Baruch Spinoza – Ética Ética demonstrada em ordem geométrica e dividida em cinco partes que tratam: I. Sobre Deus. II. Sobre a Natureza e a Origem da Mente. III. Sobre a Origem e a Natureza dos Afetos. IV. Sobre a Servidão Humana, ou sobre a Força dos Afetos. V. Sobre a Potência do Intelecto, ou sobre a Liberdade Humana. Primeira Parte Sobre Deus DEFINIÇÕES I. Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve existência, dito de outro modo, aquilo cuja natureza só pode ser concebida como existente. II. É dita finita em seu gênero uma coisa que só pode ser limitada por outra de mesma natureza. Por exemplo, um corpo é dito finito, pois sempre concebemos outro maior. Igualmente, um pensamento é limitado outro pensamento. Mas um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo. III. Por substância entendo o que é em si e se concebe por si: isto é, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa para se formar. IV. Por atributo entendo aquilo que o intelecto percebe como constituindo a essência da substância. V. Por modo entendo as afecções da substância, isto é, aquilo que é em outro e se concebe por outro. VI. Por Deus entendo o ser absolutamente infinito, isto é, uma substância composta de infinitos atributos, cada um deles exprimindo uma essência eterna e infinita. Explicação Digo absolutamente infinito, não infinito em seu gênero. Com efeito, podemos negar infinitos atributos ao que é infinito em seu gênero, mas ao que é absolutamente infinito, pertence a sua essência tudo o que a exprime e não envolve nenhuma negação. VII. Diz-se livre a coisa que existe somente pela necessidade de sua natureza e que é determinada a agir somente por ela: e necessária, ou compelida, aquela que é determinada por outras coisas a existir e operar de certa e determinada maneira. VIII. Por eternidade entendo a própria existência concebida como o que se segue necessariamente da simples definição de coisa eterna. Explicação Pois tal existência, da mesma forma como a essência de uma coisa, é concebida como uma verdade eterna e, por isso, não pode ser explicada pela duração ou pelo tempo, mesmo que por uma duração sem início ou fim. AXIOMAS I. Tudo o que é, ou é em si, ou é em outro. II. O que não pode ser concebido por outro, deve ser concebido por si. III. Dada uma causa determinada, segue-se necessariamente um efeito, e, ao contrário, se não há nenhuma causa determinada, é impossível que se siga um efeito. IV. O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o envolve. V. Coisas que não tem nada em comum entre si, também não podem ser entendidas uma pela outra, dito de outro modo, o conceito de uma não envolve o conceito da outra. VI. A ideia verdadeira deve convir com seu ideado. VII. Qualquer coisa que pode ser concebida como não existente, tem uma essência que não envolve a existência. PROPOSIÇÃO I Uma substância é por natureza primeira com relação a suas afecções. Demonstração É evidente das Definições 3 e 5. PROPOSIÇÃO II Duas substâncias com atributos diversos não têm nada em comum entre si. Demonstração Também é evidente da Def. 3. Pois cada uma deve ser em si, e deve ser concebida por si, isto é, o conceito de uma não envolve o conceito da outra. PROPOSIÇÃO III Coisas que não têm nada em comum entre si não podem ser causa uma da outra. Demonstração Se elas não têm na em comum, então (pelo Axioma 5) não podem ser entendidas uma pela outra e (pelo Axioma 4) não podem ser causa uma da outra. QED (Quod erat demonstrandum) - Como se queria demonstrar. PROPOSIÇÃO IV Duas ou mais coisas distintas, distinguem-se entre si, seja por que os atributos das substâncias são diversos, seja por que as afecções destas substâncias são diversas. Demonstração Tudo o que é ou, é em si ou é em outro (pelo Axioma 1), isto é, (pelas Defs. 3 e 5), fora do intelecto só existem as substâncias e suas afecções. Então, fora do intelecto não existe nada que possa distinguir diversas coisas que não as substâncias, ou, o que é o mesmo (pela Def. 4), seus atributos ou suas afecções. QED PROPOSIÇÃO V Na natureza não podem existir duas ou mais substâncias com a mesma natureza ou atributo. Demonstração Se existissem várias [substâncias] distintas, deveriam distinguir-se entre si, seja pela diversidade dos atributos, seja pela diversidade das afecções (pela Prop. precedente). Se for somente pela diversidade dos atributos que se distinguem, conceder-se-á então que existe apenas uma do mesmo atributo. Mas se for pela diversidade das afecções, como uma substância é por natureza anterior às afecções (pela Prop. 1), então, se a despojarmos das afecções e a considerarmos em si, isto é (pela Def. 3 e pelo Axioma 6), se a considerarmos verdadeiramente, não poderemos concebê-la distinta de outra, isto é (pela Prop. precedente) não existirão várias [substâncias com mesmo atributo], mas apenas uma. QED PROPOSIÇÃO VI Uma substância não pode ser produzida por outra substância. Demonstração Na natureza não podem existir duas substâncias de mesmo atributo (pela Prop. precedente), isto é (pela Prop. 2), que tenham algo em comum entre si. Portanto (pela Prop. 3), uma não pode ser causa da outra, dito de outro modo, uma não pode ser produzida pela outra. QED Resultado Disso se segue que uma substância não pode ser produzida por outra coisa. Pois na natureza não existe nada além de substâncias e suas afecções, como fica patente pelo Axioma 1 e pelas Defs. 3 e 5. Ora ela não pode ser produzida por outra substância (pela Prop. precedente). Logo, uma substância não pode absolutamente ser produzida por outra coisa. QED Outra demonstração Isto se demonstra ainda mais facilmente pelo absurdo do contraditório. Pois se uma substância pudesse ser produzida por outra coisa, seu conhecimento dependeria do conhecimento de outra coisa (pelo Axioma 4) e, por conseguinte, ela não seria substância. PROPOSIÇÃO VII À natureza da substância pertence o existir. Demonstração Uma substância não pode ser produzida por outra coisa (pelo Res. Prop preced); portanto ela deve ser causa de si, isto é (pela Def. 1), sua essência envolve necessariamente a existência, ou, dito de outro modo, pertence a sua natureza o existir. QED PROPOSIÇÃO VIII Toda substância é necessariamente infinita. Demonstração Uma substância com um atributo não pode existir se não for única (pela Prop. 5), e pertence a sua natureza o existir (pela Prop. 7). Portanto, por natureza ela existirá, seja como finita ou infinita. Mas não como finita, pois (pela Def. 2) ela deveria ser limitada por outra coisa de mesma natureza, que também deveria existir necessariamente (pela Prop. 7); e, por conseguinte, existiriam duas substâncias de mesmo atributo, o que é absurdo (pela Prop. 5). Logo ela existe como infinita. QED Comentário I Como ser finito é em parte uma negação, e como ser infinito é uma afirmação absoluta da existência de certa natureza, segue-se da Prop. 7 que toda substância deve ser infinita Comentário II Não duvido que a demonstração da Prop. 7 seja difícil de conceber para todos os que julgam confusamente as coisas e que não costumam buscar conhecê-las por suas causas primeiras. Pois eles não distinguem entre as modificações das substâncias e as próprias substâncias, nem sabem como as coisas se produzem. Donde atribuem erroneamente às substâncias os princípios que veem nas coisas. Pois os que ignoram as verdadeiras causas das coisas confundem tudo e, sem repugnar a mente, forjam árvores que falam como homens e homens que nascem, não de sêmen, mas de pedras e imaginam formas quaisquer se transformarem em quaisquer outras. Igualmente, aqueles que confundem a natureza divina com a humana, atribuem facilmente a Deus afetos humanos, sobretudo por também ignorarem como os afetos se produzem na mente. Mas se os homens refletissem sobre a natureza da substância, não teriam a menor dúvida sobre a Prop. 7. Mais ainda, esta Proposição seria um axioma para todos e seria contada entre as noções comuns. Pois entenderiam como substância o que é em si e se concebe por si, aquilo cujo conhecimento não depende do conhecimento de outras coisas. E por modificações entenderiam o que é em outro, modificações cujo conceito se forma a partir do conceito da coisa em que elas são. Eis por que podemos ter ideias verdadeiras de coisas não existentes: ainda que elas não existam em ato fora do intelecto, sua essência pode ser compreendida em outra coisa, de sorte que podemos concebê-la por esta outra. Mas, fora do intelecto a verdade das substâncias existe nelas mesmas, pois elas se concebem por si. Se, portanto, alguém disser ter de uma substância uma ideia clara e distinta, isto é, verdadeira, e ainda assim duvidar da existência de tal substância, é como se dissesse ter uma ideia verdadeira e suspeitasse ao mesmo tempo que ela seja falsa (o que é evidente para qualquer um suficientemente atento); ou então, se alguém supor que uma substância é criada, supõe ao mesmo tempo que uma ideia falsa tornou-se verdadeira, o que é dos maiores absurdos que se pode conceber. Assim, é necessário confessar que a existência de uma substância, bem como a de sua essência, é uma verdade eterna. E, desta forma, pudemos concluir, de outra maneira, que existe somente uma substância de mesma natureza e julguei valer a pena mostrá-lo aqui. Mas, para fazê-lo de forma ordenada, cabe notar: (I) que a definição verdadeira de cada coisa envolve e exprime apenas a natureza da coisa definida. Do que se segue (II) que nenhuma definição envolve ou exprime um número preciso de indivíduos, pois ela exprime somente a natureza da coisa definida. Por exemplo, a definição de triângulo exprime somente a simples natureza do triângulo; e não um número preciso de triângulos. (III) Cabe notar que necessariamente há, para cada coisa existente, uma causa certa e precisa que faz com que ela exista. (IV) Note-se enfim que esta causa que faz com que certa coisa exista deve, ou estar contida na natureza ou definição da coisa existente (à sua natureza pertence o existir), ou estar fora dela. Segue-se daí que se na natureza existe um número certo e preciso de indivíduos, deve necessariamente haver uma causa fazendo com que existam estes indivíduos e que não existam nem mais nem menos. Se, por exemplo, existem na natureza vinte homens (que, para maior clareza, suponho existirem juntos, sem que outros tenham existido antes), não bastará (para dar razão a que existam vinte homens) apontar como causa a natureza humana em geral. Será preciso também mostrar a causa que faz com que não existam nem menos nem mais que vinte; pois (pela nota III), para cada um deve haver uma causa que o faça existir. Ora, esta causa (pelas notas II e III) não pode estar contida na natureza humana, pois a verdadeira definição de homem não envolve o número vinte. Então (pela nota IV), a causa com que faz que existam estes vinte homens, e por conseguinte faz com que cada um exista, deve necessariamente estar fora de cada um. Donde se deve concluir de forma absoluta que todas as coisas, cuja natureza é tal que possam existir diversos indivíduos, devem precisam necessariamente de uma causa externa para existir. Agora, já que à natureza da substância pertence o existir (pelo que já mostramos neste Comentário), sua definição deve envolver a existência necessária, e, por conseguinte, sua própria existência deve ser concluída apenas de sua definição. Ora, de sua própria definição (como mostramos nas notas II e III) não se pode seguir a existência de várias substâncias. Logo, segue-se necessariamente que existe uma única [substância] de mesma natureza, como havia sido proposto. PROPOSIÇÃO IX Quanto mais uma coisa tem de realidade ou de ser, mais atributos lhe competem. Demonstração É evidente pela Def. 4. PROPOSIÇÃO X Cada atributo de uma substância deve ser concebido por si. Demonstração Atributo é o que o intelecto percebe de uma substância como constituindo sua essência (pela Def. 4) e, por conseguinte (pela Def. 3), deve se conceber por si. QED Comentário Daqui se torna claro que, embora dois atributos sejam concebidos como realmente distintos, isto é, que um seja concebido sem ajuda do outro, não podemos concluir que constituam dois entes, ou duas substâncias diversas. Pois é da natureza da substância que cada um de seus atributos seja concebido por si. E, no entanto, todos os seus atributos sempre nela existiram simultaneamente e não foram produzidos um pelo outro, mas cada um exprime a realidade ou o ser da substância. Longe está de ser absurdo atribuir vários atributos a uma mesma substância. Assim é evidente que na natureza cada ente deve ser concebido em algum atributo, e que, quanto mais realidade ou ser ele tiver, mais atributos terá, e que [os atributos] exprimem necessidade, ou eternidade, e infinidade. E, por conseguinte, nada é mais claro que o fato de que o ente absolutamente infinito deve se definir (como ensinamos em Def. 6) como um ente composto de infinitos atributos, cada um exprimindo certa essência eterna e infinita. E se alguém perguntar por que sinal podemos reconhecer a diferença entre as substâncias, leia as Proposições seguintes, que mostrarão que na natureza existe apenas uma única substância e que ela é absolutamente infinita. Portanto este sinal será procurado em vão. PROPOSIÇÃO XI Deus, ou, dito de outro modo, uma substância composta de infinitos atributos, cada um deles exprimindo uma essência eterna e infinita, existe necessariamente. Demonstração Se o negas, conceba se puder que Deus não existe e que (pelo Axioma 7) sua essência não envolve existência. Ora, isto (pela Prop. 7) é absurdo: logo Deus existe necessariamente. QED Alternativamente Para toda coisa devemos assinalar uma causa ou razão tanto para que ela exista como para não exista. Por exemplo, se um triângulo existe, deve haver uma causa ou razão para que ele exista; e se ele não existe, deve igualmente haver uma causa que o impeça de existir ou que suprima sua existência. Além disso, a verdadeira razão ou causa, ou está contida na natureza da coisa, ou lhe é externa. Por exemplo, a razão da não existência de um círculo quadrado está indicada por sua própria natureza, pois ela envolve uma contradição. E, inversamente, a existência da substância se segue de sua natureza, que envolve a existência (ver Prop. 7). Mas a razão que faz com que um círculo ou um triângulo exista ou não, se segue, não de sua natureza, mas da ordem da natureza corpórea inteira. Dela deve se seguir que exista agora necessariamente um triângulo ou que seja impossível que ele exista agora. Estas coisas são evidentes. Donde se segue que existe necessariamente aquilo que nenhuma razão ou causa impede de existir. Se, portanto, não pode haver nenhuma razão ou causa que impeça Deus de existir, ou que seja capaz de tolher sua existência, então Ele existe necessariamente. Ora, se houvesse tal razão ou causa, ela deveria estar, ou na própria natureza de Deus, ou fora dela, isto é, em outra substância de outra natureza. Pois se ela fosse de mesma natureza, por isso mesmo teríamos que conceder que Deus existe. Ora, uma substância de outra natureza não teria nada em comum com Deus (pela Prop. 2) e não poderia nem pôr nem tolher a existência de Deus. Já que a razão ou causa que poderia tolher a existência de Deus não pode estar fora da natureza divina, ela deveria, se Deus não existe, se encontrar necessariamente dentro de sua própria natureza, que, por isso, envolveria contradição. Ora, afirmar isto do Ente absolutamente infinito e sumamente perfeito é absurdo. Logo, não há nem em Deus nem fora de Deus nenhuma causa ou razão que lhe tolha a existência e, portanto, Deus existe necessariamente. QED Alternativamente Poder não existir é uma impotência, e, ao contrário, poder existir é uma potência (como é evidente). Se, portanto, existissem agora necessariamente apenas entes finitos, então os entes finitos seriam mais potentes do que o Ente absolutamente infinito: e isto (como é evidente) é um absurdo; e, portanto, ou nada existe, ou o Ente absolutamente infinito existe também. Ora nós existimos, seja em nós ou em outra coisa que exista necessariamente (veja Axioma 1 e Prop. 7). Portanto, o Ente absolutamente infinito, isto é (pela Def. 6), Deus, existe necessariamente. QED Comentário Nesta última demonstração, quis mostrar a existência de Deus a posteriori para que a demonstração fosse mais fácil de perceber, o que não quer dizer que a existência de Deus não se siga a priori do mesmo fundamento. Pois uma vez que poder existir é uma potência, segue-se que, quanto mais realidade compete à natureza de uma coisa, mais força ela tem de existir. E, precisamente, o ser absolutamente infinito, ou Deus, tem uma potência absoluta e infinita de existir e, portanto, existe absolutamente. Mas talvez muitos não tenham facilidade de ver a evidência desta demonstração, acostumados que estão a só contemplar coisas que são determinadas por causas externas. Eles veem nelas que as coisas que são feitas rapidamente, isto é, as que existem facilmente, também perecem facilmente. Inversamente, julgam que coisas às quais muitas coisas se relacionam, são mais difíceis de fazer, isto é, não existem facilmente. Mas para livrá-los destes preconceitos, não tenho necessidade de mostrar aqui a razão por que é verdadeiro dito o que é feito rápido, rápido perece, nem de mostrar que com relação à natureza inteira todas as coisas são igualmente fáceis. É suficiente notar que não falo aqui de coisas que existem devido a causas externas, mas apenas da substância, que (pela Prop. 6) não pode ser produzida por nenhuma causa externa. Pois as coisas que existem devido a causas externas, quer sejam compostas de muitas ou poucas partes, devem toda sua perfeição ou realidade à potência (virtus) da causa externa, e, por conseguinte, sua existência se origina da perfeição da causa externa e da perfeição delas mesmas. Ao contrário, a perfeição da substância não se deve a nenhuma causa externa, pois sua existência só deve se seguir de sua própria natureza, que é sua própria essência. Portanto, a perfeição de uma coisa não lhe tolhe a existência, mas, ao contrário, a estabelece, enquanto que a imperfeição esta sim tolhe a existência. Donde não podemos estar mais certos da existência algo do que da existência do Ente absolutamente infinito, ou perfeito, isto é Deus. Pois sua essência exclui toda imperfeição e envolve a perfeição absoluta, fato que dá à sua existência a mais alta certeza e suprime toda razão para dela duvidar, o que, acredito, ficará claro para quem preste mediana atenção. PROPOSIÇÃO XII Não se pode conceber verdadeiramente nenhum atributo do qual se siga que a substância possa se dividir. Demonstração As partes em que a substância se dividiria, ou guardariam a natureza da substância, ou não. No primeiro caso, cada parte deveria ser (pela Prop. 8) infinita (pela Prop. 6), causa de si e (pela Prop. 5) consistir em um atributo diferente, donde, de uma substância se poderia constituir várias, o que (pela Prop. 6) é absurdo. Acrescente-se a isso que (pela Prop. 2) as partes não teriam nada em comum com o todo, e o todo (pela Defin. 4 e Prop. 10) poderia ser e ser concebido sem as suas partes, o que é um absurdo para além de qualquer dúvida. No segundo caso, a saber, em que as partes não guardariam a natureza da substância, a substância perderia sua natureza e deixaria de existir, o que (pela Prop. 7) é absurdo. PROPOSIÇÃO XIII Uma substância absolutamente infinita é indivisível. Demonstração Se fosse divisível, as partes em que se dividiria, ou guardariam a natureza da substância absolutamente infinita, ou não. No primeiro caso, haveria várias substâncias de mesma natureza, o que (pela Prop. 5) é absurdo. No segundo caso, a substância absolutamente infinita (como vimos acima) deixaria de existir, o que (pela Prop. 11) é absurdo. Resultado Segue-se que nenhuma substância, e consequentemente, nenhuma substância corpórea, pode, enquanto substância, ser divisível. Comentário Compreende-se mais simplesmente que a substância é indivisível, tendo em vista que a natureza da substância só pode ser concebida como infinita, mas uma parte da substância só pode ser entendida como uma substância finita, implicando (pela Prop. 8) em contradição evidente. PROPOSIÇÃO XIV Afora Deus não pode haver nem ser concebida nenhuma substância. Demonstração Como Deus é o ente absolutamente infinito, que não pode ser negado por nenhum atributo exprimindo a essência da substância (pela Def. 6) e que existe necessariamente (pela Prop. 11), se houvesse alguma substância além de Deus, ela deveria se explicar por algum atributo de Deus e existiriam duas substâncias de mesmo atributo, o que (pela Prop. 5) é absurdo. Donde não pode haver, nem consequentemente ser concebida, nenhuma substância afora Deus. Pois se fosse possível conceber tal substância, ela deveria ser necessariamente ser concebida como existente, o que (pela primeira parte desta Demonstr.) é absurdo. Logo, afora Deus não pode haver nem ser concebida nenhuma substância. QED Resultado I Segue-se de forma claríssima (I) Que Deus é único, isto é (pela Def. 6), que na natureza só há uma substância, que é absolutamente infinita, como indicamos no Com. Prop 10. Resultado II Segue-se (II) que a coisa extensa e a coisa pensante ou são atributos de Deus ou (pelo Axioma 1) são afecções dos atributos de Deus. PROPOSIÇÃO XV Tudo que é, é em Deus e sem Deus nada pode ser nem ser concebido. Demonstração Afora Deus não pode haver nem ser concebida nenhuma substância (pela Prop. 14), isto é (pela Def. 3) nenhuma coisa que é em si e é concebida por si. E os modos (pela Def. 5) não podem ser nem ser concebidos sem a substância e, portanto, só podem ser na natureza divina e só podem ser concebidos por ela. Ora, nada existe além de substâncias e modos (pelo Axiom. 1). Logo, nada pode ser nem ser concebido sem Deus. QED Comentário Há quem imagine que Deus, à semelhança do homem, é composto de corpo e mente e está sujeito às paixões. Mas o quão eles se afastam da verdadeiro conhecimento de Deus já foi suficientemente estabelecido pelo que demonstramos. Mas os deixo de lado, pois todos os que contemplaram de algum modo a natureza divina negam que Deus seja corpóreo. Eles o provam muito bem partindo de que entendemos por corpo algo dotado de quantidade, comprimento, largura e profundidade e limitado por alguma figura e isto não pode ser dito de Deus, o ente absolutamente infinito, sem recair no maior dos absurdos. E, no entanto, por outros argumentos que acrescentam no esforço por demonstrar a mesma coisa, mostram claramente que removem por completo a substância corpórea ou extensa da natureza divina, estabelecendo que ela foi criada por Deus. Mas por qual potência divina ele pôde criá-la, eles mesmos ignoram, mostrando claramente que não entendem o que eles mesmos dizem. Quanto a mim, demonstrei com clareza, a meu juízo pelo menos (vide Res. l Prop. 6 e Com. 2 Prop. 8), que nenhuma substância pode ser produzida ou criada por outra coisa. Em seguida, na Prop. 14, mostramos que afora Deus não pode haver ou ser concebida nenhuma substância, donde concluímos que a substância extensa é um dos infinitos atributos de Deus. Mas para uma explicação mais completa, refutarei os argumentos dos adversários que recaem no seguinte. Primeiramente, a substância corpórea, enquanto substância, é composta de partes, pensam eles. Por esta razão negam que ela possa ser infinita e que possa pertencer a Deus. E explicam isto por múltiplos exemplos, dos quais mencionarei um ou outro. Se a substância corpórea é infinita, dizem, conceba-se sua divisão em duas partes. Cada uma delas será ou finita ou infinita. Se for finita, o infinito seria composto de duas partes finitas, o que é absurdo. Se for infinita, haveria um infinito duas vezes maior que outro, o que também é absurdo. Além disso, se uma quantidade infinita for medida em partes de um pé, deve ser composta de infinitas de tais partes, da mesma forma como se for medida em partes de uma polegada, e assim um número infinito será doze vezes maior que outro número, o que é não menos absurdo. Finalmente, se concebemos que de um ponto de certa quantidade infinita, duas linhas, sejam AB e AC, que têm no início uma distância determinada, se projetam ao infinito. É certo que a distância entre B e C aumentará continuamente, até se transformar, de determinada que era, em indeterminada. E como tais absurdos se seguem, pensam eles, de que se supõe uma quantidade infinita, concluem que a substância corpórea deve ser finita e, consequentemente, que ela não deve pertencer à essência de Deus. Um segundo argumento aponta para a suma perfeição de Deus. Deus sendo o ente sumamente perfeito, dizem eles, não pode ser passivo. Mas a substância corpórea, que é divisível, pode ser passiva, donde se segue que ela não pertence à essência de Deus. Estes são argumentos que encontro nos escritores que se esforçam por mostrar que a substância corpórea é indigna da natureza divina e não pode a ela pertencer. Mas em verdade, quem prestar atenção verá que já lhes respondi, pois tais argumentos estão fundados na suposição de que a substância corpórea é composta de partes, o que (pela Prop. 12 e Res. Prop 13) mostrei ser absurdo. Em seguida, quem quiser corretamente examinar a coisa verá que todos estes absurdos (se forem todos absurdos, o que por ora não discuto), através dos quais procuram concluir que a substância extensa é finita, não seguem nem um pouco da suposição de uma quantidade infinita, e sim da suposição de uma quantidade infinita mensurável e composta de partes finitas. E, portanto, os absurdos que disso se seguem podem apenas concluir que uma quantidade infinita não é mensurável e que não pode ser composta de partes finitas. Mas isso é justamente o que nós (Prop. 12, etc.) já demonstramos. E assim a arma que nos apontaram na verdade se volta contra eles. Se, portanto, deste absurdo pretendem concluir que a substância extensa deve ser finita, fazem como aquele que, tendo imaginado que o círculo tem as propriedades do quadrado, conclui não ter o círculo não um centro a partir do qual as linhas tiradas com relação à circunferência são iguais. Pois a substância corpórea, que só pode ser concebida como infinita, única e indivisível (veja Props. 8, 5 e 12), eles a concebem composta de partes finitas, múltiplas e divisíveis, para poder então concluir que ela é finita. Igualmente, é assim que outros, após terem imaginado que uma linha é composta de pontos, souberam inventar numerosos argumentos para mostrar que uma linha não pode ser infinitamente dividida. Com efeito, não é menos absurdo supor que a substância corpórea seja composta de corpos ou partes, do que supor um corpo composto de superfícies, superfícies compostas de linhas e linhas compostas de pontos. E isto, todos os que sabem que uma razão clara é infalível devem reconhecer – e, em primeiro lugar, os que negam a existência do vácuo. Pois se a substância corpórea pudesse ser dividida de forma que suas partes fossem realmente distintas, não poderia uma parte ser eliminada enquanto as partes remanescentes mantivessem suas conexões anteriores? E por que todas as partes devem se ajustar de forma que não haja vácuo? Certamente, se as coisas são realmente distintas entre si, uma pode ser e manter sua condição sem as outras. Mas como não há vácuo na natureza (ver sobre isso alhures), devendo todas as partes dela concorrer para que não haja vácuo, segue-se que estas partes não podem ser realmente distintas, isto é, que a substância corpórea, enquanto substância, não pode ser dividida. Se, entretanto, perguntarmos por que razão somos naturalmente propensos a fazer divisões de quantidade, responderei que podemos conceber a quantidade de dois modos: seja abstratamente (ou superficialmente) na medida em que imaginamos, seja como substância, o que só pode ser feito pelo intelecto. Se atentamos para a quantidade como ela é na imaginação, o que fazemos frequentemente e com facilidade, vemos que ela é finita, divisível e composta de partes. Mas se a atentamos a ela como ela é no intelecto e a concebemos como substância, o que acontece raramente e com grande dificuldade, vemos, e isso já demonstramos, como infinita, única e indivisível. Por exemplo, podemos conceber que a água, enquanto água, pode ser dividida e que suas partes se separam umas das outras. Mas a água, enquanto substância corpórea não ser separada nem dividida. E isto é evidente para todos os que saibam distinguir entre imaginação e intelecto, particularmente ao atentar que a matéria é a mesma em todo lugar, e as partes são distintas apenas na medida em que concebemos a matéria como sendo afetada de diferentes maneiras – as partes, portanto, são distintas modalmente e não realmente. Por exemplo, podemos conceber que a água, enquanto água, seja divisível e suas partes possam ser separadas umas das outras. Mas a água, enquanto substância corpórea não pode ser separada nem dividida. E novamente, a água, enquanto água, pode ser gerada e corrompida, mas enquanto substância não pode ser nem gerada nem corrompida. Com isso julgo ter respondido ao segundo argumento, posto que ele está fundado na suposição de que a matéria, como substância, é divisível e composta de partes. E mesmo que assim não fosse, ignoro por que [a matéria] seria indigna da natureza divina, pois (pela Prop. 14) fora de Deus não pode haver nenhuma substância que o tornasse passivo. Eu digo que todas as coisas são em Deus e que tudo o se que acontece, acontece somente através das leis da natureza infinita de Deus e se segue (mostrarei em seguida) da necessidade de sua essência. Então, não há razão alguma para dizer que Deus possa ser passivo ou que a sustância extensa (ainda que seja suposta como divisível, mas concedendo ser ela eterna e infinita) seja indigna da natureza divina. Mas a este propósito basta pelo momento. PROPOSIÇÃO XVI Da necessidade na natureza divina devem se seguir infinitas coisas de infinitos modos (isto é, tudo o que possa ser cair sob um intelecto infinito). Demonstração Esta proposição deve ser evidente para qualquer um, bastando para isso atentar para que o intelecto conclui, da definição de uma coisa (isto é, da própria essência da coisa), diversas propriedades que dela se seguem necessariamente, e que estas são em maior número quanto mais realidade a definição da coisa exprimir, isto é quanto mais realidade a essência da coisa envolver. E como a natureza divina tem absolutamente infinitos atributos (pela Def. 6), cada um dos quais exprimindo uma essência infinita em seu gênero, então de sua necessidade devem se seguir necessariamente infinitas de coisas de infinitos modos (isto é, tudo o que possa ser cair sob um intelecto infinito). Resultado I Disso segue-se que Deus é causa eficiente de todas as coisas que possam cair sob um intelecto infinito. Resultado II Segue-se que Deus é causa por si e não por acidente. Resultado III Segue-se que Deus é absolutamente causa primeira. PROPOSIÇÃO XVII Deus age apenas pelas leis de sua natureza e não é compelido por ninguém. Demonstração Mostramos na Prop 16 que somente da necessidade da natureza divina, ou (o que é o mesmo) somente das leis de sua natureza, se seguem absolutamente infinitas coisas. Na Prop. 15 demonstramos que sem Deus nada pode ser nem ser concebido e que tudo o que é, é em Deus. Portanto, nada pode haver fora dele que o determine ou coaja a agir, e assim, ele age somente pelas leis de sua natureza e não é compelido por ninguém. QED Resultado I Disso se segue (I) que não há causa, extrínseca a Deus ou intrínseca, que o incite a agir, além a perfeição de sua natureza. Resultado II Segue-se (II) que somente Deus é causa livre. Com efeito, Deus existe somente pela necessidade de sua natureza (pela Prop. 11 e Res. 1 Prop. 14), e age somente pela necessidade de sua natureza. Donde (pela Def. 7) somente ele é causa livre. QED Comentário Outros pensam ser Deus causa livre, por poder (pensam eles) fazer com que coisas que dissemos seguirem-se de sua natureza (isto é, que estariam em seu poder) não se fizessem, ou que não fossem produzidas por ele. Mas isso é como se dissessem que Deus pudesse fazer com que da natureza do triângulo não se seguisse que seus três ângulos somam dois retos, ou, dito de outro modo, que dada uma causa dela não se seguisse o efeito – mas isso é absurdo. Ademais, mostrarei abaixo, sem a ajuda desta Proposição, que nem o intelecto nem a vontade pertencem à natureza de Deus. Sei, é claro, que muitos acreditam ser possível demonstrar que o sumo intelecto a vontade livre pertencem à natureza de Deus, pois dizem não conhecer o que possa ser atribuído a Deus de mais perfeito do que aquilo que em nós é a suma perfeição. Ademais, ainda que concebam Deus como sumamente inteligente, eles não creem que ele faça existir tudo o que entende em ato – pois pensam que desta maneira a potência de Deus seria destruída. Se ele tivesse criado, dizem eles, tudo o que é em seu intelecto, nada mais poderia criar, o que, creem, repugna a onipotência de Deus; e é por isso que preferem estabelecer um Deus indiferente a tudo, criando apenas o que ele, por um decreto absoluto da vontade, decidiu criar. Penso, ao contrário, ter mostrado claramente (ver Prop. 16) que da suma potência de Deus, isto é, de sua natureza infinita, se seguem sempre, ou resulta sempre com a mesma necessidade, infinitas coisas, de infinitos modos, isto é, tudo. E isto da mesma maneira que da natureza de um triângulo se segue, de toda eternidade e para toda a eternidade, que a soma dos três ângulos é igual a dois retos. Pois a onipotência de Deus foi em ato, desde toda a eternidade, e continuará em ato para toda a eternidade. E assim estabelecemos a onipotência de Deus de um modo, a meu juízo, muito mais perfeito. Mais do que isso. Meus adversários é que parecem, me permitam a franqueza, negar a onipotência de Deus. Pois são forçados a confessar que Deus compreende uma infinidade de coisas criáveis, mas que ele não pode jamais criar. Segundo eles, se ele criasse tudo o que compreende, esgotaria sua onipotência e se tornaria imperfeito. Para estabelecer que Deus é perfeito eles são levados reduzi-lo, ao mesmo tempo, a não poder fazer tudo que está ao alcance de sua potência. E não vejo o que poderia ser imaginado de mais absurdo e mais incompatível com a onipotência de Deus. Além disso – para dizer algo sobre o intelecto e a vontade que são comumente atribuídos a Deus – se a vontade e o intelecto pertencessem à essência eterna de Deus, deveríamos entender por cada um destes atributos algo muito diferente do que é normalmente entendido pelos homens. Pois o intelecto e a vontade que constituiriam a essência de Deus em tudo difeririam de nosso intelecto e vontade, só podendo concordar com eles no nome. Não concordariam um com o outro mais que a constelação cão concorda com o cão, animal que late. Demonstrarei isto a seguir. Se o intelecto pertence à natureza divina, ele não pode ser, por natureza, como nosso intelecto, que é ora posterior às coisas que entende (como muitos supõe), ora simultâneo, uma vez que Deus é anterior em causalidade a todas as coisas (pelo Res. 1 Prop 16). Ao contrário, se a verdade e a essência formal das coisas são como são é por que existem objetivamente no intelecto de Deus. E, portanto, o intelecto de Deus, concebido como constituindo a essência de Deus, é na verdade causa tanto da essência como da existência de todas as coisas. Isto parece ter sido notado por aqueles que afirmam que o intelecto, a vontade e a potência de Deus são uma só e a mesma coisa. E se o intelecto de Deus é a causa única das coisas, a saber, tanto da essência como da existência delas, ele deve ser diferente delas tanto com relação à essência como à existência. Pois o causado difere da sua causa precisamente pelo que dela guarda. Por exemplo, um homem é causa da existência e não da essência de outro homem, pois esta é uma verdade eterna. Por isso eles podem concordar completamente quanto à essência. Mas quanto à existência eles devem diferir, tanto que se um perecer o outro não perecerá. Mas se a essência de um pudesse ser destruída ou tornada falsa, a existência do outro também seria destruída. Eis por que uma coisa que é causa de um efeito, tanto de sua essência quanto de sua existência, deve diferir de tal efeito tanto pela essência quanto pela existência. Ora, o intelecto de Deus é causa de nosso intelecto, tanto de sua essência como de sua existência, e, portanto, o intelecto de Deus, concebido como constituindo a essência divina, difere de nosso intelecto com respeito tanto à essência quanto à existência e só pode concordar com ele no nome, como queríamos. A propósito da vontade procede-se do mesmo modo, como todos podem ver facilmente. PROPOSIÇÃO XVIII Deus é causa imanente de todas as coisas e não causa transitiva. Demonstração Tudo o que é, é em Deus e deve ser concebido por Deus (pela Prop. 15), e então (por Res. 1 Prop. 16), Deus é causa das coisas que são nele mesmo, o que é o primeiro ponto. Em seguida, afora Deus não pode haver nenhuma substância (pela Prop. 14), isto é (pela Def. 3), nenhuma coisa que seja em si e fora de Deus, o que é o segundo ponto. Logo, Deus é causa imanente de todas as coisas e não causa transitiva. QED PROPOSIÇÃO XIX Deus é eterno, ou, dito de outro modo, todos os atributos de Deus são eternos. Demonstração Deus (pela Def. 6) é uma substância, que (pela Prop. 11) existe necessariamente, isto é (pela Prop. 7), a cuja natureza pertence o existir, ou (o que é o mesmo) de cuja definição se segue seu próprio existir e, por conseguinte (pela Def. 8), que é eterno. Em seguida, por atributos de Deus é preciso entender (pela Def. 4) o que exprime a essência da substância divina, isto é, aquilo que pertence à substância (é isto mesmo, digo, o que os atributos devem envolver). Ora, à natureza da substância (como já demonstrei em Prop. 7) pertence a eternidade, logo, cada um dos atributos deve envolver a eternidade e, portanto, todos são eternos. QED Comentário Esta Proposição decorre também de forma claríssima do modo como demonstrei (Prop. 11) a existência de Deus. Daquela demonstração, se fica sabendo que a existência de Deus, assim como sua essência, é uma verdade eterna. Além disso, demonstrei de outro modo (Prop. 19 Princípios de Descartes) a eternidade de Deus e não é preciso repeti-lo aqui. PROPOSIÇÃO XX A existência de Deus e sua essência são uma só e mesma coisa. Demonstração Deus (pela Prop. precedente) e todos os seus atributos são eternos, isto é (pela Def. 8), cada um de seus atributos exprime existência. Portanto, estes mesmos atributos de Deus (pela Def. 4) explicam a essência eterna de Deus e explicam, ao mesmo tempo, sua existência eterna, isto é, aquilo mesmo que constitui a essência de Deus, constitui simultaneamente sua existência e, por conseguinte, sua existência e sua essência são uma só e mesma coisa. QED Resultado I Disso se segue (I) que a existência de Deus, assim como sua essência, é uma verdade eterna. Resultado II Segue-se (II) que Deus, ou que todos os atributos, são imutáveis. Pois, se mudassem com relação à existência, deveriam (pela Prop. precedente) mudar com relação à essência, isto é (como é evidente por si), de verdadeiros se tornariam falsos, o que é absurdo. PROPOSIÇÃO XXI Tudo o que se segue da natureza absoluta de um atributo de Deus deve existir sempre e ser infinito, ou, dito de outro modo, deve ser, por este atributo, eterno e infinito. Demonstração Conceba, se possível (caso negue esta proposição), que se siga da natureza de Deus, em um atributo qualquer de Deus, uma coisa qualquer finita, com uma existência e uma duração determinadas, por exemplo, a ideia de Deus no pensamento. Ora, o pensamento, que supomos ser um atributo de Deus, é necessariamente (pela Prop. 11) infinito por sua natureza. Mas, na medida em que tem a ideia de Deus ele é suposto finito. Ora (pela Definição 2), o pensamento só pode se conceber como finito se for limitado pelo próprio pensamento. Mas não pelo próprio pensamento enquanto constitui a ideia de Deus, pois, enquanto a supomos finita, e sim pelo pensamento enquanto ele não constitui a ideia de Deus que, no entanto (pela Prop. 11), deve existir necessariamente. Há, portanto, um pensamento que não constitui a ideia de Deus e isto é por que de sua natureza, enquanto pensamento absoluto, não se segue necessariamente a ideia de Deus. (Ele é concebido como constituindo e não constituindo a ideia de Deus.) O que é contra a hipótese. E, portanto, se a ideia de Deus no pensamento, ou qualquer coisa (o mesmo se aplica para qualquer coisa, pois a demonstração é universal) em qualquer atributo de Deus, se seguir da necessidade absoluta da natureza deste atributo, esta coisa deverá ser necessariamente infinita, o que era o primeiro ponto. Em seguida, o que se segue da necessidade da natureza de um atributo não pode ter duração determinada. Pois, se negá-lo, suponha uma coisa que se siga da necessidade da natureza de um atributo, por exemplo, a ideia de Deus, e suponha que por vezes esta ideia não existiu ou não existirá. Mas como se supõe que o pensamento é um atributo de Deus, deve existir necessariamente e ser imutável (pela Prop. 11 e Prop. 20 Res. 2). Então, para além dos limites da duração da ideia de Deus (pois é suposto que em algum tempo ela não existiu ou não existirá), o pensamento deve existir sem a ideia de Deus. Mas isso é contrário à hipótese, pois foi suposto que a ideia de Deus segue-se necessariamente do pensamento. Portanto, a ideia de Deus no pensamento, ou qualquer coisa que se siga necessariamente da natureza absoluta de um atributo qualquer de Deus, não pode ter uma duração determinada, mas que, por este atributo, esta coisa é eterna, o que era o segundo ponto. Note-se que devemos afirmar o mesmo de qualquer coisa que, em um atributo de Deus, se segue necessariamente da natureza absoluta de Deus. PROPOSIÇÃO XXII Tudo o que se segue de qualquer atributo de Deus, enquanto ele é modificado de uma modificação que, pelo mesmo atributo, existe necessariamente e é infinita, também deve existir necessariamente e ser infinito. Demonstração A demonstração desta Proposição procede do mesmo modo que a demonstração anterior. PROPOSIÇÃO XXIII Todo modo que existe necessariamente e é infinito, deve ter se seguido necessariamente, seja da natureza absoluta de um atributo de Deus, seja de um atributo modificado por uma modificação que existe necessariamente e é infinita. Demonstração Pois um modo é em outro, pelo qual deve ser concebido (pela Def. 5), isto é (pela Prop. 15), ele é somente em Deus e somente por Deus deve ser concebido. Se, portanto, um modo é concebido como infinito e existindo necessariamente, [tanto o ser infinito como e existência necessária] devem ser concluídas, ou percebidas por um atributo de Deus, enquanto concebido como exprimindo o infinito, a necessidade de existência, ou (o que, pela Def. 8, é mesma coisa) a eternidade, isto é (pela Def. 6 e pela Prop. 19), enquanto considerado absolutamente. Logo, um modo que existe necessariamente e é infinito deve ter se seguido da necessidade absoluta de um atributo de Deus, e isto, seja imediatamente (veja Prop. 21), seja mediante uma modificação que se segue de sua natureza absoluta, isto é (pela Prop. precedente), que existe necessariamente e é infinita. QED PROPOSIÇÃO XXIV A essência das coisas produzidas por Deus não envolve a existência. Demonstração Isto é evidente pela Definição 1. Pois aquilo cuja natureza (considerada em si) envolve existência é causa de si e existe apenas pela necessidade de sua natureza. Resultado Disso se segue que Deus não é apenas a causa de que as coisas comecem a existir, mas também de que elas perseverem no existir, ou, dito de outro modo (para usar um termo escolástico), Deus é causa do ser das coisas. Pois, que as coisas existam ou não, cada vez que atentamos para a essência delas, verificamos que ela não envolve nem existência nem duração. Logo sua essência não pode ser a causa nem de sua existência, nem de sua duração, mas somente Deus a cuja natureza pertence o existir (pelo Res. 1 Prop. 14). PROPOSIÇÃO XXV Deus não é apenas causa eficiente da existência das coisas, mas também de sua essência. Demonstração Se o negasse, Deus não seria a causa da essência das coisas e, (pelo Axioma 4) a essência das coisas não poderia ser concebida sem Deus, o que (pela Prop. 15) é absurdo. Logo, Deus também é causa da essência das coisas. QED Comentário Esta Proposição se segue com mais clareza da Proposição 16. Dela se segue que dada a natureza divina, deve necessariamente concluir-se tanto a essência como a existência das coisas. E, para dizê-lo em uma palavra, no mesmo sentido em que se diz que Deus é causa de si, deve-se dizer também que ele é causa de todas as coisas, como estabeleceremos de modo ainda mais claro no Resultado seguinte. Resultado As coisas particulares são apenas afecções dos atributos de Deus, ou, dito de outra maneira, modos pelos quais os atributos de Deus se exprimem de maneira precisa e determinada. A demonstração é evidente a partir da Proposição 15 e da Definição 5. PROPOSIÇÃO XXVI Uma coisa que é determinada a operar algo foi necessariamente determinada a isso por Deus; e uma coisa que não foi determinada por Deus [a operar algo], não pode determinar-se a si própria a fazê-lo. Demonstração Aquilo pelo que as coisas são ditas determinadas a operar algo é necessariamente algo de positivo (como é evidente). E, Deus, pela necessidade de sua natureza, é causa eficiente tanto da essência como da existência [das coisas] (pelas Props. 25 e 16), o que é o primeiro ponto. Donde se segue também de forma claríssima o segundo ponto, pois se uma coisa que não é determinada por Deus pudesse determinar-se por si mesma, a primeira parte da proposição seria falsa, o que, como mostramos, é absurdo. PROPOSIÇÃO XXVII Uma coisa que é determinada por Deus a operar algo, não pode se tornar indeterminada por si mesma. Demonstração Esta proposição é evidente pelo Axioma 3. PROPOSIÇÃO XXVIII Toda coisa singular, isto é, toda coisa que é finita e tem uma existência determinada, só pode existir e ser determinada a operar se for determinada a existir e a operar outra causa, que, por sua vez, também deve ser finita e ter uma existência determinada. E esta causa, a seu turno, só pode existir e ser determinada a operar se for determinada por outra, também ela finita e com existência determinada, e assim ao infinito. Demonstração Tudo o que é determinado a existir e a operar é assim determinado por Deus (pela Prop. 26 e Res. Prop 24). Ora, o que é finito e tem uma existência determinada não pode ter sido produzido pela natureza absoluta de um atributo de Deus, pois tudo o que se segue da natureza absoluta de um atributo de Deus é infinito e eterno (pela Prop. 21). Logo, deve ter se seguido de Deus ou de um atributo de Deus, enquanto considerado como afetado de certo modo, pois nada existe além da substância e dos modos (pelo Axioma 1 e Defs. 3 e 5) e os modos (pelo Res. Prop. 25) são as afecções dos atributos de Deus. Ora, [algo que é finito e tem uma existência determinada,] não pode ter se seguido nem de Deus nem de um atributo de Deus, enquanto afetado de uma modificação que é eterna e infinita (pela Prop. 22). Deve, portanto, ter se seguido, ou ter sido determinado a existir e a operar, de Deus ou de um atributo de Deus, enquanto modificado de uma modificação que é finita e tem uma existência determinada. O que era o primeiro ponto. Em seguida, esta causa, a seu turno, ou este modo (pelo mesmo raciocínio com que demonstramos a primeira parte), deve ter se seguido de um outro, que também deve ser finito e ter sua existência determinada, e este último (pela mesma razão), por outro, e assim sempre (pela mesma razão), ao infinito. QED Comentário Como algumas coisas devem ter sido produzidas por Deus imediatamente, a saber, as que se seguem necessariamente de sua natureza absoluta, e outras (que, todavia, não podem ser nem ser concebidas sem Deus) [devem ter sido produzidas] mediante estas primeiras, segue-se: (I) Que Deus é causa absolutamente próxima das coisas por ele produzidas imediatamente e não [causa próxima] em seu gênero, como dizem, pois os efeitos de Deus não podem ser nem ser concebidos sem ele, que é sua causa (pela Prop. 15 e Res. Prop 24). (II) Que Deus não pode ser dito propriamente causa remota das coisas singulares, senão, talvez, para distinguir estas das que ele produziu imediatamente, ou melhor, das que seguem de sua natureza absoluta. Pois por causa remota entendemos uma causa tal que não está de forma alguma conectada a seu efeito. Ora, tudo o que é, é em Deus, e é de tal forma dependente de Deus que não pode sem ele nem ser nem ser concebido. PROPOSIÇÃO XXIX Na natureza não há nada contingente, mas tudo é determinado pela necessidade da natureza divina a existir e a operar de certo modo. Demonstração Tudo o que é, é em Deus (pela Prop. 15) e Deus não pode ser dito coisa contingente. Pois (pela Prop. 11) existe necessariamente e não de forma contingente. Além disso, os modos da natureza divina também se seguem dela necessariamente e não de forma contingente (pela Prop. 11), e isto, quer enquanto consideramos a natureza divina absolutamente (pela Prop. 21), quer enquanto a consideramos determinada a agir certo modo (pela Prop. 27). Além disso, Deus não é causa dos modos apenas enquanto simplesmente existem (pelo Res. Prop. 24), mas também (pela Prop. 26) enquanto os consideramos como determinados a operar algo. Pois se não forem determinados por Deus (pela mesma Prop) é impossível, e não contingente, que eles se determinem a si próprios. E, ao contrário (pela Prop. 27), se Deus não os determinar, é impossível, e não contingente, que eles se tornem indeterminados por si próprios. Tudo, portanto, é determinado pela necessidade da natureza divina, não apenas a existir, mas a existir e a operar de certo modo e não há nada que seja contingente. QED Comentário Antes de prosseguir, gostaria de explicar, ou melhor, lembrar [ao leitor], o que nós entendemos por Natureza naturante e Natureza naturada. Estimo que do já exposto ficou estabelecido que por Natureza naturante entendemos o que é em si e se concebe por si, ou, em outras palavras, os atributos da substância, que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é (por Res. 1 Prop. 14 e Res. 2 Prop. 17), Deus enquanto considerado como causa livre. E por [Natura] naturada entendo tudo o que se segue da natureza de Deus, ou, de outro modo, [o que se segue] de cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos de todos os atributos de Deus, enquanto são considerados como coisas que são em Deus e que sem Deus não podem nem ser nem ser concebidas. PROPOSIÇÃO XXX Um intelecto, seja finito em ato ou infinito em ato, deve compreender os atributos de Deus e as afecções dos atributos e nada mais. Demonstração Uma ideia verdadeira deve convir com seu ideado (pelo Axioma 6), isto é, como é evidente, o que o intelecto contém objetivamente deve necessariamente estar dado na natureza. Ora, na natureza (pelo Res. 1 Prop 14) só existe uma substância, Deus, certamente, assim como só existem as afecções (pela Prop. 15) que são em Deus e que (pela mesma Prop.) sem Deus não podem nem ser nem serem concebidas. Portanto, um intelecto, seja finito em ato ou infinito em ato, deve compreender os atributos de Deus e as afecções dos atributos e nada mais. QED PROPOSIÇÃO XXXI Um intelecto em ato, seja ele finito ou infinito, assim como a vontade, o desejo, o amor, etc., deve ser referido à Natureza naturada e não à Natureza naturante. Demonstração Por intelecto entendemos (como é evidente) não o pensamento absoluto, mas apenas certo modo do pensamento, que difere de outros modos como o desejo, o amor, etc. e que, portanto (pela Def. 5), deve ser concebido pelo pensamento absoluto, a saber (pela Prop. 15 e Def. 6), por um atributo de Deus que exprime a essência eterna e infinita do pensamento, e deve se concebido de tal sorte que sem ele não possa nem ser nem ser concebido. Logo, [o intelecto,] como os demais modos do pensamento, deve (pelo Com. Prop. 29) ser referido à Natureza naturada e não à Natureza naturante. QED Comentário A razão que me faz falar aqui de um intelecto em ato, não é que eu conceda a existência de um intelecto em potência, mas sim que, desejando evitar toda confusão, quis falar apenas da coisa percebida por nós da maneira mais clara do mundo, isto é, da própria intelecção. Pois não há nada que possamos compreender pelo intelecto que não conduza a um conhecimento mais perfeito da intelecção. PROPOSIÇÃO XXXII A vontade não pode ser chamada de causa livre, mas apenas [causa] necessária. Demonstração A vontade é apenas certo modo do pensamento, assim como o intelecto. Por conseguinte, cada volição só pode existir e ser determinada a operar se for determinada por outra causa, e esta por outra, ao infinito. Mesmo que a vontade seja suposta infinita, ela também deve ser determinada a existir e operar por Deus, não enquanto é substância absolutamente infinita, mas enquanto tem um atributo que exprime a essência eterna e infinita do pensamento (pela Prop. 23). Logo, quer concebamos [a vontade] como finita ou infinita, ela requer uma causa que a determine a existir e operar e, portanto (pela Def. 7) não pode ser dita causa livre, mas apenas necessária ou compelida. QED Resultado I Segue-se (I) que Deus não opera por liberdade da vontade. Resultado II Segue-se (II) que a vontade e o entendimento têm a mesma relação com a natureza de Deus que o movimento e o repouso e são todos eles coisas absolutamente naturais que (pela Prop. 29) devem ser determinados por Deus a existir e a operar de certo modo. Pois a vontade, como todas as outras coisas, precisa de uma causa que a determine a existir e a operar de certo modo. E ainda que de uma vontade ou um intelecto dado possam se seguir infinitas coisas, não se pode dizer por isso que Deus aja por livre vontade, da mesma forma como não se pode dizer que ele aja por liberdade do movimento e do repouso devido às coisas que se seguem do movimento e do repouso (pois deles também podem se seguir infinitas coisas). Logo a vontade não pertence à natureza de Deus mais do que outras coisas naturais, mas ela tem com [a natureza de Deus] a mesma relação que o movimento e o repouso e todas as outras coisas que, como mostramos, seguem-se da necessidade da natureza divina e são determinadas a existir e a operar de certo modo. PROPOSIÇÃO XXXIII As coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus de outro modo ou em outra ordem senão naquela em que foram produzidas. Demonstração Dada a natureza de Deus, todas as coisas dela se seguiram necessariamente (pela Prop. 16) e foram determinadas pela necessidade da natureza Divina a existir e a operar de certo modo (pela Prop. 29). Se, portanto, as coisas pudessem ter outra natureza, ou pudessem ter sido determinadas de outro modo, de forma que a ordem da natureza fosse outra, então Deus poderia ter uma natureza diferente da que ele tem. E (pela Prop. 11) esta outra natureza também deveria existir e, consequentemente poderiam existir dois ou mais Deuses, o que (pelo Res. 1 Prop. 14) é absurdo. Eis por que as coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus de outro modo ou em outra ordem, etc. QED Comentário I Como assim mostrei de forma mais clara que a luz do meio dia que não há absolutamente nada nas coisas as faça serem ditas contingentes, gostaria agora de explicar brevemente o que devemos entender por contingente. Mas primeiro [explicarei o que devemos entender] por necessário e impossível. Uma coisa é dita necessária, seja em razão de sua essência ou em razão de sua causa. Pois a existência de uma coisa se segue necessariamente, seja de sua essência e definição, seja de uma dada causa eficiente. E uma coisa é chamada impossível por estas mesmas causas, isto é, seja por que sua essência ou definição envolve uma contradição, seja por que nenhuma causa externa foi determinada a produzir esta coisa. Mas uma coisa é dita contingente somente por um defeito de nosso conhecimento. Com efeito, uma coisa cuja essência ignoramos envolver contradição ou não – ou cuja essência sabemos não envolver contradição, sem poder, no entanto, afirmar nada com certeza a respeito de sua existência, uma vez que a ordem das causas nos escapa – esta coisa jamais nos parecerá como necessária nem como impossível e assim nós a chamamos, seja de contingente, seja de possível. Comentário II Do que precede se segue que as coisas foram produzidas por Deus com suma perfeição, pois elas se seguiram necessariamente da mais perfeita natureza que há. E isto não revela nenhuma imperfeição de Deus, pois, com efeito, sua perfeição nos compele a afirmá-lo. Mais ainda, é da afirmação contrária que se seguiria claramente (como mostrei) que Deus não seria sumamente perfeito. Pois, se as coisas tivessem sido produzidas de outro modo, seria preciso atribuir a Deus outra natureza, diferente da que a consideração do Ente perfeito nos compele a lhe atribuir. Mas não duvido que muitos rejeitem esta maneira de pensar como absurda, recusando-se até a examiná-la. E isto unicamente por que eles se habituaram a atribuir a Deus outro tipo de liberdade, bem diferente da que ensinamos (Def. 7), a saber uma vontade absoluta. Mas também não duvido que se eles quisessem meditar sobre o assunto e examinar cuidadosamente nossa série de demonstrações, acabariam por rejeitar inteiramente tal liberdade que ora atribuem a Deus, não apenas como fútil, mas como um grande obstáculo à ciência. E não é necessário repetir aqui o que dissemos no Comentário da Proposição 17. E, no entanto, para agradá-los, mostrarei que concedendo pertencer a vontade à essência de Deus, segue-se de sua perfeição que as coisas não poderiam ter sido criadas por Deus de outro modo ou em outra ordem. Será fácil mostrá-lo se considerarmos, primeiramente, o que eles mesmos concedem, isto é, que depende apenas da vontade e do decreto de Deus que cada coisa seja o que é. Pois de outro modo Deus não seria a causa de todas as coisas. Deve-se observar, em seguida, que todos os decretos de Deus foram por ele próprio sancionados por toda a eternidade. Pois de outro modo poder-se-ia arguir sua imperfeição ou inconsistência. Mas como na eternidade não há quando nem antes, nem depois, segue-se da perfeição mesma de Deus que ele não pode, nem nunca pôde, decretar algo de diferente, ou, dito de outro modo, Deus não foi antes de seus decretos e sem eles não pode ser. Mas eles dirão que não se seguiria nenhuma imperfeição de Deus se ele tivesse feito outra natureza, ou se tivesse decretado de toda a eternidade outra ordem da natureza. Mas se eles o dizem é por que concedem que Deus pode mudar seus decretos. Mas se Deus pudesse ter decretado algo diferente do que decretou sobre a natureza e sua ordem, isto é, se ele tivesse querido ou concebido algo diferente sobre a natureza, ele teria necessariamente uma vontade e um intelecto diferentes do que ele tem agora. E se é lícito atribuir a Deus outro intelecto e outra vontade, sem nenhuma mudança em sua essência e sua perfeição, porque não poderia ele agora mudar seus decretos sobre as coisas criadas permanecendo perfeito da mesma maneira? Pois [nesta doutrina] pouco importa para a essência e a perfeição de Deus, que seu entendimento e sua vontade concebam a natureza e a ordem das coisas criadas de uma forma ou de outra. Ademais, todos os filósofos que já vi concedem que em Deus não há intelecto em potência, mas apenas em ato. Mas como todos também concedem que seu intelecto e sua vontade não se distinguem de sua essência, segue-se que se Deus tivesse tido outro intelecto em ato e outra vontade, sua essência também teria sido outra. E assim (como concluí desde o princípio) se as coisas tivessem sido produzidas por Deus de outra forma, o intelecto de Deus e sua vontade ou (como se concede) sua essência teria sido outra, o que é absurdo. Portanto, como as coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus de outro modo ou em outra ordem, e como se segue da suma perfeição de Deus que isto é verdade, nenhuma sã razão pode nos convencer a acreditar que Deus não quis criar todas as coisas existentes em seu intelecto com a mesma perfeição que ele as entende. Mas eles dizem que não há perfeição ou imperfeição nas coisas. E depende apenas da vontade de Deus que elas sejam perfeitas ou imperfeitas, boas ou más e, se Deus quisesse, poderia fazer com que algo que agora é perfeito se tornasse sumamente imperfeito e vice-versa. Mas isso seria afirmar abertamente que Deus, que necessariamente entende o que quer, poderia por sua vontade fazer com que ele mesmo entendesse as coisas de forma diferente do que ele entende, o que (como mostrei) é um grande absurdo. Posso, portanto, reverter o argumento do seguinte modo. Tudo depende do poder de Deus. E, portanto, para que as coisas pudessem ser diferentes, seria preciso necessariamente que a vontade de Deus também fosse diferente. Mas a vontade de Deus não pode ser diferente (como mostramos de forma evidente a partir da perfeição de Deus). Logo, as coisas não são podem ser diferentes. Confesso que a opinião que sujeita todas as coisas a uma vontade indiferente de Deus e torna todas as coisas dependentes de seu beneplácito, se afasta menos da verdade que a opinião dos que estabelece que Deus age sempre com vista ao bem. Pois estes parecem colocar algo fora de Deus, que não depende de Deus, a que Deus ao operar atenta como a um modelo, ou que ele visa como a um alvo. E isto é simplesmente submeter Deus ao destino. Nada mais absurdo pode ser sustentado sobre Deus, que, mostramos ser causa primeira e livre, tanto da essência de todas as coisas, como de sua existência. Não perderei, então, tempo em refutar este absurdo. PROPOSIÇÃO XXXIV A potência de Deus é sua própria essência. Demonstração Da necessidade apenas da essência de Deus segue-se que Deus é causa de si (pela Prop. 11) e (pela Prop. 16 e Res. Prop 16) de todas as coisas. Logo, a potência de Deus, pela qual ele mesmo e todas as coisas são e agem, é sua própria essência. QED PROPOSIÇÃO XXXV Tudo o que concebemos estar no poder de Deus, existe necessariamente. Demonstração Tudo o que está no poder de Deus deve (pela Prop. precedente) estar compreendido em sua essência de forma que dela se siga necessariamente e, portanto, exista necessariamente. PROPOSIÇÃO XXXVI Nada existe de cuja natureza não se siga algum efeito. Demonstração Tudo o que existe exprime de modo certo e determinado a natureza de Deus ou a essência de Deus (pelo Res. Prop. 25), isto é (pela Prop. 34), tudo o que existe exprime de modo certo e determinado a potência de Deus, que é causa de todas as coisas. Logo (pela Prop. 16), [de tudo o que existe] deve se seguir um efeito. QED APÊNDICE No exposto até aqui, expliquei a natureza de Deus e respectivas propriedades, tais como: existe necessariamente; é único; existe e age somente pela necessidade da sua natureza; é a causa livre de todas as coisas, e como é; tudo existe em Deus e dele depende de tal maneira que nada pode existir nem ser concebido sem ele; e, finalmente, que tudo foi predeterminado por Deus, não certamente por livre arbítrio, isto é, irrestrito bel-prazer, mas pela natureza absoluta de Deus, ou, por outras palavras, pelo seu poder infinito. Além disso, tive o cuidado, onde quer que se me desse ocasião, de remover os prejuízos que poderia m estorvar a aceitação das minhas demonstrações, mas como ainda restam bastantes que, também, ou melhor, principalmente, poderia m e podem impedir os homens de abranger o encadeamento das coisas tal como expliquei, fui levado a pensar na conveniência de aqui os citar perante o tribunal da Razão. Todos os prejuízos que me cumpre indicar dependem de um só, a saber: os homens supõem comumente que todas as coisas da Natureza agem, como eles mesmos, em consideração de um fim, e até chegam a ter por certo que o próprio Deus dirige todas as coisas para determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as coisas em consideração do homem, e que criou o homem para que este lhe prestasse culto. É isto que antes de mais passarei a examinar, indagando em primeiro lugar, a causa por que quase toda a gente dá aquiescência a tal preconceito e é propensa naturalmente a abraçá-lo; a seguir, mostrarei a falsidade dele e finalmente direi como daí nasceram prejuízos acerca do bem e do mal, do mérito e do pecado, do louvor e do vitupério, da ordem e da confusão, da beleza e da fealdade, e outros do mesmo gênero. Não é este, decerto, o lugar adequado para deduzir tudo isto da natureza da mente humana, bastando agora que eu tome por fundamento o que por ninguém é posto em dúvida, a saber, que toda gente nasce ignorante das causas das coisas e que todos desejam alcançar o que lhes é útil e de que são cônscios. Com efeito, disso resulta: Em primeiro lugar, que os seres humanos têm a opinião de que são livres por estarem cônscios das suas volições e das suas apetências, e nem por sonhos lhes passa pela cabeça a ideia das causas que os dispõem a apetecer e a querer, visto que as ignoram. Resulta em segundo lugar que os homens procedem em todos os seus atos com vista a um fim, a saber, a utilidade, de que têm apetência; daqui o motivo por que sempre se empenham em saber somente as causas finais dos acontecimentos já passados e ficam tranquilos quando as ouvem dizer, certamente por não terem uma causa que os leve a propor dúvidas para além disto. Se não puderem, porém, vir a sabê-las por outrem, nada mais tem a fazer do que voltarem-se para si mesmos e refletirem sobre os fins por que habitualmente se determinam em atos semelhantes, e desta maneira julgam necessariamente a compleição alheia pela sua própria. Além disso como encontram em si e fora deles bastantes coisas que são meios que contribuem não pouco para que alcancem o que lhes é útil, como, por exemplo, olhos para ver, dentes para mastigar, vegetais e animais para alimentação, sol para iluminar, mar para o sustento de peixes, são levados a considerar todas as coisas da Natureza como meios para a sua utilidade pessoal. E porque sabem que tais meios foram por eles achados e não dispostos, daqui tiraram motivo para acreditar na existência de outrem que os dispôs para que os utilizassem. Com efeito, depois de haverem considerado as coisas como meios, não podiam acreditar que elas se criassem a si mesmas, e dos meios que costumam dispor para seu uso próprio foram levados a tirar a conclusão de que houve alguém ou alguns regentes da Natureza, dotados como os homens de liberdade, e que cuidaram em tudo que lhes dissesse respeito e para sua utilidade fizeram todas as coisas. Quanto à compleição destes seres, como nunca ouviram nada a tal respeito, também foram levados a julgá-la pela que em si notavam. Daqui haverem estabelecido que os deuses ordenaram tudo o que existe para uso humano, a fim de os homens lhes ficarem cativos e de serem tidos em suma honra; donde o fato de haverem excogitado, conforme a própria compleição, diversas maneiras de se render culto a Deus, para que Deus os estime acima dos outros e dirija a Natureza inteira em proveito da cega apetição e insaciável avareza. Assim, este prejuízo tornou-se em superstição e lançou profundas raízes nas mentes, dando origem a que cada um aplicasse o máximo esforço no sentido de compreender as causas finais de todas as coisas e de as explicar; mas, conquanto se esforçassem por mostrar que na Natureza nada se produz em vão (isto é, que não seja para proveito humano), parece que não deram a ver mais do que isto: a Natureza e os deuses deliram tal qual os homens. Repare-se, se me permitem, a que ponto se chegou! No meio de tantas coisas profícuas da Natureza, não podiam ter deixado de deparar com bastantes que são nocivas, tais como as tempestades, os terremotos, as doenças, etc.., e estabeleceram que tudo isso acontecia porque os deuses se irritavam com ofensas que os homens lhes tivessem feito ou com pecados cometidos no culto divino. Embora a experiência de cada dia protestasse e patenteasse com exemplos sem conta que os eventos benéficos e maléficos atingia m indistintamente indivíduos devotos e ímpios, nem por isso abandonaram o inveterado prejuízo. Foi-lhes mais fácil colocar isto no número das coisas cuja utilidade desconheciam, e assim se conservarem no estado presente e nativo da ignorância, do que destruir toda esta construtura e pensar numa nova. Daqui assentarem por certo que os juízos dos deuses ultrapassavam muitíssimo a capacidade humana. Isto só por si seria causa bastante para que a verdade ficasse para sempre oculta ao gênero humano, se a matemática, que não se ocupa de finalidades mas apenas da essência das figuras e respectivas propriedades, não desse a conhecer aos homens uma outra norma da verdade. Além da matemática, poderiam referir-se outras causas (que é supérfluo enumerar aqui) pelas quais se tornou possível que os homens atentassem nestes prejuízos vulgares e se encaminhassem no verdadeiro conhecimento das coisas. Isto basta para explicar o que prometi em primeiro lugar. Para mostrar agora que a Natureza não tem qualquer fim que lhe seja prefixado e que todas as causas finais nada mais são que ficções do espírito humano, não é necessário grande esforço. Com efeito, estou convencido de que isto está já suficientemente estabelecido, tanto pelos fundamentos e causas donde este prejuízo tira a sua origem, como mostrei, como pela proposição 16 e pelos corolários da proposição 32, e, além disso, pelas demonstrações em que fiz ver que tudo o que existe provém de certa necessidade eterna e da suma perfeição da Natureza. Não obstante, acrescentei ainda o seguinte, a saber, que esta concepção finalista subverte completamente a Natureza, porquanto o que na realidade é causa considera-o como efeito, e inversamente; e, além disso, o que por natureza é anterior fá-lo posterior, e, por fim, o que é mais elevado e mais perfeito torna-o em mais imperfeito. Deixando de lado os dois primeiros pontos, por si mesmos evidentes resulta das proposições 21, 22 e 23, que o efeito mais perfeito é o que é produzido por Deus imediatamente e que quanto mais causas intermediárias uma coisa carece para ser produzida tanto mais imperfeita é; ora, se as coisas que são imediatamente produzidas por Deus tivessem sido feitas para que Deus conseguisse o seu fim, então as últimas, em virtude das quais as primeiras foram feitas, seria m necessariamente as mais excelentes de todas. Além disso, esta concepção deita a terra a perfeição de Deus. Com efeito, se Deus age em vista de um fim, é porque necessariamente deseja algo de que carece. Embora teólogos e metafísicos distingam o fim de indigência do fim de assimilação, convém não obstante em que Deus produziu por si mesmo e não pelas coisas a criar, pois, excetuando Deus, não podem indicar coisa alguma anterior à criação pela qual Deus agisse; por conseguinte, são forçosamente constrangidos a confessar que Deus estava privado de tudo aquilo para que quis dispor os meios e que desejava, como é óbvio. Vem a propósito não deixar sem reparo que os sequazes desta concepção, que ao consignarem fins às coisas quiseram dar mostra do seu engenho, lançaram mão de um novo teor de argumentação, a saber, o da redução á ignorância, que não à redução ao absurdo, o que mostra que esta concepção não tinha nenhum outro recurso probatório. Com efeito, se, por exemplo, uma pedra cair de um telhado sobre a cabeça de alguém e o matar, demonstrarão da seguinte maneira que a pedra caiu para matar esse indivíduo; se não caísse com tal fim, por vontade de Deus, como é que tantas circunstâncias (pois na verdade é frequente concorrerem muitas simultaneamente) poderia m dar-se encontro naquela queda? Responder-se-á, talvez, que o acontecido ocorreu porque o vento soprou forte na ocasião e o indivíduo tinha de fazer caminho por esse sítio. Insistirão, porém: por que soprou o vento na ocasião e por que é que o indivíduo tinha de passar por esse sítio nessa ocasião? Se se retorquir que o vento se levantou na ocasião porque no dia precedente, com tempo até então calmo, o mar começara a agitar-se, e o indivíduo havia sido convidado por um amigo, replicarão de novo, dado não haver fim ao perguntar, por que é que o mar se agitou e o indivíduo fora convidado para tal ocasião, não cessando de perguntar as causas das causas até que o interlocutor se refugie na vontade de Deus, isto é, no asilo da ignorância. É assim que também pasmam de ver a estrutura do corpo humano, e porque ignoram as causas de tão acabada obra, concluem que ela está disposta por parte divina ou sobrenatural, e não mecanicamente, de forma que as suas partes se não lesem mutuamente. É por isso que se dá o caso de ser tido por herege e ímpio, e como tal proclamado pelos que o vulgo venera como intérpretes da Natureza e dos deuses, quem quer que indague as verdadeiras causas do maravilhoso e se aplique a compreender como sábio os fenômenos da Natureza em vez de ficar pasmado como tolo. Tais indivíduos sabem que removida a ignorância desaparece o espanto, isto é, o único meio de que dispõem para se valer de argumentos e manter autoridade. Deixo, porém, este assunto e passo ao que me propus tratar em terceiro lugar. Depois de se terem persuadido de que tudo o que acontece, acontece em vista deles, os homens foram levados a julgar que o principal, fosse no que fosse, é o que têm por mais útil e a darem apreço como mais prestante ao que mais agradavelmente os afetasse. Daí o serem obrigados a formar noções com que explicassem a natureza das coisas, tais como Bem, Mal, Ordem, Confusão, Quente, Frio, Beleza e Lealdade; e porque se reputam livres, isso deu origem a noções tais como Louvor e Vitupério, Pecado e Mérito. Explicarei estas últimas adiante, depois de haver tratado da natureza humana; mas daquelas passo a ocupar-me em breves palavras. Chamaram Bem a tudo o que importa ao bem-estar e ao culto de Deus, e Mal o que é contrário a isto. É que quem não conhece a natureza das coisas nada pode afirmar a respeito delas e somente as imagina e toma a imaginação pelo entendimento, e por isso acredita firmemente que existe Ordem nas coisas, ignorante como é da natureza dos seres e da de si mesmo. Com efeito, quando as coisas se acham dispostas de sorte que, ao serem representadas pelos sentidos, podem facilmente ser imaginadas e, por consequência, facilmente rememoradas, dizemos que estão bem ordenadas; mas, se se der o contrário, dizemos que estão mal ordenadas ou confusas. E como as coisas que facilmente podem ser imaginadas são mais agradáveis do que as outras, os homens preferem a ordem à confusão, como se a ordem, salvo em relação à nossa imaginação, fosse algo existente na Natureza. Assim, dizem que Deus criou todas as coisas ordenadamente, e desta maneira, sem saber o que dizem, atribuem imaginação a Deus, a menos que, porventura, não pretendam que Deus, ao prover os homens de imaginação, dispôs as coisas de tal sorte que ela as pudesse representar com a maior facilidade, sem provavelmente se embaraçarem com o fato de depararem com uma infinidade de coisas que excedem em muito a nossa imaginação e com grande número de outras que a deixam confusa pela própria debilidade. Isto basta sobre este ponto. As outras noções, também, nada mais são do que modos de imaginar, nos quais a imaginação é afetada diversamente. No entanto, os ignorantes consideram-nas como atributos principais das coisas, visto crerem, como já dissemos, que todas as coisas foram feitas para eles e dizerem que a natureza de uma coisa é boa ou má, sã ou podre e deteriorada, consoante são afetados por ela. Por exemplo: se o movimento que os nervos recebem dos objetos representados pela vista conduz à boa disposição, dirão dos objetos que os causam que são belos, mas, se excitam o movimento contrário, dirão que são feios. Aos que impressionam a sensibilidade por intermédio das narinas, chamam aromáticos ou fétidos; aos que têm por intermediário a língua, doces ou amargos, saborosos ou insípidos, etc..; o tato, duros ou moles, ásperos ou lisos, etc.., e, finalmente, o ouvido, dizem que produzem ruído, som ou harmonia. Esta última dementou os homens a ponto de acreditarem que Deus se deleitava com ela, e não faltaram filósofos que se persuadiram de que os movimentos celestes concertavam uma harmonia. Tudo isto mostra suficientemente como cada qual opina acerca das coisas conforme a disposição do seu cérebro, ou, antes, toma as afecções de sua imaginação como se fossem as próprias coisas; pelo que não é de admirar (notando isto de passagem) que se tenham originado entre os homens as controvérsias que a experiência nos ensina e deram ensejo ao ceticismo. Com efeito, embora os corpos humanos sejam conformes em muitas coisas, nem por isso deixam de se diferençar em muitas mais, e por consequência o que a um parece bom a outro parece mal, o que um considera posto em ordem tem outro por confuso, o que é agradável a um é desagradável a outro, e assim do resto, que omito, já por não ser este o lugar apropositado de tratar o assunto, já porque todos o conhecem por experiência. Andam na boca de toda gente rifões como estes: "Cada cabeça, cada sentença; cada qual abunda no seu parecer; não há menos diferença entre as cabeças que mostram suficientemente que os homens julgam as coisas consoante a disposição do seu cérebro e que as imaginam em vez de as compreenderem". Se as percebessem pelo entendimento, como testifica a matemática, elas teriam o dom, senão de cativar, pelo menos de convencer a toda gente. Vê-se assim que todas as noções com que o vulgo costuma explicar a Natureza são somente modos de imaginar, as quais nada dão a saber acerca da natureza do que quer que seja, mas apenas sobre a constituição da imaginação; e porque têm nomes como se fossem entes existentes fora da imaginação, chamo-lhes entes de imaginação e não entes de Razão. Daqui resulta que facilmente se podem repelir os argumentos que contra nós se vão buscar a tais noções. Com efeito, não falta quem tenha por hábito argumentar da seguinte maneira: se tudo existe em consequência da necessidade da natureza perfeitíssima de Deus, donde provém que na Natureza se origine tanta coisa imperfeita, designadamente, a alteração que chega ao mau cheiro, a fealdade que dá náuseas, a confusão, o mal, o pecado, etc..? Como disse há pouco, a refutação é fácil. Pois que a perfeição das coisas deve ser avalia da em consideração somente da natureza e da capacidade que elas têm, daí se segue que as coisas não são mais ou menos perfeitas por agradarem ou desagradarem aos sentidos de cada um, por favorecerem ou contrariarem a natureza humana. Aos que perguntam por que motivo não criou Deus todos os homens de modo tal que se conduzissem somente pela norma da Razão, responderei apenas isto: não lhe faltou matéria para cria r todas as coisas, desde o grau mais alto ao mais ínfimo da perfeição, ou, para falar com mais propriedade, porque as leis da natureza de Deus foram assaz amplas para bastarem à produção de tudo o que pode ser concebido por um entendimento infinito, como demonstrei na proposição 16. São estes os prejuízos de que aqui pretendi dar nota. Se ainda restarem alguns da mesma farinha, quem quer poderá corrigi-los com um pouco de reflexão. Segunda Parte Sobre a Natureza e a Origem da Mente Passo agora a explicar as coisas que devem se seguir necessariamente da essência de Deus, ou do Ente eterno e infinito. Não todas, certamente, pois demonstramos na Prop. 16, Parte I que dela se seguem infinitas coisas de infinitos modos, mas apenas aquelas que podem nos levar, como que pela mão, ao conhecimento da Mente humana e de sua suma beatitude. DEFINIÇÕES I. Por corpo entendo um modo de Deus que exprime de forma certa e determinada, a essência de Deus enquanto coisa extensa; vide Res. Prop. 25, P I. II. Digo pertencer à essência de uma coisa aquilo que, uma vez dado, põe necessariamente a coisa e, uma vez suprimido, necessariamente a destrói; ou aquilo sem o que a coisa não pode ser nem ser concebida e, ao reverso, aquilo que não pode ser nem ser concebido sem a coisa. III. Por ideia entendo um conceito que a mente forma por que é coisa pensante. Explicação Digo conceito ao invés de percepção, pois a palavra percepção parece indicar que a Mente é passiva com relação ao objeto, enquanto conceito parece exprimir uma ação da Mente. IV. Por ideia adequada entendo uma ideia que, enquanto considerada em si e sem relação com um objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma ideia verdadeira. Explicação Digo intrínsecas para excluir o que é extrínseco, isto é, a conveniência da ideia com seu ideado. V. Duração é a continuação indefinida do existir. Explicação Digo indefinida, pois [a duração] não pode ser determinada nem pela natureza da coisa existente, nem por sua causa eficiente, pois esta põe necessariamente a existência da coisa, mas não a destrói. VI. Por realidade e perfeição entendo a mesma coisa. VII. Por coisas singulares entendo coisas que são finitas e têm existência determinada. E se vários indivíduos concorrem em uma ação de forma que todos juntos são causas de um efeito, considero-os todos, nesta medida, como uma coisa singular. AXIOMAS I. A essência do homem não envolve existência necessária, isto é, da ordem da natureza tanto pode se fazer com que este ou aquele homem exista como que não exista. II. O homem pensa. III. Modos do pensamento como amor, desejo, ou tudo mais que seja designado como afeto da alma, não podem existir em um Indivíduo sem a ideia da coisa amada, desejada, etc. Mas esta ideia pode existir sem nenhum outro modo do pensamento. IV. Sentimos que certo corpo é afetado de muitos modos. V. Não sentimos nem percebemos coisas singulares além dos corpos e dos modos do pensamento. Vide Postulados após a Proposição 13. PROPOSIÇÃO I O pensamento é um atributo de Deus, ou, dito de outro modo, Deus é coisa pensante. Demonstração Os pensamentos singulares, isto é, este ou aquele pensamento, são modos que exprimem a natureza de Deus de modo certo e determinado (pelo Res. Prop. 25 P I). Portanto, eles competem a um atributo de Deus (pela Def. 5, P I) que envolve o conceito de todos os pensamentos singulares, através do qual eles são concebidos. Portanto, o Pensamento é um dos infinitos atributos de Deus, que exprime a essência eterna e infinita de Deus (vide Def. 6, PI), ou, dito de outro modo, Deus é coisa pensante. QED (Quod erat demonstrandum) - Como se queria demonstrar. Comentário Esta proposição é evidente partindo de que podemos conceber um ente pensante infinito. Pois um ente pensante pode pensar tanto mais, quanto mais contiver de realidade ou perfeição. Logo um ente que pode pensar infinitas coisas de infinitos modos é necessariamente infinito pela força do pensamento. E assim, já que podemos conceber um Ente infinito atentando somente para o pensamento, então o Pensamento (pelas Defs. 4 e 6 PI) é um dos atributos de Deus, como queríamos. PROPOSIÇÃO II A extensão é um atributo de Deus, ou, dito de outro modo, Deus é coisa extensa. Demonstração A demonstração procede do mesmo modo que a demonstração da proposição precedente. PROPOSIÇÃO III Há necessariamente em Deus uma ideia de sua essência e de tudo o que se segue de sua essência. Demonstração Com efeito, Deus (pela Prop. 1) pode pensar infinitas coisas de infinitos modos, ou (o que é o mesmo, pela Prop. 16 PI) pode formar uma ideia de sua essência e de tudo o que necessariamente se segue dela. Ora, tudo o que está no poder de Deus existe necessariamente (pela Prop. 35 PI). Portanto, tal ideia existe necessariamente e (pela Prop. 15 PI) [existe] em Deus. QED Comentário O vulgo entende que a potência de Deus é a vontade livre de Deus e seu direito sobre todas as coisas, que por isso são consideradas comumente como contingentes. Pois Deus tem o poder, dizem eles, de tudo destruir e tudo reduzir ao nada. Além disso, eles comparam frequentemente a potência de Deus à potência dos Reis. Mas nós refutamos isto nos Resultados I e II da Proposição 32 da Parte I e mostramos na Proposição 16 da Parte I que Deus age com a mesma necessidade que compreende a si mesmo. Isto é, da mesma forma que se segue da necessidade da natureza divina (como todos afirmam de uma só voz) que Deus compreende a si mesmo, segue-se com a mesma necessidade que Deus faz uma infinidade de coisas de uma infinidade de maneiras. Em seguida mostramos, na Proposição 34 da Parte I, que a potência de Deus é tão somente a essência atuante de Deus. E assim, para nós é tão impossível conceber que Deus não aja como conceber que ele não exista. Se desejasse prosseguir neste argumento, poderia mostrar também que a potência que o vulgo atribui falsamente a Deus é, não apenas humana (mostrando que o vulgo concebe Deus como homem, ou semelhante a um homem), mas também envolve impotência. Mas não quero falar sempre do mesmo tema. Peço apenas ao leitor que reflita repetidamente sobre o que foi dito sobre este assunto na Parte I, da Proposição 16 até o final. Pois ninguém poderá perceber corretamente o que quero mostrar se não tomar extremo cuidado em não confundir a potência de Deus com a potência e o direito dos Reis. PROPOSIÇÃO IV A ideia de Deus, donde se seguem infinitas coisas de infinitos modos, só pode ser única. Demonstração Um intelecto infinito compreende somente os atributos de Deus e suas afecções (pela Prop. 30 P I). Ora Deus é único (pelo Res. 1 Prop 14 P I). Portanto a ideia de Deus, donde se seguem infinitas coisas de infinitos modos, só pode ser única. QED PROPOSIÇÃO V O ser formal das ideias reconhece como causa Deus apenas enquanto considerado como coisa pensante e não enquanto ele é explicado por qualquer outro atributo. Isto é, as ideias, tanto dos atributos de Deus como das coisas singulares, reconhecem por causa eficiente não seus ideados, ou, dito de outro modo, as coisas percebidas, mas o próprio Deus enquanto ele é coisa pensante. Demonstração Isto é evidente a partir da Proposição 3. Pois nela concluímos que Deus pode formar uma ideia de sua essência e de tudo o que dela se segue necessariamente. E isto do simples fato de ser Deus coisa pensante e não de ser ele objeto de sua própria ideia. Portanto, o ser formal das ideias reconhece por causa Deus enquanto ele é coisa pensante. Mas há outro modo de demonstrá-lo. O ser formal das ideias é um modo do pensamento (como é evidente), isto é (pelo Res. Prop 25 P I) um modo que exprime de maneira precisa a natureza de Deus enquanto coisa pensante, e (pela Prop. 10 P I), que não envolve o conceito de nenhum outro atributo de Deus. Consequentemente (pelo Axioma 4 P I), é efeito apenas do atributo pensamento e não de nenhum outro. Então, o ser formal das ideias reconhece por causa Deus, enquanto considerado como coisa pensante, etc. QED PROPOSIÇÃO VI Os modos de um atributo qualquer têm por causa Deus enquanto o consideramos apenas pelo o atributo de que são modos e não enquanto os consideramos por outro [atributo]. Demonstração Pois cada atributo se concebe por si e sem os outros (pela Prop. 10 P I). Então, os modos de cada atributo envolvem o conceito de seu atributo e não o de outro. Assim (pelo Axioma 4 P I), eles têm por causa Deus somente enquanto considerado pelo atributo de que são modos, e não enquanto o consideramos por outro. QED Resultado Disso se segue que o ser formal das coisas que não são modos do pensamento não se segue da natureza divina por que [Deus] primeiro conheceu as coisas. Mas são as coisas ideadas que se seguem e resultam de seus atributos do mesmo modo e com a mesma necessidade com que, mostramos que as ideias seguem-se do atributo Pensamento. PROPOSIÇÃO VII A ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas. Demonstração Isto é evidente pelo Axioma 4 P I. Pois a ideia do causado, qualquer que seja, depende do conhecimento da causa de que ele é efeito. Resultado Disso se segue que a potência de pensar de Deus é igual a sua potência atual de agir. Isto é, tudo o que se segue formalmente da natureza infinita de Deus, segue-se objetivamente em Deus, da ideia de Deus, na mesma ordem e na mesma conexão. Comentário Antes de prosseguir, devemos recordar aqui o que demonstramos mais acima [na Parte I]. A saber, que tudo o que o intelecto infinito pode perceber como constituindo a essência de uma substância, tudo isto pertence a uma substância única e que, consequentemente, a substância pensante e a substância extensa são uma só e mesma substância compreendida ora por um atributo, ora por outro. Também [devemos lembrar] que um modo da extensão e a ideia deste modo são uma só e mesma coisa, mas expressa de dois modos. Alguns Hebreus parecem tê-lo visto, como que através de uma bruma, ao estabelecer que Deus, o intelecto de Deus e as coisas que entende são uma só e mesma coisa. Por exemplo, um círculo existente na natureza e a ideia deste círculo existindo, que existe em Deus, são uma só e mesma coisa, que é explicada por atributos diferentes. Portanto, quer concebamos a natureza sob o atributo Extensão ou sob o atributo Pensamento, ou sob qualquer outro atributo, encontraremos uma só e mesma ordem, uma só e mesma conexão causal, isto é, as mesmas coisas se seguindo uma da outra. Quando dissemos que Deus é causa de uma ideia, por exemplo, de um círculo, apenas enquanto é coisa pensante e [causa] do próprio círculo, apenas enquanto é coisa extensa, a razão foi que o ser formal da ideia do círculo só pode ser percebido através de outro modo do pensamento que é sua causa próxima, e este modo através de outro, e assim ao infinito. Assim, enquanto as coisas forem consideradas como modos do pensamento, devemos explicar a ordem de toda a natureza, ou a conexão das causas, apenas através do atributo Pensamento, e enquanto elas forem consideradas como modos da extensão, devemos explicar a ordem de toda a natureza apenas através do atributo Extensão, e entendo que o mesmo se dá para os outros atributos. Deus é realmente causa das coisas como elas são em si, enquanto ele consiste de infinitos atributos. Pelo momento não posso explicar estes assuntos com mais clareza. PROPOSIÇÃO VIII As ideias das coisas singulares, ou modos, que não existem, devem ser compreendidas na ideia infinita de Deus, da mesma forma como as essências formais das coisas singulares, ou modos, estão contidas nos atributos de Deus. Demonstração Esta proposição é evidente da Proposição precedente, mas pode ser entendida com mais clareza a partir de seu Comentário. Resultado Disso se segue que quando as coisas singulares só existem na medida em que estão compreendidas nos atributos de Deus, seu ser objetivo, ou suas ideias, só existem na medida em que existe a ideia infinita de Deus. E quando se diz que as coisas singulares existem, não mais apenas na medida em que estão compreendidas nos atributos de Deus, mas tendo duração, suas ideias também envolvem existência, pelo que se diz que elas têm duração. Comentário Se alguém desejar um exemplo para melhor explicação deste ponto, não poderei dar nenhum que explique adequadamente, pois se trata de algo único. Tentarei, porém, ilustrar o assunto dentro do possível. Sabemos que o círculo é de natureza tal que todos os retângulos construídos a partir de segmentos de linhas retas que nele se cortam em algum ponto são iguais uns aos outros. Logo, um círculo contém infinitos retângulos iguais uns aos outros. Entretanto, nenhum deles pode ser dito existir se o círculo não existir também e a ideia de um destes retângulos só pode ser dita existir enquanto compreendida pela ideia do círculo. Concebamos agora que desta infinidade de retângulos só existam dois, E e D. Certamente suas ideias agora também existem e não apenas enquanto compreendidas pela ideia do círculo, mas também enquanto elas envolvem a existência destes retângulos, o que faz com elas se distingam de outras ideias de retângulos. PROPOSIÇÃO IX A ideia de uma coisa singular existente em ato tem como causa Deus, não enquanto é infinito, mas enquanto ele é considerado como afetado por outra ideia de uma coisa singular existente em ato. E Deus também é causa desta [ideia], enquanto ele é afetado por uma terceira, e assim por diante ao infinito. Demonstração A ideia de uma coisa singular existente em ato é um modo singular do pensamento, distinto dos outros (pelo Res. e Com. Prop. 8) e, portanto (pela Prop. 6), ela tem como causa Deus somente enquanto ele é coisa pensante. Mas não (pela Prop 28 P I) enquanto ele é coisa pensante absoluta, mas enquanto o consideramos afetado por outro modo do pensamento. E Deus igualmente é causa deste, enquanto ele é afetado de um outro, e assim ao infinito. Ora a ordem e a conexão das ideias (pela Prop. 7) é a mesma que a ordem e a conexão das causas [coisas] e, portanto, a causa de cada ideia singular é uma outra ideia, ou Deus, enquanto o consideramos afetado por outra ideia, e ele igualmente é causa desta enquanto é afetado por outra, e assim ao infinito. QED Resultado Deus tem o conhecimento de tudo o que acontece ao objeto singular de uma ideia qualquer, apenas na medida em que ele tem a ideia deste objeto. Demonstração Há em Deus uma ideia de tudo o que acontece ao objeto de uma ideia (pela Prop. 3), não enquanto ele é infinito, mas enquanto o consideramos afetado de uma outra ideia de coisa singular (pela Prop. precedente). Mas como (pela Prop. 7) a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas, então, o conhecimento do que acontece a um objeto singular está em Deus, apenas enquanto ele tem uma ideia deste objeto. QED PROPOSIÇÃO X À essência do homem não pertence o ser da substância, ou, dito de outro modo, a substância não constitui a forma do homem. Demonstração O ser da substância envolve a existência necessária (pela Prop. 7 P I). Se à essência do homem pertencesse o ser da substância, uma vez dada a substância, o homem seria dado necessariamente (pela Def. 2) e consequentemente o homem existiria necessariamente, o que (pelo Axioma 1) é absurdo. Logo, etc. QED Comentário 1 Esta proposição pode ser demonstrada a partir da Proposição 5 da Parte I, isto é, que não há duas substâncias de mesma natureza. Como podem existir vários homens, logo aquilo que constitui a forma do homem não pode ser substância. Além disso, esta Proposição é evidente a partir das demais propriedades da substância, a saber, que ela é por natureza infinita, imutável, indivisível, etc., como qualquer um pode ver facilmente. Resultado Disso se segue que a essência do homem é constituída por certas modificações dos atributos de Deus. Demonstração Pois o ser da substância (pela Proposição precedente) não pertence à essência do homem. Portanto, [a essência do homem] é (pela Prop. 15 P I) algo que é em Deus e que sem Deus não pode nem ser nem ser concebido, ou, dito de outro modo, (pelo Res. Prop. 25 P I) é uma afecção, ou modo, que exprime a natureza de Deus de uma maneira certa e determinada. Comentário 2 Todos devem conceder que sem Deus nada pode ser nem ser nem ser concebido. Pois todos reconhecem que Deus é a causa única de todas as coisas, tanto de suas essências quanto de suas existências, isto é, que Deus não é apenas causa das coisas segundo o devir, mas também segundo o ser. Mas, ao mesmo tempo, a maioria diz que pertence à essência de uma coisa aquilo sem o que a coisa não pode nem ser nem ser concebida. Eles acreditam, ou que a natureza de Deus pertence à essência das coisas criadas, ou que as coisas criadas podem ser ou serem concebidas sem Deus. Mas, o que é mais certo, é que eles não são consistentes entre si. E a causa é, acredito, que eles não observaram a ordem do filosofar. Pois acreditaram que a natureza divina, que deveriam contemplar antes de tudo mais (por ser ela anterior tanto em conhecimento como em natureza), viria em último na ordem do conhecimento, ao passo que as coisas que chamamos de objetos dos sentidos seriam anteriores a todas as demais. É por isso que, quando contemplaram as coisas naturais, sequer lhes ocorreu pensar na natureza divina e quando em seguida passaram a contemplar a natureza divina, não puderam contar com as primeiras ficções sobre as quais haviam erigido o conhecimento das coisas naturais, pois estas [ficções] não tinham serventia para o conhecimento da natureza divina. Assim não é surpresa que eles se tenham contradito. Mas basta a este respeito. Meu intento aqui foi apenas explicar a causa por que disse que à essência de uma coisa não pertence aquilo sem o que a coisa não pode nem ser nem ser concebida. Pois as coisas singulares não podem sem Deus nem ser nem ser concebidas e Deus não pertence à essência das coisas. Mas eu disse que constitui necessariamente a essência de uma coisa aquilo que uma vez dado, põe necessariamente a existência da coisa e uma vez suprimido a destrói; ou aquilo sem o que a coisa não pode nem ser nem ser concebida e que não pode nem ser nem ser concebido sem a coisa. PROPOSIÇÃO XI A primeira coisa que constitui o ser atual da mente humana é a ideia de uma coisa singular existindo em ato. Demonstração A essência do homem (pelo Res. Prop. precedente) é constituída por certos modos dos atributos de Deus, a saber (pelo Axioma 2) por modos do pensamento e entre estes (pelo Axioma 3) o primeiro por natureza é a ideia; e é preciso que a ideia exista para que os outros modos (em relação aos quais a ideia é por natureza primeira) existam no mesmo indivíduo (pelo mesmo Axioma 3). E, portanto, a ideia é a primeira coisa que constitui a essência da Mente humana. Mas não a ideia de uma coisa não existente, pois então (pelo Res. Prop 8) a ideia mesma não poderia ser dita existir. Mas sim uma ideia de uma coisa existindo em ato. Mas não de uma coisa infinita, pois uma coisa infinita (pelas Props 21 e 22 PI) deve sempre e necessariamente existir e isto (pelo Axioma 1), é absurdo. Logo a primeira coisa a constituir o ser atual da mente humana é a ideia de uma coisa singular existindo em ato. QED Resultado Segue-se que a Mente humana é uma parte do intelecto infinito de Deus. Portanto, quando dizemos que a Mente humana percebe isto ou aquilo, dizemos que Deus tem tal ou qual ideia, não enquanto é infinito, mas enquanto se explica pela natureza da Mente humana, ou enquanto constitui a essência da Mente humana. E quando dizemos que Deus tem tal ou qual ideia, não apenas enquanto constitui a natureza da Mente humana, mas enquanto tem ao mesmo tempo a ideia da Mente humana e a ideia de outra coisa, dizemos então que a Mente humana percebe uma coisa em parte, ou de forma inadequada. Comentário Não duvido que aqui meus Leitores estejam em dificuldades e que pensem em muitas coisas que os farão parar. Por isso eu lhes rogo para avançar comigo a passos lentos e que não julguem antes de ter lido tudo. PROPOSIÇÃO XII Tudo que acontece com o objeto da ideia que constitui a Mente humana deve ser percebido pela Mente humana, ou, dito de outro modo, deve necessariamente haver uma ideia de tal coisa na Mente. Ou seja, se o objeto da ideia que constitui a Mente humana é um corpo, nada poderá acontecer a este corpo que a Mente não perceba. Demonstração Há em Deus necessariamente o conhecimento (pelo Res. Prop. 9) de tudo o que acontece no objeto de uma ideia qualquer, enquanto ele é considerado como afetado pela ideia deste objeto, isto é (pela Prop. 11), enquanto ele constitui a mente de uma coisa. Portanto, de tudo que acontece no objeto da ideia que constitui a Mente humana, deve haver em Deus o conhecimento, enquanto ele constitui a natureza da Mente humana, isto é (pelo Res. Prop. 11), o conhecimento desta coisa estará necessariamente na Mente, ou, dito de outro modo, a Mente a percebe. QED Comentário Esta proposição é igualmente evidente e pode ser entendida mais claramente a partir do Comentário da Prop. 7, que deve ser consultado. PROPOSIÇÃO XIII O objeto da ideia que constitui a Mente humana é o Corpo, ou, certo modo da extensão existente em ato, e nada mais. Demonstração Se o Corpo não fosse o objeto da Mente humana, as ideias das afecções do Corpo não estariam em Deus (pelo Res. Prop. 9), enquanto ele constitui a ideia de nossa Mente, mas enquanto constitui a ideia de outra coisa, isto é (pelo Res. Prop. 11), as ideias das afecções de nosso corpo não estariam em nossa Mente; mas (pelo Axioma 4) nós temos ideias das afecções do Corpo. Logo, o objeto da ideia que constitui a Mente é o Corpo e de um Corpo (pela Prop. 11) existente em ato. Em seguida, se houvesse outro objeto da Mente além do corpo então, como não há nada (pela Prop. 36 P I) de que não se siga um efeito, deveria (pela Prop. precedente) necessariamente haver uma ideia deste efeito em nossa Mente. Ora (pelo Axioma 5) não há tal ideia. Logo o objeto de nossa Mente é um Corpo existindo e nada mais. QED Resultado Disso se segue que o homem é constituído de Mente e Corpo e que ele existe tal qual o sentimos. Comentário Entendemos assim não apenas que a Mente humana é unida ao Corpo, mas também o que deve ser entendido pela união de Mente e Corpo. Mas ninguém poderá entender de forma adequada ou distinta [tal união] se não compreender primeiro, de forma adequada, a natureza de nosso Corpo. Pois o que mostramos até aqui tem caráter geral e não pertence mais aos homens que a outros Indivíduos, que são todos eles animados, embora a níveis distintos. Pois para cada coisa há necessariamente em Deus uma ideia, de que Deus é causa, da mesma maneira como ele o é da ideia do Corpo humano. E assim, tudo o que dissemos da ideia do Corpo humano, devemos necessariamente dizer também da ideia de uma coisa qualquer. No entanto, não podemos negar que as ideias diferem entre si da mesma forma como seus objetos, e que uma é superior a outra por conter mais realidade, do mesmo modo que o objeto de uma é superior e contém mais realidade que o da outra. Eis por que para determinar em que a Mente humana difere das outras e é superior às outras, é necessário conhecer, como dissemos, a natureza de seu objeto, isto é, do Corpo humano. Mas não posso explicar isto aqui e não é necessário para o que quero demonstrar. Entretanto, digo de forma geral, que quanto mais um corpo é capaz de agir ou de sofrer ações de diferentes maneiras, mais sua Mente é capaz de perceber diferentes coisas ao mesmo tempo. E quanto mais as ações de um Corpo dependem somente dele e quanto menos outros corpos concorram para suas ações, mais sua Mente é capaz de entender de forma clara e distinta. E assim podemos conhecer a superioridade de uma Mente sobre outras, bem como ver a causa pela qual nós temos apenas um conhecimento completamente confuso de nosso corpo, bem como ainda muitas outras coisas que deduzirei na sequência. É por isso que pensei que valia a pena explicar e demonstrar estas coisas de modo mais apurado e para isso é necessário colocar algumas premissas sobre a natureza dos corpos. AXIOMA I’ Todos os corpos ou se movem ou estão em repouso. AXIOMA II’ Cada corpo se move, ora mais lentamente, ora mais rapidamente. LEMA I Os corpos se distinguem em razão do movimento e do repouso, da rapidez e da lentidão e não em relação à substância. Demonstração Suponho que a primeira parte é evidente. E que os corpos não se distinguem em relação à substância, isto é evidente das Proposições 5 a 8 da Parte I. Mas é ainda mais claro do Comentário da Proposição 15 da Parte I. LEMA II Todos os corpos convém em algumas coisas. Demonstração Todos os corpos convém por envolverem o conceito de um mesmo atributo (pela Def. 1) e por poderem se mover ora mais rapidamente, ora mais lentamente e, absolutamente falando, por ora se moverem e ora estarem em repouso. LEMA III Um corpo que se move ou que está em repouso deve ter sido determinado por outro corpo ao movimento ou ao repouso, e este também deve ter sido determinado ao movimento e ao repouso por outro, e este por outro, e assim ao infinito. Demonstração Os corpos (pela Def. 1) são coisas singulares que (pelo Lema 1) se distinguem entre si pela relação do movimento e do repouso. E (pela Proposição 28 P I) cada um deve ter sido determinado necessariamente ao movimento ou ao repouso por outra coisa singular, a saber (pela Prop. 6) por outro corpo, que (pelo Axioma 1’) também está em movimento ou em repouso. E este (pela mesma razão) só pode se mover ou estar em repouso por ter sido determinado ao movimento ou ao repouso por outro, e assim ao infinito. QED Resultado Disso se segue que um corpo em movimento se moverá enquanto não for determinado ao repouso por outro corpo, e que um corpo em repouso assim permanecerá enquanto não for determinado por outro ao movimento. Isto também é evidente. Pois quando suponho que um corpo, por exemplo A, está em repouso, nada posso dizer de A, a não ser que ele está em repouso. Se em seguida algo acontece que faz A se mover, isto não pode ser resultado de que A estava em repouso, pois disso só poderia se seguir que o corpo A continuasse em repouso. Se ao contrário supomos que A se move, só poderemos afirmar de A que ele move. Se em seguida acontece de A estar em repouso, evidentemente isto não pode acontecer em virtude de algo que A já tivesse, pois do movimento só poderia se seguir o movimento. Portanto, se isto ocorre, deve vir de algo que não estava em A, a saber uma causa exterior, que o determinou ao repouso. AXIOMA I’’ Todos os modos que um corpo é afetado por outro se seguem ao mesmo tempo da natureza do copo afetado e da natureza do corpo que o afeta. Assim, um corpo pode ser movimentado de diferentes formas de acordo com as diferenças nos corpos que o movem. Inversamente, diferentes corpos podem ser movimentados de forma distinta pelo mesmo corpo. AXIOMA II’’ Quando um corpo em movimento se choca com outro em repouso que não pode se mover, ele é refletido de forma a continuar a se mover. O ângulo da linha do movimento de reflexão com o plano do corpo em repouso com que aquele se chocou, será igual ao ângulo da linha do movimento incidente com o mesmo plano. Isto basta para os corpos simples que se distinguem uns dos outros apenas pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade ou pela lentidão. Passemos agora aos corpos compostos. DEFINIÇÃO Quando vários corpos de magnitude igual ou diferente são pressionados por outros de forma a se apoiarem uns nos outros, ou então quando eles estão em movimento, seja na mesma velocidade, seja em velocidades diferentes, mas comunicando entre si seus movimentos segundo certa relação, diremos que estes corpos estão unidos entre si ou que compõe um mesmo corpo ou Indivíduo, que se distingue dos outros por esta união entre corpos. AXIOMA III’’ Quanto maiores ou menores são as superfícies segundo as quais as partes de um Indivíduo ou corpo composto se apoiam umas nas outras, mais difícil ou fácil é fazê-las mudar de posição e consequentemente mais difícil ou fácil é fazer com que o Indivíduo mude de forma. Assim, chamarei de duros os corpos cujas partes se apoiam umas nas outras segundo grandes superfícies, moles quando as superfícies são pequenas, e fluidos quando as partes se movem umas entre as outras. LEMA IV Se certos corpos se separam de um corpo, ou de um Indivíduo composto de vários corpos, ao mesmo tempo em que outros de mesma natureza e número tomam seu lugar, o Indivíduo manterá sua natureza sem mudança de forma. Demonstração Como (pelo Lema 1) os corpos não se distinguem em relação à substância, o que constitui a forma do Indivíduo é apenas uma união de corpos (pela Def. precedente). Mas esta é mantida (por hipótese) mesmo com uma mudança de corpos. Logo, o Indivíduo manterá sua natureza anterior tanto com relação à substância como com relação ao modo. QED LEMA V Se as partes que compõe um Indivíduo se tornam maiores ou menores, mas em tal proporção que conservam entre si mesma relação de movimento e repouso que tinham antes, o Indivíduo manterá sua natureza sem mudança de forma. Demonstração É a mesma da demonstração do Lema precedente. LEMA VI Se certos corpos que compõe um Indivíduo são compelidos a fletir seu movimento em uma direção ou em outra, mas de tal sorte que possam continuar seus movimentos, comunicando-os aos demais segundo a mesma relação que antes, o Indivíduo também mantém sua natureza, sem mudança de forma. Demonstração É evidente por si. Pois ele retém, por hipótese, tudo o que na definição dissemos constituir sua forma. LEMA VII Adicionalmente, um Indivíduo assim composto mantém sua natureza quando ele, como um todo, se move ou fica em repouso, ou quando se move em uma ou em outra direção, se cada parte mantém seu movimento e o comunica às outras como antes. Demonstração É evidente da Definição [de Indivíduo], que pode ser vista antes do Lema 4. Comentário Vemos assim como um Indivíduo composto pode ser afetado de muitos modos e ainda preservar sua natureza. Até aqui concebemos um Indivíduo composto apenas de corpos distintos entre si pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão, isto é, composto apenas dos corpos mais simples. Se agora concebermos outro [Indivíduo] composto de indivíduos de naturezas diversas, veremos que ele pode ser afetado de muitos outros modos e ainda assim preservar sua natureza. Pois cada uma de suas partes é composta de vários corpos e cada um deles pode (pelo Lema precedente) se mover ora mais lentamente ora mais rapidamente, e consequentemente pode comunicar seu movimento aos outros mais rapidamente ou mais lentamente, sem que haja mudança em sua natureza. Se agora concebermos um terceiro gênero de Indivíduo, composto de Indivíduos deste segundo tipo, veremos que ele pode ser afetado de muitos outros modos sem mudança de forma. E se continuamos assim ao infinito, conceberemos facilmente que a natureza como um todo é um Indivíduo cujas partes, isto é, todos os corpos, variam de infinitos modos sem mudança no Indivíduo como um todo. Se fosse nossa intenção tratar expressamente do corpo, deveria explicar e demonstrar estas coisas de forma mais prolixa. Mas, como disse, é outra coisa que desejo, e se me referi aqui a estas coisas foi unicamente por que delas posso deduzir mais facilmente o que me propus a demonstrar. POSTULADOS I. O corpo humano é composto de muitíssimos indivíduos (de natureza diversa) cada um deles altamente composto. II. Dos indivíduos de que o Corpo humano é composto, alguns são fluidos, alguns são moles e outros são duros. III. Os indivíduos que compõe o corpo humano, e, por conseguinte, o próprio corpo humano, podem ser afetados pelos corpos externos de grande número de modos. IV. O Corpo humano requer para se conservar um grande número de outros corpos, através dos quais ele se regenera quase continuamente. V. Quando uma parte fluida do Corpo humano é determinada por um corpo externo a se chocar frequentemente contra um corpo mole, ela muda a superfície deste e lhe imprime como que vestígios do corpo exterior que com ela se choca. VI. O Corpo humano pode mover e dispor os corpos externos de um grande número de modos. PROPOSIÇÃO XIV A Mente humana é capaz de perceber um grande número de coisas e é mais capaz quanto mais numerosos são os modos que seu corpo pode ser disposto. Demonstração O Corpo humano (pelos Post. 3 e 6) é afetado pelos corpos externos de grande número de modos e está disposto de forma a afetar os corpos externos de grande número de modos. Ora a Mente humana deve perceber (pela Prop. 12) tudo o que acontece no Corpo humano. Logo, a Mente humana é capaz de perceber um grande número de coisas e é mais capaz, etc. QED PROPOSIÇÃO XV A ideia que constitui o ser formal da Mente humana não é simples, mas sim composta de grande número de ideias. Demonstração A ideia que constitui o ser formal da Mente humana é a ideia do Corpo (pela Prop. 13) que (pelo Post. 1) é composto de um grande número de indivíduos altamente compostos. Ora (pelo Res. Prop. 8), há em Deus necessariamente uma ideia de cada indivíduo que compõe o corpo. Logo (pela Prop. 7), a ideia do Corpo humano é composta de um grande número de ideias, que são [as ideias] das partes que compõe [o Corpo]. QED PROPOSIÇÃO XVI A ideia de qualquer modo como o Corpo humano é afetado por corpos externos deve envolver simultaneamente a natureza do corpo humano e a natureza do corpo externo. Demonstração Todos os modos que um corpo é afetado se seguem simultaneamente da natureza do corpo afetado e da natureza do corpo que o afeta (pelo Axioma 1’). Portanto, as ideias [destes modos] (pelo Axioma 4 P I) envolverão necessariamente a natureza de ambos os corpos. Assim, a ideia de qualquer modo como o Corpo humano é afetado por um corpo externo envolve a natureza do Corpo humano e do corpo externo. Resultado I Disso se segue, primeiramente, que a Mente humana percebe ao mesmo tempo a natureza de um grande número de corpos e a natureza de seu corpo. Resultado II Segue-se, em segundo lugar, que a ideia que temos de um corpo externo indica mais o estado de nosso corpo do que a natureza dos corpos exteriores, como expliquei, por diversos exemplos, no Apêndice da primeira parte. PROPOSIÇÃO XVII Se o Corpo humano é afetado de um modo que envolve a natureza de um corpo externo qualquer, a Mente humana contemplará este corpo como existindo em ato, ou como presente, até que o Corpo seja afetado de um afeto que exclua a existência ou a presença de tal corpo. Demonstração É evidente. Pois quando o Corpo humano for afetado assim, a Mente humana (pela Prop. 12) contemplará esta afecção do corpo, isto é (pela Prop. precedente), ela terá a ideia de um modo existindo em ato, envolvendo a natureza do corpo externo, isto é, [ela terá] uma ideia que não exclui, mas, ao contrário, põe, e a existência, ou presença, da natureza do corpo externo. Assim, a Mente (pelo Res. 1 Prop. precedente) contemplará o corpo externo existindo em ato, ou como presente, até que [o Corpo] seja afetado, etc. QED Resultado A Mente poderá contemplar como presentes corpos externos que já afetaram o Corpo humano, mesmo que eles não existam mais, ou não mais estejam presentes. Demonstração Quando corpos externos determinam partes fluidas do Corpo humano a se chocarem frequentemente contra partes moles, as superfícies destas (pelo Post. 5) mudam, fazendo com que (ver Axioma 2’’) aquelas se reflitam nestas de modo diferente do que ocorria antes. Em seguida, vindo [as partes fluidas] a encontrar estas novas superfícies em seu movimento espontâneo, elas são refletidas do mesmo modo que ocorria quando eram impulsionadas pelos corpos externos a se chocar contra estas superfícies. Consequentemente, ao continuarem a se mover por este reflexo, elas afetarão o corpo humano do mesmo modo que antes, e a Mente (pela Prop. 12) pensará [este modo] novamente, isto é (pela Prop. 17), a Mente contemplará novamente o corpo externo como presente. E isto ocorrerá sempre que as partes fluidas do corpo humano, em seu movimento espontâneo, se chocarem contra estes planos. Portanto, mesmo que não existam mais os corpos externos pelos quais o corpo humano foi afetado, a Mente os contemplará como presentes sempre que esta ação se repetir. QED Comentário Vemos como podemos contemplar como presentes coisas que não existem, como acontece frequentemente. Isto também pode acontecer por outras causas, mas bastou-me mostrar uma pela qual pude explicar a coisa como se tivesse mostrado por sua verdadeira causa. Mas não creio ter me distanciado muito da verdade, pois todos os postulados que assumi não contém nada além daquilo estabelecido pela experiência a ponto de não termos o direito de duvidar e, sobretudo, desde que mostramos que o corpo humano existe como o sentimos (vide Res. Prop. 13). Além disso (a partir Res. precedente e Res 2 Prop. 16), entendemos claramente a diferença entre, por exemplo, a ideia de Pedro que constitui a essência da Mente de Pedro e a ideia do mesmo Pedro que está em outro homem, digamos, Paulo. A primeira explica diretamente a essência do Corpo de Pedro e só envolve existência enquanto Pedro existe. A segunda indica mais a condição do corpo de Paulo do que a natureza de Pedro; e a Mente de Paulo ainda contemplará Pedro como presente, mesmo que ele não mais exista, enquanto a condição do corpo de Paulo permanecer assim. Para reter as palavras usuais, chamaremos de imagens as afecções do corpo humano que representam a presença de corpos externos, mesmo que não se refiram a figuras de coisas. E quando a Mente contempla os corpos desta maneira diremos que ela imagina. E para começar a indicar o que é o erro, gostaria que notassem que as imaginações da Mente consideradas em si não contém erro algum, ou, dito de outro modo, que a se a Mente erra não é por que imagina, mas sim na medida em que consideramos que ela carece da ideia que exclui a existência das coisas que ela imagina como presentes. Pois se a Mente quando imagina como presentes coisas que não existem soubesse ao mesmo tempo que estas coisas não existem, certamente a ela atribuiria esta potência de imaginar a uma virtude de sua natureza e não a um vício, sobretudo se esta faculdade de imaginar dependesse somente de sua natureza, isto é (pela Def. 7 P I), se a faculdade de imaginar da Mente fosse livre. PROPOSIÇÃO XVIII Se o Corpo humano foi uma vez afetado simultaneamente por dois ou mais corpos, então depois, quando a Mente imaginar um deles, ela recordará imediatamente dos outros. Demonstração A Mente (pelo Res. Prop. precedente) imagina um corpo porque o Corpo humano é afetado e disposto pelos vestígios de um corpo externo, do mesmo modo como foi quando o próprio corpo externo, ao impulsionar algumas de suas partes, o afetou. Mas (por hipótese) o Corpo foi então disposto de modo tal que a Mente imaginou dois corpos a um só tempo. Portanto, quando ela agora imaginar um deles, vai recordará imediatamente o outro. Comentário Disso entendemos claramente o que é a memória. Ela é certa concatenação de ideias que envolve a natureza das coisas que existem fora do corpo humano, que se faz na Mente segundo a ordem e a concatenação das afecções do corpo humano. Digo primeiramente, que é uma concatenação de ideias que envolve a natureza de coisas que existem fora do corpo humano, e não de ideias que explicam a natureza destas mesmas coisas. Pois são, na verdade (pela Prop. 16), ideias de afecções do Corpo humano que envolvem tanto a natureza deste como a natureza dos corpos externos. Digo em segundo lugar, que esta concatenação se faz segundo a ordem e a concatenação dos afecções do corpo humano, para distingui-la da concatenação das ideias que se faz segundo a ordem do intelecto, pela qual a Mente percebe as coisas por suas causas primeiras e que é a mesma em todos os homens. Entendemos claramente então como a Mente passa imediatamente do pensamento de uma coisa ao pensamento de outra, com a qual aquela não tem nenhuma similitude. Por exemplo, do pensamento da palavra pomum (maçã), um homem romano passa imediatamente ao pensamento de um fruto que não tem similitude alguma nem nada em comum com este som articulado, a não ser o fato de que o corpo deste homem foi frequentemente afetado pelos dois, isto é, que este homem frequentemente ouviu a palavra pomum quando via o fruto. E deste modo, cada um passa de um pensamento a outro de acordo com a ordem que o hábito estabeleceu no Corpo entre as imagens das coisas. O soldado, por exemplo, ao ver na areia o rastro de um cavalo, do pensamento do cavalo passará imediatamente ao pensamento do cavaleiro e deste ao pensamento da guerra, etc. Já o fazendeiro, do pensamento do cavalo passará ao pensamento do arado, do campo, etc. Assim, cada um passará de um pensamento a outro, do mesmo modo como se habituou a conectar e concatenar as imagens das coisas. PROPOSIÇÃO XIX A Mente humana só conhece o próprio corpo humano e só sabe que ele existe pelas ideias das afecções pelas quais o corpo é afetado. Demonstração A Mente humana é a própria ideia ou conhecimento do Corpo humano (pela Prop. 13), que (pela Prop. 9) está em Deus enquanto considerado como afetado pela ideia de uma outra coisa singular. Ou então, como (pelo Post. 4) o Corpo humano necessita de um grande número de outros corpos, que o regeneram quase continuamente, e [como] a ordem e a conexão das ideias (pela Prop. 7) é a mesma que a ordem e a conexão das causas, então esta ideia estará em Deus enquanto considerado afetado por ideias de um grande número de coisas singulares. Portanto, Deus tem a ideia do corpo humano, ou, dito de outro modo, conhece o corpo humano, enquanto o consideramos afetado das ideias de um grande número de coisas singulares e não enquanto constitui a natureza da Mente humana, isto é (pelo Res. Prop 11), a Mente humana não conhece o Corpo humano. Mas as ideias das afecções do corpo humano estão em Deus enquanto ele constitui a natureza da Mente humana, ou, dito de outro modo, a Mente humana percebe estas afecções (pela Prop. 12) e, por conseguinte, percebe o próprio corpo humano (pela Prop. 17) como existindo em ato. Logo é assim que a Mente humana percebe o próprio Corpo humano. QED PROPOSIÇÃO XX Há em Deus uma ideia ou conhecimento da Mente humana que se segue em Deus e se refere a Deus do mesmo modo que a ideia ou conhecimento do Corpo humano. Demonstração O pensamento é um atributo de Deus (pela Prop. 1) e, portanto (pela Prop. 3), deve necessariamente existir em Deus uma ideia dele e de todas as suas afecções e, consequentemente (pela Prop. 11), também da Mente humana. Mas esta ideia ou conhecimento da Mente não existe em Deus na medida em que ele é infinito, mas na medida em que ele é afetado por outra ideia de uma coisa singular (pela Prop. 9). Mas como a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das causas (pela Prop. 7), então esta ideia ou conhecimento da Mente segue-se em Deus e se refere a Deus, do mesmo que a ideia ou conhecimento do Corpo. QED PROPOSIÇÃO XXI Esta ideia da Mente é unida à Mente do mesmo modo que a Mente é unida ao corpo. Demonstração Mostramos que a Mente é unida ao Corpo porque o Corpo é o objeto da Mente (vide Props. 12 e 13). Portanto, a ideia da Mente deve estar unida ao seu objeto, isto é, à própria Mente, pela mesma razão que a Mente é unida ao Corpo. QED Comentário Esta Proposição é mais claramente entendida pelo que foi dito no Com. Prop. 7. Mostramos ali que a ideia do Corpo e o Corpo, isto é (pela Prop. 13) a Mente e o Corpo são um só Indivíduo, que é concebido ora pelo atributo Pensamento, ora pelo atributo Extensão. Donde a ideia da Mente e a própria Mente são uma só coisa que é concebida por um mesmo atributo, o Pensamento. A ideia da Mente e a própria Mente se seguem em Deus da mesma potência de pensar e com a mesma necessidade. Pois a ideia da Mente, isto é, a ideia da ideia, é apenas a forma da ideia enquanto a consideramos apenas como modo do pensamento, sem relação com o objeto. Pois quando alguém sabe algo, por isso mesmo sabe que sabe, e sabe que sabe que sabe, e assim ao infinito. Mas falarei mais sobre isto depois. PROPOSIÇÃO XXII A Mente humana percebe não apenas as afecções do Corpo, mas também as ideias destas afecções. Demonstração As ideias das ideias das afecções se seguem em Deus do mesmo modo, e se referem a Deus do mesmo modo, que as próprias ideias das afecções, o que demonstra-se do mesmo modo que a Prop. 20. Assim, as ideias das afecções do Corpo existem na Mente humana (pela Prop. 12), isto é (pelo Res. Prop. 11) existem em Deus enquanto constitui a essência da Mente humana. Logo, estas ideias de ideias estarão em Deus enquanto ele tem o conhecimento, ou ideia, da Mente humana, isto é (pela Prop. 21) estarão na própria Mente humana que percebe, não apenas as afecções do Corpo, mas também as ideias destas. QED PROPOSIÇÃO XXIII A Mente só conhece a si mesma na medida em que percebe as ideias das afecções do Corpo. Demonstração A ideia ou conhecimento da Mente (pela Prop. 20) se segue em Deus e se refere a Deus do mesmo modo que a ideia ou conhecimento do corpo. Mas como (pela Prop. 19) a Mente humana não conhece o próprio Corpo, isto é (pelo Res. Prop. 11), como o conhecimento do Corpo não se refere a Deus enquanto ele constitui a essência da Mente humana e tampouco o conhecimento da Mente se refere a Deus enquanto ele constitui a essência da Mente humana, logo (pelo mesmo Res. Prop. 11), a Mente humana, nesta medida, não conhece a si mesma. Por outro lado, as afecções pelas quais o Corpo é afetado, envolvem a natureza do próprio Corpo humano (pela Prop. 16), isto é (pela Prop. 13), convém com a natureza da Mente, e assim o conhecimento destas ideias necessariamente envolve o conhecimento da Mente. Como (pela Prop. Precedente) o conhecimento destas ideias existe na Mente humana, logo, neste aspecto a Mente humana conhece a si mesma. QED PROPOSIÇÃO XXIV A Mente humana não envolve o conhecimento adequado das partes do Corpo humano. Demonstração As partes que compõe o Corpo humano, só pertencem à essência do Corpo na medida em que comunicam entre si seus movimentos em certa relação (vide Def. após Res. Lema 3) e não na medida em podem ser consideradas como Indivíduos sem relação com o Corpo humano. Pois as partes do Corpo humano (pelo Post. 1) são Indivíduos altamente compostos, cujas partes (pelo Lema 4) podem ser segregadas do Corpo humano, conservando sua natureza e forma e comunicando seus movimentos (vide Axiom. 1 após Lema 3) a outros corpos em outra relação. Portanto (pela Prop. 3), a ideia ou conhecimento de qualquer destas partes existe em Deus na medida em que é considerado como afetado por outra ideia de coisa singular, coisa esta que (pela Prop. 7) é anterior na ordem da natureza à parte em questão. E o mesmo pode ser dito de qualquer outra parte deste Indivíduo que compõe o Corpo humano. Portanto, o conhecimento de qualquer parte que compõe o do Corpo humano existe em Deus na medida em que ele é afetado por muitíssimas ideias de coisas e não na medida em que ele tem apenas a ideia do Corpo humano, isto é (pela Prop. 13), a ideia que constitui a natureza da Mente humana. Assim, (pelo Res. Prop. 11) a Mente não envolve o conhecimento adequado das partes que compõe do Corpo humano. QED PROPOSIÇÃO XXV A ideia de uma afecção qualquer do Corpo humano não envolve o conhecimento adequado de um corpo externo. Demonstração Mostramos que a ideia de uma afecção do Corpo humano envolve a natureza do corpo externo (vide Prop. 16), na medida em que o corpo externo determina de certo modo o Corpo humano. Mas, na medida em que o corpo externo é um Indivíduo que não se refere ao Corpo humano, o conhecimento deste existe em Deus (pela Prop. 9), enquanto Deus é considerado como afetado pela ideia de outra coisa, que (pela Prop. 7) é por natureza anterior a este corpo externo. Portanto, o conhecimento adequado do corpo externo não existe em Deus enquanto ele tem a ideia da afecção do Corpo humano, ou, dito de outro modo, a ideia da afecção do Corpo humano não envolve o conhecimento adequado do corpo externo. QED. PROPOSIÇÃO XXVI A Mente humana só percebe a existência do corpo externo pelas ideias das afecções de seu Corpo. Demonstração Se o Corpo humano não é afetado de alguma forma por um corpo externo, tampouco (pela Prop. 7) a ideia do Corpo humano, isto é (pela Prop. 13), a Mente humana, é afetada pela ideia da existência de tal corpo, ou, dito de outro modo, ela não percebe de modo algum a existência do corpo externo. Mas, na medida em que o Corpo humano é afetado por um corpo externo, a Mente (pela Prop. 16 com seu Res. 1) percebe o Corpo externo. QED Resultado Enquanto a Mente humana imagina corpos externos, ela não tem ideias adequadas. Demonstração Quando a Mente humana contempla os corpos externos pelas ideias das afecções de seu Corpo, dizemos que ela imagina (vide Com. Prop.17), e a Mente não pode imaginar de outra forma (pela Prop. precedente) os corpos externos existindo em ato. Portanto (pela Prop. 25), quando a Mente imagina os corpos externos, ela não tem um conhecimento adequado deles. QED PROPOSIÇÃO XXVII A ideia de uma afecção do Corpo humano não envolve o conhecimento adequado do próprio Corpo humano. Demonstração A ideia de uma afecção do Corpo humano só envolve a natureza do Corpo humano, na medida em que consideramos o Corpo humano afetado de certo modo (vide Prop. 16). Mas, na medida em que o Corpo humano é um Indivíduo, que pode ser afetado de muitos outros modos, sua ideia, etc. Ver Demonstração Prop. 25. PROPOSIÇÃO XXVIII As ideias das afecções do Corpo humano, na medida em que se referem à Mente humana, não são claras e distintas, mas confusas. Demonstração As ideias das afecções do Corpo humano envolvem (pela Prop. 16) tanto a natureza dos corpos externos quanto a natureza do Corpo humano e devem envolver não apenas a natureza do Corpo humano, mas também de suas partes, pois as afecções são modos (pelo Post. 3) pelas quais as partes do Corpo humano e, consequentemente, todo o corpo humano, são afetadas. Mas (pelas Props. 24 e 25), o conhecimento adequado dos corpos externos e das partes que compõe o Corpo humano não existe em Deus enquanto o consideramos como afetado pela Mente humana, mas enquanto o consideramos como afetado por outras ideias. Logo, estas ideias de afecções, enquanto se referem somente à mente humana, são como consequências sem premissas, isto é (como é evidente), são ideias confusas. QED Comentário Demonstra-se da mesma maneira que a ideia que constitui a natureza da Mente humana não é, considerada apenas em si, clara e distinta, da mesma forma como a ideia da Mente humana e as ideias das ideias da afecções do Corpo humano, na medida em que se referem apenas à Mente, como cada um poderá ver facilmente. PROPOSIÇÃO XXIX A ideia de uma afecção do Corpo humano não envolve o conhecimento adequado da Mente humana. Demonstração A ideia de uma afecção do Corpo humano (pela Prop. 27) não envolve o conhecimento adequado do próprio Corpo, ou, dito de outro modo, ela não exprime adequadamente sua natureza, isto é (pela Prop. 13), ela não convém adequadamente com a natureza da Mente. Portanto (pelo Axiom. 6 P I), a ideia desta ideia não exprime adequadamente a natureza da Mente, ou, dito de outro modo, ela não envolve seu conhecimento adequado. QED. Resultado Disso se seque que a Mente humana, sempre que percebe as coisas segundo a ordem comum da natureza, não tem um conhecimento adequado nem de si, nem de seu Corpo, nem dos corpos externos, mas sim um conhecimento confuso e mutilado. Pois a Mente só conhece a si mesma na medida em que percebe as ideias das afecções do corpo (pela Prop. 23). Mas ela só percebe seu Corpo (pela Prop. 19) pelas ideias destas afecções, através das quais (pela Prop. 26) também percebe os copos externos. Portanto, enquanto tem tais ideias, ela não tem um conhecimento adequado nem de si mesma (pela Prop. 29), nem de seu Corpo (pela Prop. 27), nem dos corpos externos (pela Prop. 25), mas apenas um conhecimento mutilado e confuso. QED. Comentário Digo expressamente que a Mente não tem um conhecimento adequado nem de si, nem de seu Corpo, nem dos corpos externos, mas apenas um conhecimento confuso, quando percebe as coisas segundo a ordem comum da natureza, isto é, quando é determinada externamente, pelo choque fortuito das coisas, a contemplar isto ou aquilo e não quando é determinada internamente, ao contemplar simultaneamente muitas coisas, a entender as conveniências, as diferenças e as oposições destas. Pois quando [a Mente] é disposta internamente de um modo ou de outro, ela contempla as coisas clara e distintamente, como mostrarei mais abaixo. PROPOSIÇÃO XXX Só podemos ter um conhecimento sumamente inadequado da duração de nosso Corpo. Demonstração A duração de nosso corpo não depende de sua essência (pelo Axiom. 1) nem da natureza absoluta de Deus (pela Prop. 21 P I). Ao contrário (pela Prop. 28 P I), ele é determinado a existir e a operar por causas, que também são, a sua vez, determinadas por outras a existir e operar de maneira certa e determinada e estas, a seu turno, o são por outras e assim ao infinito. Portanto, a duração de nosso Corpo depende da ordem comum da natureza e da constituição das coisas. Quanto ao conhecimento adequado da razão desta constituição das coisas, ele existe em Deus, na medida em que ele tem as ideias de todas estas coisas e não na medida em que ele tem apenas a ideia do Corpo humano (pelo Res. Prop. 9). Logo, o conhecimento da duração de nosso corpo é em Deus sumamente inadequado na medida em que o consideramos apenas constituindo a Mente humana, isto é (pelo Res. Prop. 11), tal conhecimento é em nossa Mente sumamente inadequado. QED PROPOSIÇÃO XXXI Só podemos ter um conhecimento sumamente inadequado da duração das coisas singulares que estão fora de nós. Demonstração Assim como o Corpo humano, cada coisa singular deve ser determinada a existir e operar de maneira certa e determinada por outra coisa singular e esta por outra e assim ao infinito (pela Prop. 28 P I). E do mesmo modo como demonstramos, na Proposição precedente, a partir desta propriedade comum das coisas singulares, que temos apenas um conhecimento sumamente inadequado da duração de nosso Corpo, também deveremos concluir o mesmo da duração das coisas singulares, a saber, que podemos ter apenas um conhecimento sumamente inadequado da duração de tais coisas. QED Resultado Disso se segue que todas as coisas particulares são contingentes e corruptíveis. Pois não podemos ter nenhum conhecimento adequado de sua duração (pela Proposição precedente), e isto é o que entendemos por coisas contingentes e pela possibilidade que elas têm de se corromperem (vide Com. 1 Prop. 33 P I), pois (pela Prop. 29 P I), afora isto nada existe de contingente. PROPOSIÇÃO XXXII Todas as ideias são verdadeiras na medida em que se referem a Deus. Demonstração Pois todas as ideias que existem em Deus convêm totalmente com seus ideados (pelo Res. Prop. 7) e portanto (pelo Axiom. 6 P I) são verdadeiras. QED PROPOSIÇÃO XXXIII Não existe nada de positivo nas ideias pelo que elas possam ser ditas falsas. Demonstração Se o negas, conceba se for possível, um modo de pensar que constitua a forma do erro ou da falsidade. Tal modo de pensar não pode existir em Deus (pela Prop. Precedente) e não pode tampouco ser concebido fora de Deus (pela Prop. 15 P I). Logo, não pode haver nada de positivo nas ideias pelo que elas possam ser ditas falsas. QED PROPOSIÇÃO XXXIV Toda ideia que é em nós absoluta ou adequada e perfeita, é verdadeira. Demonstração Quando dizemos que há em nós uma ideia adequada e perfeita, dizemos apenas (pelo Res. Prop. 11) que há em Deus, enquanto ele constitui a essência de nossa Mente, uma ideia adequada e perfeita e, consequentemente (pela Prop. 32), dizemos apenas que tal ideia é verdadeira. QED PROPOSIÇÃO XXXV A falsidade consiste na privação de conhecimento que as ideias inadequadas ou mutiladas e confusas envolvem. Demonstração Não há nada de positivo nas ideias que constitua a forma da falsidade (pela Prop. 33). Mas a falsidade não consiste nem na privação absoluta (pois se diz que as Mentes erram ou falham mas não os Corpos), nem na ignorância absoluta, pois errar e ignorar são coisas diferentes. Logo [a falsidade] consiste na privação de conhecimento que o conhecimento inadequado das coisas envolve, ou seja, [consiste] nas ideias inadequadas e confusas. QED Comentário Expliquei no Comentário da Prop. 17 por que razão o erro consiste na privação de conhecimento, mas, para melhor explicação darei um exemplo. Os homens se enganam quando se pensam livres e esta opinião consiste apenas em serem conscientes de suas ações e ignorantes das causas que as determinam. Assim, a ideia que têm de sua liberdade vem de não conhecerem nenhuma causa de suas ações, pois quando dizem que as ações humanas dependem da vontade, são palavras sem nenhuma ideia. Com efeito, todos ignoram o que é a vontade e como ela move o Corpo e os que presumem outra coisa e inventam sedes ou habitáculos para a alma normalmente despertam o riso ou a náusea. Quando olhamos o sol e imaginamos que ele dista de nós de duzentos pés, o erro não está na imaginação enquanto tal, mas apenas em que quando o imaginamos assim, ignorarmos sua verdadeira distância e a causa de tal imaginação. Porque ainda que saibamos depois que o sol dista de nós de mais que 600 diâmetros da terra, continuaremos a imaginá-lo próximo a nós. Pois não imaginamos o sol próximo a nós por ignorarmos a verdadeira distância, mas porque uma afecção de nosso corpo envolve a essência do sol, na medida em que nosso corpo é afetado por ele. PROPOSIÇÃO XXXVI As ideias inadequadas e confusas se seguem umas das outras com a mesma necessidade que as ideias adequadas, ou claras e distintas. Demonstração Todas as ideias existem em Deus (pela Prop. 15 P I) e, na medida em que se referem a Deus, são verdadeiras (pela Prop. 32) e (pelo Res. Prop. 7) adequadas. Logo, uma [ideia] só é inadequada ou confusa enquanto se refere à Mente singular de alguém (ver à respeito as Props. 24 e 28). Assim, todas [as ideias], tanto as adequadas quanto as inadequadas, se seguem umas das outras com a mesma necessidade (pelo Res. Prop. 6). QED PROPOSIÇÃO XXXVII Aquilo que é comum a tudo (vide a respeito o Lema 2) e que está igualmente na parte e no todo, não constitui a essência de nenhuma coisa singular. Demonstração Se o negas, conceba, se for possível, que isto constitua a essência de uma coisa singular, por exemplo, a essência de B. Assim, (pela Def. 2) isto não pode ser nem ser concebido sem B, o que é contra a hipótese. Logo, isto não pertence à essência de B nem constitui a essência de outra coisa singular. QED PROPOSIÇÃO XXXVIII As coisas que são comuns a tudo e que estão igualmente na parte como no todo só podem ser concebidas adequadamente. Demonstração Seja A algo de comum a todos os corpos e que está tanto na parte como no todo de um corpo qualquer. Digo que A só pode ser concebido adequadamente, pois sua ideia (pelo Res. Prop. 7) é necessariamente adequada em Deus, tanto enquanto ele tem a ideia do Corpo humano, como enquanto ele tem as ideias de suas afecções, que (pelas Props. 16, 25 e 27) envolvem, em parte, tanto a natureza do Corpo humano, quanto a natureza dos corpos externos, isto é (pelas Props. 12 e 13), tal ideia é necessariamente adequada em Deus, tanto na medida em que constitui a Mente humana, como na medida em que tem as ideias que existem na Mente humana. Assim, a Mente (pelo Res. Prop. 11) necessariamente percebe A adequadamente. E A não pode ser concebido de outro modo, seja quando a Mente percebe a si mesma, seja quando ela percebe um corpo externo qualquer. QED Resultado Disso se segue que existem algumas ideias ou noções que são comuns a todos os homens. Pois (pelo Lema 2) todos os corpos convém em algumas coisas que (pela Prop. precedente) devem ser percebidas por todos de forma adequada, ou clara e distintamente. PROPOSIÇÃO XXXIX A ideia daquilo que é comum e próprio, tanto ao corpo humano como a alguns corpos externos pelos quais ele é afetado frequentemente, e que está tanto na parte como no todo de cada um deles, tal ideia também será adequada na Mente. Demonstração Seja A aquilo que é comum e próprio ao Corpo humano e a alguns corpos externos e que seja igual no Corpo humano e nestes corpos externos e que seja ainda comum a cada parte e ao todo de tais corpos externos. De A haverá em Deus uma ideia adequada (pelo Res. Prop. 7) tanto enquanto ele tem a ideia do Corpo humano como enquanto ele tem as ideias destes corpos externos. Suponhamos agora que o Corpo humano é afetado por um corpo externo naquilo que eles têm de comum entre si, isto é, por A. A ideia desta afecção envolverá a propriedade A (pela Prop. 16). Portanto (pelo mesmo Res. Prop. 7), a ideia desta afecção, na medida em que envolve A, será adequada em Deus, enquanto ele é afetado pela ideia do Corpo humano, isto é (pela Prop. 13), enquanto ele constitui a natureza da Mente humana. Logo, (pelo Cor Prop. 11) esta ideia também será adequada na Mente humana. QED Resultado Disso se segue que a Mente é tão mais apta a perceber adequadamente mais coisas, quanto mais coisas seu Corpo tiver em comum com outros corpos. PROPOSIÇÃO XL Todas as ideias que se seguem na Mente de ideias que nela são adequadas, também são adequadas. Demonstração É evidente. Pois, quando dizemos que uma ideia se segue na Mente humana de ideias que nela são adequadas, dizemos apenas (pelo Res. Prop. 11) que há no intelecto divino uma ideia de que Deus é causa, não enquanto ele é infinito, nem enquanto ele é afetado pela ideia de muitíssimas coisas singulares, mas enquanto ele constitui somente a essência da Mente humana. Comentário I Expliquei com isto a causa das noções que chamamos de Comuns, e que são o fundamento de nosso raciocínio. Mas outros axiomas ou noções, que resultam de outras causas e que seria oportuno explicar por nosso método. Pois assim seria possível estabelecer quais noções são mais úteis que as demais, quais não têm praticamente nenhum uso, quais são comuns, quais são claras e distintas para os que não são presa de preconceitos, e quais, enfim, são mal fundadas. Além disso, seria possível estabelecer de onde se originam as noções que são ditas Segundas e, consequentemente, os axiomas fundados nelas, e algumas outras coisas sobre as quais meditei a este respeito. Mas, como dediquei tais coisas a outro Tratado e para não criar fastio pela demasiada prolixidade, decidi prescindir aqui do argumento. No entanto, para não omitir aqui nada que seja necessário saber, tratarei brevemente das causas dos termos que são ditos Transcendentais, como Ser, Coisa e algo. Tais termos têm como origem o fato de o Corpo humano, por ser limitado, só ser capaz de formar certo número de imagens (expliquei o que é imagem no Com. Prop. 17) distintas entre si e que, uma vez excedido este número, as imagens começam a se confundir, e se o número de imagens que o Corpo é capaz de formar de forma simultânea e distinta é grandemente excedido, elas se confundirão completamente umas com as outras. É assim evidente, pelo Res. Prop. 17 e pela Prop. 18, que a Mente humana pode imaginar, simultânea e distintamente, tantos corpos quantas forem as imagens que puderem se formar simultaneamente em seu corpo. Mas, quando as imagens se confundirem completamente no corpo, a Mente imaginará todos os corpos confusamente e sem nenhuma distinção, compreendendo-os como que sob um mesmo atributo, a saber, sob o atributo de Ente, Coisa, etc. E o mesmo pode ser deduzido também de que as imagens não mantém sempre a mesma força, e por outras causas análogas, que não é preciso explicar aqui, pois para o nosso propósito basta considerar apenas uma, pois todas elas resultam que estes termos signifiquem ideias sumamente confusas. Por causas similares se originaram noções que se chamam de Universais, como Homem, Cavalo, Cão, etc. A saber, que se formam simultaneamente tantas imagens no Corpo humano, por exemplo, de homens, que superam a força de imaginar. Não completamente, é certo, mas ao ponto em que a Mente não consegue imaginar as pequenas diferenças [entre estes homens] (como cor, tamanho, etc.) nem seu número preciso, só conseguindo imaginar distintamente aquilo em que todos eles convém, quando o corpo é por eles afetado. Pois o corpo foi mais fortemente afetado por aquilo que é comum, uma vez que cada singular o afetou [por esta propriedade]. E é isto que é expresso com a palavra homem e que é predicado com infinitas coisas singulares, pois, como dissemos, o número determinado de coisas singulares não pode ser imaginado. Cabe notar, porém, que tais noções não se formam do mesmo modo em todos, mas que elas variam em razão da coisa pela qual o corpo foi afetado frequentemente e pelo que a Mente imagina ou recorda mais facilmente. Por exemplo, aqueles que frequentemente contemplaram a postura dos homens entendem por homem um animal de postura ereta. Já os que se acostumaram a contemplar outra coisa, formarão outra imagem comum dos homens, como a de que o homem é um animal que ri, um bípede implume, um animal racional, etc. E assim, cada um formará imagens universais das demais coisas, de acordo com as disposições de seu corpo. Não é surpreendente, portanto, que tenham surgido tantas controvérsias entre os Filósofos que quiseram explicar a natureza apenas pelas imagens das coisas. Comentário II De tudo o que dissemos acima, fica claro que percebemos muitas coisas de que formamos noções universais: 1º) A partir de coisas singulares que representamos pelos sentidos de forma mutilada, confusa e sem ordem para o intelecto (vide Res. Prop. 29): a tais percepções tomei por hábito de chamar de conhecimento por experiência vaga. 2º) A partir de signos como, por exemplo, quando ao ouvir ou ler certa palavra, nos recordamos de coisas e formamos ideias semelhantes a elas, pelas quais as imaginamos (vide Com. Prop. 18). Ambas as formas de contemplar as coisas chamarei, na sequência de conhecimento do primeiro gênero, opinião ou imaginação. 3º) E finalmente, a partir de que temos noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas (vide Res. Prop. 38, Prop. 39 e seu Res. e Prop. 40). A isto chamarei de razão ou segundo gênero do conhecimento. Além destes gêneros do conhecimento há, como mostrarei na sequência, um terceiro que chamaremos de ciência intuitiva. Este gênero do conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de alguns atributos de Deus ao conhecimento adequado da essência das coisas. Explicarei tudo isto com o exemplo de uma coisa. Suponha que sejam dados três números e o problema seja obter um quarto que esteja para o terceiro na mesma proporção em que o segundo está para o primeiro. Os comerciantes não hesitam em multiplicar o segundo pelo terceiro, dividindo o produto pelo primeiro. E isto seja por que ainda não se esqueceram do que ouviram de seus professores sem demonstração, seja por que descobriram isto nos números mais simples, seja pela força da Demonstração da Proposição 19 do livro 7 de Euclides, isto é pela propriedade comum dos números proporcionais. Mas para os números mais simples nada disso é necessário. Por exemplo, dados os números 1, 2 e 3, ninguém deixa de ver que o quarto número proporcional é o seis, e isto com muito mais clareza porque da relação que por intuição entre o primeiro e o segundo, concluímos o quarto. PROPOSIÇÃO XLI O conhecimento do primeiro gênero é a única causa da falsidade e os conhecimentos do segundo e terceiro gêneros são necessariamente verdadeiros. Demonstração No Comentário precedente explicamos que ao primeiro gênero do conhecimento pertencem todas as ideias inadequadas e confusas e, portanto (pela Prop. 35), que este conhecimento é a única causa da falsidade. Dissemos também que as ideias adequadas pertencem ao segundo e terceiro gêneros do conhecimento e, portanto, estes são (pela Prop. 34) verdadeiros. QED PROPOSIÇÃO XLII O conhecimento do segundo e do terceiro gêneros, mas não o conhecimento do primeiro gênero, nos ensinam a distinguir o verdadeiro do falso. Demonstração Esta proposição é evidente. Pois quem sabe distinguir entre o verdadeiro e o falso deve ter uma ideia adequada do verdadeiro e do falso, isto é (pelo Com. Prop. 40), deve conhecer o verdadeiro e o falso pelo terceiro gênero do conhecimento. PROPOSIÇÃO XLIII Quem tem uma ideia verdadeira, sabe simultaneamente que tem uma ideia verdadeira e não pode duvidar de sua verdade. Demonstração Uma ideia verdadeira em nós é a que existe adequada em Deus, enquanto ele se exprime pela natureza da alma humana (pelo corolário da proposição 11 desta parte). Suponhamos, portanto, que existe em Deus, enquanto ele se exprime pela natureza da alma humana, uma ideia adequada A. Deve necessariamente existir também em Deus uma ideia dessa ideia que está em Deus na mesma relação que a ideia A (pela proposição 20 desta parte, cuja demonstração é universal). Ora, por hipótese, supõe-se que a ideia A está em relação com Deus, enquanto ele se exprime pela natureza da alma humana; portanto, a ideia da ideia A deve estar também em Deus na mesma relação, isto é (pelo mesmo corolário da proposição 11 desta parte), esta ideia adequada da ideia A existirá na mesma alma que tem já a ideia adequada A. Por consequência, aquele que tem uma ideia adequada, isto é (pela proposição 34 desta parte), aquele que conhece uma coisa verdadeiramente, deve ter, ao mesmo tempo, uma ideia adequada do seu conhecimento; por outras palavras (o que é evidente por si mesmo), deve ter um conhecimento verdadeiro. Q. e. d. Comentário No Comentário da proposição 21 desta parte, expliquei o que é a ideia de uma ideia. Mas deve observar-se que a proposição precedente é suficientemente evidente por si mesma. Na verdade, ninguém, tendo uma ideia verdadeira, ignora que a ideia verdadeira envolve a mais alta certeza. Com efeito, ter uma ideia verdadeira não significa senão conhecer uma coisa perfeitamente ou o melhor possível. Ninguém certamente poderá duvidar disso, a menos que creia que uma ideia é algo de mudo como uma pintura num quadro, e não um modo de pensar, isto é, o próprio ato de conhecer. E, pergunto, quem pode saber que conhece uma coisa se, antes, não conhece a coisa? Isto é, quem pode saber que está certo de uma coisa se, antes, não está certo dessa coisa? Além disso, que pode haver de mais claro e de mais certo que a ideia verdadeira como norma de verdade? Sem dúvida, do mesmo modo que a luz se faz conhecer a si mesma e faz conhecer as trevas, assim a verdade é norma de si mesma e da falsidade. Com isto, creio ter respondido às questões seguintes: se uma ideia verdadeira, apenas enquanto se diz que concorda com o seu objeto, se distingue de uma falsa; uma ideia verdadeira não contém, portanto, mais realidade ou perfeição que uma ideia falsa (pois se distinguem apenas por uma denominação extrínseca), e, consequentemente, também um homem que tem ideias verdadeiras não sobreleva em nada aquele que tem apenas ideias falsas? Depois, de onde vem que os homens tenham ideias falsas? E, enfim, como é que alguém pode ter a certeza de que tem ideias que estão de acordo com os seus objetos? A estas questões, digo, creio ter já respondido. Com efeito, no que toca à diferença entre uma ideia verdadeira e uma falsa, é evidente, pela proposição 35 desta parte, que uma está para a outra como o ser para o não ser. Quanto às causas da falsidade, mostrei-as muito claramente desde a proposição 19 até a proposição 35 com o seu Comentário. Daí se vê também a diferença que existe entre um homem que tem ideias verdadeiras e um homem que apenas as tem falsas. Enfim, quanto à última questão, a saber, como é que um homem pode saber que tem uma ideia que convém com o seu objeto, acabo de mostrar suficientemente e superabundantemente que isso provém apenas de que ele tem uma ideia que convém com o seu objeto, isto é, de que a verdade é norma de si mesma. Acrescente-se que a nossa alma, enquanto percebe as coisas verdadeiramente, é uma parte da inteligência infinita de Deus (pelo corolário da proposição 11 desta parte); por consequência, é tão necessário que as ideias claras e distintas da alma sejam verdadeiras, como as ideias de Deus. PROPOSIÇÃO XLIV É da natureza da Razão considerar as coisas não como contingentes, mas como necessária s. Demonstração É da natureza da razão perceber as coisas verdadeiramente (pela proposição 41 desta parte), isto é (pelo corolário 6 da Parte I), como elas são em si mesmas, isto é (pela proposição 29 da Parte I), não como contingentes, mas como necessária s. Q. e. d. COROLÁRIO I Daí se segue que depende apenas da imaginação que representemos as coisas como contingentes, quer em relação ao passado, quer em relação ao futuro. COMENTÁRIO De que maneira isso possa produzir-se, explicá-lo-ei em poucas palavras. Mostramos atrás (proposição 17 desta parte e seu corolário) que a alma, embora as coisas não existam, imagina-as sempre como presentes, a não ser que haja causas que excluam a sua existência presente. Mostramos (proposição 18 desta parte), além disso, que se o corpo humano foi, uma vez, afetado simultaneamente por dois corpos exteriores, sempre que, mais tarde, a alma imaginar um, recordar-se-á imediatamente do outro; isto é, considerá-los-á a ambos como estando-lhe presentes, a não ser que haja causas que excluam a sua existência presente. Além disso, ninguém duvida que imaginemos também o tempo, e isso porque imaginamos corpos que se movem mais lentamente ou mais rapidamente ou com a mesma rapidez que outros. Suponhamos agora uma criança que ontem viu pela primeira vez de manhã Pedro, ao meio-dia Paulo, e à tarde Simão; e hoje, de novo, viu Pedro de manhã. É evidente, pela proposição 18 desta parte, que, logo que ela vir a luz da manhã, imediatamente imaginará o sol a percorrer a mesma parte do céu que vira percorrer na véspera; por outras palavras, imaginará o dia inteiro e Pedro com a manhã, Paulo com o meio-dia, e Simão com a tarde, isto é, imaginará a existência de Paulo e de Simão em relação com um tempo futuro. Ao contrário, se vê Simão à tarde, relacionará Paulo e Pedro com o tempo passado, imaginando-os ao mesmo tempo que o tempo passado; e esta imaginação será tanto mais constante quantas mais vezes ela os tiver visto nessa mesma ordem. Mas se acontece, uma vez, que outra tarde, em vez de Simão, ela vê Jacó, então, na manhã seguinte, imaginará ao mesmo tempo que a tarde, ora Simão ora Jacó, mas não os dois ao mesmo tempo. Com efeito, supusemos que ela viu, à tarde, apenas um dos dois e não os dois ao mesmo tempo. Depois a sua imaginação será, portanto, flutuante, e ela imaginará ao mesmo tempo que a tarde futura, ora um, ora outro, isto é, considerará um e outro não como devendo ser de uma maneira certa, mas como futuros contingentes. Esta flutuação da imaginação será a mesma se as coisas imaginadas são coisas que consideramos com uma relação com o tempo passado ou com o presente; e, consequentemente, imaginaremos como contingentes as coisas referidas tanto ao presente como ao passado ou ao futuro. COROLÁRIO II É da natureza da Razão perceber as coisas sob certo aspecto de eternidade. DEMONSTRAÇÃO Com efeito, é da natureza da Razão considerar as coisas como necessária s e não como contingentes (pela proposição precedente). E ela percebe esta necessidade das coisas (pela proposição 41 desta parte) verdadeiramente, isto é (pelo axioma 6 da Parte I), como ela é em si mesma. Mas (pela proposição 16 da Parte I) essa necessidade das coisas é a necessidade mesma da natureza eterna de Deus. É, portanto, da natureza da Razão considerar as coisas sob esse aspecto de eternidade. Acrescente-se que os fundamentos da Razão são (pela proposição 38 desta parte) noções que explicam o que é comum a todas as coisas e que (pela proposição 37 desta parte) não explicam a essência de nenhuma coisa singular; e que, por conseguinte, devem ser concebidas sem qualquer relação de tempo, mas sob certo aspecto de eternidade. Q. e d. PROPOSIÇÃO XLV Qualquer ideia de um corpo qualquer, ou de uma coisa singular existente em ato, envolve necessariamente a essência eterna e infinita de Deus. DEMONSTRAÇÃO A ideia de uma coisa singular existente em ato envolve necessariamente tanto a essência como a existência da coisa (pelo corolário da proposição 8 desta parte). Ora, as coisas singulares (pela proposição 15 da Parte I) não podem ser concebidas sem Deus; mas, uma vez que (pela proposição 6 desta parte) elas têm Deus por causa, enquanto ele é considerado sob o atributo de que essas coisas são modos, as suas ideias devem envolver necessariamente (pelo axioma 4 da Parte I) o conceito desse atributo, isto é (pela definição 6 da Parte I), a essência eterna e infinita de Deus. Q. e. d. COMENTÁRIO Não entendo aqui por existência a duração, isto é, a existência enquanto é concebida abstratamente e como certa espécie de quantidade. Na verdade, falo da própria natureza da existência, a qual é atribuída às coisas singulares pelo motivo de que da necessidade eterna da natureza de Deus resultam coisas infinitas em infinitos modos (ver proposição 16 da Parte I). Falo, repito, da própria existência das coisas singulares, enquanto elas existem em Deus. Pois, embora cada uma seja determinada por outra coisa singular a existir de certa maneira, no entanto, a força pela qual cada uma persevera na existência resulta da necessidade eterna da natureza de Deus. Sobre este assunto, ver o corolário 24 da Parte I. PROPOSIÇÃO XLVI O conhecimento da essência eterna e infinita de Deus que cada ideia envolve é adequado e perfeito. DEMONSTRAÇÃO A demonstração da proposição precedente é universal, e quer se considere uma coisa como uma parte ou como um todo, a sua ideia, seja ela a do todo ou a da parte (pela proposição precedente), envolverá a essência eterna e infinita de Deus. Portanto, o que dá o conhecimento da essência eterna e infinita de Deus ê comum a todos e existe igualmente em cada parte e no todo, e, por consequência (pela proposição 38 desta parte), esse conhecimento será adequado. Q. e. d. PROPOSIÇÃO XLVII A alma humana tem um conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus. DEMONSTRAÇÃO A alma humana tem ideias (pela proposição 22 desta parte), por meio das quais (pela proposição 23 desta parte) se percebe a si mesma, percebe o seu próprio corpo (pela proposição 19 desta parte) e (pelo corolário 1 da proposição 16 e pela proposição 17 desta parte) os corpos exteriores existentes em ato. Por consequência (pelas proposições 45 e 46 desta parte), ela tem um conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus. Q. e. d. COMENTÁRIO Por aqui vemos que a essência infinita de Deus e a sua eternidade são conhecidas de todos. Ora, como todas as coisas existem em Deus e são concebidas por Deus, segue-se que podemos, desse conhecimento, deduzir um grande número de coisas que conheceremos adequadamente, e formar, assim, aquele terceiro gênero de conhecimento de que falamos no Comentário 2 da proposição 40 desta parte, e cuja excelência e utilidade teremos ocasião de mostrar na Parte V. Quanto ao fato de os homens não terem uma ideia tão clara de Deus como das noções comuns, isso provém de não poderem imaginar Deus como imaginam os corpos e de ligarem o nome de Deus às imagens das coisas que estão acostumados a ver, e que os homens quase não podem evitar, afetados como estão continuamente pelos corpos exteriores. E, efetivamente, a maioria dos erros consiste apenas em que não aplicamos corretamente os nomes às coisas. Com efeito, quando alguém diz que as linhas que conduzem do centro do círculo à circunferência são desiguais, por certo que entende, então, pelo nome de círculo uma coisa diferente do que entendem os matemáticos. Do mesmo modo, quando os homens se enganam ao calcular, têm no espírito números diferentes daqueles que estão no papel. É por isso que, por certo, se se atende ao seu espírito, eles não se enganam; parece, no entanto, que se enganam, porque cremos que eles têm no espírito os números que estão no papel. Se não fosse isso, não julgaríamos que eles se enganam, do mesmo modo que não acreditei que se enganava aquele a quem ouvi, não há muito tempo ainda, gritar que o seu pátio tinha voado para a galinha do vizinho, pois o seu pensamento parecia-me suficientemente claro. É daí que nasce a maioria das discussões, isto é, ou porque os homens não exprimem corretamente o seu pensamento ou porque interpretam mal o pensamento de outrem. Pois, na realidade, enquanto, com ardor, se contradizem, ou pensam a mesma coisa, ou pensam em coisas diferentes, de tal maneira que os erros ou absurdos, que julgam existir no outro, não existem. PROPOSIÇÃO XLVIII Na alma não existe vontade absoluta ou livre; mas a alma é determinada a querer isto ou aquilo por uma causa que também é determinada por outra, e essa outra, por sua vez, por outra, e assim até ao infinito. DEMONSTRAÇÃO A alma é certo e determinado modo de pensar (pela proposição 2 desta parte); por consequência (pelo corolário 2 da proposição 17 desta parte), não pode ser uma causa livre das suas ações; por outras palavras, não pode ter uma faculdade absoluta de querer ou de não querer; mas deve ser determinada (pela proposição 28 da Parte I) a querer isto ou aquilo por uma causa, a qual é também determinada por outra, e essa outra, por sua vez, por uma outra, etc. Q. e. d. COMENTÁRIO Da mesma maneira se demonstra que não existe na alma nenhuma faculdade absoluta de entender, de desejar, de amar, etc. De onde se segue que essas faculdades e outras semelhantes ou são puras ficções ou, então, não são senão entes metafísicos, isto é, universais, que costumamos formar a partir dos singulares, de tal maneira que a inteligência e a vontade estão para esta ou aquela ideia, ou para esta ou aquela volição, na mesma relação que a pedreidade ("lapideitas") está para esta ou aquela pedra, ou como homem está para Pedro e para Paulo. Expliquei, por outro lado, no Apêndice da Parte I, a causa por que os homens julgam que são livres. Mas, antes de prosseguir, convém notar aqui que por vontade entendo a faculdade de afirmar e de negar, e não o desejo; entendo, repito, a faculdade pela qual a alma afirma, ou nega, o que é verdadeiro e o que é falso, e não o desejo pelo qual a alma apetece as coisas ou as tem em aversão. Ora, depois de ter já demonstrado que essas faculdades são noções universais, que se não distinguem das coisas singulares das quais as formamos, é necessário investigar agora se as própria s volições são algo mais que as ideias que temos das própria s coisas. É necessário investigar, repito, se existe, na alma, outra afirmação ou outra negação além daquela que envolve a ideia, enquanto ela é uma ideia. Sobre este assunto, veja-se a proposição seguinte, assim como a definição 3 desta parte, para que o pensamento não degenere em pinturas. Com efeito, por ideias não entendo imagens, como as que se produzem no fundo dos olhos ou, se se quiser, no meio do cérebro, mas concepções do pensamento. PROPOSIÇÃO XLIX Na alma não existe nenhuma volição, isto é, nenhuma afirmação e nenhuma negação, além da que envolve a ideia, enquanto é uma ideia. DEMONSTRAÇÃO Na alma (pela proposição precedente), não existe nenhuma faculdade absoluta de querer e não querer, mas somente volições singulares, isto é, esta e aquela afirmação, e esta e aquela negação. Concebamos, portanto, uma volição singular qualquer, por exemplo, o modo de pensar pelo qual a alma afirma que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos. Esta afirmação envolve o conceito ou ideia de triângulo, isto é, não pode ser concebida sem a ideia de triângulo. Com efeito, é o mesmo dizer que A deve envolver o conceito B, e que A não pode ser concebido sem B. Também esta afirmação (pelo axioma 3 desta parte) não pode existir sem a ideia de triângulo. Portanto, esta afirmação não pode existir nem ser concebida sem a ideia de triângulo. Além disso, essa ideia de triângulo deve envolver esta afirmação, a saber, que a soma dos seus ângulos é igual a dois retos. Portanto, inversamente, também a ideia de triângulo não pode existir nem ser concebida sem essa afirmação; por consequência (pela definição 2 desta parte), essa afirmação pertence à essência da ideia de triângulo e nada mais é que ela. E o que acabamos de dizer desta volição (pois escolhemos um exemplo qualquer) deverá dizer-se também de qualquer outra volição, a saber, que ela nada mais é que a sua própria ideia. Q. e. d. COROLÁRIO A vontade e a inteligência são uma só e mesma coisa. DEMONSTRAÇÃO A vontade e a inteligência nada mais são que volições e ideias singulares (pela proposição 48 desta parte e seu Comentário). Ora, uma volição singular e uma ideia singular (pela proposição precedente) são uma só e mesma coisa. Portanto, a vontade e a inteligência são uma só e mesma coisa. Q. e. d. COMENTÁRIO Pelo que precede, suprimimos a causa do erro, comumente admitida. Efetivamente, mostramos atrás que a falsidade consiste apenas na privação que envolve as ideias mutiladas e confusas. É por isso que a ideia falsa, enquanto é falsa, não envolve a certeza. Também, quando dizemos que um homem aceita ideias falsas e não experimenta nenhuma dúvida a respeito delas, não dizemos com isso que tem a certeza, mas apenas que não duvida, ou que encontra o repouso em ideias falsas, porque não há causas que possam fazer com que a sua imaginação flutue. Sobre este assunto, veja-se o Comentário da proposição 44 desta parte. Portanto, qualquer que se suponha seja a força com que um homem adere ao falso, jamais diremos que ele tem a certeza. Na verdade, por certeza entendemos algo de positivo (ver a proposição 43 desta parte e o seu Comentário) e não a privação de dúvida. E, por privação de certeza, entendemos a falsidade. Mas, para explicar mais amplamente a proposição precedente, resta fazer algumas advertências. Resta, além disso, responder às objeções que podem surgir contra esta nossa doutrina. E, enfim, para afastar todo escrúpulo, pensei que valia a pena indicar certas vantagens desta doutrina. Digo certas vantagens, pois as principais compreender-se-ão melhor por aquilo que diremos na Parte V. Começo, portanto, pelo primeiro ponto e advirto os leitores para que distingam cuidadosamente entre uma ideia ou conceito da alma e as imagens das coisas que imaginamos. É necessário também que distingam entre as ideias e as palavras por meio das quais designamos as coisas. Efetivamente, porque muitos homens ou confundem inteiramente estas três coisas — as imagens, as palavras e as ideias —, ou não as distinguem com suficiente cuidado, ou, enfim, não põem nesta distinção a prudência suficiente, ignoram completamente esta doutrina da vontade, cujo conhecimento é absolutamente indispensável tanto para a especulação como para ordenar sabiamente a vida. Na verdade, aqueles que julgam que as ideias consistem nas imagens que se formam em nós pelo encontro dos corpos persuadem-se que as ideias das coisas à semelhança das quais não podemos formar qualquer imagem não são ideia s, mas apenas ficções que forjamos pelo livre arbítrio da vontade. Olham, portanto, as ideias como pinturas mudas num quadro e, dominados por este preconceito, não veem que uma ideia, enquanto é ideia, envolve uma afirmação ou uma negação. Aqueles que confundem as palavras com as ideia s, ou com a própria afirmação que a ideia envolve, julgam que podem querer o contrário do que sentem quando, com palavras apenas, afirmam ou negam qualquer coisa contrariamente ao que sentem. Será fácil, todavia, rejeitar estes preconceitos àquele que atender bem à natureza do pensamento, o qual de modo algum envolve o conceito de extensão, e que, por conseguinte, entende claramente que a ideia (uma vez que ela é um modo de pensar) não consiste nem na imagem de qualquer coisa nem em palavras. A essência das palavras, com efeito, e das imagens é constituída apenas por movimentos corporais que de modo algum envolvem o conceito de pensamento. Estas breves advertências sobre este assunto bastarão; passo, portanto, às objeções de que há pouco falei. A primeira é que se crê como certo que a vontade se estende mais longe que a inteligência, sendo, assim, diferente desta. Mas a razão pela qual se crê que a vontade se estende mais longe que a inteligência é que, diz-se, sabe-se por experiência que, para nos pronunciarmos sobre uma infinidade de coisas que não percebemos, não temos necessidade de uma faculdade de assentimento, isto é, de afirmar ou de negar, maior que aquela que já temos mas, antes, de uma maior faculdade de compreender. A vontade distingue-se, portanto, da inteligência pelo fato de que esta é finita e aquela é infinita. Em segundo lugar, pode objetar-se-nos que, se há uma coisa que parece claramente ensinada pela experiência, é que podemos suspender o nosso juízo, de maneira a não nos pronunciarmos sobre as coisas que percebermos; o que é confirmado pelo fato de que se não diz que alguém se engana enquanto percebe uma coisa, mas apenas enquanto dá ou recusa o seu assentimento. Aquele que, por exemplo, imagina um cavalo alado nem por isso admite que exista um cavalo alado; isto é, não se engana por isso, a não ser que, ao mesmo tempo, admita que exista um cavalo alado. Portanto, o que a experiência parece ensinar-nos de mais claro é que a vontade, isto é, a faculdade de assentir, é livre e distinta da faculdade de conhecer. Em terceiro lugar, pode objetar-se que uma afirmação não parece conter mais verdade que outra; isto é, não parecemos ter necessidade de uma potência maior para afirmar que o que é verdadeiro é verdadeiro, que para afirmar que o que é falso é verdadeiro; enquanto que, ao contrário, percebemos que uma ideia tem mais realidade ou perfeição que outra; com efeito, quanto mais os objetos sobrepujam em excelência uns aos outros, tanto mais também as suas ideias são mais perfeitas umas que as outras; por aqui, ainda, uma diferença parece ficar estabelecida entre a vontade e a inteligência. Em quarto lugar, pode objetar-se, se o homem não age em virtude da liberdade da sua vontade, que acontecerá no caso de ele se encontrar em equilíbrio, como a burra de Buridan? Morrerá de fome e de sede? Se digo que sim, terei o ar de conceber uma burra ou a estátua de um homem, e não um homem; se, ao contrário, digo que não, ele determinar-se-á, portanto, por si mesmo e, por consequência, tem a faculdade de ir e de fazer tudo o que quer. Talvez haja ainda outras objeções possíveis; como, porém, não sou obrigado a discutir aqui, letra por letra, os disparates de toda gente, não me preocuparei em responder senão àquelas que acabo de referir, e fá-lo-ei com a maior brevidade possível. Quanto à primeira objeção, respondo que concedo que a vontade é mais extensa que a inteligência, se por inteligência se entendem apenas as ideias claras e distintas; mas nego que a vontade seja mais extensa que as percepções, por outras palavras, que a faculdade de conceber. E, na verdade, não vejo por que é que a faculdade de querer haveria de ser infinita de preferência à de sentir. Do mesmo modo, com efeito, que, com a mesma faculdade de querer, podemos afirmar uma infinidade de coisas (todavia, umas a seguir às outras, pois não podemos afirmar uma infinidade delas ao mesmo tempo), assim também, com a mesma faculdade de sentir, podemos sentir ou perceber uma infinidade de corpos (um a seguir ao outro, bem entendido). Mas, se se diz que há uma infinidade de coisas que não podemos perceber, replicarei que não podemos fazer ideia alguma dessas coisas e, por consequência, ter, a seu respeito, qualquer vontade. Mas, insistirão, se Deus queria fazer que as percebêssemos também, deveria dar-nos, com certeza, uma maior faculdade de perceber, mas não uma maior faculdade de querer que a que nos deu. O que equivale a dizer: se Deus tivesse querido fazer com que conhecêssemos uma infinidade de outros seres, teria sido necessário, sem dúvida, que nos tivesse dado, para abraçar essa infinidade, uma inteligência maior que a que nos deu, mas não uma ideia mais universal do ser. Com efeito, demonstramos que a vontade é um ser universal, por outras palavras, uma ideia por meio da qual explicamos todas as volições singulares, isto é, o que é comum a todas elas. Uma vez, portanto, que se julga que esta ideia comum ou universal de todas as volições é uma faculdade, nada de estranhar que se diga que esta faculdade se estende até ao infinito, para além dos limites da inteligência. O universal, com efeito, diz-se igualmente de um e de vários indivíduos e de uma infinidade deles. À segunda objeção respondo negando que tenhamos um livre poder de suspender o juízo. Na verdade, quando dizemos que alguém suspende o seu juízo, não dizemos senão que ele vê que não percebe a coisa adequadamente. A suspensão do juízo é, portanto, na realidade, uma percepção e não uma vontade livre. Para que isto se compreenda mais claramente, concebamos uma criança que imagine um cavalo alado e que nada mais imagine. Uma vez que essa imaginação envolve (pelo corolário da proposição 17 desta parte) a existência do cavalo, e que a criança nada percebe que exclua a existência do cavalo, considerará necessariamente o cavalo como presente, e não poderá duvidar da sua existência, embora não tenha certeza. Experimentamos isso todos os dia s nos sonhos e não creio que haja quem acredite que, quando sonha, tem o livre poder de suspender o seu juízo acerca do que sonha, e de fazer com que não sonhe as coisas que vê em sonho. E, no entanto, acontece que, mesmo no sonho, suspendemos o nosso juízo, a saber, quando sonhamos que sonhamos. Além disso, concedo que ninguém se engana enquanto percebe, isto é, que as imaginações da alma, consideradas em si mesmas, nada envolvem de erro (ver Comentário da proposição 17 desta parte); mas nego que um homem nada afirme enquanto percebe. Na verdade, que é perceber um cavalo alado senão afirmar que um cavalo tem asas? Com efeito, se a alma, além do cavalo alado, nada mais percebesse, considerá-lo-ia como estando-lhe presente, e não teria razão alguma para duvidar da sua existência, nem qualquer faculdade para não assentir, a não ser que essa imaginação de um cavalo alado esteja junto a uma ideia que suprime a sua existência, ou que a alma perceba que a ideia que tem do cavalo alado é inadequada, e então ou negará necessariamente a existência desse cavalo ou dela duvidará necessariamente. Pelo que precede, creio ter respondido também ã terceira objeção: que a vontade é algo de universal que se predica de todas as ideias e que significa apenas o que é comum a todas as ideia s; por outras palavras, que ela é a afirmação de que a essência adequada, assim concebida abstratamente, deve existir em todas as ideia s, e sob esse ponto de vista somente, é a mesma em todas; mas não enquanto é considerada como constituindo a essência da ideia, pois, nesse ponto de vista, as afirmações diferem entre si, tanto como as próprias ideias. Por exemplo, a afirmação que envolve a ideia de círculo difere da que envolve a ideia de triângulo, tanto como a ideia de círculo difere da de triângulo. Além disso, nego absolutamente que tenhamos necessidade de igual potência de pensar para afirmar que o que é verdadeiro é verdadeiro que para afirmar que o que é falso é verdadeiro. Com efeito, essas duas afirmações, se considerais a alma, estão entre si na mesma relação que o ser e o não ser, nada existindo nas ideias de positivo que constitua a forma da falsidade (ver a proposição 35 desta parte, o seu Comentário e o Comentário da proposição 47 desta parte). Convém observar aqui, antes de mais, que nos enganamos facilmente quando confundimos os universais com os singulares, e os entes de Razão e as abstrações com os entes reais. Finalmente, quanto ao que se refere à quarta objeção, concebo perfeitamente que um homem colocado num tal equilíbrio (isto é, que nada mais percebe que a fome e a sede, tal alimento e tal bebida colocados a igual distância dele) perecerá de fome e de sede. E se me perguntam se tal homem não deve ser antes considerado um asno que um homem, respondo que não sei; do mesmo modo que não sei o que deve pensar-se daquele que se enforca, nem o que deve pensar-se das crianças, dos idiotas, dos loucos, etc. Resta apenas indicar quanto o conhecimento desta doutrina é útil para a prática da vida, o que veremos facilmente pelo que se segue, a saber: 1.° enquanto ensina que agimos apenas pela decisão de Deus e que participamos da natureza divina, e isso tanto mais quanto realizamos ações mais perfeitas, e tanto mais quanto melhor conhecemos Deus. Portanto, esta doutrina, além de que torna a alma tranquila sob todos os aspectos, tem ainda a vantagem de nos ensinar em que consiste a nossa suprema felicidade ou beatitude, isto é, apenas no conhecimento de Deus, pelo qual somos induzidos a realizar apenas os atos inspirados pelo amor e pela piedade. Por aí conhecemos claramente quanto estão afastados da verdadeira apreciação da virtude aqueles que, pelas suas virtudes e pelas suas melhores ações assim como pela mais dura escravatura, esperam ser honrados por Deus com as mais altas recompensas, como se a própria virtude e o serviço de Deus não fossem a própria felicidade e a suprema liberdade; 2° enquanto ensina como devemos conduzir-nos perante as coisas da fortuna, isto é, que não estão em nosso poder; por outras palavras, perante as coisas que não resultam da nossa natureza, a saber, esperar e suportar com igual ânimo as duas faces da fortuna, uma vez que todas as coisas resultam do decreto eterno de Deus, com a mesma necessidade que, da essência do triângulo, resulta que os seus três ângulos sejam iguais a dois retos; 3° esta doutrina é útil para a vida social, enquanto ensina a não odiar, a não desprezar ninguém, a não pôr ninguém a ridículo, a não ter nem cólera nem inveja contra ninguém; enquanto ensina, ainda, que cada um se contente com o que tem, e seja benevolente para com o próximo, não por pieguice de mulher, por parcialidade, nem por superstição, mas apenas sob a conduta da Razão, isto é, conforme o que o tempo e as circunstâncias exigem, como mostrarei na Parte IV; 4° finalmente, esta doutrina oferece grandes vantagens para a constituição do Estado, enquanto ensina de que maneira devem ser governados e conduzidos os cidadãos, de maneira que não sejam escravos, mas realizem livremente as melhores ações. Termino com isto o que tinha decidido tratar neste Comentário e ponho fim aqui a esta Parte II, onde julgo ter explicado a natureza da alma humana e as suas propriedades, com bastantes pormenores e, tanto quanto permite a dificuldade do assunto, com suficiente clareza. Julgo também ter dado ensinamentos de onde se pode deduzir um grande número de notáveis conclusões, úteis no mais alto grau e necessária s ao conhecimento, como será estabelecido, em parte, pelo que vai seguir-se. Terceira Parte Sobre a Origem e a Natureza dos Afetos PREFÁCIO A maior parte dos que escreveram sobre os afetos e sobre a forma de viver dos homens, não parecem tratar de coisas naturais que se seguem das leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora da natureza. Eles parecem conceber o homem na natureza como um império dentro de um império. Pois eles creem que o homem parece mais perturbar do que seguir a ordem da natureza, ter uma potência absoluta sobre suas ações e só ser determinado por si mesmo. Eles atribuem a causa da impotência e da inconstância do homem não à potência comum da natureza, mas a não sei qual vício da natureza humana e por isso choram por ela, se riem dela, desdenham-na, ou, mais frequentemente, execram-na. E aquele que mostra mais eloquência ou engenhosidade em censurar a impotência da Mente humana é tido como divino. Não faltaram também homens eminentes (e confessamos dever muito a seu trabalho e diligência) que muito escreveram sobre a forma reta de viver e deram aos mortais conselhos plenos de prudência. Mas ninguém, que eu saiba, determinou a verdadeira natureza e força dos afetos nem o que a Mente pode fazer para moderá-los. Sei que o célebre Descartes, embora também acreditasse que a Mente tem sobre suas ações uma potência absoluta, procurou explicar os afetos humanos por suas causas primeiras, mostrando também como a Mente pode ter um império absoluto sobre os afetos. Mas, em minha opinião ele só mostrou a acuidade de sua mente, como demonstrarei no lugar próprio. Por ora gostaria de voltar aos que execram ou se riem dos afetos e ações do homem ao invés de entendê-los. Sem dúvida eles acharão surpreendente que eu busque tratar os vícios e inépcias do homem à maneira Geométrica, buscando demonstrar de forma certa e racional coisas que são contrárias à razão e que eles não cansam de clamar serem repugnantes, vãs, absurdas e horríveis. Mas eis meu raciocínio. Nada há que possa ser atribuído a um vício da natureza, pois a natureza é sempre a mesma e sua virtude e potência de agir são sempre e em qualquer lugar as mesmas, isto é, as leis e regras da natureza, segundo as quais tudo acontece e passa de uma forma a outra, são as mesmas sempre e em qualquer lugar. Assim, deve haver uma só e mesma maneira de entender a natureza das coisas, quaisquer que elas sejam, isto é, através leis e regras universais da natureza. Portanto, os afetos de ódio, ira, inveja, etc., considerados em si, se seguem da mesma necessidade e força (virtude) da natureza que as outras coisas singulares. E, portanto, eles admitem causas certas pelas quais são entendidas, e têm propriedades certas, que são tão dignas de nosso conhecimento quanto as propriedades de quaisquer outras coisas e cuja simples contemplação nos deleita. Assim, tratarei da natureza e da força dos afetos e da potência da Mente sobre eles, com o mesmo método que utilizei no que precede sobre Deus e sobre a Mente, considerando as ações e os apetites humanos como se fosse questão de linhas, planos e corpos. DEFINIÇÕES I. Chamo de causa adequada aquela cujo efeito pode por ela ser percebido clara e distintamente. E chamo inadequada, ou parcial, aquela cujo efeito não pode ser entendido somente por ela. II. Digo que agimos, quando algo acontece, em nós ou fora de nós, de que somos causa adequada, isto é, (pela Def. precedente) quando se segue de nossa natureza, em nós ou fora de nós, algo que se entende clara e distintamente apenas por ela. Digo ao contrário que padecemos, quando algo acontece, em nós ou fora de nós, de que somos apenas causa parcial. III. Por Afeto entendo as afecções do Corpo que aumentam ou diminuem, ajudam ou limitam, a potência de agir deste Corpo e ao mesmo tempo as ideias destas afecções. Portanto, se podemos ser causa adequada de uma destas afecções, entendo por este Afeto uma ação; caso contrário, uma paixão. POSTULADOS I. O corpo humano pode ser afetado de muitos modos, que aumentam ou diminuem sua potência de agir, assim como de outros que não tornam sua potência de agir nem maior nem menor. Este Postulado, ou Axioma, se apoia no Postulado 1 e Lemas 5 e 7, após Prop. 13 P II. II. O corpo humano pode sofrer muitas mudanças e reter mesmo assim impressões ou vestígios dos objetos (vide Post. 5 P II) e, consequentemente [reter] imagens das coisas. (Para a definição de imagem, ver Com. Prop. 17 P II) PROPOSIÇÃO I Nossa Mente às vezes age e às vezes padece, a saber, enquanto ela tem ideias adequadas ela necessariamente age e enquanto tem ideias inadequadas necessariamente padece. Demonstração As ideias de uma Mente humana qualquer são, seja adequadas, seja mutiladas e confusas (pelo Com. Prop. 40 P II). As ideias que são adequadas na Mente de alguém são adequadas em Deus, enquanto constitui a essência da Mente (pelo Res. Prop. 11 P II). E as [ideias] que são inadequadas na Mente também são adequadas em Deus (pelo mesmo Res.), não enquanto ele contém somente a essência desta Mente, mas enquanto contém também e simultaneamente as Mentes de outras coisas. Em seguida, dada uma ideia qualquer deve necessariamente se seguir um efeito (pela Prop. 36 P I) de que Deus é a causa adequada (ver Def. 1), não enquanto ele é infinito, mas enquanto considerado como afetado por esta ideia (ver Prop. 9 P II). Ora, se Deus, enquanto ele é afetado por uma ideia que é adequada em uma Mente, é causa de um efeito, esta Mente será causa adequada deste efeito (por Cor Prop. 11 P II). Logo, nossa Mente (pela Def. 2) age necessariamente, enquanto tem ideias adequadas, o que era o primeiro ponto. Tudo o que se segue necessariamente de uma ideia que em Deus é adequada – não enquanto tem a Mente de um único homem, mas enquanto tem simultaneamente as Mentes de outras coisas e deste homem – [disso] (pelo Res. Prop 11 P II) a Mente do homem não é causa adequada, mas parcial. Portanto (pela Def. 2), a Mente, enquanto tem ideias inadequadas, necessariamente padece. O que era o segundo ponto. Logo, nossa Mente, etc. QED (Quod erat demonstrandum) - Como se queria demonstrar. Resultado A Mente está tanto mais sujeita a paixões, quanto mais ideias inadequadas tem e, ao contrário, ela é mais ativa quanto mais ideias adequadas tem. PROPOSIÇÃO II Nem o Corpo pode determinar a Mente a pensar, nem a Mente pode determinar o Corpo ao movimento ou ao repouso. Demonstração Todos os modos de pensar têm Deus por causa, enquanto ele é coisa pensante e não enquanto ele se explica por outro atributo (pela Prop. 6 P II). Logo, o que determina a mente a pensar é um modo do pensamento e não um modo da Extensão, ou seja (pela Def. 1 P II), não é um Corpo. Isto era o primeiro ponto. O movimento e o repouso do Corpo devem se originar de outro corpo, que também foi determinado ao movimento e ao repouso por outro, e absolutamente, tudo o que se origina em um corpo deve ter se originado de Deus, enquanto considerado como afetado por certo modo da extensão e não por certo modo do pensamento (pela Prop. 6 P II), isto é, não pode ter se originado da Mente, que (pela Prop 11 P II) é um modo do pensamento. Isto era o segundo ponto. Logo, o Corpo não pode determinar a Mente, etc. QED Comentário Isto pode ser entendido mais claramente a partir do que dissemos no Comentário da Prop. 7 P II, a saber, que a Mente e o Corpo são uma só e mesma coisa, concebida ora sob o atributo Pensamento, ora sob o atributo Extensão. Donde resulta que a ordem e a concatenação das coisa é uma só, quer a natureza seja concebida por este ou por aquele atributo. Consequentemente, a ordem das ações e paixões no nosso Corpo é a mesma que a ordem das ações e paixões na Mente. Isto também é evidente do modo como demonstramos Prop 12 P II. Mas embora estas coisas sejam tais que não reste razão para dúvida, me é difícil acreditar que possa induzir os homens a analisá-las com cuidado se não as comprovar pela experiência. Pois eles estão tão firmemente persuadidos que o corpo ora se move e ora fica em repouso somente pelos comandos da Mente e que ele faz um grande número de coisas que dependem apenas da vontade da Mente e da arte do pensamento. Mas o que pode o Corpo, ninguém até agora determinou, isto é, a experiência até agora não ensinou a ninguém o que o Corpo pode fazer apenas pelas leis da sua natureza, enquanto considerada como puramente corpórea, e o que ele só pode fazer se for determinado pela Mente. Ninguém até agora foi capaz de conhecer a estrutura do Corpo de forma acurada a ponto de poder explicar suas funções, para não mencionar as muitas coisas que observamos nos Animais e que de longe superam a sagacidade humana, ou as coisas que os sonâmbulos fazem no sono e não ousariam fazer na vigília. O que mostra de forma satisfatória que o Corpo, apenas a partir das leis de sua natureza, pode muitas coisas de que a Mente se admira. Ninguém sabe de que forma e por que meios a Mente move o corpo, nem quais graus de movimento ela pode atribuir ao corpo, nem a que velocidade ela pode movê-lo. Disso se segue que quando os homens dizem que as ações do Corpo se originam na Mente e de seu império sobre o corpo, eles não sabem o que falam e confessam, com palavras especiosas, ignorar a verdadeira causa desta ação sem se surpreenderem disso. Mas eles dirão que, quer eles saibam ou ignorem por que meios a Mente move o Corpo, ainda assim eles sabem pela experiência que se a Mente não fosse capaz de pensar, o Corpo seria inerte. Eles também alegam saber pela experiência que está no poder apenas da Mente falar ou calar e muitas outras coisas que dependem, assim eles creem, dos decretos da Mente. Quanto ao primeiro ponto, eu lhes pergunto, se a experiência não ensina também que quando o Corpo está inerte a Mente torna-se inepta a pensar? Pois quando o Corpo repousa no sono, a Mente simultaneamente adormece e perde o poder de pensar que tinha durante a vigília. Creio também que todos sabem pela experiência que a Mente não está sempre igualmente apta a pensar em dado objeto, mas que quando o Corpo está apto a ter uma imagem deste objeto, a Mente também fica mais apta a contemplá-lo. Eles dirão, porém, que apenas das leis da natureza enquanto considerada como corpórea, não é possível deduzir as causas das edificações, das pinturas e coisas deste gênero, que somente são feitas por arte dos homens e que o Corpo humano não seria capaz de edificar um templo sem ser determinado a isso pela Mente. Mas já mostrei que eles não sabem o que pode o Corpo, nem o que se pode deduzir somente da contemplação de sua natureza. E eles sabem pela experiência que muitíssimas coisas se fazem somente pelas leis da natureza que eles jamais poderiam acreditar acontecendo sem a direção da Mente, como as coisas que os sonâmbulos fazem dormindo para delas se admirarem na vigília. Acrescento aqui a própria estrutura do Corpo humano, que de muito longe supera em artifício qualquer coisa fabricada pelo engenho humano, para não falar do que mais acima mostramos, a saber, que infinitas coisas se seguem da natureza, considerada sob qualquer atributo. No que diz respeito ao segundo ponto, os assuntos humanos seriam muito mais felizes se estivesse no poder dos homens escolher quando falar e quando calar. Pois a experiência ensina claramente que os homens não têm o poder de moderar nem a língua nem os apetites. De fato, a maioria dos homens crê que agimos livremente apenas com relação ao que aspiramos levemente, pois o apetite com relação a estas coisas pode ser facilmente contrariado pela memória de outras coisas que recordamos frequentemente. Mas nós não [agimos livremente] com relação ao que aspiramos com afetos fortes, que não podem ser refreados pela memória de outras coisas. Entretanto, se a experiência não tivesse mostrado que muitas vezes agimos para depois nos arrependermos, e que frequentemente, quando somos tomados de afetos conflitantes, vemos o melhor e fazemos o pior, nada impediria que eles acreditassem que agimos livremente em tudo. Assim, o bebê acredita querer livremente o leite, a criança irada querer vingança e o medroso a fuga. O bêbado acredita que é por um livre decreto da Mente que ele fala o que depois de sóbrio gostaria de ter calado. E assim o delirante, o tagarela, a criança e todos desta farinha acreditam falar de um livre decreto da Mente quando na verdade não conseguem conter o ímpeto de falar. Assim, a própria experiência ensina, de forma não menos clara do que a razão, que os homens se creem livres por serem conscientes de suas ações e ignorarem as causas que as determinam e que os decretos da Mente são os próprios apetites, que variam da mesma forma como variam as disposições do Corpo. Pois cada um governa tudo a partir de seus próprios afetos e os que são presa de afetos contrários, não sabem o que querem e os que não [são impulsionados por afeto algum] podem facilmente se mover ora para um lado, ora para outro. Tudo isso mostra claramente que tanto o decreto da Mente quanto o apetite e a determinação do Corpo existem juntos por natureza, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que chamamos decreto quando a consideramos e explicamos pelo o atributo Pensamento e determinação, quando a consideramos pelo atributo extensão e a deduzimos das leis do movimento e do repouso. E isto ficará ainda mais claro do que diremos a seguir. Pois há mais uma coisa que gostaria de notar aqui particularmente: que sem uma recordação não há nada que possamos fazer por um decreto da Mente. Por exemplo, não posso falar uma palavra se não a recordar. E não está no livre poder da Mente se recordar de uma coisa ou esquecê-la. Donde se conclui que o que se acredita estar no poder da Mente é apenas calar ou falar daquilo de que nos recordamos. Mas quando sonhamos que falamos, acreditamos falar por livre decreto da Mente quando na verdade não falamos, ou se falamos é por movimento espontâneo do Corpo. E sonhamos esconder coisas dos homens pelo mesmo decreto que, durante a vigília, calamos sobre as coisas que sabemos. Sonhamos enfim, fazer coisas por decreto da Mente, que não ousaríamos fazer na vigília. Assim, gostaria de saber se há na Mente dois gêneros de decretos, os oníricos e os livres? Se não quisermos ser insanos a este propósito, é necessário conceder que o decreto da Mente que se crê livre, não se distingue da imaginação ou da memória, mas é a própria afirmação que a ideia envolve, enquanto é ideia (ver Prop. 49 P II). E assim os decretos da Mente se originam na Mente com a mesma necessidade que as ideias das coisas existentes em ato. Aqueles que creem que falam, calam, ou fazem o qualquer coisa por livre decreto da Mente, sonham com olhos abertos. PROPOSIÇÃO III As ações da Mente se originam somente das ideias adequadas e as paixões dependem somente das ideias inadequadas. Demonstração A primeira coisa que constitui a essência da Mente é a ideia de um Corpo existente em ato (pelas Props. 11 e 13 P II), que (pela Prop. 15 P II) é composta de muitas outras [ideias], das quais (pel Res. Prop 38 P II) algumas são adequadas e outras inadequadas (pelo Res. Prop 29 P II). Logo, tudo o que se segue da natureza da Mente e que tem a Mente como causa próxima, pela qual deve ser entendido, deve necessariamente se seguir, ou de uma ideia adequada, ou de uma ideia inadequada. Ora (pela Prop. 1), a Mente necessariamente padece enquanto tem ideias inadequadas. Logo, as ações da Mente se seguem apenas das ideias adequadas e a Mente só padece quando tem ideias inadequadas. QED Comentário Vemos que as paixões se referem à Mente enquanto ela tem algo que envolve negação, ou enquanto é considerada como uma parte da natureza que, por si e sem as outras, não pode ser percebida de forma clara e distinta. E poderia mostrar a razão pela qual as paixões se referem às coisas singulares do mesmo modo que à Mente e não podem ser percebidas de outro modo. Mas meu intuito é de tratar apenas da Mente humana. PROPOSIÇÃO IV Uma coisa só pode ser destruída por uma causa externa. Demonstração Esta proposição é evidente por si. Pois a definição de uma coisa afirma a essência da coisa e não a nega, ou põe essência a coisa e não a destrói (tollit). E, portanto, enquanto atentamos à própria coisa e não às causas externas, nada poderemos encontrar que possa destruí-la. QED PROPOSIÇÃO V Coisas são de natureza contrária, isto é, não podem estar no mesmo sujeito, enquanto uma possa destruir a outra. Demonstração Se elas concordassem entre si, ou se pudessem estar simultaneamente no mesmo sujeito, poderia existir algo no sujeito que pudesse destruí-lo, o que (pela Prop. precedente), é absurdo. Portanto, coisas, etc. QED PROPOSIÇÃO VI Toda coisa se esforça (conatur), na medida em que é em si (quantum in se est), por perseverar no seu ser. Demonstração As coisas singulares são modos que exprimem os atributos de Deus de modo certo e determinado (pelo Res. Prop. 25 P I), isto é (pela Prop. 34 P I), são coisas que exprimem de modo certo e determinado a potência de Deus. E nenhuma coisa tem em si algo que possa destruí-la (detrui), ou que possa lhe tolher (tollat) a existência (pela Prop. 4). Ao contrário, ela se opõe a tudo o que pode lhe tolher a existência (pela Prop. precedente) e, por conseguinte, se esforça, na medida em que pode, e é em si, por perseverar no seu ser. QED PROPOSIÇÃO VII O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser é a essência atual desta própria coisa. Demonstração Da essência de uma coisa dada, seguem-se necessariamente alguns efeitos (pela Prop. 36 P I) e as coisas podem somente aquilo que se segue necessariamente de suas naturezas determinadas (pela Prop. 29 P I). Então a potência de uma coisa qualquer, ou o esforço pelo qual ela, sozinha ou com outras, faz ou se esforça por fazer algo, isto é (pela Prop. 6), a potência, ou esforço, pelo qual ela se esforça por perseverar em seu ser, é a essência dada ou atual da própria coisa. QED PROPOSIÇÃO VIII O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser envolve, não um tempo finito, mas um tempo indefinido. Demonstração Se [o esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser] envolvesse um tempo limitado, que determinasse a duração da coisa, então se seguiria da própria potência pela qual a coisa existe, que ela não poderia mais existir depois deste tempo e devendo então ser destruída. Mas isso (pela Prop. 4) é absurdo. Logo, o esforço, pelo qual a coisa existe, não envolve um tempo definido. Ao contrário, como (pela Prop. 4), se nenhuma causa externa a destruir, ela continuará sempre a existir pela mesma potência que existe agora, então, este esforço envolve um tempo indefinido. QED PROPOSIÇÃO IX A Mente se esforça em perseverar no seu ser por uma duração indefinida, tanto enquanto tem ideias claras e distintas, como enquanto tem ideias confusas, e ela tem consciência deste esforço. Demonstração A essência da Mente é constituída de ideias adequadas e inadequadas (como mostramos na Prop. 3) e ela (pela Prop. 7), tanto enquanto tem estas, como enquanto tem aquelas, se esforça por perseverar em seu ser (pela Prop. 8), por uma duração indefinida. E como a Mente (pela Prop. 23 P II) é necessariamente consciente de suas afecções, logo (pela Prop. 7) a Mente é consciente de seu esforço. QED Comentário Este esforço, quando se refere apenas à Mente, se chama Vontade (Voluntas). E quando se refere simultaneamente à Mente e ao Corpo, se chama Apetite (Appetitus), que é, portanto, a própria essência do homem, de cuja natureza se seguem necessariamente as coisas que servem à sua conservação e que o homem é determinado a fazer. Entre o apetite e o Desejo (Cupiditas) a única diferença é que o desejo normalmente se refere aos homens na medida em que eles são conscientes de seus apetites. O Desejo, portanto, é o apetite com a consciência dele mesmo. Donde se conclui que nós não nos esforçamos, queremos, apetecemos ou desejamos algo por que o julgamos bom; mas, ao contrário, que nós julgamos algo bom por que nos esforçamos, queremos apetecemos ou desejamos. PROPOSIÇÃO X Uma ideia que exclui a existência de nosso corpo, não pode existir em nossa Mente, mas lhe é contrária. Demonstração O que pode destruir nosso corpo não existe nele (pela Prop. 5) e não pode existir em Deus uma ideia de tal coisa enquanto ele tem a ideia de nosso corpo (pelo Res. Prop. 9 P II), isto é (pelas Props. 11 e 13 P II), não pode existir a ideia de tal coisa em nossa Mente. Ao contrário, como (pelas Props. 11 e 13 P II) a primeira coisa que constitui a essência da Mente é a ideia de um corpo existente em ato, a primeira e principal coisa a constituir a nossa Mente é o esforço (pela Prop. 7) de nosso Corpo de afirmar sua existência. Assim, uma ideia que exclui a existência de nosso corpo, não pode existir em nossa Mente, etc. QED PROPOSIÇÃO XI A ideia de qualquer coisa que aumenta ou diminui, ajuda ou limita a potência de agir de nosso Corpo, também aumenta ou diminui, ajuda ou limita a potência de pensar de nossa Mente. Demonstração É evidente da Prop. 7 P II, e também de Prop. 14 P II. Comentário Vemos que a Mente pode padecer de grandes mudanças e passar ora a uma perfeição maior, ora a uma perfeição menor. Estas paixões correspondem aos afetos de Alegria e Tristeza. Por Alegria (Laetitiae) entenderei, no que se segue, uma paixão pela qual a Mente passa a uma perfeição maior. Por Tristeza (Tristitiae) [entenderei] uma paixão pela qual ela passa a uma perfeição menor. E quanto ao afeto de Alegria se refere simultaneamente à Mente e ao Corpo, chamo-o Prazer (Titillatio) ou Contentamento (Hilaritas). E a Tristeza [que se refere simultaneamente à Mente e ao Corpo] chamarei de Dor (Dolor) ou Melancolia (Melancholia). Mas deve-se notar que o Prazer e a Dor se referem ao homem quando uma de suas partes é mais afetada do que as demais, ao passo que o Contentamento e a Melancolia [se referem a ele] quando todas as partes são igualmente afetadas. Quanto ao Desejo, já expliquei o que é no Comentário da Proposição 9 e além destes três [afetos, a saber, Desejo, Alegria e Tristeza,] não reconheço nenhum outro afeto primário e mostrarei na sequência que todos os demais se originam destes. Mas antes de prosseguir, gostaria de me estender na explicação da Proposição 10, para que seja mais claramente entendido como uma ideia é contrária a outra. No Comentário da Prop. 17 P II mostramos que a ideia que constitui a essência da Mente envolve a existência do Corpo, enquanto o próprio Corpo existe. E, como mostramos em Res. Prop 8 P II e seu em seu Comentário, segue-se que a existência presente de nossa Mente depende apenas de que a Mente envolva a existência atual do Corpo. E nós mostramos que a potência da Mente em imaginar e se recordar das coisas (ver Prop. 17 e 18 e Com. 18 P II), também depende de ela envolver a existência atual do Corpo. Disso se segue que a existência presente da Mente e sua potência de imaginar são destruídas (tolli) se a mente deixar de afirmar a existência do Corpo. Mas a causa que faz com que a mente deixe de afirmar a existência do Corpo não pode estar nem na própria Mente (pela Prop. 4) nem em que o Corpo deixe de existir. Pois (pela Prop. 6 P II) a causa que faz com que a Mente afirme a existência do Corpo não é que o Corpo comece a existir e, pela mesma razão, [a causa que faz com que a Mente] deixe de afirmar a existência do Corpo não é que ele deixe de existir. Mas (pela Prop. 8 P II), [a Mente deixa de afirmar o Corpo] por que surge uma outra ideia que exclui a existência presente de nosso Corpo, e consequentemente de nossa Mente, e é contrária à ideia que constitui a essência de nossa Mente. PROPOSIÇÃO XII A Mente se esforça, na medida em que pode, em imaginar, o que aumenta ou ajuda a potência de agir do Corpo. Demonstração Enquanto o Corpo humano for afetado com um modo que envolver a natureza de um corpo externo, a Mente humana contemplará este corpo como presente (pela Prop. 17 P II), e consequentemente (pela Prop. 7 P II) enquanto a Mente humana contemplar este corpo externo como presente, isto é (pelo Com. Prop 17 P II), [enquanto] o imaginar, o Corpo humano será afetado com um modo que envolve a natureza do corpo externo. Assim, quando a Mente imaginar coisas que aumentem ou ajudem a potência de agir do nosso corpo, o Corpo será afetado de um modo que aumenta ou ajuda sua potência de agir (vide Post. 1) e, consequentemente (pela Prop. 11), a potência de pensar da Mente será aumentada ou ajudada. Logo, (pelas Props. 6 e 9) a Mente se esforça, na medida em que pode, em imaginá-las. PROPOSIÇÃO XIII Quando a Mente imagina coisas que diminuem ou limitam a potência de agir do Corpo, ela se esforça, na medida em que pode, em recordar coisas que lhes excluam a existência. Demonstração Quando a Mente imagina tais coisas, a potência da Mente e do Corpo diminui ou é limitada (como demonstramos na Prop. precedente). Mesmo assim, a Mente continuará a imaginá-las enquanto não imaginar outras coisas que lhes excluam a existência (pela Prop. 17 P II), isto é (como acabamos de mostrar), a potência da Mente e do Corpo será diminuída ou limitada enquanto a Mente não imaginar outras coisas que lhes excluam a existência. Assim, a Mente se esforçará, na medida em que puder, por imaginá-las ou recordá-las. QED Resultado A Mente tem aversão por imaginar o que diminui ou contraria sua própria potência e a do Corpo. Comentário Disso entendemos claramente o que são o Amor (Amor) e o Ódio (Odium). Pois o Amor é a Alegria concomitante à ideia de uma causa externa e o Ódio é uma tristeza concomitante à ideia de uma causa externa. Vemos que quem ama se esforça necessariamente por ter presente e conservar aquilo que ama e, ao contrário, quem odeia se esforça por se afastar ou destruir aquilo que odeia. Mas disso falaremos de forma mais prolixa na sequência. PROPOSIÇÃO XIV Se a Mente foi uma vez afetada por dois afetos simultaneamente, quando for posteriormente afetada por um deles, também será afetada pelo outro. Demonstração Se o Corpo humano foi uma vez afetado por dois corpos simultaneamente, posteriormente quando a Mente imaginar um deles, ela imediatamente recordará do outro (pela Prop. 18 P II). Ora as imaginações da Mente indicam mais os afetos de nosso Corpo do que a natureza dos corpos externos (pelo Res. 2 Prop. 16 P II). Logo, se o Corpo e, consequentemente, a Mente (vide Def. 3), for uma vez afetada por dois afetos simultaneamente, quando posteriormente for afetada por um deles, será também afetada pelo outro. QED PROPOSIÇÃO XV Qualquer coisa pode ser, por acidente, causa de Alegria, Tristeza ou Desejo. Demonstração Suponhamos que a Mente seja afetada simultaneamente por dois afetos, um que não aumente nem diminua sua potência de agir e outro que a aumente ou diminua (vide Post. 1). É evidente da Proposição precedente que quando o primeiro afeto, que (por hipótese) não aumenta nem diminui sua potência de pensar, afetar posteriormente a Mente, ela também será afetada pelo outro [afeto], que aumenta ou diminui sua potência de pensar como se fosse a causa verdadeira disso. Isto é, (pelo Com. Prop 11) ela será afetada de Alegria ou Tristeza. E assim, tal coisa será, não por si, mas por acidente, causa de Alegria ou Tristeza. Por esta mesma via se pode mostrar facilmente que a mesma coisa pode ser por acidente causa de Desejo. QED Resultado Do simples fato de termos contemplado uma coisa com um afeto de Alegria ou de Tristeza do qual ela não é causa eficiente, podemos amá-la ou odiá-la. Demonstração Quando (pela Prop. 14) a Mente posteriormente imaginar esta coisa, será afetada de Alegria ou Tristeza, isto é (pelo Com. Prop 11), a potência da Mente ou do Corpo será aumentada ou diminuída, etc. E consequentemente, (pela Prop. 12) a Mente desejará imaginar esta coisa, ou (pelo Res. Prop. 13) a terá em aversão, isto é (pelo Com. Prop. 13), a amará ou a odiará. QED Comentário Entendemos assim, como podemos amar ou odiar algumas coisas sem que nenhuma causa nos seja conhecida, mas apenas (como dizem) por Simpatia (Sympathia) ou Antipatia (Antipathia). E estes afetos também devem se referir a objetos que nos afetam de Alegria ou Tristeza somente por serem similares a objetos que nos afetam habitualmente destes afetos, como mostrarei na próxima Proposição. Sei, certamente, que os primeiros Autores a introduzirem os termos Simpatia e Antipatia queriam significar com eles certas qualidades ocultas das coisas. Entretanto creio que nos é lícito entender por estes termos qualidades conhecidas ou manifestas. PROPOSIÇÃO XVI Do simples fato de imaginarmos que uma coisa tem semelhança com um objeto que habitualmente afeta a ente de Alegria ou Tristeza, nós amamos ou odiamos esta coisa, e isto mesmo que aquilo em que a coisa é semelhante ao objeto não seja a causa eficiente deste afeto. Demonstração Nós contemplamos aquilo em que o objeto é semelhante [à coisa] (por hipótese) com um afeto de Alegria ou Tristeza. E (pela Prop. 14) quando a Mente for afetada por esta imagem, ela será imediatamente afetada pelo afeto em questão. Consequentemente, aquilo que percebemos ter esta [semelhança] será (pela Prop. 15), por acidente, causa de Alegria ou Tristeza e (pelo Res. Prop. precedente) ainda que a semelhança ao objeto não seja a causa eficiente deste afeto, nós ainda assim amaremos ou odiaremos. QED PROPOSIÇÃO XVII Se imaginarmos que uma coisa que nos afeta habitualmente de um afeto de Tristeza é semelhante a uma outra que nos afeta habitualmente com um afeto de Alegria de igual magnitude, nós odiaremos e amaremos simultaneamente tal coisa. Demonstração Esta coisa é (por Hipótese) causa de Tristeza por si e (pelo Comentário da Prop 13) enquanto a imaginarmos com este afeto, a teremos em ódio. Além disso, enquanto a imaginarmos semelhante a outra, que habitualmente nos afeta com um afeto de Alegria de igual magnitude, nós a amaremos com um esforço de igual magnitude (pela Prop. precedente). Assim, teremos simultaneamente ódio e amor por esta coisa. QED Comentário O estado da Mente que se origina em dois afetos contrários é chamado de flutuação da alma (animi fluctuatio), que é para o afeto o que a dúvida é para a imaginação (ver Com. Prop. 44 P II), e a flutuação da alma e a dúvida diferem entre si apenas em grau. Mas deve-se notar que na Proposição precedente eu deduzi as causas das flutuações da alma de que algo é causa por si de um afeto e causa por acidente de outro, apenas por ser tal dedução mais fácil com relação ao que precede. Não nego, porém, que as flutuações da alma frequentemente se originam em que um objeto é causa eficiente dos dois afetos. Pois o Corpo humano (por Post. 1 P II) é composto de muitíssimos indivíduos de naturezas diversas e assim (pelo Axioma I’’ P II) pode ser afetado por um só corpo de muitíssimos e diversos modos. E ao contrário, como uma coisa pode ser afetada de muitos modos, uma mesma parte do corpo pode ser afetada [por aquele corpo] de diversos modos. Donde podemos conceber facilmente que um mesmo objeto possa ser causa de muitos afetos contrários. PROPOSIÇÃO XVIII A imagem de uma coisa passada ou futura afeta o homem com o mesmo afeto de Alegria e Tristeza que a imagem de uma coisa presente. Demonstração Um homem contempla uma coisa como presente quando é afetado por uma imagem dela, ainda que a coisa não exista (pela Prop 17 P II e Cor Prop 17 P II). E ele imagina uma coisa como passada ou futura quando esta imagem está junta com a imagem de um tempo passado ou futuro (ver Com. Prop. 44 P II). A imagem da coisa considerada em si é a mesma quer ela se refira a um tempo futuro, passado, ou presente, isto é (pelo Res. 2 Prop. 16 P II), o estado, ou afeto, do Corpo é o mesmo, quer a imagem da coisa seja passada, futura, ou presente. Assim, os afetos de Alegria e Tristeza são idênticos, quer a imagem da coisa seja passada, futura, ou presente. QED Comentário I Chamo aqui uma coisa de passada ou futura quando fomos ou seremos afetados por ela, por exemplo, quando a vimos ou veremos, quando ela nos restaurou ou restaurará, ou quando ela nos lesou ou lesará, etc. Quando a imaginamos assim, afirmamos sua existência, isto é, o Corpo não é afetado por nenhum afeto que exclua a existência da coisa. E assim (pela Prop. 17 P II) o Corpo é afetado pela imagem desta coisa do mesmo modo que seria se ela estivesse presente. Entretanto, o que mais comumente sucede é que as pessoas mais experientes hesitem quando contemplam coisas futuras ou passadas e considerem duvidosa a ocorrência de tais coisas. Assim (vide Com. Prop. 44 P II), os afetos que se originam em tais imagens de coisas não são constantes, sendo geralmente perturbados por imagens de outras coisas até que os homens se tornem mais certos de sua ocorrência. Comentário II Compreendemos assim o que são a Esperança (Spes), o Medo (Metus), a Segurança (Securitas), o Desespero (Desperatio), a Grata Surpresa (Gaudium) e Decepção (Conscientiae morsus). A Esperança é uma Alegria inconstante originada da imagem de uma coisa futura ou passada cuja ocorrência temos em dúvida. Já o Medo é uma Tristeza inconstante originada igualmente da imagem de uma coisa duvidosa. Mas se a dúvida é suprimida destes afetos, a Esperança se torna Segurança e o Medo, Desespero; a saber, Alegria ou Medo originados da imagem de uma coisa que temíamos ou esperávamos. A Grata Surpresa é a Alegria originada da imagem de uma coisa passada de cuja ocorrência tínhamos em dúvida. E a Decepção é a tristeza oposta à Grata Surpresa. PROPOSIÇÃO XIX Quem imaginar destruído aquilo que ama se entristecerá; e alegrar-se-á ao imaginá-lo conservado. Demonstração A Mente se esforça, na medida em que pode, por imaginar o que aumenta ou ajuda a potência de agir do Corpo (pela Prop. 12), isto é (pelo Com. Prop 13), aquilo que ama. Ora, a imaginação é ajudada por aquilo que põe a existência do corpo, e é limitada pelo que exclui sua existência (pela Prop. 17 P II). Logo, as imagens das coisas que põe a existência da coisa amada ajudam o esforço da Mente em imaginar a coisa amada, isto é (pelo Com. Prop. 11), afetam a Mente de Alegria. Ao contrário, as [imagens] que excluem a existência da coisa amada, limitam o esforço da Mente, isto é (pelo mesmo Comentário), afetam a Mente de Tristeza. Assim, quem ama se entristecerá ao imaginar destruída, etc. QED PROPOSIÇÃO XX Quem imaginar destruído aquilo que odeia se alegrará. Demonstração A Mente (pela Prop. 13) se esforça em imaginar coisas que excluam a existência daquilo que diminui ou limita a potência de agir do Corpo, isto é (pelo Com. Prop. 13), ela se esforça em imaginar coisas que excluam a existência daquilo que odeia. A imagem das coisas que excluem a existência do que a Mente odeia ajudam o esforço da Mente, isto é (pelo Com. Prop. 11), afetam a Mente de Alegria. Assim, quem imaginar destruído aquilo que odeia se alegrará. QED PROPOSIÇÃO XXI Quem imagina aquilo que ama afetado de Alegria ou de Tristeza, também será afetado de Alegria ou de Tristeza. E estes afetos serão maiores ou menores no amante na medida em que forem maiores ou menores na coisa amada. Demonstração A imagem das coisas (como demonstramos da Prop. 19) que põe a existência da coisa amada, ajudam o esforço pelo qual a Mente se esforça por imaginar a coisa amada. Mas a Alegria põe a existência da coisa alegre, e quanto mais [existência ou realidade puser], maior será o afeto de Alegria, já que (pelo Com. Prop. 11) [a Alegria] é uma transição a uma perfeição maior. Logo, a imagem da Alegria da coisa amada ajuda o esforço da Mente do amante, isto é (pelo Com. Prop. 11), afeta o amante de uma Alegria que é maior na medida em que for maior o afeto da coisa amada. Isto era o primeiro ponto. Uma coisa, enquanto é afetada de Tristeza, é como que destruída, e tanto mais, quanto maior for o afeto de Tristeza (pelo mesmo Com. Prop. 11). Assim, (pela Prop. 19) quem imagina o amado afetado de Tristeza, também será afetado de uma Tristeza tanto maior, quanto maior for este afeto da coisa amada. QED PROPOSIÇÃO XXII Se imaginarmos alguém afetando de Alegria uma coisa que amamos, seremos afetados de Amor para com ele. Ao contrário, se imaginarmos que ele a afeta de Tristeza, seremos afetados de Ódio contra ele. Demonstração Quem afeta a coisa que amamos de Alegria ou de Tristeza também nos afeta de Alegria ou de Tristeza, se, evidentemente, imaginarmos a coisa amada afetada de tal Alegria ou Tristeza (pela Prop. Precedente). Ora, esta Alegria ou Tristeza é em nós, por suposto, concomitante à ideia de uma causa externa. Logo (pelo Com. Prop. 13), se imaginarmos alguém afetando de Alegria ou Tristeza uma coisa que amamos, seremos afetados de Amor ou Ódio para com ele. Comentário A Proposição 21 nos explica o que é a Compaixão (Commiseratio), que podemos definir como a Tristeza originada de um dano a outrem. Ignoro, porém, que nome devemos atribuir à Alegria originada de um bem a outrem. Chamaremos de Apreço (Favorem) o Amor por quem fez o bem a outrem e, por outro lado Indignação (Indignationem) o Ódio por quem faz mal a outrem. Finalmente, note-se que compadecemos não apenas da coisa que amamos (como mostramos na Prop. 21), mas também daquela por quem anteriormente não sentíamos afeto algum, conquanto a julguemos similar a nós (como mostrarei abaixo). Por isso mesmo, apreciamos quem faz bem a um semelhante e nos indignamos de quem provoca dano a um semelhante. PROPOSIÇÃO XXIII Se alegrará quem imaginar afetado de Tristeza o que odeia, e ao contrário se entristecerá ao imaginá-lo afetado de Alegria; e estes afetos serão maiores ou menores conforme o afeto contrário for maior ou menor naquilo que odeia. Demonstração Enquanto a coisa odiosa é afetada de Tristeza, ela é como que destruída, e tanto mais quanto maior for a Tristeza que a afeta (pelo Com. Prop. 11). Assim, quem (pela Prop. 20) imaginar a coisa que odeia afetada de Tristeza, será, ao contrário, afetado de uma Alegria que será tanto maior quanto maior for a Tristeza imaginada da coisa odiosa, o que era o primeiro ponto. A Alegria põe a existência da coisa alegre (pelo mesmo Com. Prop. 11) e tanto mais quanto maior for a Alegria concebida. Se alguém imagina o que odeia afetado de Alegria, tal imaginação (pela Prop. 13) limitará o seu esforço, isto é (pelo Com. Prop. 11), o afetará de Tristeza, etc. QED Comentário Esta Alegria dificilmente pode ser sólida e sem nenhum conflito da alma. Pois (como mostraremos na Prop. 27), quando alguém imagina uma coisa semelhante a si afetada de Tristeza, se entristece também, e, ao contrário se a imagina afetada de Alegria. Mas aqui só tratamos do Ódio. PROPOSIÇÃO XXIV Se imaginarmos que alguém afeta de Alegria uma coisa que odiamos, também seremos afetados de ódio com relação a ele. Se, ao contrário, o imaginarmos afetando-a de Tristeza, seremos afetados de Amor com relação a ele. Demonstração Esta Proposição é demonstrada do mesmo modo que Proposição 22, à qual remeto. Comentário Este e outros afetos de Ódio similares se referem à Inveja (Invidia), que, por esta razão, é o próprio Ódio, na medida em que ele dispõe o homem a se regozijar do mal de outrem e de se entristecer de seu bem. PROPOSIÇÃO XXV Nós nos esforçamos por afirmar, de nós e da coisa amada, tudo o que imaginamos afetar de Alegria a nós ou a ela. E, ao contrário, [nos esforçamos] por negar, em nós ou na coisa amada, tudo o que imaginamos afetar de Tristeza a nós ou à coisa amada. Demonstração Aquilo que imaginamos afetar de Alegria ou Tristeza a coisa amada, também nos afeta de Alegria ou de Tristeza (pela Prop. 21). Ora, a Mente (pela Prop. 12) se esforça, na medida em que pode, por imaginar o que nos afeta de Alegria, isto é (pela Prop. 17 PII e Res.), por contemplá-lo como presente. E, ao contrário (pela Prop. 13), [ela se esforça] por excluir aquilo que nos afeta de Tristeza. Logo, nos esforçamos por afirmar, de nós ou da coisa amada e de nós tudo o que imaginamos afetar a nós e à coisa amada de Alegria, e ao contrário. QED PROPOSIÇÃO XXVI Nós nos esforçamos por afirmar o que imaginamos afetar a coisa que odiamos de Tristeza. E, ao contrário, [nos esforçamos por] negar o que imaginamos afetá-la de Alegria. Demonstração Esta proposição se segue da Proposição 23, como a Proposição precedente se segue da Proposição XXI. Comentário Vemos assim que acontece facilmente que o homem perceba, de si mesmo e do que ama, mais do que é justo e, ao contrário, que ele perceba do que odeia, menos do que é justo. Esta imaginação, quando diz respeito ao próprio homem, que percebe de si mais do que é justo, se chama de Soberba (Superbia), que e é uma espécie de Delírio em que o homem sonha com olhos abertos poder tudo o que sua imaginação alcança, julga tais coisas reais e exulta com elas. E não pode imaginar o que exclua a existência de tais coisas e limite sua potência de agir. Assim, a Soberba é a Alegria originada em que o homem pensa de si mais do que é justo. E a Alegria originada em que um homem pensa de outro mais do que é justo, chamo de Sobreestima (Existimatio); e o Menosprezo (Despectus) [é a Alegria que] se origina em que se perceba de outrem menos do que é justo. PROPOSIÇÃO XXVII Pelo simples fato de imaginarmos uma coisa semelhante e nós, mas por quem não temos afeto algum, ser afetada de um afeto qualquer, nós também seremos afetados por um afeto semelhante. Demonstração As imagens das coisas são afecções do Corpo humano cujas ideias nos representam os corpos externos como presentes (pelo Com. Prop. 17 P II), isto é (pela Prop 16 P II), cujas ideias envolvem a natureza de nosso corpo e simultaneamente a presença de corpos externos. Se, portanto, a natureza do corpo externo for semelhante à natureza do nosso Corpo, a ideia do corpo externo que imaginamos envolverá uma afecção do nosso Corpo semelhante à afecção do corpo externo. Consequentemente, se imaginarmos alguém semelhante a nós afetado de um afeto, esta imaginação exprimirá uma afecção de nosso Corpo semelhante a este afeto. Mas se odiamos algo semelhante a nós, então (pela Prop. 23) seremos afetados de um afeto contrário e não semelhante. QED Comentário Esta imitação de afetos, quando se refere à Tristeza, se chama Compaixão (vide Com. Prop. 22), mas quando se refere ao Desejo, chama-se Emulação (Aemulatio), que é o desejo de uma coisa que é gerado em nós ao imaginarmos que outros semelhantes a nós têm o mesmo Desejo. Resultado I Se imaginarmos alguém, por quem não temos afeto algum, afetar de alegria uma coisa semelhante a nós, seremos afetados de Amor com relação a ele. Mas se imaginarmos afetando-a de Tristeza, seremos afetados de ódio para com ele. Demonstração Demonstra-se pela Proposição precedente do mesmo modo que a Proposição 22 se demonstra pela 21. Resultado II Não podemos ter ódio por quem temos compaixão, pois sua infelicidade nos afeta de Tristeza. Demonstração Se pudéssemos ter ódio, então (pela Prop. 23) nos alegraríamos de sua Tristeza, o que é contrário à Hipótese. Resultado III Nós nos esforçamos, na medida em que podemos, por liberar da infelicidade a coisa de que nos compadecemos. Demonstração Quem afeta de Tristeza a coisa de que nos compadecemos, também nos afeta de uma Tristeza similar (pela Prop. precedente). Assim, nos esforçamos por pensar no que tolhe a existência desta coisa ou a destrói (pela Prop. 13), isto é (pelo Com. Prop. 9), apeteceremos destruí-la, ou seremos determinados a destruí-la. Logo, nos esforçamos por liberar da infelicidade a coisa de que nos compadecemos. QED Comentário Chamo de Benevolência (Benevolentia) a vontade, ou apetite, de fazer o bem que se origina em querermos fazer o bem a uma coisa de que nos compadecemos, ou seja, é o Desejo originado da compaixão. Quanto ao Amor e ao Ódio com relação a quem fez bem ou mal a coisa que imaginamos semelhante a nós, vide Com. Prop 22. PROPOSIÇÃO XXVIII Nós nos esforçamos por promover tudo o que imaginamos conduzir à Alegria, e nos esforçamos por afastar ou destruir tudo o que imaginamos se opor a ela ou conduzir à Tristeza. Demonstração Nós nos esforçamos por imaginar tudo o que imaginamos conduzir à Alegria (pela Prop. 12), isto é (pela Prop. 17 P II), nos esforçamos, na medida em que podemos, por contemplar sua presença ou sua existência em ato. Mas o esforço da Mente, ou potência de pensar, é igual e simultânea em natureza ao esforço do Corpo, ou potência de agir (como se segue com clareza da Prop. 7 e do Res. Prop. 11 P II). Logo, nos esforçamos de forma absoluta [para que aquilo que imaginamos conduzir à Alegria] exista, ou (o que é o mesmo pelo Com. Prop. 11 P II), nós apetecemos ou intentamos [tal coisa], o que era o primeiro ponto. Se imaginarmos destruído aquilo que cremos ser causa de Tristeza, isto é (pelo Com. Prop. 13), aquilo que odiamos, nós nos alegraremos (pela Prop. 20). Portanto, nos esforçamos (pela primeira parte [desta demonstração]) por destruí-lo, ou (pela Prop. 13) afastá-lo de nós a fim de não contemplarmos sua presença, o que era o segundo ponto. Logo, nós nos esforçamos por promover tudo o que imaginamos conduzir à Alegria, etc. QED PROPOSIÇÃO XXIX Nós nos esforçaremos por fazer tudo o que imaginamos que os homens* veem com Alegria, e, ao contrário, teremos aversão em fazer o que imaginamos ser visto pelos homens com aversão. * Nota: Entender aqui e na sequência homens por quem não experimentamos nenhum afeto. Demonstração Pelo fato de imaginarmos que os homens amam ou odeiam algo, nós também o amamos ou odiamos (pela Prop. 27), isto é (pelo Com. Prop. 13), nos alegraremos ou entristeceremos da presença de tal coisa. Logo, (pela Prop. precedente), nos esforçaremos por fazer tudo o que imaginamos que os homens amam ou veem com Alegria, etc. QED Comentário Este esforço por fazer algo, ou de renunciar em fazê-lo, apenas para agradar aos homens, chama-se Ambição (Ambitio), sobretudo quando nos esforçamos a tal ponto por agradar o vulgo que fazemos ou renunciamos a fazer algo, mesmo causando dano a nós mesmos ou a outrem; mas quando não é este o caso chama-se de Cortesia (Humanitas). E chamo de Louvor (Laudem) a Alegria em imaginar a ação de alguém que se esforçou em nos deleitar e chamo de Censura (Vituperium) a Tristeza com que nos opomos a esta ação. PROPOSIÇÃO XXX Se alguém fez algo que imagina afetar os outros de Alegria, será afetado de Alegria concomitante à ideia de si mesmo como causa, ou, dito de outro modo, contemplará a si mesmo com Alegria. Ao contrário, se alguém fez algo que imagina afetar os outros de Tristeza, contemplará a si mesmo com Tristeza. Demonstração Quem imagina os outros afetados de Alegria ou de Tristeza (pela Prop. 27), também será afetado de Tristeza. Mas como o homem (pelas Props. 19 e 23 P II) é consciente de si através de suas afecções, pelas quais é também determinado a agir, logo, quem fez algo que imagina afetar os outros de Alegria, será afetado de Alegria com a consciência de si como causa, ou contemplará a si mesmo com Alegria, e vice-versa. QED Comentário Como o Amor (pelo Com. Prop. 13) é a Alegria concomitante à ideia de uma causa externa e o Ódio é a Tristeza concomitante também à ideia de uma causa externa, a Alegria e a Tristeza [tratados por esta proposição] são espécies de Amor e de Ódio. Mas como o Amor e o Ódio se referem a objetos externos, chamaremos tais afetos por outros nomes. Chamaremos de Glória (Gloria) a Alegria concomitante à ideia de uma causa interna e Vergonha (Pudor) a Tristeza concomitante à ideia de uma causa interna, entendendo-se que a Alegria e a Tristeza aqui se originam em que o homem se crê louvado ou censurado. Se não for este o caso, chamarei de Autoestima (Acquiescentia in se ipso) a Alegria concomitante à ideia de uma causa interna e chamarei a Tristeza contrária de Arrependimento (Poenitentiam). Mas, como (pelo Res. Prop. 17 P II) pode ocorrer que a Alegria com que alguém imagina afetar os outros seja apenas imaginária, e como (pela Prop. 25) todos se esforçam por imaginar de si tudo o que imaginam afetá-los de alegria, pode ocorrer facilmente que o glorioso tenha na verdade Soberba e imagine que todos lhe sejam gratos, quando é na verdade é desagradável para todos. PROPOSIÇÃO XXXI Se imaginarmos que alguém ama, deseja ou odeia algo que nós amamos, desejamos ou odiamos, por esta razão amaremos, etc. com maior constância. Mas se imaginarmos que ele tem aversão ao que amamos, ou ao contrário [que ele ama o que odiamos], padeceremos de uma flutuação da alma. Demonstração O simples fato de imaginarmos que alguém ama uma coisa nos faz amá-la também (pela Prop. 27). Se supomos que já a amávamos, temos uma nova causa que favorece a que amemos com mais constância aquilo que já amávamos. E pelo simples fato de imaginarmos que alguém tem aversão a algo, também teremos aversão (pela mesma Prop.), mas, se supusermos que ao mesmo tempo já amamos esta coisa, teremos a um só tempo amor e aversão, isto é (vide Com. Prop 17) padeceremos de uma flutuação da alma. QED Resultado Daí e da Prop. 28 se segue que todos se esforçam, na medida em que podem, por fazer com que todos amem aquilo que amam e odeiam aquilo que odeiam. Donde as palavras do poeta: Amantes, esperam juntos e temem juntos; De ferro é quem ama o que o outro permite. Comentário Este esforço por conseguir que todos aprovem o que se ama ou odeia é na verdade a Ambição (vide Com. Prop. 29). E vemos assim que todos querem por natureza que os demais vivam segundo o seu próprio temperamento, e como todos querem o mesmo, acabam se opondo uns aos outros. E como todos querem ser amados e louvados por todos, acabam se odiando reciprocamente. PROPOSIÇÃO XXXII Se imaginamos que alguém desfruta de algo que apenas um pode possuir, nos esforçaremos para que ele não mais o possua. Demonstração Do simples fato de imaginarmos que alguém desfruta de uma coisa (pela Prop. 27 e por seu Res. 1), amaremos e desejaremos desfrutar de tal coisa. Mas (por hipótese) imaginamos que sua alegria é um obstáculo a que também desfrutemos da coisa. Por esta razão (pela Prop 27), nos esforçaremos para que ele não mais a possua. QED Comentário Vemos, portanto, que a natureza do homem está constituída, em sua maior parte, de modo que temos compaixão pelos vão mal e invejamos os que vão bem e (pela Prop. precedente) com um ódio que é maior quanto mais amamos a coisa que imaginamos possuída por outro. Vemos que da mesma propriedade da natureza humana donde se segue que os homens são compassivos, segue-se também que são invejosos e ambiciosos. Se quisermos consultar a experiência, veremos que ela ensina tudo isso, especialmente se refletirmos sobre os primeiros anos de nossas vidas. Pois as crianças, cujo corpo está sempre como que em equilíbrio, ora riem, ora choram apenas em ver outros rirem ou chorarem. Desejam imitar tudo o que veem os outros fazer e desejam para si o que imaginam ser capaz de deleitar os outros – pois, como dissemos, as imagens das coisas são as próprias afecções do Corpo humano, ou modos pelos quais o Corpo humano é afetado por outros corpos e é disposto a fazer isto ou aquilo. PROPOSIÇÃO XXXIII Quando amamos uma coisa semelhante a nós mesmos, nos esforçamos, na medida em que podemos, por fazer com que ela nos ame também. Demonstração Nós nos esforçamos, na medida em que podemos, por imaginar a coisa que amamos mais do que as outras coisas (pela Prop. 12). Portanto, se esta coisa é semelhante a nós, nos esforçaremos para afetá-la de Alegria acima das demais coisas (pela Prop. 29) ou, nos esforçaremos, na medida em que pudermos, por fazer com que a coisa amada seja afetada de Alegria concomitante à ideia de nós mesmos, isto é (pelo Com. Prop. 13), para que ela nos ame também. QED PROPOSIÇÃO XXXIV Quanto maior o afeto com que imaginarmos a coisa amada afetada em relação a nós, mais nos glorificaremos. Demonstração Nós (pela Prop. precedente) nos esforçamos, na medida em que podemos, para que a coisa amada nos ame em retorno, isto é (pelo Com. Prop. 13), para que a coisa amada seja afetada de alegria concomitante à ideia de nós mesmos. Assim, quanto maior é a Alegria com que imaginamos que a coisa amada é afetada com relação a nós, mais este esforço é ajudado, isto é (pela Prop. 11 e seu Com.), mais somos afetados de Alegria. E quando afetamos de Alegria algo semelhante a nós, contemplamos a nós mesmos com Alegria (pela Prop. 30), então, quanto maior o afeto que imaginamos a coisa amada está afetada em relação a nós, maior a Alegria com que contemplamos a nós mesmos, ou (pelo Com. Prop. 30), mais nos glorificaremos. QED PROPOSIÇÃO XXXV Se alguém imaginar que um outro está unido à coisa amada com um vínculo de Amizade igual ou mais estreito do que [o vínculo] pelo qual apenas ele possuía com a coisa amada, será afetado de ódio com relação à própria coisa amada e inveja com relação ao outro. Demonstração Quanto maior é o amor com que alguém imagina a coisa amada afetada em relação a si mesmo, mas se glorificará (pela Prop. precedente), isto é (pelo Com. Prop. 30), mais se alegrará. Por conseguinte, (pela Prop. 28) ele se esforçará, na medida em que puder, por imaginar a coisa amada ligada a si pelo vínculo mais estreito possível e este apetite será fomentado se imaginar que outro também deseja o mesmo para si (pela Prop. 31). Mas supõe-se que este esforço ou apetite é contrariado pela imagem da própria coisa amada concomitante à imagem daquele a quem a coisa amada se uniu. Assim (pelo Com. Prop. 11), [o amante] será afetado de Tristeza, concomitante à ideia da coisa amada como causa e simultaneamente à ideia do outro, isto é (pelo Com. Prop. 13), será afetado de ódio com relação à coisa amada e simultaneamente com relação ao outro (pelo Res. Prop. 15), que ele invejará por se deleitar com a coisa amada (pela Prop. 23). QED Comentário Este ódio com relação à coisa amada acompanhado de Inveja é chamado de Ciúme (Zelotypia) que é a flutuação da alma originada do Amor e Ódio simultâneos, concomitante à ideia de outro que é invejado. E este Ódio com relação à coisa amada será maior na mesma proporção em que a Alegria à qual o Cimento, em razão do Amor recíproco da coisa amada, estava acostumado a ser afetado, e também em proporção com o afeto que ele era afetado com relação àquele que ele imagina ligado à coisa amada. Pois se ele o odiasse, por isso mesmo odiará a coisa amada (pela Prop. 24) ao imaginá-la afetada de Alegria por quem odeia, e também (pelo Res. Prop. 15) por se ver forçado a unir a imagem da coisa amada à imagem daquele que odeia. É o que ocorre comummente no Amor pelas mulheres, pois quem imagina uma mulher que ama se prostituindo com outro, se entristece, não apenas por ver seu apetite limitado, mas também por sentir aversão por ela ao ser forçado unir a imagem da coisa amada à imagem das partes pudicas e às excreções do outro. E deve-se acrescentar ainda que o ciumento não mais é recebido pela coisa amada com a mesma expressão com que se habituara, o que o entristece ainda mais, como mostrarei. PROPOSIÇÃO XXXVI Quem recorda algo com que se deleitou uma vez, deseja possuí-lo nas mesmas circunstâncias em que com ele se deleitou na primeira vez. Demonstração Qualquer coisa que um homem viu em simultâneo à coisa com que se deleitava (pela Prop. 15) é, por acidente, causa de Alegria. E (pela Prop. 28) ele desejará possuí-la simultaneamente com a coisa de que se deleitou, ou, dito de outro modo, desejará possuir a coisa com todas as circunstâncias com as quais se deleitou da primeira vez. Resultado Se o amante vier a descobrir que falta uma destas circunstâncias, ele se entristecerá. Demonstração Pois quando descobrir que falta uma das circunstâncias, ele imaginará algo que exclui a existência da coisa. E como pelo amor ele deseja esta coisa, ou (pela Prop. precedente) estas circunstâncias, ele se entristecerá quando ele imaginar que algo falta. QED Comentário Este desejo que diz respeito à ausência do que amamos se chama Querer Insatisfeito (Desiderium). PROPOSIÇÃO XXXVII O Desejo, seja ele originado da Tristeza ou da Alegria, do Ódio ou do Amor, é maior quanto maior for o afeto. Demonstração A Tristeza (pela Prop. 11) diminui ou limita a potência de agir do homem, isto é (pela Prop. 7), o esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar em si diminui ou é limitado. Portanto (pela Prop. 5), [a tristeza] é contrária a este esforço e o homem afetado pela Tristeza se esforça acima de tudo por removê-la. Mas (pela Definição de Tristeza) quanto maior a Tristeza, maior é a parte da potência de agir do homem a que ela tem que se opor. Portanto, quanto maior a Tristeza, maior será a potência de agir do homem pela qual ele se esforçará por removê-la, isto é (pelo Com. Prop. 9), maior será o Desejo ou apetite pelo qual ele se esforçará for remover a Tristeza. E como a Alegria (pelo mesmo Com. Prop. 11) aumenta ou ajuda a potência de agir do homem, demonstra-se facilmente que o homem afetado de Alegria deseja apenas conservá-la e que o Desejo será maior quanto maior for a Alegria. Finalmente, como Ódio e Amor são afetos de Tristeza ou Alegria, segue-se do mesmo modo, que o esforço, o apetite ou o Desejo, quer sejam eles originados no Ódio ou no Amor, são maiores na proporção do Ódio e do Amor. QED PROPOSIÇÃO XXXVIII Se alguém começar a odiar a coisa amada de forma que o Amor seja completamente abolido, ele a perseguirá de um ódio maior do que se nunca a tivesse amado e tanto maior quanto maior tiver sido o Amor. Demonstração Se alguém começar a odiar a coisa que ama, seus apetites serão mais limitados do que se não tivesse amado. Pois o Amor é uma Alegria (pelo Com. Prop. 13) que o homem se esforça, na medida em que pude (pela Prop. 28), por conservar (pelo mesmo Comentário), contemplando a coisa amada como presente e (pela Prop. 21) afetando-a, na medida em que pode, de Alegria. E este esforço (pela Prop. precedente) será tanto maior quanto maior for o amor, assim como será maior o esforço para que a coisa amada ame em retorno (vide Prop. 33). Mas estes esforços são limitados pelo ódio com relação a coisa amada (pelo Res. Prop. 13 e por Prop. 23). Por causa disso, o amante (pelo Com. Prop. 11) será afetado de uma Tristeza que será tão maior quanto maior foi o Amor, isto é, além da Tristeza que foi causa do Ódio, uma outra se originou da coisa ter sido amada. Por conseguinte, contemplará a coisa amada com um afeto de Tristeza maior, isto é (pela Prop. 13), a perseguirá de um ódio maior do que se não a tivesse amado e tanto maior quanto maior tenha sido o amor. QED PROPOSIÇÃO XXXIX Quem tem Ódio por alguém, se esforçará por fazer-lhe mal, a não ser que tema que isto origine um mal maior. Ao contrário, quem ama alguém se esforçará, pela mesma lei, por lhe fazer bem. Demonstração Ter ódio por alguém é (pelo Com. Prop. 13) imaginá-lo como causa de Tristeza e (pela Prop. 28) quem tem ódio por alguém esforça-se por afastá-lo ou destruí-lo. Mas, se ele teme que disso resulte algo de mais triste, ou (o que é o mesmo) em um mal maior, e que crê que este possa ser evitado não fazendo a quem odeia o mal a que meditava, então ele desejará (pela Prop. 28) se abster em fazer o mal. E se absterá (pela Prop. 37) com um esforço maior do que aquele com que se sentia inclinado a fazer o mal e que, portanto, prevalecerá, como queríamos. A segunda parte da demonstração procede do mesmo modo. Logo, quem tem ódio por alguém, etc. QED Comentário Por bem entendo aqui todo tipo de Alegria e tudo o que conduz a ela, mas, sobretudo, o que satisfaz ao querer insatisfeito. Por mal [entendo] todo tipo de Tristeza, mas, sobretudo, as que frustram o querer insatisfeito. Mostramos mais acima (Com. Prop. 9) que não desejamos algo porque o julgamos bom, mas ao contrário, chamamos algo bom porque o desejamos e, consequentemente, chamamos de mau aquilo que temos em aversão. Donde cada um julga ou estima, conforme seus afetos, o que é bom ou mau, melhor ou pior, ótimo ou péssimo. Assim, o Avarento considera ótima a abundância de dinheiro e péssima sua escassez. O ambicioso deseja a Glória acima de tudo e tem horror à Vergonha e nada é mais agradável para o invejoso do que a infelicidade dos outros e nada é tão incômodo quanto a sua felicidade. E assim cada um julga, segundo seu afeto que uma coisa é má, útil ou inútil. O afeto que dispõe o homem de tal forma que ele queira o que não quer, ou que não queira aquilo que quer, chama-se Temor (Timor) que, portanto, é o medo, enquanto dispõe o homem a evitar um mal futuro com outro mal menor (vide Prop. 28). Mas se o mal temido é a Vergonha, então o Temor é chamado de Pudor (Verecundia). Finalmente, se o desejo de evitar um mal futuro é limitado pelo Temor de outro mal, de forma que não se sabe o que querer, então o Medo é chamado de Consternação (Consternatio), especialmente se ambos os males temidos são dos maiores. PROPOSIÇÃO XL Quem se imagina odiado por alguém e acredita não ter dado motivo algum para o ódio, odiará o outro por sua vez. Demonstração Quem imagina alguém afetado de ódio, também será afetado de ódio (pela Prop. 27), isto é (pelo Com. Prop. 13), por uma Tristeza concomitante à ideia de uma causa externa. Mas (por hipótese), ele não imagina outra causa para esta Tristeza além daquele que o odeia, portanto, quem se imagina odiado por alguém é afetado de Tristeza, concomitante à ideia de quem o odeia, o que quer dizer (pelo mesmo Comentário), que ele odiará o outro. QED Comentário Se imaginasse haver um justo motivo para o ódio, então (pela Prop. 30 e Com.) seria afetado de Vergonha. Mas isto (pela Prop. 25) raramente ocorre. Por outro lado, este Ódio recíproco pode se originar no esforço por fazer mal ao outro que se segue do ódio (pela Prop. 39). Assim, quem se imagina odiado por alguém, imaginará este como causa de algum mal ou Tristeza, e, portanto, será afetado de Tristeza, ou de Medo, concomitante à ideia daquele que o odeia, isto é, será afetado de ódio por sua vez, como dissemos acima. Resultado I Quem se imagina odiado por quem ama terá atormentado simultaneamente pelo amor e pelo ódio. Pois enquanto imaginar que é odiado, será determinado (pela Prop. precedente) ao ódio recíproco. Mas (por hipótese) ele também ama. Logo, será tomado simultaneamente por Amor e Ódio. Resultado II Quem imagina que alguém, por quem não experimentou afeto algum, lhe infligiu um mal por ódio, se esforçará por devolver-lhe o mal. Demonstração Quem imagina que alguém é afetado de ódio em relação a si (pela Prop. precedente), odiará o outro por sua vez (pela Prop. 26), se esforçará em pensar tudo o que possa afetá-lo de Tristeza (pela Prop. 39) e se aplicará a fazer-lhe experimentá-lo. Mas como (por hipótese), a primeira coisa deste tipo que [quem é odiado] imagina é o mal foi feito a si mesmo, então ele imediatamente se esforçará por infligir o mesmo [mal ao outro]. QED Comentário O esforço por infligir o mal a quem odiamos chama-se Ira (Ira) e o esforço por devolver ao outro o mal que nos foi infligido chama-se Vingança (Vindicta). PROPOSIÇÃO XLI Quem se imagina amado por alguém, sem crer ter dado motivo algum para tanto (que pelo Res. Prop. 15 e pela Prop 16 pode acontecer), por sua vez amará este alguém. Demonstração Esta proposição se demonstra pela mesma via que a anterior, cujo Comentário também deve ser consultado. Comentário Se acreditasse ter dado justa razão para o Amor então se glorificaria (pela Prop. 30 e Com.), o que (pela Prop. 25) sem dúvida acontece com mais frequência. E dissemos que o contrário [isto é, a ira,] acontece quando imaginamos que somos odiados por alguém (vide Com. Prop. precedente). Por outro lado, este Amor recíproco, e consequentemente (pela Prop. 39) este esforço por fazer o bem a quem nos ama e se esforça (pela mesma Prop. 39) por nos fazer o bem se chama Reconhecimento (Gratia) ou Gratidão (Gratitudo). É, pois, evidente que os homens são mais propensos à Vingança do que a do que a devolver um bem que lhes foi feito. Resultado Quem se imagina amado por quem odeia, será tomado simultaneamente por Ódio e Amor. O que se demonstra da mesma maneira que o Resultado I da Prop. precedente. PROPOSIÇÃO XLII Quem fez um bem a outro movido por amor ou esperança de Glória, se entristecerá se vir que o bem foi aceito de alma ingrata. Demonstração Quem ama uma coisa semelhante a si se esforça, na medida em que pode, por fazer com que ela ame em retorno (pela Prop. 33). Quem fez o bem a outro por amor o faz com querer insatisfeito (desiderium) de ser amado em retorno, isto é (pela Prop. 34) com esperança de Glória, ou (pelo Com. Prop. 30) de Alegria. Por isso (pela Prop. 12) se esforçará, na medida em que puder, em imaginar, ou por contemplar, a existência em ato do que possa ser causa de Glória. Mas ele (por hipótese) imagina outra coisa que exclui a existência de tal causa e, portanto (pela Prop. 19) se entristecerá. QED PROPOSIÇÃO XLIII O ódio aumenta com o ódio recíproco, mas pode ser destruído pelo Amor. Demonstração Quem imagina que aquele que odeia está afetado de ódio com relação si, vê nascer (pela Prop. 40) um novo ódio, que (por hipótese) subsiste junto com o primeiro. Mas se, ao contrário, ele imagina que este outro é afetado de amor com relação a si, ele, enquanto imagina, contempla a si mesmo com Alegria (pela Prop. 30) e (pela Prop. 29) se esforçará por agradá-lo, isto é (pela Prop. 41), se esforçará para não odiá-lo e não afetá-lo de nenhuma tristeza; e este esforço será (pela Prop. 37) maior ou menor em proporção ao afeto que o originou. Por conseguinte, se [este esforço por não odiar] for maior que [aquele afeto] que nasce do ódio, pelo qual ele se esforça por afetar de tristeza a coisa que odeia, ele prevalecerá e o ódio será apagado da alma. QED PROPOSIÇÃO LXIV O Ódio que é vencido plenamente pelo Amor se transforma em Amor e este Amor será maior do que se não fosse precedido pelo Ódio. Demonstração Procede-se do mesmo modo como na Proposição 38. Pois quem começa a amar a coisa que odeia, ou que tem o hábito de contemplar com Tristeza, se alegra pelo fato mesmo de amar. E a esta Alegria que o Amor envolve (vide a definição [de Amor] no Com. Prop. 13), acrescenta-se uma outra, que se origina no esforço de afastar a Tristeza envolvida no ódio (como mostramos na Prop. 37) e que é ajudado por ser concomitante à ideia de quem era odiado entendido como causa [de Alegria]. Comentário Embora seja assim, ninguém se esforçará para odiar algo, ou ser afetado de Tristeza, para fruir de uma Alegria Maior, isto é, ninguém desejará infligir dano o si mesmo na esperança de recuperar-se dele, nem ninguém adoecerá na esperança de se restabelecer. Pois todos se esforçam, por conservar o seu ser e afastar, na medida em que podem, a Tristeza. Se fosse possível conceber, ao contrário, que um homem desejasse odiar alguém para posteriormente sentir um amor maior, então ele teria sempre um querer insatisfeito por odiar, já que quanto maior fosse o ódio, maior seria o Amor e, portanto, ele sempre quereria que o ódio aumentasse mais e mais. E pela mesma causa o homem se esforçaria por ficar mais e mais doente para fruir de uma Alegria maior pelo restabelecimento e, portanto, se esforçaria por estar sempre doente, o que (pela Prop. 6) é absurdo. PROPOSIÇÃO XLV Quem ama uma coisa semelhante a si mesmo, odiará alguém, também semelhante a si, que imaginar afetado de ódio com relação a tal coisa. Demonstração Pois a coisa amada, por sua vez, odeia quem a odeia (pela Prop. 40). E o amante, ao imaginar que alguém odeia a coisa amada, também imagina que a coisa amada tem ódio, isto é (pelo Com. Prop. 13), está afetada de Tristeza. Consequentemente (pela Prop. 21), ele se entristece e isso concomitante à ideia daquele que causa ódio à coisa amada, ou seja (pelo Com Prop. 13), daquele que agora também passa a odiar. QED PROPOSIÇÃO XLVI Quem for afetado de Alegria ou Tristeza por uma pessoa de classe ou nação diferente – [e este afeto] for concomitante à ideia desta pessoa, enquanto ela pertence a tal classe ou nação, como causa – terá amor ou ódio, não apenas desta pessoa, mas também de todos de sua classe ou nação. Demonstração A Demonstração é evidente a partir da demonstração da Prop. 16. PROPOSIÇÃO XLVII A Alegria que se origina de imaginarmos que a coisa que odiamos é destruída ou afligida de um mal, não pode nascer sem alguma Tristeza da alma. Demonstração É evidente da Prop. 27. Pois nos entristecemos quando imaginamos uma coisa semelhante a nós afetada de tristeza. Comentário Esta proposição também pode ser demonstrada a partir do Res. Prop. 17 P II. Pois sempre que recordamos de uma coisa – ainda que ela não exista em ato – nós a contemplamos como presente e o Corpo é afetado do mesmo modo [como quando ela o afetou originalmente]. E assim, enquanto a memória da coisa for forte, o homem será determinado a contemplá-la com Tristeza, mas tal determinação, embora dure enquanto a coisa for imaginada, será limitada, mas não destruída, pela memória de outras coisas que excluem a existência da coisa. Portanto, o homem só se alegrará enquanto esta determinação [à Tristeza] for limitada. Assim, a Alegria que se origina do mal à coisa que odiamos se repete sempre que recordamos a coisa. Pois, como dissemos, quando a imagem desta coisa é revivida, ela, por envolver a existência da própria coisa, determina o homem a contemplar a coisa com a mesma Tristeza que costumava contemplá-la quando ela existia. Mas como à imagem da coisa juntaram-se [imagens de] outras que lhe excluem a existência, tal determinação à Tristeza é imediatamente reprimida, e o homem se alegra de novo. E isto tantas vezes quantas se der a repetição [desta recordação]. Esta também é a causa que faz com que os homens se alegrem ao recordar de um mal do passado e gostem de narrar os perigos dos quais se livraram. Pois quando imaginam um desses perigos, eles o contemplam como se ele estivesse no futuro, sendo com isso determinados ao medo. Determinação esta que é de novo limitada pela ideia da liberdade que está unida à ideia do perigo, posto que já foram livrados dele. Isto os torna seguros de novo e alegres de novo. PROPOSIÇÃO XLVIII O Amor ou Ódio, por exemplo, com relação a Pedro, são destruídos se a Tristeza que este envolve ou a Alegria que aquele envolve, se juntam à ideia de outra causa. E [estes afetos] são diminuídos quando imaginamos que Pedro não foi sozinho a causa de um ou do outro. Demonstração É evidente apenas das definições de Amor e de Ódio (vide Com. Prop. 13). Pois tal Alegria se chama Amor a Pedro e tal Tristeza se chama Ódio a Pedro, apenas porque Pedro é considerado como causa de um ou outro afeto. Se isto é retirado no todo ou em parte, o afeto com relação a Pedro é imediatamente retirado ou diminuído. PROPOSITIO XLIX Dada um causa igual, o Amor e o Ódio devem ser maiores com relação a uma coisa que imaginamos ser livre do que em relação a uma coisa necessária. Demonstração A coisa que imaginamos ser livre deve (pela Def. 7 P I) ser percebida por si e sem as outras. Portanto, se a imaginamos como causa de Alegria ou de Tristeza (pelo Com. Prop. 13) teremos amor ou ódio, e estes (pela Prop. precedente) serão o sumo amor ou o sumo ódio que pode se originar de um dado afeto. Mas se imaginarmos a coisa que é causa destes afetos é necessária, então (pela mesma Def. 7 P I) imaginaremos que ela não é causa dos ditos afetos sozinha, mas sim com outras. Portanto (pela Prop. precedente), o Amor e o Ódio em relação a ela serão menores. Comentário Disso se segue que os homens, por se estimarem livres, experimentam entre si um Amor e um Ódio maior que com relação a outras coisas. E a isso deve-se acrescentar a imitação de afetos, sobre a qual vide as Props. 27, 34, 40 e 43. PROPOSIÇÃO L Qualquer coisa pode ser, por acidente, causa de Esperança e de Medo. Demonstração Esta Proposição se demonstra pela mesma via que a Proposição 15. Veja-se também o Com. 2 da Proposição 18. Comentário Coisas que são por acidente causa de Esperança e de Medo são chamadas de bons ou maus presságios. E como estes presságios são causa de Esperança e Medo, são também (pelas Defs. de Esperança e Medo, que podem ser encontradas em Com. 2 Prop. 18) causa de Alegria e Tristeza. Consequentemente (pelo Res. Prop. 15) nós os amamos ou odiamos e (pela Prop. 28) nos esforçamos, seja para empregá-los como meios para as coisas que esperamos, seja para removê-los enquanto obstáculos ou causas de Medo. Além disso, segue-se da Proposição 25 que nossa natureza é constituída de forma tal que facilmente acreditamos nas coisas que esperamos e dificilmente acreditamos nas coisas que tememos e que as avaliamos mais ou menos do que é justo. E esta é a causa das Superstições que em toda parte assaltam os homens. Não creio que valha a pena o trabalho de mostrar aqui as flutuações da alma que se originam na Esperança e no Medo, pois segue-se da definição destes afetos que não há Esperança sem Medo, nem Medo sem Esperança (como explicaremos em seu devido lugar). Além disso, quando esperamos ou tememos algo, também o amamos ou odiamos e, portanto, tudo o que dissemos do Amor e do Ódio, pode facilmente ser aplicado à Esperança e ao Medo. PROPOSIÇÃO LI Diferentes homens podem ser afetados de diversos modos pelo mesmo objeto e o mesmo homem pode ser afetado de diversos modos pelo mesmo objeto em momentos diferentes. Demonstração O Corpo humano (pelo Post 3 P II) é afetado de muitíssimos modos pelos corpos externos. Portanto, dois homens podem ser afetados de modos diversos ao mesmo tempo, e também (pelo Axiom. 1 após o Lem. 3 após Prop. 13 P II) podem ser afetados de modos diversos pelo mesmo objeto. Em seguida (pelo mesmo postulado), o Corpo humano pode ser afetado, ora de um modo, ora de outro e, consequentemente (pelo mesmo Axioma) pode ser afetado por um mesmo objeto de modos diversos em tempos diversos. QED Comentário Vemos, pois, que pode ocorrer que alguém ama aquilo que outros odeiam; que alguém tema aquilo que outros não temam; e que um mesmo homem ame agora o que antes odiava e que ouse agora o que antes temia, etc. Além disso, como cada um julga o que é bom e mau, o que é melhor e pior (vide Com. Prop. 39), segundo seus afetos, segue-se que os homens podem mudar de opinião conforme mudem seus afetos* e que quando comparamos [os homens] uns com os outros, só podemos distingui-los pelas diferenças entre afetos, chamando assim alguns de intrépidos, outros de tímidos e outros de outros nomes. Por exemplo, eu chamarei de intrépido (intrepidum) quem desconsidera um mal que eu estou acostumado a temer. Além disso, eu o chamarei de audacioso (audacem) se atentar que seu Desejo de fazer o mal a quem odeia e o bem a quem ama não é contido pelo temor de um mal que usualmente me contém. Por outro lado, considerarei medroso (timidus) quem teme um mal que tenho o hábito de desconsiderar. E eu o chamarei de covarde (pulsillaniem) se atentar que seu Desejo [de fazer o mal a quem odeia e o bem a quem ama] é contido pelo temor de um mal que não é capaz de me conter. E assim julgarei a todos. Finalmente, por causa desta inconstância na natureza e no juízo do homem, como ele comummente julga as coisas somente por seu afeto e como as coisas que ele julga levarem à Alegria e à Tristeza, e que, portanto (pela Prop. 28), ele se esforça por promover ou evitar, são frequentemente imaginárias – para não mencionar o que mostramos na Parte II sobre a incerteza das coisas – concebemos facilmente que o homem pode ser causa tanto de sua tristeza e de sua alegria, ou seja, que ele é afetado tanto de Tristeza, como de Alegria, concomitante a ideia de si mesmo como causa. Donde entendemos facilmente o que são a Culpa (Poenitentia) e a Autoestima (Acquiescentia in se ipso), pois a Culpa é a Tristeza concomitante à ideia de si como causa, e a Autoestima é a Alegria concomitante à ideia de si como causa. E estes afetos são veementes ao extremo, porque os homens se creem livres (vide Prop. 49). * Mostramos que isto pode acontecer mesmo sendo a Mente humana parte do intelecto divino no Com. Prop. 13 P II. PROPOSIÇÃO LII Nós não contemplamos por tanto tempo um objeto que vimos anteriormente juntamente com outros, ou em que só imaginamos o que é comum a ele e a muitos outros, quanto aquele que imaginamos ter algo de singular. Demonstração Quando imaginamos um objeto que vimos com outros, imediatamente nos recordamos dos outros (pela Prop 18 P II, e também por seu Com.), e assim da contemplação de um passamos imediatamente à contemplação dos outros. E o raciocínio é o mesmo com relação o objeto em que só imaginamos aquilo que é comum a muitos, pois supomos então que só contemplamos nele aquilo que anteriormente vimos ao vê-lo junto com outros. Mas quando supomos que imaginamos ver no objeto algo de singular, que nunca vimos antes, dizemos então que a Mente não tem nada capaz de fazê-la passar da contemplação deste objeto à contemplação de outro. Por conseguinte, ela é determinada a contemplar apenas este objeto. Logo, nós não contemplamos, etc. QED Comentário Esta afecção da Mente, ou seja, a imaginação de uma coisa singular que permanece sozinha na mente, chama-se Admiração (Admiratio), mas se ela é suscitada por um objeto que tememos, chama-se Consternação (Consternatio), pois a Admiração de um mal mantém o homem de tal forma suspenso em contemplá-la que ele sequer consegue pensar em outras coisas capazes de evitar este mal. Mas se o que admiramos é a prudência, ou a indústria de um homem, ou qualquer outra coisa similar em que este homem se nos ultrapasse, então a Admiração se chama Veneração (Veneratio); chama-se, porém, Horror (Horror) se admiramos da ira ou da inveja de um homem. Além disso, se amamos um homem cuja prudência e indústria admiramos, este Amor (pela Prop. 12) será por isto mesmo maior, de sorte que chamaremos de Devoção (Devotionem) este Amor unido à Admiração ou à Veneração. Deste mesmo modo podemos conceber o Ódio, a Esperança, a Segurança e outros afetos unidos à Admiração e poderíamos assim deduzir mais Afetos do que é possível designar com a linguagem comum. Donde vemos que os nomes dos Afetos foram inventados mais a partir do uso vulgar do que do conhecimento acurado. À admiração se opõe o Desprezo (Contemptus), cuja causa mais frequente é a seguinte. Pelo fato de vermos que alguém admira, ama, teme, etc. algo, ou por que algo parece-nos semelhante a uma coisa que admiramos, amamos, tememos, etc., somos (pela Prop. 15 com seu Res. e pela Prop. 27) determinados a admirar, amar, temer, etc. esta coisa. Mas se a presença desta coisa, ou uma contemplação mais acurada, nos força a negar-lhe tudo o que possa ser causa de Admiração, Amor, Medo, etc., então a Mente é determinada pela presença da coisa a pensar no que não existe no objeto e não naquilo que nele existe – ao contrário do que ocorre habitualmente, pois a presença do objeto normalmente leva a Mente a pensar naquilo que existe no objeto. Assim como a Devoção se origina da admiração à coisa que amamos, o Escárnio (Irrisio) se origina do Desprezo com relação à coisa que odiamos ou tememos e o Desdém (Dedignatio) se origina no Desprezo pela tolice, assim como a Veneração se origina na da Admiração pela prudência. Podemos assim conceber o Amor, a Esperança, a Glória e outros afetos, unidos ao Desprezo para deduzir outros afetos aos quais não temos, porém, o hábito de distinguir por meio de vocábulos específicos. PROPOSIÇÃO LIII A Mente se alegra quando contempla a si mesma e a sua potência de agir, e tanto mais quanto mais distintamente imagina a si mesma e a sua potência de agir. Demonstração O Homem só conhece a si mesmo através das afecções de seu Corpo e das ideias delas (pelas Props. 19 e 23 P II). Quando, pois, a Mente pode contemplar a si mesma, supõe-se que por isso ele passe a uma perfeição maior, isto é (pelo Com. Prop. 11), se alegre, e tanto mais quanto mais distintamente possa imaginar a sua potência de agir. QED Resultado Esta alegria é tanto mais favorecida, quanto mais o homem se imagina elogiado pelos outros. Pois quanto mais ele se imagina elogiado pelos outros, maior é a Alegria concomitante à ideia dele mesmo que ele imagina afetando os outros (pelo Com. Prop. 29). Logo, (pela Prop. 27) ele próprio é afetado por uma Alegria maior, concomitante à ideia dele mesmo. PROPOSIÇÃO LIV A Mente se esforça por imaginar apenas as coisas que põe a sua potência de agir. Demonstração O esforço da Mente, ou sua potência, é a própria essência da Mente (pela Prop. 7). Por outro lado, a essência da Mente (como é evidente) só afirma o que a mente é e pode, e não o que ela não é ou não pode. Logo, ela se esforça apenas por imaginar o que afirma, ou põe, a sua potência de agir. QED PROPOSIÇÃO LV A Mente se entristece quando imagina sua impotência. Demonstração A essência da Mente afirma o que a Mente é e pode, ou seja, é da natureza da Mente imaginar o que põe a sua potência de agir (pela Prop. precedente). Assim, quando dizemos que a Mente ao contemplar a si mesma imagina sua impotência, dizemos apenas que a Mente, ao se esforçar por imaginar o que põe a sua potência de agir, tem este esforço limitado, ou (pelo Com. Prop. 11) que ela se entristece. QED. Resultado I Esta tristeza é fomentada sem cessar quando em quem se imagina objeto da censura dos outros; como foi demonstrado no Res. Prop. 53. Comentário Esta Tristeza, concomitante à ideia de nossa fraqueza chama-se Humildade (Humilitas). Por outro lado, a Alegria que se origina na contemplação de nós mesmos chama-se Amor-Próprio (Philautia) ou Auto-Estima (Aquiescentia in se ipso). E como estas se repetem sempre que o homem contempla a suas virtudes ou sua potência de agir, a consequência é que todos se aprazem em narrar seus feitos e ostentar a força de seu corpo ou de sua alma, e assim os homens acabam incomodando uns aos outros. Disso se segue que os homens são por natureza invejosos (ver Com. Prop. 24 e Com. Prop. 32), ou que eles se alegram da fraqueza de seus iguais e se entristecem de suas virtudes. Pois sempre que alguém imagina suas ações, é (pela Prop. 53) afetado de uma alegria que é tão maior quanto maior a perfeição expressa por estas ações e quanto mais distintamente as imagina, isto é (pelo que foi dito no Com. 1 Prop. 40 PII), quanto mais pode distingui-las das demais e contemplá-las como coisas singulares. Donde alguém se alegrará ao máximo contemplando a si mesmo ao contemplar em si algo que nega aos demais. Mas não se alegrará tanto se aquilo que afirma de si se refere à ideia universal de homem ou de animal e, ao contrário, se entristecerá se imaginar que suas ações são fracas em comparação com as dos outros, caso em que se esforçará (pela Prop. 28) em remover tal Tristeza, seja interpretando incorretamente as ações dos demais ou enfeitando o quanto pode as suas próprias. Fica evidente, pois, que os homens são por natureza propensos ao Ódio e à Inveja e a educação se soma a isto, pois os pais têm o costume de incitar a virtude apenas pela Honra e pela Inveja. Mas talvez um escrúpulo permaneça, pois não raro admiramos e até veneramos as virtudes dos homens. Para removê-lo acrescentarei, portanto o seguinte Resultado. Resultado Ninguém inveja a virtude de alguém que não seja igual. Demonstração A Inveja é o próprio Ódio (vide Com. Prop. 24), ou (pelo Com. Prop. 13) Tristeza, isto é (pelo Com. Prop. 11) um afeto que limita a potência de agir, ou esforço, do homem. Mas o homem (pelo Com. Prop. 9) só se esforça por fazer, ou só deseja, o que pode se seguir de sua natureza dada. Logo, o homem não deseja predicar sua potência de agir, ou (o que é o mesmo) sua virtude, de algo que seja próprio a outro e estranho a si. Assim, seu desejo não pode ser limitado, isto é (pelo Com. Prop. 11), ele não pode entristecer-se ao contemplar uma virtude de outro que não é semelhante seu, e consequentemente também não pode invejá-lo. Mas ele pode [invejar] um igual a si, pois supõe-se que sejam de mesma natureza. QED Comentário II Assim, quando dissemos acima no Comentário da Prop. 52, que veneramos um homem por que admiramos sua prudência, força, etc. isto ocorre (como é evidente por aquela Proposição) por imaginarmos que estas virtudes são singulares a ele e não comuns à nossa natureza. Portanto não invejaremos [tais virtudes] mais que a altura das árvores ou a força dos leões, etc. PROPOSIÇÃO LVI Há tantas espécies de Alegria, Tristeza e Desejo – e consequentemente de todos os afetos compostos destes, como as flutuações da alma, ou derivados deles como o Amor, o Ódio, a Esperança o Medo, etc. –quantas são as espécies de objetos. Demonstração A Alegria e a Tristeza, e consequentemente os afetos compostos ou derivados delas, são paixões (pelo Com. Prop. 11). Mas como nós (pela Prop. 1) necessariamente padecemos quando temos ideias inadequadas e (pela Prop. 3) somente padecemos quando as temos, isto é (vide Com. Prop. 40 P II), só padecemos necessariamente quando imaginamos, ou (vide Prop. 17 P II e seu Com.) quando somos afetados de um afeto que envolve a natureza de nosso corpo e a natureza de um corpo externo. Donde, a Natureza de cada paixão deve necessariamente ser explicada de forma que ela expresse a natureza do objeto que nos afeta. Assim a Alegria originada, por exemplo, do objeto A envolve a natureza do objeto A e a Alegria originada no objeto B envolve a natureza do objeto B. Estes dois afetos de Alegria têm natureza diversa na medida em que se originam em causas de natureza diversa. Também o afeto de Tristeza que se origina de um objeto, é de natureza diversa com relação à Tristeza que se origina de outra causa. E o mesmo deve ser entendido do Amor, do Ódio, da Esperança, do Medo, da Flutuação da Alma, etc. Portanto, existem tantas espécies de Alegria, Tristeza, Amor, Ódio, etc. quantas são as espécies de objetos que nos afetam. Por outro lado, o Desejo é a própria essência ou natureza de cada um, enquanto é concebida como sendo determinada a agir por um estado determinado dela mesma (ver Com. Prop. 9). Logo, assim como cada um é afetado por causas externas com esta ou aquela espécie de Alegria, Tristeza, Amor, Ódio, etc. – isto é, na medida em que sua natureza é constituída desta ou daquela maneira – também o Desejo se constitui deste ou daquele modo e a natureza de um Desejo difere da natureza do outro do mesmo modo como diferem entre si os afetos que o originam. Existem, portanto, tantas espécies de Desejo quantas são as espécies de Alegria, Tristeza, Amor, etc. e consequentemente (pelo que mostrei) tantas quantas são as espécies de objetos que nos afetam. QED Comentário Entre as espécies de afetos, que (pela Prop. precedente) devem ser muitíssimas, as mais notáveis são a Gula (Luxuria), a Embriaguez (Ebrietas), a Lubricidade (Libido), a Avareza (Avaritia) e a Ambição (Ambitio), que são noções de Amor ou Desejo que explicam a natureza de um ou do outro afeto pelo objeto a que eles se referem. Pois por Gula, Embriaguez, Lubricidade, Avareza e Ambição entendemos o Amor ou Desejo imoderado de comida, bebida, cópula, riqueza e glória. Além disso, estes afetos, enquanto os distinguimos dos demais apenas com pelos objetos a que se referem, não têm contrários. Pois a Temperança (Temperantia), que habitualmente opomos à Gula, a Sobriedade (Sobrietas) à Embriaguez, a Castidade (Castitas) à Lubricidade, não são afetos ou paixões, mas indicam uma potência da alma em moderar estes afetos. Não posso explicar aqui as demais espécies de afetos (que são tantos quantas são as espécies de objetos), nem isso seria necessário, mesmo que fosse possível. Pois para nosso intento, qual seja, para determinar a força dos afetos e o poder na Mente sobre eles, é suficiente ter uma definição geral de cada afeto. É suficiente, digo, entender as propriedades comuns dos afetos e da Mente para que possamos determinar de que tipo e magnitude é a potência da Mente em moderar ou limitar tais afetos. Mesmo havendo uma grande diferença entre este ou aquele afeto de Amor, Ódio ou Desejo, por exemplo, entre o Amor aos filhos e o Amor à esposa, não é para nós necessário conhecer tais diferenças em investigar mais profundamente a natureza e a origem dos afetos. PROPOSIÇÃO LVII O afeto de um indivíduo difere tanto do afeto de outro quanto a essência de um difere da essência do outro. Demonstração Esta Proposição é evidente do Axioma 1, após o Lema 3, após Prop 13 P II. Entretanto vamos demonstrá-lo a partir das definições dos três afetos primitivos. Todos os afetos se referem ao Desejo, à Alegria ou à Tristeza, como mostram as definições que lhes demos. Ora o Desejo é a própria natureza, ou essência de cada um (vide sua Definição no Com. Prop. 9). Logo, o Desejo de um indivíduo difere do Desejo de outro tanto quanto sua natureza ou essência difere da essência do outro. Já a Alegria e a Tristeza são paixões que aumentam ou diminuem, ajudam ou limitam sua potência ou esforço de perseverar no ser (pela Prop. 11 e seu Com.) e entendemos por Apetite e Desejo o esforço em perseverar no ser, enquanto se refere à Mente e ao Corpo simultaneamente (vide Com. Prop. 9). Logo a Alegria e a Tristeza são o próprio Desejo ou Apetite, enquanto ele é aumentado ou diminuído, ajudado ou limitado por uma causa externa, isto é (pelo mesmo Com.), são a própria essência de cada um. Portanto, a Alegria ou Tristeza de cada um difere da Alegria ou Tristeza do outro e consequentemente qualquer afeto de cada indivíduo difere tanto do afeto do outro, etc. QED Comentário Disso se segue que os afetos dos animais, que são ditos irracionais (pois não podemos duvidar que os animais sintam depois de termos conhecido a origem da Mente) diferem dos afetos dos homens tanto quanto sua natureza difere da natureza humana. Tanto o cavalo como o homem têm desejo de procriar, mas um tem desejo para procriar equino e outro tem uma desejo para procriar humano. E também devem ser diferentes entre si o Desejo de procriar e os Apetites dos Insetos, dos peixes e das aves. Ainda que cada indivíduo viva contente com a natureza que tem e se alegre dela, esta vida com que cada um está contente e esta alegria são a própria ideia ou alma do indivíduo, e assim, a Alegria de um e a alegria do outro diferem em natureza tanto quanto a essência de um difere da essência do outro. Por fim, gostaria de ressaltar de passagem que se segue da Proposição precedente, por exemplo, que não é pequena a distância entre a alegria que move o Bêbado e a alegria do Filósofo. Mas isto basta quanto aos afetos que se referem ao homem enquanto ele padece. Cabe ainda acrescentar algo no quanto [aos afetos] que se referem a ele enquanto ele age. PROPOSIÇÃO LVIII Além da Alegria e do Desejo que são paixões, há afetos de Alegria e desejo que se referem a nós enquanto agimos. Demonstração A Mente se alegra quando concebe a si mesma e a sua potência de agir (pela Prop. 53). Mas a Mente necessariamente contempla a si mesma quando concebe uma ideia verdadeira ou adequada (pela Prop. 43 P II). Como a Mente concebe algumas ideias adequadas (pelo Com. 2 Prop. 40), então, ela se alegra enquanto concebe tais ideias adequadas, isto é (pela Prop. 1), enquanto age. A Mente se esforça por perseverar no ser tanto quando tem ideias claras e distintas quanto quando tem ideias confusas (pela Prop. 9). Mas por esforço entendemos aqui o Desejo (pela Prop. 9) e, portanto, quando entendemos, ou (pela Prop. 1) quando agimos o Desejo também se refere a nós. QED PROPOSIÇÃO LIX Entre os afetos que se referem à Mente enquanto ela age, não há nenhum que não se refira ao Desejo ou à Alegria. Demonstração Todos os afetos se referem ao Desejo, à Alegria ou à Tristeza, como mostram as definições que apresentamos. Por outro lado, entendemos por Tristeza aquilo que diminui ou limita a potência de agir da Mente (pela Prop. 11 e seu Com.). Portanto, quando a Mente se entristece, sua potência de entender ou de agir (pela Prop. 1) é diminuída ou limitada. Portanto, nenhum afeto de Tristeza pode ser referir à Mente quando ela age, mas apenas os afetos de Alegria e Desejo que, (pela Prop precedente) também se referem à Mente. QED Comentário Chamo de Força de Caráter (Fortitudinem) a todas as ações que se seguem dos afetos que se referem à Mente enquanto ela entende, dentre as quais distingo Firmeza (Animositatem) e a Generosidade (Generositatem). Entendo por Firmeza o Desejo de conservar o seu ser apenas segundo os ditames da razão e por Generosidade entendo o Desejo de ajudar os outros homens apenas segundo os ditames da razão e de uní-los a si por amizade. Portanto, as ações que têm como intenção apenas a utilidade do agente se referem à Firmeza e aquelas que tem como intenção a utilidade dos outros se referem à Generosidade. Assim, a Temperança (Temperantia), a Sobriedade (Sobrietas), a presença de espírito diante do perigo e etc. são espécies de Firmeza. Por outro lado, a Modéstia (Modestia) e a Clemência (Generositatis) e etc. são espécies de Generosidade. Com isto penso ter explicado e mostrado por suas causas primeiras os principais afetos e flutuações da alma originados dos três afetos primitivos, a saber, do Desejo, da Alegria e da Tristeza. E fica evidente que as causas externas nos agitam de muitos modos e que flutuamos como ondas do mar agitadas por ventos contrários, sem saber de nossa sorte ou nosso destino. Mas disse também que mostrei somente os principais conflitos da alma e não todos. Pois prosseguindo pela mesma via podemos facilmente mostrar que o Amor pode estar unido à Culpa, ao Desdém ao Pudor, etc. Creio que fica claro do que disse que os afetos podem se compor uns com os outros de tantos modos e originar tantas variações que não é possível atribuir-lhes um número definido. Mas para meu intento, basta ter enumerado os principais, uma vez que os demais teriam mais curiosidade do que utilidade. Resta notar a respeito do Amor que quando fruímos de uma coisa que nos apetece, frequentemente a própria fruição faz o Corpo adquirir um novo estado pelo qual ele é determinado de uma nova maneira, fazendo surgir imagens de outras coisas que a Mente começa a imaginar e a desejar. Por exemplo, quando imaginamos uma coisa cujo sabor habitualmente nos deleita, temos o desejo de fruí-la ou comê-la. Mas quando a fruímos, o estômago fica cheio e o Corpo se constitui de uma nova maneira. Se então, já com o corpo disposto da nova maneira, a presença [do alimento] fomenta sua imagem e consequentemente o esforço ou Desejo de comê-lo, este Desejo ou esforço repugna ao novo estado e, consequentemente, a presença da coisa que apetecemos se torna odiosa e é isto que chamamos de Fastio (Fastidium) ou Tédio (Taedium). Além disso, não considerei as afecções externas do Corpo, que são observadas nos afetos, como o tremor, a lividez, os soluços, os risos, que se referem apenas ao Corpo, sem relação com a Mente. Finalmente, cabe notar algumas coisas sobre as definições dos afetos, que repetirei aqui em ordem, intercalando entre elas algumas observações. DEFINIÇÕES DOS AFETOS I. O Desejo (Cupiditas) é própria essência do homem, enquanto ela é concebida como determinada, por uma afecção qualquer dela mesma, a fazer algo. Explicação Dissemos acima, no Comentário da Proposição 9, que o Desejo é o apetite com consciência dele mesmo e que, por sua vez, o apetite é a própria essência do homem, enquanto é determinada a fazer algo para a sua conservação. Mas no mesmo Comentário eu adverti que não reconhecia nenhuma diferença entre apetite humano e o Desejo. Pois quer o homem seja consciente de seu apetite ou não, o apetite permanece sendo o mesmo. Assim, para não dar a impressão de cometer uma tautologia, não expliquei aqui o Desejo pelo apetite, mas procurei defini-lo de forma a compreender todos os esforços humanos que chamamos de apetite, vontade, desejo ou ímpeto. E poderia apenas ter dito aqui que o Desejo é a essência do homem enquanto ela é concebida como determinada a fazer algo, mas de tal definição (pela Prop. 23 P II) não se segue que o homem possa ser consciente de seu Desejo ou apetite. Portanto, para envolver a causa da consciência, foi necessário acrescentar (pela mesma Proposição), enquanto é determinada por uma afecção qualquer dela mesma, etc. Pois por afecção da essência humana entendemos qualquer estado desta essência, seja ele inata, seja concebido somente pelo Pensamento, ou somente pela Extensão, ou por ambos simultaneamente. Portanto, pela palavra Desejo entendo quaisquer esforços, ímpetos, apetites e volições, que variam conforme varia o estado em que se encontra o homem e não raro são de tal modo opostos um ao outro, que o homem é puxado para diferentes direções e não sabe para onde se voltar. II. A Alegria (Laetitia) é a transição do homem de uma perfeição menor a uma perfeição maior. III. A Tristeza (Tristitia) é a transição do homem de uma perfeição maior para uma perfeição menor. Explicação Digo transição. Pois a Alegria não é a própria perfeição. Se o homem nascesse com a perfeição a que passa, ele a teria sem o afeto de Alegria. Isto é ainda mais claro do afeto de Tristeza, que é contrário [à Alegria]. Pois não se pode negar que a Tristeza consiste na transição a uma perfeição menor e não na própria perfeição menor, pois um homem não pode se entristecer por participar de alguma perfeição. Tampouco podemos dizer que a Tristeza consista na privação de uma perfeição maior, pois a privação não é nada, enquanto o afeto de Tristeza é um ato, e um ato de passar a uma perfeição menor, isto é, um ato pelo qual a potência de agir do homem é diminuída ou limitada (vide Com. Prop. 11). Omito as definições de Contentamento, Prazer, Melancolia e Dor que se referem mais ao Corpo e que são apenas Espécies de Alegria e Tristeza. IV. A Admiração (Admiratio) é a imaginação de uma coisa na qual a Mente permanece fixada, por ser esta imaginação singular e não ter conexão alguma com outras coisas. Vide Prop. 52 e seu Com. Explicação Mostramos no Com. Prop. 18 P II porque a Mente passa imediatamente da contemplação de uma coisa à contemplação de outra, a saber, uma vez que as imagens das coisas estão concatenadas e ordenadas de tal forma que a uma se segue a outra. Mas isso não pode ser concebido se a imagem de uma coisa é nova, pois a Mente se detém na contemplação da coisa até que seja determinada por outras causas a pensar em outras coisas. A imaginação de uma coisa nova é, considerada em si, de mesma natureza que as demais, e por esta causa não conto a Admiração entre os afetos, nem vejo por que deveria fazê-lo, visto que esta distração da Mente não se origina de nenhuma causa positiva que a distraia de outras coisas. Ao contrário, falta uma causa que determine a Mente a passar da contemplação de uma coisa ao pensamento em outras. Reconheço, portanto, apenas três afetos primitivos ou primários (como lembramos no Com. Prop. 11), a saber, a Alegria, a Tristeza e o Desejo. E se me referi à Admiração foi apenas porque habitualmente são indicar outros nomes para afetos que derivam dos três primitivos, quando estes se referem a objetos que admiramos. Pela mesma razão acrescentarei a definição de Desprezo. V. O Desprezo (Contemptus) é a imaginação de uma coisa que impressiona tão pouco a Mente que a presença da coisa leva a imaginar mais o que a coisa não é do que aquilo que ela é. Vide Com. Prop. 52. Omito as definições de Veneração (Venerationis) e Desdém (Dedignationis), pois nenhum afeto, que eu saiba, corresponde a estes nomes. VI. O Amor (Amor) é a Alegria concomitante à ideia de uma causa externa. Explicação Esta Definição explica de forma bastante clara a essência do Amor, ao passo que aquela de alguns autores, que definem o Amor como a vontade do amante de se juntar à coisa amada, não exprime a essência do Amor e sim uma propriedade dele. E como tais autores não investigaram o bastante a essência do Amor, também não puderam formar um conceito claro desta propriedade. Donde o fato de que todos julgaram obscura tal definição. É preciso notar que quando digo que há uma propriedade no amante, que é uma vontade de se juntar à coisa amada, não entendo por vontade o consentimento ou a deliberação da alma, ou o livre decreto (pois demonstramos na Prop. 48 P II que tais coisas estão no plano da ficção). Tampouco [entendo que o Amor implique no] Desejo de se juntar à coisa amada quando ela está ausente, ou de perseverar na sua presença quando ela está presente, pois o amor pode ser concebido sem nenhum destes Desejos. Ao contrário, por Vontade entendo a Estima (Acquiescentiam) do amante com a presença da coisa amada, que é corroborada ou favorecida pela Alegria do amante. VII. O Ódio (Odium) é a Tristeza concomitante à ideia de uma causa externa. Explicação O que cabe aqui assinalar pode ser facilmente ser percebido da Explicação da Definição precedente. Vide também o Com. Prop. 13. VIII. A Inclinação (Propensio) é a Alegria concomitante à ideia de uma coisa que é por acidente causa da Alegria. IX. A Aversão (Aversio) é a Tristeza, concomitante à ideia de uma coisa que é por acidente causa da Tristeza. Ver a respeito o Com. Prop. 15. X. A Devoção (Devotio) é o amor com relação a quem admiramos. Explicação Mostramos na Proposição 52 que a Admiração se origina da novidade da coisa. Se acontecer que passemos a imaginar frequentemente aquilo que admiramos, deixaremos de admirar, donde vemos que o afeto de Devoção pode facilmente degenerar em simples Amor. XI. O Escárnio (Irrisio) é a Alegria que se origina em imaginarmos que a coisa que odiamos tem algo que desprezamos. Explicação Quando desprezamos a coisa que odiamos negamos sua existência (vide Com. Prop. 52) e assim nos alegramos (pela Prop. 20). Mas quando supomos que o homem de quem nos escarnecemos tem ódio, tal Alegria não pode ser sólida. Vide Com. Prop. 47. XII. A Esperança (Spes) é uma Alegria inconstante, originada da ideia de uma coisa futura ou passada, cuja ocorrência duvidamos até certo ponto. XIII. O Medo (Metus) é uma Tristeza inconstante, originada da ideia de uma coisa futura ou passada, cuja ocorrência duvidamos até certo ponto. Vide a respeito o Com. 2 Prop. 18. Explicação Segue-se destas definições que não há Esperança sem Medo nem Medo sem Esperança. Pois se supõe que quem depende da Esperança, tem duvida sobre a ocorrência da coisa e também imagina algo que exclui a existência futura de tal coisa; nesta medida (pela Prop. 19), ele também se entristece. Consequentemente, quem depende da Esperança, teme que a coisa não aconteça. Por outro lado, quem tem Medo, isto é, quem tem dúvida da ocorrência daquilo que odeia, também imagina algo que exclui a existência de tal coisa e, portanto (pela Prop. 20), também se alegra e, consequentemente tem esperança que a coisa não ocorra. XIV. A Segurança (Securitas) é a Alegria originada da ideia de uma coisa futura ou passada da qual foi removida toda a causa de dúvida. XV. O Desespero (Desperatio) é a Tristeza originada da ideia de uma coisa futura ou passada da qual foi removida toda a causa de dúvida. Explicação A Esperança dá origem à Segurança e o Medo ao Desespero quando é removida a causa da dúvida sobre a ocorrência da coisa em questão. E isto porque o homem imagina uma coisa futura ou passada como presente e a contempla como estivesse presente, ou então porque imagina outras coisas que excluem a existência daquilo que inspirava dúvida. Pois, embora nunca possamos estar certos da ocorrência de coisas singulares (pelo Res. Prop. 31. P II), pode ocorrer que não tenhamos dúvidas acerca de tal sua ocorrência. De fato, mostramos (vide Com. Prop. 49 P II) que uma coisa é não duvidar de algo e outra é ter certeza. Portanto, pode acontecer que sejamos afetados de Alegria ou Tristeza pela imagem de uma coisa passada ou futura e que imaginemos a coisa como se estivesse presente, assim como demonstramos na Proposição 18, cujo Com. também pode ser consultado. XVI. A Grata Surpresa (Gaudium) é a Alegria concomitante à ideia de uma coisa passada que resultou no contrário do esperado. XVII. A Decepção (Constientiae Morsus) é a Tristeza concomitante à ideia de uma coisa passada que resultou no contrário do esperado. XVIII. A Compaixão (Commiseratio) é a Tristeza concomitante à ideia de um mal ocorrido a outrem que imaginamos ser semelhante a nós. Vide Com. Prop. 22 e Com. Prop. 27. Explicação Entre a Compaixão e a Piedade (Misericordiam) não parece existir diferença alguma, senão talvez que a Compaixão diga respeito a um afeto singular e a Piedade a seu hábito. XIX. Apreço (Favor) é o Amor a quem fez bem a outrem. XX. Indignação (Indignatio) é o Ódio a quem fez mal a outrem. Explicação Sei que no uso comum estas palavras significam outra coisa. Mas meu intuito não é aqui explicar o significado das palavras, mas sim a natureza das coisas, designando-as com vocábulos cujo significado comum não se oponha de todo ao que quero empregar. Um aviso a este respeito deve bastar. De resto, vide a causa destes afetos no Res. 1 Prop. 27 e na Prop. 22. XXI. A Sobreestima (Existimatio) é por Amor pensar de alguém mais do que é justo. XXII. O Menosprezo (Despectus) é por Ódio pensar de alguém menos do que é justo. Explicação A Sobre-estima é, portanto, um efeito ou propriedade do Amor e o Menosprezo do Ódio. A Sobre-estima também pode ser definida, portanto, como o Amor enquanto afeta o homem a pensar da coisa amada mais do que é justo. Por outro lado, o Menosprezo é o Ódio enquanto ele afeta o homem a pensar de quem odeia menos do que é justo. Vide a respeito Com. Prop. 26. XXIII. A Inveja (Invidia) é o Ódio enquanto afeta o homem de modo que ele se entristece da felicidade de outro e, ao contrário, de se alegra do mal de outro. Explicação A Inveja se opõe comumente à Piedade, que, apesar do significado do vocábulo, pode ser definida seguinte da maneira. XXIV. A Piedade (Misericordia) é o Amor enquanto afeta o homem de modo que ele se alegra da felicidade de outro e, ao contrário, de se entristece do mal de outro. Explicação Quanto à inveja, vide Com. Prop. 24 e Com. Prop. 32. Os afetos que acabamos de definir são a Alegria e a Tristeza acompanhadas da ideia de uma coisa externa como causa, seja por si, seja por acidente. Passo agora aos que são acompanhados da ideia de uma coisa interna como causa. XXV. A Autoestima (Acquiescentia in se ipso) é a Alegria, originada em que o homem contempla a sua própria potência de agir. XXVI. A Humildade (Humilitas) é a Tristeza originada em que o homem contempla sua impotência ou fraqueza. Explicação A Autoestima se opõe à Humildade, enquanto entendemos aquela como a Alegria que se origina em contemplarmos nossa potência de agir, mas enquanto entendemos por ela a Alegria concomitante à ideia de um feito que cremos ser produto de um livre decreto de nossa Mente, ela se opõe à Culpa, que definimos à seguir. XXVII. A Culpa (Poenitentiae) é a Tristeza concomitante a ideia de um feito que cremos ser produto de um livre decreto de nossa Mente. Explicação Mostramos as causa destes afetos em Com. Prop. 31, Prop. 53, 54, 55, juntamente com seu Com. Sobre o livre decreto da Mente, vide Com. Prop. 35 P II. Devo assinalar que não é estranho que a Tristeza se siga de todos os atos comummente chamados de viciosos e que a Alegria se siga dos atos ditos retos. Pois o que dissemos acima pode ser entendido facilmente a partir da educação. São sem dúvida os pais, reprovando os primeiros e repreendendo frequentemente os filhos, e ao contrário recomendando os segundos e elogiando-os, que fazem com que a Tristeza seja suscitada por aqueles e a Alegria por estes. E isto é comprovado pela experiência, pois o costume e a Religião não são o mesmo para todos. Pois o que é sagrado para uns é profano para outros e que é honesto para uns é torpe para outros. Portanto, cada um se glorifica ou se culpa de acordo com a sua educação. XXVIII. A Soberba (Superbia) é pensar de si, por Amor, mais do que é justo. Explicação Assim, a diferença entre a Soberba e a Sobre-estima é a que esta se refere a um objeto externo e aquela ao próprio homem que pensa de si mais do que é justo. E assim como a Sobre-estima é um efeito ou propriedade do Amor, a Soberba é [um efeito ou propriedade] do Amor-Próprio e pode ser definida, portanto, como o Amor de si (Amor sui) ou a Autoestima, quando afeta o homem de maneira que ele pensa de si mais do que é justo (vide Com. Prop. 26). Não há contrário para este afeto, pois ninguém pensa menos de si menos do que é justo por ódio de si. Mais do que isto, ninguém pensa de si menos do que é justo quando imagina que não pode isto ou aquilo. Pois tudo o que o homem imagina não poder, ele imagina necessariamente e esta própria imaginação o dispõe de forma tal que ele realmente não pode fazer o que imagina não poder. Assim, enquanto imagina não poder fazer isto ou aquilo, ele está sendo determinado a não agir e, consequentemente, é impossível para ele fazê-lo. Na verdade, porém, se atentarmos apenas à opinião, podemos conceber que um homem pense de si menos do que o que é justo, pois pode ocorrer que alguém, ao contemplar com tristeza a sua fraqueza, se imagine menosprezado por todos, mesmo quando os outros sequer pensem em menosprezá-lo. Além disso, o homem pode pensar de si menos do que é justo se nega de si no presente algo relativo a um tempo futuro do qual está incerto, como quando nega que possa conceber algo que seja certo, que não possa desejar ou fazer nada que não seja vicioso, covarde, etc. Também podemos dizer que alguém pensa de si menos do que é justo quando vemos que alguém não ousa, por medo excessivo da vergonha, o que outros iguais a si ousam. Portanto, podemos opor a Soberba a este afeto que chamarei de Abjeção, pois da mesma forma como a Soberba se origina da Autoestima, a Abjeção se origina da Humildade. Segue-se a sua definição. XXIX. A Abjeção (Abjectio) é pensar de si, por Tristeza, menos do que é justo. Explicação Temos o hábito de opor com frequência a Soberba à Humildade, mas isso é porque prestamos atenção a seus efeitos e não a sua natureza. Chamamos habitualmente de orgulhoso (superbum) quem se glorifica demais (vide Com. Prop. 30), quem só fala de suas virtudes e dos vícios dos outros, que quer ser o preferido de todos e se apresenta com a gravidade e o aparato característico dos que estão muito acima dele mesmo. Ao contrário, chamamos de humilde aquele que ruboriza com frequência, que reconhece seus vícios e fala das virtudes dos outros, que cede a todos, anda cabisbaixo e é negligente no vestir. Mas estes afetos de Humildade e Abjeção são raríssimos, pois a natureza humana, considerada em si se esforça, tanto quanto pode, por negá-los (vide Prop. 13 e 54). Por isso, aqueles que acreditamos serem abjetos ou humildes são, no mais das vezes, ambiciosos e invejosos. XXX. A Glória (Gloria) é a Alegria concomitante à ideia de alguma ação nossa que imaginamos ser elogiada pelos outros. XXXI. A Vergonha (Pudor) é a Tristeza concomitante à ideia de alguma ação nossa que imaginamos ser censurada pelos outros. Explicação Ver a este respeito o Comentário da Proposição 30. Mas cabe assinalar a diferença entre a Vergonha (Pudor) e o Pudor (Verecundiam). A Vergonha é a Tristeza que se segue de um fato de que temos vergonha e o pudor é o Medo ou Temor da Vergonha, pelo qual o homem se contém em cometer algo de torpe. O Pudor se opõe habitualmente ao Despudor (Impudentia), que não é realmente um afeto, como mostrareis em seu lugar. Porém os nomes dos afetos (como já assinalei) dizem respeito mais ao seu uso do que a sua natureza. Concluí assim com os afetos de Alegria e Tristeza, que tinha me proposto em explicar. Passo agora aos que relaciono ao Desejo. XXXII. O Querer Insatisfeito (Desiderium) é o Desejo ou Apetite de possuir uma coisa que é favorecido pela memória de tal coisa e limitado pela memória de outras coisas que limitam a existência da coisa apetecida. Explicação Quando nos recordamos de uma coisa, já o dissemos várias vezes, isso nos dispõe a contemplá-la com o mesmo afeto como se ela estivesse presente. Mas quando estamos acordados, esta disposição ou esforço é inibida pela imaginação das coisas que excluem a existência daquilo que recordamos. Mas quando recordamos uma coisa que nos afeta de um tipo de afeto de Alegria, isto faz com que nos esforcemos por contemplá-la como presente com o mesmo afeto de Alegria. Mas este esforço é imediatamente inibido pela memória das coisas que excluem a existência [da coisa]. Donde o querer insatisfeito é na verdade uma Tristeza, que se opõe à alegria originada pela ausência da coisa que odiamos. Veja-se a respeito o Com. Prop. 47. Mas como o nome Querer Insatisfeito (Desiderium) parece dizer respeito ao Desejo, me refiro a este afeto entre os afetos do Desejo. XXXIII. A Emulação (Aemulatio) é o Desejo de uma coisa que é gerado em nós ao imaginarmos que os outros têm o mesmo Desejo. Explicação Diremos que imita, e não emula, o afeto do outro, quem foge quando os outros fogem, ou quem teme ao ver que os outros temem, ou quem, ao ver que alguém queimou a mão, contrai a mão e move o corpo como se tivesse queimado a própria mão. Não que tenhamos descoberto ser a causa da imitação diferente da causa da emulação, mas apenas porque o uso fez com que chamemos de emulação somente a imitação do que julgamos honesto, útil ou agradável. Sobre a causa da Emulação, ver a Proposição 27 e seu Comentário. Para a razão que leva a que este afeto esteja comummente unido à Inveja, veja a Proposição 32 e seu Comentário. XXXIV. O Reconhecimento (Gratia) ou Gratidão (Gratitudo) é o Desejo ou afã do Amor, em se esforçar por fazer o bem a quem nos fez o bem por Amor. Vide Prop. 39 e o Com. Prop. 41. XXXV. A Benevolência (Benevolentia) é o Desejo de fazer o bem para quem temos compaixão. Vide Com. Prop. 27. XXXVI. A Ira (Ira) é o Desejo, incitado pelo Ódio, de infligir o mal a quem odiamos. Vide Prop. 39. XXXVII. Vingança (Vindicta) é o Desejo que, por Ódio recíproco, nos leva a infligir o mal a quem, movido de afeto semelhante, nos infligiu um dano. Vide Res. 2 Prop. 40 e seu Com. XXXVIII. A Crueldade (Crudelitas), ou Selvageria (Saevitia) é o Desejo que leva alguém a infligir o mal a quem amamos ou a quem temos compaixão. Explicação A Crueldade se opõe à Clemência (Clementia), que não é uma paixão, mas uma potência da alma pela qual o homem modera a ira e a vingança. XXXIX. O Temor (Timor) é o Desejo de evitar, por meio de um mal menor, uma mal maior que tememos. Vide Prop. 39. XL. Audácia (Audacia) é o Desejo que leva alguém a fazer algo correndo um perigo que seus iguais teriam medo de suportar. XLI. A Covardia (Pusillanimitas) se diz de alguém cujo Desejo é limitado pelo temor de um perigo que seus iguais ousam suportar. Explicação A Covardia é, portanto, o Medo de um mal que a maioria habitualmente não teme e, por esta razão, não o relaciono aos afetos do Desejo. Se quis explicá-la aqui é porque, enquanto atentamos para o Desejo, ela se opõe realmente à Audácia. XLII. A Consternação (Consternatio) se diz daquele cujo Desejo de evitar o mal é limitado pela admiração do mal que ele teme. Explicação A Consternação é, portanto, uma espécie de Covardia. Mas a Consternação se origina de um duplo Temor e pode ser definida com maior comodidade como o Medo que cerceia o homem estupefato ou com flutuação [da alma] de modo que ele não pode afastar um mal. Digo estupefato, enquanto entendemos que seu Desejo de remover o mal é limitado pela admiração, e digo com flutuação da alma, enquanto concebemos que este Desejo também é limitado pelo Temor de outro mal que o tortura igualmente. E disso resulta que ele não sabe qual dos dois afastar. Ver a este respeito Com. Prop. 39 e Com. Prop. 52. Quanto à Covardia e a Audácia, vide Com. Prop. 51. XLIII. A Cortesia (Humanitas) ou Modéstia (Modéstia) é o Desejo de fazer o que agrada aos homens e se omitir em fazer o que os desagrada. XLIV. A Ambição (Ambitio) é o desejo imoderado de glória. Explicação A Ambição é um Desejo que favorece ou corrobora todos os afetos (pela Prop. 27 e 31) e, portanto, este afeto dificilmente pode ser superado. Pois quando um homem é possuído por um Desejo, ele também é necessariamente possuído por ela. Mesmo o melhor, diz Cícero, é conduzido pela glória. Até os filósofos assinam o nome nos livros que escrevem sobre o desprezo da glória, etc. XLV. A Gula (Luxuria) é o Desejo ou Amor imoderado de comer. XLVI. A Embriaguez (Ebrietas) é o Desejo ou Amor imoderado de beber. XLVII. A Avareza (Avaritia) é o Desejo ou Amor imoderado de riquezas. XLVIII. A Lubricidade (Libido) é o Desejo ou Amor de unir os corpos. Explicação Costuma chamar-se este Desejo de união sexual de Lubricidade quer ele seja moderado ou não. Além disso, estes cinco últimos afetos (como mencionei no Com. Prop. 56) não têm contrário. Pois a Modéstia é uma espécie de Ambição (vide a respeito o Com. Prop. 29) e a Temperança, a Sobriedade e a Castidade indicam a potência da Mente e não paixões, como já observei. E embora seja possível que um homem avaro, ambicioso ou tímido se abstenha de comida, bebida ou coito, a Avareza, a Ambição e o Temor não são contrários à gula, à embriaguez e à lubricidade. Pois quem é avaro normalmente deseja a comida e a bebida alheias. Já o Ambicioso, conquanto espere não ser descoberto, não se moderará em nada e se viver entre bêbados e lascivos, será especialmente propenso a estes vícios, justamente por ser ambicioso. O Medroso, finalmente, faz o que não quer, e permanece avaro mesmo que seja capaz de jogar ao mar suas riquezas para evitar a morte, do mesmo modo como o lascivo não deixa de ser lascivo só porque está triste de não poder satisfazer-se. E em geral tais afetos não dizem respeito tanto ao ato de comer, beber, etc. quanto ao Apetite e ao Amor. Por conseguinte, só podemos opor tais afetos à Generosidade e à Firmeza, dos quais falaremos na sequência. Passo em silêncio sobre as definições de Ciúme de outras flutuações da alma que se originam da composição dos afetos que já definimos, mesmo porque muitos sequer têm nomes, o que mostra que para o uso prático é suficiente conhecê-los de forma geral. De resto, das Definições de afetos que explicamos está claro que todos se originam do Desejo, da Alegria ou da Tristeza, ou melhor, que eles não podem ser outra coisa que não estes três, que costumamos chamar de nomes variados, de acordo com suas relações diversas e denominações extrínsecas. Se agora quisermos atentar a estes três afetos primitivos e ao que dissemos acima sobre a natureza da Mente, podemos definir os afetos enquanto se referem apenas à natureza da Mente. DEFINIÇÃO GERAL DOS AFETOS O Afeto, que chamamos de Paixão da alma, é uma ideia confusa pela qual a Mente afirma uma força de existir, do Corpo ou de suas partes, maior ou menor que antes e que, uma vez dada, pode determinar a própria Mente a pensar isto ou aquilo. Explicação Digo primeiramente que o Afeto ou paixão é uma ideia confusa. Pois mostramos que a Mente padece (vide a Prop. 3) quando tem ideias inadequadas ou confusas. Digo também, pela qual a Mente afirma uma força de existir do Corpo ou de suas partes maior ou menor. Todas as ideias de corpos que temos, indicam mais o estado atual de nosso Corpo (pelo Res. 2 Prop. 16 P II) que a natureza dos corpos externos. Mas [a ideia] que constitui a forma do afeto, deve indicar ou exprimir o estado do Corpo ou de alguma de suas partes, enquanto aumenta ou diminui, ajuda ou limita a potência de agir ou de existir. Mas note-se que quando digo com uma força de existir maior ou menor que antes, não entendo que Mente compare o estado presente do Corpo ao pretérito, mas que a ideia que constitui a forma do afeto, afirma do corpo algo que envolve mais ou menos realidade do que antes. E, como a essência da Mente consiste em (pelas Props. 11 e 13 da Parte II) afirmar a existência atual do Corpo, e como entendemos por perfeição a própria existência de uma coisa, segue-se que a Mente passa a uma perfeição maior ou menor quando acontece de afirmar, do corpo ou de uma de suas partes, algo que envolve maior ou menor realidade do que antes. Quando disse mais acima que a Mente aumenta ou diminui a potência de pensar, quis entender apenas que a Mente formou uma ideia de seu Corpo, ou de uma de suas partes, que exprime mais ou menos realidade do que antes tinha afirmado do Corpo. Pois a excelência das ideias e a potência atual de pensar são estimadas a partir excelência dos objetos. Acrescentei, finalmente, que, uma vez dada, pode determinar a própria Mente a pensar isto ou aquilo, para exprimir, além da natureza da Alegria e da Tristeza, que já era explicada pela primeira parte da definição, também a natureza do Desejo. Quarta Parte Sobre a Servidão Humana, ou sobre a Força dos Afetos PREFÁCIO Chamo de Servidão a impotência humana em moderar ou limitar os afetos, pois o homem que está submetido aos afetos não depende de si, mas está sob o poder da fortuna, a ponto de frequentemente ser coagido a fazer o pior para si, mesmo vendo o melhor. Me proponho a demonstrar nesta Parte a causa de tal situação e também o que há de bom ou de mau nos afetos. Mas antes de começar, convém falar um pouco, como prefácio, sobre a perfeição e a imperfeição, o bem e o mal. Quem decidiu fazer algo e agiu até que a coisa estivesse feita por inteiro (perfecit), diz que a coisa está perfeita (perfectam) e diz o mesmo quem sabe, ou acredita saber, o que o Autor tinha em mente e qual o objetivo da obra. Por exemplo, se alguém vê uma obra (que suponho não estar completa) e sabe que o objetivo do autor era construir uma casa, dirá que a casa está imperfeita. Ao contrário, dirá que ela está perfeita se vê que a obra alcançou o fim que o autor tinha decidido. Mas se alguém vê uma obra sem nunca antes ter visto outra semelhante e se ignora o que o artífice tinha em mente, não pode saber se a obra está perfeita ou imperfeita. Esta parece ter sido a significação primeira de tais vocábulos. Porém, depois que os homens começaram a formar ideias universais de casas, edifícios, torres, etc., e começaram a preferir alguns modelos a outros, eles passaram a chamar de perfeito o que veem convir com a ideia universal que formaram da coisa. Ao contrário, [passaram a chamar de] imperfeito aquilo que veem convir menos com o com o seu modelo, ainda que, segundo a concepção do artífice, estivesse perfeitamente acabado. E não se vê outra razão para que as coisas naturais, que sem dúvida não foram feitas pela mão humana, sejam chamadas pelo vulgo de perfeitas ou imperfeitas. Pois os homens costumam formar ideias universais tanto das coisas naturais quanto das artificiais e as têm como modelos para as coisas. E eles creem que a natureza (que eles estimam agir somente com vistas a um fim) os vê e os propõe a si mesma modelos. Quando veem algo na natureza que convém menos com o conceito modelo que têm de uma coisa, creem que a natureza falhou ou pecou e que ela deixou imperfeita a coisa. Vemos assim que os homens se habituaram a chamar as coisas naturais de perfeitas ou imperfeitas mais por preconceito do que por verdadeiro conhecimento. Mostramos, de fato, no Apêndice da Primeira Parte, que a Natureza não age com vistas a um fim, pois o Ente eterno e infinito que chamamos de Deus ou Natureza age com a mesma necessidade com que existe. Com efeito, mostramos que é mesma a necessidade da natureza que ele existe e que age (Prop. 16. P I). A razão ou causa pela qual Deus ou a Natureza age e existe, é pois, uma só e mesma. Logo, assim como ele não existe com vistas a nenhum fim, não age com vistas a nenhum fim; assim como não tem nem princípio nem fim para existir, não tem nem princípio nem fim para agir. Mas o que se diz ser uma causa final é apenas o apetite humano, enquanto é considerado como princípio ou causa primária de uma coisa. Por exemplo, quando dizemos que a causa final desta ou daquela casa foi a habitação, entendemos apenas, na verdade, que um homem que imaginou uma vida doméstica cômoda, teve o apetite de construir uma casa. Donde a habitação, enquanto considerada como causa final é apenas um apetite singular, que é, na verdade, uma causa eficiente que só é considerada como causa primeira por que os homens normalmente ignoram as causas de seus apetites. Por outro lado, conto os ditos populares de que a natureza falha, peca, e produz coisas imperfeitas, entre as ficções que tratei no Apêndice da Parte I. Assim, a perfeição e a imperfeição são apenas modos de pensar ou noções que forjamos habitualmente ao comparar entre si indivíduos de mesma espécie ou gênero. É por isso que disse mais acima (Def. 6 P II), que por perfeição e realidade entendo a mesma coisa, pois temos o hábito de remeter todos os indivíduos da Natureza a um gênero, que chamamos de generalíssimo, isto é, à noção de ente, ao qual absolutamente todos os indivíduos da Natureza pertencem. Portanto, é quando remetemos todos os indivíduos da Natureza a tal gênero e encontramos mais entidade, ou mais realidade, em uns do que em outros, que dizemos que uns são mais perfeitos do que outros. Mas quando atribuímos a alguns deles algo envolvendo negatividade, término, finalidade impotência, então os chamamos de imperfeitos – e isto porque não afetam nossa Mente do mesmo modo que aqueles que chamamos perfeitos e não porque lhes falte algo do que é seu, ou porque a Natureza tenha pecado. Pois pertence à natureza de uma coisa apenas aquilo que se segue da necessidade da natureza da causa eficiente e tudo o que se segue necessariamente da natureza da causa eficiente ocorre necessariamente. No que diz respeito ao bem e ao mal, eles tampouco indicam algo de positivo nas coisas consideradas em si e são apenas modos de pensar ou noções que formamos ao compararmos as coisas entre si. Pois uma coisa pode ser ao mesmo tempo boa, má ou indiferente. Por exemplo, a música é boa para o Melancólico, má para o aflito e nem boa nem má para o surdo. Porém, embora as coisas sejam assim, nós ainda temos que preservar estes vocábulos. Pois como desejamos formar uma ideia de homem e, por assim dizer, ter em vista um modelo de natureza humana, é útil para nós conservar estes vocábulos no sentido em que disse. Assim, por bem entendo o que sabemos com certeza ser um meio para nos aproximarmos, cada vez mais, do modelo de natureza humana a que nos propomos. E por mal [entendo] aquilo que sabemos com certeza impedir que reproduzamos tal modelo. Donde dizemos que os homens são mais perfeitos ou menos perfeitos conforme se aproximem mais ou menos deste modelo. Pois é preciso notar que quando digo que alguém passa de uma perfeição menor a uma maior e vice-versa, não entendo que uma essência, ou forma, se transforme em outra (um cavalo, por exemplo, é destruído tanto quando se transforma em um homem como quando se transforma em um inseto), mas sim que concebemos que a própria potência de agir, enquanto entendida pela própria natureza [da coisa], aumenta ou diminui. Finalmente, por perfeição entendo em geral a realidade, como já disse, isto é, a própria essência de uma coisa, enquanto existe e opera de certo modo, sem ter em conta sua duração. Pois nenhuma coisa singular pode ser dita mais perfeita por perseverar na existência por mais tempo. Isto porque a duração das coisas não pode ser determinada por sua essência e a essência das coisas não envolve um tempo certo e determinado de existência, mas que uma coisa qualquer, seja ela mais ou menos perfeita, pode perseverar na existência com a mesma força que começou a existir, de sorte que nisso todas as coisas são iguais. DEFINIÇÕES I. Por bem entenderei o que sabemos com certeza nos ser útil. II. Por mal, por seu turno, [entendo] o que sabemos com certeza nos impedir de possuir um algo de bom. Sobre isto ver o final do Prefácio. III. Chamo as coisas singulares de contingentes, quando não encontramos em sua essência nada que ponha necessariamente sua existência nem nada que possa excluí-la. IV. Chamo as coisas singulares de possíveis, quando a partir do exame das causas que devem produzi-las, não sabemos se elas estão determinadas a produzi-las. No Com. 1 Prop. 33 P I, não fiz diferença entre possível e contingente, pois ali não era preciso distingui-los de forma acurada. V. Por afetos contrários entenderei, na sequência, os que arrastam o homem em diversas direções e que, mesmo sendo do mesmo gênero – como a gula e a avareza, que são espécies de amor – não são contrários por natureza, mas por acidente. VI. Expliquei o que entendo por afetos em relação a coisas futuras, presentes ou passadas nos Coms. 1 e 2 da Prop. 18 P III, que devem ser consultados. Mas cabe notar aqui, que não podemos imaginar distintamente as distâncias temporais, bem como as de lugar, para além de certo limite. Isto é, costumamos imaginar que todos os objetos distando de nós de mais de duzentos pés, ou cuja distância do lugar em que estamos superam o que conseguimos imaginar distintamente, parecem distar igualmente de nós, como se eles estivessem no mesmo plano. Também imaginamos que os objetos cujo tempo de existência se distancia do presente com um intervalo maior do que costumamos imaginar distintamente, estão igualmente distantes do presente e os referimos quase a um mesmo momento no tempo. VII. Por fim pelo qual fazemos uma coisa entendo o apetite. VIII. Por virtude e potência entendo a mesma coisa, isto é (pela Prop. 7 P III), que a virtude, quando se refere ao homem, é sua própria essência ou natureza, enquanto ela tem o poder de fazer coisas que só podem ser entendidas pelas leis de sua própria natureza. AXIOMA Não há na natureza nenhuma coisa singular que não exista outra, mais potente ou mais forte do que ela. Ao contrário, para qualquer coisa, há outra mais potente, pela qual ela pode ser destruída. PROPOSIÇÃO I Não há nada de positivo na ideia falsa que possa ser destruído pela presença do verdadeiro, enquanto verdadeiro. Demonstração A falsidade consiste apenas na privação do conhecimento que as ideias inadequadas envolvem (pela Prop. 35 P II), e estas não têm nada de positivo que possa fazer com sejam ditas falsas (pela Prop. 33 P II), mas por outro lado elas são verdadeiras, enquanto se referem a Deus (pela Prop. 32 P II). Assim, se aquilo que a de positivo na ideia falsa fosse destruído pela presença do verdadeiro, enquanto verdadeiro, uma ideia verdadeira seria destruída por ela mesma o que (pela Prop. 4 P III) é absurdo. Logo, não há nada de positivo, etc. QED (Quod erat demonstrandum) - Como se queria demonstrar. Comentário Esta Proposição pode ser entendida com maior clareza do Res. 2 Prop. 16 P II. Pois a imaginação é uma ideia que indica mais o estado presente do Corpo humano que a natureza dos corpos externos, porém não de forma distinta e sim confusa – e é por isso se diz que a Mente erra. Por exemplo, quando vemos o sol e imaginamos que ele dista de nós cerca de duzentos pés, falhamos apenas enquanto ignoramos a verdadeira distância. Uma vez conhecida a distância, o erro é destruído, porém não a imaginação, isto é, a ideia de Sol, cuja natureza só é explicada na medida em que nosso corpo é afetado por ele. Donde, ainda que saibamos a verdadeira distância do sol, ainda o imaginaremos como se estivesse próximo de nós. Pois dissemos, no Com. Prop. 35 PII, que a causa de imaginarmos o sol próximo a nós não está em ignorarmos a verdadeira distância, mas em que a Mente concebe o tamanho do sol conforme nosso Corpo é afetado por ele. Assim, quando os raios do sol incidem sobre a superfície da água e se refletem para nossos olhos, o imaginamos como se estivesse dentro d’água mesmo que saibamos qual a sua verdadeira localização. E o mesmo ocorre com as demais imaginações pelas quais a Mente falha – ainda que indiquem, ou um estado natural do Corpo, ou um aumento ou diminuição de sua potência de agir – pois elas não são contrárias à verdade, nem se desvanecem em sua presença. Acontece, certamente, que quando tememos erroneamente um mal, o temor desvanece quando ouvimos o anúncio da ideia verdadeira. Mas também acontece o contrário, quando tememos um mal que certamente virá e o temor se desvanece ao ouvirmos um falso anúncio. Portanto, as imaginações não desvanecem na presença do verdadeiro enquanto verdadeiro, mas porque ocorrem outras mais fortes que excluem a existência presente da coisa que imaginamos, como mostramos na Prop. 17. P II. PROPOSIÇÃO II Nós padecemos na medida em que somos uma parte da natureza que não pode ser concebida por si e sem as outras. Demonstração Dizemos que padecemos quando algo se origina em nós de que somos apenas causa parcial (pela Def. 2 P III), isto é (pela Def. 1 P III), algo que não pode ser deduzido apenas das leis de nossa natureza. Portanto, padecemos na medida em que somo uma parte da Natureza que não pode ser concebida sem as outras. QED PROPOSIÇÃO III A força com que o homem persevera na existência é limitada e é infinitamente superada pela potência das causas externas. Demonstração É evidente do Axioma acima. Pois dado um homem, há outro, digamos A, que é mais potente. Dado A, há outro, digamos B, que é mais potente que A, e assim ao infinito. Portanto, a potência de um homem é determinada por outras coisas e é superada infinitamente pela potência das causas externas. PROPOSIÇÃO IV Não pode ocorrer que o homem não seja parte da Natureza. Ele não pode sofrer apenas as mudanças que possam ser entendidas apenas de sua natureza e das quais ele é causa adequada. Demonstração A potência pela qual as coisas singulares, e consequentemente o homem, conservam seu ser é a própria potência de Deus ou da Natureza (pelo Res. Prop. 24 P I), não enquanto ela é infinita, mas enquanto ela pode ser explicada pela essência humana atual (pela Prop. 7 P III). Assim, a potência do homem, enquanto se explica por sua própria essência atual, é uma parte da potência infinita de Deus ou da Natureza, isto é (pela Prop. 34 P I), de sua essência. Isto era o primeiro ponto. Se fosse possível que o homem não padecesse de nenhuma mudança senão as que podem ser entendidas apenas de natureza de tal homem, seguir-se-ia (pelas Props. 4 e 6 P III) que ele não poderia morrer, mas deveria existir necessariamente. E isto deveria se seguir de uma causa cuja potência seria ou finita ou infinita: ou apenas da potência do homem, que poderia remover quaisquer as mudanças originadas de causas externas; ou da potência infinita da Natureza, pela qual seriam dirigidas todas as coisas singulares de forma que o homem não pudesse padecer de nenhuma mutação que não servisse à sua conservação. Mas a primeira [alternativa] (pela Prop. precedente, cuja demonstração é universal e pode ser aplicada a todas as coisas singulares) é absurda. Logo, se fosse possível que o homem só padecesse de mutações que pudessem ser entendidas apenas pela natureza deste homem e, consequentemente (como já mostramos), se ele existisse necessariamente, isto se seguiria da potência infinita de Deus e, portanto (pela Prop. 16 P I), da necessidade da natureza divina, enquanto considerada como afetada pela ideia de certo homem, deveria ser deduzida toda a ordem da Natureza, enquanto concebida seja sob o atributo Extensão, seja sob o atributo Pensamento. Mas disso se seguiria (pela Prop. 21 P I) que o homem seria infinito, o que (pela primeira parte desta demonstração) é absurdo. Assim, não é possível que o homem não sofra mudanças além das que ele é causa adequada. QED Resultado Disso se segue que o homem está sempre sujeito às paixões, que ele segue a ordem comum da Natureza e a obedece e se acomoda a ela na medida em que a natureza exige. PROPOSIÇÃO V A força, o crescimento e a perseverança no ser de qualquer paixão, não se definem pela potência pela qual nós nos esforçamos por perseverar no existir, mas pela potência das causas externas comparadas à nossa. Demonstração A essência das paixões não pode ser explicada apenas por nossa essência (pelas Defs. 1 e 2 P III), isto é (pela Prop. 7 P III) a potência das paixões não se define pela potência pela qual nos esforçamos em perseverar em nosso ser, mas (como é mostrado pela Prop. 16 P II) deve necessariamente ser definida pela potência das causas externas comparadas à nossa. QED PROPOSIÇÃO VI A força de uma paixão ou afeto pode superar as outras ações do homem, ou sua potência, de modo que o afeto permaneça firmemente aderido ao homem. Demonstração A força e o crescimento de uma paixão qualquer e sua perseverança no existir, se definem pela potência da causa externa comparada à nossa (pela Prop. precedente) e (pela Prop. 3) pode superar a potência do homem. QED PROPOSIÇÃO VII Um afeto só pode ser limitado ou destruído por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser limitado. Demonstração Um afeto, enquanto se refere à Mente, é uma ideia pela qual a Mente afirma uma força de existir maior ou menor de seu corpo (pela Definição Geral dos Afetos, que pode ser encontrada ao fim da Parte III). Portanto, quando a Mente é atormentada por algum afeto, o Corpo é afetado simultaneamente por uma afecção que aumenta ou diminui sua potência de agir. Em seguida, esta afecção do Corpo (pela Prop. 5) recebe sua força de perseverar em seu ser de sua própria causa, e esta só pode ser limitada ou destruída por uma causa corpórea (pela Prop. 6 P II) que afete o Corpo com uma afecção contrária (pela Prop 5 P III) e mais forte (pelo Axioma). Assim, a Mente será afetada (pela Prop. 12 P II) de uma ideia de afecção mais forte e contrária à primeira, isto é (pela Def. Ger. Afetos), a Mente será afetada de um afeto mais forte e contrário ao primeiro e que exclui ou destrói a existência do primeiro. Assim, um afeto só pode ser destruído, ou limitado, por um afeto contrário e mais forte. QED Resultado Um afeto, enquanto se refere à Mente, só pode ser limitado ou destruído, por uma ideia de uma afecção do Corpo contrária e mais forte do que a afecção de que padecemos. Pois o afeto de que padecemos só pode ser limitado ou destruído por um afeto mais forte e contrário (pela Prop. precedente), isto é (pela Def. Ger. Afetos), pela ideia de uma afecção do Corpo mais forte e contrária do que a afecção de que padecemos. PROPOSIÇÃO VIII O conhecimento do bem e do mal é apenas o afeto de Alegria ou Tristeza, enquanto temos consciência dele. Demonstração Chamamos de bem e de mal o que é respectivamente benéfico e maléfico para a conservação de nosso ser (pelas Defs. 1 e 2), isto é (pela Prop. 7 P III), aquilo que aumenta ou diminui, ajuda ou limita nossa potência de agir. Assim, quando (pelas definições de Alegria e Tristeza em Com. Prop. 11 P III) percebemos que alguma coisa nos afeta de Alegria ou de Tristeza, a chamamos de boa ou de má. Portanto, o conhecimento do bem e do mal é apenas a ideia de Alegria ou de Tristeza que se segue necessariamente ao próprio afeto de Alegria ou de Tristeza (pela Prop. 22 P II). Mas esta ideia está unida ao afeto do mesmo modo como a Mente está unida ao Corpo (pela Prop. 21 P II), isto é (como foi mostrado no Com. da referida Prop.), esta ideia não se distingue verdadeiramente do próprio afeto, ou (pela Def. Ger. Afetos) da ideia de uma afecção do corpo, senão no seu conceito. Logo, este conhecimento do bem e do mal é somente o próprio afeto, enquanto somos conscientes dele. QED PROPOSIÇÃO IX Um afeto, cuja causa imaginamos presente é mais forte do que um afeto cuja causa imaginamos não estar presente. Demonstração Uma imaginação é uma ideia pela qual a Mente contempla uma coisa como presente (vide sua Def. no Com. 17 P II) e que indica mais o estado do Corpo humano do que a natureza das coisas externas (pelo Res. 2 Prop. 16 P II). Assim, um afeto (pela Def. Ger. Afetos) é uma imaginação, na medida em que ela indica o estado do corpo. Mas uma imaginação (pela Prop. 17 P II) é mais intensa quando não imaginamos nada que exclua a presença da coisa externa. Logo, um afeto, cuja causa imaginamos presente, é mais forte, ou mais intenso, do que um afeto cuja causa imaginamos não estar presente. QED Comentário Quando disse acima na Proposição 18 da Parte III, que nós somos afetados pela imagem de uma coisa futura ou passada com o mesmo afeto que se a imaginássemos presente, adverti expressamente que isto é verdade somente enquanto atentamos à própria imagem da coisa. De fato, ela tem a mesma natureza, quer imaginemos a coisa como presente ou não. Porém, não neguei que esta imagem fica mais fraca quando contemplamos como presentes outras coisas que excluem a existência presente da coisa futura. E deixei de assinalá-lo, porque havia me proposto tratar da força dos afetos nesta Parte. Resultado A imagem de uma coisa futura ou passada, isto é, de uma coisa que contemplamos com relação ao tempo futuro ou passado, excluído o presente, é, tudo o mais igual, mais débil do que a imagem de uma coisa presente. Consequentemente, o afeto com relação a uma coisa futura ou passada é, tudo o mais igual, mais fraco do que o afeto com relação a uma coisa presente. PROPOSIÇÃO X Somos afetados mais intensamente com relação a uma coisa futura que imaginamos acontecerá em breve, do que se imaginássemos que o tempo de sua existência ainda está longe do presente. E a memória de uma coisa que imaginamos ter ocorrido há pouco nos afeta mais intensamente do que se imaginássemos que ela ocorreu há muito. Demonstração Quando imaginamos que uma coisa vai acontecer em breve, ou aconteceu há pouco, imaginamos algo que exclui menos a presença da coisa do que se imaginássemos seu tempo de existir estivesse como distante do presente, ou há muito ocorrido (como é evidente). Assim (pela Prop. precedente), somo afetados mais intensamente com relação a ela. QED Comentário Do que assinalamos na Definição 6, se segue que somos afetados com uma intensidade igualmente fraca por objetos que estão mais distantes do presente do que podemos determinar com a imaginação, mesmo se entendemos que tais objetos distam entre si de um longo intervalo de tempo. PROPOSIÇÃO XI Um afeto com relação a uma coisa que imaginamos como necessária é, tudo mais igual, mais intenso do que com relação a uma coisa possível, ou contingente, ou não necessária. Demonstração Quando imaginamos que uma é necessária, afirmamos sua existência e, ao contrário, negamos sua existência quando imaginamos que ela não é necessária (pelo Com. Prop. 33 P I). Portanto (pela Prop. 9), um afeto com relação a uma coisa necessária é, tudo mais igual, mais intenso do que com relação a uma coisa não necessária. QED PROPOSIÇÃO XII Um afeto com relação a uma coisa que sabemos não existir no presente, mas que imaginamos como possível, é, tudo mais igual, mais intenso do que com relação a uma coisa contingente. Demonstração Quando imaginamos uma coisa como contingente, não somos afetados da imagem de nenhuma outra coisa que ponha a existência da coisa (pela Def. 3). Mas, ao contrário (por hipótese) nós imaginamos certas [coisas] que excluem sua existência presente. Quando imaginamos que uma coisa é possível no futuro, imaginamos algo que põe sua existência (pela Def. 4), isto é (pela Prop. 18 P III), que acalenta a Esperança ou o Medo. Por isso um afeto com relação a uma coisa possível é mais veemente. QED Resultado Um afeto com relação a uma coisa que sabemos não existir no presente e que imaginamos como contingente é muito mais fraco do que se imaginássemos que a coisa está presente diante de nós. Demonstração Um afeto com relação a uma coisa que imaginamos existir no presente é mais intenso do que se a imaginássemos no futuro (pelo Res. Prop. 9) e muito mais veemente do que se imaginássemos do que se o imaginássemos em um tempo futuro muito distante do presente (pela Prop. 10). Portanto, o afeto com relação a uma coisa cujo tempo de existência está muito longe do presente é muitíssimo mais fraco do que se a imaginássemos presente e, no entanto (pela Prop. precedente), ele é mais intenso do que se imaginássemos a coisa como presente. Portanto, um afeto com relação a uma coisa contingente é muito mais fraco do que se a imaginássemos presente. QED PROPOSIÇÃO XIII Um afeto com relação a uma coisa contingente, que sabemos não existir no presente, é, tudo mais igual, mais fraco do que um afeto com relação a uma coisa passada. Demonstração Quando imaginamos uma coisa como contingente, não somos afetados por nenhuma imagem de outra coisa que ponha sua existência (pela Def. 3), mas, ao contrário, (segundo a hipótese) imaginamos algo, que exclui sua existência presente. No entanto, quando a imaginamos em um tempo passado, supõe-se que imaginamos algo que a traz à memória ou que inspira a imagem da coisa (vide Prop. 18, P II, com seu Comentário) e, portanto, a contemplamos como se estivesse presente (pelo Res. Prop. 17 P II). Assim (pela Prop. 9) o afeto com relação a uma coisa contingente, que sabemos não existir no presente, é, tudo mais igual, mais fraco do que um afeto com relação a uma coisa passada. QED PROPOSIÇÃO XIV O conhecimento verdadeiro do bem e do mal, enquanto verdadeiro, não pode limitar nenhum afeto, mas apenas enquanto for considerado apenas como um afeto. Demonstração Um afeto é uma ideia pela qual a Mente afirma uma força de existir do Corpo maior ou menor do que antes (pela Def. Ger. Afetos). Como (pela Prop. 1), nada pode haver nela de positivo que possa ser destruído pela presença do verdadeiro, então o conhecimento verdadeiro do bem e do mal não pode, enquanto verdadeiro, limitar nenhum afeto. Mas, enquanto ele é um afeto (vide Prop. 8), poderá limitar outro afeto, mas somente na medida em que (pela Prop. 7), for mais forte do que o afeto a ser limitado. QED PROPOSIÇÃO XV O desejo que provém do verdadeiro conhecimento do bem e do mal pode ser extinto ou refreado por muitos outros desejos que nascem das afecções por que estamos dominados. DEMONSTRAÇÃO Do verdadeiro conhecimento do bem e do mal, enquanto ele (pela proposição 8 desta parte) é afecção, nasce necessariamente o desejo (pela definição 1 das afecções), o qual é tanto maior quanto maior for a afecção de que nasce (pela proposição 37 da Parte III). Mas, porque este desejo (por hipótese) nasce do fato de compreendermos verdadeiramente alguma coisa, ele forma-se, portanto, em nós, enquanto agimos (pela proposição I da Parte III), e, consequentemente, deve ser compreendido só pela nossa essência (pela definição 2 da Parte III); e, por conseguinte (pela proposição 7 da Parte III), a sua força e crescimento devem definir-se só pela potência humana. Ora, os desejos que nascem das afecções, por que estamos dominados, são também tanto maiores quanto mais veementes forem estas afecções; e, por conseguinte, a sua força e crescimento (pela proposição 5 desta parte) devem ser definidos pela potência das causas externas, a qual, se se comparar com a nossa, ultrapassa indefinidamente a nossa potência (pela proposição 3 desta parte). E, por conseguinte, os desejos que nascem de semelhantes afecções podem ser mais veementes que aqueles que nascem do verdadeiro conhecimento do bem e do mal; e, por isso (pela proposição 7 desta parte), poderão refrear ou extinguir este mesmo. QED PROPOSIÇÃO XVI O desejo que nasce do conhecimento do bem e do mal, enquanto este conhecimento diz respeito ao futuro, pode ser refreado ou extinto muito facilmente pelo desejo das coisas que são presentemente agradáveis. DEMONSTRAÇÃO A afecção relativamente a uma coisa que imaginamos como futura é mais fraca que a relativa a uma coisa presente (pelo resultado da proposição 9 desta parte). Ora, o desejo que nasce do verdadeiro conhecimento do bem e do mal, ainda que este conhecimento verse acerca de coisas que são boas no presente, pode ser extinto ou refreado por algum desejo temerário (pela proposição precedente, cuja demonstração é universal). Logo, o desejo que nasce deste mesmo conhecimento, enquanto ele diz respeito ao futuro, poderá ser refreado ou extinto muito facilmente, etc. QED PROPOSIÇÃO XVII O desejo que nasce do verdadeiro conhecimento do bem e do mal, enquanto este versa acerca de coisas contingentes, pode ser refreado muito mais facilmente ainda pelo desejo das coisas que estão presentes. DEMONSTRAÇÃO Esta proposição demonstra-se do mesmo modo que a proposição precedente, por meio do resultado da proposição 12 desta parte. COMENTÁRIO Creio ter mostrado, pelo que precede, a causa por que os homens são mais influencia dos pela opinião do que pela verdadeira Razão, e por que o verdadeiro conhecimento do bem e do mal excita movimentos da alma e muitas vezes cede a todo gênero de concupiscência ; dai vem aquela palavra do Poeta: Vejo o melhor e aprovo-o, mas faço o pior. O mesmo parece ter pensado também o Eclesiastes, quando disse: Quem aumenta a ciência, aumenta a dor. Não digo isto com o fim de concluir da que vale mais ignorar do que saber, ou que não há nenhuma diferença entre o tolo e o inteligente no que diz respeito ao governo de suas afecções, mas, sim, porque é necessário conhecer tanto a potência como a impotência da nossa natureza, para podermos determinar o que pode a Razão no governo das afecções e o que não pode. E eu disse que, nesta parte, trataria só da impotência humana. É que decidi tratar separadamente da potência da Razão sobre as afecções. PROPOSIÇÃO XVIII O desejo que nasce da alegria, em igualdade de circunstâncias, é mais forte que o desejo que nasce da tristeza. DEMONSTRAÇÃO O desejo é a própria essência do homem (pela definição 1 das afecções), isto é (pela proposição 7 da Parte III), um esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar no seu ser. Por isso, o desejo, que nasce da alegria, ê favorecido ou aumentado pela própria afecção de alegria (pela definição de alegria; vê-la no comentário da proposição 11 da Parte III); inversamente, a que nasce da tristeza é diminuída ou refreada pela própria afecção de tristeza (pelo mesmo comentário); e, por conseguinte, a força do desejo que nasce da alegria deve ser definida pela potência humana e ao mesmo tempo pela potência da causa externa; mas a que nasce da tristeza deve ser definida só pela potência humana; portanto, o primeiro é mais forte que o segundo. QED COMENTÁRIO Expliquei por estas poucas proposições as causas da impotência e da inconstância humanas, e a razão por que os homens não observam os preceitos da Razão. Resta agora mostrar o que é que a Razão nos prescreve e quais as afecções que estão de acordo com as regras da Razão humana; quais as que, pelo contrário, lhe são opostas. Mas, antes de começar a demonstrar estas coisas, segundo a ordem prolixa dos geômetras, que fizemos nossa, convém explicar aqui, primeiro, brevemente, os próprios ditames da Razão, a fim de cada um perceber mais facilmente o que eu penso. Uma vez que a Razão não pede nada que seja contra a Natureza, ela pede, por conseguinte, que cada um se ame a si mesmo; procure o que lhe é útil, mas o que lhe é útil de verdade; deseje tudo o que conduz, de fato, o homem a uma maior perfeição; e, de uma maneira geral, que cada um se esforce por conservar o seu ser, tanto quanto lhe é possível. Isto é tão necessariamente verdadeiro como o todo ser maior que a sua parte (ver proposição 4 da Parte III). Depois, visto que a virtude (pela definição 8 desta parte) não é outra coisa senão agir segundo as leis da sua própria natureza, e que ninguém se esforça por conservar o seu ser (pela proposição 7 da Parte III), a não ser segundo as leis da sua própria natureza -segue-se daí: Primeiro, que o fundamento da virtude é o próprio esforço por conservar o próprio ser, e que a felicidade consiste em o homem poder conservar o seu ser. Em segundo lugar, segue-se que a virtude deve ser desejada por si mesma, e que não existe nada de preferível a ela ou que nos seja mais útil, por causa do qual ela deveria ser desejada. Segue-se, finalmente, em terceiro lugar, que aqueles que se suicidam são impotentes de espírito e completamente subjugados por causas externas, em oposição à sua natureza. Além disso, pelo postulado 4 da Parte II, segue-se que não pode nunca dar-se o caso de não termos necessidade de nada fora de nós para conservar o nosso ser, e de vivermos de maneira que não tenhamos nenhum comércio com as coisas que estão fora de nós. Se, por outro lado, considerarmos a nossa alma, por certo que a nossa inteligência seria mais imperfeita se a alma fosse única e não entendesse nada além dela mesma. Há, portanto, fora de nós muitas coisas que nos são úteis e que, por isso, devem ser desejadas. Entre elas não podemos conceber nenhumas preferíveis às que estão inteiramente de acordo com a nossa natureza. Com efeito, se, por exemplo, dois indivíduos, absolutamente da mesma natureza, se unem um ao outro, formam um indivíduo duas vezes mais poderoso que cada um deles separadamente. Portanto, nada mais útil ao homem que o homem. Os homens — digo — não podem desejar nada mais vantajoso para conservar o seu ser do que estarem todos de tal maneira de acordo em tudo que as almas e os corpos de todos formem como que uma só alma e um só corpo, e que todos, em conjunto, na medida das suas possibilidades, se esforcem por conservar o seu ser; e que todos, em conjunto, procurem a utilidade comum de todos. Daqui se segue que os homens, que se governam pela Razão, isto é, os homens que procuram o que lhes é útil sob a direção da Razão, não desejam nada para si que não desejem para os outros homens, e, por conseguinte, eles são justos, fiéis e honestos. São estes os ditames da Razão, que eu me tinha proposto mostrar aqui, em poucas palavras, antes de começar a demonstrá-los numa ordem mais completa. Fi-lo na intenção de, se fosse possível, concilia r a atenção dos que creem que este princípio, a saber: cada um é obrigado a procurar o que lhe é útil, é o fundamento da impiedade e não da virtude e da piedade. Depois, portanto, de ter demonstrado brevemente que as coisas se passam de maneira inversa, continuo a demonstrar a mesma coisa pela mesma via por que avançamos até aqui. PROPOSIÇÃO XIX Cada um deseja ou tem aversão necessariamente, pelas leis da sua natureza, àquilo que julga ser bom ou mau. DEMONSTRAÇÃO O conhecimento do bem e do mal é (pela proposição 8 desta parte) a própria afecção de alegria ou de tristeza, enquanto dela temos consciência ; e, por conseguinte (pela proposição 28 da Parte III), cada um deseja necessariamente o que julga ser bom, e, inversamente, tem aversão ao que julga ser mau. Mas este apetite não é outra coisa senão a própria essência ou natureza do homem (pela definição de apetite — vê-la no comentário da proposição 9 da Parte III — e pela definição das afecções). Logo, cada um deseja ou tem aversão necessariamente segundo as leis da sua natureza ao que, etc. QED PROPOSIÇÃO XX Quanto mais cada um se esforça e pode procurar o que lhe é útil, isto é, conservar o seu ser, tanto mais é dotado de virtude; e, inversamente, quanto mais cada um omite conservar o que lhe é útil, isto é, conservar o seu ser, tanto mais é impotente. DEMONSTRAÇÃO A virtude é a própria potência humana que é definida só pela essência do homem (pela definição 8 desta parte), isto é (pela proposição 7 da Parte III), que se define só pelo esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar no seu ser. Logo, quanto mais cada um se esforçar por conservar o seu ser, tanto mais é dotado de virtude, e, consequentemente (pelas proposições 4 e 6 da Parte III), quanto mais alguém omite conservar o seu ser tanto mais é impotente. QED COMENTÁRIO Ninguém, portanto, que não seja vencido por causas externas e contrárias à sua natureza omite desejar o que lhe é útil, ou seja, conservar o seu ser. Ninguém — digo — por necessidade da sua natureza, mas sim coagido por causas externas, tem aversão aos alimentos ou se suicida — o que pode acontecer de muitos modos. Com efeito, alguém suicida-se, coagido por outro, que lhe torce a mão, na qual tinha por acaso tomado uma espada, e obriga-o a dirigir a espada contra o próprio coração; ou porque, por ordem do tirano, como Sêneca, é obrigado a abrir as vela s, isto é, porque ele deseja evitar, por um mal menor, um mal maior; ou, finalmente, porque causas exteriores ocultas dispõem a sua imaginação e afetam o seu corpo de tal maneira que este reveste uma outra natureza contrária à primeira e cuja ideia não pode existir na alma (pela proposição 10 da Parte III). Mas, que o homem se esforce por necessidade da sua natureza, por não existir ou por se mudar numa outra forma, é tão impossível como que alguma coisa seja produzida do nada, como cada um pode ver com um pouco de reflexão. PROPOSIÇÃO XXI Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e viver bem que não deseje ao mesmo tempo ser, agir e viver, isto é, existir em ato. DEMONSTRAÇÃO A demonstração desta proposição, ou, antes, a própria coisa, é evidente de per si e também pela definição de desejo. Com efeito, o desejo (pela definição 1 das afecções) de viver felizmente, ou seja, bem, de agir, etc.., é a própria essência do homem, isto é (pela proposição 7 da Parte III), o esforço pelo qual cada um se esforça por conservar o seu ser. Logo, ninguém pode desejar, etc. QED PROPOSIÇÃOXXII Não se pode conceber nenhuma virtude anterior a esta (isto é, ao esforço para se conservar a si mesmo). DEMONSTRAÇÃO O esforço para se conservar a si mesma é a própria essência da coisa (pela proposição 7 da Parte III). Se, portanto, pudesse conceber-se alguma virtude anterior a esta, isto é, a este esforço, conceber-se-la, por consequência (pela definição 8 desta parte), a essência da coisa anterior à própria coisa, o que é absurdo (como é evidente). Logo, nenhuma virtude, etc. QED RESULTADO O esforço para se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude. Com efeito, não se pode conceber nenhum outro princípio anterior a este (pela proposição precedente) e, sem ele (pela proposição 21 desta parte), não se pode conceber nenhuma virtude. PROPOSIÇÃO XXIII O homem, enquanto é determinado a fazer alguma coisa pelo fato de ter ideias inadequadas, não se pode dizer absolutamente que age por virtude; mas, sim, somente enquanto é determinado pelo fato de ter um conhecimento. DEMONSTRAÇÃO Na medida em que o homem é determinado a agir pelo fato de ter ideias inadequadas, ele sofre [é passivo] (pela proposição 1 da Parte III), isto é (pelas definições 1 e 2 da Parte III), faz alguma coisa que não pode ser percebida só pela sua essência, isto é (pela definição 8 desta parte), que não resulta da sua própria virtude. Mas, na medida em que é determinado a fazer alguma coisa pelo fato de ter um conhecimento, nessa medida ele age (pela mesma proposição 1 da Parte III), isto é (pela definição 2 da Parte III), faz alguma coisa que é percebida só pela sua essência, por outras palavras (pela definição 8 desta parte), que resulta adequadamente da sua própria virtude. QED PROPOSIÇÃO XXIV Agir absolutamente por virtude não é, em nós, outra coisa que agir, viver, conservar o seu ser (estas três coisas significam o mesmo) sob a direção da Razão, segundo o princípio da procura da própria utilidade. DEMONSTRAÇÃO Agir absolutamente por virtude não é outra coisa (pela definição 8 desta parte) que agir segundo as leis da própria natureza. Mas nós agimos na medida somente em que conhecemos (pela proposição 3 da Parte III). Logo, agir por virtude não é outra coisa, em nós, que agir, viver, conservar o seu ser sob a direção da Razão, e isto (pelo resultado da proposição 22 desta parte) segundo o princípio da procura da sua utilidade. QED PROPOSIÇÃO XXV Ninguém se esforça por conservar o seu ser por causa de outra coisa. DEMONSTRAÇÃO O esforço, pelo qual cada coisa se esforça por perseverar no ser, é definido só pela essência dessa mesma coisa (pela proposição 7 da Parte III); e, só desta essência, suposta dada, e não da essência de uma outra coisa, se segue necessariamente (pela proposição 6 da Parte III) que cada um se esforça por conservar o seu ser. Esta proposição é, aliás, evidente pelo resultado da proposição 22 desta parte. É que, se o homem se esforçasse por conservar o seu ser por causa de outra coisa, então essa coisa seria o primeiro fundamento da virtude (como é evidente), o que é absurdo (pelo resultado supracitado). Logo, ninguém se esforça, etc. QED PROPOSIÇÃO XXVI Tudo aquilo por que nos esforçamos pela Razão não é outra coisa que conhecer; e a alma, na medida em que usa da Razão, não julga que nenhuma outra coisa lhe seja útil, senão aquela que conduz ao conhecimento. DEMONSTRAÇÃO O esforço por se conservar não é senão a essência da própria coisa (pela proposição 7 da Parte III), a qual, na medida em que existe tal como é, é concebida como tendo força para perseverar na existência (pela proposição 6 da Parte III), e para fazer aquilo que resulta necessariamente da sua natureza dada (ver definição de apetite no comentário da proposição 9 da Parte III). Mas a essência da Razão não é outra coisa que a nossa alma, enquanto conhece clara e distintamente (ver a sua definição no comentário da proposição 40 da Parte II). Logo (pela proposição 40 da Parte II), tudo aquilo por que nos esforçamos pela Razão não é outra coisa que conhecer. Depois, visto que este esforço da alma, pelo qual a alma, enquanto raciocina, se esforça por conservar o seu ser, não é outra coisa que compreender (pela primeira parte desta parte); este esforço por compreender é, portanto (pelo resultado da proposição 22 desta parte), o primeiro e único fundamento da virtude; e não é em vista de um fim qualquer que nós nos esforçaremos por conhecer as coisas (pela proposição 25 desta parte); mas, pelo contrário, a alma, enquanto raciocina, não poderá conceber nada como bom para si, senão o que conduz ao conhecimento (pela definição 1 desta parte). QED PROPOSIÇÃO XXVII Não sabemos ao certo que nada seja bom ou mau, a não ser aquilo que nos leva verdadeiramente a compreender, ou que pode impedir que compreendamos. DEMONSTRAÇÃO A alma, enquanto raciocina, não deseja outra coisa que conhecer, nem julga que nada lhe seja útil a não ser aquilo que nos leva a compreender (pela proposição precedente). Mas a alma (pelas proposições 41 e 43 da Parte II; ver também o seu comentário) não tem a certeza das coisas, a não ser enquanto tem ideias adequadas, por outras palavras (o que é idêntico em virtude do comentário da proposição 40 da Parte II), enquanto raciocina. Logo, não sabemos ao certo que nada seja bom, a não ser aquilo que nos leva verdadeiramente a compreender; e, inversamente, que nada seja mau, senão o que pode impedir que compreendamos. QED PROPOSIÇÃO XXVIII O bem supremo da alma é o conhecimento de Deus, e a suprema virtude da alma é conhecer a Deus. DEMONSTRAÇÃO A coisa suprema que a alma pode conhecer é Deus, isto é (pela definição 6 da Parte I), o Ente absolutamente infinito, e sem o qual (pela proposição 15 da Parte I) nada pode existir nem ser concebido; e, por conseguinte (pelas proposições 26 e 27 desta parte), o que supremamente é útil à alma, ou seja (pela definição 1 desta parte), o seu bem supremo, é o conhecimento de Deus. Além disso, a alma age somente na medida em que compreende (pelas proposições 1 e 3 da Parte III), e somente na mesma medida (pela proposição 23 desta parte) pode dizer-se absolutamente que age por virtude. O conhecer é, portanto, a virtude absoluta da alma. Mas a coisa suprema que a alma pode conhecer é Deus (como acabamos de demonstrar). Logo, a suprema virtude da alma é compreender Deus, ou seja, conhecê-lo. PROPOSIÇÃO XXIX Uma coisa singular qualquer, cuja natureza é inteiramente diferente da nossa, não pode favorecer nem entravar o nosso poder de agir, e, de maneira geral, nenhuma coisa pode ser boa ou má para nós, a não ser que tenha algo de comum conosco. DEMONSTRAÇÃO A potência de qualquer coisa singular e, consequentemente (pelo resultado da proposição 10 da Parte II), do homem, pela qual ele existe e opera, não é determinada senão por outra coisa singular (pela proposição 28 da Parte I), cuja natureza (pela proposição 6 da Parte II) deve ser compreendida pelo mesmo atributo por que é concebida a natureza humana. Portanto, a nossa potência de agir, de qualquer modo que ela seja concebida, pode ser determinada, e, consequentemente, favorecida ou entravada pela potência de outra coisa singular, que tem algo de comum conosco, e não pela potência de uma coisa, cuja natureza seja inteiramente diferente da nossa; e, visto que nós chamamos bem ou mal àquilo que é causa de alegria ou de tristeza (pela proposição 8 desta parte), isto é (pelo comentário da proposição 11 da Parte III), ao que aumenta ou diminui, favorece ou entrava a nossa potência de agir; então, uma coisa, cuja natureza é inteiramente diferente da nossa, não pode ser para nós nem boa nem má. QED PROPOSIÇÃO XXX Nenhuma coisa pode ser má pelo que tem de comum com a nossa natureza, mas é má para nós na medida em que nos é contrária. DEMONSTRAÇÃO Chamamos mal àquilo que é causa de tristeza (pela proposição 8 desta parte), isto é (pela sua definição; vê-la no comentário da proposição 11 da Parte III), àquilo que diminui ou entrava a nossa potência de agir. Se, portanto, alguma coisa fosse má para nós por aquilo que ela tem de comum conosco, essa coisa poderia, por consequência, diminuir ou entravar aquilo mesmo que ela tem de comum conosco, o que é absurdo (pela proposição 4 da Parte III). Logo, nenhuma coisa pode ser má para nós por aquilo que ela tem de comum conosco, mas, ao contrário, na medida em que é má (como já demonstramos), isto é, na medida em que pode diminuir ou entravar a nossa potência de agir, nessa mesma medida (pela proposição 5 da Parte III) é-nos contrária. QED PROPOSIÇÃO XXXI Na medida em que alguma coisa está de acordo com a nossa natureza, é necessariamente boa. DEMONSTRAÇÃO Com efeito, na medida em que alguma coisa está de acordo com a nossa natureza, não pode (pela proposição precedente) ser má. Logo, será necessariamente boa ou indiferente. Se se admite isso, a saber: que nem é boa nem má, então (pela definição 1) não resultaria da sua própria natureza nada que fosse útil à conservação da natureza dessa mesma coisa, mas isto é absurdo; logo, será necessariamente boa, na medida em que está de acordo com a nossa natureza. QED RESULTADO Daqui se segue que, quanto mais alguma coisa está de acordo com a nossa natureza, tanto mais útil ou melhor é; e, inversamente, quanto mais útil nos é alguma coisa, tanto mais está de acordo com a nossa natureza. E que, na medida em que não estiver de acordo com a nossa natureza, será necessariamente diferente da nossa natureza ou contrária a ela. Se é diferente, então (pela proposição 29 desta parte) não poderá ser nem boa nem má; se, porém, é contrária, será, por consequência, contrária à que está de acordo com a nossa natureza, isto é (pela proposição precedente), contrária ao bem, ou seja, má. Portanto, nada pode ser bom, senão enquanto está de acordo com a nossa natureza, e, por conseguinte, quanto mais alguma coisa está de acordo com a nossa natureza, tanto mais útil é, e inversamente. QED PROPOSIÇÃO XXXII Na medida em que os homens estão sujeitos às paixões, não se pode dizer que as suas naturezas concordam. DEMONSTRAÇÃO Quando se diz que as coisas concordam em natureza, compreende-se que concordam na potência (pela proposição 7 da Parte III), mas não na impotência, ou seja, na negação e, consequentemente (ver comentário da proposição 3 da Parte III), nem mesmo na paixão; por isso, não se pode dizer que os homens, enquanto sujeitos às paixões, concordem em natureza. QED COMENTÁRIO A coisa é ainda evidente por si mesma. De fato, aquele que diz que branco e preto concordam somente em que nem um nem outro são vermelhos afirma absolutamente que branco e preto não concordam em nada. Da mesma maneira, também, quem diz que pedra e homem concordam só em que ambos são finitos, impotentes ou que não existem por necessidade da sua natureza, ou, finalmente, que são indefinidamente superados pela potência das causas externas, esse afirma absolutamente que pedra e homem não concordam em nada. Com efeito, as coisas que concordam só na negação, por outras palavras, naquilo que não têm, não concordam na realidade em nada. PROPOSIÇÃO XXXIII Os homens podem diferir em natureza, na medida em que são dominados por afecções que são paixões; e, ainda nessa mesma medida, um só e o mesmo homem é variável e inconstante. DEMONSTRAÇÃO A natureza ou essência das afecções não pode explicar-se só pela nossa essência ou natureza (pelas definições 1 e 2 da Parte III); mas deve ser definida pela potência, isto é (pela proposição 7 da Parte III), pela natureza das causas externas em comparação com a nossa. Donde se segue que há tantas espécies de cada afecção quantas são as espécies de objetos pelos quais somos afetados (ver proposição 56 da Parte III); e que os homens são afetados de diversas maneiras por um só e mesmo objeto (pela proposição 51 da Parte III) e nesta mesma medida diferem em natureza; finalmente, que um só e o mesmo homem (pela mesma proposição 51 da Parte III) é afetado de maneiras diversas relativamente ao mesmo objeto, e nessa mesma medida é variável, etc. QED PROPOSIÇÃO XXXIV Na medida em que os homens são dominados pelas afecções, que são paixões, podem ser contrários uns aos outros. DEMONSTRAÇÃO Um homem, por exemplo Pedro, pode ser causa de Paulo ser contristado, em virtude de ter algo de semelhante a uma coisa que Paulo odeia (pela proposição 16 da Parte III); ou porque só Pedro é senhor de alguma coisa que o mesmo Paulo também ama (ver proposição 32 da Parte III e seu comentário), ou por outras causas (ver as principais no comentário da proposição 55 da Parte III), e, por conseguinte, daí virá que (pela definição 7 das afecções) Paulo tenha ódio a Pedro; e, consequentemente, sucederá facilmente (pela proposição 40 da Parte III e seu comentário) que Pedro nutra por Paulo um ódio recíproco; e, portanto (pela proposição 39 da Parte III), se esforcem por causar mal um ao outro, isto é (pela proposição 30 desta parte), por serem contrários um ao outro. Mas a afecção de tristeza é sempre paixão (pela proposição 59 da Parte III); logo, os homens, na medida em que são dominados pelas afecções que são paixões, podem ser contrários uns aos outros. QED COMENTÁRIO Disse que Paulo teria ódio a Pedro por imaginar que ele possui aquilo mesmo que o próprio Paulo também ama. Donde parece seguir-se, à primeira vista, que ambos, pelo fato de amarem a mesma coisa, e, consequentemente, pelo fato de concordarem em natureza, causarão dano um ao outro e, por conseguinte, se isto fosse verdade, seria m falsas as proposições 30 e 31 desta parte. Mas, se quisermos pesar a coisa numa balança justa, veremos que tudo isto será perfeitamente de acordo. Com efeito, ambos não são molestos um para com o outro, na medida em que concordam em natureza, isto é, na medida em que ambos amam a mesma coisa, mas na medida em que diferem um do outro. Na verdade, na medida em que ambos amam a mesma coisa, por isso mesmo o amor de ambos é alimentado (pela proposição 31 da Parte III), isto é (pela definição 6 das afecções), por isso mesmo a alegria de ambos é alimentada. Eis por que eles estão muito longe de serem molestes um para com o outro, na medida em que amam a mesma coisa e concordam em natureza. Mas a causa disto, como disse, não é outra que o fato de se supor que diferem em natureza. Supomos, com efeito, que Pedro tem a ideia de uma coisa amada já possuída, e que Paulo, pelo contrário, a ideia de uma coisa amada perdida. Donde resulta que este é afetado de tristeza, e aquele, ao contrário, de alegria, e nesta medida são contrários. Desta maneira, podemos mostrar facilmente que as outras causas de ódio dependem só do fato de os homens diferirem em natureza, e não daquilo em que estão de acordo. PROPOSIÇÃO XXXV Na medida em que os homens vivem sob a direção da Razão, só nessa medida eles concordam sempre necessariamente em natureza. DEMONSTRAÇÃO Na medida em que os homens são dominados por afecções que são paixões, podem ser diferentes em natureza (pela proposição 33 desta parte) e contrários uns aos outros (pela proposição precedente). Mas diz-se que os homens agem só na medida em que vivem sob a direção da Razão (pela proposição 3 da parte III) e, por conseguinte, tudo o que se segue da natureza humana, enquanto é definida pela Razão, deve ser compreendido (pela definição 2 da Parte III) só pela natureza humana, como pela sua causa próxima. Mas, visto que cada um deseja, pelas leis da sua natureza, aquilo que é bom e se esforça por afastar o que julga ser mau (pela proposição 19 desta parte), e como, além disso, aquilo que julgamos ser bom ou mau segundo os ditames da Razão é necessariamente bom ou mau (pela proposição 41 da Parte II); logo, os homens, só na medida em que vivem sob a direção da Razão, fazem necessariamente o que é necessariamente bom para a natureza humana e, consequentemente, para cada homem, isto é (pelo resultado da proposição 31 desta parte), aquilo que está de acordo com a natureza de cada homem; e, por conseguinte, os homens estão também sempre necessariamente de acordo, na medida em que vivem sob a direção da Razão. QED RESULTADO I Não existe nenhuma coisa singular na Natureza que seja mais útil ao homem do que o homem que vive sob a direção da Razão. Com efeito, o que é mais útil ao homem é o que está mais de acordo com a sua natureza (pelo resultado da proposição 31 desta parte), isto é (como é evidente), o homem. Mas o homem age absolutamente segundo as leis da sua natureza quando vive sob a direção da Razão (pela definição 2 da Parte III) e, só nessa medida, está sempre necessariamente de acordo com a natureza de um outro homem (pela proposição precedente); logo, não há, entre as coisas particulares, nada mais útil ao homem do que um homem, etc. QED RESULTADO II Quando cada homem procura, o mais possível, o que lhe é útil, é então que os homens são o mais possível úteis uns aos outros. Com efeito, quanto mais cada um procura o que lhe é útil e se esforça por se conservar, tanto mais é dotado de virtude (pela proposição 20 desta parte), por outras palavras, o que é equivalente (pela definição 8 desta parte), de tanto maior potência é dotado para agir segundo as leis da sua natureza, isto é (pela proposição 3 da Parte III), para viver sob a direção da Razão. Mas os homens estão, sobretudo, de acordo em natureza, quando vivem sob a direção da Razão (pela proposição precedente). Logo (pelo resultado precedente), os homens serão o mais possível úteis uns aos outros quando cada um procurar o mais possível aquilo que lhe é útil. QED COMENTÁRIO O que agora demonstramos atesta-o também, todos os dia s, a própria experiência, por tão numerosos e claros testemunhos, que anda na boca de quase toda gente o provérbio: o homem é um Deus para o homem. Todavia, raramente acontece que os homens vivam sob a direção da Razão, mas com eles as coisas passam-se de tal maneira que a maior parte das vezes são invejosos e molestos uns para com os outros. Não obstante, só com dificuldade podem levar vida solitária, de tal forma que a muitos agrada bastante a definição: o homem é um animal sociável; e, de fato, as coisas passam-se de tal maneira que da sociedade comum dos homens provêm muito mais vantagens que inconvenientes. Portanto, que os satíricos ridicularizem quanto quiserem as coisas humanas, detestem-nas os teólogos, louvem os melancólicos, quanto puderem, a vida grosseira e selvagem, e condenem os homens e admirem os animais, eles experimentarão, no entanto, que os homens, por mútuo auxílio, obtêm muito mais facilmente aquilo de que necessitam, e que não podem evitar os perigos que os ameaçam de todos os lados, a não ser pela união das forças. Eu passo em silêncio que é muito mais vantajoso e muito mais digno do nosso conhecimento contemplar as ações dos homens que as dos animais. Mas, sobre este assunto, falarei noutro lugar mais em pormenor. PROPOSIÇÃO XXXVI O bem supremo daqueles que seguem a virtude é comum a todos e todos podem igualmente alegrar-se com ele. DEMONSTRAÇÃO Agir por virtude é agir sob a direção da Razão (pela proposição 24 desta parte), e tudo o que nos esforçamos por fazer pela Razão é compreender (pela proposição 26 desta parte); e, por conseguinte (pela proposição 28 desta parte), o bem supremo daqueles que seguem a virtude é conhecer a Deus, isto é (pela proposição 47 da Parte II e seu comentário), um bem que é comum a todos os homens e que pode ser igualmente possuído por todos os homens, enquanto eles são da mesma natureza. QED COMENTÁRIO Se, porém, alguém perguntar: que é que sucederia se o bem supremo dos que seguem a virtude não fosse comum a todos; não se seguiria da, como atrás (ver proposição 34 desta parte), que os homens que vivem sob a direção da Razão, isto é (pela proposição 35 desta parte), que os homens, enquanto concordam em natureza, seria m contrários uns aos outros? — Que esse receba por resposta que não é por acidente, mas da própria natureza da Razão, que nasce o fato de o bem supremo do homem ser comum a todos. E isto porque se deduz da própria essência humana, enquanto é definida pela Razão; e porque o homem não poderia existir nem ser concebido, se não tivesse o poder de se alegrar com este bem supremo. Pertence, com efeito, à essência da alma humana ter um conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus. PROPOSIÇÃO XXXVII O bem que cada um dos que seguem a virtude deseja para si, desejá-lo-á também para os outros homens, e tanto mais quanto maior for o conhecimento que tem de Deus. DEMONSTRAÇÃO Os homens, na medida em que vivem sob a direção da Razão, são utilíssimos ao homem (pelo resultado 1 da proposição 35 desta parte); e, por conseguinte (pela proposição 19 desta parte), esforçar-nos-emos necessariamente, sob a direção da Razão, por fazer que os homens vivam sob a direção da Razão. Mas o bem que cada um que vive segundo os ditames da Razão, isto é (pela proposição 24 desta parte), cada um que segue a virtude deseja para si, é compreender (pela proposição 26 desta parte); logo, o bem que cada um que segue a virtude deseja para si, desejá-lo-á também para os outros homens. Depois, o desejo, enquanto se refere ã alma, é a própria essência da alma (pela definição 1 das afecções); mas a essência da alma consiste no conhecimento (pela proposição 11 da Parte II), que envolve o conhecimento de Deus (pela proposição 47 da parte II) e sem o qual (pela proposição 15 da Parte I) não pode existir nem ser concebido; e, por conseguinte, quanto maior conhecimento de Deus a essência da alma envolver, tanto maior será também o desejo em virtude do qual aquele que segue a virtude deseja para outrem um bem que deseja para si. QED OUTRA DEMONSTRAÇÃO O bem que o homem deseja para si e que ama, amá-lo-á de uma maneira mais constante, se vir que os outros amam o mesmo (pela proposição 31 da Parte III); e, por conseguinte (pelo resultado da mesma proposição), esforçar-se-á por que os outros o amem; e, visto que o supremo bem, que os homens desejam pelas afecções, é muitas vezes tal que alegrar-se, esforçar-se-á, portanto (pela mesma razão), por que todos se alegrem com o mesmo e (pela proposição 37 da Parte III) tanto mais quanto mais ele tiver gozado com este bem. QED COMENTÁRIO I Quem se esforça só por causa duma afecção, por que os outros amem o que ele mesmo ama, e por que os outros vivam à sua própria maneira, age só por impulso, e, por isso, é odioso sobretudo àqueles que têm outros gostos e que, por isso, desejam também e fazem impulsivamente esforço por que os outros vivam à sua própria maneira. Depois, visto que o supremo bem, que os homens desejam pelas afecções, é muitas vezes tal que só um pode tornar-se senhor dele, da vem que os que amam não estão de acordo consigo mesmos e que, enquanto se comprazem em contar os louvores da coisa que amam, têm receio de serem acreditados. Pelo contrário, o que se esforça por conduzir os outros segundo a Razão não age impulsivamente, mas com humanidade e doçura, e está plenamente de acordo consigo mesmo. Para continuar, eu refiro à religião tudo o que desejamos e fazemos, de que somos causa, enquanto temos a ideia de Deus, por outras palavras, enquanto conhecemos a Deus. Quanto ao desejo de fazer o bem, que nasce do fato de vivermos sob a direção da Razão, chamo-lhe piedade. Depois, ao desejo que leva o homem, que vive sob a direção da Razão, a unir-se aos outros pela amizade, chamo-lhe honestidade, e chamo honesto àquilo que os homens, que vivem sob a direção da Razão, louvam, e, ao contrário, torpe ao que repugna à conciliação da amizade. Além disto, mostrei também quais os fundamentos do Estado. Enfim, compreende-se facilmente, pelo que ficou dito atrás, a diferença entre a verdadeira virtude e a impotência, a saber: a verdadeira virtude não é outra coisa que viver só sob a direção da Razão, e, por conseguinte, a impotência consiste só em o homem se deixar conduzir pelas coisas que estão fora dele e em ser determinado por elas a fazer aquilo que a constituição comum das coisas externas reclama e não o que reclama a sua própria natureza, considerada só em si mesma. Foi isto que eu prometi demonstrar no comentário da proposição 18 desta parte. Por aqui se vê que a lei que proíbe matar os animais é fundada mais numa vã superstição e numa efeminada misericórdia que na sã Razão. Com efeito, a Razão ensina-nos a procurar o que nos é útil, a necessidade de nos unirmos aos homens e não aos animais ou às coisas, cuja natureza é diferente da natureza dos homens. Pelo contrário, o mesmo direito que eles têm sobre nós, nós o temos sobre eles. Mais ainda, visto que o direito de cada um se define pela virtude, ou seja, pela potência de cada um, os homens têm muito mais direitos sobre os animais que estes sobre os homens. Não nego, no entanto, que os animais sentem; mas nego que não seja permitido, para atender à nossa utilidade, usar deles ao nosso arbítrio e tratá-los como melhor nos convém; é que eles não concordam conosco em natureza e as suas afecções são diferentes, por natureza, das afecções humanas (ver comentário da proposição 57 da Parte III). Resta explicar o que é o justo, o injusto, o pecado e, por último, o mérito. COMENTÁRIO II No apêndice da Parte I, prometi explicar o que é o louvor e o vitupério, o mérito e o pecado, o justo e o injusto. No que diz respeito ao louvor e ao vitupério, expliquei-me no comentário da proposição 29 da Parte III; quanto aos restantes, será agora a ocasião de falar deles. Mas, antes, devo dizer alguma coisa acerca do estado natural e civil do homem. Cada um existe em virtude do direito supremo da Natureza e, consequentemente, é em virtude do supremo direito da Natureza que cada um faz o que se segue da necessidade da sua natureza; e, por conseguinte, é em virtude do supremo direito da Natureza que cada um julga o que lhe é bom e o que lhe é mau e atende à sua utilidade, como lhe convém (ver proposições 19 e 20 desta parte), e se vinga (ver resultado 2 da proposição 40 da Parte III), e se esforça por conservar o que ama e destruir aquilo a que tem ódio (ver proposição 28 da Parte III). Se os homens vivessem sob a direção da Razão, cada um usufruiria (pelo resultado 1 da proposição 35 desta parte) deste direito sem dano algum para outrem. Mas, como eles estão sujeitos às afecções (pelo resultado da proposição 4 desta parte), que ultrapassam de longe a potência, ou seja, a virtude humana (pela proposição 6 desta parte), e por isso são muitas vezes arrastados em sentidos contrários (pela proposição 33 desta parte) e são contrários uns aos outros (pela proposição 34 desta parte), quando têm necessidade de mútuo auxílio (pelo comentário da proposição 35 desta parte). Portanto, para que os homens possam viver de acordo e ajudar-se uns aos outros, é necessário que renunciem ao seu direito natural e assegurem uns aos outros que nada farão que possa redundar em dano de outrem. De que maneira possa isto suceder, quer dizer, que os homens, que estão necessariamente sujeitos às afecções (pelo resultado da proposição 4 desta parte) e são inconstantes e mutáveis (pela proposição 33 desta parte), possam dar uns aos outros esta segurança mútua e ter confiança mútua, vê-se pela proposição 7 desta parte e pela proposição 39 da Parte III, isto é, pelo fato de nenhuma afecção poder ser entravada, a não ser por uma afecção mais forte e contrária à afecção a entravar, e pelo fato de cada um se abster de causar dano pelo temor de um dano maior. Portanto, é sobre esta lei que a sociedade poderá fundar-se, com a condição de ela reivindicar para si o direito que cada um tem de se vingar e de julgar do bem e do mal. Consequentemente, ela deverá ter o poder de prescrever uma regra comum de vida, de fazer leis e de as apoiar não na Razão, que não pode entravar as afecções (pelo comentário da proposição 17 desta parte), mas em ameaças. Tal sociedade, firmada em leis e no poder de se conservar a si mesma, chama-se cidade, e os que são defendidos pelo direito dela, cidadãos. Pelo que precede, facilmente compreendemos que não existe nada no estado natural que seja bom ou mau por consenso de todos; é que qualquer um que se encontre no estado natural atende só à sua utilidade e distingue como lhe convém, e só enquanto tem em conta sua utilidade, o que é bem e o que é mal e não está obrigado por nenhuma lei a obedecer a ninguém, senão a si. Por conseguinte, no estado natural não se pode conceber o pecado; mas sim, no estado civil, em que se distingue pelo consenso comum o que é bom e o que é mau e cada um é obrigado a obedecer à cidade. Assim, o pecado não é outra coisa que a desobediência que, por esta razão, é punida só em virtude do direito da cidade; e, ao contrário, a obediência é contada ao cidadão como mérito, porque, por esta mesma razão, é julgado digno de gozar das vantagens da cidade. Além disso, no estado natural ninguém é senhor de uma coisa por consentimento comum, nem existe nada na Natureza que possa dizer-se que é deste homem e não daquele, mas tudo é de todos; e, por conseguinte, no estado natural não pode conceber-se nenhuma vontade de dar a cada um aquilo que é seu, ou de tirar do outro o que é seu, isto é, no estado natural nada sucede que possa dizer-se justo ou injusto, mas, sim, no estado civil, em que se discerne, por consenso comum, ou que é deste ou que é daquele. Por aqui se vê que justo e injusto, pecado e mérito são noções extrínsecas, não atributos que expliquem a natureza da alma. Mas sobre este assunto já basta. PROPOSIÇÃO XXXVIII Aquilo que dispõe o corpo humano de tal maneira que possa ser afetado de diversos modos ou que o torna apto a afetar os corpos externos de um número maior de modos, é útil ao homem; e é-lhe tanto mais útil quanto o corpo se torna por essa coisa mais apto a ser afetado de mais maneiras ou a afetar os outros corpos; e, pelo contrário, é-lhe prejudicial aquilo que torna o corpo menos apto para isto. DEMONSTRAÇÃO Quanto mais apto o corpo se torna para estas coisas, tanto mais apta a alma se toma para perceber (pela proposição 14 da Parte II); e, por conseguinte, aquilo que dispõe o corpo desta maneira e o torna apto para estas coisas é necessariamente bom, ou seja, útil (pelas proposições 26 e 27 desta parte), e tanto mais útil quanto mais apto pode tomar o corpo para estas coisas; e, inversamente (pela mesma proposição 14 da Parte II inversa [enuncia da de uma maneira contrária] e pelas proposições 26 e 27 desta parte), é prejudicial se torna o corpo menos apto para estas coisas. QED PROPOSIÇÃO XXXIX Aquilo que faz que as relações de movimento e de repouso que as partes do corpo humano têm entre si sejam conservadas, é bom; e, ao contrário, é mau o que faz que as partes do corpo humano tenham entre si outras relações de movimento e de repouso. DEMONSTRAÇÃO O corpo humano carece, para se conservar, de vários outros corpos (pelo postulado 4 da Parte II). Ora, aquilo que constitui a forma do corpo humano consiste em que as suas partes comunicam entre si os seus movimentos, segundo uma relação determinada (pela definição que precede o lema 4; vê-la a seguir à proposição 13 da Parte II). Logo, o que faz que a relação de movimento e de repouso, que as partes do corpo humano têm entre si, se conserve, isso mesmo conserva a forma do corpo humano e, consequentemente, faz que (pelos postulados 3 a 6 da Parte II) o corpo humano possa ser afetado de muitos modos e que ele possa afetar os corpos externos de muitos modos e, por conseguinte (pela proposição precedente), é bom. Depois, aquilo que faz que as partes do corpo humano tomem outra relação de movimento e de repouso, isso mesmo (pela mesma definição da Parte II) faz que o corpo humano tome outra forma, isto é (como é evidente de per si e como fizemos notar no fim do prefácio desta parte), faz que o corpo humano seja destruído e, consequentemente, que se torne totalmente inapto para poder ser afetado de vários modos e, portanto (pela proposição precedente), é mau. QED COMENTÁRIO Quanto mais isto possa ser prejudicial ou útil à alma, explicar-se-á na Parte V. Mas deve notar-se aqui que eu entendo que o corpo morre quando as suas partes se dispõem de tal maneira que tomam entre si uma relação diferente de movimento e de repouso. Com efeito, não ouso negar que o corpo humano, conservando a circulação do sangue e as outras coisas, por causa das quais se julga que o corpo vive, possa, não obstante, mudar-se numa outra natureza inteiramente diferente da sua. É que nenhuma razão me obriga a admitir que o corpo não morre, a não ser quando se muda em cadáver; mais ainda, a própria experiência parece persuadir-nos do contrário. Sucede, de fato, às vezes, que o homem sofre tais mudanças que eu não diria facilmente que ele é o mesmo; como ouvi contar dum certo poeta espanhol, que tinha sido atingido por uma doença e, se bem que curado dela, ficou, todavia, de tal forma esquecido da sua vida passada que não cria que fossem seus os contos e as tragédias que tinha composto; poderia, por certo, ser tido como uma criança adulta, se se tivesse esquecido mesmo da sua língua materna. E, se isto parece incrível, que dizer das crianças? Um homem de idade avançada crê que a natureza destas é tão diferente da sua que não o poderia m persuadir de que algum dia foi criança, a não ser que julgasse de si mesmo por analogia com outros. Mas, para não fornecer aos supersticiosos matéria para levantar novas questões, prefiro deixar este assunto. PROPOSIÇÃO XL O que conduz à sociedade comum dos homens, ou seja, o que faz que os homens vivam de acordo, é útil, e, inversamente, é mau o que traz a discórdia à cidade. DEMONSTRAÇÃO Com efeito, o que faz que os homens vivam de acordo faz simultaneamente que vivam sob a direção da Razão (pela proposição 35 desta parte) e, por conseguinte (pelas proposições 26 e 27 desta parte), é bom, e (pela mesma razão), inversamente, é mau o que excita as discórdia s. QED PROPOSIÇÃO XLI A alegria não é diretamente má, mas sim boa; a tristeza, pelo contrário, é diretamente má. DEMONSTRAÇÃO A alegria (pela proposição 11 da Parte III e seu comentário) é uma afecção pela qual se aumenta ou favorece a potência de agir do corpo; a tristeza, pelo contrário, é uma afecção pela qual se diminui ou entrava a potência de agir do (corpo; e, por conseguinte (pela proposição 38 desta parte), a alegria é diretamente boa, etc. QED PROPOSIÇÃO XLII A hilaridade não pode ter excesso, mas é sempre boa; e, inversamente, a melancolia é sempre má. DEMONSTRAÇÃO A hilaridade (ver a sua definição no comentário da proposição 11 da Parte III) é uma alegria que, na medida em que se refere ao corpo, consiste em que todas as partes do corpo são igualmente afetadas por ela, isto é (pela proposição 11 da parte III), em que a potência de agir do corpo é aumentada ou favorecida de tal maneira que todas as suas partes conservam entre si a mesma relação de movimento e de repouso; e, por conseguinte (pela proposição 39 desta parte), a hilaridade é sempre boa e não pode ter excesso. Mas a melancolia (ver também a sua definição no mesmo comentário da proposição 11 da Parte III) é uma tristeza que, enquanto se refere ao corpo, consiste em que a potência de agir do corpo é absolutamente diminuída ou entravada; e, por isso (pela proposição 38 desta parte), é sempre má. QED PROPOSIÇÃO XLIII O deleite pode ter excesso e ser mau; a dor, porém, pode ser boa na medida em que o deleite, por outros termos, a alegria, é má. DEMONSTRAÇÃO o deleite é uma alegria que, na medida em que se refere ao corpo, consiste em que uma ou algumas das suas partes são afetadas de preferência a outras (ver a sua definição no comentário da proposição 11 da Parte III), e pode ser tão grande a potência desta afecção que ultrapasse as outras ações do corpo (pela proposição 6 desta parte) e fique obstinadamente ligada a ele e, por conseguinte, impeça que o corpo se torne apto para ser afetado de muitos outros modos; e, por isso (pela proposição 38 desta parte), pode ser má. Depois, a dor, que, pelo contrário, é uma tristeza, considerada só em si, não pode ser boa (pela proposição 41 desta parte). Mas, porque a sua força e crescimento se definem pela potência da causa externa em comparação com a nossa (pela proposição 5 desta parte), podemos, portanto, conceber infinitos graus de força e infinitos modos desta afecção (pela proposição 3 desta parte); e, por conseguinte, concebê-la tal que possa entravar o deleite de maneira que ela não tenha excesso, e, nesta mesma medida (pela Parte I desta proposição), fazer que o corpo não se torne menos apto; e, por conseguinte, nessa medida será boa. QED PROPOSIÇÃO XLIV O amor e o desejo podem ter excesso. DEMONSTRAÇÃO O amor é uma alegria (pela definição 6 das afecções) acompanhada da ideia de uma causa exterior; portanto, o desejo (pelo comentário 2 da Parte III) acompanhado da ideia de uma causa exterior é um amor, e, por conseguinte, o amor (pela proposição precedente) pode ter excesso. Depois, o desejo é tanto maior quanto maior é a afecção de que ele nasce (pela proposição 37 da Parte III). Por isso, como uma afecção (pela proposição 6 desta parte) pode ultrapassar as outras ações do homem, da mesma maneira também o desejo, que nasce da mesma afecção, poderá superar os restantes desejos e, por conseguinte, ter o mesmo excesso que, na proposição precedente, demonstramos que tinha o deleite. QED COMENTÁRIO A hilaridade que eu disse ser boa concebe-se mais facilmente que se observa. Com efeito, as afecções por que somos dominados todos os dias referem-se na maior parte das vezes a alguma parte do corpo que é afetada de preferência a outras; e, por conseguinte, as afecções têm mais frequentemente um excesso e retêm a alma de tal maneira na contemplação de um único objeto que não pode pensar noutros; e, embora os homens estejam sujeitos a afecções diversas e, por conseguinte, sejam raros os que se encontram dominados por uma só e mesma afecção, não faltam, no entanto, aqueles a quem uma só e mesma afecção permanece obstinadamente ligada. Vemos, com efeito, às vezes, os homens serem afetados de tal maneira por um só objeto que, embora não esteja presente, creem, no entanto, tê-lo diante de si. Quando tal sucede a um homem que não está a dormir, dizemos que ele delira ou que está louco. E não se creem menos loucos os que ardem de amor e que noite e dia só sonham com a amante ou a meretriz, pois costumam provocar o riso. Mas, quando o avarento não pensa noutra coisa senão no lucro ou no dinheiro, e o ambicioso na glória, etc.., não se crê que esses delirem, porque costumam ser molestos e são julgados dignos de ódio. Mas a avareza, a ambição e a lascívia são, de fato, espécies de delírio, embora se não contem entre as doenças. PROPOSIÇÃO XLV O ódio nunca pode ser bom. DEMONSTRAÇÃO NÓS esforçamo-nos por destruir o homem que odiamos (pela proposição 39 da Parte III), isto é (pela proposição 37 desta parte), esforçamo-nos por fazer alguma coisa que é má. Logo, etc. QED COMENTÁRIO Note-se que eu aqui, e no que vai seguir-se, entendo por ódio só o ódio aos homens. RESULTADO I A inveja, a irrisão, o desprezo, a ira, a vingança e as outras afecções que se referem ao ódio ou dele nascem são más; o que é igualmente evidente pela proposição 39 da Parte III e pela proposição 37 desta parte. RESULTADO II Tudo o que desejamos, porque estamos afetados pelo ódio, é vergonhoso e, na cidade, é injusto. O que é igualmente evidente pela proposição 39 da Parte III e pela definição de vergonhoso e de injusto (vê-las nos comentários da proposição 37 desta parte). COMENTÁRIO Entre a irrisão (que eu disse ser má no resultado 1) e o riso faço uma grande diferença. Com efeito, o riso, da mesma maneira que o gracejo, é mera alegria ; e, por conseguinte, desde que não tenha excesso, por si, é bom (pela proposição 41 desta parte). Por certo, só uma feroz e triste superstição proíbe que nos alegremos. Com efeito, em que é que se encontrará maior conveniência, em apaziguar a fome ou a sede que em expelir a melancolia? Tal é a minha regra, tal é a minha convicção. Nenhuma divindade, nem ninguém, a não ser um invejoso, se compraz com a minha impotência e com o meu mal, nem pode ter na conta de virtude as nossas lágrimas, os nosso soluços, o nosso medo, e outras coisas deste gênero, que são sinais de um espírito impotente; mas, pelo contrário, quanto maior for a alegria de que somos afetados, tanto maior é a perfeição a que passamos, isto é, tanto mais necessário é que nós participemos da natureza divina. Portanto, usar das coisas e deleitar-se nelas (não até a náusea, pois isto não é deleitar-se), quanto possível, é próprio do homem sábio. É próprio do homem sábio — digo — alimentar-se e recrear-se com comida e bebida moderadas e agradáveis, assim como com os perfumes, a amenidade das plantas verdejantes, o ornamento, a música, os jogos desportivos, os espetáculos e outras coisas deste gênero, de que cada um pode usar sem dano algum para outrem. Com efeito, o corpo humano é composto de muitas partes de natureza diversa, que carecem continuamente de alimento novo e varia do, para que todo o corpo seja igualmente apto para todas as coisas que podem seguir-se da sua natureza e, consequentemente, para que a alma seja também igualmente apta para entender simultaneamente várias coisas. Esta norma de vida está, pois, perfeitamente de acordo com os nossos princípios e com o uso comum; por isso, este gênero de vida, se é que há outros, é o melhor e deve ser recomendado por todos os meios; nem há necessidade de tratar deste assunto com mais clareza e mais em pormenor. PROPOSIÇÃO XLVI Quem vive sob a direção da Razão esforça-se, quanto pode, por compensar pelo amor, ou seja, pela generosidade, o ódio, a ira, o desprezo, etc., de outrem para consigo mesmo. DEMONSTRAÇÃO Todas as afecções de ódio são más (pelo resultado 1 da proposição precedente); e, por conseguinte, aquele que vive sob a direção da Razão esforçar-se-á, quanto puder, por conseguir não ser dominado pelas afecções de ódio (pela proposição 19 desta parte), e consequentemente (pela proposição 37 desta parte), esforçar-se-á também por que outrem não sofra as mesmas afecções. Mas o ódio é aumentado pelo ódio recíproco, e, ao contrário, pode ser extinto pelo amor (pela proposição 43 da Parte III) de tal maneira que o ódio se converta em amor (pela proposição 44 da Parte III). Logo, aquele que vive sob a direção da Razão esforçar-se-á por compensar o ódio, etc., de outrem pelo amor, isto é, pela generosidade (ver a definição desta no comentário da proposição 59 da Parte III). QED COMENTÁRIO Quem quer vingar-se das injúrias pelo ódio recíproco vive, por certo, miseravelmente. Mas quem, ao contrário, deseja vencer o ódio pelo amor, esse, por certo, combate alegre e com segurança, resiste tão facilmente a um homem como a vários e carece, menos que ninguém, do auxílio da sorte. Àqueles que cedem alegremente, não por deficiência, mas por acréscimo de forças, todas estas coisas se seguem de tal modo claramente só das definições de amor e de inteligência que não é preciso demonstrá-las uma por uma. PROPOSIÇÃO XLVII As afecções de esperança e de medo não podem ser por si mesmas boas. DEMONSTRAÇÃO As afecções de esperança e de medo não existem sem a tristeza. Com efeito, o medo é (pela definição 13 das afecções) uma tristeza, e a esperança (ver a explicação das definições 12 e 13 das afecções) não existe sem o medo; e, por conseguinte (pela proposição 41 desta parte), estas afecções não podem ser por si mesmas boas, mas, sim, apenas enquanto podem entravar os excessos da alegria (pela proposição 43 desta parte). QED COMENTÁRIO Acresce a isto que estas afecções indicam deficiência de conhecimento e impotência de alma; e, por esta razão, também a segurança, o desespero, o contentamento e o remorso de consciência são sinais de uma alma impotente. Com efeito, se bem que a segurança e o contentamento sejam afecções de alegria, supõem, todavia, que a tristeza a precedeu, a saber: a esperança e o medo. Portanto, quanto mais nos esforçamos por viver sob a direção da Razão, tanto mais nos esforçamos por depender menos da esperança, por nos libertarmos do medo, por imperarmos, quanto pudermos, à fortuna e por dirigirmos as nossas ações segundo o ditame certo da Razão. PROPOSIÇÃO XLVIII As afecções da estima e da desestima são sempre más. DEMONSTRAÇÃO Estas afecções, de fato (pelas definições 21 e 22 das afecções), repugnam à Razão; e, por conseguinte (pelas proposições 26 e 27 desta parte), são más. QED PROPOSIÇÃO XLIX A estima torna facilmente soberbo o homem que se estima. DEMONSTRAÇÃO Se vemos alguém ter de nós, por amor, uma opinião mais favorável do que é justo, facilmente nos gloriaremos (pelo comentário da proposição 41 da Parte III), por outras palavras, somos afetados pela alegria (pela definição 30 das afecções); e facilmente acreditaremos (pela proposição 25 da Parte III) no bem que ouvirmos dizer de nós; e. por conseguinte, por amor, teremos de nós uma opinião mais favorável do que é justo, isto é (pela definição 28 das afecções), facilmente nos ensoberbeceremos. QED PROPOSIÇÃO L A compaixão, no homem que vive sob a direção da Razão, por si mesma é má e inútil. DEMONSTRAÇÃO A compaixão, com efeito (pela definição 18 das afecções), é uma tristeza; e, por conseguinte (pela proposição 41 desta parte), é, por si mesma, má. Quanto ao bem que dela resulta, a saber: nós esforçamo-nos por libertar da miséria um homem que nos causa pena (pelo resultado 3 da proposição 27 da Parte III), desejamos fazê-lo só em virtude do ditame da Razão (pela proposição 37 desta parte); aliás, não podemos fazer nada que saibamos com certeza ser bom, a não ser só em virtude do ditame da Razão (pela proposição 27 desta parte); e, por conseguinte, a compaixão, no homem que vive sob a direção da Razão, é, por si mesma, má e inútil. QED RESULTADO Daqui se segue que o homem, que vive segundo o ditame da Razão, se esforça quanto pode por conseguir não ser tocado pela compaixão. COMENTÁRIO Aquele que compreendeu bem que tudo se segue da necessidade da natureza divina e acontece segundo as leis e as regras eternas da Natureza, esse não encontrará, certamente, nada que seja digno de ódio, de riso ou de desprezo, nem terá comiseração por ninguém, mas, quanto o permite a virtude humana, esforçar-se-á por agir bem, como se diz, e por se alegrar. Acresce a isto que, aquele que é facilmente tocado pela afecção da compaixão e se comove com a miséria ou as lágrimas de outrem, faz muitas vezes uma coisa de que depois vem a arrepender-se; tanto porque nada fazemos em virtude de uma afecção, que saibamos ao certo ser bem, como porque somos facilmente enganados por lágrimas fingidas. Falo aqui expressamente do homem que vive sob a direção da Razão. Com efeito, aquele que não é levado nem pela Razão nem pela compaixão a vir em auxílio dos outros, esse é chamado com razão inumano, pois (pela proposição 27 da Parte III) não parece ser nada semelhante a um homem. PROPOSIÇÃO LI O favor não repugna à Razão, mas pode estar de acordo com ela e nascer dela. DEMONSTRAÇÃO O favor é, com efeito, um amor para com aquele que fez bem a outrem (pela definição 19 das afecções), e, por conseguinte, pode ser referido à alma, na medida em que se diz que esta age (pela proposição 59 da Parte III), isto é (pela proposição 3 da Parte III), na medida em que compreende; e, por isso, está de acordo com a Razão, etc. QED OUTRA DEMONSTRAÇÃO Quem vive sob a direção da Razão deseja também para outrem o bem que aspira para si (pela proposição 37 desta parte); por isso, pelo fato de alguém ver fazer o bem a outrem, o seu próprio esforço de fazer bem é secundado, isto é (pelo comentário da proposição 11 da Parte III), alegrar-se-á, e isto (por hipótese) acompanhado da ideia daquele que fez bem a QED outrem, e, portanto (pela definição 19 das afecções), ser-lhe-á favorável. COMENTÁRIO A indignação, como foi definida por nós (ver a definição 20 das afecções), é necessariamente má (pela proposição 45 desta parte); mas deve notar-se que, quando o poder soberano, no desejo que tem de proteger a paz, pune um cidadão que fez alguma injúria a outro, não digo que ele se indigna contra o cidadão, porque não é levado pelo ódio a perder o cidadão, mas pune-o movido pela piedade. PROPOSIÇÃO LII O contentamento pode nascer da Razão, e só o contentamento que nasce da Razão é o maior que pode existir. DEMONSTRAÇÃO O contentamento é uma alegria que nasce do fato de o homem se contemplar a si mesmo e à sua capacidade de agir (pela definição 25 das afecções). Mas a verdadeira capacidade de agir do homem, ou seja, a sua virtude, é a própria Razão (pela proposição 3 da Parte III), que o homem contempla clara e distintamente (pelas proposições 40 e 43 da Parte II). Logo, o contentamento nasce da Razão. Depois, quando o homem se contempla a si mesmo, não percebe nada clara e distintamente, ou seja, adequadamente, senão aquilo que se segue da sua capacidade de agir (pela definição 2 da Parte III), isto é (pela proposição 3 da Parte III), o que se segue da sua capacidade de compreender e, por conseguinte, só desta contemplação nasce o contentamento maior que pode existir. QED COMENTÁRIO O contentamento é, de fato, a coisa maior que podemos esperar. Com efeito (como demonstramos na proposição 25 desta parte), ninguém se esforça por conservar o seu ser em vista de algum fim; e, como este contentamento é cada vez mais alimentado e fortificado pelos louvores (pelo resultado da proposição 53 da Parte III) e, inversamente (pelo resultado da proposição 55 da Parte III), cada vez mais perturbado pelo vitupério, é então que somos sobretudo conduzidos pela glória e quase podemos suportar uma vida de opróbrio. PROPOSIÇÃO LIII A humildade não é uma virtude, por outras palavras, não nasce da Razão. DEMONSTRAÇÃO A humildade é uma tristeza que nasce do fato de o homem contemplar a sua impotência (pela definição 26 das afecções). Ora, na medida em que o homem se conhece a si mesmo pela verdadeira Razão, supõe-se que ele conhece a sua essência, isto é (pela proposição 7 da Parte III), a sua potência. Por isso, se o homem, enquanto se contempla a si mesmo, percebe em si alguma impotência, isso não provém do fato de ele se compreender, mas (como na proposição 55 da Parte III) de a sua capacidade de agir ser entravada. Se supusermos que o homem concebe a sua impotência pelo fato de conhecer algo mais poderoso que ele, por cujo conhecimento determina a sua capacidade de agir, então não concebemos nenhuma outra coisa senão que o homem se compreende distintamente a si mesmo (pela proposição 26 desta parte), o que favorece a sua capacidade de agir. Por isso, a humildade, ou seja, a tristeza que nasce do fato de o homem contemplar a sua impotência, não nasce de uma contemplação verdadeira, ou seja, da Razão, e não é virtude, mas sim paixão. Q. e.d. PROPOSIÇÃO LIV O arrependimento não é virtude, por outras palavras, não nasce da Razão; mas aquele que se arrepende do que fez é duas vezes miserável ou impotente. DEMONSTRAÇÃO A primeira parte demonstra-se como a proposição precedente. A segunda é evidente só pela definição desta afecção (ver a definição 27 das afecções). É que [o homem] deixa-se vencer primeiramente só por um desejo depravado e depois pela tristeza. COMENTÁRIO Visto que os homens raramente vivem segundo o ditame da Razão, estas duas afecções, a saber: a humildade e o arrependimento, e além destas a esperança e o medo, trazem mais vantagens que desvantagens; e, por conseguinte, se é preciso pecar, é preferível pecar neste sentido. Com efeito, se os homens impotentes de alma fossem igualmente todos orgulhosos, eles não teria m vergonha de nada nem temeria m nada. Como poderia m eles manter-se unidos e disciplinados? O vulgo é terrível, se não teme. Por isso, não é de admirar que os Profetas, que não cuidaram da utilidade de uns poucos mas da utilidade comum, tenham recomendado tanto a humildade, a penitência e o respeito. E, na verdade, os que estão sujeitos a estas afecções podem ser muito mais facilmente que os outros levados a viver, enfim, sob a direção da Razão, isto é, a serem livres e a gozar da vida dos felizes. PROPOSIÇÃO LV O cúmulo do orgulho ou da objeção é o cúmulo da ignorância de si mesmo. DEMONSTRAÇÃO Isto é evidente pelas definições 28 e 29 das afecções. PROPOSIÇÃO LVI O cúmulo do orgulho ou da abjeção indica o cúmulo da impotência de alma. DEMONSTRAÇÃO O primeiro fundamento da virtude é conservar o seu ser (pelo resultado 22 desta parte), e isto sob a direção da Razão (pela proposição 24 desta parte). Portanto, quem se ignora a si mesmo ignora o fundamento de todas as virtudes e, consequentemente, todas as virtudes. Depois, agir por virtude não é outra coisa senão agir sob a direção da Razão (pela proposição 24 desta parte); e aquele que age sob a direção da Razão deve saber necessariamente que age sob a direção da Razão (pela proposição 43 da Parte II). Portanto, aquele que mais se ignora a si mesmo e consequentemente (como há pouco demonstramos), o que mais ignora todas as virtudes, esse é o que menos age por virtude, isto é (como é evidente pela definição 8 desta parte), é o mais impotente de alma; e, por conseguinte (pela proposição precedente), o cúmulo do orgulho ou da abjeção indica o cúmulo de impotência da alma. RESULTADO Daqui se segue clarissimamente que os orgulhosos e os abjetos são os mais sujeitos às afecções. COMENTÁRIO Todavia, a abjeção pode corrigir-se mais facilmente que o orgulho; é que este é uma afecção de alegria, enquanto que aquela é uma afecção de tristeza e, por conseguinte (pela proposição 18 desta parte), este é mais forte que aquela. PROPOSIÇÃO LVII O orgulhoso ama a presença dos parasitas, ou dos aduladores, e odeia, pelo contrário, a dos generosos. DEMONSTRAÇÃO O orgulho é uma alegria nascida do fato de o homem ter de si mesmo uma opinião mais vantajosa do que é justo (pelas definições 28 e 6 das afecções); e o orgulhoso esforça-se, quanto puder, por alimentar essa opinião (ver o comentário da proposição 13 da Parte III); e, por conseguinte, os orgulhosos amarão a presença dos parasitas ou dos aduladores (omiti as definições destes por serem conhecidos) e fugirão da presença dos generosos, que têm deles uma opinião exata. QED COMENTÁRIO Seria demasia do longo enumerar aqui todos os males do orgulho, pois que os orgulhosos estão sujeitos a todas as afecções, mas a nenhuma menos que às afecções do amor e da misericórdia. Mas o que não deve passar em silêncio aqui é que se chama também orgulhoso àquele que tem dos outros uma opinião muito desvantajosa e, por conseguinte, neste sentido o orgulho deve ser definido como sendo uma alegria nascida de uma opinião falsa, pela qual o homem julga estar acima dos outros. E a abjeção contrária a este orgulho deveria ser definida como sendo a tristeza nascida da falsa opinião pela qual o homem crê estar abaixo dos outros. Ora, posto isto, facilmente concebemos que o orgulhoso é necessariamente invejoso (ver comentário da proposição 55 da Parte III) e que odeia sobretudo os que mais louvados são pelas suas virtudes; que o seu ódio não pode ser facilmente vencido pelo amor ou pelo favor (ver comentário da proposição 41 da Parte III); que só se deleita com a presença daqueles que lhe mostram mais complacência e que de estúpido o fazem doido. Embora a abjeção seja contrária ao orgulho, o abjeto está, no entanto, perto do orgulhoso. Com efeito, visto que a sua tristeza nasce do fato de ele julgar a sua impotência pela potência, ou seja, pela virtude dos outros, a sua tristeza será minorada, isto é, alegrar-se-á, se a sua imaginação se ocupar na contemplação dos vícios alheios; daí veio o provérbio: É uma consolação para os infelizes ter companheiros de infelicidade e, inversamente, contristar-se-á tanto mais quanto mais julgar que está abaixo dos outros; donde se segue que ninguém é mais inclinado à inveja que os abjetos, e que estes se esforçam sobretudo por observar as ações dos homens mais para as censurar do que para as corrigir; e que, enfim, não louvam senão a abjeção e nela se gloria m, mas de tal maneira que pareçam abjetos. Tudo isto resulta desta afecção tão necessariamente como resulta da natureza do triângulo que os seus três ângulos sejam iguais a dois retos. Já disse que chamo más a estas afecções e às semelhantes a elas na medida em que tenho apenas em vista a utilidade humana. Mas as leis da Natureza dizem respeito à ordem comum da Natureza, de que o homem é uma parte; quis fazer notar isto aqui, de passagem, para que ninguém pensasse que eu quis expor aqui os vícios dos homens e suas ações absurdas e que não quis demonstrar a natureza e as propriedades das coisas. Com efeito, como eu disse no prefácio da Parte III, considero as afecções humanas e as suas propriedades da mesma maneira que as outras coisas da Natureza. E, na verdade, as afecções humanas, se não indicam a potência humana, indicam pelo menos a potência e a arte da Natureza, não menos que muitas outras coisas que nós admiramos e com cuja contemplação nos deleitamos. Mas, a respeito das afecções, continuo a notar aquilo que é útil ao homem ou que lhe é prejudicial. PROPOSIÇÃO LVIII A glória não repugna à Razão, mas pode nascer dela. DEMONSTRAÇÃO Isto é evidente pela definição 30 das afecções e pela definição do honesto (vê-la no comentário da proposição 37 desta parte). COMENTÁRIO Aquilo a que se chama a vanglória é um contentamento que é alimentado somente pela opinião do vulgo; cessando esta, cessa o contentamento, isto é (pelo comentário da proposição 52 desta parte), o bem supremo, que cada um ama; donde se segue que aquele que se gloria com a opinião do vulgo, atormentado por um temor cotidiano, se esforça, se agita e tenta conservar essa fama. Com efeito, o vulgo é mutável e inconstante e, por conseguinte, se se não conserva a fama, ela apaga-se depressa. Mais ainda, visto que todos desejam ganhar os aplausos do vulgo, facilmente um rebaixa a fama do outro; e como eles lutam pelo bem que se julga ser soberano, daí vem o imenso desejo de se oprimirem uns aos outros, seja de que maneira for. Aquele que, por fim, sai vencedor gloria -se mais por ter prejudicado outrem que por ter feito bem a si mesmo. Portanto, esta glória ou contentamento é, de fato, vã, porque não existe. O que há a observar acerca do pudor deduz-se facilmente daquilo que dissemos a respeito da misericórdia e do arrependimento. Acrescento só o seguinte: tal como a compaixão, da mesma maneira também o pudor, embora não seja virtude, é, todavia, bom, na medida em que indica que o homem, que se sente invadir pelo pudor, tem desejo de viver honestamente. Da mesma maneira se diz que a dor é boa, na medida em que indica que a parte doente ainda não está podre. Por isso, embora o homem, que se envergonha de alguma ação, esteja na realidade triste, é, todavia, mais perfeito que o impudente, que não tem nenhum desejo de viver honestamente. Eis o que eu tinha empreendido fazer notar acerca das afecções da alegria e da tristeza. No que diz respeito aos desejos, estes são, certamente, bons ou maus, na medida em que nascem de afecções boas ou más. Mas, na realidade, todos eles, na medida em que são produzidos em nós por afecções que são paixões, são cegos (como facilmente se deduz pelo que dissemos no comentário da proposição 44 desta parte) e não seria m de nenhuma utilidade se os homens pudessem facilmente ser levados a viver só segundo o ditame da Razão, como vou demonstrar agora em poucas palavras. PROPOSIÇÃO LIX A todas as ações às quais somos determinados por uma afecção, que é uma paixão, podemos ser determinados pela Razão, independentemente dessa afecção. DEMONSTRAÇÃO Agir segundo a Razão não é outra coisa (pela proposição 3 e definição 2 da Parte III) que fazer aquilo que resulta da necessidade da natureza, considerada só em si mesma. Ora, a tristeza, na medida em que é má, diminui e entrava esta capacidade de agir (pela proposição 41 desta parte). Logo, por esta afecção não podemos ser determinados a nenhuma ação que não poderíamos levar a cabo se fôssemos conduzidos pela Razão. Além disso, a alegria é má só na medida em que impede que o homem seja apto para agir (pelas proposições 41 e 43 desta parte); e, por conseguinte, nesta medida também, não podemos ser determinados a nenhuma ação que não poderíamos levar a cabo se fôssemos conduzidos pela Razão. Finalmente, na medida em que a alegria é boa, está de acordo com a Razão (pois que ela consiste em que a capacidade de agir do homem é aumentada ou favorecida); e ela não é paixão senão na medida em que ela não aumenta a capacidade de agir do homem até o ponto de se conceber a si mesmo adequadamente e às suas ações (pela proposição 3 Parte III e seu comentário). Por isso, se um homem afetado pela alegria fosse levado a tão grande perfeição que se concebesse adequadamente a si mesmo e às suas ações, seria apto para essas mesmas ações às quais ele já é determinado pelas afecções, que são paixões, mais ainda, seria até mais apto. Mas todas as afecções têm relação com a alegria, a tristeza, ou desejo (ver a explicação da definição 4 das afecções), e o desejo (pela definição 1 das afecções) não é outra coisa que o próprio esforço para agir; logo, a todas as ações para as quais somos determinados por uma afecção que é uma paixão podemos ser conduzidos só pela Razão, independentemente dela. QED OUTRA DEMONSTRAÇÃO Uma ação qualquer diz-se má na medida em que nasce do fato de sermos afetados pelo ódio ou por alguma afecção má (ver resultado 1 da proposição 45 desta parte). Ora, nenhuma ação, considerada só em si mesma, é boa ou má (como demonstramos no prefácio desta parte), mas uma só e a mesma ação é umas vezes boa, outras má. Logo, podemos ser levados pela Razão (pela proposição 19 desta parte) a esta mesma ação que é presentemente má, por outros termos, que nasce de alguma afecção má. QED COMENTÁRIO Explica-se isto mais claramente por um exemplo. Com efeito, a ação de bater, enquanto se considera fisicamente e enquanto atendemos somente a que o homem levanta o braço, fecha a mão e projeta com violência todo o braço para baixo, é uma virtude que é concebida por meio do mecanismo do corpo humano. Se, portanto, um homem, levado pela ira ou pelo ódio é determinado a cerrar o punho ou a mover o braço, fá-lo, como demonstramos na segunda parte, porque uma só e a mesma ação pode estar ligada a quaisquer imagens das coisas; e, por conseguinte, nós podemos ser determinados a uma só e mesma ação, tanto por estas imagens das coisas que concebemos confusamente, como pelas que nós concebemos clara e distintamente. É, portanto, manifesto que todo desejo que nasce de uma afecção, que é paixão, não seria de nenhuma utilidade, se os homens pudessem ser conduzidos pela Razão. Vejamos agora por que é que o desejo, que nasce de uma afecção, que é paixão, é chamado por nós cego. PROPOSIÇÃO LX O desejo que nasce da alegria ou da tristeza, que se refere a uma só ou algumas partes do corpo e não a todas, não tem em conta a utilidade do homem todo. DEMONSTRAÇÃO Suponhamos, por exemplo, que uma parte A do corpo é fortificada em virtude de alguma causa externa de tal maneira que prevalece sobre as restantes (pela proposição 6 desta parte). Esta parte não se esforçará por perder as suas forças para que as restantes partes do corpo desempenhem as suas funções; deveria, com efeito, ter a força, ou seja, a capacidade de perder as suas forças, o que é absurdo (pela proposição 6 da Parte III). Esta parte esforçar-se-á, portanto, e, consequentemente (pelas proposições 7 e 12 da Parte III), também a alma, por conservar aquele estado; e, por conseguinte, o desejo que nasce de uma tal afecção de alegria não tem em conta o todo. Mas se, ao contrário, supuséssemos que a parte A é entravada para que as outras prevaleçam, sobre ela demonstra-se da mesma maneira que nem o desejo que nasce da tristeza tem em conta o todo. QED COMENTÁRIO Uma vez que, portanto, a alegria se refere, a maior parte das vezes (pelo comentário da proposição 44 desta parte), a uma só parte do corpo, desejamos a maior parte das vezes conservar o nosso ser, sem termos em conta a integridade da nossa saúde. A isto acresce que os desejos que mais nos assediam (pelo resultado da proposição 9 desta parte) têm em conta só o tempo presente e não o futuro. PROPOSIÇÃO LXI O desejo que nasce da Razão não pode ter excesso. DEMONSTRAÇÃO O desejo (pela definição 1 das afecções), considerado absolutamente, é a própria essência do homem, ou a sua natureza, enquanto é concebida como determinada de qualquer modo a fazer alguma coisa; e, por conseguinte, o desejo que nasce da Razão, isto é (pela proposição 3 da Parte III), que se produz enquanto agimos, é a própria essência ou natureza do homem, enquanto se concebe como determinada a fazer aquilo que se concebe adequadamente só pela essência do homem (pela definição 2 da Parte III). Se, portanto, este desejo pudesse ter excesso, poderia a natureza humana, considerada só em si, exceder-se a si mesma, por outros termos, poderia mais do que pode, o que é manifesta contradição; e, por conseguinte, este desejo não pode ter excesso. QED PROPOSIÇÃO LXII Na medida em que a alma concebe as coisas segundo o ditame da Razão, é igualmente afetada, quer se trate da ideia de uma coisa futura ou passada, quer de uma coisa presente. DEMONSTRAÇÃO Tudo o que a alma concebe sob a direção da Razão, concebe tudo isso sob o mesmo aspecto de eternidade, ou seja, de necessidade (pelo resultado 2 da proposição 44 da Parte II) e é afetada pela mesma certeza (pela proposição 43 da Parte II e seu comentário). Por isso, quer se trate da ideia de uma coisa futura, ou passada, quer de uma coisa presente, a alma concebe a coisa com a mesma necessidade e é afetada da mesma certeza; e, quer se trate da ideia de uma coisa futura ou passada, quer de uma coisa presente, ela não será menos igualmente verdadeira (pela proposição 41 da Parte II), isto é (pela definição 4 da Parte II), ela não terá sempre menos as mesmas propriedades da ideia adequada; e, por conseguinte, na medida em que a alma concebe as coisas segundo o ditame da Razão, é afetada do mesmo modo, quer se trate da ideia de uma coisa futura ou passada, quer de uma coisa presente. Q. e d. COMENTÁRIO Se nós pudéssemos ter um conhecimento adequado da duração das coisas, e pudéssemos determinar, pela Razão, os seus tempos de existência, contemplaríamos com uma mesma afecção as coisas futuras e as presentes; e o bem que a alma conceberia como futuro desejá-lo-ia como um bem presente, e, consequentemente, desprezaria necessariamente um bem presente menor a troco de um bem futuro maior; e o que seria bom no presente, mas que seria causa de algum mal futuro, desejá-lo-ia com muito pouca intensidade, como demonstraremos em breve. Mas nós não podemos ter senão um conhecimento muito inadequado da duração das coisas (pela proposição 31 da Parte II), e só determinamos pela imaginação os tempos de existência das coisas (pelo comentário da proposição 44 da Parte II), imaginação essa que não é igualmente afetada pela imagem de uma coisa presente como pela de uma coisa futura; donde resulta que o verdadeiro conhecimento do bem e do mal, que temos, não é senão abstrato, ou seja, universal, e que o juízo que nós fazemos acerca da ordem das coisas e do nexo das causas, para podermos determinar o que é bom ou mau para nós presentemente, é mais imaginário que real. E, por conseguinte, não é de admirar que o desejo que nasce do conhecimento do bem ou do mal, enquanto este conhecimento se refere ao futuro, possa ser entravado mais facilmente pelo desejo das coisas que presentemente são agradáveis. Sobre este assunto, ver proposição 16 desta parte. PROPOSIÇÃO LXIII Aquele que é levado pelo medo e que faz o bem para evitar o mal não é levado pela Razão. DEMONSTRAÇÃO Todas as afecções que se referem à alma, enquanto ela age, isto é (pela proposição 3 da Parte III), que se referem à Razão não são outras senão as afecções de alegria e de desejo (pela proposição 59 da Parte III); e, por conseguinte (pela definição 13 das afecções), o que é levado pelo medo e faz o bem por temor do mal não é conduzido pela Razão. QED COMENTÁRIO Os supersticiosos, que sabem mais censurar os vícios que ensinar as virtudes e que não procuram conduzir os homens pela Razão mas contê-los pelo medo de tal maneira que evitem mais o mal que amem as virtudes, não pretendem outra coisa que tornar os outros tão infelizes como eles; e, por conseguinte, não é de admirar que eles sejam, a maior parte das vezes, insuportáveis e odiosos aos homens. RESULTADO Pelo desejo que nasce da Razão seguimos diretamente o bem e evitamos indiretamente o mal. DEMONSTRAÇÃO Com efeito, o desejo que nasce da Razão só pode nascer (pela proposição 59 da Parte III) da afecção da alegria, que não é paixão, isto é, da alegria que não pode ter excesso (pela proposição 61 desta parte), mas não da tristeza; e, por conseguinte, este desejo (pela proposição 8 desta parte) nasce do conhecimento do bem e não do mal; e, portanto, desejamos, sob a direção da Razão, diretamente o bem, e só nessa medida evitamos o mal. QED COMENTÁRIO Este resultado explica-se pelo exemplo do doente e do são. O doente come aquilo que lhe repugna, por medo da morte; o são, pelo contrário, tira prazer do alimento e, assim, goza melhor da vida do que se temesse a morte e desejasse diretamente evitá-la. Da mesma maneira, o juiz que, não por ódio ou por ira, etc.., mas só pelo amor da salvação pública, condena um culpado à morte é conduzido só pela Razão. PROPOSIÇÃO LXIV O conhecimento do mal é um conhecimento inadequado. DEMONSTRAÇÃO o conhecimento do mal (pela proposição 8 desta parte) é a própria tristeza, enquanto temos consciência dela. Mas a tristeza é uma passagem para uma perfeição menor (pela definição 3 das afecções), a qual, por isso, não pode ser conhecida pela própria essência do homem (pelas proposições 6 e 7 da Parte III); e, por conseguinte (pela definição 2 da Parte III), é uma paixão, que (pela proposição 3 da Parte III) depende de ideias inadequadas; e, consequentemente (pela proposição 29 da Parte II), o seu conhecimento, isto é, o conhecimento do mal, é inadequado. QED RESULTADO Daqui se segue que, se a alma humana não tivesse senão ideias adequadas, não formaria nenhuma noção do mal. PROPOSIÇÃO LXV Sob a direção da Razão nós escolheremos sempre de dois bens o maior, e de dois males o menor. DEMONSTRAÇÃO o bem que impede que nós gozemos de um bem maior é, na realidade, um mal; com efeito, o bem e o mal (como demonstramos no prefácio desta parte) dizem-se das coisas, na medida em que as comparamos umas com as outras; e (pela mesma razão) um mal menor é, na realidade, um bem; por isso (pelo resultado da proposição precedente), sob a direção da Razão, desejaremos, por outros termos, escolheremos só um bem maior e um mal menor. QED RESULTADO Sob a direção da Razão escolheremos um mal menor em vista de um bem maior e renuncia remos a um bem menor que é causa de mal maior. Com efeito, o mal que aqui se diz menor é, de fato, um bem e, inversamente, o bem é um mal; por isso (pelo resultado da proposição 63 desta parte) desejaremos aquele e renuncia remos a este. QED PROPOSIÇÃO LXVI Sob a direção da Razão nós desejaremos um bem maior futuro, de preferência a um bem menor presente; e um mal presente menor, de preferência a um mal maior futuro. DEMONSTRAÇÃO Se a alma pudesse ter um conhecimento adequado de uma coisa futura, seria afetada relativamente a essa coisa futura da mesma maneira que relativamente a uma coisa presente (pela proposição 62 desta parte); por isso, na medida em que atendemos só à Razão, como, por hipótese, fazemos nesta proposição, o caso é o mesmo, quer se suponha um bem maior (ou um mal maior) futuro, quer se suponha presente; e, por conseguinte (pela proposição 65 desta parte), desejaremos o bem futuro maior, de preferência ao bem presente menor, etc. QED RESULTADO Sob a direção da Razão desejaremos um mal presente menor que é causa de um bem futuro maior, e renuncia remos a um bem presente menor que é causa de um mal futuro maior. Este resultado está para a proposição precedente como o resultado da proposição 65 para a mesma proposição 65. COMENTÁRIO Se, portanto, se conferir isto com o que demonstramos nesta parte até a proposição 18, acerca da força das afecções, facilmente veremos a diferença que há entre o homem que é conduzido só pela afecção, ou seja, pela opinião, e o homem que é conduzido pela Razão. Um, com efeito, queira ou não queira, faz coisas das quais não compreende nada; outro, ao contrário, não age senão à sua maneira e só faz aquilo que sabe ser-lhe primordial na vida, o que, por esta razão, mais deseja; chamo, por isso, ao primeiro, servo, e ao segundo, homem livre. Quero fazer ainda algumas observações acerca do seu espírito e maneira de viver. PROPOSIÇÃO LXVII O homem livre em nada pensa menos que na morte; e a sua sabedoria não é uma meditação da morte, mas da vida. DEMONSTRAÇÃO o homem livre, isto é, aquele que vive segundo o ditame da Razão, não é levado pelo medo da morte (pela proposição 63 desta parte), mas deseja diretamente o bem (pelo resultado da mesma proposição), isto é (pela proposição 24 desta parte), deseja agir, viver e conservar o seu ser segundo o princípio da procura da utilidade própria ; e, por conseguinte, em nada pensa menos que na morte, mas a sua sabedoria é meditação da vida. QED PROPOSIÇÃO LXVIII Se os homens nascessem livres, não formaria m nenhum conceito de bem e de mal, enquanto permanecessem livres. DEMONSTRAÇÃO Disse que aquele que é levado só pela Razão é livre; aquele que, portanto, nasce livre e permanece livre, não tem senão ideias adequadas; e, por conseguinte, não tem nenhum conceito do mal (pelo resultado da proposição 64 desta parte) e, consequentemente (com efeito, bem e mal são correlativos), nem tampouco nenhum conceito de bem. QED COMENTÁRIO É evidente, pela proposição 4 desta parte, que a hipótese desta proposição é falsa e não pode conceber-se senão enquanto temos em conta só a natureza humana ou, antes, Deus, não enquanto infinito, mas só enquanto é causa de o homem existir. Parece ser isso e outras coisas, que já demonstramos, que Moisés quis significar na história do primeiro homem. Nela, com efeito, não se concebe outro poder de Deus senão aquele pelo qual criou o homem, isto é, o poder pelo qual atendeu somente à utilidade do homem; e nesta medida se conta que Deus proibiu ao homem livre comer da árvore da ciência do bem e do mal, e que no momento em que dela comesse temeria, ato contínuo, mais a morte que desejaria viver. Depois que o homem, tendo encontrado uma esposa que convinha perfeitamente à sua natureza, conheceu que nada poderia existir na Natureza que pudesse ser-lhe mais útil que ela; mas que, depois de se convencer que os animais lhe eram semelhantes, imediatamente começou a imitar as suas afecções (ver proposição 27 da Parte III) e a perder a sua liberdade, que os patriarcas depois recuperaram, levados pelo espírito de Cristo, isto é, pela ideia de Deus, da qual somente depende que o homem seja livre e que o bem que ele deseja para si o deseje para os outros homens, como demonstramos atrás (pela proposição 37 desta parte). PROPOSIÇÃO LXIX A virtude de um homem livre revela-se tão grande quando evita como quando supera os perigos. DEMONSTRAÇÃO Uma afecção não pode ser entravada nem suprimida, senão por uma afecção contrária e mais forte que a afecção a entravar (pela proposição 7 desta parte). Ora, a audácia cega e o medo são afecções que podem ser concebidas como igualmente grandes (pelas proposições 5 e 3 desta parte). Logo, requer-se uma virtude de alma, ou seja, uma fortaleza tão grande (ver definição no comentário da proposição 59 da Parte III) para entravar a audácia, como para o medo, isto é (pelas definições 40 e 41 das afecções), o homem livre evita os perigos com a mesma virtude de alma com a qual tenta superá-los. QED RESULTADO O homem livre é, pois, levado por uma tão grande força de alma a fugir oportunamente, como a combater; por outros termos, o homem livre escolhe com igual força de alma, ou seja, com a mesma presença de espírito, o combate ou a fuga. COMENTÁRIO Expliquei, no comentário da proposição 59 da Parte III, o que é a força de alma ou o que entendo por ela. Quanto ao perigo, entendo por ele tudo o que é causa de algum mal, isto é, de tristeza, ódio, discórdia, etc. PROPOSIÇÃO LXX O homem livre, que vive entre os ignorantes, procura, quanto lhe é possível, evitar os seus favores. DEMONSTRAÇÃO Cada um julga, segundo o seu espírito, o que é bom (ver comentário da proposição 39 da Parte III); portanto, o ignorante, que faz algum favor a alguém, estimá-lo-á segundo o seu espírito e, se vê que esse favor é menos estimado por aquele a quem foi feito, entristecer-se-á (pela proposição 42 da Parte III). Ora, o homem livre procura ligar-se pela amizade aos outros homens (pela proposição 37 desta parte), e não fazer aos homens favores iguais segundo as suas afecções, mas conduzir-se a si mesmo e aos outros pelo juízo livre da Razão; e procura fazer só aquilo que ele sabe ser primordial. Logo, o homem livre, para não ser odiado pelos ignorantes e para não seguir os seus apetites, mas só a Razão, esforçar-se-á, quanto possível, por evitar os seus favores. QED COMENTÁRIO Digo quanto possível. Com efeito, embora os homens sejam ignorantes, são, todavia, homens que podem prestar auxílio humano nas necessidades, preferível a qualquer outro; e, por conseguinte, muitas vezes sucede que é necessário receber um favor deles, e, consequentemente, agradecer-lhes à sua maneira; acresce a isto que, mesmo no evitar os favores, deve haver prudência para não parecermos desprezá-los ou temermos, por avareza, remunerá-los, e assim, enquanto evitamos o seu ódio, para os não ofendermos. Por isso, ao evitar os favores, deve ter-se em conta o útil e o honesto. PROPOSIÇÃO LXXI Só os homens livres são muito gratos uns para com os outros. DEMONSTRAÇÃO Só os homens livres são utilíssimos uns aos outros e se ligam uns aos outros pelo laço mais estreito de amizade (pela proposição 35 desta parte e seu resultado) e se esforçam, por um movimento de amor igual, por fazerem bem uns aos outros (pela proposição 37 desta parte); e, por conseguinte (pela definição 34 das afecções), só os homens livres são gratos uns para com os outros. QED COMENTÁRIO O reconhecimento que os homens que se conduzem pelo desejo cego experimentam uns para com os outros é, a maior parte das vezes, mais uma mercadoria, ou seja, uma trapaça, que um reconhecimento. Além disso, a ingratidão não é afecção. A ingratidão é, no entanto, torpe, porque, a maior parte das vezes, indica que o homem é afetado por um ódio, ira ou soberba ou avareza, etc., excessivos. Com efeito, aquele que, por loucura, não sabe compensar os benefícios recebidos, não é ingrato; e muito menos aquele que não é movido pelas dádivas de uma meretriz a satisfazer-lhe os desejos libidinosos, nem pelos dons do ladrão a calar os seus furtos, ou pelos de outra pessoa semelhante. Pelo contrário, mostra ter um espírito constante aquele que não suporta deixar-se corromper por nenhuma dádiva para sua própria ruína ou para a ruína comum. PROPOSIÇÃO LXXII O homem livre não age nunca com fraude, mas sempre de boa fé. DEMONSTRAÇÃO Se o homem livre fizesse alguma coisa com fraude, enquanto é livre, fá-la-ia segundo o ditame da Razão (com efeito, só nesta medida o chamamos livre); e, por conseguinte, seria virtude agir com fraude (pela proposição 24 desta parte), e, consequentemente (pela mesma proposição) seria mais conveniente a cada um, para a conservação do seu ser, agir com fraude, isto é (como é evidente), seria conveniente aos homens porem-se de acordo só por palavras e serem, de fato, contrários uns aos outros, o que (pelo resultado da proposição 31 desta parte) é absurdo. Logo, o homem livre, etc. QED COMENTÁRIO Se agora alguém perguntasse o seguinte: se um homem pudesse livrar-se de um perigo presente de morte, por perfídia não aconselharia a Razão absolutamente, para conservar o seu ser, a ser pérfido? Responder-se-á da mesma maneira: se a Razão a isso aconselha, então, aconselha a isso todos os homens e, por conseguinte, a Razão aconselha absolutamente todos os homens a não pactuar, senão com fraude, a unir as forças e a ter os direitos comuns, isto é, a não ter, na realidade, direitos comuns, o que é absurdo. PROPOSIÇÃO LXXIII O homem que é conduzido pela Razão é mais livre na cidade, onde vive segundo as leis comuns, do que na solidão, onde obedece só a si mesmo. DEMONSTRAÇÃO O homem que é conduzido pela Razão não é conduzido a obedecer pelo medo (pela proposição 63 desta parte); mas, na realidade em que se esforça por conservar o seu ser segundo o ditame da Razão, isto é (pelo comentário da proposição 66 desta parte), na medida em que se esforça por viver livre, deseja ter em conta a vida e a utilidade comuns (pela proposição 37 desta parte) e, consequentemente (como demonstramos no comentário 2 da proposição 37 desta parte), deseja viver segundo as leis comuns da cidade. Logo, o homem que é conduzido pela Razão, para viver mais livremente, deseja observar os direitos comuns da cidade. QED COMENTÁRIO Estas e outras coisas semelhantes, que nós demonstramos a respeito da verdadeira liberdade do homem, referem-se à fortaleza, isto é (pelo comentário da proposição 59 da Parte III), à força de alma e à generosidade. Não creio que seja necessário demonstrar aqui separadamente todas as propriedades da fortaleza e, muito menos, que um homem forte não tem ódio a ninguém, não se encoleriza contra ninguém, nem inveja, nem se indigna, nem despreza ninguém, nem de forma nenhuma se deixa levar pelo orgulho. Com efeito, isto e tudo o que se refere à verdadeira vida e à religião deduz-se facilmente das proposições 37 e 47 desta parte, a saber: que o ódio deve ser vencido pelo amor e que cada um que é conduzido pela Razão deseja que seja também para os outros o bem que deseja para si. A isto acresce aquilo que notamos no comentário da proposição 50 desta parte e noutros lugares, a saber: que o homem forte considera antes de mais nada que tudo resulta da necessidade da natureza divina e, por conseguinte, que tudo o que pensa ser insuportável e mau, além disso, tudo o que parece ímpio, horrendo, injusto e torpe, provém do fato de conceber as coisas de uma maneira perturbada, mutilada e confusa; e, por isso, esforça-se sobretudo por conceber as coisas como são em si e por afastar os obstáculos do verdadeiro conhecimento, como são o ódio, a ira, a irrisão, o orgulho e outras coisas do gênero que notamos no que precede; e, por conseguinte, esforça-se, quanto possível, como dissemos, por agir bem e por se alegrar. Até onde se estende a virtude humana para conseguir isto, e qual é o seu poder, demonstrá-lo-ei na parte seguinte. APÊNDICE O que eu ensinei, nesta parte, acerca da maneira correta de viver, não está exposto de maneira que possa abraçar-se com um só olhar, mas foi demonstrado por mim dispersamente, isto é, por uma ordem segundo a qual eu poderia deduzir facilmente umas coisas das outras. Propus-me, portanto, recolhê-las aqui e reduzi-las aos seus principais capítulos. CAPITULO I Todos os nossos esforços ou desejos resultam da necessidade da nossa natureza de tal maneira que podem ser conhecidos ou por ela mesma, como por sua próxima causa, ou enquanto somos parte da Natureza, que não pode conceber-se de uma maneira adequada por si mesma, sem os outros indivíduos. CAPÍTULO II Os desejos que resultam da nossa natureza de tal maneira que só podem ser conhecidos por ela mesma são os que se referem à alma, enquanto esta se concebe como composta de ideias adequadas. Os outros desejos, pelo contrário, não se referem à alma senão enquanto concebe as coisas inadequadamente. A sua força e crescimento devem definir-se não pela potência humana, mas pela potência das coisas que são exteriores a nós. E, por isso, àqueles dá-se com razão o nome de ações, enquanto que a estes se dá o nome de paixões. Aqueles, com efeito, indicam sempre a nossa potência, estes, ao contrário, a nossa impotência e um conhecimento mutilado. CAPITULO III As nossas ações, isto é, aqueles desejos que são definidos pela potência do homem, ou seja, pela Razão, são sempre boas; as outras, pelo contrário, tanto podem ser boas como más. CAPITULO IV Por conseguinte, na vida, é primeiro que tudo útil aperfeiçoar, na medida do possível, a inteligência, ou seja, a Razão, e só nisto consiste a suprema felicidade, ou seja, a suprema beatitude do homem. É que a beatitude não é outra coisa que o contentamento do espírito, que provém do conhecimento intuitivo de Deus. Ora, aperfeiçoar a inteligência também não é outra coisa que conhecer a Deus, os atributos de Deus e as ações que resultam da necessidade da sua própria natureza. Por isso, o fim último do homem, que é conduzido pela Razão, isto é, o seu desejo supremo, por meio do qual procura regular todos os outros, é aquele que o leva a conceber-se adequadamente a si mesmo e a todas as coisas que podem cair sob o seu entendimento. CAPÍTULO V Portanto, não há vida racional sem inteligência ; as coisas são boas só na medida em que ajudam o homem a gozar da vida da alma, que se define pela inteligência. Das coisas que, ao contrário, impedem que o homem possa aperfeiçoar a Razão e gozar da vida racional, dessas somente nós dizemos que são más. CAPÍTULO VI Mas, como tudo aquilo de que o homem é causa eficiente é necessariamente bom, então nada de mau pode acontecer ao homem senão por parte das coisas externas, a saber: na medida em que é parte de toda a Natureza, a cujas leis a natureza humana é obrigada a obedecer e à qual deve acomodar-se de um número quase infinito de maneiras. CAPÍTULO VII E impossível que o homem não seja uma parte da Natureza e não siga a ordem comum desta. Se, entretanto, vive entre indivíduos tais que a sua natureza está de acordo com a sua, por isso mesmo a capacidade de agir do homem é secundada e favorecida. Mas se, ao contrário, ele se encontra entre indivíduos tais que de forma nenhuma estão de acordo com a sua natureza, com dificuldade poderá acomodar-se a eles sem uma grande mudança da sua natureza. CAPÍTULO VIII Tudo o que existe na Natureza que julgamos ser mau, por outras palavras, que julgamos poder impedir que nós existamos e gozemos da vida racional, é-nos permitido afastá-lo de nós por aquela via que pareça mais segura. Ao contrário, tudo o que existe, que nós julgamos bom, por outras palavras, que nós julgamos ser útil para a conservação do nosso ser e para gozar da vida racional, é-nos permitido tomá-lo para nosso uso e usar dele de qualquer maneira; e, de um modo geral, é permitido a cada um, por direito soberano da Natureza, fazer aquilo que julga contribuir para sua utilidade. CAPÍTULO IX Nada pode concordar melhor com a natureza de uma coisa que os outros indivíduos da mesma espécie; e, por conseguinte (pelo capítulo VII) nada existe mais útil ao homem para conservar o seu ser e gozar da vida racional do que o homem que é conduzido pela Razão. Depois, como não conhecemos nada entre as coisas singulares que seja mais importante que o homem que é conduzido pela Razão, não existe então nada de melhor, por que se possa dar prova de habilidade e de talento, que instruir os homens de tal maneira que vivam, enfim, sob o império da própria Razão. CAPÍTULO X Na medida em que os homens são animados uns contra os outros pela inveja ou outra afecção de ódio, são contrários uns aos outros, e, consequentemente, tanto mais para temer quanto mais poderosos são os outros indivíduos da Natureza. CAPÍTULO XI No entanto, não é pelas armas, mas pelo amor e pela generosidade que se vencem as almas. CAPÍTULO XII Aos homens é-lhes útil, primeiro que tudo, estreitar as relações e unirem-se pelos vínculos que melhor podem fazer deles todos uma só coisa, e, de uma maneira geral, é-lhes útil fazer aquilo que serve para consolidar as amizades. CAPÍTULO XIII Mas. para isso, requer-se arte e vigilância. Com efeito, os homens são mutáveis (é que são raros os que vivem segundo os preceitos da Razão), e, no entanto, a maior parte das vezes são invejosos e mais inclinados à vingança que à misericórdia. Para aceitar cada um segundo o seu próprio espírito e para se guardar de imitar as suas afecções ê, por isso, necessária uma singular força de alma. Mas os que, ao contrário, não sabem senão censurar os homens e escalpelar os vícios de preferência a ensinar-lhes as virtudes, e que não sabem fortificar os espíritos dos homens mas sim deprimi-los, esses são insuportáveis para si e para os outros. Daí que muitos, em virtude de uma impaciência excessiva de alma e de um falso gosto da religião, tenham preferido viver no meio dos animais a viver entre os homens. Como as crianças e os adolescentes que não podem suportar de ânimo igual as censuras de seu pais se refugia m no serviço militar, eles preferem os inconvenientes da guerra e as ordens do chefe às comodidades da família e às admoestações paternas, e suportam que lhes imponham qualquer carga, desde que se vinguem dos pais. CAPÍTULO XIV Embora, portanto, os homens se regulem em tudo, a maior parte das vezes, segundo as suas paixões, todavia, da comum sociedade deles resultam muito mais vantagens que males. Por isso, vale mais suportar com ânimo igual as suas injúrias e trabalhar por aquilo que contribui para estabelecer a concórdia e a amizade. CAPITULO XV Aquilo que origina a concórdia é o que se refere à justiça, à equidade e à honestidade. Com efeito, os homens, além daquilo que é injusto e iníquo, suportam também com dificuldade o que é considerado como torpe, por outros termos, que alguém rejeite os costumes recebidos da cidade. Mas, para concilia r o amor, são sobretudo necessárias aquelas coisas que se referem à religião e à piedade. A respeito delas, ver os comentários 1 e 2 da proposição 37, o comentário da proposição 46 e o comentário da proposição 73 da Parte IV. CAPITULO XVI Além disso, costuma a concórdia originar-se, a maior parte das vezes, do medo, mas então sem boa fé. Acrescente-se que o medo provém da impotência da alma e, por isso, não tem relação com o uso da Razão; nem tampouco a comiseração, embora ela pareça ser uma espécie de piedade. CAPÍTULO XVII Além disso, os homens deixam-se vencer também pela liberalidade, sobretudo aqueles que não têm com que possam adquirir as coisas que são necessárias para a sua subsistência. Todavia, prestar auxílio aos indigentes supera em muito as forças e o interesse de um particular. É que as riquezas de um particular são fracas demais para serem suficientes para isso. Além disso, a capacidade intelectual de um só homem é demasia do limitada para que ele possa ligar-se pela amizade a todos; por isso, o cuidado dos pobres recai sobre a sociedade inteira e só diz respeito ao interesse comum. CAPITULO XVIII Na aceitação dos benefícios e na retribuição dos favores deve haver um cuidado completamente diferente. Sobre este assunto, ver o comentário da proposição 70 e o comentário da proposição 71 da Parte IV. CAPÍTULO XIX O amor sensual, isto é, a paixão sexual, que nasce da beleza física, e em geral todo amor que reconhece outra causa além da liberdade de alma, muda-se facilmente em ódio; a não ser que, o que é pior, ele seja uma espécie de delírio e então é a discórdia mais do que a concórdia que é alimentada. Ver resultado da proposição 31 da Parte III. CAPÍTULO XX No que diz respeito ao matrimônio, é certo que ele está de acordo com a Razão, se o desejo da união corporal não é produzido só pela beleza física mas também pelo amor de procria r os filhos e de os educar sabia mente; e, além disso, se o amor de ambos, isto é, do homem e da mulher, não tem por causa só a beleza física, mas sobretudo a liberdade de alma. CAPÍTULO XXI A adulação também gera a concórdia, mas mediante o feio vício da escravidão, ou mediante a perfídia ; com efeito, ninguém é mais seduzido pela adulação que os soberbos, os quais querem ser os primeiros e não o são. CAPITULO XXII A abjeção tem uma falsa aparência de piedade e religião. E, embora a abjeção seja contrária ao orgulho, todavia o abjeto está perto do orgulhoso. Ver o comentário da proposição 57 da Parte IV. CAPÍTULO XXIII A vergonha contribui também para a concórdia, mas só naquilo que não pode ocultar-se. Depois, como a vergonha é uma espécie de tristeza, ela não tem relação com o uso da Razão. CAPÍTULO XXIV As outras afecções de tristeza relativamente aos homens opõem-se diretamente à justiça, à equidade, à honestidade, à piedade e à religião; e, embora a indignação se pareça a uma espécie de equidade, todavia vive-se sem lei onde é permitido a cada um julgar as ações de outrem e fazer justiça a si mesmo ou aos outros. CAPÍTULO XXV A modéstia, isto é, o desejo de agradar aos homens, que é determinado pela Razão, refere-se à piedade (como dissemos no comentário 1 da proposição 37 da Parte IV). Mas, se ela nasce de uma afecção, é ambição, por outras palavras, um desejo pelo qual os homens a maior parte das vezes excitam discórdia s e sedições por uma falsa aparência de piedade. Com efeito, aquele que deseja ajudar os outros, por conselhos ou por ações, a gozarem ao mesmo tempo do bem supremo, esse procurará sobretudo concilia r o seu amor e não fazer-se admirar por eles, de maneira que este método seja denominado por seu próprio nome. Procurará também não dar, absolutamente, nenhum motivo de inveja. Depois, nas conversas comuns, evitará referir os vícios dos homens e tomará cuidado em não falar senão parcimoniosamente da impotência humana, mas falará largamente da virtude, ou seja, da potência humana e da via pela qual pode aperfeiçoar-se, de maneira que os homens, levados não pelo medo ou pela aversão, mas só pela afecção da alegria, se esforcem por viver, quanto possível, segundo os preceitos da Razão. CAPÍTULO XXVI Afora os homens, não encontramos na Natureza nenhuma coisa singular cuja alma nos possa dar alegria e que nós possamos ligar a nós por amizade ou por qualquer gênero de relação social; e, por conseguinte, tudo o que há na Natureza, afora os homens, a regra do útil não pede que nós o conservemos, mas ensina-nos segundo os seus usos diversos a conservá-lo, a destruí-lo, ou a adaptá-lo, de qualquer maneira, ao nosso uso. CAPÍTULO XXVII A utilidade que nós tiramos das coisas que estão fora de nós, além da experiência e do conhecimento que nós adquirimos pelo fato de as observarmos e por nós as mudarmos de certas formas noutras, consiste principalmente na conservação do corpo; e, por esta razão, são-nos primeiro que tudo úteis aquelas coisas que podem alimentar e nutrir o corpo de tal maneira que todas as suas partes possam desempenhar corretamente a sua missão. É que, quanto mais apto é o corpo para poder ser afetado de vários modos e para afetar de modos diversos os corpos externos, tanto mais a alma é apta para pensar (ver proposições 38 e 39 da Parte IV). Mas parece que há muito poucas coisas desta espécie na Natureza; por isso, para alimentar o corpo como se requer, é necessário fazer uso de muitos alimentos de natureza diversa. É que o corpo humano é composto de muitas partes de natureza diversa, as quais carecem de alimento contínuo e varia do para que o corpo inteiro seja igualmente apto para tudo o que pode resultar da sua natureza e, consequentemente, para que a alma seja também igualmente apta para conceber muitas coisas. CAPITULO XXVIII Mas, para conseguir isto, com dificuldade bastariam as forças de cada um, se os homens não prestassem os seus serviços uns aos outros. Na realidade, o dinheiro tornou-se um instrumento de aquisição de todas as coisas. Daí veio que seja sobretudo a sua imagem que costuma ocupar a alma do vulgo. É que os homens dificilmente podem imaginar uma espécie de alegria, a não ser acompanhada da ideia de dinheiro como causa. CAPÍTULO XXIX Mas este vício é próprio só daqueles que não procuram o dinheiro por causa da indigência ou das necessidades, mas porque aprenderam a arte de enriquecer e se orgulham de a possuir. Além disso, eles alimentam o corpo como toda gente, mas parcimoniosamente, pois creem perder tanto de seus bens quanto eles gastam na conservação do corpo. Mas os que conhecem o verdadeiro uso do dinheiro e regulam a medida das riquezas só pelas suas necessidades vivem contentes com pouco. CAPITULO XXX Sendo, portanto, boas as coisas que ajudam as partes do corpo a desempenhar a sua missão e consistindo a alegria em que a capacidade do homem, enquanto composto de alma e corpo, é favorecida e aumentada, então todas as coisas que dão alegria são boas. Todavia, como, pelo contrário, as coisas não agem com o fim de nos afetarem de alegria nem a sua potência de agir é regulada pela nossa utilidade, e, enfim como a alegria se refere, a maior parte das vezes, às afecções de alegria (a não ser que a Razão e a vigilância intervenham), consequentemente, mesmo os desejos que delas nascem têm excesso. A isto acresce que pelas afecções nós temos por coisas primordiais aquilo que presentemente é agradável, e que nós não podemos julgar das coisas futuras com igual afecção de alma. Ver o comentário da proposição 44 e o comentário da proposição 60 da Parte IV. CAPÍTULO XXXI A superstição, pelo contrário, parece estabelecer que é bom aquilo que traz tristeza e, inversamente, que é mau o que traz alegria. Mas, como já dissemos (ver comentário da proposição 45 da Parte IV), ninguém, a não ser o invejoso, se alegra com a minha impotência e com os meus males. Com efeito, quanto maior é a alegria de que somos afetados, tanto maior é a perfeição a que passamos, e, consequentemente, tanto mais participamos da natureza divina. E nunca pode ser má a alegria que é regulada pela verdadeira lei da nossa utilidade. Aquele que, pelo contrário, é conduzido pelo medo, e faz o bem para evitar o mal, esse não é conduzido pela Razão. CAPÍTULO XXXII Mas a potência humana é muito limitada e é infinitamente ultrapassada pela potência das causas externas; e, por conseguinte, nós não temos um poder absoluto de adaptar ao nosso uso as coisas que estão fora de nós. Todavia, quanto às coisas que nos acontecem contra aquilo que pede a lei da nossa utilidade, suportá-las-emos com ânimo igual, se tivermos consciência de termos cumprido a nossa função; de que a potência que temos não podia ir até ao ponto de nos permitir evitá-las; e de que nós somos uma parte da Natureza, cuja ordem seguimos. Se compreendermos isto de uma maneira clara e distinta, essa parte de nós, que é definida pela inteligência, isto é, a melhor parte de nós, encontrará nisso pleno contentamento e esforçar-se-á por perseverar nesse contentamento. Com efeito, enquanto nós compreendemos não podemos desejar nada senão aquilo que é necessário, nem contentarmo-nos absolutamente com nada senão com a verdade; e, por conseguinte, enquanto compreendemos corretamente estas coisas, o esforço da melhor parte de nós está de acordo com a ordem da Natureza inteira. Quinta Parte Da Potência, da Inteligência ou da Liberdade Humana. PREFACIO Passo, finalmente, a outra parte da Ética, que trata da maneira, ou seja, da via que conduz à liberdade. Nesta parte, pois, tratarei da potência da Razão, mostrando o que pode a Razão contra as afecções; e, depois, o que é a liberdade ou beatitude da alma. Por aí veremos como o sábio é superior ao ignorante. Todavia, a maneira e a via por que a inteligência deve aperfeiçoar-se, e depois a arte com que deve cuidar-se do corpo para que possa desempenhar convenientemente a sua missão, não têm relação com este assunto. Com efeito, a segunda coisa é da competência da medicina, e a primeira da lógica. Portanto, como disse, só tratarei aqui da potência da alma, ou seja, da Razão e, primeiro que tudo, eu mostrarei quanto (= quão grande) e qual seja o império que ela tem para entravar e governar as afecções. Com efeito, já demonstramos atrás que nós não temos império absoluto sobre elas. No entanto, os estoicos julgaram que elas dependia m em absoluto da nossa vontade e que nós podemos imperar absolutamente sobre elas. Todavia, perante os protestos da experiência, e não pelos seus princípios, foram obrigados a confessar que se requer uma prática e um estudo bem grandes para as entravar e governar, o que um deles tentou demonstrar com o exemplo dos dois cães (se bem me recordo), um de guarda e outro de caça: pelo exercício, ele pôde, por fim, conseguir que o cão de guarda se acostumasse a caçar e, ao contrário, o cão de caça deixasse de perseguir as lebres. Descartes inclina-se bastante para esta opinião. É que ele admite que a alma, ou seja, o espírito, está unida principalmente a uma parte do cérebro, isto é, à glândula chamada pineal, por meio da qual a alma sente todos os movimentos que se produzem no corpo, assim como os objetos externos. Admite, ainda, que a alma pode movê-la em vários sentidos só pelo fato de o querer. Admite que esta glândula está suspensa no meio do cérebro de tal maneira que ela pode ser movida pelo mais pequeno movimento dos espíritos animais. Admite, depois, que esta glândula está suspensa no meio do cérebro de um número de maneiras diversas tão grande como são diferentes as maneiras de os espíritos animais chocarem com ela, e que, além disso, imprimem nela um número tão grande de traços diferentes como são vários os objetos externos que impelem para ela os espíritos animais. Donde sucede que, se a glândula se encontra em seguida suspensa pela vontade da alma, que a move em sentidos diversos, se encontra suspensa desta ou daquela maneira pela qual já foi uma vez suspensa pelos espíritos, agitados desta ou daquela maneira. então a própria glândula impelirá e determinará os espíritos animais do mesmo modo que antes tinham sido impelidos por uma suspensão semelhante da glândula. Além disso, admite que cada vontade da alma é unida pela Natureza a um certo movimento da glândula. Por exemplo, se alguém tem vontade de olhar para um objeto afastado, esta vontade fará que a pupila se dilate; mas se pensa só na dilatação da pupila, nada lhe adianta ter esta vontade, porque a Natureza não uniu o movimento da glândula, que serve para impelir os espíritos para o nervo óptico de modo conveniente para a dilatação ou contração da pupila, não a uniu à vontade de a dilatar ou de a contrair, mas só à vontade de olhar para os objetos afastados ou próximos. Admite, finalmente, que, embora cada movimento desta glândula pareça ter sido ligado pela Natureza a cada um dos nossos pensamentos desde o começo da nossa vida, podem, todavia, pelo hábito ligar-se a outros, o que tenta provar o artigo 50 da Parte I das Paixões da Alma. Daí conclui que não há nenhuma alma tão fraca que não possa, quando é bem dirigida, adquirir um domínio absoluto sobre as suas paixões. Com efeito, estas, como ele as define, são percepções, ou sentimentos ou emoções da alma que se referem, especialmente, a ela e que (note-se bem) são produzidas, conservadas e corroboradas por algum movimento dos espíritos (ver artigo 27 da parte I das Paixões da Alma). Mas, visto que a uma vontade qualquer podemos ligar um movimento qualquer da glândula e, por consequência, dos espíritos, e que a determinação da vontade depende só do nosso poder; então, se nós determinássemos a nossa vontade por juízos certos e firmes, segundo os quais queremos dirigir as ações da nossa vida, e se nós ligássemos os movimentos das paixões que queremos ter a estes juízos, adquiriríamos um império absoluto sobre as nossas paixões. Tal é o parecer deste homem ilustríssimo (tanto quanto eu posso conjeturá-lo segundo as suas palavras), parecer esse que eu dificilmente acreditaria que proviesse de um homem tão ilustre, se ele fosse menos sutil. Por certo, eu não posso admirar-me suficientemente que um filósofo, que tinha determinado firmemente nada deduzir senão de princípios evidentes e de nada afirmar senão aquilo que percebesse clara e distintamente, e que tantas vezes censurara os escolásticos por eles terem querido explicar as coisas obscuras por qualidades ocultas, não posso admirar-me suficientemente que ele admita uma hipótese mais oculta que todas as qualidades ocultas. Que entende ele — por favor — pela união da alma e do corpo? Que conceito claro e distinto tem ele — pergunto — de um pensamento estreitamente unido a uma determinada parcela de quantidade? Quereria muito que ele tivesse explicado pela sua causa próxima esta união. Mas ele tinha concebido a alma de tal modo distinta do corpo que não podia apresentar nenhuma causa singular nem desta união nem da própria alma, mas foi-lhe necessário recorrer à causa de todo o Universo, isto é, a Deus. Depois, quereria muito saber quantos graus de movimento pode a alma dar a esta glândula pineal e com que força pode ela tê-la suspensa. É que não sei se esta glândula é movida daqui para ali pela alma mais lentamente ou mais depressa que pelos espíritos animais; e se os movimentos das paixões que nós ligamos estreitamente a juízos firmes não podem desligar-se outra vez dos mesmos por causas corpóreas; daqui se seguiria que, embora a alma tivesse decidido caminhar ao encontro dos perigos e tivesse juntado a esta determinação o movimento de audácia, todavia, à vista do perigo, a glândula seria suspensa de tal maneira que a alma não poderia pensar senão na fuga. E, como, por certo, não há nenhuma relação entre a vontade e o movimento, também não há nenhuma resultante da potência, ou seja, das forças da alma com as do corpo. E, consequentemente, as forças deste não podem nunca ser determinadas pelas forças daquela. Acrescente-se a isto que esta glândula não se encontra situada no meio do cérebro de tal maneira que possa ser movida daqui para ali tão facilmente nem de tantas maneiras, e que nem todos os nervos se estendem até as cavidades do cérebro. Por último, ponho de parte tudo o que ele afirma acerca da vontade e da sua liberdade, visto que eu demonstrei mais que suficientemente que tudo isso é falso. Portanto, visto que a potência da alma, como atrás demonstrei, é definida só pela inteligência, os remédios das afecções, remédios esses dos quais eu creio que todos têm experiência, mas que não absorvem com cuidado nem veem distintamente, só os determinaremos pelo conhecimento da alma, e deste mesmo conhecimento nós deduziremos tudo o que diz respeito à sua beatitude. AXIOMAS I. Se, no mesmo sujeito, são excitadas duas ações contrárias, deverá necessariamente produzir-se, em ambas ou numa só, uma mudança, até deixarem de ser contrárias. II. A potência de um efeito é definida pela potência da sua causa, na medida em que a essência dele é explicada ou definida pela essência da sua causa. (Este Axioma é evidente pela proposição 7 da Parte III.) PROPOSIÇÃO I Como os pensamentos e as ideias das coisas se ordenam e encadeiam na alma, exatamente da mesma maneira as afecções do corpo, ou seja, as imagens das coisas, se ordenam e encadeia m no corpo. DEMONSTRAÇÃO A ordem e a conexão das ideias são o mesmo (pela proposição 7 da Parte 11) que a ordem e a conexão das coisas e, inversamente, a ordem, e a conexão das coisas são o mesmo (pelo resultado das proposições 6 e 7 da Parte II) que a ordem e a conexão das ideia s. Por isso, assim como a ordem e a conexão das ideias na alma se produzem segundo a ordem e o encadeamento das afecções do corpo (pela proposição 18 da Parte 11), assim, inversamente (pela proposição 2 da Parte 111), a ordem e a conexão das afecções do corpo se produzem da mesma maneira que os pensamentos e as ideias das coisas se ordenam e se encadeia m na alma. QED (Quod erat demonstrandum) - Como se queria demonstrar. PROPOSIÇÃO II Se nós separamos pelo pensamento uma comoção da alma, ou seja, uma afecção da sua causa externa, e a ligamos a outros pensamentos, então o amor ou o ódio para com a causa externa, assim como também as flutuações da alma, que nascem destas afecções, serão destruídos. DEMONSTRAÇÃO Com efeito, aquilo que constitui a forma do amor ou do ódio é a alegria ou a tristeza acompanhada da ideia de uma causa externa (pelas definições 6 e 7 das afecções); logo, suprimida esta ideia, suprime-se simultaneamente a forma do amor ou do ódio; e, por conseguinte, estas afecções e as que delas provêm são destruídas. QED PROPOSIÇÃO III Uma afecção, que é paixão, deixa de ser paixão no momento em que dela formamos uma ideia clara e distinta. DEMONSTRAÇÃO Uma afecção que é paixão é uma ideia confusa (pela definição geral das afecções). Se, portanto, formarmos uma ideia clara e distinta dessa afecção, esta ideia não se distinguirá senão pela relação (pela proposição 21 da Parte II e seu comentário) desta afecção, enquanto ela se refere só à alma; e, por conseguinte (pela proposição 3 da Parte III), a afecção deixa de ser paixão. RESULTADO Portanto, uma afecção está tanto mais em nosso poder e a alma sofre tanto menos da sua parte quanto melhor nós a conhecemos. PROPOSIÇÃO IV Não há nenhuma afecção do corpo de que nós não possamos formar um conceito claro e distinto. DEMONSTRAÇÃO O que é comum a todas as coisas não pode conceber-se senão adequadamente (pela proposição 38 da Parte II); e, por conseguinte (pela proposição 12 e o lema 2, que se encontra a seguir ao comentário da proposição 13 da Parte II), não há nenhuma afecção do corpo de que não possamos formar um conceito claro e distinto. QED RESULTADO Daqui se segue que não há nenhuma afecção de que não possamos formar um conceito claro e distinto. Com efeito, a afecção é a ideia de uma modificação do corpo (pela definição geral das afecções), a qual, por isso, deve envolver um conceito claro e distinto. COMENTÁRIO Visto que não existe nada de que se não siga algum efeito (pela proposição 36 da Parte I) e que tudo o que se segue de uma ideia, que é em nós adequada, o compreendemos clara e distintamente (pela proposição 40 da Parte II), resulta daqui que cada um tem o poder de se compreender a si e às suas afecções clara e distintamente, se não em absoluto, pelo menos em parte e, por conseguinte, de fazer de maneira que sofra menos por parte delas. Portanto, devemos sobretudo trabalhar para conhecermos clara e distintamente, quanto possível, cada afecção de maneira que a alma seja determinada pela afecção a pensar nas coisas que ela percebe clara e distintamente, e nas quais encontra pleno contentamento; e, por conseguinte, a separar a afecção do pensamento da causa externa e a associá-la a pensamentos verdadeiros. Donde resultará que não só o amor e o ódio, etc., serão destruídos (pela proposição 2 desta parte), mas, ainda, que os apetites ou desejos, que costumam nascer de tais afecções, não poderão ter excesso (pela proposição 61 da Parte IV). É que, deve notar-se, em primeiro lugar, que é em virtude de um só e mesmo apetite que o homem se diz tanto agir como sofrer. Por exemplo, quando nós demonstramos que a natureza humana é constituída de tal maneira que cada um deseja que os outros vivam à sua maneira (ver comentário da proposição 31 da Parte III), este apetite, num homem que não é conduzido pela Razão, é paixão, que se chama ambição e não difere muito do orgulho; e, ao contrário, num homem que vive segundo o ditame da Razão, é ação, ou seja, virtude, que se chama piedade (ver comentário 1 da proposição 37 da Parte IV e a segunda demonstração da mesma proposição). E, desta maneira, todos os apetites, ou seja, os desejos, só são paixões, na medida em que nascem de ideias adequadas. Com efeito, todos os desejos, pelos quais somos determinados a fazer alguma coisa, tanto podem nascer de ideias adequadas como de ideias inadequadas (ver proposição 59 da Parte IV). E (para voltar ao ponto donde me desviei nesta digressão) não se pode imaginar nenhum outro remédio que dependa do nosso poder mais excelente para as afecções do que aquele que consiste no verdadeiro conhecimento delas, visto que a alma não tem outro poder que não seja o de pensar e de formar ideias adequadas, como demonstramos atrás (pela proposição 3 da Parte III). PROPOSIÇÃO V A afecção relativa a uma coisa que nós imaginamos simplesmente e não como necessária, nem como possível, nem como contingente, em igualdade de circunstâncias, é a maior de todas. DEMONSTRAÇÃO A afecção para com uma coisa, que nós imaginamos ser livre, é maior que relativamente a uma coisa necessária (pela proposição 49 da Parte III), e, consequentemente, é ainda maior do que relativamente àquela coisa que imaginamos como possível ou contingente (pela proposição 11 da Parte IV). Ora, imaginarmos alguma coisa como livre não pode ser outra coisa que imaginarmos a coisa simplesmente, enquanto ignorarmos as causas por que ela foi determinada a agir (pelo que demonstramos no comentário da proposição 35 da Parte II). Logo, a afecção relativa a uma coisa que imaginamos simplesmente em igualdade de circunstâncias é maior que relativamente a uma coisa necessária, possível, ou contingente e, consequentemente, é a maior. QED PROPOSIÇÃO VI Na medida em que a alma conhece as coisas como necessária s, tem maior poder sobre as afecções, por outras palavras, sofre menos por parte delas. DEMONSTRAÇÃO A alma compreende que todas as coisas são necessárias (pela proposição 29 da Parte I) e que são determinadas a existir e a operar por um encadeamento infinito de causas (pela proposição 28 da Parte I); e, por conseguinte (pela proposição precedente), nessa mesma medida consegue sofrer menos por parte das afecções que nascem destas coisas e (pela proposição 48 da Parte III) é menos afetada relativamente a elas. QED COMENTÁRIO Quanto mais este conhecimento, a saber: que as coisas são necessárias, versa acerca das coisas singulares que nós imaginamos mais distinta e mais vivamente, tanto maior é este poder da alma sobre as afecções, o que a própria experiência também atesta. Vemos, com efeito, que a tristeza proveniente de um bem que pereceu é mitigada no momento em que o homem, que o perdeu, considera que ele de forma nenhuma podia ser conservado. Da mesma maneira, ainda, vemos que ninguém tem pena de uma criança por ela não saber falar, caminhar, raciocinar e, finalmente, por viver tantos anos quase sem consciência de si. Mas, se a maior parte dos homens nascesse adulta e só um ou outro criança, então cada um teria pena das crianças. É que, neste caso, consideraria a infância não como coisa natural e necessária, mas como um vício ou falta da Natureza. Poderíamos, ainda, fazer várias observações desta espécie. PROPOSIÇÃO VII As afecções que nascem da Razão ou são excitadas por ela, se se tem em consideração o tempo, são mais fortes que aquelas que se referem às coisas singulares, que nós contemplamos como ausentes. DEMONSTRAÇÃO Não contemplamos uma coisa como ausente em virtude de uma afecção pela qual a imaginamos, mas em virtude de o corpo ser afetado por outra afecção que exclui a existência da mesma coisa (pela proposição 17 da Parte II). Por isso, a afecção que se refere a uma coisa, que nós contemplamos como ausente, não é de uma natureza tal que supere todas as outras ações do homem e a sua potência (acerca disto, ver a proposição 9 da Parte IV) mas, pelo contrário, é de uma natureza tal que pode ser entravada, de algum modo (pela proposição 9 da Parte IV), pelas afecções que excluem a existência da sua causa externa. Ora, a afecção que nasce da Razão refere-se necessariamente às propriedades comuns das coisas (ver a definição de Razão no comentário 2 da proposição 40 da Parte II), que nós contemplamos sempre como presentes (com efeito, não pode existir nada que exclua a sua existência presente) e que imaginamos sempre do mesmo modo (pela proposição 38 da Parte II). Por isso, tal afecção permanece sempre a mesma; e, consequentemente (pelo axioma I desta parte), as afecções que lhe são contrárias e que não são alimentadas pelas suas causas externas deverão acomodar-se cada vez mais a ela, até não serem mais contrárias; e, nesta medida, a afecção que nasce da Razão é mais poderosa. QED PROPOSIÇÃO VIII Quanto maior é o número de causas simultâneas, pelas quais uma afecção é excitada, tanto maior ela é. DEMONSTRAÇÃO Várias causas simultâneas podem mais do que se fossem em número inferior (pela proposição 7 da Parte III); e, por conseguinte (pela proposição 5 da Parte IV), quanto mais alguma afecção é excitada por um grande número de causas simultâneas, tanto mais forte ela é. QED COMENTÁRIO Esta proposição é ainda evidente pelo axioma 2 desta parte. PROPOSIÇÃO IX A afecção que se refere a muitas causas diferentes, que a alma contempla ao mesmo tempo que a própria afecção, é menos prejudicial e sofremos menos com ela e, relativamente a cada causa em particular, somos menos afetados do que se se tratasse de uma outra afecção de igual força que se refere a uma só ou a causas menos numerosas. DEMONSTRAÇÃO Uma afecção só é má ou prejudicial na medida em que a alma é impedida por ela de poder pensar (pelas proposições 26 e 27 da Parte IV); e, por conseguinte, a afecção pela qual a alma é determinada a contemplar muitos objetos simultaneamente é menos prejudicial do que outra afecção, de igual força, que retém a alma só na contemplação de um ou de um número reduzido de objetos de tal maneira que ela não possa pensar noutros. O que era o primeiro ponto. Depois, visto que a essência da alma, isto é (pela proposição 7 da Parte III), a sua potência, consiste só no conhecimento (pela proposição 11 da Parte II), então a alma sofre menos com a afecção pela qual é determinada a contemplar muitos objetos simultaneamente, do que com uma afecção, de igual força, que retém a alma ocupada só na contemplação de um ou de um número reduzido de objetos. Era este o segundo ponto. Finalmente, esta afecção (pela proposição 48 da Parte III), na medida em que se refere a muitas causas externas, é também menor relativamente a cada uma delas. QED PROPOSIÇÃO X Durante o tempo em que nós não somos dominados pelas afecções que são contrárias à nossa natureza, durante esse mesmo tempo nós temos o poder de ordenar e encadear as afecções do nosso corpo segundo a ordem relativa à inteligência. DEMONSTRAÇÃO As afecções que são contrárias à nossa natureza, isto é (pela proposição 30 da Parte IV), que são más, são más na medida em que impedem a alma de compreender (pela proposição 27 da Parte IV). Portanto, durante o tempo em que não somos dominados por afecções que não são contrárias à nossa natureza, durante esse mesmo tempo a potência da alma, pela qual ela faz esforços para conhecer as coisas (pela proposição 26 da Parte IV), não é impedida, e, por conseguinte, durante esse tempo ela tem o poder de formar ideias claras e distintas e de as deduzir umas das outras (ver o comentário 2 da proposição 40 e o da proposição 47 da Parte II); e, consequentemente (pela proposição 1 desta parte), durante esse tempo nós temos o poder de ordenar e de encadear as afecções do corpo segundo a ordem relativa à Razão. QED COMENTÁRIO Por este poder de ordenar e encadear corretamente as afecções do corpo, podemos conseguir não sermos facilmente afetados pelas más afecções. Com efeito (pela proposição 7 desta parte), requer-se maior força para entravar as afecções ordenadas e encadeadas segundo a ordem da Razão do que para entravar as incertas e as vagas. Portanto, o melhor que podemos fazer, enquanto não temos um conhecimento perfeito das nossas afecções, é conceber uma correta norma de viver, por outros termos, regras de vida precisas, e retê-las na memória e aplicá-las continuamente às coisas particulares que se apresentam frequentemente na vida, de maneira que a nossa imaginação seja profundamente afetada por elas e que elas nos estejam sempre presentes. Por exemplo, pusemos entre as normas de vida (ver proposição 46 da Parte IV e seu comentário) que o ódio deve ser vencido pelo amor, ou seja, pela generosidade, e não ser pago com um ódio recíproco. Mas, para este preceito da Razão nos estar sempre presente ao espírito, quando for conveniente, devemos pensar e meditar frequentemente nas injúrias dos homens e de que maneira e por que via elas podem ser repelidas o melhor possível pela generosidade; assim, com efeito, nós juntaremos a imagem da injúria à imaginação desta regra, e estar-nos-á sempre presente ao espírito (pela proposição 18 da Parte II) quando nos fizerem alguma injúria. Mas se nós tivermos também presente ao espírito o princípio da nossa verdadeira utilidade e ainda o do bem que resulta da mútua amizade e da sociedade comum e, além disso, que de uma norma de vida correta provém o supremo contentamento da alma (pela proposição 52 da Parte IV) e que os homens, como as outras coisas, agem por necessidade de natureza; então a injúria, ou seja, o ódio que dela costuma resultar, ocupará uma parte mínima da imaginação e será facilmente vencida; ou se a cólera, que costuma nascer das injustiças maiores, não é tão facilmente vencida, será, no entanto, vencida, embora não sem flutuação da alma, num espaço de tempo muito menor do que se nós não tivéssemos assim premeditado estas coisas, como é evidente pelas proposições 6,7 e 8 desta parte. Para nos desembaraçarmos do medo, devemos pensar da mesma maneira na força de alma; quer dizer, devemos enumerar e imaginar frequentemente os perigos ordinários da vida e a melhor maneira de os evitar e superar pela presença de espírito e pela firmeza de alma. Mas deve notar-se que, na ordenação dos nossos pensamentos e imaginações, devemos atender sempre (pelo resultado da proposição 63 da Parte IV e pela proposição 59 da Parte III) àquilo que há de bom em cada coisa, a fim de sermos, assim, sempre determinados a agir pela afecção da alegria. Por exemplo, se alguém vê que busca demasia do a glória, pense no uso correto dela, em vista de que fim deve ela ser procurada e por que meios pode ser adquirida, e não no abuso dela, na sua vaidade e na inconstância dos homens ou noutras coisas semelhantes. Com efeito, é com tais pensamentos que os mais ambiciosos se afligem mais, quando desesperam de conseguir uma honra a que aspiram e, enquanto vomitam a sua cólera, querem passar por sábios. Por isso, é certo que os mais desejosos de glória são os que mais clamam contra o abuso dela e contra a vaidade do mundo. E isto não é exclusivo dos ambiciosos, mas comum a todos aqueles para quem a sorte é adversa e aos que são de espírito impotente. Com efeito, o que é pobre e ainda por cima avarento não cessa de falar no abuso do dinheiro e nos vícios dos ricos, com o que não faz outra coisa senão afligir-se e mostrar aos outros que suporta de mau grado não só a sua pobreza, mas ainda as riquezas dos outros. Da mesma maneira ainda, aqueles que foram mal recebidos pela sua amante não pensam senão na inconstância das mulheres e no seu espírito enganador e nos outros seus decantados vícios; e tudo isto lançam no esquecimento, logo que são de novo recebidos pela amante. Aquele que, portanto, se empenha em governar as suas afecções e apetites só por amor da liberdade, esse esforçar-se-á, quanto possível, por conhecer as virtudes e as suas causas, e por encher a alma de alegria, que nasce do verdadeiro conhecimento delas; mas de modo algum se esforçará por contemplar os vícios dos homens, nem por os injuria r, nem por gozar da falsa aparência da liberdade. Aquele que observar com cuidado estas coisas (com efeito, não são muito difíceis) e as praticar, esse poderá, certamente, num curto espaço de tempo, dirigir a maior parte das vezes as suas ações segundo o império da Razão. PROPOSIÇÃO XI Quanto mais uma imagem se refere a um maior número de coisas, tanto mais frequente ela é,por outras palavras, tanto mais vezes é avivada e mais ocupa a alma. DEMONSTRAÇÃO Com efeito, quanto mais uma imagem, ou seja, uma afecção, se refere a um grande número de coisas, tanto maior é o número de causas pelas quais pode ser excitada e alimentada, causas essas que a alma (por hipótese) contempla todas simultaneamente, em virtude da própria afecção; e, por conseguinte, tanto mais frequente ou mais vezes avivada é a afecção e (pela proposição 8 desta parte) mais ocupa a alma. QED PROPOSIÇÃO XII As imagens das coisas juntam-se mais facilmente às imagens que se referem às coisas que nós compreendemos clara e distintamente do que a outras. DEMONSTRAÇÃO As coisas que nós compreendemos clara e distintamente, ou são propriedades comuns das coisas ou o que delas se deduz (ver a definição de Razão no comentário da proposição 40 da Parte II) e, consequentemente, elas são mais frequentemente excitadas em nós (pela proposição precedente); e, por conseguinte, pode acontecer mais facilmente que nós contemplemos as outras coisas ao mesmo tempo que estas, e, consequentemente (pela proposição 18 da Parte II), que elas se unam mais facilmente a estas que às outras. QED PROPOSIÇÃO XIII Quanto mais uma imagem está junta a um maior número de outras, mais frequentemente é avivada. DEMONSTRAÇÃO É que, quanto mais uma imagem está junta a um grande número de outras, tanto (pela proposição 18 da Parte II) maior é o número de causas por que pode ser excitada. QED PROPOSIÇÃO XIV A alma pode fazer que todas as afecções do corpo, ou seja, as imagens das coisas, se refiram à ideia de Deus. DEMONSTRAÇÃO Não há nenhuma afecção do corpo de que a alma não possa formar algum conceito claro e distinto (pela proposição 4 desta parte); e, por conseguinte, pode fazer (pela proposição 15 da Parte I) que todas elas se refiram à ideia de Deus. QED PROPOSIÇÃO XV Aquele que se compreende a si mesmo e às suas afecções distintamente, ama a Deus, e tanto mais quanto mais se compreende a si e às suas afecções. DEMONSTRAÇÃO Aquele que se compreende a si mesmo e às suas afecções clara e distintamente alegra-se (pela proposição 53 da Parte III), e isto com uma alegria acompanhada da ideia de Deus (pela proposição precedente); e, por conseguinte (pela definição 6 das afecções), ama a Deus, e (pela mesma razão) tanto mais quanto mais se compreende a si mesmo e ás suas afecções. QED PROPOSIÇÃO XVI Este amor para com Deus deve ocupar a alma acima de tudo. DEMONSTRAÇAO Com efeito, este amor está associa do a todas as afecções do corpo (pela proposição 14 desta parte), por todas as quais é alimentado (pela proposição 15 desta parte); e, por conseguinte (pela proposição 11 desta parte), deve ocupar a alma mais que tudo. QED PROPOSIÇÃO XVII Deus está isento de paixões e não é afetado por nenhuma afecção de alegria ou de tristeza. DEMONSTRAÇÃO Todas as ideias, enquanto se referem a Deus, são verdadeiras (pela proposição 32 da Parte II), isto é (pela definição 4 da Parte II), adequadas; e, por conseguinte (pela definição geral das afecções), Deus é isento de paixões. Depois, Deus não pode passar a uma perfeição maior nem menor (pelo resultado 2 da proposição 20 da Parte I); e, por conseguinte (pelas definições 2 e 3 das afecções), não é afetado por nenhuma afecção de alegria nem de tristeza. QED RESULTADO Deus, própria mente falando, não ama nem tem ódio a ninguém. É que Deus (pela proposição precedente) não é afetado por nenhuma afecção de alegria nem de tristeza, e, consequentemente (pelas definições 6 e 7 das afecções), também não ama nem tem ódio a ninguém. PROPOSIÇÃO XVIII Ninguém pode ter ódio a Deus. DEMONSTRAÇÃO A ideia de Deus, que existe em nós, é adequada e perfeita (pelas proposições 46 e 47 da Parte II); e, por conseguinte, na medida em que contemplamos Deus, agimos (pela proposição 3 da Parte III); e, consequentemente (pela proposição 59 da Parte III), não pode existir nenhuma tristeza, acompanhada da ideia de Deus, isto é (pela definição 7 das afecções), ninguém pode ter ódio a Deus. QED RESULTADO O amor para com Deus não pode converter-se em ódio. COMENTÁRIO Mas pode objetar-se que, enquanto concebemos Deus como causa de todas as coisas, por isso mesmo nós consideramos Deus como causa da tristeza. Mas a isto eu respondo que, na medida em que conhecemos as causas da tristeza, nesta mesma medida (pela proposição 3 desta parte) ela deixa de ser paixão, isto é, (pela proposição 59 da Parte III), nessa mesma medida ela deixa de ser tristeza; e, por conseguinte, na medida em que concebemos a Deus como causa da tristeza, alegramo-nos. PROPOSIÇÃO XIX Aquele que ama a Deus não pode esforçar-se por que Deus o ame por sua vez. DEMONSTRAÇÃO Se o homem se esforçasse por isto, então desejaria (pelo resultado da proposição 17 desta parte) que Deus, a quem ele ama, não fosse Deus e, consequentemente (pela proposição 19 da Parte III), desejaria entristecer-se, o que é absurdo (pela proposição 28 da Parte III). Logo, aquele que ama a Deus, etc. QED PROPOSIÇÃO XX Este amor para com Deus não pode ser contaminado por nenhuma afecção de inveja nem de ciúme; mas é tanto mais alimentado quanto maior é o número de homens que nós imaginamos unidos a Deus pelo mesmo vínculo de amor. DEMONSTRAÇÃO Este amor para com Deus é o bem supremo a que nós podemos aspirar, segundo o ditame da Razão (pela proposição 28 da Parte IV), e é comum a todos os homens (pela proposição 36 da Parte IV) e desejamos que todos gozem dele (pela proposição 37 da Parte IV); e, por conseguinte (pela definição 23 das afecções), não pode ser manchado pela afecção da inveja, nem mesmo (pela proposição 18 desta parte e pela definição de ciúme; ver esta no comentário da proposição 35 da Parte III) pela afecção do ciúme; mas, pelo contrário (pela proposição 31 da Parte III), ele deve ser tanto mais alimentado quanto maior é o número de homens que nós imaginamos que gozam dele. QED COMENTÁRIO Podemos demonstrar desta mesma maneira que não há nenhuma afecção que seja diretamente contrária a este amor, e pela qual este mesmo amor possa ser destruído; e, por conseguinte, podemos concluir que este mesmo amor para com Deus é a mais constante de todas as afecções e que, na medida em que se refere ao corpo, não pode ser destruído senão com o mesmo corpo. Veremos depois de que natureza é ele, enquanto se refere à alma. Em tudo o que precede, eu englobei todos os remédios para as afecções, por outras palavras, tudo aquilo que a alma, considerada só em si mesma, pode contra as afecções; por aí se vê que o poder da alma sobre as afecções consiste: 1.° no próprio conhecimento das afecções (ver comentário da proposição 4 desta parte); 2.° em que ela separa a afecção do pensamento da causa externa, que nós imaginamos confusamente (ver proposição 2 e o mesmo comentário da proposição 4 desta parte); 3.° no tempo, graças ao qual as afecções, que se referem às coisas que nós compreendemos, triunfam das que se referem às coisas que nós concebemos confusamente, ou seja, de uma maneira mutilada (ver proposição 7 desta parte); 4.° na multidão das causas pelas quais as afecções, que se referem às propriedades comuns das coisas ou a Deus, são alimentadas (ver proposição 9 e 11 desta parte); 5.° finalmente, na ordem em que a alma pode ordenar as suas afecções e encadeá-las entre si (ver comentário da proposição 10 e, além disso, as proposições 12, 13 e 14 desta parte). Mas, para se compreender melhor este poder da alma sobre as afecções, deve notar-se, sobretudo, que nós chamamos grandes as afecções quando comparamos a afecção de um homem com a afecção de outro; ou quando nós comparamos umas com as outras as afecções de um só e mesmo homem e verificamos que ele é mais afetado, por outras palavras, mais movido por uma afecção do que por outra. Com efeito (pela proposição 5 da Parte IV), a força de qualquer afecção é definida pela potência da causa externa em comparação com a nossa. Mas a potência da alma é definida só pelo conhecimento de sua impotência ou seja, a paixão é avalia da só pela privação do conhecimento, isto é, por aquilo em virtude do qual as ideias se dizem inadequadas. Daqui se segue que a alma que sofre mais é aquela cuja maior parte é constituída pelas ideias inadequadas, de maneira que ela é reconhecida mais por aquilo que sofre do que pelo que ela age; e, pelo contrário, a que mais age é aquela cuja maior parte é constituída por ideias adequadas, de tal maneira que, não obstante haja nesta tantas ideias inadequadas como naquela, ela reconhece-se, todavia, mais por aquelas que se atribuem à virtude humana do que pelas que denúncia m a impotência humana. Depois, deve notar-se que as doenças do espírito e os infortúnios tiram sobretudo a sua origem do amor excessivo para com uma coisa que está sujeita a muitas mudanças e de que nunca podemos ser senhores. Com efeito, ninguém está inquieto ou ansioso por uma coisa, a não ser que a ame; e as injúria s, as suspeitas, as inimizades, etc., não provêm senão do amor para com as coisas de que ninguém pode verdadeiramente ser senhor. Por aqui, pois, facilmente concebemos o que é que pode sobre as afecções o conhecimento claro e distinto, e, sobretudo, esse terceiro gênero de conhecimento (acerca dele, ver o comentário da proposição 47 da Parte II), cujo fundamento é o próprio conhecimento de Deus; com efeito, se ele não as suprime absolutamente, enquanto são paixões (ver a proposição 3 e o comentário da proposição 4 desta parte), faz pelo menos que elas constituam a parte mais pequena da alma (ver a proposição 14 desta parte). Depois, ele produz o amor para com uma coisa imutável e eterna (ver proposição 15 desta parte), amor de que somos verdadeiramente senhores (ver proposição 45 da Parte II); e, por consequência, não pode ser contaminado por nenhum dos vícios que existem no amor ordinário, mas ele pode tornar-se cada vez maior (pela proposição 15 desta parte) e ocupar a maior parte da alma (pela proposição 16 desta parte) e afetá-la profundamente. Com estas coisas terminei tudo o que diz respeito à vida presente. Com efeito, o que eu disse, no princípio deste comentário, a saber: que eu englobei nestas poucas coisas que precedem todos os remédios para as afecções, poderá facilmente verificá-lo cada um que atender àquilo que dissemos neste comentário e ao mesmo tempo às definições da alma e das suas afecções e, por último, às proposições 1 e 3 da Parte III. É, pois, tempo agora de passar àquilo que diz respeito à duração da alma sem relação com o corpo. PROPOSIÇÃO XXI A alma não pode imaginar nada, nem recordar-se das coisas passadas senão enquanto dura o corpo. DEMONSTRAÇÃO A alma não exprime a existência atual do seu corpo, nem mesmo concebe as afecções do corpo como atuais, senão enquanto dura o corpo (pelo resultado da proposição 8 da Parte II); e, consequentemente (pela proposição 26 da Parte II), não concebe nenhum corpo como existindo em ato, senão enquanto dura o seu corpo; e, por conseguinte, não pode imaginar nada (ver a definição de imaginação no comentário da proposição 17 da Parte II) nem recordar-se das coisas passadas, senão enquanto dura o corpo (ver a definição de memória no comentário da proposição 18 da Parte II). QED PROPOSIÇÃO XXII Em Deus, no entanto, existe necessariamente uma ideia que exprime a essência deste ou daquele corpo humano do ponto de vista da eternidade. DEMONSTRAÇÃO Deus não é só causa da existência deste ou daquele corpo humano, mas também da sua essência (pela proposição 25 da Parte I), essa essência que, por esta razão, deve ser concebida necessariamente por meio da própria essência de Deus (pelo axioma 4 da Parte I), e isto por uma certa necessidade eterna (pela proposição 16 da Parte I), e este conceito deve necessariamente existir em Deus (pela proposição 3 da Parte II). QED PROPOSIÇÃO XXIII A alma humana não pode ser absolutamente destruída juntamente com o corpo, mas alguma coisa dela permanece, que é eterna. DEMONSTRAÇÃO Em Deus existe necessariamente um conceito ou ideia, que exprime a essência do corpo humano (pela proposição precedente), ideia essa, que, por esta razão, pertence à essência da alma humana (pela proposição 13 da Parte II). Mas nós não atribuímos à alma humana nenhuma duração, que possa ser definida pelo tempo, senão enquanto exprime a existência atual do corpo, a qual é explicada pela duração e pode ser definida pelo tempo, isto é (pelo resultado da proposição 8 da Parte II), não lhe atribuímos duração senão enquanto dura o corpo. Mas, como essa alguma coisa, que é concebida por certa necessidade eterna por meio da própria essência divina (pela proposição precedente), existe não obstante [a destruição do corpo], essa alguma coisa que pertence à essência da alma será necessariamente eterna. QED. COMENTÁRIO Como dissemos, essa ideia que exprime a essência do corpo, do ponto de vista da eternidade, é um certo modo de pensar, que pertence à essência da alma e que é necessariamente eterno. E, no entanto, não pode suceder que nos recordemos de ter existido antes do corpo, visto que não pode haver no corpo nenhum vestígio disso, nem a eternidade pode ser definida pelo tempo, nem pode ter nenhuma relação com o tempo. Mas, não obstante, nós sentimos e experimentamos que somos eternos. Com efeito, a alma não sente menos aquelas coisas que ela concebe, ao compreender, do que aquelas que tem na memória. Efetivamente, os olhos da alma, com os quais ela vê e observa, são as próprias demonstrações. Portanto, embora não nos recordemos de ter existido antes do corpo, sentimos, no entanto, que a nossa alma, enquanto envolve a essência do corpo, do ponto de vista da eternidade, é eterna, e que esta sua existência não pode ser definida pelo tempo, quer dizer, não pode ser explicada pela duração. Logo, pode dizer-se que a nossa alma dura e que a sua existência é definida por um determinado tempo só na medida em que envolve a existência atual do corpo; e só nesta medida tem o poder de determinar pelo tempo a existência das coisas e de as conceber na duração. PROPOSIÇÃO XXIV Quanto mais compreendemos as coisas singulares, tanto mais compreendemos a Deus. DEMONSTRAÇÃO É evidente pelo resultado da proposição 25 da Parte I. PROPOSIÇÃO XXV O esforço supremo da alma e a suprema virtude são compreender as coisas pelo terceiro gênero de conhecimento. DEMONSTRAÇÃO o terceiro gênero de conhecimento procede da ideia adequada de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas (ver a sua definição no comentário 2 da proposição 40 da Parte II), e quanto mais nós compreendemos as coisas deste modo, tanto mais (pela proposição precedente) compreendemos Deus; e, por conseguinte (pela proposição 28 da Parte IV), a suprema virtude da alma, isto é (pela definição 8 da Parte IV), o poder ou natureza da alma, por outras palavras (pela proposição 7 da Parte III), o seu supremo esforço é compreender as coisas pelo terceiro gênero de conhecimento. QED PROPOSIÇÃO XXVI Quanto mais a alma é apta a compreender as coisas pelo terceiro gênero de conhecimento, tanto mais deseja compreender as coisas por este mesmo gênero de conhecimento. DEMONSTRAÇÃO É evidente. Com efeito, na medida em que concebemos que a alma é apta a compreender as coisas por este gênero de conhecimento, concebemos que ela é determinada a compreender as coisas por este mesmo gênero de conhecimento; e, consequentemente (pela definição 1 das afecções), quanto mais a alma é apta para isso, tanto mais o deseja. QED PROPOSIÇÃO XXVII Deste terceiro gênero de conhecimento provém o maior contentamento da alma que pode existir. DEMONSTRAÇÃO A virtude suprema da alma é conhecer a Deus (pela proposição 28 da Parte IV), por outras palavras, é compreender as coisas pelo terceiro gênero do conhecimento (pela proposição 25 desta parte), e essa virtude é tanto maior quanto mais a alma conhece as coisas por este gênero de conhecimento (pela proposição 24 desta parte); e, por conseguinte, aquele que conhece as coisas por este gênero de conhecimento, esse passa ao cúmulo da perfeição humana, e, consequentemente (pela definição 2 das afecções), é afetado pela suprema alegria, e isto (pela proposição 43 da Parte II) acompanhado da ideia de si mesmo e da sua virtude; e, por conseguinte (pela definição 25 das afecções), deste gênero de conhecimento provém o maior contentamento que pode existir. QED PROPOSIÇÃO XXVIII O esforço, ou seja, o desejo de conhecer as coisas por este terceiro gênero de conhecimento, não pode nascer do primeiro, mas sim do segundo gênero de conhecimento. DEMONSTRAÇÃO Esta proposição é evidente. Com efeito, tudo o que compreendemos clara e distintamente, compreendemo-lo ou por si ou por meio daquilo que é concebido por si mesmo, isto é, as ideias que existem em nós claras e distintas, por outras palavras, as que se referem ao terceiro gênero de conhecimento (ver comentário 2 da proposição 40 da Parte II) não podem resultar das ideias mutiladas e confusas, que (pelo mesmo comentário) se referem ao primeiro gênero de conhecimento, mas das ideias adequadas, por outras palavras (pelo mesmo comentário), do segundo e do terceiro gêneros de conhecimento; e, por conseguinte (pela definição 1 das afecções), o desejo de conhecer pelo terceiro gênero de conhecimento não pode nascer do primeiro, mas sim do segundo. QED PROPOSIÇÃO XXIX Tudo o que a alma compreende, do ponto de vista da eternidade, não o compreende porque concebe a existência presente atual do corpo, mas porque concebe a essência do corpo do ponto de vista da eternidade. DEMONSTRAÇÃO Na medida em que a alma concebe a existência presente do seu corpo, concebe a duração, que pode ser determinada pelo tempo, e só nessa medida tem o poder de conceber as coisas com relação ao tempo (pela proposição 21 desta parte e pela proposição 26 da Parte II). Mas a eternidade não pode ser explicada pela duração (pela definição 8 da Parte I e sua explicação). Logo, nessa mesma medida, a alma não tem o poder de conceber as coisas do ponto de vista da eternidade; mas, visto que é da natureza da Razão conceber as coisas do ponto de vista da eternidade (pelo resultado 2 da proposição 44 da Parte II) e pertence também à natureza da alma conceber a essência do corpo do ponto de vista da eternidade (pela proposição 23 desta parte) e, além destas duas coisas, nenhuma outra coisa pertence á essência da alma (pela proposição 13 da Parte II); logo, este poder de conceber as coisas do ponto de vista da eternidade não pertence à alma senão enquanto ela concebe a essência do corpo do ponto de vista da eternidade QED COMENTÁRIO As coisas são concebidas por nós, como atuais, de dois modos: ou enquanto concebemos que elas existem com relação a um tempo e a um lugar determinados, ou enquanto concebemos que elas estão contidas em Deus e que resultam da necessidade da natureza divina. Ora, as que são concebidas como verdadeiras, ou seja, reais, deste segundo modo, concebemo-las do ponto de vista da eternidade, e as ideias delas envolvem a essência eterna e infinita de Deus, como demonstramos na proposição 45 da Parte II; ver também o seu comentário. PROPOSIÇÃO XXX A nossa alma, na medida em que se concebe a si mesma e ao seu corpo do ponto de vista da eternidade, tem necessariamente conhecimento de Deus e sabe que existe em Deus e é concebida por Deus. DEMONSTRAÇÃO A eternidade é a própria essência de Deus, enquanto esta envolve a existência necessária (pela definição 8 da Parte I). Portanto, conceber as coisas do ponto de vista da eternidade é conceber as coisas enquanto são concebidas pela essência de Deus como entes reais, ou seja, enquanto, pela essência de Deus, envolvem a existência ; e, por conseguinte, a nossa alma, na medida em que se concebe a si mesma e ao seu corpo do ponto de vista da eternidade, tem necessariamente conhecimento de Deus e sabe, etc. QED PROPOSIÇÃO XXXI O terceiro gênero de conhecimento depende da alma, como de sua causa formal, enquanto a própria alma é eterna. DEMONSTRAÇÃO A alma não concebe nada, do ponto de vista da eternidade, a não ser enquanto concebe a essência do seu corpo do ponto de vista da eternidade (pela proposição 29 desta parte), isto é (pelas proposições 21 e 23 desta parte), enquanto é eterna; por conseguinte (pela proposição precedente), na medida em que é eterna, tem conhecimento de Deus, conhecimento esse que é necessariamente adequado (pela proposição 46 da Parte II); e, por conseguinte, a alma, enquanto é eterna, é apta para conhecer tudo aquilo que pode resultar deste suposto conhecimento de Deus (pela proposição 40 da Parte II), isto é, para conhecer as coisas pelo terceiro gênero de conhecimento (ver a sua definição no comentário 2 da proposição 40 da Parte II), de que a alma é, por esta razão (pela definição 1 da Parte III), enquanto é eterna, causa adequada ou formal. QED COMENTÁRIO Portanto, quanto mais cada um se eleva neste gênero de conhecimento, tanto melhor consciência tem de si mesmo e de Deus, isto é, tanto mais perfeito e feliz é, o que se verá ainda mais claramente pelas proposições seguintes. Mas, deve notar-se aqui que, embora estejamos certos de que a nossa alma é eterna, enquanto ela concebe as coisas do ponto de vista da eternidade, nós, no entanto, para explicarmos mais facilmente e fazermos compreender melhor o que queremos demonstrar, considerá-la-emos como se ela começasse agora a existir e como se ela começasse agora a compreender as coisas do ponto de vista da eternidade, como fizemos até aqui. É-nos permitido fazer isso, sem qualquer perigo de erro, desde que tenhamos o cuidado de nada concluir senão de premissas claras. PROPOSIÇÃO XXXII Tudo o que compreendemos pelo terceiro gênero de conhecimento, deleitamo-nos com ele e isto com uma alegria acompanhada da ideia de Deus como causa. DEMONSTRAÇÃO Deste gênero de conhecimento nasce o contentamento maior da alma que pode existir, isto é (pela definição 25 das afecções), a maior alegria possível, e esta acompanhada da ideia de si mesmo (pela proposição 27 desta parte), e, consequentemente (pela proposição 30 desta parte), acompanhada também da ideia de Deus como causa. QED RESULTADO Do terceiro gênero de conhecimento nasce necessariamente o amor intelectual de Deus. Com efeito, deste gênero de conhecimento nasce (pela proposição precedente) uma alegria acompanhada da ideia de Deus como causa, isto é (pela definição 6 das afecções), o amor de Deus, não enquanto o imaginamos como presente (pela proposição 29 desta parte), mas enquanto compreendemos que Deus é eterno; e é a isto que eu chamo amor intelectual de Deus. PROPOSIÇÃO XXXIII O amor intelectual de Deus, que nasce do terceiro gênero de conhecimento, é eterno. DEMONSTRAÇÃO Efetivamente, o terceiro gênero de conhecimento (pela proposição 31 desta parte e pelo axioma 3 da Parte I) é eterno; e, por conseguinte (pelo mesmo axioma da Parte I), o amor que dele nasce é também necessariamente eterno. QED COMENTÁRIO Embora este amor para com Deus não tenha tido começo (pela proposição precedente), tem, todavia, todas as perfeições do amor, como se tivesse tido começo, como supusemos no resultado da proposição precedente. E não há aqui nenhuma diferença, senão em que estas mesmas perfeições que nós supusemos que lhe advinham, a alma as possui eternamente, e isto acompanhadas da ideia de Deus, como causa eterna. Mas, se a alegria consiste na passagem para uma perfeição maior, a felicidade deve, certamente, consistir em que a alma é dotada da mesma perfeição. PROPOSIÇÃO XXXIV A alma não está sujeita às afecções que se relacionam com as paixões, senão enquanto dura o corpo. DEMONSTRAÇÃO A imaginação é uma ideia pela qual a alma contempla alguma coisa como presente (ver a sua definição no comentário da proposição 17 da Parte II) e que, no entanto, indica mais a constituição presente do corpo humano do que a natureza da coisa exterior (pelo resultado 2 da proposição 16 da Parte II). Portanto, uma afecção e uma imaginação (pela definição geral das afecções), na medida em que indica a constituição presente do corpo; e, por conseguinte (pela proposição 21 desta parte) a alma não está sujeita às afecções que se relacionam com as paixões senão enquanto dura o corpo. QED RESULTADO Daqui resulta que nenhum amor, salvo o amor intelectual, é eterno. COMENTÁRIO Se atendermos à opinião comum dos homens, veremos que eles têm, de fato, consciência da eternidade da sua alma, mas que a confundem com a duração e que a atribuem à imaginação ou à memória, que eles creem que subsiste após a morte. PROPOSIÇÃO XXXV Deus ama-se a si mesmo com um amor intelectual infinito. DEMONSTRAÇÃO Deus é absolutamente infinito (pela definição 6 da Parte I), isto é (pela definição 6 da Parte II), a natureza de Deus goza de uma perfeição infinita, e isto (pela proposição 3 da Parte II) acompanhado da ideia de si mesmo, isto é (pela proposição 11 e pela definição 1 da Parte I), da ideia da sua causa; e foi isto que nós dissemos que era o amor intelectual, no resultado da proposição 32 desta parte. PROPOSIÇÃO XXXVI O amor intelectual da alma relativamente a Deus é o mesmo amor de Deus, com que ele se ama a si mesmo, não enquanto é infinito, mas enquanto pode explicar-se pela essência da alma humana, considerada do ponto de vista da eternidade; isto é, o amor intelectual da alma relativamente a Deus é parte do amor infinito com que Deus se ama a si mesmo. DEMONSTRAÇÃO Este amor da alma deve referir-se às ações da alma (pelo resultado da proposição 32 desta parte e pela proposição 3 da Parte III); ele é, por isso, uma ação pela qual a alma se contempla a si mesma, que é acompanhada da ideia de Deus como causa (pela proposição 32 desta parte e seu resultado), isto é (pelo resultado da proposição 25 da Parte I e pelo resultado da proposição 11 da Parte II), uma ação pela qual Deus, na medida em que pode ser explicado pela alma humana, se contempla a si mesmo, que é acompanhada da ideia de si mesmo; e, por conseguinte (pela proposição precedente), este amor da alma é parte do amor infinito com que Deus se ama a si mesmo. QED RESULTADO Daqui resulta que Deus, na medida em que se ama, ama os homens, e, consequentemente, que o amor de Deus para com os homens e o amor intelectual da alma relativamente a Deus são uma só e a mesma coisa. COMENTÁRIO Por estas coisas compreendemos claramente em que consiste a nossa salvação, ou seja, a nossa felicidade ou liberdade, a saber: num amor constante e eterno para com Deus, por outras palavras, no amor de Deus para com os homens. Este amor ou felicidade é chamado nos Livros Sagrados a glória, e não sem razão. Com efeito, quer este amor se refira a Deus, quer à alma, pode ser chamado corretamente contentamento interior, o qual não se distingue, de fato, da glória (pelas definições 25 e 30 das afecções). É que, na medida em que ele se refere a Deus, é (pela proposição 35 desta parte) uma alegria — que nos seja permitido usar ainda desta palavra — acompanhada da ideia de si mesmo, assim como na medida em que se refere à alma (pela proposição 27 desta parte). Depois, visto que a essência da nossa alma consiste só no conhecimento, cujo princípio e fundamento é Deus (pela proposição 15 da Parte I e pelo comentário da proposição 47 da Parte II), por aqui vemos claramente como e segundo que relação é que a nossa alma resulta da natureza divina quanto à essência e à existência e depende continuamente de Deus. Pensei que valia a pena notar aqui, para mostrar com este exemplo, qual era o valor do conhecimento das coisas singulares a que eu chamei intuitivo ou do terceiro gênero (ver comentário 2 da proposição 40 da Parte II) e como ele é superior ao conhecimento universal, que eu disse ser o do segundo gênero. Efetivamente, embora na primeira parte eu tivesse demonstrado de uma maneira geral que tudo (e, consequentemente, também a alma humana) depende de Deus quanto à essência e à existência, essa demonstração, no entanto, se bem que legítima e subtraída ao risco da dúvida, não afeta, todavia, a nossa alma da mesma maneira como quando isto mesmo se deduz da própria essência de uma coisa singular, que nós dizemos depender de Deus. PROPOSIÇÃO XXXVII Não existe nada na Natureza que seja contrário a este amor intelectual, por outros termos, que o possa destruir. DEMONSTRAÇÃO Este amor intelectual resulta necessariamente da natureza da alma, enquanto ela é considerada como uma verdade eterna por meio da natureza de Deus (pelas proposições 29 e 33 desta parte). Portanto, se existisse alguma coisa que fosse contrária a este amor, isso seria contrário à verdade; e, consequentemente, aquilo que poderia destruir este amor faria que aquilo que é verdadeiro fosse falso, o que (como é evidente) é absurdo. Logo, não há nada na Natureza, etc. QED COMENTÁRIO o axioma da Parte IV diz respeito às coisas singulares, enquanto elas se consideram com relação a um determinado tempo e lugar; julgo que ninguém tem dúvidas sobre este assunto. PROPOSIÇÃO XXXVIII Quanto maior é o número de coisas que a alma compreende pelo segundo e pelo terceiro gêneros de conhecimento, tanto menos ela sofre por parte das afecções que são más e tanto menos teme a morte. DEMONSTRAÇÃO A essência da alma consiste no conhecimento (pela proposição 11 da Parte II); portanto, quanto maior é o número de coisas que a alma conhece pelo segundo e terceiro gêneros de conhecimento, tanto maior é a parte dela que permanece (pelas proposições 23 e 29 desta parte), e, consequentemente (pela proposição precedente), tanto maior é a sua parte que não é atingida pelas afecções que são contrárias à nossa natureza, isto é (pela proposição 30 da Parte IV), que são más. Portanto, quanto maior é o número de coisas que a alma compreende pelo segundo e terceiro gêneros de conhecimento, tanto maior é a sua parte que permanece ilesa e, consequentemente, tanto menos sofre por parte das afecções, etc. QED COMENTÁRIO Por aqui compreendemos o ponto que eu toquei no comentário da proposição 39 da Parte IV, e que prometi explicar nesta parte, a saber: que a morte é tanto menos prejudicial quanto maior é o conhecimento claro e distinto da alma e, consequentemente, quanto mais a alma ama a Deus. Depois, visto que (pela proposição 2 7 desta parte) do terceiro gênero de conhecimento nasce o contentamento maior que pode existir, segue-se daqui que a alma humana pode ser de uma natureza tal que a parte dela, que nós demonstramos que perece com o corpo (ver proposição 21 desta parte), não tenha nenhuma importância em proporção com aquela parte dela mesma que permanece. Mas falaremos em breve mais pormenorizadamente sobre este assunto. PROPOSIÇÃO XXXIX Quem tem um corpo apto para um grande número de coisas, esse tem uma alma cuja maior parte é eterna. DEMONSTRAÇÃO Quem tem um corpo apto para fazer um grande número de coisas, esse está muito pouco sujeito às afecções que são más (pela proposição 38 da Parte IV), isto é (pela proposição 30 da Parte IV), às afecções que são contrárias à nossa natureza; e, por conseguinte (pela proposição 10 desta parte), tem o poder de ordenar e encadear as afecções do corpo segundo a ordem da inteligência e, consequentemente, de fazer que (pela proposição 14 desta parte) todas as afecções do corpo se refiram à ideia de Deus; donde resultará (pela proposição 15 desta parte) ser afetado dum amor para com Deus que (pela proposição 16 desta parte) deve ocupar, ou seja, constituir a maior parte da alma e, por conseguinte, tem uma alma cuja maior parte é eterna. QED COMENTÁRIO Visto que os corpos humanos são aptos para um grande número de coisas, não há dúvida de que eles podem ser de uma natureza tal que se refiram às almas que têm um grande conhecimento de si mesmas e de Deus e cuja parte maior, por outras palavras, cuja parte principal é eterna e, por conseguinte, que dificilmente temam a morte. Mas, para que estas coisas se compreendam mais claramente, deve notar-se aqui que nós vivemos numa perpétua transformação e, consoante nos mudamos para melhor ou para pior, por esse fato se diz que nós somos felizes ou infelizes. Aquele que, com efeito, de pequenino (ex infante) ou de rapazinho (puero) passa ao estado de cadáver, diz-se infeliz. Pelo contrário, considera-se como uma felicidade podermos percorrer todo o espaço da vida com uma alma sã num corpo são. E, de fato, aquele que tem um corpo, como um pequenino ou um rapazinho, apto para um número muito reduzido de coisas e dependendo do mais alto grau das causas externas, tem uma alma que, considerada só em si mesma, quase não possui nenhuma consciência de si, nem de Deus, nem das coisas. Pelo contrário, aquele que tem um corpo apto para um grande número de coisas, tem uma alma que, considerada só em si mesma, possui grande consciência de si mesma, de Deus e das coisas. Esforcemo-nos, pois, nesta vida sobretudo por que o corpo da primeira infância, quanto o permite a sua natureza e lhe convém, seja mudado noutro que seja apto para um grande número de coisas, e que se refira a uma alma que tenha consciência no mais alto grau de si mesma, de Deus e das coisas: e de tal maneira que tudo aquilo que se refere à sua memória ou à sua imaginação não tenha quase nenhuma importância em relação à sua inteligência, como já disse no comentário da proposição precedente. PROPOSIÇÃO XL Quanto mais perfeição uma coisa tem, tanto mais age e menos sofre; e, inversamente, quanto mais ela age mais perfeita é. DEMONSTRAÇÃO Quanto mais perfeita é uma coisa, tanto mais realidade tem (pela definição 6 da Parte II) e, consequentemente (pela proposição 3 da Parte III e seu comentário), tanto mais age e menos sofre. A demonstração inversa procede da mesma maneira, donde resulta que, inversamente, uma coisa é tanto mais perfeita quanto mais ela age. QED RESULTADO Daqui resulta que a parte da alma que permanece, qualquer que seja sua importância, é mais perfeita que a outra. Com efeito, a parte eterna da alma (pelas proposições 23 e 29 desta parte) é a inteligência, pela qual somente se diz que nós agimos (pela proposição 3 da Parte III); aquela, porém, que nós demonstramos que perece, é a própria imaginação (pela proposição 21 desta parte), pela qual somente se diz que nós sofremos (pela proposição 3 da Parte III e pela definição geral das afecções); e, por conseguinte (pela proposição precedente), aquela, qualquer que seja a sua importância, é mais perfeita. QED COMENTÁRIO Foi isto que eu me propus demonstrar a respeito da alma, enquanto se considera sem relação à existência do corpo. Por aqui e ao mesmo tempo pela proposição 21 da Parte I e por outras se vê que nossa alma, na medida em que compreende, é um modo eterno de pensar, que é determinado por um outro modo eterno de pensar, e este ainda por outro, e assim até ao infinito, de maneira que todos eles simultaneamente constituam a inteligência eterna e infinita de Deus. PROPOSIÇÃO XLI Ainda que nós ignorássemos que a nossa alma é eterna, teríamos, no entanto, como coisas primordiais a piedade, a religião, e em geral tudo aquilo que nós demonstramos na Parte IV que se refere à força de alma e à generosidade. DEMONSTRAÇÃO O primeiro e único fundamento da virtude, ou seja, de uma regra de vida correta (pelo resultado da proposição 22 e pela proposição 24 da Parte IV) é procurar aquilo que nos é útil. Ora, para determinar aquilo que a Razão recomenda como útil, não tivemos em conta a eternidade da alma, eternidade essa que nós conhecemos somente nesta Parte V. Ainda que, portanto, nós tenhamos então ignorado que a alma é eterna, tivemos, no entanto, como primordial aquilo que nós demonstramos que se refere à força de alma e à generosidade; e, por conseguinte, ainda que, mesmo agora nós ignorássemos isto, teríamos, no entanto, como primordiais as mesmas prescrições da Razão. QED COMENTÁRIO Parece ser outra a persuasão comum do vulgo. Com efeito, a maior parte dos homens parece acreditar que é livre na medida em que lhe é permitido obedecer às suas paixões; e que renunciam ao seu direito na medida em que são obrigados a viver segundo as prescrições da lei divina. Julgam, pois, que a piedade e a religião, e de uma maneira geral tudo o que se refere à força da alma, são fardos, que esperam depor depois da morte, para receber o preço da sua escravidão, a saber: da piedade e da religião. E não é só por esta esperança, mas ainda e sobretudo pelo medo de serem punidos depois da morte por cruéis suplícios, que eles são levados a viver segundo as prescrições da lei divina, tanto quanto o permitem a ligeireza e inconstância do seu espírito. Se os homens não tivessem esta esperança e este medo, mas se, pelo contrário, acreditassem que as almas morrem com o corpo e que não resta aos infelizes, que foram acabrunhados pelo fardo da piedade, uma nova vida, eles voltaria m ao seu natural e quereria m regular tudo segundo as suas paixões, e obedecer ao acaso, de preferência a obedecerem a si mesmos. O que não me parece menos absurdo do que, se alguém, por não acreditar que pode alimentar eternamente o seu corpo com bons alimentos, preferisse saciar-se de venenos e substâncias mortíferas; ou que, por ver que a sua alma não é eterna, ou seja, imortal, preferisse ser demente e viver sem Razão; coisas tão absurdas que quase não vale a pena mencioná-las. PROPOSIÇÃO XLII A felicidade não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e não gozamos dela por refrearmos as paixões, mas ao contrário, gozamos dela por podermos refrear as paixões. DEMONSTRAÇÃO A felicidade consiste no amor para com Deus (pela proposição 36 desta parte e pelo seu comentário), amor esse que nasce do terceiro gênero de conhecimento (pelo resultado da proposição 32 desta parte); e, por conseguinte, este amor (pelas proposições 3 e 59 da Parte III), na medida em que age, deve ser referido à alma; e, por consequência (pela definição 8 da Parte IV), é a própria virtude. O que era a primeira coisa que havia que demonstrar. Depois, quanto mais a alma goza deste amor divino, ou seja, da felicidade, tanto mais compreende (pela proposição 32 desta parte), isto é (pelo resultado da proposição 3 desta parte), tanto maior é o poder que ela tem sobre as afecções e (pela proposição 38 desta parte) tanto menos sofre por parte das afecções que são más; e, por conseguinte, pelo fato de a alma gozar deste amor divino, ou seja, da felicidade, tem poder de refrear as paixões. E como o poder do homem para refrear as afecções consiste só na inteligência, ninguém, por consequência, goza da felicidade por refrear as afecções, mas pelo contrário, o poder de refrear as paixões nasce da própria felicidade. QED COMENTÁRIO Com estas coisas terminei tudo o que eu queria demonstrar a respeito do poder da alma sobre as afecções e da liberdade da alma. Vê-se, por aqui, qual seja o valor do sábio e como é superior ao ignorante, que só age levado pela paixão. O ignorante, com efeito, além de ser agitado de muitas maneiras pelas causas externas e de nunca gozar do verdadeiro contentamento íntimo, vive, ainda, quase sem consciência de si mesmo, de Deus e das coisas e ao mesmo tempo que ele deixa de sofrer, deixa também de ser. Enquanto que, pelo contrário, o sábio, na medida em que se considera como tal, dificilmente se perturba interiormente, mas, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em virtude de certa necessidade eterna, nunca deixa de ser, mas goza sempre do verdadeiro contentamento interior. Se o caminho que eu mostrei conduzir a este estado parece muito árduo, pode, todavia, encontrar-se. E com certeza que deve ser árduo aquilo que muito raramente se encontra. Como seria possível, com efeito, se a salvação estivesse à mão e pudesse encontrar-se sem grande trabalho, que ela fosse negligencia da por quase todos? Mas todas as coisas notáveis são tão difíceis como raras.