses nove meses, se até se torna desconhecida para ele, por que a socorreria depois do parto? Por que a auxiliaria a criar um filho, que não sabe se lhe pertence unicamente e de quem não resolveu nem previu o nascimento? O Sr. Locke evidentemente dá por suposto aquilo que está em questão, pois não se trata de saber por que o homem ficaria ligado à mulher depois do parto, mas por que a ela se ligaria depois da concepção. Satisfeito o apetite, o homem não tem mais necessidade de tal mulher, nem a mulher de tal homem. Este, talvez, não tem a menor preocupação, nem talvez a menor ideia das consequências de sua ação. Um vai para um lado, o outro para outro lugar, e não há probabilidades de que, ao fim de nove meses, tenham lembrança de se terem conhecido. Essa espécie de lembrança, devido à qual um indivíduo dá preferência a outro indivíduo por causa do ato da geração, exige, como o provo no texto, mais progresso e corrupção na compreensão humana do que se pode supor existir no estado de animalidade de que se trata aqui. Outra mulher pode, pois, satisfazer os desejos do homem tão comodamente quanto a que já conheceu e, do mesmo modo, outro homem contentar a mulher, supondo-se que ela sinta o mesmo apetite durante o estado de gravidez, do que razoavelmente se pode duvidar. Se no estado de natureza, a mulher não sente mais a paixão do amor depois da concepção do filho, torna-se ainda maior o obstáculo de sua sociedade com o homem, pois então não tem mais necessidade nem do homem que a fecundou, nem de qualquer outro. Não há, pois, no homem, motivo algum para procurar a mesma mulher, nem na mulher razão alguma para procurar o mesmo homem. O raciocínio de Locke se esfacela e toda a dialética desse filósofo não o poupou do erro que Hobbes e outros cometeram. Tinham de explicar um fato relativo ao estado de natureza, isto é, a um estado em que os homens viviam isolados e no qual um homem não possuía qualquer motivo para permanecer ao lado de tal outro, nem talvez os homens de permanecerem ao lado uns dos outros, o que é bem pior - e não lembraram de se transportar além dos séculos de sociedade, isto é, daqueles tempos em que os homens sempre tiveram um motivo para permanecerem uns perto dos outros e nos quais um homem, frequentemente, possui um motivo para permanecer ao lado de outro homem ou de outra mulher. Terei o cuidado de não me aventurar às reflexões filosóficas que se poderiam fazer sobre as vantagens e os inconvenientes dessa instituição das línguas; não será a mim que se torne lícito atacar erros vulgares, e o povo letrado respeita demais seus preconceitos para suportar pacientemente meus pretensos paradoxos. Deixemos, pois, falar as pessoas nas quais não se considerou crime tomar algumas vezes o partido da razão contra a opinião da multidão. Nec quidquam felicitati humani generis decederet, si, pulsa tot linguarum peste et confusione, unam artem callerent mortales, et signis, motibus, gestibusque, licitumforet quidvis explicare. Nunc vero ita comparatum est, ut animalium quae vulgo bruta creduntur melior longe quam nostra hac in parte videatur conditio, utpote quae promptius, et jorsan felicius, sensus et cogitationes suas sine interprete significent, quam ulli queant mortales, praesertim si peregrino utantur sermone. (Is Vossius. De Poemat. Canto e Viribus Rhythmi, pág. 66) Platão, mostrando como as ideias da quantidade discreta e de suas relações são necessárias nas menores artes, zomba, com razão, dos autores de seu tempo que pretendiam ter Palamedes inventado os números no cerco de Tróia, como se, diz esse filósofo, Agamenon até então pudesse ignorar quantas pernas tinha. Com efeito, sente-se ser impossível que a sociedade e as artes tivessem alcançado o ponto em que já se encontravam no tempo do cerco de Tróia, sem que os homens possuíssem o uso dos números e do cálculo. Mas a necessidade de conhecer os números, antes de adquirir outros conhecimentos, não facilita imaginar-lhes a invenção. Uma vez conhecido o nome dos números, é fácil explicar o seu sentido e despertar as ideias que esses nomes representam, mas, para inventá-los, foi preciso, antes de conceber essas mesmas ideias, estar-se, por assim dizer, familiarizado com as meditações filosóficas, exercitado na consideração dos seres unicamente pela sua essência e independentemente de qualquer outra concepção; é essa uma abstração muito penosa, muito metafísica, muito pouco natural e sem a qual, no entanto, essas ideias jamais poderiam ter-se transportado de uma espécie ou de um gênero para outro, nem se tornarem universais os números. Um selvagem poderia considerar, separadamente, sua perna direita e sua perna esquerda, ou olhá-las juntas sob a ideia indivisível de um par, sem jamais pensar que existiram duas, pois uma coisa é a ideia representativa que nos dá o objeto e, a outra, a ideia numérica que a determina. Menos ainda poderia ele calcular até cinco e, quando aplicasse suas mãos uma sobre a outra e notasse que seus dedos se correspondiam exatamente, estaria bem longe de pensar na sua igualdade numérica; não sabia melhor o número de seus dedos do que o de seus cabelos e se, depois de fazê-lo compreender o que são os números, alguém lhe tivesse dito que tinha tantos dedos nas mãos quantos nos pés, talvez ficasse muito surpreso ao verificar, comparando-os, ser verdadeira tal coisa. Não se deve confundir o amor-próprio com o amor de si mesmo; são duas paixões bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio não passa de um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam e que constitui a verdadeira fonte da honra. Uma vez isso entendido, afirmo que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe, pois cada homem em especial olhando-se a si mesmo como o único espectador que o observa, como o único ser no universo que toma interesse por si, como o único juiz de seu próprio mérito, torna-se impossível que um sentimento, que vai buscar sua fonte em comparações que ele não tem capacidade para fazer, possa germinar em sua alma. Pelo mesmo motivo, esse homem não poderia ter nem ódio nem desejo de vingança, paixões que só podem nascer da opinião de alguma ofensa recebida e, como é o desprezo ou a intenção de prejudicar e não o mal que constitui a ofensa, homens que não sabem apreciar-se ou comparar-se podem infligir-se muitas violências mútuas, quando disso lhes advém alguma vantagem, sem jamais se ofenderem reciprocamente. Em uma palavra, cada homem só vendo os seus semelhantes como veria animais de outra espécie, pode tomar a presa do mais fraco ou ceder a sua ao mais forte, considerando suas rapinagens como acontecimentos naturais, sem o mínimo movimento de insolência ou de despeito e sem outra paixão além da dor ou da alegria de um bom ou mau êxito. Constitui coisa extremamente notável o fato de que, depois de tantos anos em que os europeus se atormentam para fazer com que os selvagens das várias regiões do mundo passem a viver do seu modo, não conseguiram ainda conquistar um único, nem mesmo à custa do cristianismo, pois os nossos missionários algumas vezes fazem cristãos, mas jamais homens civilizados. Nada pode dominar a repugnância invencível que eles têm de aprender nossos costumes e viver como nós. Caso esses pobres selvagens sejam tão infelizes quanto se pretende, qual será a inconcebível depravação de julgamento pela qual constantemente recusam a policiar-se a nosso modo ou a aprender a viver felizes entre nós, enquanto em inúmeras obras se lê que franceses e europeus se refugiaram voluntariamente entre essas nações e aí passaram a vida inteira sem mais poder renunciar a uma maneira de viver tão estranha, e que ainda se vejam missionários sensatos lastimar, com tristeza, os dias calmos e inocentes que passaram entre esses povos desprezados. Caso se responda não terem eles luzes suficientes para julgar sadiamente o seu e o nosso estado, eu replicaria que o julgamento da felicidade é menos uma questão de razão do que de sentimento. Aliás, essa resposta pode voltar-se contra nós com mais vigor ainda, pois vai maior distância de nossas ideias à disposição de ânimo imprescindível para conceber o gosto que sentem os selvagens por seu modo de vida, dó que das ideias dos selvagens àquelas que podem fazer com que concebam o nosso. Com efeito, depois de algumas observações, é fácil de ver que todos os nossos trabalhos se dirigem para dois únicos objetos, a saber, alcançar para si as comodidades da vida e a consideração dos demais. Mas qual o meio que temos para imaginar a espécie de prazer que um selvagem experimenta passando a vida só, no meio dos bosques, na pesca ou a tocar numa flauta ruim sem jamais saber tirar um único som e sem preocupar-se com aprendê-lo? Por diversas vezes levaram selvagens a Paris, a Londres e a outras cidades; esforçaram-se para exibir-lhes nosso luxo, nossas riquezas e todas as nossas artes mais úteis e curiosas; tudo isso só despertou neles uma admiração estúpida, sem o menor movimento de cobiça. Entre outras, lembro-me da história de um chefe de alguns americanos setentrionais que, há uns trinta anos, levaram à corte da Inglaterra. Passaram mil coisas diante de seus olhos, procurando fazer-lhe algum presente que pudesse agradar-lhe, sem ter encontrado nada que parecesse interessá-lo. Nossas armas pareciam-lhe pesadas e incômodas, nossos sapatos feriam-lhe os pés, nossas vestes o atrapalhavam, tudo o incomodava; por fim, viram que parecia experimentar algum prazer ao pegar uma coberta de lã e envolver seus ombros com ela. "Concordais, pelo menos", disseram-lhe logo, "quanto à utilidade desse objeto?" "Sim", respondeu ele, "isso me parece quase tão bom quanto à pele de um animal." Não o teria dito se tivesse usado uma e outra na chuva. Talvez dirão que é o hábito que, prendendo cada um à sua maneira de viver, impede os selvagens de sentirem o que existe de bom na nossa; nessas condições, deve pelo menos parecer bastante extraordinário que o hábito tenha mais força para fazer com que os selvagens prefiram a sua miséria do que os europeus o gozo de sua felicidade. Mas, para dar a esta última objeção uma resposta à qual não há uma única palavra para se responder, sem citar todos os jovens selvagens que inutilmente se buscaram para civilizar, sem falar dos groenlandeses e dos habitantes da Islândia a quem se tentou educar e alimentar na Dinamarca e que a tristeza e o desespero fizeram com que todos morressem, seja de tédio, seja no mar por onde tentaram alcançar a nado seu país, contentar-me-ei em citar um único exemplo bem atestado e que entrego ao exame dos admiradores da polícia europeia. "Todos os esforços dos missionários holandeses do cabo da Boa Esperança jamais conseguiram converter um único hotentote. Van der Stel, governador do Cabo, tendo tomado um deles desde a infância, fez com que fosse educado nos princípios da religião cristã e na prática dos costumes da Europa. Foi vestido ricamente, ensinaram-lhe inúmeras línguas e seus progressos corresponderam inteiramente aos cuidados que se tomaram com a sua educação. O governador, esperando bastante de seu espírito, mandou-o às Índias com um comissário geral que o empregou utilmente nos negócios da companhia. Depois da morte do comissário, voltou ao Cabo. Poucos dias depois de sua volta, numa visita que fez a alguns hotentotes parentes seus, resolveu despojar-se de sua vestimenta europeia para vestir-se com uma pele de ovelha. Assim posto, voltou ao forte, carregando um pacote que continha suas vestes antigas e, apresentando-as ao governador, fez-lhe o seguinte discurso: Tende a bondade de reconhecer que renuncio para sempre a estes ornamentos; renuncio também, para toda a vida, à religião cristã; minha resolução é viver e morrer na religião, nos costumes e nos usos de meus antepassados. A única graça que vos peço é deixar-me o colar e o cutelo que uso; guardá-los-ei a ambos como recordação de vós. Em seguida, sem esperar a resposta de Van der Stel, fugiu e jamais foi visto no Cabo." História das Viagens, tomo 5, pág. 175. Poderiam objetar-me que, numa tal desordem, os homens, em lugar de se degolarem obstinadamente uns aos outros, ter-se-iam dispersado, se não houvesse limites para a sua dispersão. Mas, em primeiro lugar, esses limites teriam sido os do mundo. Caso se pense na excessiva população que resulta do estado de natureza, poder-se-á concluir que a terra, nesse estado, não teria demorado a cobrir-se de homens que assim se veriam forçados a viver reunidos. Aliás, ter-se-iam dispersado, se o mal fosse rápido e se fizesse uma mudança do dia para a noite. Nasciam eles, porém, sob o jugo; quando sentiam seu peso, já tinham o hábito de carregá-lo e contentavam-se com esperar ocasião de sacudi-lo. Por fim, já acostumados a mil comodidades que os forçavam a permanecer reunidos, não lhes era tão fácil a dispersão quanto nos primeiros tempos, quando, cada um tendo necessidade somente de si mesmo, tomava seu partido sem esperar o consentimento de outrem. O Marechal de Villars contava que, numa de suas campanhas, tendo as excessivas trapaças de um intermediário de víveres feito com que o exército sofresse e reclamasse, ele o repreendeu abertamente e o ameaçou de enforcá-lo. "Essa ameaça não me atinge", respondeu-lhe acintosamente o velhaco, "e sinto-me muito à vontade para dizer-lhe que não se enforca um homem que dispõe de cem mil escudos." Não sei como isso aconteceu, acrescentou ingenuamente o marechal, mas na realidade não foi enforcado ainda que merecesse sê-lo cem vezes. A justiça distributiva opor-se-ia até a essa igualdade rigorosa do estado de natureza, ainda que fosse praticável na sociedade civil e, como todos os membros do Estado lhe devem serviços proporcionais a seus talentos e às suas forças, os cidadãos, por sua vez, devem ser distinguidos e favorecidos na proporção de seus serviços. É nesse sentido que se deve compreender o trecho de Isócrates, no qual louva os primeiros atenienses por terem sabido distinguir muito bem a mais vantajosa das duas espécies de igualdade, uma das quais consistia em fazer com que todos os cidadãos participassem indiferentemente das mesmas vantagens e, outra, em distribuí-las segundo o mérito de cada um. Esses hábeis políticos, acrescenta o orador, banindo a injusta igualdade, que não estabelece qualquer diferença entre os maus e os honestos, comprometeram-se irrecorrivelmente com aquela que recompensa e pune a cada um de acordo com o seu mérito. Mas, em primeiro lugar, jamais existiu sociedade, seja qual for o grau de corrupção a que possa ter chegado, na qual não se faça diferença entre os maus e os honestos; em matéria de costumes, na qual a Lei não pode fixar uma medida suficientemente exata para servir de regra ao magistrado, ela proíbe, muito sabiamente, para não deixar à própria discrição a sorte ou a classificação dos cidadãos, o julgamento das pessoas, para só deixar-lhe o das ações. Somente costumes tão puros quanto os dos cidadãos romanos podem suportar censores; semelhantes tribunais logo teriam posto tudo em desordem entre nós. É a estima pública que deve estabelecer a diferença entre os maus e os bons. O magistrado só é juiz do direito rigoroso; mas o povo é o verdadeiro juiz dos costumes; juiz íntegro e até esclarecido quanto a esse ponto, de quem às vezes se abusa, mas a quem jamais se corrompe. A posição dos cidadãos deve ser, pois, regulada, não segundo o mérito pessoal, o que seria deixar aos magistrados a capacidade de uma aplicação quase arbitrária da Lei, mas, sim segundo os serviços reais que prestam ao Estado e que são suscetíveis de julgamento mais exato. CARTA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU AO SR. PHILOPOLIS Desejais que vos responda, senhor, posto que me fazeis algumas perguntas. Trata-se, aliás, de uma obra dedicada a meus concidadãos; devo, ao defendê-la, justificar a honra que me deram ao aceitá-la. Deixo de lado, na vossa carta, aquilo que me diz respeito, tanto de bem quanto de mal, porque aproximadamente uma parte compensa a outra, e devido ao pouco que isso me interessa e ainda menos ao público e também porque tudo isso em nada contribui para a busca da verdade. Começo, pois, pelo raciocínio que me apresentais como essencial à questão que procurei resolver. O estado de sociedade, dizeis, é resultado imediato das faculdades do homem e, consequentemente, de sua natureza. Querer que o homem em absoluto não se torne sociável, seria desejar, então, que não fosse mais homem, e insurgir-se contra a sociedade humana é atacar a obra de Deus. Permiti-me, senhor, apresentar-vos, por minha vez, uma objeção antes de resolver a vossa. Eu vos pouparia esta digressão, se conhecesse caminho mais curto para chegar ao fim. Suponhamos que alguns sábios encontrassem, certo dia, o segredo de acelerar a velhice e a arte de fazer com que os homens usassem essa rara descoberta. Tal persuasão não seria talvez tão difícil de ser realizada como pode parecer à primeira vista, pois a razão, esse grande veículo de todas as nossas tolices, não nos faltaria para esta. Os filósofos e, sobretudo, as pessoas de bom senso, para sacudir o jugo das paixões e gozar do precioso repouso da alma, alcançariam a largos passos a idade de Nestor e de boa vontade renunciariam aos desejos que se podem satisfazer, a fim de se defenderem daqueles que é preciso abafar; sobrariam só alguns imprudentes que, embora se envergonhando de sua fraqueza, desejassem loucamente continuar jovens e felizes em lugar de envelhecerem para tornar-se sábios. Suponhamos que um espírito singular, extravagante, numa palavra, um homem de paradoxos, resolvesse então censurar nos demais o absurdo de suas máximas, demonstrar que, procurando a tranquilidade, correm para a morte, que só desvariam à força de serem razoáveis e, caso seja necessário um dia ficarem velhos, deveriam esforçar-se para que tal acontecesse o mais tarde possível. Não será preciso perguntar se nossos sofistas, temendo o descrédito de seu arcano, não se apressariam em interromper esse discursador importuno. "Sábios velhos", diriam a seus sectários, "agradecei aos céus as graças que vos concederam e congratulai-vos continuamente por ter seguido suas vontades. Estais decrépitos, é verdade, definhados, caquéticos, pois tal é o destino inevitável do homem; vosso entendimento porém está sadio- ; estais com os membros estropiados, é verdade, mas vossa cabeça por isso se sente mais livre; não poderíeis agir, mas falais como oráculos e, se vossas dores aumentam diariamente, vossa filosofia aumenta com elas. Deplorai essa juventude impetuosa, cuja saúde brutal a priva dos bens devidos à vossa fraqueza. Bem-vindas enfermidades que reúnem em torno de vós tantos hábeis farmacêuticos que possuem drogas mais numerosas do que os males que tendes, tantos médicos sábios que conhecem a fundo vosso pulso, que sabem em grego o nome de todos os vossos reumatismos, tantos zelosos consoladores e herdeiros fiéis que vos conduzem agradavelmente à vossa última hora! Quanta assistência perderíeis, se não tivésseis sabido arranjar os males que a tornaram necessária!" Podemos imaginar que, apostrofando depois nosso admoestador imprudente, se dirigiriam a ele aproximadamente do seguinte modo: "Cessai, declamador intemerato, de fazer esses discursos ímpios. Ousareis, com isso, contradizer a vontade daquele que criou o gênero humano? O estado de velhice não decorre da constituição do homem? Não é natural que o homem envelheça? Que fazeis, pois, nos vossos discursos sediciosos, senão atacar uma lei da natureza e, consequentemente, a vontade de seu criador? Se o homem envelhece, Deus quer que ele envelheça. Os fatos serão coisa diferente da expressão de sua vontade? Ficai sabendo que o homem jovem absolutamente não é aquele que Deus quis fazer e, para se empenhar em obedecer às ordens deste, é preciso apressar-se em envelhecer"? Supondo-se tudo isso, eu vos pergunto, senhor, se o homem de paradoxos deve calar-se ou responder, e, neste último caso, peço-vos que me indiqueis o que ele deve dizer. Esforçar-me-ei, então, para resolver vossa objeção. Posto que pretendeis atacar-me por via de meu próprio sistema, não esqueçais, peço-vos, de que na minha opinião a sociedade é tão natural para a espécie humana como a decrepitude para o indivíduo e de que aos povos são necessárias as artes, as leis e os governos, como as muletas o são para os velhos". A diferença toda está em que o estado de velhice decorre unicamente da natureza do homem e o da sociedade decorre da natureza do gênero humano, não imediatamente, como quereis, mas unicamente, como o provei, graças ao auxílio de certas circunstâncias exteriores que podem acontecer ou não, ou, pelo menos, acontecer mais cedo ou mais tarde e, consequentemente, apressar ou retardar o progresso. Inúmeras dessas circunstâncias dependem mesmo da vontade do homem; vi-me obrigado, para estabelecer uma paridade perfeita, a supor no indivíduo o poder de acelerar sua velhice como a espécie tem o de retardar a sua. Tendo, pois, o estado de sociedade um termo extremo, ao qual os homens podem querer chegar mais cedo ou mais tarde, não é inútil mostrar-lhes o perigo de ir tão depressa e as misérias de uma condição que tomam como a perfeição da espécie. Quanto à enumeração dos males de que estão os homens sobrecarregados e que afirmo serem sua obra, vós me assegurais - Leibniz e vós - que tudo está bem, assim se justificando a Providência. Estava longe de acreditar que ela tivesse necessidade, para justificar-se, do auxílio da filosofia leibniziana ou de qualquer outra. Julgais, vós mesmos, seriamente, que um sistema de filosofia, qualquer que seja, possa mostrar-se mais irrepreensível do que o universo e que, para desculpar a Providência, os argumentos de um filósofo se apresentem como mais convincentes do que as obras de Deus? Além disso, negar que o mal existe é um meio muito cômodo para desculpar o autor do mal. Os estoicos outrora caíram no ridículo por muito menos. De acordo com Leibniz e Pope, tudo o que existe está certo. Se existem sociedades, é por desejar o bem comum que existem; caso não existam, assim o deseja o bem comum. Se alguém persuadisse os homens a voltarem a morar nas florestas, estaria bom que para lá voltassem. Não se deve aplicar à natureza das coisas uma ideia do bem e do mal que não seja tirada de suas relações, pois elas podem ser boas em relação ao todo, apesar de más em si mesmas. Aquilo que concorre para o bem geral pode ser um mal particular, em relação ao qual há possibilidade de libertar-se quando possível. Porquanto se esse mal, enquanto suportado, é útil ao todo, o bem contrário, que se quer em seu lugar, não lhe será menos útil, desde que se estabeleça. Pela razão mesma de tudo estar bem assim como está, se alguém se esforça por mudar o estado das coisas, está bom que se esforce por mudá-lo; e, se é bom ou mau que o consiga, isso só se pode perceber pelo acontecimento e não pela razão. Seria bom para o todo que fôssemos civilizados, posto que o somos; mas certamente teria sido melhor para nós não o ser. Leibniz jamais teria tirado de seu sistema algo que pudesse contraditar essa proposição e está claro que o otimismo bem compreendido não me favorece, nem me desfavorece. Além disso, não é nem a Leibniz nem a Pope que devo responder, mas somente a vós que, sem distinguir o mal universal, que eles negam, do mal particular, que não negam, pretendeis suficiente que uma coisa exista para não ser permitido que se desejasse sua existência de outro modo. Mas, meu senhor, se tudo está bem como está, tudo estaria bem como esteve, antes de existirem governos e leis; pelo menos, teria sido supérfluo estabelecê-los. Jean-Jacques então, segundo vosso sistema, levaria vantagem sobre Philopoliso Se tudo está bem como está, assim como entendeis, de que servirá corrigir nossos vícios, curar nossos males, reparar nossos erros? Para que servem nossas cátedras, nossos tribunais e nossas academias? Para que chamar um médico quando tiverdes febre? Como podereis saber se o bem do todo maior, que não conheceis, não exige que tenhais a perturbação, e se a saúde dos habitantes de Saturno ou de Sirius não ficaria prejudicada com o restabelecimento da vossa? Deixai tudo andar como for possível, a fim de que tudo vá sempre bem. Se tudo está do melhor modo possível, deveis censurar toda e qualquer ação, pois toda ação produz necessariamente alguma mudança no estado em que as coisas se encontram no momento em que se dá; não se pode, pois, tocar em coisa alguma sem fazer o mal, e a única virtude que resta ao homem será o mais perfeito quietismo. Finalmente, se tudo está bem como está, é bom que existam lapões, esquimós, algonquinos, chicacas, caraíbas que vivem sem a nossa polícia, hotentotes que caçoam dela e um genebrino que as aprova. O próprio Leibniz concordaria com isso. O homem, dizeis, é feito do modo como o exigia o lugar que deveria ocupar no universo. Mas os homens diferem de tal modo, segundo os tempos e lugares, que, com tal lógica, se ficaria sujeito a estabelecer, partindo do particular para o universal, consequências muito contraditórias e muito pouco concludentes. Bastaria um erro de geografia para abalar toda essa pretensa doutrina, que deduz do que se vê aquilo que deve ser. O índio dirá que é próprio aos castores fugir para dentro de tocas e que o homem deve dormir numa rede pendurada nas árvores. Não, não, dirá o tártaro, o homem é feito para dormir numa carroça. Pobres pessoas, exclamariam os nossos Philopolis, com um ar de piedade, não vedes, que o homem é feito para construir cidades? Quando se trata de raciocinar sobre a natureza humana, o verdadeiro filósofo não é nem índio, nem tártaro, nem de Genebra, nem de Paris, mas o homem. Quanto a ser o macaco um animal, eu o creio e dei a razão disso; que o orangotango também o seja, eis o que tivestes a bondade de ensinar-me e confesso que, depois dos fatos que apresentei, parecia-me difícil a prova disso. Filosofais muito bem para pronunciar-vos a esse respeito tão levianamente quanto nossos viajantes, que às vezes se expõem, sem grande cuidado, a colocar os seus semelhantes na classe dos animais. Cativaríeis, certamente, o público e até instruiríeis os cientistas, se nos expusésseis os meios que empregastes para resolver essa questão. Na minha epístola dedicatória, cumprimentei minha pátria por possuir um dos melhores governos que possam existir; provei, no discurso, que lá deveriam existir muito poucos bons governadores. Não vejo onde reside a contradição que salientais em relação a essa passagem. Mas, como sabeis, senhor, que eu iria antes morar nos bosques, caso minha saúde o permitisse, do que entre meus concidadãos, em relação aos quais conheceis minha afeição? Longe de dizer, na minha obra, qualquer coisa semelhante, deveis nela ter encontrado razões muito fortes para não escolher esse gênero de vida. No meu íntimo, sinto muito bem com que dificuldade poderia abster-me de viver com homens tão corrompidos quanto eu, e mesmo um sábio, se é que existe, não irá, atualmente, procurar a felicidade no fundo de um deserto. É preciso, quando se pode, fixar sua moradia na pátria para amá-la e servi-la. Felizes daqueles que, privados dessa vantagem, podem pelo menos viver no seio da amizade, na pátria comum do gênero humano, nesse asilo imenso aberto a todos os homens, onde se comprazem igualmente a sabedoria austera e a juventude folgazã, onde reinam a humanidade, a hospitalidade, a doçura e todos os encantos de uma sociedade fácil, onde os pobres ainda encontram amigos, a virtude, exemplos que a incentivam, e a razão, guias que a esclarecem! É graças a esse grande teatro da fortuna, do vício e, algumas vezes, das virtudes que se pode com lucro observar o espetáculo da vida; mas é no seu país que cada um deveria em paz esperar o termo da sua. Parece-me, senhor, que me censurais seriamente a propósito de uma reflexão que a mim me parece muito justa e que, justa ou não, não tem no meu trabalho o sentido que vos apraz dar-me, com a adição de uma única letra. "Se a natureza nos destinou a sermos santos”, o senhor fez-me dizer, "ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contra a natureza e que o homem que medita é um animal depravado." Confesso-vos que, se eu tivesse confundido desse modo a sanidade com a santidade e se a proposição fosse verdadeira, acreditar-me-ia muito capaz de eu próprio tornar-me um grande santo no outro mundo ou pelo menos de comportar-me sempre bem neste. Termino, senhor, respondendo a vossas três últimas questões. Não abusarei do tempo que me dais para refletir sobre elas; este cuidado já tomara de antemão. "Um homem ou qualquer ser sensível, que jamais tivesse conhecido a dor, teria piedade e ficaria emocionado se visse uma criança sendo degolada?" Respondo que não. "Por que a populaça, a quem o Sr. Rousseau dispensa dose tão grande de piedade, se compraz com tanta avidez à vista do espetáculo de um infeliz expirando no suplício da roda?" Pela mesma razão que ides chorar no teatro e ver Sêide degolar seu pai ou Tiestes beber o sangue do filho o. A piedade é um sentimento tão delicioso que não constitui motivo de espanto procurar senti-la. Aliás, cada qual tem curiosidade secreta de estudar os movimentos da natureza nas proximidades desse momento temível que ninguém pode evitar. Acrescentai a isso o prazer de, durante dois meses, ser o orador do bairro e de contar aos vizinhos, pateticamente, a bela sorte do último supliciado na roda. "A afeição que as fêmeas dos animais demonstram pelos seus filhotes tem por objeto esses filhotes ou a mãe?" Primeiro, a mãe, para atender à sua necessidade, depois, por causa do hábito, os filhotes. Já o disse no Discurso. "Se por acaso fosse esta, o bem-estar dos filhotes só ficaria mais assegurado com isso." Também sou dessa opinião. No entanto, essa máxima antes deve ser ampliada que restringida, pois, desde que os pintos saem do ovo, verifica-se que a galinha não tem nenhuma necessidade deles, no entanto sua ternura maternal não os cede a nenhuma outra galinha. Aí estão, senhor, minhas respostas. Notai, afinal, que, neste caso como no do primeiro discurso, eu sou sempre o monstro que sustenta ser o homem naturalmente bom, enquanto meus adversários são sempre as pessoas de bem que, para a edificação pública, esforçam-se por provar que a natureza só deu origem acelerados. Sou, o quanto se possa ser de alguém que não se conhece, senhor, etc.