Gottfried Wilhelm Leibniz – Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano – Pelo autor do sistema da harmonia pré-estabelecida Prefácio Sendo que o Ensaio sobre o Entendimento, obra publicada por um ilustre inglês, constitui um dos mais belos e mais estimados livros do tempo atual, tomei a resolução de fazer-lhe observações, visto que, tendo eu meditado desde há muito tempo sobre o mesmo assunto e sobre a maior parte dos pontos nele tratados, acreditei que seria uma boa ocasião para publicar algo sob o título de Novos Ensaios sobre o Entendimento e para propiciar uma penetração favorável para as minhas ideias, colocando-as em tão boa companhia. Acreditei outrossim poder aproveitar o trabalho de outrem, não somente para reduzir o meu (pois de fato é menos trabalhoso seguir o fio de um bom autor do que trabalhar à própria custa em tudo), mas também para acrescentar algo ao que este insigne autor nos deu, o que é sempre mais fácil do que começar. Com efeito, acredito ter resolvido algumas dificuldades que o autor deixou na sua obra. Assim sendo, a sua reputação me acarreta vantagens. De resto, sendo do meu estilo fazer justiça aos outros, e bem longe de querer diminuir a estima que merece esta obra, eu até a aumentaria, se a minha aprovação tivesse alguma importância. É verdade que em muitos pontos partilho outra opinião. Todavia, bem longe de discordarmos do mérito dos escritores célebres, prestamos-lhes testemunho ao manifestarmos em que e por que nos distanciamos dos seus pontos de vista, quando julgamos necessário impedir que a sua autoridade prevaleça sobre a razão em certos pontos de importância; além disso, satisfazendo a homens tão eminentes, tornamos a verdade mais aceitável, devendo-se supor que é antes de tudo por amor à verdade, que tais homens trabalham. Com efeito, embora o autor do Ensaio afirme uma infinidade de coisas belas, nas quais conta com o meu aplauso, os nossos sistemas diferem profundamente. O dele se relaciona mais com Aristóteles, o meu radica mais em Platão, embora ambos nos distanciemos em muitos pontos da doutrina desses dois autores antigos. O autor do Ensaio é mais popular, ao passo que eu me vejo forçado a ser um pouco mais acroamático e mais abstrato, o que não constitui uma vantagem para mim, sobretudo quando se escreve numa língua viva. Acredito, porém, que em fazendo falar duas pessoas - sendo que uma delas expõe as opiniões tiradas do Ensaio deste autor, e a outra lhe acrescenta as suas próprias observações - o paralelismo será mais do agrado do leitor do que se eu fizesse observações completamente áridas, cuja leitura teria que ser, aliás, interrompida a cada momento pela necessidade de recorrer ao livro dele para compreender o meu. Entretanto, será conveniente conferir às vezes os nossos escritos e não emitir juízo sobre as opiniões do autor a não ser baseando-se na sua própria obra, embora eu tenha em geral conservado as suas expressões. É verdade que, devendo eu seguir continuadamente a exposição do autor e fazer-lhe observações, não pude salvar os atrativos próprios de um diálogo; espero, porém, que o assunto repare o defeito da forma. As nossas diferenças versam sobre matérias de alguma importância. Trata-se de saber se a alma em si mesma é completamente vazia, como lousas nas quais ainda não existe nada escrito (tabula rasa), conforme Aristóteles e o autor do Ensaio, e se tudo o que é nela impresso provém exclusivamente dos sentidos e da experiência, ou se a alma contém originariamente princípios de várias noções e doutrinas que os objetos externos não fazem senão despertar na devida ocasião, como acredito eu, na esteira de Platão e até da Escola, e juntamente com todos aqueles que entendem neste sentido a passagem de São Paulo (Rom 2, 15), onde o Apóstolo assinala que a lei de Deus está escrita nos nossos corações. Os estoicos denominavam tais princípios Prolepses, isto é, pressupostos fundamentais, ou seja, aquilo que se dá por concordado antecipadamente. Os matemáticos dão a tais princípios o nome de noções comuns (koinàs ennoías). Os filósofos modernos lhes dão outros belos nomes; em especial Júlio Scaliger os denominava Semina aeternitatis - como também Zopyra -, como a querer dizer fogos vivos, traços luminosos, ocultos dentro de nós, que os sentidos fazem aparecer como centelhas que o choque faz sair do fuzil. Não é sem razão que se acredita que tais raios de luz assinalam alguma coisa de divino e de eterno que aparece sobretudo nas verdades necessárias. Disto nasce outro interrogativo, a saber, se todas as verdades dependem da experiência, isto é, da indução e dos exemplos, ou se existem algumas que possuem ainda outro fundamento. Com efeito, se alguns acontecimentos podem ser previstos antes de qualquer experiência que tenhamos feito, é manifesto que contribuímos com algo de nosso para isto. Os sentidos, se bem que necessários para todos os nossos conhecimentos atuais, não são suficientes para dar-no-los todos, visto que eles só nos fornecem exemplos, ou seja, verdades particulares ou individuais. Ora, todos os exemplos que confirmam uma verdade de ordem geral, qualquer que seja o seu número, não são suficientes para estabelecer a necessidade universal desta mesma verdade, pois não segue que aquilo que aconteceu uma vez tornará a acontecer da mesma forma. Por exemplo, os gregos, os romanos e todos os outros povos da terra conhecida aos antigos sempre observaram que, antes do decurso de 24 horas, o dia se muda em noite, e a noite em dia. Entretanto, ter-se-iam enganado se tivessem pensado que a mesma regra se observa em toda parte, visto que mais tarde se verificou o contrário na estada em Nova Zembla. Equivocar-se-ia também aquele que acreditasse que, pelo menos nos nossos climas, é uma verdade necessária e eterna que durará para sempre, pois devemos pensar que o sol e a própria terra não existem necessariamente, e que talvez exista um tempo em que este belo astro não existirá mais, ao menos na forma presente, o mesmo acontecendo com todo o sistema solar. Daqui parece dever-se concluir que as verdades necessárias, quais as encontramos na matemática pura e sobretudo na aritmética e na geometria, devem ter princípios cuja demonstração independe dos exemplos; e consequentemente também do testemunho dos sentidos, embora se deva admitir que sem os sentidos jamais teria vindo à mente pensar neles. E o que se deve distinguir bem é o que compreendeu tão bem Euclides, o qual demonstra muitas vezes pela razão o que se observa suficientemente pela experiência e pelas imagens sensíveis. Também a lógica, a metafísica e a moral, uma das quais forma a teologia e a outra a jurisprudência, todas as duas naturais, estão repletas de tais verdades necessárias, e por conseguinte a sua demonstração não pode provir senão de princípios internos que se denominam inatos. É verdade que não se deve imaginar que possamos ler na alma estas leis eternas da razão a livro aberto, como se lê o edito do pretor no seu livro sem trabalho e sem pesquisa; basta, porém, que possamos descobri-los em nós em virtude da atenção, sendo que a ocasião é fornecida pelos sentidos, e a sequência das experiências serve ainda como confirmação à razão, mais ou menos como as provas servem na aritmética para melhor evitar o erro do cálculo quando o raciocínio é longo. É nisto também que diferem os conhecimentos dos homens em relação aos dos animais: os animais são puramente empíricos e se regulam exclusivamente à base dos exemplos, visto que jamais chegam a formar proposições necessárias, quanto possamos julgar; ao contrário, os homens são capazes de formar as ciências demonstrativas. É também por isso que a faculdade que os animais possuem de tirar conclusões representa algo de inferior à razão que observamos nos homens. As conclusões dos animais são simplesmente como as dos empíricos, que pretendem que aquilo que aconteceu alguma vez, acontecerá outra vez em um caso em que aquilo que os impressiona é semelhante, sem serem capazes de julgar se subsistem as mesmas razões. Eis por que é tão fácil aos homens atingir o nível dos animais, e tão fácil, para os simples empíricos, cometer faltas. Disto não são isentas as pessoas que se tornaram hábeis pela idade e pela experiência, quando prestam excessivo crédito à sua experiência passada, como aconteceu a muitos em assuntos civis e militares, porque não se considera suficientemente que o mundo se modifica e que os homens se tornam mais hábeis encontrando mil coisas novas, ao passo que os cervos e as lebres de hoje não se tornam mais espertos que os de tempos passados. As conclusões dos animais não passam de sombras em comparação com o raciocínio, isto é, são meras conexões de imaginações, passagens de uma imagem a outra, visto que, num evento novo que parece assemelhar-se ao anterior, esperam encontrar de novo associados os elementos que se observaram na outra ocasião, como se as coisas estivessem de fato associadas pelo fato de que as suas imagens o estão na memória. É verdade que a própria razão aconselha que esperemos em geral ver chegar ao futuro o que é conforme a uma longa experiência do passado, mas nem por isso é uma verdade necessária e infalível; o acontecimento pode cessar quando menos se espera, quando se alteram as razões que o causaram. Eis por que os sábios não se fiam até que não tentem penetrar - na medida do possível - algo da razão deste fato, para julgar quando será necessário abrir exceções. Pois só a razão é capaz de estabelecer regras seguras e de suprir o que falta nas regras que não eram seguras, inserindo as suas exceções; só a razão é capaz de encontrar finalmente conexões certas na força das consequências necessárias, o que dá muitas vezes a possibilidade de prever o acontecimento sem ter necessidade de experimentar as conexões sensíveis das imagens, às quais estão reduzidos os animais; assim sendo, o que justifica os princípios internos das verdades necessárias constitui outro elemento que distingue o homem do animal irracional. Possivelmente o nosso autor não discordará totalmente do meu ponto de vista. Com efeito, após ter utilizado todo o seu primeiro livro para refutar as ideias inatas, reconhece no início do segundo, e também a seguir, que as ideias que não têm a origem na sensação provêm da reflexão. Ora, a reflexão não constitui outra coisa senão uma atenção àquilo que está em nós, já que os sentidos não nos dão aquilo que já trazemos dentro de nós. Sendo assim, poder-se-á porventura negar que existem muitas coisas inatas no nosso espírito, visto que somos, por assim dizer, inatos a nós mesmos? Poder-se-á negar que existe dentro de nós tudo isto: Ser, Unidade, Substância, Duração, Mudança, Ação, Percepção, Prazer e mil outros objetos das nossas ideias intelectuais? E se tais objetos são imediatos ao nosso entendimento e sempre presentes (ainda que não sejam sempre percebidos, devido às nossas distrações e necessidades), por que admirar-se ante a afirmação de que tais ideias nos são inatas, juntamente com tudo o que delas depende? Servi-me também da comparação de uma pedra de mármore, a qual tem veios, preferivelmente a uma pedra de mármore toda compacta, ou então, de lousas vazias, que entre os filósofos se chamam tabula rasa. Com efeito, se a alma se assemelhasse a tais lousas vazias, as verdades seriam em nós como a figura de Hércules que se encontraria em um mármore, quando este é ainda completamente indiferente a receber esta figura ou outra. Entretanto, se houvesse veios na pedra, que assinalassem a priori a figura de Hércules de preferência a outras, esta pedra seria mais determinada, e Hércules estaria como que inato nela de alguma forma, embora não se possa esquecer que se necessitaria de trabalho para descobrir tais veios, para limpá-los, eliminando o que os impede de aparecer. É desta forma que as ideias e as verdades estão inatas em nós: como inclinações, disposições, hábitos ou virtualidades naturais, e não como ações, embora tais virtualidades sejam sempre acompanhadas de algumas ações, muitas vezes insensíveis, que lhes correspondem. Ao que parece, o nosso inteligente autor pretende que não existe nada de virtual em nós, e nada que não percebamos sempre atualmente; todavia, o autor não pode tomar isto a rigor, pois do contrário a sua opinião seria por demais paradoxal, visto que mesmo os hábitos adquiridos e as provisões da nossa memória não são sempre percebidos e nem sequer nos acodem quando necessitamos, embora muitas vezes consigamos recolocá-las facilmente no nosso espírito em alguma ocasião pouco importante que nos faz lembrar-nos delas, assim como. para lembrar-nos de uma canção, basta ouvir-lhe o começo. O autor mitiga ainda a sua tese em outras passagens, ao dizer que não existe nada em nós de que não nos tenhamos apercebido anteriormente. Entretanto, além do fato de que ninguém pode assegurar só pela razão aonde podem ter ido as nossas apercepções passadas que podemos ter esquecido, sobretudo segundo a reminiscência dos platônicos (a qual, por mais fabulosa que seja, nada tem de incompatível, pelo menos em parte, com a razão nua e crua); além deste fato, digo, por que razão seria necessário que tudo em nós seja adquirido pelas percepções das coisas externas, e que nada possa ser desenterrado de dentro de nós mesmos? É possível que a nossa alma seja em si mesma tão vazia, que não é nada sem as imagens que recebe de fora? Estou certo de que o nosso autor não poderia aprovar tal consequência. Aliás, onde se encontrarão lousas que não se diversifiquem em algo? Com efeito, jamais se verá um plano completamente unido e uniforme. Em consequência, por que razão não seríamos capazes de fornecer de dentro de nós mesmos e para nós mesmos algo de pensamento, desde que queiramos escavar nele? Assim sendo, inclino-me a crer que, no fundo, a opinião do nosso autor não difere da minha, ou melhor, da opinião geral, na medida em que esta reconhece duas fontes dos nossos conhecimentos, a saber, os sentidos e a reflexão. Não sei se será tão fácil fazê-la concordar conosco e com os Cartesianos, quando o autor sustenta que o espírito não pensa sempre, e em particular, que o espírito é destituído de percepção quando dormimos sem ter sonhos; objeta ele que, assim como os corpos podem estar sem movimento, também as almas podem estar sem pensamentos. Aqui respondo de forma um pouco diversa do que se costuma fazer, pois mantenho que, na ordem natural, uma substância não pode estar sem ação, e que jamais existem corpos sem movimento. A própria experiência está a meu favor, bastando consultar o livro do ilustre Sr. Boyle contra o repouso absoluto, para persuadir-se desta tese; aliás, acredito que a própria razão também me favorece, sendo esta uma das provas que tenho para negar os átomos. De resto, existe uma série de indícios que nos autorizam a crer que existe a todo momento uma infinidade de percepções em nós, porém sem apercepção e sem reflexão: mudanças na própria alma, das quais não nos apercebemos, pelo fato de as impressões serem ou muito insignificantes e em número muito elevado, ou muito unidas, de sorte que não apresentam isoladamente nada de suficientemente distintivo; porém, associadas a outras, não deixam de produzir o seu efeito e de fazer-se sentir ao menos confusamente. Assim é que, em força do hábito, não notamos mais o movimento de um moinho ou de uma queda d’água, depois que tivermos morado por algum tempo perto dele. Não é que tais movimentos deixem de afetar sempre os nossos órgãos, e que não despertem, na alma, nada que corresponde a tais órgãos, devido à harmonia reinante entre a alma e o corpo; o que acontece é que tais impressões despertadas na alma e no corpo, por serem destituídas dos atrativos da novidade, não são suficientemente fortes para atrair a nossa atenção e a nossa memória, ocupada com objetos que chamam mais a atenção. Com efeito, toda atenção exige memória, e muitas vezes acontece, quando não cuidamos de prestar atenção a algumas das nossas percepções presentes, que as deixemos passar sem reflexão e até sem notá-las; todavia, se alguém nos adverte imediatamente depois, e nos chama a atenção, por exemplo, para algum ruído que houve, lembramo-nos dele e nos damos conta de tê-lo percebido, de alguma forma. Por conseguinte, eram percepções das quais não nos tínhamos dado conta de imediato, sendo que a apercepção, neste caso, provém exclusivamente de havermos sido advertidos depois de certo intervalo, por menor que seja. Para melhor julgar sobre as pequenas percepções que somos incapazes de distinguir em meio à multidão delas, costumo utilizar o exemplo do bramido do mar, que nos impressiona quando estamos na praia. Para ouvir este ruído como se costuma fazer, é necessário que ouçamos as partes que compõem este todo, isto é, os ruídos de cada onda, embora cada um desses pequenos ruídos só se faça ouvir no conjunto confuso de todos os outros conjugados, isto é, no próprio bramir, que não se ouviria se esta onda que o produz estivesse sozinha. Com efeito, é necessário afirmar que somos afetados, por menos que seja, pelo movimento desta minúscula onda, e que temos alguma percepção de cada um dos seus ruídos, por menores que sejam; se assim não fosse, não teríamos a percepção de cem mil ondas, pois cem mil ondas nunca poderiam produzir alguma coisa. Jamais dormimos tão profundamente, que não tenhamos algum sentimento fraco e confuso; e jamais seríamos despertados pelo maior ruído do mundo, se não tivéssemos alguma percepção do seu início, que é pequeno, da mesma forma como jamais romperíamos uma corda com a maior força do mundo, se ela não começasse a ser esticada um pouco por esforços iniciais menores, ainda que esta primeira pequena distensão da corda não apareça. Essas pequenas percepções, devido às suas consequências, são por conseguinte mais eficazes do que se pensa. São elas que formam este não sei quê, esses gostos, essas imagens das qualidades dos sentidos, claras no conjunto, porém confusas nas suas partes individuais, essas impressões que os corpos circunstantes produzem em nós, que envolvem o infinito, esta ligação que cada ser possui com todo o resto do universo. Pode-se até dizer que, em consequência dessas pequenas percepções, o presente é grande e o futuro está carregado do passado, que tudo é convergente (sympnoia pánta, como dizia Hipócrates), e que na mais insignificante das substâncias, olhos penetrantes como os de Deus poderiam ler todo o desenrolar presente e futuro das coisas que compõem o universo. Quae sint, quae fuerint, quae moxfutura trahantur. (Que são, que foram, e que sobreviverão no futuro.) Essas percepções insensíveis assinalam também e constituem o próprio indivíduo, que é caracterizado pelos vestígios ou expressões que elas conservam dos estados anteriores deste indivíduo, fazendo a conexão com o seu estado atual, percepções que se podem conhecer por um espírito superior, mesmo que este indivíduo não as pudesse sentir, isto é, quando a recordação explícita não estivesse mais presente. Aliás, essas pequenas percepções possibilitam até reencontrar esta recordação, se necessário, através de evoluções periódicas que podem ocorrer um dia. É por esta razão também que elas fazem com que a morte seja apenas um sono, e um sono não perpétuo. Com efeito, as percepções só deixam de ser suficientemente distingui das e se reduzem a um estado de confusão, que suspende a apercepção, porém não pode durar sempre. É também pelas percepções insensíveis que se explica esta admirável harmonia preestabelecida da alma e do corpo, e mesmo de todas as Mônadas ou substâncias simples, que substitui a influência insustentável de uns sobre os outros, harmonia que, no pensar do autor do mais belo dos Dicionários, enaltece a grandeza das perfeições divinas além de tudo o que se tenha jamais concebido. Depois disso acrescentaria pouca coisa se dissesse que são essas pequenas percepções que nos determinam em muitas ocasiões sem que pensemos, e que enganam o homem vulgar pela aparência de uma indiferença de equilíbrio, como se fosse para nós completamente indiferente (para dar um exemplo) voltarmos à direita ou à esquerda. Tampouco é necessário observar aqui, como fiz no próprio livro, que as pequenas percepções insensíveis produzem em nós essa inquietação, que demonstrarei consistir em algo que difere da dor apenas como o pequeno difere do grande, inquietação que constitui muitas vezes o nosso desejo e o nosso prazer, dando a estes, por assim dizer, um sal picante. São também as partes insensíveis das nossas percepções sensíveis que fazem com que exista uma relação entre essas percepções das cores, dos calores e outras qualidades sensíveis, e entre os movimentos nos corpos que lhes correspondem, ao passo que os Cartesianos, e também o nosso autor, por mais penetrante que seja, concebem as percepções que temos dessas qualidades como arbitrárias, ou seja, como se Deus as tivesse dado à alma a seu bel-prazer, sem consideração por qualquer relação essencial entre essas percepções e os seus objetos; devo dizer que esta opinião me surpreende e me parece pouco digna da sabedoria do Autor das coisas, que nada faz sem harmonia e sem razão. Em uma palavra, as percepções insensíveis são de uso tão vasto na pneumática quanto os corpúsculos insensíveis o são na física, sendo igualmente irracional rejeitar uns e outros, sob pretexto de que estão fora do alcance dos nossos sentidos. Nada se faz de repente, e uma das minhas grandes máximas, e das mais comprovadas, é que a natureza nunca faz saltos: o que eu denominei Lei da Continuidade, quando dela falei nas primeiras Notícias da República das Letras. O uso dessa lei é muito considerável na física: ela significa que se passa sempre do pequeno ao grande, e vice-versa, através do médio, tanto nos graus como nas partes, e que jamais um movimento nasce imediatamente do repouso nem se reduz, a não ser por um movimento menor, assim como não se chega jamais a percorrer nenhuma linha ou comprimento antes de ter antes percorrido uma linha menor, se bem que até agora os que elaboraram as leis do movimento não tenham observado esta lei, acreditando que um corpo possa receber em um instante um movimento contrário ao precedente. Tudo isto mostra mais uma vez que as percepções grandes e notáveis provêm por graus daquelas que são excessivamente insignificantes para serem notadas. Não concordar com isto equivale a conhecer pouco a imensa sutilidade das coisas, que envolve um infinito atual, em toda parte e sempre. Observei também que, em virtude das variações insensíveis, duas coisas individuais não podem ser completamente semelhantes, devendo sempre diferir uma da outra mais do que número, o que aniquila as assim chamadas lousas vazias da alma, como aniquila a possibilidade de uma alma destituída de pensamentos, uma substância sem ação, o vazio do espaço, os átomos, e até parcelas não atualmente divididas na matéria, o repouso puro, a uniformidade completa em uma parte do tempo, do lugar ou da matéria, os globos perfeitos do segundo elemento, nascidos dos cubos perfeitos originários, e uma infinidade de outras ficções dos filósofos, que procedem das suas noções incompletas e que são incompatíveis com a natureza das coisas. Tudo isso são coisas que a nossa ignorância e a nossa pouca atenção ao que é insensível nos fazem passar despercebidas, mas que não podemos tornar toleráveis, a menos que as limitemos a meras abstrações do espírito, que protesta por não poder negar o que "esconde no quarto" e que julga não dever entrar em alguma consideração presente. Do contrário, isto é, se acreditássemos realmente que as coisas das quais não nos apercebemos não estão na alma ou no corpo, faltaríamos contra a filosofia como contra a política, negligenciando to mikrón os progressos insensíveis, ao passo que uma abstração não é um erro, desde que se tenha consciência de que aquilo que se esconde não deixa de existir por isso. É como costumam fazer os matemáticos, quando falam das linhas perfeitas que nos propõem, dos movimentos uniformes e de outros efeitos regrados, embora a matéria (isto é, a mescla dos efeitos do infinito ambiente) constitua sempre alguma exceção. É para distinguir as considerações e para reduzir os efeitos às razões, na medida do possível, e para poder prever algumas consequências, que se procede desta maneira: pois quanto mais atento se é para nada negligenciar das considerações que podemos regrar, tanto mais a prática corresponde à teoria. Todavia, compete à suprema Razão, à qual nada escapa, compreender distintamente todo o infinito e enxergar todas as razões e todas as consequências. Tudo o que podemos, com respeito às grandezas infinitas, é conhecê-las confusamente, e saber ao menos confusamente que elas existem; de outra forma, julgamos muito mal sobre a beleza e a grandeza do universo, como também não poderíamos ter uma boa física que explique a natureza dos corpos em geral e muito menos uma boa pneumática que englobe o conhecimento de Deus, das almas e das substâncias simples em geral. Este conhecimento das percepções insensíveis serve outrossim para explicar por que e de que maneira duas almas humanas ou de uma mesma espécie não saem jamais completamente semelhantes das mãos do Criador e cada qual delas tem sempre a sua relação originária aos pontos de vista que terão no universo. Aliás, é o que segue já daquilo que observei em relação a dois indivíduos, ou seja, que a diferença vigente entre eles é sempre mais do que meramente numérica. Há ainda outro ponto importante, onde me vejo obrigado a discordar não somente das opiniões do nosso autor, mas também do modo de pensar da maior parte dos autores modernos: acredito, juntamente com a maioria dos autores antigos, que todos os gênios, todas as almas, todas as substâncias simples criadas estão sempre unidas a um corpo, e que nunca existem almas completamente separadas. Tenho para isto razões a priori, mas existe ainda uma vantagem nesta tese: ela resolve todas as dificuldades filosóficas sobre o estado das almas, sobre a sua conservação perpétua, sobre a sua imortalidade e sobre o seu modo de operar. A diferença de um dos seus estados em relação ao outro consiste apenas em passar de uma sensibilidade maior a uma sensibilidade menor, do mais perfeito ao menos perfeito (ou vice-versa), o que torna o seu estado passado ou o futuro tão explicável quanto o estado presente. Percebe-se suficientemente, por menos que se reflita sobre o assunto, que esta tese é razoável, e que um salto de um estado a outro infinitamente diferente não seria natural. Admiro-me de que as Escolas filosóficas, suprimindo o natural, quiseram embrenhar-se em dificuldades muito grandes e fornecer matéria aos triunfos aparentes dos espíritos fortes, cujas razoes caem por terra todas de uma vez diante desta explicação das coisas; na minha tese, a dificuldade que há em compreender a conservação das almas (ou melhor, segundo o meu pensar, do animal) não é maior do que a que existe em explicar a mudança da lagarta em borboleta, bem como a conservação do pensamento no sono, ao qual Jesus Cristo comparou a morte. Já observei que nenhum sono pode durar para sempre; pelo contrário, ele durará menos, ou quase nada, para as almas racionais, que são sempre destinadas a conservar o personagem que lhes foi dado na cidade de Deus, e por conseguinte a recordação disto para serem mais suscetíveis dos castigos e das recompensas. Acrescento a isto que nenhum desarranjo dos órgãos visíveis é capaz de levar as coisas a uma confusão completa no animal, ou de destruir todos os órgãos e de privar a alma de todo o seu corpo orgânico e dos restos inapagáveis de todos os vestígios anteriores. Todavia, a facilidade que os pensadores tiveram em abandonar a antiga doutrina dos corpos sutis unidos aos anjos (que se confundia com a corporalidade dos próprios anjos) e a introdução das pretensas inteligências separadas nas criaturas (para isto contribuíram muito aquelas que fazem ruir os céus de Aristóteles), e finalmente a ideia, mal entendida, de que não se poderia admitir almas nos animais sem cair na metempsicose e sem fazê-las migrar de um corpo a outro, e o embaraço em que se encontraram os autores por não saber o que fazer com as almas, tudo isto fez com que, a meu entender, se tenha negligenciado a maneira natural de explicar a conservação ou subsistência da alma. Isto fez muito mal à religião natural, fazendo crer a muita gente que a nossa imortalidade é apenas uma graça miraculosa de Deus, imortalidade da qual mesmo o nosso autor fala com alguma dúvida, como direi mais adiante. Entretanto, seria de desejar que todos os que partilham tal opinião tivessem falado sobre o assunto com tanta sabedoria e com tanta boa fé, pois temo que muitos daqueles que falam da imortalidade por graça só o fazem para salvar as aparências, e na realidade se aproximam desses Averroístas e de alguns maus Quietistas que imaginam uma absorção e a junção da alma ao oceano da divindade, noção cuja impossibilidade talvez só apareça claramente no meu sistema. Parece-me também que diferimos ainda com respeito à matéria. O nosso autor julga que o vazio é necessário na matéria para o movimento, visto que segundo ele as pequenas partes da matéria são duras. Reconheço que, se a matéria fosse composta de tais partes, o movimento na sua totalidade seria impossível, como se uma sala estivesse repleta de pedrinhas, sem que houvesse o mínimo vazio entre elas. Entretanto, não admito esta suposição, pois não parece baseada em qualquer razão, embora o nosso eminente autor vá até ao ponto de crer que a dureza ou a coesão das pequenas partes perfaz a essência do corpo. Deve-se antes conceber o espaço como cheio de uma matéria originariamente fluida, suscetível de todas as divisões e sujeita mesmo atualmente a divisões e subdivisões até ao infinito, porém com esta diferença: que ela é divisível e dividida de maneira desigual em lugares diferentes, devido aos movimentos que já são mais ou menos convergentes. Isto faz com que a matéria tenha em toda parte um grau de dureza e ao mesmo tempo de fluidez, e que não exista corpo algum que seja duro ou sólido em grau supremo, ou seja, não há nenhum corpo no qual se encontre nenhum átomo de dureza insuperável nem nenhuma massa completamente indiferente à divisão. Aliás, também a ordem da natureza, e particularmente a lei da continuidade, destroem igualmente tanto um como o outro. Demonstrei também que a Coesão, que não fosse ela mesma o efeito da impulsão ou do movimento, causaria uma Tração tomada a rigor. Pois se existisse um corpo originariamente duro, por exemplo um átomo de Epicuro, que tivesse uma parte avançada em forma de gancho (já que podemos imaginar átomos de toda sorte de formas), este gancho empurrado arrastaria consigo o resto deste átomo, isto é, a parte que não é empurrada, e que não recai na linha da impulsão. Entretanto, o nosso inteligente autor é pessoalmente contrário a essas trações filosóficas, tais como as que se atribuíam outrora ao temor do vazio, e as reduz às impulsões, defendendo com os modernos que uma parte da matéria não opera imediatamente sobre a outra senão empurrando-a de perto, ponto no qual lhes dou razão, pois de outra forma não existiria nada de inteligível na operação. Entretanto, não posso ocultar um fato, ou seja, que observei uma espécie de retratação do nosso excelente autor quanto a este ponto, e não posso deixar de admirar-lhe nisto a modesta sinceridade, quanto admirei o seu gênio penetrante em outras ocasiões. Isto ocorre na resposta à segunda carta do falecido Senhor Bispo de Worcester, impressa em 1699, p. 408, onde, para justificar a opinião que tinha defendido contra esse prelado (isto é, que a matéria é capaz de pensar) o autor diz entre outras coisas: Reconheço haver dito (livro segundo do Ensaio sobre o Entendimento, capítulo 8, § 11) que o corpo opera por impulsão e não de outra forma. Tal era, com efeito, a minha opinião quando escrevi, e ainda hoje não consigo conceber outra maneira de ação. Entretanto, depois disto convenci-me, pelo livro incomparável do judicioso Sr. Newton que seria muita presunção querer limitar o poder de Deus pelas nossas concepções estreitas. A gravitação da matéria rumo à matéria, por caminhos que não compreendo, é não somente uma demonstração de que Deus pode, quando lhe aprouver, colocar nos corpos poderes e maneiras de agir que estão acima do que se pode deduzir da nossa ideia de corpo, ou explicar pelo que conhecemos sobre a matéria, senão que é também uma instância incontestável que assim o fez efetivamente. Eis por que cuidarei que na próxima edição do meu livro esta passagem seja revista. Descobri que na edição francesa desta obra, feita sem dúvida à base das últimas edições, o pensamento do nosso autor está assim expresso, no § 11: É visível, ao menos na medida em que o possamos conceber, que é por impulsão, e não por outra forma, que os corpos agem uns sobre os outros, pois nos é impossível compreender que o corpo possa agir sobre aquilo que não toca; isto seria o mesmo que imaginar que possa agir lá onde não está. Não posso senão elogiar esta religiosidade modesta do nosso célebre autor, que reconhece que Deus pode ir além daquilo que possamos entender, e que pode haver mistérios inconcebíveis nos artigos da fé; entretanto, não gostaria que fôssemos obrigados a recorrer ao milagre no curso comum da natureza e a admitir poderes e operações absolutamente inexplicáveis. Do contrário, deixaremos excessiva liberdade aos maus filósofos, sob pretexto de tudo aquilo que Deus pode fazer com a sua onipotência; admitindo essas virtudes centrípetas ou essas atrações imediatas de longe, sem que seja possível torná-las inteligíveis, não vejo nada que impediria os nossos Escolásticos de afirmar que tudo se faz simplesmente pelas suas faculdades, e defender as suas "espécies" intencionais que vão dos objetos até nós e encontram meios de penetrar até a nossa alma. Se assim for, Omnia iam fient, fieri quae posse negabam. (Tudo aquilo cuja possibilidade eu negava, realizar-se-á). Em consequência, parece-me que o nosso autor, por mais judicioso que seja, passa aqui de um extremo ao outro. Ele cria dificuldades quando se trata das operações das almas, quando se trata apenas de admitir o que não é sensível, e eis que reconhece aos corpos o que nem sequer é inteligível, atribuindo-lhes poderes e ações que ultrapassam, a meu modo de ver, tudo aquilo que um espírito criado poderia fazer e compreender, visto que lhes reconhece a atração, mesmo a grandes distâncias, sem limitar-se a nenhuma esfera de atividade, e isto para defender uma tese que se afigura como não menos inexplicável, ou seja, a possibilidade do pensamento na matéria, dentro da ordem natural. A questão que o autor debate com o célebre prelado que o tinha atacado é se a matéria pode pensar. Como se trata de um ponto importante, também para a presente obra, não posso renunciar a entrar um pouco no assunto e a referir brevemente a discussão entre os dois autores. Darei o essencial sobre o assunto, tomando a liberdade de afirmar o que penso a respeito. O falecido Senhor Bispo de Worcester, temendo - a meu modo de ver, sem motivo - que o ensinamento do nosso autor prejudicasse a nossa fé cristã, empreendeu a tarefa de examinar algumas passagens na defesa da doutrina sobre a Santíssima Trindade. Após ter valorizado os méritos deste excelente escritor, reconhecendo que segundo ele a existência do espírito é tão certa como a do corpo, embora ambas as substâncias sejam igualmente pouco conhecidas, pergunta (páginas 241 e seguintes) de que maneira a reflexão nos pode dar certeza sobre a existência do espírito, se Deus pode outorgar à matéria a faculdade de pensar conforme a tese do nosso autor, no livro quarto, capítulo terceiro, pois desta forma o caminho das ideias, que deve servir para discernir o que pode convir à alma ou ao corpo, se tornaria inútil, ao passo que se dizia, no livro segundo do Ensaio sobre o Entendimento (capítulo 23, §§ 15, 27,28) que as operações da alma nos fornecem a ideia do espírito e que o entendimento com a vontade nos torna esta ideia tão inteligível quanto a natureza do corpo se nos torna inteligível pela solidez e pela impulsão. Eis como o nosso autor lhe responde, na primeira carta (página 65 e seguintes): Acredito ter demonstrado que existe uma substância espiritual em nós, pois experimentamos em nós o pensamento; ora, esta ação ou este modo não pode ser objeto da ideia de uma coisa subsistente em si mesma, e por conseguinte este modo necessita de um suporte ou sujeito de inerência, e a ideia deste suporte perfaz o que denominamos substância ... Com efeito, visto que a ideia geral da substância é em toda parte a mesma, segue-se que a modificação que se denomina pensamento ou poder de pensar, por estar-lhe associada, isto faz em espírito, sem que seja necessário considerar que outra modificação existe ainda, isto é, se ele tem solidez ou não. Por outro lado, a substância que tem a modificação denominada solidez será matéria, quer o pensamento lhe esteja associado, quer não. Se, porém, por substância espiritual entendeis uma substância imaterial, reconheço não ter demonstrado que existe em nós tal substância, e que isto é impossível de, ser demonstrado, à base dos meus princípios. Aliás, o que afirmei sobre os sistemas de matéria (livro quarto, capítulo 10, § 16), ao demonstrar que Deus é imaterial, torna sumamente provável a tese de que a substância em nós é imaterial... Todavia, demonstrei (acrescenta o autor à página 68) que as grandes finalidades da religião e da moral são asseguradas pela imortalidade da alma, sem que seja necessário supor a sua imaterialidade. O sábio Bispo, na sua resposta à mencionada carta, para mostrar que o nosso autor defendeu outra opinião ao escrever o seu segundo livro do Ensaio, alega à página 51 esta passagem (tirada do mesmo livro, capítulo 23; § 15), onde se diz que, pelas ideias simples que deduzimos das operações do nosso espírito, podemos formar a ideia complexa de um Espírito; e que, colocando junto às ideias de pensamento, de percepção, de liberdade e de potência de mover o nosso corpo, possuímos uma noção tão clara das substâncias imateriais quanto a temos das materiais. Alega ainda outras passagens para demonstrar que o autor opunha o espírito ao corpo. Acrescenta (página 54) que as finalidades da religião e da moral são melhor asseguradas provando que a alma é imortal por natureza, isto, por ser imaterial. Alega ainda (página 70) esta passagem do autor do Ensaio: Todas as ideias que temos das espécies particulares e distintas das substâncias não são outra coisa senão combinações diferentes de ideias simples. Se assim é - raciocina o prelado - o autor defendeu que a ideia de pensar e de querer dá outra substância diferente da que é dada pela ideia da solidez e da impulsão. Alega ainda (§ 17) que, segundo o autor, essas ideias constituem o corpo oposto ao espírito. O Senhor Bispo de Worcester poderia ter acrescentado que, do fato de a ideia geral de substância estar tanto no corpo como no espírito, não segue que as suas diferenças constituam modificações de uma mesma coisa, como o nosso autor acaba de afirmar na passagem que citei da sua primeira carta. Cumpre bem distinguir entre modificações e atributos. Além disso, deve-se distinguir entre gênero físico (ou melhor, real) e gênero lógico ou ideal. As coisas que são de um mesmo gênero físico ou que são homogêneas são por assim dizer de uma mesma matéria, podendo muitas vezes ser transformadas uma na outra pela mudança da modificação, como os círculos e os quadrados. Entretanto, duas coisas heterogêneas podem ter um gênero lógico comum, e neste caso as suas diferenças não são simples modificações acidentais de um mesmo sujeito ou de uma mesma matéria metafísica ou física. Assim, o tempo e o espaço são coisas muito heterogêneas, e faríamos mal se imaginássemos não sei que sujeito real comum que só tivesse a quantidade contínua em geral, e cujas modificações fizessem provir o tempo ou espaço. Talvez alguém se ria destas distinções dos filósofos, de dois gêneros (um apenas lógico, o outro real) e de duas matérias (uma física, que é a dos corpos, a outra somente metafísica ou geral), como se alguém dissesse que duas partes do espaço são de uma mesma matéria, ou que duas horas são, entre si, da mesma matéria. Todavia, tais distinções não constituem meros termos, mas coisas, e parecem vir muito a propósito aqui, pois foi a sua confusão que deu origem a urna consequência falsa. Estes dois gêneros têm uma noção comum, e a noção do gênero real é comum às duas matérias, de sorte que a sua genealogia será a seguinte: -Apenas lógico, varia por diferenças simples. - Gênero - Apenas metafísico, onde -Real, onde as diferenças são existe homogeneidade. as modificações, isto é, matéria. - Físico, onde existe uma Massa homogênea sólida Não cheguei a ler a segunda carta do autor ao Bispo, sendo que a resposta do prelado à ela não toca no ponto que diz respeito ao pensamento da matéria. Todavia, a réplica do nosso autor a esta segunda resposta volta ao tema. Deus - assim escreve ele, mais ou menos nestes termos, página 397 - acrescenta à essência da matéria as qualidades e perfeições que lhe apraz, o movimento simples em algumas partes, porém nas plantas a vegetação e nos animais o sentimento. Os que concordam até aqui reclamam no momento em que se dá um passo além, para dizer que Deus pode dar à matéria pensamento, razão, vontade, como se isto destruísse a essência da matéria. Entretanto, para demonstrá-lo alegam que o pensamento ou a razão não se encerram na essência da matéria, o que nada prova, pois que o movimento e a vida também não o estão. Alegam outrossim que não se pode conceber que a matéria pense: todavia, a medida do poder de Deus não é a nossa capacidade de conceber. Depois disso o autor cita o exemplo da atração da matéria (página 99, sobretudo página 408, onde fala da gravitação da matéria em relação à matéria, atribuída ao Sr. Newton nos termos que Citei acima), reconhecendo que não é possível conceber como isto acontece. Isto equivale, na realidade, a voltar às qualidades ocultas, ou, o que é mais, inexplicáveis. Acrescenta, à página 401, que nada é mais apto a favorecer aos céticos do que negar o que não se compreende; e, à página 402, que não se pode sequer conceber como a alma pensa. Afirma ele, à página 403, que, uma vez que as duas substâncias (a material e a imaterial) podem ser concebidas na sua essência pura sem nenhuma atividade, depende de Deus dar a ambas o poder de pensar. Assim sendo, quer valer-se do fato de que o adversário concede o sentimento para os animais, porém não lhes reconheceria qualquer substância imaterial. Pretende que a liberdade e a consciosidade (página 408), bem como o poder de formar abstrações (página 409) podem ser outorgados à matéria, não como matéria, mas como enriquecida por uma potência divina. Finalmente, cita (página 434) a observação de um viajante tão considerável e judicioso como o Senhor de La Loubère de que os pagãos do Oriente conhecem a imortalidade da alma sem poderem compreender-lhe a imaterialidade. Quanto a tudo isto observarei, antes de passar a explicar a minha opinião, que é certo que a matéria é tão pouco capaz de produzir maquinalmente o sentimento, quanto o é de produzir a razão, como concorda o nosso autor; na verdade, reconheço não ser permitido negar o que não se compreende, porém acrescento que não temos o direito de negar (ao menos na ordem natural) o que em absoluto não é inteligível nem explicável. Mantenho também que as substâncias (materiais ou imateriais) não podem ser concebidas na sua essência pura sem nenhuma atividade, que a atividade pertence à essência da substância em geral; enfim, a concepção das criaturas não constitui a medida do poder de Deus, porém a sua conceptividade ou força de conceber constitui a medida do poder da natureza; visto que tudo o que é conforme a ordem natural pode ser concebido ou compreendido por alguma criatura. Os que compreenderem o meu sistema julgarão que não concordo inteiramente com nenhum dos dois excelentes autores, cuja discussão, entretanto, é muito instrutiva. Todavia, para explicar-me claramente, é necessário antes de tudo considerar que as modificações que podem convir naturalmente ou sem milagre a um sujeito devem provir das limitações ou variações de um gênero real ou de uma natureza originária constante e absoluta. Com efeito, é assim que se distinguem entre os filósofos os modos de um ser absoluto deste mesmo ser, como se sabe que a grandeza, a figura e o movimento são manifestamente limitações e variações da natureza corporal. Pois é claro como uma extensão limitada dá figuras e que a mudança que ali se opera não é outra senão o movimento, E todas as vezes que encontramos alguma qualidade em um sujeito, devemos crer que, se compreendêssemos a natureza deste sujeito e desta qualidade, seríamos capazes de conceber como esta qualidade pode resultar. Assim, na ordem da natureza (deixando à parte os milagres), não é arbitrário a Deus dar indiferentemente às substâncias estas ou aquelas qualidades; ele não lhes dará jamais outras que não sejam as que lhes pertencem naturalmente, isto é, as que podem ser derivadas da sua natureza como modificações explicáveis. Assim, podemos pensar que a matéria não terá naturalmente a atração mencionada acima, e não irá por si mesma em linha curva, pois não é possível conceber como isto possa acontecer, isto é, não é possível explicá-lo mecanicamente, ao passo que aquilo que é natural deve poder tornar-se concebível distintamente se fôssemos admitidos nos segredos das coisas. Esta distinção entre o que é natural e explicável e o que é inexplicável e miraculoso elimina todas as dificuldades: se a rejeitarmos, defenderíamos algo de pior do que as qualidades ocultas, renunciaríamos aqui à filosofia e à razão, abrindo asilos da ignorância e da preguiça, por um sistema surdo que admite não somente que existem qualidades que não compreendemos (destas já existem demais), mas também que existem qualidades tais, que o espírito mais sublime, se Deus lhe desse toda a abertura possível, não poderia compreender, isto é, que seriam milagrosas, sem rima e sem razão; aliás seria também sem rima e sem razão o fato de Deus operar milagres no decurso ordinário dos acontecimentos, de maneira que esta hipótese destruiria igualmente a nossa filosofia, a qual procura razões, bem como a divina sabedoria, que as fornece. No que concerne ao Pensamento, é certo - e o autor o reconhece mais de uma vez - que ele não pode ser uma modificação inteligível da matéria, e que não pode ser compreendido e explicado só no âmbito da matéria; isto significa que o ser que sente e pensa não é uma coisa maquinal como um relógio ou um moinho, de maneira que se poderiam conceber grandezas, figuras e movimentos cuja conjunção maquinal poderia ser alguma coisa de pensante e mesmo dotada de capacidade de sentir em uma massa onde não houvesse nada disso, que cessaria também pelo simples desarranjo dessa máquina. Por conseguinte, o sentir e o pensar não constituem, um fenômeno natural à matéria. Isto só pode ocorrer à matéria de dois modos: uma dessas possibilidades é que Deus lhe associe uma substância à qual a capacidade de pensar seja natural; a outra possibilidade ê que Deus mesmo coloque miraculosamente o pensamento na matéria. Nisto concordo, portanto, inteiramente com os Cartesianos, exceto no seguinte: eu estendo o pensamento até aos animais, acreditando que eles têm sentimento e almas imateriais (falando em sentido próprio) e tão pouco perecíveis como são os átomos em Demócrito ou Gassendi, ao passo que os Cartesianos, embaraçados sem motivo pelas almas dos animais e não sabendo o que fazer com elas se forem imperecíveis (por não se lembrarem da conservação do próprio animal reduzido a pequeno), se viram forçados a recusar até o sentimento aos animais, contra todas as evidências e contra o modo de pensar do gênero humano. Se, porém, alguém dissesse que Deus, em todo caso, pode acrescentar a faculdade de pensar à máquina preparada, eu responderia que, se isto acontecesse, e se Deus acrescentasse tal faculdade à matéria sem unir-lhe ao mesmo tempo uma substância que constituísse o sujeito de inesão desta faculdade (como eu o concebo), isto é, sem acrescentar-lhe uma alma imaterial, seria necessário que a matéria fosse antes exaltada miraculosamente para receber uma potência de que não é capaz naturalmente: assim como alguns Escolásticos pretendem que Deus exalta o fogo ao ponto de dar-lhe a força de queimar imediatamente espíritos separados da matéria, o que constituiria puro milagre. Não se pode defender que a matéria seja capaz de pensar, sem colocar nela uma alma imperecível, ou então um milagre; assim sendo a imortalidade das nossas almas segue do que é natural: pois não se pode defender a sua extinção a não ser por um milagre, seja exaltando a matéria, seja aniquilando a alma. Com efeito, sabemos bem que o poder de Deus poderia tornar as nossas almas mortais, por mais imateriais (ou imortais por natureza) que possam ser, uma vez que as pode aniquilar. Ora, esta verdade da imaterialidade da alma tem indubitavelmente consequências. Pois é infinitamente muito mais vantajoso à religião e à moral, sobretudo no tempo em que vivemos (quando muitas pessoas não respeitam a pura revelação e os milagres), demonstrar que as almas são imortais por natureza, e que seria um milagre se não o fossem, do que defender que as nossas almas por natureza estão destinadas à morte, e que, se não perecem, isto se deve exclusivamente a uma graça miraculosa fundada exclusivamente na promessa de Deus. Sabe-se desde há muito tempo que aqueles que pretenderam destruir a religião natural e reduzir tudo à religião revelada, como se a própria razão não nos ensinasse nada sobre isto, passaram por suspeitos, nem sempre sem motivo. Todavia, o nosso autor não pertence a este número, pois defende a demonstrabilidade da existência de Deus, e atribui à imaterialidade da alma uma probabilidade em grau supremo, que consequentemente pode considerar-se como uma certeza moral. Assim sendo, imagino que, possuindo ele tanta penetração como possui sinceridade, poderia ele bem concordar com a doutrina que acabo de expor, e que é fundamental em toda filosofia racional, pois de outra forma não vejo como possamos evitar de cair na filosofia fanática, como é a filosofia mosaica de Flud, que salva todos os fenômenos, atribuindo-os a Deus imediatamente e por milagre, ou bárbara, como a de certos filósofos e médicos dos tempos passados, filosofia que trazia ainda vestígios da barbárie do seu século, e que hoje se menospreza com razão, que salvaram as aparências forjando expressamente qualidades ocultas ou faculdades que imaginavam semelhantes a pequenos demônios ou duendes capazes de fazer o que se pede, como se os relógios de bolso assinalassem as horas por uma certa faculdade horodeítica sem necessidade de engrenagens de rodas, ou como se os moinhos triturassem os grãos por uma faculdade fractiva sem ter necessidade de nada que se assemelhe às mós. No que concerne à dificuldade que tiveram alguns povos de conceber uma substância imaterial, este problema deixará de existir facilmente (ao menos em boa parte) no momento em que não postularem substâncias separadas da matéria, coisa que, como acredito, jamais existe naturalmente entre as criaturas. LIVRO I AS NOÇÕES INATAS CAPÍTULO I Existem princípios inatos no espírito humano? FILALETO - Tendo atravessado de novo o mar, após haver encerrado os meus afazeres na Inglaterra, pensei primeiro em visitar-vos, Senhor, para cultivar a nossa antiga amizade, e para entreter-nos sobre assuntos que a ambos nos são muito caros, pois acredito ter adquirido novas luzes durante a minha estada em Londres. Quando outrora morávamos bem perto um do outro, em Amsterdam, ambos tínhamos muito prazer em pesquisar sobre os princípios e os meios de penetrar no interior das coisas. Embora os nossos pontos de vista fossem muitas vezes diversos, esta diversidade aumentava a nossa satisfação ao conferirmos juntos, sem que as nossas diferenças representassem qualquer coisa de desagradável. Vós defendíeis Descartes e as opiniões do célebre autor da obra Pesquisa da Verdade, ao passo que eu considerava as ideias de Gassendi, aclaradas por Bernier, mais fáceis e mais naturais. Agora sinto-me muito fortalecido pela excelente obra que um ilustre inglês, o qual tenho a honra de conhecer particularmente, publicou, obra reimpressa várias vezes na Inglaterra, sob o modesto título de Ensaio sobre o Entendimento Humano. Estou encantado ante o fato de que a obra apareceu há pouco em latim e em francês, para que possa ser de maior utilidade geral. Tirei muito proveito da leitura desta obra, e também da conversação com o seu autor, que tive muitas vezes em Londres e algumas vezes em Oates, na casa de Milady Masham, digna filha do célebre Cudworth, notável filósofo e teólogo inglês, autor do sistema intelectual, do qual herdou o espírito de meditação e o amor aos belos conhecimentos, espírito que aparece em particular na amizade que mantém com o autor do Ensaio. E, já que foi atacado por alguns doutores de prestígio, tive prazer em ler também a apologia que uma senhorita muito sábia e muito espiritual fez dele, além das que ele mesmo fez. Este autor está bastante no sistema de Gassendi, que no fundo é o de Demócrito. Ele defende o vazio e os átomos, acredita que a matéria poderia pensar, que não existem ideias inatas que o nosso espírito é tabula rasa e que não pensamos sempre; parece também que aprova a maior parte das objeções que Gassendi fez contra Descartes. Ele enriqueceu e reforçou este sistema por uma infinidade de boas reflexões; não duvido de que agora as nossas convicções triunfam altamente dos seus adversários, os Peripatéticos e os Cartesianos. Eis por que, se ainda não lestes o citado livro, vos convido a fazê-lo; se já o lestes, suplico-vos que me digais a vossa opinião sobre ele. TEÓFILO - Alegro-me em ver-vos de regresso após uma longa ausência, feliz pela conclusão dos vossos importantes afazeres, cheio de saúde, firme na amizade para comigo, e sempre imbuído do mesmo ardor pela pesquisa das verdades mais importantes. Eu mesmo não continuei as minhas meditações no mesmo espírito e creio haver aproveitado tanto como vós, e talvez mais, se não me iludo. Aliás, eu tinha mais necessidade que vós, pois vós estáveis mais adiantado do que eu. Vós tínheis mais familiaridade com os filósofos especulativos, ao passo que eu tinha mais inclinação para a moral. Todavia, aprendi mais e mais quanto a moral ganha em firmeza dos princípios sólidos da verdadeira filosofia, razão pela qual os estudei desde então com maior aplicação, tendo entrado em meditações bastante novas. Assim sendo, teremos muito assunto para dar-nos prazer durante muito tempo, comunicando um ao outro as nossas luzes. Entretanto, é necessário que vos transmita uma notícia: não sou mais Cartesiano, e todavia estou mais longe do que nunca do vosso Gassendi, cujo saber e mérito reconheço. Fiquei impressionado por um novo sistema, sobre o qual li alguma coisa nos jornais dos sábios de Paris, de Leipzig e da Holanda e no maravilhoso Dicionário do Sr. Bayle, no artigo de Rorarius; desde então, acredito enxergar uma nova faceta do íntimo das coisas. O mencionado sistema parece aliar Platão com Demócrito, Aristóteles com Descartes, os Escolásticos com os modernos, a teologia e a moral com a razão. Parece que ele toma o que há de melhor de todos os lados, e que depois vai mais longe do que se tem ido até hoje. Neste sistema encontro uma explicação inteligível da união da alma e do corpo, coisa de que havia desesperado. Encontro os verdadeiros princípios das coisas nas unidades de substância que este sistema introduz, e na sua harmonia preestabelecida pela substância primitiva. Encontro nele uma simplicidade e uma uniformidade surpreendentes, de modo que se pode dizer que é em toda parte e sempre a mesma coisa, com exceção dos graus de perfeição. Vejo agora o que Platão entendia, quando considerava a matéria como um ser imperfeito e transitório; vejo agora o que Aristóteles queria dizer com a sua enteléquia; vejo o que é a promessa que o próprio Demócrito fazia de outra vida, em Plínio. Vejo até onde os céticos tinham razão investindo contra os sentidos; vejo como os animais são realmente autômatos segundo Descartes, e como, no entanto, têm almas e sentimento, segundo a opinião do gênero humano; vejo como se deve explicar racionalmente os que enxergaram vida e perfeição em todas as coisas, como Cardan, Campanella, e mais do que eles a falecida Senhora Condessa de Conway, platônica, e o nosso amigo, o falecido François Mercure van Helrnont, embora eivado de paradoxos ininteligíveis - com o seu amigo, o falecido Henry Morus. Vejo agora como as leis da natureza (das quais uma boa parte era desconhecida antes deste sistema) têm a sua origem nos princípios superiores à matéria, e que, não obstante isto, tudo acontece mecanicamente na matéria, sendo que nisto tinham errado os autores espiritualizantes que acabo de citar, com as suas archés, e até os Cartesianos, acreditando que as substâncias imateriais alteravam, se não a força, pelo menos a direção ou determinação dos movimentos dos corpos, ao passo que a alma e o corpo observam perfeitamente as leis, cada qual as suas, segundo o novo sistema, e não obstante isto um obedece ao outro na medida do necessário. Finalmente, é desde que me pus a meditar sobre este sistema que descobri como as almas dos animais e as suas sensações não constituem objeção alguma contra a imortalidade das almas humanas, ou melhor, como nada é mais apto para demonstrar a nossa imortalidade natural do que crer que todas as almas são imperecíveis (morte carent animae) sem que por isso se devam temer metempsicoses, visto que não somente as almas, senão também os animais permanecem e permanecerão seres que vivem, sentem e agem: em toda parte é como aqui, e sempre e em toda parte como entre nós, conforme o que já vos disse. A diferença é que os estados dos animais são mais ou menos perfeitos e desenvolvidos, sem que tenhamos jamais necessidade de almas inteiramente separadas, embora tenhamos sempre espíritos tão puros como é possível, não obstante os nossos órgãos, que não podem por nenhuma influência perturbar as leis da nossa espontaneidade. Neste sistema encontro excluídos o vazio e os átomos, de maneira bem diferente do que ocorre no sofisma dos Cartesianos, fundado sobre a pretendida coincidência da ideia do corpo e da extensão. Enxergo todas as coisas ordenadas e ornadas para além de tudo o que se havia concebido até agora, a matéria orgânica em toda parte, nada de vazio, estéril, negligenciado, nada de excessivamente uniforme, tudo variado, mas com ordem; e, o que ultrapassa a imaginação, todo o universo em miniatura, mas sob um olhar diferente, em cada uma das suas partes, e até em cada uma das suas unidades de substância. Além desta nova análise das coisas, compreendi melhor a análise das noções ou ideias e das verdades. Compreendo agora o que é uma ideia verdadeira, clara, distinta, adequada, se me é lícito adotar esta palavra. Compreendo quais são as ideias primitivas, as verdades primitivas, os verdadeiros axiomas, a distinção entre as verdades necessárias e as de fato, entre o raciocínio dos homens e as conclusões dos animais, que constituem uma sombra daquele. Enfim, surpreender-vos-eis ante tudo o que vos tenho a dizer, e sobretudo em compreenderdes quanto se agiganta, neste sistema, o conhecimento da grandeza e das perfeições de Deus. Com efeito, não poderia esconder-vos, a vós a quem nada posso ocultar, como estou agora possuído de admiração e (se podemos usar este termo) de amor por esta soberana Fonte das coisas e da beleza, uma vez que descobri que todas as belezas que este sistema nos revela ultrapassam tudo o que se concebeu até hoje. Sabeis que eu tinha ido longe demais em outra direção, e que começava a inclinar-me para o lado dos Espinosistas, que atribuem a Deus apenas um poder infinito, sem reconhecer-lhe nem a perfeição nem a sabedoria e, menosprezando a busca das causas finais, derivam tudo de uma necessidade fatal. Todavia, essas novas luzes me curaram deste mal, e desde esse tempo adoto às vezes o nome de Teófilo. Li o livro deste famoso inglês, de quem acabais de falar. Estimo-o muito e encontrei nele muitas coisas belas. Parece-me, porém, que se deve ir além, sendo até necessário afastar-se das suas opiniões, quando algumas delas nos limitam mais do que é necessário e rebaixam um pouco não somente a condição do homem, mas também a do universo. FILALETO - Realmente, vós me espantais com todas as maravilhas, acerca das quais me fazeis um relato excessivamente otimístico, para que eu possa crer facilmente. Todavia, quero crer que haja algo de sólido em meio a tantas novidades com que quereis presentear-me. Neste caso encontrar-me-eis muito dócil. Sabeis que sempre estive disposto a render-me à razão, e que por vezes adotava o nome de Filaleto. Por este motivo, servir-nos-emos agora desses dois nomes que têm tanta relação um com o outro. Existe possibilidade de confrontar as opiniões, visto que, tendo vós lido o livro do insigne inglês, que me deu tanta satisfação, e que trata de uma boa parte dos assuntos que acabais de mencionar, sobretudo da análise das nossas ideias e conhecimentos, será mais breve seguir o fio do livro, e ver o que tendes a observar. TEÓFILO - Aprovo a vossa proposta. Eis aqui o livro. § 1. FILALETO - [Li tão bem o livro, que conservei na memória até as expressões, que terei o cuidado de seguir. Assim sendo, não terei necessidade de recorrer ao livro, a não ser em certos confrontos, quando julgarmos necessário. Falaremos primeiramente da origem das ideias ou Noções (livro primeiro), depois das diversas espécies de ideias (livro segundo) e das palavras que servem para exprimir essas ideias (livro terceiro), finalmente, das verdades e conhecimentos resultantes (livro quarto), sendo esta a parte que mais nos ocupará. Quanto à origem das ideias, acredito, com este autor e muitos outros pensadores versados, que não existem ideias inatas, como não há princípios inatos. Para refutar os erros dos que admitem tais ideias e princípios inatos, seria suficiente mostrar, conforme aparecerá a seguir, que não temos necessidade disto, e que os homens podem adquirir todos os seus conhecimentos sem o auxílio de qualquer impressão inata.] TEÓFILO - [Sabeis, Filaleto, que desde muito tempo defendo opinião contrária; que sempre fui, como ainda sou, pela ideia inata de Deus, ideia que Descartes defendeu; consequentemente defendo outras ideias inatas que não nos podem vir dos sentidos. Agora vou ainda mais longe, em conformidade com o novo sistema. Acredito mesmo que todos os pensamentos e ações da nossa alma procedem do seu próprio fundo, sem que possam ser fornecidos à alma pelos sentidos, como vereis a seguir. Todavia, no momento deixarei de lado esta pesquisa e, adaptando-me às expressões usuais (já que, de fato, elas são boas e defensáveis, podendo-se dizer até certo ponto que os sentidos externos constituem em parte a causa dos nossos pensamentos), examinarei como se deve dizer, no meu entender - permanecendo no sistema usual (falando da ação dos corpos sobre a alma, como os Copernicanos falam com os outros homens do movimento do sol, e com fundamento) -, que existem ideias e princípios que não nos vêm dos sentidos, e que encontramos em nós sem formá-los nós mesmos, embora sejam os sentidos que nos dão ocasião para percebê-los, Imagino que o vosso inteligente autor notou que sob o nome de princípios inatos muitas vezes defendemos os nossos preconceitos e queremos isentar-nos do trabalho das discussões, e que este abuso terá reforçado o seu zelo contra esta suposição. Ele terá querido combater a preguiça e a maneira de pensar superficial daqueles que, sob o pretexto hábil de ideias inatas e de verdades gravadas naturalmente no espírito (às quais damos facilmente o nosso consentimento), não se preocupam em pesquisar e examinar as fontes, as conexões e a certeza desses conhecimentos. Neste ponto estou inteiramente com ele e vou até além. . Gostaria que não limitássemos as nossas análises, que déssemos as definições de todos os termos, enquanto possível, e que demonstrássemos, ou déssemos os meios para demonstrar, todos os axiomas que não são primitivos, sem distinguir a opinião que os homens têm, e sem preocupar-nos se os homens estão de acordo ou não. Isto seria mais útil do que se pensa. Todavia, parece que o autor foi levado longe demais também sob outro aspecto, devido ao seu zelo, aliás muito elogiável. A meu ver, ele não distinguiu suficientemente entre a origem das verdades necessárias - cuja fonte é o entendimento - e a origem das verdades de fato, que haurimos das experiências dos sentidos, e até das percepções confusas que estão em nós. Vedes, portanto, que não aceito o que afirmais, isto é, que possamos adquirir todos os nossos conhecimentos sem necessitarmos de impressões inatas. A sequência das nossas discussões mostrará quem de nós tem razão.] § 2. FILALETO - É o que de fato veremos. Confesso-vos, meu caro Teófilo, que não existe nenhuma opinião mais comumente aceita do que esta, a saber, que há certos princípios da verdade sobre os quais os homens concordam unanimemente; razão pela qual se denominam Noções comuns, koinai énnoiai. Daqui segue que tais princípios constituem elementos que recebemos com a nossa própria existência. § 3. Todavia, mesmo que fosse certo o fato de que existem princípios com os quais todo o gênero humano concorda, este consentimento universal não demonstraria que são inatos, se conseguirmos mostrar, como acredito, outra via pela qual os homens podem ter chegado a esta unanimidade de pensamento. § 4. Entretanto, o que é pior, esta unanimidade universal não existe, nem mesmo com respeito a estes dois célebres princípios especulativos (mais adiante falaremos dos princípios práticos), isto é: tudo o que é, é; e que é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo. Com efeito, para uma grande parte do gênero humano estas duas proposições - que para vós constituem verdades necessárias e axiomas - nem sequer são conhecidas. TEÓFILO - [Eu não fundamento a certeza dos princípios inatos sobre o consentimento universal. Com efeito, já vos disse, Filaleto, que em minha opinião se deve procurar demonstrar todos os axiomas que não são primitivos. Concedo também que um consentimento muito geral, que não seja universal, pode provir de uma tradição difundida através de todo o gênero humano, assim como o uso de fumar tabaco foi adotado por quase todos os povos em menos de um século, embora se tenham encontrado alguns insulares que, não conhecendo sequer o fogo, não tinham o uso de fumar. Assim é que algumas pessoas versadas, mesmo entre os teólogos, mas do partido de Arminius acreditaram que o conhecimento da Divindade provinha de uma tradição muito antiga e muito generalizada; de fato, acredito que o ensinamento confirmou e retificou este conhecimento. Parece-me, entretanto, que a própria natureza contribuiu para levar a isto sem o ensinamento; as maravilhas do universo fizeram automaticamente pensar em um Poder superior. Viu-se uma criança, nascida surda e muda, mostrar veneração à lua cheia; conhecemos outrossim nações, que não tinham aprendido nada de outros povos, temerem poderes invisíveis. Reconheço, estimado Filaleto, que não é ainda a ideia de Deus, tal qual a temos e exigimos; todavia, esta ideia não deixa de residir no fundo das nossas almas, sem ter sido colocada por homens, como veremos. As leis eternas de Deus, ao menos em parte, estão gravadas na alma humana de um modo ainda mais legível, .por uma espécie de instinto. Entretanto, são princípios práticos, sobre os quais teremos ocasião de falar. Deve-se reconhecer, todavia, que a inclinação que temos a reconhecer a ideia de Deus está na natureza humana. Mesmo que atribuíssemos o primeiro ensinamento à Revelação, permanece de pé que a facilidade que os homens sempre demonstraram em receber esta doutrina vem da própria natureza das suas almas. Veremos a seguir que, na realidade, o ensinamento externo não faz outra coisa senão excitar ou despertar em nós o que já estava em nós. Concluo que o consentimento bastante geral entre os homens constitui um indício, e não uma demonstração de um princípio inato; a prova exata e decisiva desses princípios consiste em mostrar que a sua certeza só provém do que está em nós. Para responder ainda àquilo que dizeis contra a aprovação geral que se dispensa aos dois grandes princípios especulativos, que figuram entre os mais admitidos, posso dizer-vos que, mesmo que não fossem conhecidos, não deixariam de ser inatos, visto que os reconhecemos desde o momento em que os ouvimos: todavia, acrescentarei ainda que, no fundo, todos os conhecem, e que nos servimos a cada momento do princípio de contradição (para dar um exemplo) sem considerá-lo distintamente; não existe nenhum bárbaro que, em se tratando de um assunto sério, não se choque com a conduta de um mentiroso que se contradiz. Portanto, empregamos essas máximas sem mesmo analisá-las expressamente. Acontece coisa semelhante ao fato de termos virtualmente no espírito as proposições suprimidas nos entimemas, que emitimos não somente na expressão, mas também em nosso pensamento.] § 5. FILALETO - [O que acabais de dizer acerca desses conhecimentos virtuais e dessas supressões internas me surpreende,] pois parece-me uma verdadeira contradição dizer que existem verdades impressas na alma, e ao mesmo tempo que esta não percebe tais verdades. TEÓFILO - [Se tendes este preconceito, não me admiro de que rejeiteis os conhecimentos inatos. Todavia, admiro-me ante o fato de não vos ter vindo à ideia que temos uma infinidade de conhecimentos que nem sempre percebemos, nem sequer quando temos necessidade deles. Compete à memória conservá-los e à reminiscência coloca-los diante de nós, como o faz frequentem ente quando necessário, mas não sempre. Isto se denomina muito justamente lembrança (souvenir - de subvenire, socorrer), pois a reminiscência pede um auxílio. É indispensável que, em meio a esta multidão dos nossos conhecimentos, sejamos determinados por alguma coisa a ser renovada, mais do que por outra, visto ser impossível pensarmos distintamente, e ao mesmo tempo, em tudo o que sabemos.] FILALETO - Nisto acredito terdes razão: a afirmação, demasiado genérica, de que nos damos conta sempre de todas as verdades que estão em nossa alma, escapou-me por não ter prestado suficiente atenção. Contudo, ser-nos-á mais difícil responder ao que vou objetar-vos: se podemos dizer de alguma proposição em particular que é inata, pela mesma razão se poderá defender que todas as proposições que são razoáveis, e que o espírito puder um dia considerar como tais, estão já impressas na alma. TEÓFILO - Concordo quanto às ideias puras, que oponho às fantasias dos sentidos; concordo também com respeito às verdades necessárias ou de razão, que oponho às verdades de fato. Neste sentido deve-se dizer que toda a aritmética e toda a geometria são inatas, estando em nós de maneira virtual, de maneira que podemos encontrá-las em nós considerando atentamente e ordenando o que já temos no espírito, sem utilizar qualquer verdade aprendida por experiência ou pela tradição de outros, como demonstrou Platão em um diálogo, no qual introduz Sócrates conduzindo uma criança a verdades estranhas simplesmente através das perguntas, sem ensinar-lhe nada. Podemos, por conseguinte, construir essas ciências em nosso gabinete e até com os olhos fechados, sem apreendermos pela vista ou pelo tato as verdades de que temos necessidade, embora permaneça verdade que jamais chegaríamos à consideração das ideias em questão, se não tivéssemos jamais visto e tocado nada. Com efeito, em virtude de uma admirável lei da natureza, não podemos ter pensamentos abstratos que não necessitem de alguma coisa sensível, a não ser que se trate de caracteres como as figuras das letras e os sons, embora não haja nenhuma conexão necessária entre tais caracteres arbitrários e tais pensamentos. E, se os traços sensíveis não fossem necessários, não existiria a harmonia preestabelecida entre a alma e o corpo, sobre a qual terei ocasião de falar-vos mais detidamente. Isto, porém, não impede que o espírito haura as verdades necessárias de si mesmo. Vê-se também quão longe se pode ir sem qualquer auxílio alheio, por uma lógica e aritmética puramente naturais, como aquele menino sueco que, com a sua lógica e a sua aritmética, chega a fazer grandes cálculos de cabeça, sem ter aprendido a maneira comum de contar; nem mesmo a ler e a escrever, se bem recordo de quanto me contaram. É verdade que ele não consegue resolver problemas como os que exigem extrações de raízes. Isto não impede que possa conseguir também isto, haurindo do fundo do seu espírito mediante algum artifício. Isto demonstra apenas que existem graus na dificuldade que temos de perceber o que está em nós. Existem princípios inatos que são comuns e muito fáceis a todos, existem teoremas que se descobrem com a mesma imediatez, e que compõem ciências naturais, que são mais compreendidos por uns do que por outros. Enfim, em um sentido mais vasto, que é bom empregar para ter noções mais compreensivas e mais determinadas, todas as verdades que podemos haurir dos conhecimentos inatos primitivos podem denominar-se ainda inatas, pelo fato de o espírito poder hauri-las de seu fundo, embora isto por vezes não seja fácil. Todavia, se alguém atribui um sentido diferente às palavras, não quero discutir sobre os termos. FILALETO - [Concordei convosco em que podemos ter na alma aquilo que não percebemos nela, pois não nos recordamos sempre, num dado momento, de tudo aquilo que sabemos; entretanto, é necessário sempre que o tenhamos aprendido, e que uma vez o tenhamos conhecido expressamente. Assim.] se podemos dizer que uma coisa está na alma, embora a alma não a tenha ainda conhecido, só pode ser porque a alma tem a capacidade ou faculdade de conhecê-la. TEÓFILO - [Por que razão isto não poderia ser devido a outra causa, como, por exemplo, que a alma pode ter em si mesma esta coisa, sem dar-se conta? Com efeito, já que um conhecimento adquirido pode estar oculto pela memória - como vós mesmo reconheceis -, por que razão a própria natureza não poderia ter escondido na alma algum conhecimento original? É porventura indispensável que tudo o que é natural a uma substância que se conhece se conheça primeiro imediatamente? Esta substância, tal como a nossa alma, não pode e não deve porventura ter tantas propriedades, que seja impossível considerá-las todas imediatamente e ao mesmo tempo? Os Platônicos acreditavam que todos os nossos conhecimentos eram reminiscências, e assim as verdades que a alma trouxe com o conhecimento do homem, e que se denominam inatas, devem ser restos de um conhecimento expresso anterior. Esta opinião não tem fundamento algum. É fácil pensar que a alma devia já possuir conhecimentos inatos no estado precedente (se houvesse preexistência), por mais recuado no tempo que pudesse ser tal estado, como da seguinte forma: os conhecimentos deveriam, portanto, vir também de um outro estado precedente, no qual seriam enfim inatos ou pelo menos co-criados, ou então seria necessário ir até ao infinito e supor almas eternas, caso em que os conhecimentos seriam inatos mesmo, pois que jamais teriam tido início na alma; e se alguém pretendesse que cada estado anterior teve alguma coisa de um outro estado mais anterior, que não deixou aos seguintes, responder-se-lhe-á que é evidente que certas verdades manifestas deveriam ter caracterizado todos esses estados. De qualquer maneira que se considere, é sempre claro em todos os estados da alma que as verdades necessárias são inatas e se demonstram por aquilo que é interno, não podendo ser demonstradas pelas experiências, como se demonstram as verdades de fato. Por que razão seria necessário afirmar que não podemos ter algo na alma, algo que nunca utilizamos? Porventura ter uma coisa sem utilizá-la equivale a ter apenas a faculdade de adquiri-la? Se assim fosse, não possuiríamos jamais a não ser coisas de que desfrutamos, quando na realidade sabemos que, além da faculdade e do objeto, é necessária muitas vezes alguma disposição na faculdade ou no objeto e em ambos, para que a faculdade se exerça sobre o objeto. FILALETO - Considerando as coisas assim, poder-se-á dizer que existem verdades gravadas na alma, que entretanto a alma jamais conheceu nem jamais conhecerá. Isto me parece estranho. TEÓFILO -, [Não vejo nisso absurdo algum, embora tampouco possamos ter certeza de que existam tais verdades. Com efeito, é possível que se desenvolvam um dia em nossas almas, quando estas estiverem num outro estado, coisas mais elevadas do que aquelas que podemos conhecer no presente estado de vida.] FILALETO - Supondo-se, porém, que existam verdades que possam ser impressas no entendimento sem que este as perceba, não vejo como, em relação à origem, elas possam diferir das verdades que o entendimento é apenas capaz de conhecer. TEÓFILO - O espírito não é somente capaz de conhecê-las, mas também de descobri-las em si mesmo; se o espírito tivesse apenas a capacidade de receber os conhecimentos ou a potência passiva para isto - capacidade tão indeterminada quanto a que possui a cera de receber figuras, e a lousa vazia de receber letras -, não seria a fonte das verdades necessárias, como acabo de demonstrar que na realidade é. Pois é incontestável que os sentidos não bastam para demonstrar a sua necessidade, e que portanto o espírito tem uma disposição (tanto ativa quanto passiva) para hauri-los por si mesmo do seu fundo; embora os sentidos sejam necessários para dar-lhe ocasião e atenção para isto, e para conduzi-lo preferivelmente a uns do que a outros. Como podeis ver, essas pessoas, muito versadas aliás, que têm outra opinião, parecem não ter meditado suficientemente sobre as consequências da diferença existente entre as verdades necessárias ou eternas, e entre as verdades de experiência, como já observei, e como demonstra toda a nossa contestação. A demonstração originária das verdades necessárias vem exclusivamente do entendimento, ao passo que as demais verdades procedem das experiências ou das observações dos sentidos. O nosso espírito é capaz de conhecer umas e outras, mas é a fonte das primeiras; e qualquer que seja o número de experiências particulares que possamos ter de uma verdade universal, não podemos ter certeza dela pela indução, sem conhecer pela razão a sua necessidade. FILALETO - Entretanto, não é porventura verdade que, se estas palavras - estarem no entendimento - encerram algo de positivo, significam ser percebido e compreendido pelo entendimento? TEÓFILO - As mencionadas palavras nos indicam uma coisa completamente diversa: basta que aquilo que está no entendimento possa ser encontrado ali, e que as fontes ou provas originárias das verdades em questão estejam apenas no entendimento: os sentidos podem insinuar, justificar e confirmar essas verdades, mas não demonstrar a certeza irreversível e perpétua delas. §11.FILALETO - Entretanto, todos aqueles que quiserem dar-se ao trabalho de refletir com um pouco de atenção sobre as operações do entendimento acharão que este consentimento que o espírito dá sem esforço a certas verdades depende da faculdade do espírito humano. TEÓFILO - Muito bem. Todavia, é esta relação particular do espírito humano com estas verdades que torna o exercício da faculdade fácil e natural com respeito a elas, e que faz com que as denominemos inatas. Por conseguinte, não é uma faculdade nua, que consistiria na pura possibilidade de compreender as verdades: é uma disposição, uma aptidão; uma pré-formação, que determina a nossa alma e que faz com que as verdades possam ser hauridas dela. Assim como existe diferença entre as figuras que imprimimos na pedra ou no mármore indiferentemente, e entre aquelas já indicadas pelos seus veios, ou que os veios estão dispostos a indicar, se o artífice souber aproveitar. FILALETO - Porventura as verdades não são posteriores às ideias das quais se originam? Ora, as ideias procedem dos sentidos. TEÓFILO - As ideias intelectuais, que constituem a fonte das verdades necessárias, não procedem dos sentidos: vós mesmo reconheceis que existem verdades que são devidas à reflexão do espírito, quando este reflete sobre si mesmo. De resto, é verdade que o conhecimento expresso das verdades é posterior (tempore vel natura – segundo a natureza) ao conhecimento expresso das ideias, como a natureza das verdades depende da natureza das ideias, antes de formarmos expressamente umas e outras; e as verdades em que entram as ideias provenientes dos sentidos dependem dos sentidos, pelo menos em parte. Contudo, as ideias que provêm dos sentidos são confusas, sendo-o também as verdades que deles dependem, ao menos em parte; ao passo que as ideias intelectuais e as verdades que delas dependem são distintas, sendo que nem as ideias nem as verdades têm a sua origem dos sentidos, embora permaneça verdade que não seríamos jamais capazes de pensar sem os sentidos. FILALETO - Segundo a vossa opinião, os números são ideias intelectuais, e todavia a dificuldade ali depende da formação expressa das ideias: por exemplo, uma pessoa sabe que 18 mais 19 fazem 37, com a mesma evidência que sabe que 1 mais 2 são três; contudo, uma criança não conhece a primeira proposição com a mesma rapidez que a segunda, o que se deve ao fato de que formou as palavras antes das ideias. TEÓFILO - Posso concordar convosco em que muitas vezes a dificuldade que existe na formação expressa das verdades depende da dificuldade que existe na formação expressa das ideias. Todavia, creio que, no exemplo que destes, se trata de utilizar ideias já formadas. Com efeito, os que aprenderam a contar até 10, e a maneira de passar mais adiante por certa repetição de dezenas, entendem sem esforço o que é 18, 19, 37, isto é, duas ou três vezes 10, com 8, ou 9, ou 7; contudo, para concluir que 18 mais 19 fazem 37, requer-se muito mais atenção de que para conhecer que 2 mais 1 fazem 3, o que no fundo não é outra coisa senão a definição de três. § 18. FILALETO - Não é privilégio ligado aos números ou às ideias que denominais intelectuais fornecer proposições às quais se adere infalivelmente, desde que as entendamos. Encontram-se também na física e em todas as outras ciências, e os próprios sentidos fornecem algumas. Por exemplo, esta proposição - dois corpos não podem estar em um mesmo lugar ao mesmo tempo - constitui uma verdade da qual estamos persuadidos da mesma forma que das máximas seguintes: é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo; o branco não é o vermelho; o quadrado não é um círculo; a cor amarela não é a doçura. TEÓFILO - Existe diferença entre essas proposições. A primeira, que afirma que a penetração dos corpos é impossível, tem necessidade de demonstração. Com efeito, todos aqueles que consideram condensações e rarefações verdadeiras e tomadas a rigor, como os Peripatéticos e o falecido Senhor Cavaleiro Digby, a rejeitam; sem falar dos cristãos, que na sua maioria creem que o contrário, isto é, a penetração das dimensões, é possível a Deus. Ao contrário, as outras proposições são idênticas ou quase, e as idênticas ou imediatas não recebem demonstração, As proposições que dizem respeito àquilo que os sentidos fornecem, como a que diz que a cor amarela não é a doçura, não fazem outra coisa senão aplicar a máxima idêntica geral a casos particulares. FILALETO - Cada proposição que é composta de duas ideias diferentes das quais uma é negada pela outra - por exemplo, que o quadrado não é um círculo, que ser amarelo não é ser doce - será admitida como indubitável com o mesmo grau de certeza - desde que se lhe compreendam os termos - que esta máxima geral: é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo. TEÓFILO - Acontece que uma - isto é, a máxima geral - constitui o princípio, e a outra - isto é, a negação de uma ideia por outra oposta - é a aplicação do princípio. FILALETO- Parece-me antes que a máxima depende desta negação, que constitui o fundamento dela; e que é ainda mais fácil compreender que aquilo que é a mesma coisa não é diferente, do que a máxima que rejeita as contradições. Ora, sendo assim, será necessário admitir como verdades inatas um número infinito de proposições desta espécie, que negam uma ideia da outra, sem falar das demais verdades. Acrescentai a isto o seguinte: sendo que uma proposição não pode ser inata a não ser que o sejam as ideias de que ela se compõe, será necessário supor que todas as ideias que temos das cores, dos sons, dos gostos, das figuras, etc., são inatas. TEÓFILO - Não vejo como a proposição - aquilo que é a mesma coisa, não é diferente - seja a origem do princípio de contradição, e mais fácil; pois me parece que nos damos mais liberdade afirmando que A não é B, de que dizendo que A não é não-A. E a razão que impede A de ser B é que B encerra não-A. De resto, esta proposição - o doce não é o amargo - não é inata, conforme o sentido que demos a este termo de verdade inata. Com efeito, os sentimentos do doce e do amargo vêm dos sentidos externos. Assim, é uma conclusão mesclada (hybrida conclusio), onde o axioma é aplicado a uma verdade sensível. Todavia, quanto a esta proposição - o quadrado não é um círculo - pode-se dizer que ela é inata, pois, em a considerando, faz-se uma subsunçâo ou aplicação do princípio de contradição àquilo que o próprio entendimento fornece, desde que percebamos que essas ideias que são inatas encerram noções incompatíveis. § 19. FILALETO - Quando sustentais que essas proposições particulares e evidentes por si mesmas, das quais se reconhece a verdade desde que as ouvimos enunciar (como: o verde não é o vermelho), são admitidas como consequências dessas proposições mais gerais, que se consideram como outros tantos princípios inatos, parece que não considerais que essas proposições particulares são admitidas como verdades indubitáveis por aqueles que não possuem conhecimento algum dessas máximas mais gerais. TEÓFILO - Já respondi a isto mais acima: fundamo-nos nessas máximas gerais da mesma forma como nos fundamos sobre as premissas maiores, que suprimimos quando raciocinamos por entimemas; com efeito, embora muitas vezes não pensemos distintamente naquilo que fazemos ao raciocinar, como não pensamos no que fazemos ao andar e ao pular, é sempre verdade que a força da conclusão consiste em parte naquilo que suprimimos e não pode provir de alhures, o que se verá quando se quiser justificá-la. § 20. FILALETO - Parece, todavia, que as ideias gerais e abstratas são mais estranhas ao nosso espírito do que as noções e as verdades particulares: por conseguinte, essas verdades particulares serão mais naturais ao espírito que o princípio de contradição, do qual são apenas a aplicação, conforme a vossa opinião. TEÓFILO - É verdade que começamos antes a dar-nos conta das verdades particulares, como começamos pelas ideias mais compostas e mais grosseiras; todavia, isto não impede que a ordem da natureza comece pelo mais simples, e que a razão das verdades mais particulares dependa das mais gerais, das quais são apenas exemplos. E, quando queremos considerar o que está em nós virtualmente e antes de qualquer apercepção, temos razão em começar pelo mais simples. Pois os princípios gerais entram em nossos pensamentos, dos quais constituem a alma e a conexão. Eles são ali necessários, da mesma forma que os tendões e os músculos o são para andarmos, embora não pensemos neles. O espírito se apoia sobre esses princípios a todo momento, mas não chega tão facilmente a distingui-los e representá-los distinta e separadamente, visto que isto exige uma grande atenção ao que ele faz, e a maior parte das pessoas, pouco habituadas a meditar, não têm tal atenção. Porventura os chineses não possuem, como nós, sons articulados? E todavia, tendo-se fixado em uma outra maneira de escrever, ainda não tiveram a ideia de fazer um alfabeto desses sons. É assim que possuímos muitas coisas dentro de nós, sem o sabermos. § 21. FILALETO - Se o espírito consente tão rapidamente em certas verdades, será que isto não pode provir da própria consideração da natureza das coisas - a qual não lhe permite julgar de outra maneira - antes que do fato de que essas proposições estão gravadas naturalmente no espírito? TEÓFILO - Uma e outra coisa são verdadeiras. A natureza das coisas e a natureza do espírito concorrem ambas para isto. Uma vez que estabeleceis uma oposição entre a consideração da coisa e a apercepção do que está gravado no espírito, esta mesma objeção nos mostra que aqueles, a cujo partido pertenceis, entendem pelas verdades inatas apenas o que se aprovaria naturalmente como por instinto, e ainda conhecendo-o apenas confusamente. Existe tal tipo de verdades desta natureza, e teremos ocasião de falar delas. Entretanto, o que se denomina a luz natural supõe um conhecimento distinto, e muitas vezes a consideração da natureza das coisas não é senão o conhecimento da natureza do nosso espírito e dessas ideias inatas, que não temos necessidade de buscar fora. Eu denomino inatas as verdades que só necessitam desta consideração para serem verificadas. Já respondi, §5, à objeção, § 22, segundo a qual, quando se diz que as noções inatas estão implicitamente no espírito, isto deve significar apenas que existe a faculdade de conhecê-las; pois observei que, além disso, existe a faculdade de detectá-las em si mesmo, e a disposição a aprová-las quando pensamos nelas como se deve. § 23. FILALETO - Se bem entendo, pretendeis que, quando se propõem essas máximas gerais pela primeira vez, a respectiva pessoa não aprende nada que lhe seja inteiramente novo. Ora, é claro que as pessoas aprendem primeiramente as palavras, depois as verdades, e até as ideias das quais dependem tais verdades. TEÓFILO - Não se trata aqui das palavras, que de certo modo são arbitrárias, ao passo que as ideias e as verdades são naturais. Todavia, quanto a essas ideias e verdades, vós nos atribuís uma doutrina que está bem longe de nós, pois continuo de acordo que aprendemos as ideias e as verdades inatas, seja atendendo à sua fonte, seja verificando-as pela experiência. Assim sendo, não aceito a suposição que mencionais, como se, no caso de que falais, não aprendêssemos nada de novo. Eu não poderia admitir esta proposição: tudo o que aprendemos não é inato. As verdades dos números estão em nós, e todavia continua verdade que as aprendemos, seja haurindo-as da sua fonte quando as aprendemos por via demonstrativa (o que precisamente prova que são inatas), seja comprovando-as em exemplos, como fazem os aritméticos comuns, os quais, por não conhecerem as razões, só aprendem as suas regras por tradição, .e, na melhor das hipóteses, antes de ensiná-las, justificam-nas pela experiência, a qual tiram de tão longe quanto lhes parece conveniente. Por vezes acontece mesmo que um matemático muito versado, desconhecendo a fonte da descoberta de outros, é obrigado a contentar-se com este método da indução para examiná-la; assim fez um célebre escritor em Paris (quando lá estive), o qual levou bastante longe o ensaio do meu tetragonismo aritmético, comparando-o com os números de Ludolfo, acreditando encontrar nele algum erro; ele teve razão em duvidar, até que se lhe tenha comunicado a demonstração. É isto mesmo, a saber a imperfeição das induções, que se pode ainda verificar pelas instâncias da experiência. Pois existem progressões nas quais se pode ir muito longe antes de notar as mudanças e as leis que nelas se encontram. FILALETO - Não poderia porventura acontecer que, não somente os termos ou palavras de que nos servimos, mas também as ideias, nos venham de fora? TEÓFILO - Neste caso seria necessário que nós mesmos estivéssemos fora de nós, pois as ideias intelectuais ou de reflexão são hauridas de nosso espírito. Gostaria de saber como poderíamos ter a ideia do ser, se nós mesmos não fôssemos seres, e não encontrássemos o ser dentro de nós. FILALETO - Que dizeis, porém, a este desafio de um dos meus amigos? Diz ele: se alguém puder encontrar uma proposição cujas ideias sejam inatas, que a indique, pois não poderia prestar-me um favor maior. TEÓFILO - Mencionaria as proposições de aritmética e de geometria, que são todas desta natureza. Em termos de verdades necessárias, não é possível encontrar outras. § 25. FILALETO - Isto parecerá estranho a muita gente. Pode-se porventura afirmar que as ciências mais profundas e mais difíceis são inatas? TEÓFILO - O conhecimento atual dessas ciências não o é, mas o é aquilo que se pode denominar o conhecimento virtual, como as figuras traçadas pelos veios do mármore, antes de serem descobertas pelo trabalho do artífice. FILALETO - Será porventura possível que crianças que recebem noções provindas de fora (e lhes dão o consentimento) não tenham nenhum conhecimento das noções que se supõe serem inatas nelas e fazerem parte de seu espírito, onde estão - como se diz - gravadas em caracteres indeléveis para servir como fundamento? Se assim fora, a natureza teria feito esforço inutilmente, ou pelo menos teria gravado mal esses caracteres, pois estes não podem ser percebidos por olhos que enxergam muito bem outras coisas. TEÓFILO - A apercepção do que está dentro de nós depende de uma atenção e de uma ordem. Ora, não somente é possível, mas é até conveniente que as crianças prestem mais atenção às noções provenientes dos sentidos, visto que a atenção é regulada pela necessidade. O acontecimento, porém, prova mais tarde que a natureza não trabalhou inutilmente ao imprimir em nós os conhecimentos inatos, visto que sem eles não haveria nenhum meio de atingir o conhecimento atual das verdades necessárias nas ciências demonstrativas, bem como as razões dos fatos; neste caso não teríamos nada mais que ultrapasse o nível dos animais. § 26. FILALETO - Se existem verdades inatas, não será necessário que existam pensamentos inatos? TEÓFILO - Em absoluto, pois os pensamentos são ações, e os conhecimentos ou as verdades, enquanto estão dentro de nós (mesmo que neles não pensemos), são hábitos ou disposições; sabemos muitas coisas nas quais não pensamos. FILALETO - É bem difícil conceber que uma verdade esteja no espírito, se este jamais pensou nesta verdade. TEÓFILO - É como se alguém dissesse que é bem difícil conceber que existem veios no mármore antes que os descubramos. Parece também que esta objeção se aproxima demais da petição de princípio. Todos aqueles que admitem verdades inatas, sem fundá-las na reminiscência platônica, admitem verdades inatas nas quais ainda não se pensou. Aliás, este raciocínio prova demais: pois se as verdades fossem pensamentos, seríamos privados não somente das verdades nas quais nunca pensamos, mas também daquelas, nas quais já pensamos mas não pensamos mais atualmente; e se as verdades não são pensamentos, mas hábitos e aptidões, naturais ou adquiridas, nada impede que haja algumas em nós, nas quais nunca pensamos nem jamais pensaremos. § 27. FILALETO - Se as máximas gerais fossem inatas, deveriam aparecer com mais brilho ao espírito de certas pessoas, quando na realidade não vemos traço algum delas; tenciono falar das crianças, dos iletrados e dos selvagens, pois dentre todos os homens são estes que têm o espírito menos alterado e menos corrompido pelo costume e pela impressão das opiniões alheias. TEÓFILO - Creio que se deve raciocinar de maneira completamente diferente no caso. As máximas inatas só aparecem pela atenção, que lhes damos; ora, as mencionadas pessoas não dispensam tal atenção, ou a dispensam a bem outras coisas. Quase só pensam nas necessidades do corpo; ora, é natural que os pensamentos puros e abstratos constituam o preço dos esforços mais nobres. É verdade que as crianças e os selvagens têm o espírito menos alterado pelos costumes, mas tem também o espírito menos elevado pela doutrina, que dá a capacidade de dispensar atenção. Seria coisa pouco justa que as luzes mais vivas brilhassem melhor nos espíritos que menos o merecem, e que estão envolvidos nas nuvens mais espessas. Não gostaria, portanto, que se honrasse demais a ignorância ou a barbárie, quando se trata de pessoa tão sábia e tão inteligente como vós, Filaleto, valendo o mesmo do vosso excelente autor; equivaleria isto a rebaixar os dons de Deus. Alguém poderá dizer que, quanto mais ignorante uma pessoa, tanto mais se assemelha a um bloco de mármore ou a um pedaço de madeira, que são infalíveis e impecáveis. Infelizmente, não é a isto que tais pessoas se parecem. Na medida em que somos capazes de conhecimento, pecamos ao negligenciar adquiri-lo, e se pecará com tanto mais facilidade, quando se é menos instruído. CAPÍTULO II Não existem princípios de ordem prática que sejam inatos § 1. FILALETO - A moral é uma ciência demonstrativa, e no entanto não possui princípios inatos. Seria mesmo muito difícil citar uma regra de moral que seja de natureza a ser aceita com um consentimento tão generalizado como esta máxima: o que é, é. TEÓFILO - É absolutamente impossível que existam verdades da razão tão evidentes quanto as idênticas ou imediatas. Embora se possa dizer que a moral possui verdadeiramente princípios indemonstráveis, e que um dos primeiros e dos mais práticos é que se deve seguir a alegria e evitar a tristeza, deve-se acrescentar que não é uma verdade que seja conhecida puramente pela razão, visto que se funda na experiência interna, ou em conhecimentos confusos. Pois não sentimos o que é a alegria ou a tristeza. FILALETO - Só podemos ter certeza das verdades de ordem prática mediante raciocínios, discursos e alguma aplicação do espírito. TEÓFILO - Mesmo que assim fosse, tais verdades não seriam, por isso, menos inatas. Todavia, a máxima que acabo de mencionar parece ser de outra natureza; ela não é conhecida pela razão, mas, por assim dizer, por um instinto. É um princípio inato, mas não faz parte da luz natural, pois não o conhecemos de maneira clara. Contudo, uma vez posto este princípio, pode-se tirar dele consequências científicas, e aplaudo ao máximo o que acabais de dizer da moral como ciência demonstrativa. Vemos também que ela ensina verdades tão evidentes, que os ladrões, piratas e bandidos são obrigados a observá-las entre si. § 2. FILALETO - Acontece que os bandidos observam entre si as regras da justiça, porém sem considerá-las como princípios inatos. TEÓFILO - Que importa? Porventura o mundo se preocupa com tais questões teóricas? FILALETO - Observam as máximas de justiça apenas como normas de conveniência, cuja observância é absolutamente necessária para a conservação da sua sociedade. TEÓFILO - [Muito bem. Nada melhor se poderia dizer acerca de todos os homens em geral. É desta forma que tais leis estão gravadas na alma, a saber, como as consequências da nossa conservação e dos nossos verdadeiros bens. Porventura se imagina que, na nossa teoria, as verdades estão no entendimento como independentes uma das outras e como os editos do preto r estavam no seu pelourinho ou album? Faço abstração, aqui, do instinto, que leva o homem a amar o seu semelhante, pois disto falarei logo; no momento só quero falar das verdades que se conhecem pela razão. Reconheço também que certas normas da justiça não podem ser demonstradas em toda a sua extensão e perfeição senão supondo a existência de Deus é a imortalidade da alma, e aquelas em que o instinto da humanidade não nos impulsiona são gravadas na alma apenas como outras verdades derivativas.] Todavia, os que fundam a justiça apenas sobre as necessidades da vida presente e sobre a necessidade que têm delas, mais do que sobre a alegria que deveriam sentir nela - alegria que está entre as maiores, quando o seu fundamento é Deus -, assemelham-se em algo à sociedade dos bandidos. Sit spes fallendi, miscebunt sacra profanis. (Se têm a esperança da impunidade, não mais farão diferença entre o sagrado e o profano). § 3. FILALETO - Reconheço que a natureza colocou em todos os homens o desejo de ser feliz, aliado a uma forte aversão pela infelicidade. Estes são princípios de ordem prática verdadeiramente inatos, os quais, segundo a destinação de todo princípio de ordem prática, exercem uma influência contínua em todas as nossas ações. Contudo, trata-se, no caso, de inclinações da alma para o bem, e não de impressão de alguma verdade que esteja gravada no nosso entendimento. TEÓFILO - [Estou encantado por ver-vos reconhecer a existência de verdades inatas, como logo direi. Este princípio concorda bastante com aquele que acabo de assinalar, o qual nos leva a seguir a alegria e evitar a tristeza. Com efeito, a felicidade não é outra coisa senão uma alegria durável. Entretanto, a nossa inclinação não vai à felicidade propriamente dita, mas à alegria, ou seja, ao presente; é a razão que leva ao futuro e à duração. Ora, a inclinação, expressa pelo entendimento, se transforma em preceito ou verdade de ordem prática; e se a inclinação é inata, a verdade também o é, não havendo nada na alma que não seja expresso no entendimento, embora não sempre por uma consideração atual distinta, como demonstrei suficientemente. Também os instintos não são sempre de ordem prática; existem alguns que contêm verdades de teoria: tais são os princípios internos das ciências e do raciocínio, quando, sem conhecer-lhes a razão, os utilizamos por um instinto natural. Neste sentido não podeis dispensar-vos de reconhecer princípios inatos, mesmo que quisésseis negar que as verdades derivativas são inatas. Isto seria, porém, uma questão de terminologia, após a explicação que dei sobre o que entendo por inato. Não teria nenhuma objeção se alguém só quisesse designar com este termo as verdades que recebemos primariamente por instinto.] FILALETO - Isto está bem. Entretanto, se houvesse na nossa alma caracteres gravados naturalmente, como outros tantos princípios de conhecimento, só poderíamos percebê-los agindo em nós, da mesma forma como sentimos a influência dos dois princípios que agem constantemente em nós, ou seja, o desejo de ser feliz e o temor de ser infeliz. TEÓFILO - [Existem princípios de conhecimento que influem tão constantemente nos nossos raciocínios como os de ordem prática influem nas nossas vontades; por exemplo, todo mundo emprega as regras das consequências por uma lógica natural, sem dar-se conta. § 4. FILALETO - As normas de moral necessitam ser demonstradas, consequentemente não são inatas, como esta regra, que é a fonte das virtudes que dizem respeito à sociedade: não façais aos outros senão aquilo que gostaríeis fosse feito a vos mesmos. TEÓFILO - Vós me fazeis sempre a objeção que já refutei. Concordo em que existem normas de moral que não constituem princípios inatos, mas isto não impede que sejam verdades inatas, visto que uma verdade derivativa será inata quando a pudermos haurir do nosso espírito. Ora, existem verdades inatas, que encontramos em nós de duas maneiras, pela luz e pelo instinto. As que acabo de assinalar se demonstram pelas nossas ideias, o que faz a luz natural, Existem, porém, conclusões da luz natural que são princípios em relação ao instinto. Assim é que somos levados aos atos de humanidade por instinto, pelo fato de que isto nos agrada, e pela razão, pelo fato de que isto é conforme à justiça. Existem, portanto, em nós verdades de instinto, que constituem princípios inatos, que sentimos e aprovamos, embora não tenhamos a demonstração deles, prova que obtemos, porém, quando procuramos a razão deste instinto. Assim é que utilizamos as leis das consequências segundo um conhecimento confuso e como por instinto, porém os mestres da lógica demonstram a razão delas, da mesma forma como os matemáticos dão a razão daquilo que fazemos sem pensar, ao andarmos e pularmos. Quanto à norma segundo a qual não se deve fazer aos outros o que não queremos que nos seja feito, tem ela necessidade não somente de demonstração, mas também de declaração. O verdadeiro sentido da regra é que o lugar dos outros constitui o verdadeiro ponto de vista para julgar equitativamente sobre este assunto.] § 9. FILALETO - Cometemos por vezes ações más sem qualquer remorso de consciência; por exemplo, ao tomarem de assalto as cidades, os soldados cometem sem escrúpulos as piores ações; além disso, nações civilizadas expuseram as suas crianças, alguns Caribes castram as suas crianças para engordá-las e devorá-las. Garcilaso de la Vega relata que certos povos do Peru tomavam prisioneiras para transformá-las em concubinas, e alimentavam as crianças até à idade de treze anos, depois de que as devoravam, tratando da mesma forma as mães desde o momento em que não gerassem mais filhos. Na viagem de Baumgarten conta-se que havia um homem no Egito, que passava por um santo, eo quod non foeminarum unquam esset ac puerorum, sed tantum asellarum concubitor atque mularum (não tinha relações com mulheres e crianças, mas só com mulas e burrinhas). TEÓFILO - A ciência moral (além dos instintos, como o que nos faz abraçar a alegria e evitar a tristeza) é inata da mesma forma que o é a aritmética, pois ela depende também das demonstrações que a luz interna fornece. E, visto que as demonstrações não saltam imediatamente aos olhos, não é de admirar se os homens não se dão conta sempre imediatamente de tudo aquilo que têm em si, e não leem tão logo os caracteres da lei natural, que Deus, segundo São Paulo, gravou nos seus espíritos. Todavia, visto que a moral é mais importante do que a aritmética, Deus deu ao homem instintos que assinalam imediatamente e sem necessidade de raciocínios algo daquilo que a razão ordena. Da mesma forma, andamos segundo as leis da mecânica sem pensar nessas leis, e comemos, não somente porque isto nos é necessário, mas ainda – e mais ainda - porque isto nos dá prazer. Entretanto, esses instintos não levam à ação de maneira invencível; resistimos a eles pelas paixões, obscurecemo-los por preconceitos, alteramo-los por costumes contrários. Todavia, o mais das vezes concordamos com estes instintos da consciência, e seguimo-los mesmo quando são superados por impressões maiores. A parte maior e mais sadia do gênero humano dá testemunho desses princípios. Nisto concordam os orientais, os gregos, os romanos, a Bíblia e o Corão; a polícia dos maometanos costuma punir o que Baumgarten relata, e seria necessário ser tão abrutalhado como os selvagens americanos para aprovar os seus costumes, eivados de uma crueldade que ultrapassa a dos próprios animais. E, no entanto, estes mesmos silvícolas sentem bem o que é a justiça em outras ocasiões; e, embora não haja talvez nenhuma prática má que não seja permitida em algum lugar e em certas ocasiões, poucas há que não sejam condenadas o mais das vezes, e pela maioria dos homens. Ora, isto não aconteceu sem razão; e, não tendo acontecido só em virtude do raciocínio, deve ser atribuído em parte aos instintos naturais. Mesclou-se a isto o costume, a tradição, a disciplina, mas o instinto natural é responsável pelo fato de que o costume se inclinou na maioria dos casos para o lado bom das coisas. É ainda o natural que é responsável pelo fato de que a tradição da existência de Deus tenha chegado até nós. Ora, a natureza dá ao homem, e mesmo à maioria dos animais, uma afeição e doçura em relação aos membros da sua espécie. O próprio tigre parcit cognatis maculis (O animal poupa os seus): daí vem esta bela palavra de um jurisconsulto romano, quia inter omnes homines natura cognationem constituit, unde hominem homini insidiari nefas esse (Uma vez que a natureza instituiu um parentesco entre todos os homens, não é lícito a um homem atrair outro a uma cilada). Só existem praticamente as aranhas que fazem exceção a isto e se entrecomem, até ao ponto de a fêmea devorar o macho após ter desfrutado dele. Depois deste instinto geral de sociedade, que se pode denominar filantropia no homem, existem outros instintos particulares, como a afeição entre o macho e a fêmea, o amor que o pai e a mãe têm para com as crianças, que os gregos denominam storgén, e outras inclinações semelhantes, que constituem este direito natural, ou melhor, esta imagem de direito, a qual segundo os jurisconsultos romanos a natureza ensinou aos animais. No homem, sobretudo, existe certo cuidado da dignidade e da conveniência, que leva a ocultar as coisas que nos rebaixam, a cuidar do pudor, a ter repugnância pelos incestos, a sepultar os cadáveres, a não comer carne humana nem carne de animais vivos. Somos também levados a cuidar da nossa reputação, mesmo além da necessidade e da vida; a sentir os remorsos da consciência e a sentir esses laniatus et ictus, essas torturas e esses incômodos de que fala Tácito, na esteira de Platão; além do temor de um futuro e de um poder supremo, que também ocorrem com naturalidade. Em tudo isto existe realidade; no fundo, porém, essas impressões naturais, quaisquer que possam ser, são apenas auxílios para a razão e indícios da natureza. O costume, a educação, a tradição, a razão contribuem muito para isto, mas a própria natureza humana não deixa de exercer a sua parte. É verdade que sem a razão esses auxílios não seriam suficientes para dar uma certeza completa à moral. Não se negará que o homem é levado naturalmente, por exemplo, a afastar-se das coisas más, sob pretexto de que há pessoas que só têm prazer em falar de orgias; não se negará que existem outros até, cujo tipo de vida os obriga a lidar com os excrementos. Imagino que, no fundo, partilhais da minha opinião no que concerne a esses instintos naturais que inclinam à honestidade, embora talvez digais - como dissestes do instinto que nos inclina para a felicidade e a alegria - que tais impressões não constituem verdades inatas. Entretanto, já respondi que todo sentimento é a percepção de uma verdade, que o sentimento natural é a percepção de uma verdade inata (ainda que muitas vezes confusa, como o são as experiências dos sentidos externos; assim, podemos distinguir as verdades inatas da luz natural, que não contêm nada que não seja distintamente reconhecível), como o gênero deve ser distinguido da sua espécie, visto que as verdades inatas compreendem tanto os instintos como a luz natural.] § I I. FILALETO - Uma pessoa que conhecesse os limites naturais entre o que é justo e o que é injusto e não deixasse de confundi-los só poderia ser considerada como inimigo declarado do repouso e da felicidade da sociedade de que faz parte. Ora, os homens confundem a todo momento esses limites, por conseguinte não os conhecem. TEÓFILO - [Isto seria considerar as coisas de maneira demasiado teórica. Acontece todos os dias que os homens agem contra o seu conhecimento, escondendo a si mesmos tais princípios quando voltam o espírito para outra direção e para seguir as suas paixões: se não fosse assim, não veríamos as pessoas comerem e beberem coisas que sabem causadoras de doença e até da morte. Não negligenciariam os seus negócios; não fariam o que nações inteiras fizeram sob certos aspectos. Muito raramente o futuro e o raciocínio nos impressionam tanto como o presente e os sentidos. Sabia-o muito bem aquele cidadão italiano que, devendo ser torturado, se propôs ter constantemente diante dos olhos a forca durante as torturas a fim de ter força para resistir; ouviu-se-lhe dizer algumas vezes: Io ti vedo (Eu te vejo), o que mais tarde explicou, depois de conseguir evadir-se. A menos que formulemos uma resolução firme de tomara peito o. verdadeiro bem e o verdadeiro mal, para segui-lo ou para evitá-lo, somos levados pela onda. Acontece, mesmo em relação às necessidades importantes desta vida, o que ocorre com respeito ao céu e ao inferno, mesmo com aqueles que mais creem neles: Cantantur haec, laudantur haec, Dicuntur, audiuntur. Scribuntur haec, leguntur haec, Et lecta negliguntur.] (Estas são coisas que decantamos, elogiamos, dizemos, ouvimos, escutamos, escrevemos, lemos, e que negligenciamos depois de lidas.) FILALETO - Todo princípio que se supõe inato deve ser conhecido como justo e vantajoso por toda e qualquer pessoa. TEÓFILO - [É voltar sempre a esta suposição, que já refutei tantas vezes, isto é: que toda verdade inata é necessariamente conhecida sempre e por todos.] § 12. FILALETO -, Todavia, uma permissão pública de violar uma lei demonstra que a referida lei não é inata: por exemplo, a lei de amar e conservar as crianças foi violada entre os antigos, os quais permitiram expor as crianças. TEÓFILO - [Mesmo supondo tal violação, segue apenas que tais pessoas não leram bem os caracteres da natureza gravados em nossas almas, mas frequentemente muito obscurecidos pelas nossas desordens; além disso, para enxergar a necessidade dos deveres de maneira invencível, cumpre considerar atentamente a sua demonstração, o que não acontece comumente. Se a geometria fosse tão contrária às nossas paixões e aos nossos interesses como a moral, nós a contestaríamos e a violaríamos com a mesma frequência que a moral, não obstante todas as demonstrações de Euclides e de Arquimedes, que se considerariam fantasias e cheias de paralogismos; e aconteceria, neste caso, que Joseph Scaliger, Hobbes e outros, que escreveram contra Euclides e Arquimedes, não estariam em companhia tão reduzida. Só a paixão pela glória que tais autores acreditaram encontrar na quadratura do círculo e outros problemas difíceis - podem ter chegado a tal ponto pessoas de tão grandes méritos. Se outros tivessem O mesmo interesse, teriam feito o mesmo uso.] FILALETO - Todo dever implica a ideia de lei, e uma lei não pode ser conhecida ou suposta sem um legislador que a tenha prescrito, ou então, sem recompensa e sem castigo. TEÓFILO - [Podem existir recompensas e castigos naturais sem legislador; por exemplo, a intemperança é castigada pelas doenças. Todavia, visto que ela não prejudica a todos imediatamente, reconheço que não existe preceito que nos obrigue indispensavelmente, se não houvesse um Deus, qual não deixa nenhum crime sem castigo, nem nenhuma boa ação sem recompensa.] FILALETO - Logo, é necessário que as ideias de um Deus e de uma vida futura sejam também inatas. TEÓFILO - [Concordo com isto, no sentido que expliquei.] FILALETO- Todavia, essas ideias estão de tal maneira longe de estarem gravadas no espírito de todos os homens, que nem sequer parecem ser muito claras e distintas para muitos homens de estudo, os quais fazem profissão de examinar as coisas com certa exatidão: muito menos são conhecidas a toda criatura humana. TEÓFILO - É voltar de novo à mesma suposição, que pretende que o que não é conhecido não é inato, objeção que refutei tantas vezes. O que é inato, nem por isso é logo conhecido clara e distintamente: necessita-se por vezes muita atenção e ordem para percebê-lo, sendo que as pessoas de estudo nem sempre o atingem, muito menos qualquer criatura humana. § 13. FILALETO - Entretanto, se os homens podem ignorar ou pôr em dúvida o que é inato na natureza humana, é inútil falar-nos de princípios inatos e da sua necessidade; longe de poderem instruir-nos sobre a verdade e a certeza das coisas, como se pretende, encontrar-nos-íamos no mesmo estado de incerteza com tais princípios que se eles não estivessem em nós. TEÓFILO - Não se pode pôr em dúvida todos os princípios inatos. Declarastes o vosso acordo quanto às proposições idênticas e ao princípio de contradição, reconhecendo que existem princípios incontestáveis, embora então não os reconhecêsseis como inatos; daqui não se conclui que tudo quanto é inato e conexo necessariamente com tais princípios inatos seja logo de uma evidência indubitável. FILALETO - Ninguém, quanto eu saiba, empreendeu a tarefa de dar-nos um catálogo exato de tais princípios. TEÓFILO - Porventura alguém nos forneceu até hoje um catálogo completo e exato dos axiomas de geometria? § 15. FILALETO - Mylord Herbert assinalou alguns desses princípios, que são: 1) Existe um Deus supremo; 2) Deus deve ser servido; 3) A virtude, aliada à piedade, constitui o melhor culto; 4) É necessário arrepender-se dos pecados; 5) Existem castigos e recompensas após a presente vida. Concordo em que se trata de verdades evidentes e de uma natureza tal que, ao serem bem explicadas, uma criatura racional não pode deixar de admiti-las. Todavia, os meus amigos afirmam que estão muito longe de serem impressões inatas. E, se essas cinco proposições constituem noções comuns gravadas em nossas almas pelo dedo de Deus, existem muitas outras que devem ser catalogadas sob o mesmo item. TEÓFILO - Estou de acordo, pois considero todas as verdades necessárias como inatas, e eu mesmo acrescento os instintos. Contesto, porém, que as cinco proposições citadas constituam princípios inatos, pois sustento que se pode e se deve demonstrá-las. § 18. FILALETO - Na terceira proposição, a qual afirma que a virtude constitui o culto mais agradável que se presta a Deus, não é claro o que se entende por virtude. Se a entendermos no sentido habitualmente aceito, isto é, que a virtude é aquilo que passa por elogiável segundo as diferentes opiniões vigentes em diversos países, não só a proposição não é evidente, mas nem sequer é verdadeira. Se denominarmos virtude as ações que concordam com a vontade de Deus, seria dizer uma coisa pela outra, e a proposição não nos diria nada de novo, pois significaria apenas que Deus considera agradável aquilo que é conforme à sua vontade. O mesmo ocorre com a noção de pecado na quarta proposição. TEÓFILO - Não me recordo de haver dito que se considera como virtude uma coisa que depende das opiniões; pelo menos os filósofos não definem assim. É verdade que o termo virtude depende da opinião daqueles que o atribuem a diferentes hábitos ou ações, conforme julgam bem ou mal e usam da sua razão; todavia, todos concordam bastante sobre a noção geral de virtude, ainda que haja divergências quanto à aplicação. Segundo Aristóteles e vários outros, a virtude é um hábito de moderar as paixões pela razão, ou, mais simplesmente, um hábito de agir segundo a razão. Ora, isto não pode deixar de ser agradável àquele que constitui a razão suprema e última das coisas, a quem nada é indiferente, muito menos as ações das criaturas racionais. § 20. FILALETO - Costuma-se afirmar que o hábito, a educação e as opiniões gerais daqueles com quem se priva podem obscurecer esses princípios de moral, que se supõem inatos. Contudo, se esta resposta for correta, ela aniquila a prova que se pretende tirar do consentimento universal. O raciocínio de muitas pessoas reduz-se a isto: os princípios que as pessoas de bom senso reconhecem são inatos; ora, nós e os que pertencem ao nosso partido somos pessoas de bom senso; logo, os nossos princípios são inatos. Ótima forma de raciocinar; ela conduz diretamente à infalibilidade! TEÓFILO - Quanto a mim, utilizo o consentimento universal não como uma prova principal, mas apenas como confirmação: as verdades inatas, consideradas como a luz natural da razão, têm o mesmo caráter que a geometria, pois estão implicadas nos princípios imediatos, que vós mesmo reconheceis como incontestáveis. Reconheço, porém, que é mais difícil distinguir os instintos e alguns outros hábitos naturais dos costumes, embora isto seja possível na maioria dos casos, como me parece. De resto, parece-me que os povos que cultivaram o seu espírito têm mais direito de atribuir-se o uso do bom senso do que os bárbaros, pois, domesticando-os tão facilmente como os animais, demonstram bastante a sua superioridade. Se não se consegue sempre, é porque ainda, como os animais, se salvam nas espessas florestas, onde é difícil forçá-los, sendo que o jogo não vale a pena. É sem dúvida uma vantagem ter cultivado o espírito, e, se for permitido falar pela barbárie contra a cultura, ter-se-á também o direito de atacar a razão em favor dos animais e de tomar a sério as brincadeiras espirituais, do Sr. Despréaux em uma de suas Sátiras, onde, para contestar ao homem a sua prerrogativa sobre os animais, pergunta se O urso tem medo do passante, ou o passante do urso? E se por um decreto de pastores da Líbia Os leões esvaziassem os parques da Numídia... etc. Entretanto, cumpre reconhecer que existem pontos importantes nos quais os bárbaros nos ultrapassam, sobretudo no que concerne ao vigor do corpo; quanto à própria alma, pode-se dizer que sob certos aspectos a sua moral prática é superior à nossa, pois não têm a avareza de acumular bens nem a ambição de dominar. Pode-se mesmo acrescentar que o contato com os cristãos os tornou piores em muitas coisas: ensinaram-lhes a bebedeira (dando-lhes aguardente), os juramentos, as blasfêmias e outros vícios que lhes eram pouco conhecidos. Existe entre nós mais bem e mais mal do que entre eles: um mau europeu é pior do que um mau selvagem, pois é refinado no mal. Todavia, nada impediria os homens de unir as vantagens que a natureza dá a esses povos com as que nos são dadas pela razão. FILALETO - Que responderíeis a este dilema de um dos meus amigos? Gostaria - diz ele - que os partidários das ideias inatas me dissessem se esses princípios podem ou não podem ser apagados pela educação e pelo costume. Se não podem, devemos encontra-los em todos os homens e é necessário que apareçam claramente no espírito de cada homem em particular; se esses princípios podem ser alterados por noções estranhas, devem aparecer mais distintamente e com maior brilho quando estão mais perto da sua fonte, isto é, nas crianças e nos iletrados, sobre os quais as opiniões- estranhas fizeram menos impressão. TEÓFILO - Admiro-me que o vosso versado amigo tenha confundido obscurecer com apagar, como se confundem, entre os vossos partidários, o não ser e o não aparecer. As ideias e verdades inatas não podem ser apagadas, mas estão obscurecidas em todos os homens (como eles são no momento) pela sua inclinação às necessidades do corpo, e muitas vezes ainda mais pelos maus hábitos. Esses caracteres da luz interna brilhariam sempre no entendimento, e dariam calor à vontade, se as percepções confusas dos sentidos não se apoderassem da nossa atenção. É o combate do qual a Sagrada Escritura fala, tanto quanto a filosofia antiga e moderna. FILALETO - Em consequência, encontramo-nos em trevas tão espessas e em uma incerteza tão grande como se essas luzes não existissem. TEÓFILO - Deus não o permita; não teríamos então nem ciência, nem leis, nem mesmo a razão. § 21,22, etc. FILALETO - Espero que concordeis pelo menos quanto à força dos preconceitos, que muitas vezes fazem passar por natural o que provém dos maus ensinamentos aos quais as crianças foram expostas, e dos maus hábitos que lhes advieram da educação e do contato com os outros. TEÓFILO - Reconheço que o excelente autor que seguis diz belíssimas coisas sobre isto, e que têm o seu valor, se as tomarmos como se deve. Não creio, porém, que sejam contrárias à doutrina bem entendida do natural ou das verdades inatas. Tenho certeza de que ele não quererá levar longe demais as suas observações; pois estou igualmente persuadido de que muitas opiniões que passam por verdades não são outra coisa senão efeitos do costume e da: credulidade, e que há também verdades que certos filósofos querem fazer passar por preconceitos, as quais no entanto se fundam na reta razão e na natureza. Temos iguais e até mais motivos para precaver-nos daqueles que - por ambição o mais das vezes - pretendem inovar, do que desconfiar das convicções antigas. Após ter meditado bastante sobre o antigo e sobre o novo, cheguei à conclusão de que a maior parte das doutrinas transmitidas admitem um sentido correto. Assim sendo, gostaria que os homens de espírito procurassem com que satisfazer à sua ambição, ocupando-se mais com construir e avançar do que com destruir e regredir. Gostaria também que os homens se assemelhassem mais aos romanos que construíam belas obras públicas do que àquele rei vândalo ao qual a sua mãe recomendou que, não podendo esperar a glória de igualar essas grandes construções, procurasse destruí-las. FILALETO - A finalidade das pessoas versadas que impugnaram as verdades inatas foi impedir que, sob este belo nome, se transmitam preconceitos e se procure encobrir a própria preguiça. TEÓFILO- Estamos de acordo neste ponto. Com efeito, bem longe de aprovar que se enunciem princípios duvidosos, gostaria que se pesquisasse até sobre a demonstração dos axiomas de Euclides, como fizeram também alguns antigos. E, quando se pedem os meios para conhecer e examinar os princípios inatos, respondo, conforme o que afirmei acima, que, excetuados os instintos, cuja razão é desconhecida, deve-se procurar reduzi-los aos primeiros princípios, isto é, aos axiomas idênticos ou imediatos, por meio das definições, que não são outra coisa senão uma exposição distinta das ideias. Não duvido mesmo de que os vossos amigos, até agora contrários às verdades inatas, aprovem este método, que parece concordar com a finalidade precípua que perseguem. CAPÍTULO III Outras considerações a respeito dos princípios inatos, tanto os que concernem à especulação como os que pertencem à prática. § 3. FILALETO - Quereis que se reduzam as verdades aos primeiros princípios. Ora, reconheço que, se existe algum princípio, é sem dúvida o seguinte: é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo. Todavia, parece difícil sustentar que ele seja inato, visto que é necessário persuadir-se ao mesmo tempo que as ideias de impossibilidade e de identidade são inatas. TEÓFILO - Realmente, é necessário que aqueles que são pelas verdades inatas sustentem e estejam persuadidos de que essas ideias também o são; confesso que concordo com a opinião deles. As ideias do ser, do possível, do mesmo são tão inatas que entram em todos os nossos pensamentos e raciocínios, e eu as considero como coisas essenciais ao nosso espírito. Entretanto, já disse que nem sempre lhes damos a atenção necessária, e que só as distinguimos com o correr do tempo. Já disse que somos, por assim dizer, inatos a nós mesmos; e, visto sermos seres, o ser nos é inato; o conhecimento do ser está envolvido no conhecimento que temos de nós mesmos. Há algo de semelhante em outras noções gerais. § 4. FILALETO - Se a ideia da identidade é natural, e por conseguinte tão evidente e tão presente ao espírito que deveríamos conhecê-la desde o berço, gostaria muito que uma criança de sete anos, e mesmo um homem de setenta anos, me dissesse se uma pessoa, que é uma criatura composta de corpo e alma, é a mesma quando o seu corpo é mudado, e se, supondo-se a metem psicose, Euforbo seria o mesmo que Pitágoras. TEÓFILO - Já frisei bastante que aquilo que nos é natural, nem por isso nos é conhecido desde o berço; uma ideia pode até ser-nos conhecida, sem que possamos de imediato resolver todas as questões que possamos formular sobre ela. É como pretender que uma criança não pode conhecer o que é o quadrado e a sua diagonal, pelo fato de que lhe será difícil compreender que a diagonal é incomensurável com o lado do quadrado. Quanto à questão em si mesma, ela me parece demonstrativamente resolvida pela doutrina das mônadas, matéria sobre a qual falaremos mais detidamente a seguir. § 6. FILALETO - [Bem vejo que vos faria uma objeção vã, se vos dissesse que o axioma segundo o qual o todo é maior do que a sua parte não é inato, sob pretexto de que as ideias do todo e da parte são relativas, dependendo das ideias do número e da extensão: pois sustentareis que existem ideias inatas respectivas, e que as dos números e da extensão também são inatas.] TEÓFILO - Tendes razão. Creio até que a ideia da extensão é posterior à do todo e da parte. § 7. FILALETO - [Que dizeis da verdade que Deus deve ser adorado? É ela inata?] TEÓFILO - Acredito que o dever de adorar a Deus implica que nas ocasiões devidas cumpre assinalar que o honramos mais do que qualquer outro objeto, e que é uma consequência necessária da sua ideia e da sua existência. Isto significa, para mim, que esta ideia é inata. § 8. FILALETO - Todavia, os ateus parecem demonstrar pelos seus exemplos que a ideia de Deus não é inata. E mais: sem mencionar aqueles dos quais os antigos fizeram menção, porventura não se descobriram nações inteiras que não tinham ideia alguma de Deus, nem sequer palavras para designar a Deus e a alma, como por exemplo na baía de Soldaeni, no Brasil, nas ilhas Carbes, no Paraguai? TEÓFILO - O falecido Sr. Fabricius, teólogo afamado de Heidelberg, fez uma apologia do gênero humano, para purificá-lo da imputação do ateísmo. Era um autor de muita exatidão e colocado acima de muitos preconceitos; todavia, não pretendo entrar nesta discussão de fato. Admitamos que povos inteiros jamais tenham pensado na substância suprema nem na alma. Lembro-me que, quando quiseram, a meu pedido - apoiado pelo ilustre Sr. Witsen -, conseguir-me na Holanda uma versão do Pai Nosso na língua de Barantola, tiveram que parar neste ponto: santificado seja o vosso nome; isto porque não se conseguiu explicar aos habitantes o que quer dizer santo, Lembro-me também que no Credo feito para os Hotentotes foi necessário exprimir o Espírito Santo por palavras do país, que significam um vento doce e agradável. Isto, aliás, não sem razão, visto que as nossas palavras gregas e latinas pneiima, anima, spiritus significam originalmente apenas o ar ou vento que respiramos, como uma das coisas mais sutis que nos seja conhecida pelos sentidos: ora, começamos pelos sentidos, para conduzir progressivamente os homens àquilo que está para além dos sentidos. Entretanto, toda esta dificuldade que se encontra para chegar aos conhecimentos abstratos nada depõe contra os conhecimentos inatos. Existem povos que não possuem nenhuma palavra que corresponda ao termo Ser? Porventura isto significa que não sabem o que é o ser, embora não pensem explicitamente nele? De resto, considero tão belo e tão ao meu gosto o que li em nosso excelente autor sobre a ideia de Deus [Ensaio sobre o Entendimento, livro I, capo 3, § 9] que não resisto ao prazer de citá-lo aqui: Os homens não podem deixar de ter alguma espécie de ideia das coisas sobre as quais os entretêm, sob diversos nomes, aqueles com os quais entram em contato. E se é uma coisa que implica a ideia de excelência, de grandeza, ou de alguma qualidade extraordinária que sob algum título seja de interesse, e que se imprime no espírito sob a ideia de um poder absoluto e irresistível que não podemos deixar de temer [eu acrescento: e sob a ideia de uma grandíssima bondade, que não podemos deixar de amar], tal ideia deve, segundo todas as evidências, causar as mais fortes impressões e difundir-se mais longe do que qualquer outra; sobretudo se for uma ideia que concorda com as mais simples luzes da razão, e que deriva naturalmente de cada parte dos nossos conhecimentos. Ora, tal é a ideia de Deus, pois as marcas brilhantes de uma sabedoria e de um poder extraordinários aparecem tão visivelmente em todas as obras da criação, que toda criatura racional que quiser refletir não pode deixar de descobrir o Autor de todas essas maravilhas. A impressão que a descoberta de tal Ser deve produzir naturalmente na alma de todos aqueles que tiverem ouvido falar dele uma só vez é tão grande, e encerra pensamentos de tão grande importância e tão aptos a se difundirem pelo mundo, que me parece completamente estranho que possa haver na terra uma nação inteira de homens tão estúpidos que não tenham nenhuma ideia de Deus. Isto, digo eu, se me afigura tão surpreendente como imaginar homens que não tenham nenhuma ideia dos números ou do fogo. Gostaria que me fosse permitido muitas vezes copiar palavra por palavra uma série de outros excelentes passos do nosso autor, que nos vemos obrigados a preterir. Direi aqui apenas que este autor, falando das luzes mais simples da razão, as quais concordam com as ideias de Deus, e daquilo que daí segue naturalmente, não parece estar longe do meu pensamento sobre as verdades inatas; quanto à afirmação dele, de que seria estranho que existissem homens sem nenhuma ideia de Deus, tão estranho quanto encontrar homens que não tivessem nenhuma ideia dos números ou do fogo, observarei que os habitantes das ilhas Marianas, às quais se deu o nome da rainha da Espanha que favoreceu às missões, não tinham nenhum conhecimento do fogo ao serem descobertos, como se vê pelo relato que o Rev. Padre Gobien, jesuíta francês encarregado das missões longínquas, publicou e me enviou.] § 16. FILALETO - Se temos o direito de concluir, do fato de todas as pessoas sábias terem tido a ideia de Deus, que esta ideia é inata, também a virtude deve ser inata, visto que as pessoas sábias sempre tiveram uma ideia verdadeira dela. TEÓFILO - [Não a virtude, mas a ideia da virtude é inata. Talvez fosse isto o que queríeis dizer.] FILALETO - É tão certo que existe um Deus, quanto é certo que os ângulos opostos produzidos pela intersecção de duas linhas retas são iguais. E jamais houve uma criatura racional, que se tenha dado sinceramente ao trabalho de examinar a verdade dessas duas proposições, e que não tenha dado o seu consentimento a elas. Entretanto, é incontestável que existem muitos homens que, não tendo jamais dado atenção a esses problemas, ignoram de maneira igual as duas referidas proposições. TEÓFILO - [Reconheço-o, mas isto não impede que sejam inatas, isto é, que possamos descobri-las em nós mesmos.] § 18. FILALETO - Seria também vantajoso ter uma ideia inata da substância; acontece, porém, que não possuímos nem ideia inata nem adquirida, visto que não a temos nem pelos sentidos nem pela reflexão. TEÓFILO - [Acredito que a reflexão é suficiente para descobrir a ideia da substância em nós mesmos, que somos substâncias. Esta noção é das mais importantes. Talvez falaremos mais explicitamente dela no decurso do nosso colóquio.] § 20. FILALETO - Se existem ideias inatas que estão no espírito, sem que o espírito pense atualmente nelas, é necessário, no mínimo, que estejam na memória, da qual deveriam ser tiradas por via de reminiscência, isto é, ser conhecidas quando apelamos para a recordação, como tantas percepções que tenham existido antes da alma, a menos que a reminiscência não possa subsistir sem reminiscência. Com efeito, esta convicção, pela qual estamos interiormente convencidos de que tal ideia esteve anteriormente em nosso espírito, é propriamente o que distingue a reminiscência de qualquer outro meio de pensar. TEÓFILO - [Para que os conhecimentos, ideias ou verdades estejam no nosso espírito, não é necessário que jamais tenhamos pensado neles atualmente: são apenas hábitos naturais, isto é, disposições e atitudes ativas e passivas, e mais que tabula rasa. Contudo, é verdade que os Platônicos acreditavam que já devemos ter pensado atualmente naquilo que agora reencontramos em nós; para refutá-los, não basta dizer que não nos recordamos, pois é certo que uma infinidade de pensamentos voltam, pensamentos que tínhamos esquecido. Aconteceu que uma pessoa acreditava ter feito um verso novo, quando na verdade se verificou que se tratava de um verso que tinha lido palavra por palavra em algum poeta antigo. Por vezes temos uma facilidade não comum de conceber certas coisas, pelo fato de que as tínhamos concebido anteriormente, sem que nos lembrássemos disto. Pode ocorrer que uma criança, que se tornou cega, se esqueça de que já viu a luz e as cores, como aconteceu, na idade de dois anos e meio, por uma doença, ao célebre Uíric Schonberg, nascido em Weide no Alto Palatinato, que faleceu em Koenigsberg na Prússia em 1649, onde tinha ensinado: filosofia e matemática com admiração de todos. Pode ser que permaneçam neste homem efeitos das antigas impressões, sem que ele se recorde disso. Acredito também que os sonhos renovam em nós muitas vezes antigos pensamentos. Tendo Júlio Scaliger celebrado em verso os homens ilustres de Verona, aconteceu que um certo homem denominado Brugnolus, originário da Baviera, mas depois residente em Verona, lhe apareceu em sonho e se queixou de haver sido esquecido. Júlio Scaliber, não se lembrando de ter ouvido falar dele, não deixou de fazer versos elegíacos em sua honra a respeito deste sonho. Finalmente o seu filho, Joseph Scaliger, passando pela Itália, soube que havia existido outrora em Verona um célebre gramático ou sábio crítico com este nome, o qual tinha contribuído para a renovação da literatura na Itália. Esta história encontra-se nos poemas de Scaliger o pai, e na elegia, bem como nas cartas do filho. Encontra-se também nos Scaligerana, obra que recolhe as conversações de Joseph Scaliger. Existem suficientes provas de que Júlio Scaliger sabia alguma coisa sobre Brugnolus, do qual não mais se lembrava, e que o sonho tinha sido em parte a renovação de uma antiga ideia, embora não tenha havido esta reminiscência assim chamada propriamente, a qual nos faz conhecer que já tivemos esta ideia. Eu, pelo menos, não vejo necessidade alguma que nos obrigue a garantir que não resta nenhum vestígio de uma percepção, quando não existe recordação suficiente para lembrar-nos que a tivemos.] § 24. FILALETO - [Devo reconhecer que respondeis com bastante naturalidade às dificuldades que opusemos às verdades inatas. Talvez também os nossos autores não as impugnem no sentido em que vós as entendeis. Volto apenas a dizer-vos] que tivemos alguns motivos para temer que a opinião das verdades inatas servisse de pretexto aos preguiçosos para se isentarem do esforço das pesquisas, e outorgasse aos doutores e mestres o cômodo direito de estabelecer como princípio fundamental a norma de que os princípios não devem ser questionados. TEÓFILO - [Já vos disse que, se é esta a intenção dos vossos amigos, isto é, aconselhar que procuremos as provas das verdades que são passíveis de demonstração, sem distinguir se são inatas ou não, estamos inteiramente de acordo. A opinião das verdades inatas, como eu a entendo, não deve demover ninguém deste trabalho. Com efeito, além de ser bom procurar a razão dos instintos, constitui uma das minhas grandes máximas que é bom procurar as demonstrações dos próprios axiomas. Recordo-me que: em Paris, quando se zombava do falecido Sr. Roberval, já idoso, pelo fato de ele querer demonstrar os axiomas de Euclides, a exemplo de Apolônio e Proclo, eu mesmo ressaltei a utilidade de tais pesquisas. Quanto ao princípio dos que dizem que não se deve discutir com quem nega os princípios, esta norma só é inteiramente válida em relação àqueles, princípios que não admitem nem dúvida nem demonstração. É verdade que, a fim de evitar escândalos e desordens, pode-se estabelecer normas quanto às discussões públicas e a alguns outros confrontos, em virtude das quais deve ser proibido contestar certas verdades estabelecidas. Todavia, isto é mais uma questão de polícia do que de filosofia.] Livro II AS IDEIAS CAPÍTULO I NELE SE TRATA DAS IDEIAS EM GERAL, E NELE SE EXAMINA SE ALMA DO HOMEM PENSA SEMPRE. § 1. FILALETO - Após termos examinado se as ideias são inatas, consideremos agora a sua natureza e as suas diferenças. Não é verdade que a ideia é o objeto do pensamento? TEÓFILO - [Reconheço que sim; desde que acrescenteis que é um objeto imediato interno, e que este objeto é uma expressão da natureza ou das qualidades das coisas. Se a ideia fosse a forma do pensamento, nasceria e cessaria com os pensamentos atuais que lhe correspondem; sendo, porém, o objeto, ela poderá ser anterior e posterior aos pensamentos. Os objetos externos sensíveis são apenas mediatos, pois não podem agir imediatamente sobre a alma. Só Deus é o objeto externo imediato. Poder-se-ia dizer que a própria alma é o seu objeto imediato interno; mas o é, enquanto contém as ideias, ou aquilo que corresponde às coisas. Pois a alma é um pequeno mundo, na qual as ideias distintas constituem uma representação de Deus e onde as ideias confusas são uma representação do universo.] § 2. FILALETO - Os meus amigos, que supõem que no início a alma é uma tabula rasa, isenta de quaisquer caracteres e destituída de qualquer ideia, perguntam como a alma vem a receber ideias, e através de que meios ela adquire uma quantidade tão prodigiosa de ideias. A isto respondem com uma palavra: através da experiência. TEÓFILO - [Esta tabula rasa de que tanto se fala, não é, a meu entender, mais do que uma pura ficção que a natureza não admite e que se funda exclusivamente nas noções incompletas dos filósofos, como o vazio, os átomos, ou como a matéria primeira, que se concebe destituída de quaisquer formas. As coisas uniformes, que não encerram nenhuma variedade, jamais são puras abstrações, como o tempo, o espaço, e os outros seres da matemática pura. Não existem corpos cujas partes estejam em repouso, não existe substância que não tenha com que se distinguir de qualquer outra. As almas humanas diferem não somente das outras almas, mas também entre si, embora a diferença não seja daquelas que se denominam específicas. E segundo as demonstrações que creio possuir, toda coisa substancial, seja alma ou corpo, tem a sua relação com cada uma das outras, relação que lhe é própria; e uma deve sempre diferir da outra por denominações intrínsecas, para não dizer que os falam tanto desta tabula rasa, depois de lhe terem tirado as ideias; não saberiam dizer o que lhe resta, como aliás os filósofos escolásticos, que não deixam mais nada para a sua matéria primeira. Responder-me-ão talvez que esta tabula rasa dos filósofos quer dizer que a alma não possui, originalmente, senão puras faculdades. Acontece que as faculdades sem ato algum, em outras palavras, as potências puras dos Escolásticos, também elas não passam de ficções que a natureza não conhece, e que só se obtêm através de puras abstrações. Com efeito, onde se encontrará uma faculdade que se fecha na pura potência e já não exerça algum ato? Existe sempre uma disposição particular à ação, e a uma ação, de preferência a outra. Além da disposição existe uma tendência à ação, sendo que há até uma infinidade de tendências à ação em cada sujeito, e essas tendências jamais existem sem algum efeito. Reconheço que a experiência é necessária, a fim de que a alma seja determinada a estes ou àqueles pensamentos, e a fim de que preste atenção às ideias que estão em nós; todavia, podem porventura a experiência e os sentidos fornecer ideias? Porventura a alma tem janelas, ou se assemelha a tabuinhas? Porventura se assemelha ela à cera? É evidente que todos os que concebem a alma desta forma, tornam-na, no fundo, corporal. Opor-me-ão este princípio comumente aceito os filósofos: nada existe na alma que não proceda dos sentidos. Todavia, deve-se excetuar a própria alma e as suas paixões. Nihil est in intellectu, quod non fuerit in sensu, excipe: nisi ipse intellectus. Ora, a alma encerra o ser, a substância, o uno, o mesmo, a causa, a percepção, o raciocínio, e uma série de outras noções, que os sentidos não podem fornecer-nos. Isto concorda bastante com o vosso autor do Ensaio, o qual procura a fonte de uma boa parte das ideias na reflexão do espírito sobre a sua própria natureza.] FILALETO - [Espero, por conseguinte, que concordareis com este versado autor em que todas as ideias procedem ou da sensação ou da reflexão, isto é, das observações que fazemos ou sobre os objetos externos e sensíveis ou sobre as operações internas da nossa alma.] TEÓFILO - [Para evitar uma contestação sobre a qual já nos demoramos demais, dir-vos-ei desde logo que, quando afirmais que as ideias nos vêm de uma ou da outra das duas causas mencionadas, eu o entendo da sua percepção atual. Com efeito, acredito haver demonstrado que elas estão em nós antes de que as percebamos e enquanto possuem alguma coisa de distinto.] § 9. FILALETO - [Depois disso, vejamos quando se deve dizer que a alma começa a ter percepção e pensar atualmente nas ideias. Bem sei que existe uma opinião que afirma que a alma pensa sempre, e que o pensamento atual é tão inseparável da alma quanto a extensão atual é inseparável do corpo. § 10. Entretanto, não consigo compreender que seja mais necessário à alma pensar sempre, do que aos corpos estarem sempre em movimento, visto que a percepção das ideias é para a alma aquilo que o movimento é para os corpos. Isto me parece no mínimo muito razoável, e teria muito prazer em ter a vossa opinião sobre o assunto. TEÓFILO - Vós o dissestes. A ação não está mais vinculada à alma do que ao corpo; igualmente, um estado sem pensamento na alma e um repouso absoluto no corpo me parecem contrários à natureza, e sem exemplo no mundo. Uma substância que uma vez esteve em ação, estará sempre, pois todas as impressões permanecem e são apenas mescladas com outras novas. Ao batermos num corpo excitamos e determinamos nele uma infinidade de turbilhões como em um líquido, pois no fundo todo corpo sólido tem um grau de liquidez e todo líquido um grau de solidez, não havendo jamais meio de parar completamente esses turbilhões internos: à base disso pode-se crer que, se o corpo jamais está em repouso, a alma que lhe corresponde também jamais estará sem percepção. FILALETO - Não será isto talvez um privilégio do Autor e. Conservador de todas as coisas, o qual, sendo infinito nas suas perfeições, jamais dorme e jamais adormece? Isto não parece convir a nenhum ser finito, ou pelo menos não a um ser como a alma do homem. TEÓFILO - [É certo que dormimos e cochilamos, e que Deus está isento disso. Entretanto, daqui não segue que ao dormirmos somos isentos de percepção. Acontece precisamente o contrário, se prestarmos bastante atenção.] FILALETO - Existe em nós alguma coisa que tem o poder de pensar; [mas daqui não segue que tenhamos este poder sempre em ato.] TEÓFILO - [As verdadeiras potências nunca são meras possibilidades. Existe sempre nelas tendência e ação.] FILALETO - Entretanto, esta proposição: a alma pensa sempre, não é evidente por si mesma. TEÓFILO - [Eu também não afirmo isto. Necessita-se um pouco de atenção e de raciocínio para descobri-la; o homem vulgar a percebe tão pouco como a pressão do ar ou a forma circular do globo.] FILALETO - Duvido de que eu tenha pensado na noite anterior. É uma questão de fato, cumpre resolvê-la por experiências sensíveis. TEÓFILO - [Resolve-se esta questão da mesma maneira como se demonstra que existem corpos imperceptíveis e movimentos invisíveis, embora certas pessoas os considerem ridículos. Existe um sem-número de percepções pouco notadas, que não distinguimos suficientemente para que possamos percebê-las ou recordar-nos delas, que porém se fazem conhecer através de consequências certas.] FILALETO - Certo autor! nos objetou que afirmamos que a alma cessa de existir, pelo fato de não sentirmos que ela existe durante nosso sono. Ora, tal objeção só pode provir de uma estranha preocupação; pois não afirmamos que não existe alma no homem pelo fato de não sentirmos a sua existência durante o sono; o que dizemos é que a alma não pode pensar sem dar-se conta disto. TEÓFILO - [Não li o livro que contém tal objeção, mas não é sem razão a objeção de que do fato de que não nos damos conta do pensamento, não segue que ele cesse de existir; do contrário se poderia dizer, pela mesma razão, que não existe alma durante o tempo em que não a percebemos. Para refutar esta objeção, cumpre mostrar, com relação ao pensamento em particular, que lhe é essencial o fato de o percebermos.] § 11. FILALETO - Não é fácil imaginar que uma coisa possa pensar e não sentir que está pensando. TEÓFILO - Aqui está o nó da questão, a dificuldade que coloca em embaraço muitas pessoas versadas. Eis aqui o meio de superar a dificuldade. Importa considerar que nós pensamos em uma quantidade de coisas ao mesmo tempo, mas só prestamos atenção aos pensamentos mais notáveis: não poderia ser de outra forma, pois se prestássemos atenção a tudo, seria necessário pensar com atenção em uma infinidade de coisas ao mesmo tempo, coisas que sentimos todas e que fazem impressão sobre os nossos sentidos. Digo ainda mais: permanece alguma coisa de todos os nossos pensamentos passados, sendo que nenhum deles será jamais completamente apagado. Quando dormimos sem sonhar, quando estamos desacordados por motivo de algum golpe, queda, sintoma ou outro acidente, forma-se em nós uma infinidade de pequenos sentimentos confusos, sendo que a própria morte não poderia causar outro efeito nas almas dos animais, que devem sem dúvida retomar mais cedo ou mais tarde percepções distinguidas, pois na natureza tudo procede segundo a ordem. Reconheço, todavia, que neste estado de confusão, a alma estaria sem prazer e sem dor, visto que estas são percepções notáveis. § 12. FILALETO - Não é porventura verdade que aqueles com os quais temos que tratar no momento [isto é, os Cartesianos, que acreditam que a alma pensa sempre] reconhecem vida a todos os animais, diferentes do homem, sem atribuir-lhes uma alma que conheça e que pense; e que eles não encontram nenhuma dificuldade em dizer que a alma pode pensar sem estar unida a um corpo? TEÓFILO - [Quanto a mim, sou de outra opinião: embora acredite com os Cartesianos que a alma pensa sempre, não concordo com eles nos dois outros pontos. Creio que os animais têm almas imperecíveis, e que as almas humanas e todas as outras nunca existem sem algum corpo. Acredito que só Deus, por ser um ato. puro, é inteiramente isento de corpo.] FILALETO - Se partilhásseis da opinião dos Cartesianos, teria eu concluído que o corpo de Castor ou de Pólux, por poderem estar ora com alma ora sem alma, embora continuando sempre vivos, e a alma, por poder também ela estar ora em tal corpo ora fora dele, se poderia supor que Castor e Pólux tenham uma só alma, que age alternadamente no corpo daqueles dois que estiver adormecido e acordado alternadamente: assim, ela seria duas pessoas tão distintas quanto poderiam sê-lo Castor e Hércules. TEÓFILO - Enunciar-vos-ei uma outra suposição, que parece mais real. [Não é porventura verdade que devemos concordar sempre em que, após algum intervalo ou alguma grande mudança, podemos cair em um esquecimento geral? Sleidan - assim se conta - esqueceu antes de morrer tudo aquilo que sabia: existe uma série de exemplos deste triste acontecimento. Suponhamos que tal pessoa rejuvenesça e aprenda tudo de novo: será por isso um homem diferente? Por conseguinte, não é a recordação que faz com que um homem seja o mesmo. Entretanto, a ficção de uma alma que anima alternadamente corpos diferentes, sem que aquilo que lhe acontece em um desses corpos interesse ao outro, constitui uma dessas ficções contrárias à natureza das coisas, que procedem das noções incompletas dos filósofos, como o espaço sem corpo e o corpo sem movimento, ficção que desaparece quando se penetra um pouco mais na análise. Com efeito, cumpre saber que cada alma conserva todas as impressões precedentes e não pode repartir-se da maneira insinuada: o futuro em cada substância tem uma perfeita conexão com o passado, é isto que perfaz a identidade do indivíduo. Todavia, a recordação não é necessária e nem mesmo sempre possível, devido à multidão das impressões presentes e passadas, que concorrem com os nossos pensamentos presentes, pois não creio que existam no homem pensamentos dos quais não haja algum efeito pelo menos confuso, ou algum resto mesclado com os pensamentos subsequentes. Podemos esquecer muitas coisas, mas poderíamos relembrar-nos de coisas muito longínquas, se fôssemos reconduzidos devidamente a isto.] § 13. FILALETO - Os que dormem sem sonhos jamais poderão ser convencidos de que os seus pensamentos estão em ação. TEÓFILO - [Sempre temos algum fraco sentimento quando dormimos, mesmo quando não sonhamos. O próprio acordar nos diz isto: quanto mais facilmente somos acordados, tanto mais temos o sentimento do que acontece fora, embora este sentimento nem sempre seja suficientemente forte para causar o despertar.] § 14. FILALETO - Parece bem difícil conceber que nesse momento a alma pense em um homem adormecido, e no momento seguinte em um homem acordado, sem que se relembre disso. TEÓFILO - [Não somente isto é fácil de conceber, mas podemos até afirmar que algo de semelhante se observa todos os dias enquanto estamos em vigília; pois temos sempre objetos que atingem os nossos olhos ou os nossos ouvidos, e por conseguinte a alma também é atingida, sem que nos demos conta do fato, pois a nossa atenção está voltada a outros objetos, isto até o momento em que o objeto se torne suficientemente forte para atrair a si, redobrando a sua ação ou por qualquer outro motivo; era como um sono particular em relação àquele objeto, e esse sonho se torna geral quando cessa a nossa atenção em relação a todos os objetos juntos. É também um meio para adormecer, quando repartimos a atenção para enfraquecê-la.] FILALETO - Ouvi falar de um homem que em sua juventude se tinha aplicado ao estudo e tinha uma memória tão feliz, que não tinha tido sonho algum antes de ter a febre de que foi curado no tempo em que falou comigo, tendo então a idade de 25 ou 26 anos. TEÓFILO - [Ouvi falar também de uma pessoa de estudos, muito mais avançada em idade, que nunca tinha tido sonho algum. Entretanto, não é só sobre os sonhos que se deve fundar a perpetuidade da percepção da alma, pois mostrei como, mesmo ao dormir, a alma conserva alguma percepção do que acontece fora dela.] § 15. FILALETO - Pensar frequentemente e não conservar um só momento a recordação do que se pensa, é pensar de maneira inútil. TEÓFILO - [Todas as impressões têm o seu efeito, mas nem todos os efeitos são sempre notáveis. Quando me volto de um lado de preferência a de outro, é muitas vezes por um encadeamento de pequenas impressões, das quais não me dou conta, e que tornam um movimento algo mais incômodo do que o outro. Todas as nossas ações indeliberadas são resultados de um concurso de pequenas percepções, e mesmo os nossos hábitos e paixões, que tanta influência exercem sobre as nossas deliberações, provêm dali: pois esses hábitos nascem pouco a pouco e, por conseguinte, sem as pequenas percepções não chegaríamos a essas disposições notáveis. Já observei que aquele que negasse tais efeitos na moral, imitaria pessoas mal instruídas que negam os corpúsculos insensíveis na física: e todavia vejo que entre aqueles que falam da liberdade existem alguns que, não atendendo a essas impressões insensíveis, capazes de inclinar a balança, imaginam uma completa indiferença nas ações morais, como aquela do asno de Burídan dividido entre duas porções de capim. Mais adiante falaremos mais explicitamente desta matéria. Reconheço, porém, que tais impressões inclinam sem forçar.] FILALETO - Dir-se-á talvez que no caso de um homem acordado que pensa, o seu corpo existe para alguma coisa, e que a lembrança se conserva pelos traços de cérebro, mas que quando ele dorme, a alma tem os seus pensamentos separados, por si mesma. TEÓFILO - Estou bem longe de afirmar isto, pois acredito que existe sempre uma correspondência exata entre o corpo e a alma, e visto que utilizo as impressões do corpo, das quais não nos damos conta, seja em vigília seja dormindo, para demonstrar que a alma tem semelhantes. Creio até que algo acontece na alma que responde à circulação do sangue e a todos os movimentos internos das vísceras, coisa de que, porém, não nos damos conta, assim como as pessoas que moram perto de um moinho a água não percebem mais o ruído feito por ele. Com efeito, se houvesse, no corpo, impressões durante o sono ou durante a vigília, impressões pelas quais a alma não seria afetada em absoluto, seria necessário estabelecer os limites da união entre a alma e o corpo, como se as impressões corporais tivessem necessidade de uma certa figura e grandeza para que a alma pudesse senti-las; ora, isso não é admissível, se a alma for incorpórea, visto não existir proporção entre uma substância incorpórea e esta ou aquela modificação da matéria. Em uma palavra, seria uma grande fonte de erros crer que não existe nenhuma percepção na alma, a não ser aquelas que percebemos. § 16. FILALETO - A maior parte dos sonhos de que nos recordamos, são extravagantes e desconexos. Em consequência, dever-se-ia dizer que a alma deve a faculdade de pensar racionalmente ao corpo, ou então, que ela não retém nenhum dos seus solilóquios racionais. TEÓFILO - [O corpo responde a todos os pensamentos da alma, racionais ou não, e os sonhos têm os seus vestígios no cérebro, tanto quanto os pensamentos daqueles que estão em vigília.] § 17. FILALETO - [Uma vez que estais tão certo de que a alma sempre pensa atualmente, gostaria que me pudésseis dizer quais são as ideias que estão na alma de uma criança antes que esta se una ao corpo, ou precisamente no tempo da sua união, antes de ter recebido qualquer ideia por via sensorial.] TEÓFILO - É fácil satisfazer-vos, partindo dos nossos princípios, As percepções da alma respondem sempre naturalmente à, constituição do corpo, e quando existe uma série de movimentos confusos e pouco distintos no cérebro, como acontece àqueles que têm pouca experiência, os pensamentos da alma (segundo a ordem das coisas) também não podem ser distintos. Contudo, a alma nunca é privada do auxílio da sensação, visto que ela exprime sempre o seu corpo, e este corpo é sempre afetado pelas coisas ambientes de uma infinidade de maneiras, mas que muitas vezes dão apenas uma impressão confusa. § 18. FILALETO - Aqui vai outra questão formulada pelo autor do Ensaio. Gostaria muito - diz ele - que aqueles que defendem com tanta convicção que a alma do homem ou (o que é a mesma coisa) o homem pensa sempre, me digam como sabem isto. TEÓFILO - [Não sei se não será necessária mais convicção para negar que na alma acontece algo de que não nos damos conta; pois aquilo que é notável deve estar composto de partes que não são notáveis; nada pode nascer de repente, nem o pensamento nem o movimento. Enfim, é como se alguém perguntasse hoje como é que conhecemos os corpúsculos insensíveis.] § 19. FILALETO - Não me recordo que aqueles que nos afirmam que a alma pensa sempre, nos digam alguma vez que o homem pensa sempre. TEÓFILO - [Imagino que seja porque o entendem também da alma separada, e todavia reconhecerão de bom grado que o homem pensa sempre durante a união. Para mim, que tenho razões para crer que a alma jamais está separada de todo corpo, acredito que se pode dizer absolutamente que o homem pensa e pensará sempre.] FILALETO - Dizer que o corpo é extenso sem ter as partes, e que uma coisa pensa sem perceber que está pensando, são duas afirmações que parecem igualmente ininteligíveis. TEÓFILO - [Perdoai-me, mas sinto-me obrigado a dizer-vos que, quando afirmais que não existe na alma nada de que ela não se dê conta, cometeis uma petição de princípio que dominou durante toda a nossa primeira discussão e da qual certos autores se servem para destruir as ideias e as verdades inatas. Se concordássemos com este princípio, além de contrariarmos a experiência e a razão, renunciaríamos sem razão à nossa opinião, que acredito ter tornado suficientemente inteligível. Entretanto, além do fato de que os nossos adversários não trouxeram prova para aquilo que afirmam tantas vezes e com tanta convicção, é fácil demonstrar-lhes o contrário, isto é, que não é possível que reflitamos sempre expressamente sobre todos os nossos pensamentos; do contrário, o espírito refletiria sobre cada reflexão o infinito, sem jamais poder passar a um novo pensamento. Por exemplo, ao perceber algum sentimento presente, eu deveria pensar sempre que estou pensando nele, e pensar ainda que penso que estou pensando nele, e assim até ao infinito. Ora, é necessário que eu cesse de refletir sobre todas essas reflexões, e que haja, finalmente, algum pensamento que deixemos passar sem pensar nele; do contrário, permaneceríamos sempre fixos na mesma coisa.] FILALETO - Entretanto, não haverá igual razão para sustentar que o homem sempre tem fome, se dissermos que ele a tem sem dar-se conta disso? TEÓFILO - [Existem diferenças de um caso a outro: a fome tem razões particulares que nem sempre existem e subsistem. Todavia, é verdade que, mesmo quando temos fome, não pensamos nisso a cada momento; quando pensamos nisso, porém, nos damos conta da fome, pois a fome é uma disposição bem notável; existem sempre irritações no estômago, mas é necessário que se tornem suficientemente fortes para produzir fome. A mesma distinção deve ser feita sempre entre os pensamentos gerais e os pensamentos notáveis. Assim sendo, o que se aduz para ridicularizar a nossa opinião, acaba servindo para confirmá-la.] § 23. FILALETO - Podemos perguntar agora quando o homem começa a ter ideias no seu pensamento. Creio dever-se responder que é desde o momento em que ele tem alguma sensação. TEÓFILO - [Sou da mesma opinião; mas é por um princípio um pouco especial, pois acredito que jamais estamos sem pensamentos, como jamais estamos sem sensações. Apenas que eu distingo entre as ideias e os pensamentos; pois temos sempre todas as ideias puras ou distintas independentemente dos sentidos; ao passo que os pensamentos correspondem sempre a alguma sensação.] § 25. FILALETO - Entretanto, o espírito é passivo somente na percepção das ideias simples, que constituem os rudimentos ou materiais do conhecimento, ao passo que é ativo quando forma ideias compostas. TEÓFILO - [Como será possível que ele seja passivo somente em relação à percepção de todas as ideias simples, visto que, segundo a vossa própria expressão, existem ideias simples cuja percepção vem da reflexão, e que o próprio espírito se dá pensamentos de reflexão, pois é ele quem reflete? Se ele pode recusá-los, é outro problema: sem dúvida não o pode sem alguma razão que o demova disso, quando alguma ocasião o leva a tal.] FILALETO - [Parece-me que até agora discutimos ex professo. Agora que chegamos ao detalhe das ideias, espero que o nosso acordo seja maior, e que as nossas divergências se limitarão a alguns pontos particulares.] TEÓFILO - [Encantar-me-ei em verificar que pessoas versadas partilhem as opiniões que considero verdadeiras, pois tais pessoas têm capacidade para fazê-las vencer e valorizá-las.] CAPÍTULO II AS IDEIAS SIMPLES. § 1. FILALETO - Espero que concordareis comigo em que existem ideias simples e ideias compostas; assim, o calor e a moleza na cera, o frio no gelo, fornecem ideias simples, pois a alma tem delas uma concepção uniforme, que não pode ser distinguida em diferentes ideias. TEÓFILO - [Creio que se pode dizer que tais ideias sensíveis são simples na aparência, pois sendo confusas, não fornecem ao espírito o meio de distinguir o que elas encerram. É como as coisas longínquas que parecem redondas, pelo fato de não podermos discernir-lhes os ângulos, embora recebamos alguma impressão confusa deles. E manifesto, por exemplo, que o verde se origina do azul e do amarelo mesclados; assim sendo, pode-se crer que a ideia do verde é composta dessas duas ideias. E todavia, a ideia do verde nos parece tão simples como a do azul, ou como a do quente. Assim sendo, pode-se crer que também as ideias do azul e do quente só são simples na aparência. Estou de acordo, contudo, que consideremos simples essas ideias, porque pelo menos a nossa percepção não as divide; todavia, é preciso analisá-las por outras experiências e pela razão, à medida que pudermos torná-las mais inteligíveis. E também por aqui se vê que existem percepções das quais não nos damos conta. Pois as percepções das ideias simples na aparência são compostas das percepções das partes das quais essas ideias são compostas, sem que o espírito o perceba, uma vez que essas ideias confusas lhe parecem simples.] CAPÍTULO III AS IDEIAS QUE NOS VÊM ATRAVÉS DE UM SÓ SENTIDO. FILALETO - Podemos agora classificar as ideias simples segundo os meios que nos possibilitam a percepção delas, pois isso se faz ou 1) através de um só sentido, ou 2) através de mais de um sentido, ou 3) pela reflexão, ou 4) por todos os caminhos da sensação, como também pela reflexão. Quanto às ideias que nos vêm através de um só sentido que tem disposições particulares para recebê-las, a luz e as cores entram exclusivamente pelos olhos; toda sorte de ruídos, sons e tons entram pelos ouvidos; os diferentes gostos, pelo paladar, e os odores, pelo olfato. Os órgãos ou nervos os conduzem ao cérebro, e se acontecer que algum desses órgãos estiver alterado, essas sensações não podem ser admitidas por alguma porta falsa. As qualidades táteis mais consideráveis são o frio, o calor e a solidez. As outras consistem ou na conformação das partes sensíveis, que faz com que uma coisa seja polida ou bruta, ou na sua união; que faz com que a coisa seja compacta, mole, dura frágil. TEÓFILO - [Concordo bastante com o que dizeis, embora possa observar que, segundo a experiência do falecido Sr. Maríotte sobre a falha da visão quanto ao nervo óptico, parece que as membranas recebem o sentimento mais que os nervos, e existe alguma porta falsa para o ouvido e o gosto, visto que os dentes e o vertex contribuem para fazer ouvir algum som, e os gostos se fazem conhecer de alguma forma pelo nariz, devido à interconexão dos órgãos. Todavia, isso nada muda quanto ao fundo das coisas, no que concerne à explicação das ideias. No que diz respeito às qualidades táteis, pode-se dizer que o polido ou o bruto, e o duro ou mole constituem apenas as modificações da resistência ou da solidez.] CAPÍTULO IV A SOLIDEZ § 1. FILALETO - Concordareis também em que a sensação da solidez é causada pela resistência que encontramos em um corpo até que este tenha deixado o lugar que ocupa quando outro corpo entra atualmente nele. Assim sendo, o que impede a aproximação de dois corpos quando se movem simultaneamente um em direção ao outro, é o que denomino a solidez. Se alguém acha melhor denominá-la impenetrabilidade, concordo. Entretanto, acredito que o termo solidez encerra algo de mais positivo. Esta ideia parece a mais essencial e a mais estreitamente ligada ao corpo, e só podemos encontrá-la na matéria. TEÓFILO - É verdade que encontramos resistência ao tocarmos, quando outro corpo custa a dar lugar ao nosso; é verdade também que os corpos têm repugnância a encontrar-se no mesmo lugar. Todavia, alguns duvidam de que tal repugnância seja invencível, e convém também considerar que a resistência que se encontra na matéria deriva dela de várias formas e por motivos bastante diversos. Um corpo resiste ao outro ou quando deve abandonar o lugar que já tinha ocupado, ou quando deixa de entrar no lugar onde estava prestes a entrar, pelo fato de que o outro também quer entrar, caso em que pode ocorrer que, um não cedendo ao outro, se rejeitem reciprocamente. A resistência se faz notar na mudança daquele ao qual se resiste, seja pelo fato de ele perder força, seja pelo fato de mudar de direção, seja pelo fato de um e outro chegarem simultaneamente. Ora, pode-se dizer em geral que esta resistência vem do fato de que existe repugnância, entre dois corpos, a estarem num mesmo lugar, o que se poderá denominar impenetrabilidade. Assim, quando um faz esforço para entrar, esforça-se ao mesmo tempo para desalojar o outro, ou para impedi-lo de entrar. Todavia, uma vez supondo-se esta espécie de incompatibilidade que faz com que um ou outro, ou ambos cedam, existem ainda outras razões que fazem com que um corpo resista àquele que quer obrigá-lo a ceder-lhe lugar. Elas estão ou nele, ou nos corpos vizinhos. Existem duas que estão nele mesmo, sendo que uma é passiva e perpétua, a outra é ativa e mutável. A primeira é aquilo que denomino inércia, segundo Kepler e Descartes; ela faz com que a matéria resista ao movimento; em virtude dela é preciso perder força para remover um corpo, se não houvesse nem peso nem fixação. Assim sendo, é preciso que um corpo que pretenda desalojar o outro, sinta esta resistência. A outra causa, que é ativa e mutável, consiste na impetuosidade do próprio corpo, o qual não cede sem resistir no momento em que a sua própria impetuosidade o leva a um lugar. As mesmas razões voltam nos corpos vizinhos, quando o corpo que resiste não pode ceder sem fazer com que outros cedam. Todavia, aqui entra ainda outra consideração: é a da firmeza, ou da ligação de um corpo com outro. Esta ligação faz com que não se possa empurrar um corpo sem que se empurre também outro que lhe está ligado, o que faz com que tenhamos uma espécie de tração em relação a este outro. Esta ligação também faz com que, mesmo que se colocassem de lado a inércia e a impetuosidade manifesta, continue a haver resistência; pois, se o espaço se concebe como cheio de uma matéria perfeitamente fluida, e se se colocar um único corpo duro, este corpo duro (supondo-se que não exista nem inércia nem impetuosidade no fluido) será movido sem encontrar qualquer resistência; entretanto, se o espaço estivesse cheio de pequenos cubos, a resistência que encontraria o corpo duro que deve ser movido entre esses cubos, derivaria do fato de que os pequenos cubos duros, devido à sua dureza, ou da ligação das suas partes entre si, teriam dificuldade em dividir-se tanto quanto seria necessário para perfazer um circuito de movimento, e para preencher o lugar do corpo móvel no momento em que sai do lugar. Entretanto, se dois corpos entrassem ao mesmo tempo por duas extremidades em um tubo aberto dos dois lados e enchessem a capacidade do tubo, a matéria que estaria neste tubo, por mais fluida que fosse, resistiria pela sua simples impenetrabilidade. Dessa forma, na resistência de que se trata aqui, deve-se considerar a impenetrabilidade dos corpos, a inércia, a impetuosidade e a fixação ou ligação. E verdade que, a meu modo de ver, esta ligação dos corpos procede de um movimento mais sutil de um corpo em direção ao outro; todavia, como se trata de um ponto contestável, não se deve supô-lo de imediato. Pela mesma razão, não se deve supor também que existe uma solidez originária essencial, que torne o lugar sempre igual ao corpo, isto é: que a incompatibilidade, ou, para falar mais corretamente, a inconsistência dos corpos em um mesmo lugar, é uma perfeita impenetrabilidade que não admite nem mais nem menos, visto que muitos afirmam que a solidez sensível pode provir de uma repugnância dos corpos a se encontrarem em um mesmo lugar, repugnância que não seria, porém, invencível. Com efeito, todos os Peripatéticos comuns, juntamente com muitos outros, acreditam que uma e mesma matéria poderia preencher mais ou menos espaço, o que denominam rarefação ou condensação, não somente na aparência (como quando, ao comprimir uma esponja, se faz sair a água dela), mas a rigor, como os Escolásticos afirmam com respeito ao ar. Não sou desta opinião, porém não creio que se deva logo supor o contrário, visto que os sentidos sem o raciocínio não são suficientes para estabelecer esta perfeita impenetrabilidade, que considero verdadeira na ordem da natureza mas que não se percebe apenas pela sensação. Alguém poderia pretender que a resistência dos corpos à compressão deriva de um esforço que as partes fazem para se expandir quando não possuem toda a liberdade. De resto, para provar tais qualidades, os olhos ajudam muito, vindo em auxílio do tato. No fundo a solidez, enquanto dá uma noção distinta, se concebe pela pura razão, embora os sentidos forneçam ao raciocínio material para demonstrar que ela está na natureza. § 4. FILALETO - Estamos de acordo pelo menos sobre o fato seguinte: a solidez de um corpo implica que ele enche o espaço que ocupa, de maneira tal que exclui deste espaço todo e qualquer outro corpo, se ele não puder encontrar um espaço no qual não estava antes; ao passo que a dureza, ou melhor, a consistência que alguns denominam firmeza, é uma forte união de certas partes da matéria, que compõem ajuntamentos de uma espessura sensível, de sorte que toda a massa não muda facilmente de aspecto. TEÓFILO - [Esta consistência, como já observei, é propriamente o que faz com que seja difícil mover uma parte de um corpo sem a outra, de sorte que quando se empurra uma, acontece que a outra, que não é empurrada e não está na linha da tendência, é todavia conduzida a ir para o mesmo lado por uma espécie de tração; além disso, se esta última parte encontra algum obstáculo que a retenha ou a rejeite, vai para trás, ou então retém também a primeira; isto é sempre recíproco. O mesmo acontece por vezes a dois corpos que não se tocam e que não compõem um corpo contínuo do qual constituam as partes contíguas: e todavia um deles, se for empurrado, faz o outro deslocar-se sem empurra-lo, na medida em que os sentidos nos podem permitir observa-lo. Exemplos disso constituem o imã, a atração elétrica e a atração que se atribuía antigamente ao temor do vazio.] FILALETO - Parece que em geral o duro e o mole são denominações que damos às coisas somente em relação à constituição particular dos nossos corpos. TEÓFILO - [Mas assim muitos filósofos não atribuiriam a dureza aos seus átomos. A noção da dureza não depende dos sentidos, e podemos conceber a sua possibilidade pela razão, embora sejamos também convencidos pelos sentidos de que ela se encontra atualmente na natureza. Entretanto, eu preferiria o termo firmeza (se me fosse permitido utilizá-lo neste sentido) ao de dureza, pois existe alguma firmeza mesmo nos corpos moles. Estou, aliás, à procura de um termo mais cômodo e mais geral, como consistência ou coesão. Assim eu oporia o duro ao mole e o firme ao fluido, visto que a cera é mole, mas sem ser fundida pelo calor não se toma fluida e conserva os seus limites; e nos próprios fluidos existe coesão geralmente, como se vê nas gotas de água e de mercúrio. Estou também convencido de que todos os corpos têm certo grau de coesão, como acredito que não haja corpos que não possuam certa fluidez e cuja coesão não seja superável: assim sendo, na minha opinião os átomos de Epicuro, cuja dureza se supõe invencível, não podem ter lugar, como também não a matéria sutil perfeitamente fluida dos Cartesianos. Todavia, não é aqui o lugar para justificar esta opinião nem para explicar a razão da coesão.] FILALETO - A solidez perfeita dos corpos parece justificar-se pela experiência. Por exemplo a água, não podendo ceder, passou através dos poros de um globo côncavo, onde estava encerrada, quando se colocou este globo sob a prensa, em Florença. TEÓFILO - [Tenho algo a dizer acerca da consequência que tirais desta experiência e do que aconteceu com a água. O ar é um corpo, tanto como água, e todavia é compressível ao menos ad sensum. Os que sustentarem uma rarefação e condensação exata dirão que a água é já demasiado comprimida para ceder às nossas máquinas, como um ar demasiado comprimido resistiria também a uma compressão ulterior. Reconheço, porém, que se notássemos alguma pequena mudança de volume na água, poder-se-ia atribuí-la à água que ali está contida. Sem querer entrar agora na discussão, se a água pura não é compressível ela mesma, como é dilatável, quando se evapora, todavia partilho, no fundo, a opinião daqueles que acreditam que os corpos são perfeitamente impenetráveis, e que só existe condensação ou rarefação na aparência. Todavia, estas espécies de experiências são tão incapazes de provar, quanto o tubo de Torricelli ou a máquina de Cherike são insuficientes para demonstrar um vazio perfeito.] § 5. FILALETO - Se o corpo fosse rarificável e compressível a rigor, poderia mudar de volume ou de extensão, mas uma vez que isso não ocorre, ele será sempre igual no mesmo espaço: e todavia a sua extensão será sempre distinta da extensão do espaço. TEÓFILO - [O corpo poderia ter a sua própria extensão, mas daqui não seguiria que esta seria sempre determinada ou igual no mesmo espaço. Todavia, embora seja verdade que, ao concebermos o corpo, concebemos algo mais do que o espaço, isto é, res numeratas, não existem duas multidões, uma abstrata, a saber, a do número, e a outra concreta, a saber, a das coisas numeradas. Podemos igualmente dizer que não se deve imaginar duas extensões, uma abstrata, o espaço, a outra concreta, o corpo, visto que o concreto só é tal pelo abstrato. E como os corpos passam de um lugar do espaço a outro, isto é, mudam a ordem entre si, também as coisas passam de um lugar da ordem ou de um número ao outro, quando por exemplo, o primeiro se torna o segundo, o segundo se torna o terceiro etc. Com efeito, o tempo e o lugar constituem apenas espécies de ordem, e nessas ordens o lugar vacante (que se denomina vazio em relação ao espaço), se houvesse, marcaria a possibilidade somente do que falta com a sua relação ao atual.] FILALETO - Tenho muito prazer em verificar que no fundo estais de acordo comigo num ponto: que a matéria não muda de volume. Parece, entretanto, que íeis longe demais ao não reconhecer duas extensões, e que vos aproximáveis dos Cartesianos, os quais não distinguem o espaço da matéria. Ora, acredito que se existem pessoas que não têm essas ideias distintas (do espaço e da solidez que o preenche) mas as confundem e fazem das duas uma só, não se vê como tais pessoas poderiam entreter-se com os outros. Eles são como seria um cego em relação a outra pessoa que lhe falasse do escarlate, enquanto este cego acreditaria que o escarlate se assemelha a uma trombeta. TEÓFILO - [Contudo, sustento, ao mesmo tempo, que as ideias da extensão e da solidez não consistem em um não sei quê como a da cor do escarlate. Distingo a extensão e a matéria, contrariamente à opinião dos Cartesianos. Todavia, não creio que haja duas extensões; e já que os que discutem sobre a diferença da extensão e da solidez concordam sobre várias verdades referentes a este assunto e têm algumas noções distintas, podem encontrar ali o meio para superar as suas divergências; assim, a pretendida diferença sobre as ideias não deve servir-lhes como pretexto para eternizar as suas discussões, embora eu saiba que certos Cartesianos, aliás muito versados, costumam entrincheirar-se nas ideias que pretender ter. Contudo, se utilizassem o meio que lhes indiquei outrora para distinguir as ideias verdadeiras das falsas - assunto de que falaremos também mais adiante - sairiam de uma posição insustentável.] CAPÍTULO V AS IDEIAS SIMPLES QUE VÊM POR DIVERSOS SENTIDOS. FILALETO - As ideias cuja percepção nos vem de mais de um sentido, são as do espaço, ou da extensão, ou da figura, do movimento e do repouso. TEÓFILO - [As ideias que se diz virem de mais de um sentido, como a do espaço, figura, movimento, repouso, são antes do sentido comum, isto é, do próprio espírito, pois são ideias do entendimento puro, que porém têm relação com o exterior, e que os sentidos fazem perceber; elas são também capazes de definições e demonstrações.] CAPÍTULO VI AS IDEIAS SIMPLES QUE VÊM PELA REFLEXÃO. FILALETO - As ideias simples que vêm pela reflexão são as ideias do entendimento e da vontade [pois as percebemos ao refletirmos sobre nós mesmos.] TEÓFILO - [Pode-se duvidar se todas essas ideias são simples, pois é claro, por exemplo, que a ideia da vontade encerra a do entendimento, e a ideia do movimento contém a da figura.] CAPÍTULO VII AS IDEIAS QUE NOS VÊM PELA SENSAÇÃO E PELA REFLEXÃO. § 1. FILALETO - Existem ideias simples que se fazem perceber no espírito por todas as vias da sensação e também pela reflexão, a saber, o prazer, a dor, o poder, a existência e a unidade. TEÓFILO - [Parece que os sentidos não podem convencer-nos da existência das coisas sensíveis sem o auxílio da razão. Assim sendo, acredito que a consideração da existência vem da reflexão. Também a consideração do poder e da unidade provém da mesma fonte, sendo de uma natureza completamente diferente que as percepções do prazer e da dor.] CAPÍTULO VIII OUTRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE As IDEIAS SIMPLES. § 2. FILALETO - Que diremos das ideias das qualidades privativas? Parece-me que as ideias do repouso, das trevas e do frio são tão positivas como as do movimento, da luz e do calor. Todavia, ao propor essas privações como causas das ideias positivas, partilho a opinião comum; mas no fundo será difícil determinar se há efetivamente alguma ideia que provenha de uma causa privativa, até quando se houver determinado se o repouso é uma privação mais do que o movimento. TEÓFILO - [Eu não havia pensado que se pudesse ter motivo para duvidar da natureza privativa do repouso; basta, para o repouso, negar o movimento no corpo; para o movimento, porém, não basta negar o repouso, é necessário acrescentar algo mais para determinar grau do movimento, visto que ele admite essencialmente o mais e menos, ao passo que todos os repousos são iguais. Outra coisa acontece quando se fala da causa do repouso, que deve ser positiva na matéria segunda ou massa. Acredito que a própria ideia do repouso é privativa, isto é, consiste apenas na negação. É verdade que o ato de negar constitui uma coisa positiva.] § 9. FILALETO - Uma vez que as qualidades das coisas são as faculdades que elas têm de produzir em nós a percepção das ideias, é conveniente distinguir essas qualidades. Existem qualidades primeiras e segundas. A extensão, a solidez, a figura, o número, a mobilidade são qualidades originais e inseparáveis do corpo que denomino primeiras. § 10. Denomino qualidades segundas as faculdades ou potências que os corpos têm para produzir certas sensações em nós, ou certos efeitos nos outros corpos, como, por exemplo, o fogo as produz na cera, fundindo-a. TEÓFILO - [Acredito que se poderia dizer que, quando a potência é inteligível e pode explicar-se distintamente, deve ser contada entre as qualidades primeiras; ao contrário, quando é apenas sensível e só dá uma ideia confusa, será necessário classificá-la entre as qualidades segundas.] § 11. FILALETO - [Essas qualidades primeiras mostram como os corpos agem uns sobre os outros. Ora, os corpos só agem por impulsão, pelo menos na medida em que o possamos conceber, pois é impossível compreender que o corpo possa agir sobre aquilo que ele não toca, o que equivale a imaginar que possam agir lá onde não estão.] TEÓFILO - [Também eu penso que os corpos só agem por impulsão. Todavia, existe certa dificuldade na prova que acabo de ouvir; pois a atração não se verifica sempre sem toque, e podemos tocar e puxar sem qualquer impulsão visível, como demonstrei acima, ao falar da dureza. Se houvesse os átomos de Epicuro, uma parte empurrada puxaria a outra consigo e a tocaria, colocando-a em movimento sem impulsão. E na atração entre coisas contíguas não se pode dizer que aquilo que puxa consigo age onde não está. Esta razão militaria somente contra as atrações de longe, como as haveria em relação do que se denomina vires centrípetas, propostas por algumas pessoas versadas.] § 13. FILALETO - Ora, certas partículas, atingindo os nossos órgãos de certa maneira, causam em nós certos sentimentos de cores ou de sabores ou de outras qualidades segundas, que têm o poder de produzir esses sentimentos. E não é mais fácil conceber que Deus possa ligar tais ideias (como a do calor) a movimentos, com os quais não têm nenhuma semelhança, do que conceber que Ele ligou a ideia da dor ao movimento de um pedaço de ferro que divide a nossa carne, movimento ao qual a, dor não se assemelha de forma alguma. TEÓFILO - [Não se deve imaginar que essas ideias, como a cor ou a dor, sejam arbitrárias e sem relação ou conexão natural com as suas causas: Deus não costuma agir com tão pouca ordem e razão. Diria antes que existe uma forma de semelhança, não inteira e, por assim dizer, in terminis, mas expressiva, ou de relação de ordem, como uma elipse e mesmo uma parábola ou hipérbole se assemelham de alguma forma ao círculo do qual são a projeção sobre o plano, visto que existe certa relação exata e natural entre aquilo que é projetado e a projeção que se forma, sendo que cada ponto de um corresponde segundo certa relação a cada ponto do outro. É o que os Cartesianos não consideram suficientemente, e desta vez lhes concedestes mais do que costumais fazê-lo, não havendo razão para isto.] § 15. FILALETO - Digo-vos o que me parece; as aparências indicam que as ideias das primeiras qualidades dos corpos se assemelham a essas qualidades, ao passo que as ideias produzidas em nós pelas qualidades segundas não se lhes parecem de forma alguma. TEÓFILO - Acabo de assinalar como existe semelhança ou relação exata com respeito às qualidades segundas, bem como com relação às primeiras. [E bem razoável que o efeito corresponda à sua causa; e como assegurar o contrário, uma vez que não se conhece distintamente nem a sensação do azul (para dar um exemplo) nem os movimentos que produzem tal sensação? É verdade que a dor não se assemelha ao movimento de uma agulha, mas pode muito bem assemelhar-se a movimentos que esta agulha produz no nosso corpo, e representar tais movimentos na alma, como não duvido em absoluto que o faça. É também por isso que afirmamos que a dor está no nosso corpo e não que está na agulha, mas dizemos que a luz está no fogo, visto haver no fogo movimentos que não são distintamente sensíveis à parte, mas cuja confusão ou conjunção se toma sensível, e nos é representada pela ideia da luz. § 21. FILALETO - Entretanto, se a relação entre o objeto e o sentimento fosse natural, como poderia acontecer, como na realidade observamos, que a mesma água possa parecer quente a um a mão e fria à outra? Isto mostra também que o calor não está na água, assim como a dor não está na agulha. TEÓFILO - [Isso demonstra no máximo que o calor não é uma qualidade sensível ou potência de se fazer sentir completamente absoluta, mas que é relativa a órgãos proporcionados: pois um movimento próprio na mão pode mesclar-se-lhe e alterar-lhe a aparência. A luz não aparece a olhos mal constituídos, e quando os olhos são inundados de uma grande luz, uma luz inferior não lhes é sensível. Mesmo as qualidades primeiras (conforme a vossa denominação), por exemplo, a unidade e o número, não podem aparecer como é necessário: pois, como o Sr. Descartes já disse, um globo tocado pelos dedos de certa maneira aparece como duplo e os espelhos ou vidros talhados em facetas multiplicam o objeto. Por conseguinte, não segue que aquilo que não aparece sempre da mesma maneira, não seja uma qualidade do objeto, e que sua imagem não se lhe assemelhe. Quanto ao calor, quando a nossa mão está muito quente, o calor médio da água não se faz sentir, mas antes tempera o calor da mão, e em razão disso a água nos parece fria; da mesma forma como a água salgada do mar Báltico, misturada com a água do mar de Portugal, diminuiria o seu teor específico de sal, embora a primeira também seja salgada. Assim, de algum modo se pode dizer que o calor pertence à água de um banho, embora possa parecer fria a alguém, como o mel se denomina doce em absoluto, a prata, branca, embora o primeiro pareça a alguns amargo, e a prata pareça amarela a alguns doentes; com efeito, a denominação se faz pelo que é mais comum: permanece todavia verdade que, quando o órgão e o meio são constituídos como deve ser, os movimentos internos e as ideias que os representam à alma se parecem aos movimentos de objeto que causam a cor, o calor, a dor etc., ou, o que aqui é a mesma coisa, o exprimem por uma relação bastante exata, embora esta relação não nos apareça distintamente, pelo fato de não podermos distinguir esta multidão de pequenas impressões, nem na nossa alma nem no nosso corpo nem naquilo que está fora.] § 24. FILALETO - Não consideramos as qualidades que tem o sol de branquear e de amolecer a cera ou de endurecer a lama senão como simples potências, sem nada conceber no sol que se pareça a esta brancura e moleza, ou a esta dureza: ao passo que o calor e a luz são considerados comumente qualidades reais do sol. Todavia, bem considerando as coisas, essas qualidades de luz e de calor, que são as percepções em mim, não estão no sol de maneira diferente que as mudanças produzidas na cera, quando esta é branqueada ou fundida. TEÓFILO - [Alguns levaram esta doutrina tão longe a ponto de quererem persuadir-nos de que, se alguém pudesse tocar o sol, não encontraria lá nenhum calor. O sol imitado que se faz sentir no foco de um espelho ou vidro ardente, pode desconvencer as pessoas. Entretanto, no que concerne à comparação entre a faculdade de aquecer e a de fundir, ousaria dizer que se a cera fundida ou branqueada tivesse sentimentos, ela também sentiria algo de semelhante ao que sentimos quando o sol nos aquece, e diria, se o pudesse, que o sol é quente, não porque a sua brancura se pareça ao sol (visto que quando os rostos são tostados pelo sol, a sua cor marrom se lhe pareceria também), mas porque existem na cera movimentos que têm uma relação aos movimentos do sol que as causa: a sua brancura poderia provir de uma outra causa, mas não os movimentos que ela teve, ao receber a brancura do sol.] CAPÍTULO IX A PERCEPÇÃO § 1. FILALETO - Vamos agora às ideias de reflexão em particular. A percepção é a primeira faculdade da alma que é ocupada pelas nossas ideias. É também a primeira e a mais simples ideia que recebemos pela reflexão. O pensamento significa muitas vezes a operação do espírito sobre as suas próprias ideias, quando age e considera uma coisa com certo grau de atenção voluntária: mas naquilo que se chama percepção, o espírito é em geral puramente passivo, não podendo deixar de perceber o que percebe atualmente. TEÓFILO - [Poder-se-ia talvez acrescentar que os animais têm percepção, e que não é necessário que tenham pensamentos, ou seja, que tenham reflexão ou o que possa ser objeto dela. Também nós temos pequenas percepções, das quais não nos damos conta no presente estado. É verdade que poderíamos muito bem percebê-las e refletir sobre elas, se não fôssemos desviados pela sua multidão, que divide o nosso espírito, ou se não fossem apagadas, ou melhor, obscurecidas pelas percepções maiores.] § 4. FILALETO - Reconheço que, quando o espírito está ocupado em contemplar certos objetos, não percebe de forma alguma a impressão que certos corpos produzem sobre o órgão do ouvido, embora a impressão seja bastante forte; todavia, não provém dali nenhuma percepção, se a alma não tomar conhecimento algum. TEÓFILO - Gostaria de distinguir melhor entre percepção e perceber. A percepção da luz ou da cor, por exemplo, da qual nos damos conta (percebemos) se compõe de uma série de pequenas percepções, das quais não nos damos conta (não percebemos), sendo que um ruído de que temos percepção, mas no qual não prestamos atenção, se toma perceptível por uma pequena adição ou aumento. Com efeito, se o que precede não tivesse nenhuma influência sobre a alma, também esta pequena adição não teria nenhuma. Já toquei este ponto no capítulo segundo do presente livro, § 11, 12, 15 etc. § 8. FILALETO - Vem a propósito observar aqui que as ideias que nos vêm por sensação, são muitas vezes alteradas pelo julgamento do espírito das pessoas adultas sem que elas se deem conta. A ideia de um globo de cor uniforme representa um círculo plano sombreado e iluminado de maneira diferente. Todavia, como somos habituados a distinguir as imagens dos corpos e as mudanças das reflexões da luz segundo as figuras das suas superfícies, colocamos, no lugar daquilo que nos aparece, a própria causa da imagem, e confundimos o julgamento com a visão. TEÓFILO - Nada de mais verdadeiro; é isso que fornece à pintura o meio de nos enganar pelo artifício de uma perspectiva bem entendida. Quando os corpos têm extremidades planas, podemos representa-los sem empregar as sombras, dando-lhes apenas contornos e fazendo simplesmente pinturas ao modo dos chineses, porém mais proporcionadas que as deles. É como se costuma desenhar as medalhas, a fim de que o desenhador se afaste menos dos traços precisos dos antigos. Entretanto, não se pode distinguir exatamente, pelo desenho, o interior de um círculo do interior de uma superfície esférica limitada por esse círculo, sem o auxílio das sombras, visto que o interior de ambos não tem pontos distinguidos nem traços distinguentes, embora haja uma grande diferença que deve ser assinalada. Esta é a razão pela qual o Sr. Desargues deu normas sobre a força das tintas e das sombras. Por conseguinte, quando uma pintura nos engana, existe um duplo erro nos nossos julgamentos; primeiramente colocamos a causa como efeito, crendo ver imediatamente o que constitui a causa da imagem, no que nos assemelhamos algo a um cão que late contra um espelho. Pois só vemos propriamente a imagem, e só somos afetados pelos raios. E já que os raios da luz têm necessidade de tempo - por mais breve que seja - é possível que o objeto seja destruído neste intervalo, e já não subsista quando o raio atinge o olho; ora, o que não mais existe, não pode ser objeto presente da vista. Em segundo lugar enganamo-nos ao tomar uma causa pela outra, acreditando que aquilo que não provém senão de uma pintura plana é derivado de um corpo, de modo que neste caso existe nos nossos julgamentos ao mesmo tempo uma metonímia e uma metáfora: com efeito, as próprias figuras de retórica se transformam em sofismas quando abusam de nós. Esta confusão do efeito com a causa, verdadeira ou pretendida, entra muitas vezes nos nossos julgamentos também alhures. E assim que sentimos os nossos corpos ou aquilo que nos toca, e que mexemos os nossos braços, por uma influência física imediata, que julgamos constituir o intercâmbio entre a alma e o corpo, ao passo que na verdade só sentimos e mudamos dessa maneira o que está em nós. FILALETO - Aproveito a ocasião para propor-vos um problema, que o sábio Sr. Molineux, o qual emprega tão utilmente o seu gênio para fazer avançar as ciências, comunicou ao ilustre Sr. Locke. Eis aqui mais ou menos os seus termos: suponhamos um cego de nascença, que seja no momento um homem adulto, ao qual tenhamos ensinado a distinguir pelo tato um cubo de um globo do mesmo metal, e mais ou menos da mesma espessura, de sorte que quando ele toca um e outro, ele possa dizer qual é o cubo e qual é o globo. Suponhamos que estando o cubo e o globo postos sobre a mesa, este cego venha a gozar da vista. Pergunta-se se, ao vê-los sem tocar, ele poderia discerni-los, e dizer qual é o cubo e qual é o globo. Rogo-vos que me digais qual é a vossa opinião. TEÓFILO - Necessitaria tempo para meditar sobre esta questão, que me parece bastante curiosa: mas uma vez que tendes pressa para a resposta, ousarei dizer-vos, entre nós, que, supondo que o cego saiba que as duas figuras que vê são as do cubo e do globo, poderá discerni-las e dizer sem tocar: este é o globo, este é o cubo. FILALETO - Tenho receio de ter que coloca-lo entre aqueles que responderam incorretamente ao Sr. Molineux. Pois ele comunicou na carta que continha esta questão, que, tendo proposto, ao ensejo do Ensaio do Sr. Locke sobre o Entendimento, a diversas pessoas de espírito muito penetrante, encontrou apenas uma que de imediato lhe desse a resposta que ele considerava correta, embora se tenham convencido de seu erro após ter ouvido as razões dele. A resposta deste penetrante e judicioso autor é negativa: pois - acrescenta ele - embora este cego tenha aprendido por experiência de que maneira o globo e o cubo afetam seu tato, ainda não sabe que aquilo que afeta o tato desta ou daquela maneira deve atingir os olhos desta ou daquela maneira, nem que ângulo avançado de um cubo, que aperta a sua mão de maneira desigual, deve aparecer aos seus olhos tal como aparece no cubo. O autor do Ensaio declara ser inteiramente do mesmo parecer. TEÓFILO - Talvez o Sr. Molineux e o autor do Ensaio não difiram tanto do meu pensamento quanto parece à primeira vista, e as razões da opinião deles, contidas aparentemente na carta do primeiro - o qual se serviu dela com êxito para convencer as pessoas da sua resposta não correta - foram talvez suprimidas propositadamente pelo segundo para exercitar mais o espírito dos leitores. Se quiserdes pesar a minha resposta, vereis que coloquei uma condição que se pode considerar compreendida na questão: é que não se trata de discernir somente, e que o cego saiba que os dois corpos figurados que deve discernir se encontram ali, e que assim cada uma das aparências que ele vê, é a do cubo ou a do globo. Neste caso parece-me indubitável que o cego que acaba de recuperar a vista pode discerni-los pelos princípios da razão, juntamente com aquilo que o tato lhe forneceu antes em termos de conhecimento sensorial. Pois não falo do que ele fará talvez de fato e no momento, estupefato e confundido pela novidade ou pouco habituado a tirar consequências. O fundamento da minha opinião está em que no globo não existem pontos distinguidos do lado do próprio globo, pois tudo nele é unido e sem ângulos, ao passo que no cubo existem oito pontos distinguidos de todos os outros. Se não houvesse este meio de distinguir as figuras, um cego não poderia aprender os rudimentos de uma geometria natural, visto que o mais das vezes se aprende a geometria só pela vista, sem servir-se do tato, como poderia e até deveria fazer um paralítico ou outra pessoa à qual o tato faltasse quase completamente. É necessário que essas duas geometrias, a do cego e a do paralítico, se encontrem, concordem e até voltem às mesmas ideias, embora não haja imagens comuns. Isto mostra também como se deve distinguir as imagens das ideias exatas, que consistem nas definições. Com efeito, seria algo de muito curioso e até de instrutivo examinar bem as ideias de um cego de nascença, ouvir as descrições que faz das figuras. Pois ele pode chegar a isso, podendo mesmo compreender a doutrina óptica, enquanto é dependente das ideias distintas e matemáticas, embora não consiga conceber o que é o claro-confuso, isto é, a imagem das luzes e das cores. Razão pela qual certo cego de nascença, após ter ouvido as lições de óptica, que parecia compreender bastante, respondia a alguém que lhe perguntava o que pensava da luz, que imaginava ser algo de agradável como o açúcar. Seria, igualmente, importante examinar as ideias que um homem surdo e mudo de nascença pode ter das coisas não figuradas, das quais temos geralmente a descrição em palavras, ideias que ele deve ter de uma forma completamente diferente, embora possa ser equivalente à nossa, assim como a escritura dos chineses produz um efeito equivalente à do nosso alfabeto, embora seja infinitamente diferente dele e poderia parecer inventada por um surdo. Ouço falar, por intermédio de um grande príncipe, de um surdo de nascença em Paris, e cujos ouvidos chegaram finalmente a cumprir a sua função, que ele aprendeu agora a língua francesa (pois foi da corte da França que o mandaram há pouco tempo) e que poderá dizer coisas bem curiosas sobre as concepções que possuía em seu estado anterior e sobre a mudança dessas ideias quando começou a exercer o sentido do ouvido. Essas pessoas surdas e mudas de nascença podem ir mais longe do que se pensa. Havia um em Oldenburg, ao tempo do último conde, que se tornara um bom pintor e de resto era uma pessoa muito razoável. Um homem muito sábio, nascido na Bretanha, contou-me que em Blainville, a dez léguas de Nantes, pertencente ao duque de Rohan, havia por volta de 1690 um pobre que morava em uma cabana, próximo do castelo fora da cidade, que tinha nascido surdo e mudo, e que entregava cartas na cidade e encontrava as casas seguindo certos sinais que as pessoas habituadas a empregá-lo lhe faziam. Por fim o pobre tornou-se também cego, mas mesmo assim não deixou de prestar algum serviço, levando cartas à cidade, baseado naquilo que lhe assinalavam pelo tato. Ele tinha uma tábua na sua cabana, que ia desde a porta até o lugar onde ele tinha os pés, e lhe fazia conhecer, pelo movimento, que ela recebia se alguém entrasse em sua casa. Os homens são bem negligentes em não tomar conhecimento exato dos modos de pensar de tais pessoas. Se esta pessoa não vive mais, existe a probabilidade de que algum habitante do lugar possa ainda fornecer alguma informação sobre ele e nos dizer como lhe faziam entender as coisas que ele devia executar. Para voltarmos àquilo que um cego de nascença, que começa a enxergar, julgaria de um globo e de um cubo ao vê-los sem tocá-los, respondo que os discernirá como acabo de dizer, se alguém o advertir de que uma ou outra das aparências ou percepções que ele terá pertence ao cubo e ao globo; sem esta indicação prévia, reconheço que ele não se lembrará logo de pensar que essas espécies de pinturas que ele se formará no fundo dos olhos e que poderiam provir de uma pintura plana sobre a mesa, representam corpos, até o momento em que o tato não o tiver convencido disso, ou então, à força de raciocinar sobre os raios ópticos, tiver compreendido pelas luzes e sombras que existe uma coisa que faz parar tais raios, e que deve ser justamente o que lhe resta no tato: a isso chegará, enfim, quando vir rolar este globo e este cubo, e mudar de sombras e de aparências conforme o movimento, ou mesmo quando, permanecendo os dois corpos em repouso, a luz que os ilumina mudar de lugar, ou os seus olhos mudarem de situação. Com efeito, são mais ou menos estes os meios de que dispomos para discernir de longe um quadro ou uma perspectiva que representa um corpo, do corpo verdadeiro. § 11. FILALETO - [Voltemos agora a falar da percepção em geral.] Ela distingue os animais dos seres inferiores. TEÓFILO - [Inclino-me a crer que existe alguma percepção e apetição mesmo nas plantas, devido à grande analogia que há entre as plantas e os animais; e se existe uma alma vegetal, como é a opinião comum, é necessário que ela tenha percepção. Todavia, não deixo de atribuir ao mecanismo tudo aquilo que acontece no corpo das plantas e dos animais, excetuada a sua primeira formação. Assim, concordo em que o movimento da planta que denominamos sensitiva vem do mecanismo, e não aprovo que se recorra à alma, quando se trata de explicar o detalhe dos fenômenos das plantas e dos animais.] § 14. FILALETO - E verdade que eu mesmo não posso deixar de crer que mesmo nesta espécie de animais que são as ostras e os mexilhões exista alguma fraca percepção, pois sensações vivas só serviriam para incomodar um animal forçado a permanecer sempre no lugar em que o acaso o colocou, onde é regado pela água fria ou quente, limpa ou suja, conforme ela vem. TEÓFILO - [Muito bem. Creio que se possa dizer mais ou menos a mesma coisa das plantas. Entretanto, no que concerne ao homem, as suas percepções são acompanhadas de poder de refletir, que passa ao ato no momento em que existe matéria para isto. Todavia, quando o homem se reduz a um estado como que letárgico e quase destituído de sentimentos, a reflexão e a apercepção cessam, e não se pensa em verdades universais. Contudo, as faculdades e disposições inatas e adquiridas, e mesmo as impressões que recebemos em tal estado de confusão não cessam, e não são apagadas, embora as esqueçamos; elas terão a sua vez para contribuir um dia para algum efeito notável, pois nada é inútil na natureza, toda confusão deve esclarecer-se; os próprios animais chegados a um estado de estupidez, devem um dia voltar a percepções mais elevadas, e uma vez que as substâncias simples duram sempre, não se deve julgar sobre a eternidade baseados em alguns anos.] CAPÍTULO X A RETENÇÃO. § 1. 2. FILALETO - A outra faculdade do espírito, pela qual este avança mais no conhecimento das coisas do que pela simples percepção, é o que denomino retenção, a qual conserva os conhecimentos recebidos pelos sentidos ou pela reflexão. A retenção se faz de duas maneiras: conservando atualmente a ideia presente - o que chamo contemplação - e guardando o poder de reconduzi-la ao espírito - o que se denomina memória. TEÓFILO - [Retemos também e contemplamos os conhecimentos inatos, e muitas vezes não é possível distinguir o inato do adquirido. Existe também uma percepção das imagens: ou das que existem já desde algum tempo, ou das que se formam novamente em nós.] § 2. FILALETO - Acreditamos entre nós que tais imagens ou ideias cessam de ser alguma coisa desde o momento em que não são atualmente percebidas, e que afirmar que existem na memória ideias de reserva não significa, no fundo, outra coisa senão que a alma tem, em várias ocasiões, o poder de despertar as percepções que já teve, com um sentimento que a convence ao mesmo tempo de que teve anteriormente essas espécies de percepções. TEÓFILO - [Se as ideias fossem apenas as formas ou modos dos pensamentos, cessariam com eles. Vós mesmo, porém, reconhecestes que elas constituem os objetos internos dos pensamentos, e assim sendo podem subsistir. Surpreendo-me ante o fato de que volteis de novo a essas potências ou faculdades nuas, que aparentemente rejeitaríeis nos filósofos escolásticos. Seria necessário explicar um pouco mais distintamente em que consiste esta faculdade e como se exerce; isso mostraria que existem disposições que constituem restos das impressões passadas em uma alma, bem como no corpo, mas delas nos damos conta somente quando a memória encontra alguma ocasião para isso. Se nada restasse dos pensamentos passados desde o momento em que não se pensa mais neles, não seria possível explicar como podemos conservar a recordação deles; recorrer para isto à tal faculdade nua equivale a não dizer nada de inteligível.] CAPÍTULO XI O DISCERNIMENTO OU A FACULDADE DE DISTINGUIR AS IDEIAS. § 1. FILALETO - Da faculdade de discernir as ideias depende a evidência e a certeza de muitas proposições que passam por verdades inatas. TEÓFILO - [Reconheço que para pensar nessas verdades inatas e para distingui-las, necessita-se discernirnento; nem por isso, porém, deixam de. ser inatas.] § 2. FILALETO - Ora, a vivacidade do espírito consiste em reconduzir prontamente as ideias; existe, porém, o julgamento para representar-mo-las e distingui-las exatamente. TEÓFILO - [Talvez um e outro sejam vivacidade de imaginação, e o julgamento consiste talvez no exame das proposições segundo a razão.] FILALETO - [Não estou muito longe de concordar com esta distinção do espírito e do julgamento. E muitas vezes é sinal de bom julgamento não usar demais dele. Por exemplo: peca-se de alguma forma contra certos pensamentos espirituais, se os examinarmos com normas severas da verdade e do bom raciocínio.] TEÓFILO - [Esta observação é boa; é necessário que os pensamentos espirituais tenham algum fundamento, pelo menos aparente, na razão; todavia, não se deve esquadrinha-los com demasiado escrúpulo, como não se deve olhar um quadro de muito perto. É nisto que me parece que o Padre Bouhours peca mais de uma vez na sua arte de pensar nas obras de espírito, como quando despreza esta brincadeira de Lucano, victrix causa Diis placuit, sed victa Catoni.] § 4. FILALETO - Outra operação do espírito, em relação às suas ideias, é a comparação que faz de uma ideia com a outra com respeito à extensão, aos graus, ao tempo, ao lugar, ou a alguma outra circunstância: é disso que depende este grande número de ideias compreendidas sob o termo relação. TEÓFILO - [Em meu modo de entender, a relação é mais geral do que a comparação. Pois as relações são ou de comparação ou de concurso. As primeiras dizem respeito à concordância ou discordância (entendo estes termos em um sentido menos vasto), a qual compreende a semelhança, a igualdade, a desigualdade etc. As segundas encerram alguma conexão, como entre a causa e o efeito, entre o todo e as partes, entre a situação e a ordem etc.] § 6. FILALETO - A composição das ideias simples, para fazer delas ideias complexas, é também uma operação do nosso espírito. Pode-se reduzir a isso a faculdade de estender as ideias, colocando junto as que são da mesma espécie, como ao formar uma dúzia de várias unidades. TEÓFILO - [Sem dúvida, uma coisa é tão composta como a outra, mas a composição de ideias semelhantes é mais simples que a composição das ideias diferentes.] § 7. FILALETO - Uma cadela alimentará filhotes de raposa, brincará com eles e terá por eles a mesma paixão que teria pelos seus filhotes, se pudermos fazer com que as pequenas raposas mamem devidamente nela, para que o leite se espalhe por todo o corpo delas. Não parece que os animais que têm uma quantidade de filhotes de uma vez, tenham qualquer conhecimento em relação ao seu número. TEÓFILO - [O amor dos animais provém de um consentimento que é aumentado pelo hábito. Entretanto, no que concerne à multidão precisa, os próprios homens não podem saber os números das coisas a não ser por algum indício como em se servindo de termos numerais para contar, ou das disposições em figura, que deem a conhecer logo, sem contar, se falta alguma coisa.] § 10. FILALETO - Os animais não formam abstrações. TEÓFILO - [Sou da mesma opinião. Eles conhecem aparentemente a brancura e a percebem no giz como na neve; mas isso não é ainda abstração, pois esta exige uma consideração do comum, separada do particular, e por conseguinte nela entra o conhecimento das verdades universais, que não é dado aos animais. Nota-se muito bem igualmente que os animais que falam não utilizam palavras para exprimir as ideias gerais, e que os homens privados do uso da palavra e dos termos não deixam de fazer outros sinais gerais. Estou encantado por ver que notais tão bem, aqui e alhures, as vantagens da natureza humana.] § 11. FILALETO - Se os animais possuem algumas ideias e não são meras máquinas, como pretendem alguns, não deveríamos negar que possuem a razão em certo grau. Para mim é tão evidente que eles raciocinam, como é manifesto que têm sentimento. Todavia, é apenas sobre as ideias particulares que raciocinam, conforme os seus sentidos lhes representam tais ideias. TEÓFILO - [Os animais passam de uma imaginação à outra pela conexão que outrora sentiram nessas imaginações; por exemplo, quando o patrão toma um bastão, o cão pensa em ser surrado. Aliás, em muitas ocasiões as crianças, bem como os demais homens, não procedem de forma diferente nas suas passagens de um pensamento ao outro. Poderíamos denominar isso de consequência e raciocínio, em um sentido muito vasto dos termos. Todavia, prefiro seguir o uso comum, consagrando tais termos para o homem e restringindo-os ao conhecimento de alguma razão da conexão das percepções, que as sensações sozinhas não podem dar; uma vez que o seu efeito não é senão fazer com que naturalmente aguardemos outra vez esta mesma conexão que notamos anteriormente, embora talvez as razões não sejam mais as mesmas; o que frequentemente engana aqueles que se deixam governar apenas pelos sentidos.] § 13. FILALETO - Aos imbecis falta a vivacidade, a atividade e o movimento nas faculdades intelectuais, sendo que por isso estão privados do uso da razão. Os loucos parecem encontrar-se no extremo oposto, pois não me parece que tenham perdido a faculdade de raciocinar, mas apenas façam mal a ligação de certas ideias: consideram-nas verdades e se enganam da mesma forma que aqueles que raciocinam corretamente com princípios falsos. Assim, por exemplo, podereis observar um louco que, imaginando ser rei, pretende por uma justa consequência ser servido, honrado e obedecido conforme a sua dignidade. TEÓFILO - Os imbecis não exercem a razão, diferindo de alguns estúpidos que têm o julgamento em ordem, mas não tendo a concepção rápida, tornam-se desprezíveis e incômodos, como seria aquele que quisesse jogar hombre com pessoas consideráveis e pensasse demais no partido que deve escolher. Recordo-me que um homem versado, tendo perdido a memória devido ao uso de certas drogas, foi reduzido a este estado, mas a sua capacidade de julgar aparecia sempre. Um louco universal carece de julgamento em quase todas as ocasiões. Todavia, a vivacidade da sua imaginação pode torná-lo agradável. Existem, porém, loucos particulares, que se formam uma falsa suposição sobre um ponto importante da sua vida e raciocinam corretamente sobre isto, como vós mesmo observastes. Tal é um homem bastante conhecido em certa corte, que se acredita chamado a dirimir as questões dos protestantes e a colocar ordem na França, sendo por isso que Deus fez passar pelo seu corpo as maiores personalidades, para enobrecê-lo: ele pretende desposar todas as princesas que vê capazes de casamento, mas isso depois de tê-las santificado, a fim de ter uma linhagem santa para governar o mundo; ele atribui todas as desgraças da guerra à pouca consideração que se tem para com os seus pontos de vista. Ao falar com algum soberano, toma todas as medidas necessárias para não rebaixar a sua dignidade. Quando se começa a raciocinar com ele, defende-se tão bem que cheguei a duvidar mais de uma vez se a sua loucura não é fingimento, pois de fato existe bastante disso. Todavia, os que o conhecem de perto me asseguram que ele é um autêntico louco. CAPÍTULO XII AS IDEIAS COMPLEXAS. FILALETO - O entendimento se assemelha bastante a um gabinete inteiramente obscuro, que só tem algumas pequenas aberturas para deixar entrar por fora as imagens externas e visíveis, de maneira que se essas imagens, entrando neste gabinete obscuro, podem ali permanecer e ser colocadas em ordem, de sorte a podermos encontrá-las na ocasião devida, haveria uma grande semelhança entre este gabinete e o entendimento humano. TEÓFILO - [Para tornar a semelhança mais perfeita, seria necessário supor que na câmara escura houvesse uma tela para receber as imagens, tela que não fosse unida mas diversifica da por pregas representando os conhecimentos inatos; além disso, que a tela ou membrana, sendo estendida, tivesse uma espécie de mola ou força de agir, e mesmo uma ação ou reação adaptada tanto para as pregas passadas como para as recém-chegadas das impressões das imagens. Esta ação consistiria em certas vibrações ou oscilações, tais como se observam em uma corda distendida quando a tocamos, de maneira que desse uma espécie de som musical. Com efeito, não recebemos apenas imagens ou vestígios no cérebro, mas formamos também novos, quando consideramos as ideias complexas. Assim sendo, é necessário que a tela que representa o nosso cérebro seja ativa e elástica. Esta representação explicaria de maneira passável o que acontece no nosso cérebro; quanto à alma, que é uma substância simples ou mônada, ela representa sem extensão essas mesmas variedades das massas extensas e tem a percepção delas.] § 3. FILALETO - Ora, as ideias complexas são ou modos, ou substâncias, ou relações. TEÓFILO - [Esta divisão dos objetos do nosso pensamento em substâncias, modos e relações agrada-me bastante. Acredito que as qualidades são apenas modificações das substâncias e o entendimento lhes acrescenta as relações. Isso tem mais consequências do que se pensa.] FILALETO - Os modos são ou simples (como uma dúzia, uma vintena, que são fatos das ideias simples de uma mesma espécie, isto é, das unidades) ou mistos (como a beleza), nos quais entram ideias simples de diferentes espécies. TEÓFILO - [Talvez a dúzia e a vintena sejam apenas relações e não sejam constituídas senão pela relação ao entendimento. As unidades estão à parte e o entendimento as considera junto, por mais dispersas que sejam. Todavia, embora as relações sejam do entendimento, não são destituídas de fundamento e de realidade. Pois o primeiro entendimento é a origem das coisas; e mesmo a realidade de todas as coisas, excetuadas as substâncias simples, não consiste senão no fundamento das percepções dos fenômenos das substâncias simples. Acontece muitas vezes o mesmo quanto aos modos mistos, isto é, seria necessário cataloga-los antes entre as relações.] § 6. FILALETO - As ideias das substâncias são certas combinações de ideias simples que se supõe representarem coisas particulares e distintas subsistentes por si mesmas, sendo que entre essas ideias se considera sempre a noção obscura de substância como a primeira e a principal, que supomos sem conhecê-la, qualquer que ela seja em si mesma. TEÓFILO - [A ideia da substância não é tão obscura como se pensa. Podemos conhecer dela o que é necessário, e o que se conhece nas outras coisas; o próprio conhecimento dos concretos é sempre anterior ao conhecimento dos abstratos; conhecemos mais o quente do que o calor.] § 7. FILALETO - Em relação às substâncias existem também duas espécie de ideias: uma, das substâncias singulares, como a de um homem ou de uma ovelha; a outra, de várias substâncias somadas, como a de um exército de homens ou a de um rebanho de ovelhas; essas coleções formam uma só ideia. TEÓFILO - [Esta unidade da ideia dos conjuntos é muito verdadeira, mas no fundo é necessário reconhecer que esta unidade constitui apenas uma relação, cujo fundamento está naquilo que se encontra em cada uma das substâncias singulares tomadas à parte. Assim sendo, esses seres por agregação só têm uma unidade mental; por conseguinte, também a sua entidade é de certo modo mental ou de fenômeno, como a do arco-íris.] CAPÍTULO XIII OS MODOS SIMPLES, PRIMEIRAMENTE OS REFERENTES AO ESPAÇO. § 3. FILALETO - O espaço considerado em relação ao comprimento que separa dois corpos denomina-se distância; em relação ao comprimento, à largura e à profundidade, pode denominar-se capacidade. TEÓFILO - [Para falar mais corretamente, a distância de duas coisas situadas (sejam pontos ou extensões) é a grandeza da menor linha possível que se possa prolongar de um a outro. Esta distância pode ser considerada absolutamente ou em certa figura, que compreende as duas coisas distantes; por exemplo, a linha reta é absolutamente a distância entre dois pontos. Todavia, estando esses dois pontos em uma mesma superfície esférica, a distância desses dois pontos nesta superfície é o comprimento do menor grande arco do círculo que se pode prolongar de um ponto ao outro. Convém, igualmente, notar que a distância não existe somente entre corpos, mas também entre as superfícies, linhas e pontos. Pode-se dizer que a capacidade ou o intervalo entre dois corpos ou duas outras extensões, ou entre uma extensão e um ponto, é o espaço constituído por todas as linhas mais curtas que se podem prolongar entre os pontos de um e do outro. Este intervalo é sólido, exceto quando as duas coisas situadas estão em uma mesma superfície, e as linhas mais curtas entre os pontos das coisas situadas devem também cair nesta superfície.] § 4. FILALETO - Além do que existe na natureza, os homens estabeleceram nos seus espíritos as ideias de certos comprimentos determinados, como a de uma polegada ou um pé. TEÓFILO - [Não deveriam fazê-lo. Pois é impossível ter a ideia de um comprimento determinado preciso. Não poderíamos dizer nem compreender pelo espírito o que é uma polegada ou um pé. Nem se deveria conservar a significação desses termos senão por medidas reais que se supõem não mutáveis, pelas quais se possa sempre reencontrá-las. Assim é que o Sr. Creave, matemático inglês, quis servir-se das pirâmides do Egito, que duraram bastante e durarão ainda por muito tempo, para conservar as nossas medidas, assinalando para a posteridade as proporções que elas têm em certos comprimentos marcados em uma dessas pirâmides. É verdade que há pouco se descobriu que os pêndulos servem para perpetuar as medidas(mensuris rerum ad posteros transmittendis), como demonstraram os Srs. Hugens, Mouton e Buratini, este último da Polônia, marcando a proporção dos nossos comprimentos com a de um pêndulo, que bate precisamente um segundo (por exemplo), isto é, a 86 400 ésima parte de uma revolução das estrelas fixas ou de um dia astronômico; o Sr. Buratini escreveu sobre isso um tratado especial, do qual vi o manuscrito. Entretanto, existe ainda uma imperfeição nessa medida dos pêndulos: E necessário limitar-se a certos países, pois os pêndulos, para bater em um mesmo tempo, têm necessidade de um comprimento menor debaixo da linha. Além disso, é necessário supor a constância da medida real fundamental, isto é, da duração de um dia ou de uma revolução do globo da terra ao redor do seu eixo, e também da causa da gravidade, para não falar de outras circunstâncias.] § 5. FILALETO - Observando como as extremidades se terminam ou por linhas retas que formam ângulos distintos, ou por linhas curvas nas quais não se pode perceber nenhum ângulo, formamo-nos a ideia da figura. TEÓFILO - [Uma figura superficial é terminada por uma linha ou por linhas: mas a figura de um corpo pode ser limitada sem linhas determinadas, como, por exemplo, a de uma esfera. Uma só linha reta ou superfície plana não pode compreender nenhum espaço, nem formar nenhuma figura. Todavia, uma só linha pode compreender uma figura superficial, por exemplo, o círculo, a oval, como também uma só superfície curva pode compreender uma figura sólida, tal como a esfera ou o esferoide. Contudo, não somente várias linhas retas ou superfícies planas, mas também várias linhas curvas, podem concorrer junto e formar até ângulos entre si, quando uma não for a tangente da outra. Não é fácil dar a definição da figura em geral conforme o uso dos geômetras. Dizer que é uma extensão limitada seria demasiado geral, pois uma linha reta, por exemplo, embora terminada pelas duas extremidades, não é uma figura, e nem mesmo duas retas poderiam construí-la. Dizer que é uma extensão limitada por uma extensão, não é suficientemente geral, pois a superfície esférica inteira é uma figura, e sem embargo não é limitada por nenhuma extensão. Pode-se ainda dizer que a figura é uma extensão limitada, na qual existe uma infinidade de caminhos de um ponto ao outro. Isso compreende as superfícies limitadas sem linhas terminantes, que a definição precedente não compreendia, e exclui as linhas, visto que de um ponto a um outro em uma linha só existe um caminho ou um número determinado de caminhos. Entretanto, será ainda melhor dizer que a figura é uma extensão limitada que pode receber uma seção extensa, ou então, que tem largura, termo do qual também não se tinha dado uma definição até agora.] § 6. FILALETO - Pelo menos todas as figuras não são outra coisa senão os modos simples do espaço. TEÓFILO - [Os modos simples, segundo vós, repetem a mesma ideia, mas nas figuras não é sempre a repetição da mesma coisa. As curvas são bem diferentes das linhas retas e entre si. Assim sendo, não sei como a definição do modo simples tem lugar aqui.] § 7. FILALETO - [Não devemos tomar as nossas definições em sentido demasiado estrito. Passemos, porém, da figura ao lugar.] Quando encontramos todas as peças nos mesmos quadrinhos do tabuleiro de xadrez onde as tínhamos deixado, dizemos que estão todas no mesmo lugar, embora talvez o tabuleiro tenha sido transportado a um outro lugar. Dizemos também que o tabuleiro está no mesmo lugar, se permanece no mesmo lugar da cabine do navio, embora este se tenha movido. Diz-se também que o navio está no mesmo lugar, desde que conserve a mesma distância em relação às partes dos países vizinhos, embora a terra tenha talvez dado urna ou mais revoluções. TEÓFILO - [O lugar é, ou particular - que se considera em relação a certos corpos - ou universal, que se refere a tudo, e em relação ao qual todas as mudanças com relação a qualquer corpo são tidas em consideração. Mesmo que não houvesse nada de fixo no universo, o lugar de cada coisa não deixaria de ser determinado pelo raciocínio, se houvesse meio de registrar todas as mudanças, ou se a memória de uma criatura fosse suficiente para isso, como se diz que os árabes jogam xeque de memória e a cavalo. Contudo, o que não conseguimos compreender não deixa de ser determinado na realidade das coisas.] § 15. FILALETO - Se alguém me perguntar o que é o espaço, estou disposto a responder-lhe, se antes me disser o que é a extensão. TEÓFILO - [Gostaria de saber dizer o que é a febre ou alguma outra doença, com a mesma clareza com que sei explicar a natureza do espaço. A extensão é a abstração do corpo extenso. Ora, o corpo, extenso, é um corpo contínuo, cujas partes são coexistentes ou existem ao mesmo tempo.] § 17. FILALETO - Se perguntarmos se o espaço sem corpo é substância ou acidente, responderei que não sei nada. TEÓFILO - [Tenho razões para crer que me acusarão de vaidade ao querer determinar o que reconheceis não saber. Entretanto, acredito que sabeis mais do que dizeis e credes. Alguns acreditaram que Deus é o lugar das coisas. Lessius e o Sr. Guerike, se não me engano, tinham essa opinião, mas neste caso o lugar contém algo a mais do que aquilo que atribuímos ao espaço, que despojamos de toda ação: desta forma, ele não é mais uma substância do que o tempo, e se tem partes, não pode ser Deus. É uma relação, uma ordem não só entre os seres existentes, mas também entre os possíveis como se existissem. Todavia, a sua verdade e realidade está fundada em Deus, como todas as verdades eternas.] FILALETO - [Não estou longe do vosso ponto de vista, e conheceis a passagem de São Paulo que diz que nós existimos, vivemos e temos o movimento em Deus. Assim sendo, conforme as diferentes maneiras de considerar, pode-se dizer que o espaço é Deus, podendo-se dizer também que o espaço não é outra coisa senão uma ordem ou uma relação.] TEÓFILO - [Por conseguinte, o melhor será dizer que o espaço é uma ordem mas que Deus é a sua fonte.] § 18. FILALETO - [Todavia, para saber se o espaço é uma substância, seria necessário saber em que consiste a natureza da substância em geral. Ora, nisso existe dificuldade. Se Deus, os espíritos finitos e os corpos participam em comum de uma mesma natureza de substância, porventura não se deverá concluir que diferem pela modificação diferente desta substância?] TEÓFILO - [Se se verificasse esta consequência, seguiria também que Deus, os espíritos finitos e os corpos, participando em comum de uma mesma natureza de ser, só difeririam pela modificação diferente deste ser.] § 19. FILALETO - Os que por primeiro se lembraram de considerar os acidentes uma espécie de seres reais, que necessitam de alguma coisa à qual possam inerir, foram obrigados a inventar o termo substância para servir de apoio aos acidentes. TEÓFILO - [Acreditais, portanto, que os acidentes podem subsistir fora da substância? Ou quereis que não sejam seres reais? Parece que fabricais dificuldades sem razão. Já observei mais acima que as substâncias ou os concretos são concebidos antes que os acidentes ou os abstratos.] FILALETO - Os termos substância e acidente são pouco usados em filosofia, a meu modo de ver. TEÓFILO - [Reconheço que sou de outra opinião, e creio que a consideração da substância constitui um ponto dos mais importantes e dos mais fecundos da filosofia]. § 21. FILALETO - [Só falamos da substância ocasionalmente, perguntando se o espaço é uma substância. Aqui nos basta verificar que ele não é um corpo.] Ninguém ousará tomar o corpo infinito como o espaço. TEÓFILO - [Todavia, o Sr. Descartes e os seus amigos afirmaram que a matéria não tem limites, tomando o mundo indefinido, de sorte que não nos seja possível conceber nele extremidades. Mudaram o termo infinito para indefinido com certa razão; pois não existe jamais um todo infinito no mundo, embora existam sempre todos maiores uns que os outros até o infinito, como demonstrei alhures.] FILALETO - Os que consideram a matéria e a extensão como sendo a mesma coisa, pretendem que as paredes interiores de um corpo oco e vazio se tocariam. Mas o espaço que existe entre dois corpos é suficiente para impedir o contacto mútuo deles. TEÓFILO - [Partilho da vossa opinião, pois embora não admita o vazio, distingo a matéria da extensão e reconheço que se houvesse vazio em uma esfera, os polos opostos na concavidade nem por isso se tocariam. Não acredito, porém, que seja um caso que a perfeição divina admita.] § 23. FILALETO - Todavia, parece que o movimento demonstra o vazio. Quando a menor parte do corpo é tão espessa como um grão de mostarda, é necessário que exista um espaço vazio igual à espessura de um grão de mostarda para fazer com que as partes deste corpo tenham lugar para movimentar-se livremente: acontecerá o mesmo quando as partes da matéria forem cem milhões de vezes menores. TEÓFILO - [É verdade que, se o mundo estivesse cheio de corpúsculos duros que não pudessem flexionar-se nem dividir-se, como se imaginam os átomos, seria impossível que houvesse movimento. Na realidade, porém, não existe dureza original; ao contrário, o original é a fluidez, sendo que os corpos se dividem segundo a necessidade, visto não haver nada que o impeça. Isso tira toda a força do argumento que se pretende tirar do movimento em favor do vazio.] CAPÍTULO XIV A DURAÇÃO E OS SEUS MODOS SIMPLES. § 10. FILALETO - À extensão corresponde a duração. Uma parte da duração, na qual não notamos nenhuma sucessão de ideias, é o que denominamos um instante. TEÓFILO - Esta definição do instante deve ser entendida - conforme acredito - quanto à noção vulgar, como a que o povo tem do ponto. Com efeito, a rigor o ponto e o instante não constituem partes do tempo ou do espaço, e também não têm partes. São apenas extremidades. § 16. FILALETO - Não é o movimento, mas uma sequência constante de ideias que nos dá a ideia da duração. TEÓFILO - [Uma sequência de percepções desperta em nós a ideia da duração, mas não a constitui. As nossas percepções nunca têm uma sequência constante e regular para corresponder à sequência do tempo, que é um contínuo uniforme e simples, como uma linha reta. A mudança de percepções nos dá ocasião de pensar no tempo, e nós o medimos por mudanças uniformes: todavia, mesmo que não houvesse nada de uniforme na natureza, o tempo não deixaria de ser determinado, como o lugar também deixaria de ser determinado se não houvesse nenhum corpo fixo e imóvel. É que conhecendo as regras dos movimentos disformes, pode-se sempre referi-los a movimentos uniformes inteligíveis e por este meio prever o que acontecerá por diferentes movimentos juntos. Neste sentido o tempo constitui a medida do movimento, isto é, o movimento uniforme é a medida do movimento disforme.] § 21. FILALETO - Não se pode conhecer com certeza que duas partes de duração sejam iguais. [É preciso reconhecer que as observações não podem passar de uma aproximação.] Descobriu-se, após uma pesquisa exata, que existe realmente desigualdade nas revoluções diurnas do sol, e não sabemos se as revoluções anuais também não são desiguais. TEÓFILO - [O pêndulo tomou sensível e visível a desigualdade dos dias de um meio-dia ao outro: Solem dicere falsum audet? É verdade que esta desigualdade já era conhecida, e que ela tem as suas regras. Quanto à revolução anual, que compensa as desigualdades dos dias solares, ela poderia mudar com o passar do tempo. A revolução da terra em redor do seu eixo, que se atribui vulgarmente ao primeiro móvel, constitui a nossa melhor medida até agora, e os relógios servem para no-la indicar. Todavia, esta mesma revolução diária da terra pode também mudar com o passar do tempo: e se alguma pirâmide pudesse durar bastante, ou se se construíssem novas, poderíamos perceber isso conservando a longitude dos pêndulos, do qual um número conhecido de batidas chega agora durante esta revolução: conheceríamos também, de certo modo, a mudança, comparando esta revolução com outras, como as dos satélites de Júpiter, pois não existe evidência de que, se houver mudança em umas e nas outras, a mudança seria sempre proporcional.] FILALETO - A nossa medida do tempo seria mais justa se pudéssemos conservar um dia passado para compará-lo com os dias futuros, como conservamos as medidas dos espaços. TEÓFILO - [Em lugar disso, estamos reduzidos a observar os corpos que fazem os seus movimentos em um tempo mais ou menos igual. Tampouco poderemos dizer que uma medida de espaço, como por exemplo, uma vara de madeira ou de metal que guardamos, permaneça perfeitamente a mesma.] § 22. FILALETO - Já que todos os homens medem visivelmente o tempo pelo movimento dos corpos celestes, é bem estranho que não se deixe de definir o tempo como sendo a medida do movimento. TEÓFILO - [Acabo de dizer (§ 16) como se deve entender isso. É verdade que Aristóteles afirma que o tempo é o número, e não a medida do movimento. Com efeito, pode-se dizer que a duração se conhece pelo número dos movimentos periódicos iguais, dos quais um começa quando o outro termina, por exemplo, por tantas revoluções da terra ou dos astros.] § 24. FILALETO - Todavia, antecipamos sobre essas revoluções, e dizer que Abraão nasceu no ano de 2712 do período juliano significa falar de maneira tão inteligível como se contássemos do começo do mundo, embora se suponha que o período juliano começou várias centenas de anos antes que houvesse dias, noites ou anos designados por qualquer revolução do sol. TEÓFILO - [Este vazio que podemos conceber no tempo marca, como o de espaço, que o tempo e o espaço valem tanto para os seres possíveis como para os existentes. De resto, de todas as maneiras cronológicas, a de contar os anos desde o início do mundo é a menos conveniente: não fosse por outro motivo, pela grande diferença que existe entre os 70 intérpretes e o texto hebraico, sem tocar em outras razões.] § 26. FILALETO - Podemos conceber o início do movimento, embora não possamos compreender o começo da duração tomada em toda sua extensão. Podemos também dar limites aos corpos, mas não podemos, fazê-lo com relação ao espaço. TEÓFILO - [É como acabo de dizer que o tempo e o espaço assinalam possibilidades além da suposição das existências. O tempo e o espaço são do tipo das verdades eternas que dizem respeito de maneira igual ao possível e ao existente.] § 27. FILALETO - Com efeito, a ideia do tempo e a da eternidade procedem de uma mesma fonte, pois podemos acrescentar no nosso espírito certos comprimentos de duração, uns aos outros, tantas vezes quantas quisermos. TEÓFILO - [Mas para tirar dali a noção da eternidade, cumpre conceber além disso que a mesma razão subsiste sempre para ir mais longe. É esta consideração da razão que perfaz a noção do infinito ou do indefinido nos progressos possíveis. Assim os sentidos sozinhos não podem formar essas noções. E no fundo podemos dizer que a ideia do absoluto é anterior na natureza das coisas à ideia dos limites que acrescentamos, porém só notamos a primeira começando por aquilo que é limitado e que impressiona os nossos sentidos.] CAPÍTULO XV A DURAÇÃO E A EXPANSÃO CONSIDERADAS JUNTAS. § 4. FILALETO - Admite-se mais facilmente uma duração infinita do tempo que uma expansão infinita do lugar, pelo fato de concebermos uma noção infinita em Deus, e só atribuirmos a extensão à matéria, que é finita, e denominamos os espaços além do universo, imaginários. Todavia (§ 2) Salomão parece ter outro ponto de vista ao dizer, falando de Deus: os céus e os céus dos céus não te podem conter) por minha parte creio que alimenta um conceito demasiado alto do seu entendimento aquele que imagina poder estender os pensamentos para além do lugar onde está Deus. TEÓFILO - [Se Deus tivesse extensão, teria partes. Ora, a duração dá partes apenas às suas operações. Todavia, com relação ao espaço, é necessário atribuir-lhe a imensidade que dá também partes e ordem às operações imediatas de Deus. Ele é a fonte das possibilidades como das existências: das primeiras pela sua essência, das segundas pela sua vontade. Assim sendo, o espaço como o tempo não tem a sua realidade senão dEle, Ele pode preencher o vazio quando lhe aprouver. É assim que Ele se encontra em toda parte.] § 11. FILALETO - Não sabemos que relações os espíritos têm com o espaço, nem como eles participam dele. Sabemos, porém, que participam da duração. TEÓFILO - [Todos os espíritos finitos estão sempre unidos a algum corpo orgânico, e se representam os outros corpos em relação ao deles. Assim sendo, a sua relação com o espaço é tão manifesta como a dos corpos. De resto, antes de encerrar este assunto, acrescentarei uma comparação do tempo e do lugar àquelas que vós trouxestes: se houvesse um vazio no espaço (como, por exemplo, se uma esfera fosse vazia por dentro), poderíamos determinar-lhe a grandeza; mas, se houvesse um vazio no tempo, isto é, uma duração sem mudanças, seria impossível determinar-lhe o comprimento. Daqui segue que se pode refutar aquele que dissesse que dois corpos, entre os quais há um vazio, se tocam; com efeito, dois polos opostos de uma esfera vazia não podem tocar-se, pois a geometria o proíbe: todavia não poderíamos refutar quem afirmasse que dois mundos, dos quais um seria após o outro, se tocam quanto à duração, de modo que um começa necessariamente quando o outro termina, sem que possa haver intervalo. Digo que não se poderia refuta-lo, visto que este intervalo é indeterminável. Se o espaço fosse apenas uma linha, e se o corpo fosse imóvel, também não seria possível determinar o comprimento do vazio entre dois corpos.] CAPÍTULO XVI O NÚMERO. § 4. FILALETO - Nos números, as ideias são mais precisas e mais aptas a serem distinguidas umas das outras do que na extensão, onde não se pode observar ou medir cada igualdade e cada excesso de grandeza tão facilmente como nos números, pelo motivo de que no espaço não podemos chegar pelo pensamento a certa pequenez determinada, além da qual não possamos ir, tal como é a unidade no número. TEÓFILO - [Isto deve entender-se com referência ao número inteiro. Pois do contrário o número na sua latitude, compreendendo o número rompido, o surdo, o transcendente e tudo aquilo que se pode tomar entre dois números inteiros, é proporcional à linha, e ali existe tão pouco minimum como no contínuo. Esta definição, que o número é uma multidão de unidades, só tem lugar nos inteiros. A distinção precisa das ideias na extensão não consiste na grandeza: pois para reconhecer distintamente a grandeza, cumpre recorrer aos números inteiros, ou aos outros conhecidos através dos inteiros; assim, da quantidade contínua é preciso recorrer à quantidade discreta, para ter um conhecimento distinto da grandeza. Assim, as modificações da extensão, quando não nos servimos dos números, não podem ser distinguidas pela figura, tomando este termo em sentido tão geral, que significa tudo o que faz com que dois corpos extensos não se assemelhem um ao outro.] § 5. FILALETO - Repetindo a ideia da unidade e juntando-a a outra unidade, perfazemos uma ideia coletiva, que denominamos dois. Todo aquele que puder fazer isso e avançar sempre um a mais na última ideia coletiva, à qual dá um nome particular, pode contar, enquanto houver uma sequência de nomes e memória suficiente para retê-la. TEÓFILO - Só por esta maneira não se consegue ir longe. Pois a memória seria sobrecarregada demais, se fosse necessário reter um nome completamente novo para cada adição de uma nova unidade. Eis por que é necessária certa ordem e certa repetição nesses nomes, recomeçando segundo certa progressão. FILALETO - Os diferentes modos dos números não são capazes de outra diferença além do mais ou do menos; [eis por que são modos simples como os da extensão.] TEÓFILO - [Isso pode dizer-se do tempo e da linha reta, mas de forma alguma das figuras, e muito menos dos números, que são não somente diferentes em grandeza, mas ainda dessemelhantes. Um número par pode ser repartido em dois igualmente, mas não um ímpar. Três e seis são números triangulares, quatro e nove são quadrados, oito é cúbico etc. Isto ocorre nos números, ainda mais do que nas figuras, pois duas figuras desiguais podem ser perfeitamente semelhantes uma à outra, mas nunca dois números. Não me admira que as pessoas se enganem com tanta frequência neste ponto, pois em geral não se tem a ideia distinta do que é semelhante ou dessemelhante. Podeis ver, portanto, que a vossa ideia ou a vossa aplicação das modificações simples ou mistas tem muita necessidade de ser corrigida.] § 6. FILALETO - [Tendes razão em observar que é bom dar aos números nomes aptos a serem retidos.] Assim, creio que conviria que, ao contarmos, em lugar de milhão de milhões se diga bilhão, para abreviar, e que ao invés de milhão de milhões de milhões, ou milhão de bilhões, se dissesse trilhão e assim por diante, até os nonilhões, pois não há necessidade de ir além no uso dos números. TEÓFILO - Essas denominações são bastante boas. Digamos que x é igual a 10. Assim sendo, um milhão será x6, um bilhão, X12, um trilhão, XIS etc., e um nonilhão, x54. CAPÍTULO XVII A INFINIDADE. § 1. FILALETO - Uma das noções mais importantes é a do finito e do infinito, que são consideradas modos da quantidade. TEÓFILO - [Falando-se com propriedade de termos, é verdade que existe uma infinidade de coisas, isto é, que sempre houve mais do que se possa atribuir. Entretanto, não existe número infinito, nem linha ou outra quantidade infinita, se os tomarmos todos como verdadeiros, como é fácil demonstrar. As escolas filosóficas quiseram ou foram obrigadas a dizer isso, admitindo um infinito sincategoremático, como dizem, e não o infinito categoremático. O verdadeiro infinito, a rigor, não se encontra senão no absoluto, que é anterior a qualquer composição, e não é formado pela adição das partes.] FILALETO - Quando aplicamos a nossa ideia do infinito ao primeiro ser, fazemo-lo originariamente com respeito à sua duração, e à sua ubiquidade, e mais figuradamente com respeito ao seu poder, à sua sabedoria, à sua bondade e aos seus outros atributos. TEÓFILO - [Não mais figuradamente, senão menos imediatamente, visto que os outros atributos fazem conhecer a sua grandeza pela relação com aqueles nos quais entra a consideração das partes.] § 2. FILALETO - Acreditava eu que era ponto pacífico que o espírito considera o finito e o infinito como modificações da extensão e da duração. TEÓFILO - [Não creio que se tenha estabelecido isso, pois a consideração do finito e do infinito tem lugar onde quer que haja grandeza e multidão. O infinito verdadeiro não é uma modificação, é o absoluto; ao contrário, desde que se modifique, limita-se ou forma-se um finito.] § 3. FILALETO - Acreditávamos que, sendo sempre o mesmo o poder que o espírito tem de aplicar sem fim a sua ideia do espaço por novas adições, seria dali que deriva a ideia de um espaço infinito. TEÓFILO - [Convém acrescentar que é porque vemos que a mesma razão subsiste sempre. Tomemos uma linha reta e prolonguemo-la, de modo que ela seja o dobro da primeira. Ora, é evidente que a segunda, sendo perfeitamente semelhante à primeira, também pode ser duplicada, para ter a terceira que é ainda semelhante às anteriores; sendo que a mesma razão se verifica sempre, jamais é possível que se pare; assim, a linha pode ser prolongada ao infinito, de maneira que a consideração do infinito vem da consideração da semelhança ou da mesma razão, e a sua origem é a mesma que a origem das verdades universais e necessárias. Isso mostra como aquilo que realiza a concepção dessa ideia se encontra em nós mesmos, e não pode provir das experiências dos sentidos, assim como as verdades necessárias não podem ser provadas pela indução nem pelos sentidos. A ideia do absoluto está interiormente em nós como a do ser: esses absolutos não são outra coisa senão os atributos de Deus, podendo-se dizer que são a fonte das ideias na mesma medida em que Deus mesmo constitui o princípio dos seres. A ideia do absoluto em relação ao espaço é a mesma que a da imensidade de Deus, valendo o mesmo das outras. Entretanto, enganar-nos-íamos se imaginarmos um espaço absoluto que seja um todo infinito, composto de partes; não existe nada disso, é uma noção que implica contradição, sendo que esses todos infinitos, bem como os seus opostos infinitamente pequenos, são de atualidade apenas nos cálculos geométricos, da mesma forma que as raízes imaginárias da álgebra.] § 6. FILALETO - [Concebe-se ainda uma grandeza sem compreender nela partes fora de partes.] Se à ideia mais perfeita que tenho do branco mais brilhante acrescento outra de um branco igual ou menos vivo (visto que não poderia acrescentar-lhe a ideia de um mais branco do que aquele do qual tenho ideia, que suponho ser o mais brilhante que possa conceber atualmente), isto não aumenta nem estende a minha ideia de forma alguma; esta é a razão pela qual denominamos graus as diferentes ideias de brancura. TEÓFILO - [Não compreendo bem a força deste raciocínio, pois nada impede que possamos receber a percepção de uma brancura mais brilhante do que aquela que concebemos atualmente. A verdadeira razão pela qual se tem motivo para crer que a brancura não pode ser aumentada ao infinito, é porque não é uma qualidade original; os sentidos só nos dão dela um conhecimento confuso; quando tivermos um conhecimento distinto dela, veremos que ela vem da estrutura, e se limita àquela do órgão da vista. Contudo, no que respeita às qualidades originais ou cognoscíveis de maneira distinta, vê-se que por vezes existe maneira de ir ao infinito, não somente onde houver extensão, ou se quiserdes, difusão ou aquilo que os Escolásticos denominam partes extra partes, como no tempo e no lugar, mas também lá onde há intensão ou graus, por exemplo, no que concerne à rapidez.] § 8. FILALETO - Não temos a ideia de um espaço infinito, e nada é mais sensível do que a absurdidade de uma ideia atual de um número infinito. TEÓFILO - [Sou da mesma opinião. Todavia, a razão não é porque não possamos ter a ideia do infinito, mas porque um infinito não pode ser um verdadeiro todo.] § 16. FILALETO - Em virtude da mesma razão, não temos, portanto, ideia positiva de uma duração infinita ou da eternidade, como não a temos da imensidade. TEÓFILO - [Acredito que temos a ideia positiva tanto de uma como da outra, e esta ideia será verdadeira, sob a condição de que não a concebamos como um todo infinito, mas como um absoluto ou atributo sem limites que se encontra em relação à eternidade, na necessidade da existência de Deus, sem que as partes dependam e sem que formemos a noção por uma adição do tempo. Por ali se vê ainda, como já disse, que a noção do infinito provém da mesma fonte que a noção das verdades necessárias.] CAPÍTULO XVIII ALGUNS OUTROS MODOS SIMPLES. FILALETO - Existem ainda muitos modos simples, que são formados das ideias simples. Tais são (§ 2) os modos do movimento, como deslizar, rolar; os modos dos sons (§ 3), que são modificados pelas notas, assim como as cores o são pelos graus, sem falar dos sabores e odores (§ 6). Não existem sempre medidas nem nomes distintos, como também não os há nos modos complexos (§ 7), visto que nos regulamos segundo o uso, e falaremos mais amplamente disso quando tratarmos das palavras. TEÓFILO - [A maior parte dos modos não são tão simples, podendo ser contados entre os complexos: por exemplo, para explicar o que é deslizar ou rolar, além do movimento importa considerar a resistência da superfície.] CAPÍTULO XIX OS MODOS RELATIVOS AO PENSAMENTO. § 1. FILALETO - [Dos modos que procedem dos sentidos passemos aos que nos são fornecidos pela reflexão.] A sensação é, por assim dizer, a entrada atual das ideias no entendimento através dos sentidos. Quando a mesma ideia volta ao espírito, sem que o objeto externo que a gerou atue sobre os nossos sentidos, este ato do espírito se denomina reminiscência; se o espírito procura recordá-la e a encontra depois de algum esforço e a torna presente, temos o recolhimento. Se o espírito a considera durante longo tempo com atenção, temos a contemplação; quando a ideia que temos no espírito flutua, por assim dizer, sem que o entendimento lhe preste atenção, é o que denominamos devaneio. Quando refletimos sobre ideias que se apresentam por si mesmas, e as registramos, por assim dizer, na nossa memória, temos a atenção; e quando o espírito se fixa sobre uma ideia com muita aplicação, e a considera de todos os lados e não quer desviar-se dela apesar de outras ideias que lhe ocorrem, temos o estudo ou contenção de espírito. O sono que não é acompanhado por nenhum sono constitui a cessação de todas estas coisas; sonhar é ter essas ideias no espírito enquanto os sentidos externos estão fechados, de maneira que não recebem a impressão dos objetos externos com a vivacidade que lhes é comum. É ter ideias sem que elas nos sejam sugeridas por nenhum objeto de fora, ou por nenhuma ocasião conhecida, e sem que tais ideias sejam escolhidas ou determinadas de nenhuma forma pelo entendimento. Quanto ao que chamamos êxtase, deixo o assunto a outros, se não for sonhar com os olhos abertos. TEÓFILO - [É conveniente esclarecer estas noções, e eu mesmo procurarei ajudar nesta tarefa. Direi que temos uma sensação, quando nos damos conta de um objeto externo; a reminiscência constitui a repetição da sensação, sem que o objeto volte; quando sabemos que a tivemos, temos a recordação. Em geral se toma o recolhimento num sentido diverso do vosso, isto é, como um estado no qual nos desligamos dos negócios para entregar-nos à meditação. Contudo, visto não haver palavra que concorde com a vossa noção - quanto saiba - poder-se-ia empregar a que mencionastes. Temos atenção em relação aos objetos que distinguimos e preferimos aos outros. Se a atenção continuar no espírito, quer o objeto externo continue quer não, e mesmo quer ele ali se encontre quer não, temos a consideração; esta, se tender ao conhecimento sem relação com a ação, será contemplação. A atenção cujo fim é aprender (ou seja, obter conhecimentos para conserva-los), é o estudo. Considerada para formar algum plano, é meditar; ao passo que devanear não parece ser outra coisa senão seguir certos pensamentos pelo prazer que se tem nisso, sem ter outra finalidade, razão pela qual o devaneio pode conduzir à loucura: esquecemo-nos, esquecemos o dic cur hic) aproximamo-nos dos sonhos e das quimeras, construímos castelos na Espanha. Só podemos distinguir os sonhos das sensações pelo fato de que eles não estão ligados às sensações, constituem como um mundo à parte. O sono representa uma cessação das sensações, sendo que o êxtase é um sono muito profundo, do qual não gostamos de ser acordados, e o qual provém de uma causa interna passageira, o que contribui para excluir aquele sono profundo, o qual procede de um narcótico ou de alguma lesão durável das funções, como na letargia. Os êxtases são acompanhados de visões, por vezes; todavia, existem também visões sem êxtase; a visão, ao que parece, não é outra coisa senão um sonho que passa por uma sensação, como se nos ensinasse a verdade dos objetos. Quando essas visões são divinas, existe de fato verdade; isto se pode conhecer, por exemplo, quando contêm profecias particularizadas que o acontecimento justifica.] § 4. FILALETO - Dos diferentes graus de contenção ou de desligamento de espírito segue-se que o pensamento é a ação, e não a essência da alma. TEÓFILO - [Sem dúvida, o pensamento é uma ação e não pode ser a essência: entretanto, é uma ação essencial, sendo que todas as substâncias possuem tais ações essenciais. Demonstrei acima que temos sempre uma infinidade de pequenas percepções, sem nos darmos conta delas. Não estamos nunca sem percepções, mas é necessário que estejamos muitas vezes sem apercepções. Isso ocorre quando não existem percepções distintas. É por não considerar este ponto importante que uma filosofia descuidada e tão pouco nobre como pouco sólida prevaleceu em tantos bons espíritos, e que ignoramos quase até hoje o que existe de mais belo nas almas. Isso fez também com que se tenha encontrado tanta evidência nesse erro, que ensina que as almas são de natureza perecível.] CAPÍTULO XX OS MODOS DO PRAZER E DA DOR. § 1. FILALETO - Uma vez que as sensações do corpo, assim como os pensamentos do espírito, são ou indiferentes ou seguidas de prazer ou de dor, não podemos descrever essas ideias, como não podemos também descrever todas as ideias simples, nem dar nenhuma definição das palavras que utilizamos para designá-las. TEÓFILO - [Acredito não haver percepções que nos sejam completamente indiferentes, mas basta que o seu efeito não seja notável para denominá-las assim, pois o prazer ou a dor parece consistir em uma ajuda ou num impedimento notável. Reconheço que esta definição não é nominal, e que não é possível dar uma definição nominal no caso.] § 2. FILALETO - O bem é aquilo que é próprio para produzir e aumentar o prazer em nós, ou para diminuir ou abreviar alguma dor. O mal é próprio para produzir ou aumentar a dor em nós, ou para diminuir algum prazer. TEÓFILO - [Também eu partilho dessa opinião. Dividimos o bem em honesto, agradável e útil, mas no fundo creio que é necessário que ele seja ou agradável em si mesmo, ou servindo a algum outro que nos possa dar um sentimento agradável, isto é: o bem é agradável ou útil, e o honesto consiste em um prazer de espírito.] § 4. 5. FILALETO - Do prazer e da dor vêm as paixões: temos amor àquilo que pode produzir prazer, e o pensamento da tristeza ou da dor, que pode ser produzido por uma causa presente ou ausente, é o ódio. Entretanto, o ódio ou o amor que se referem a seres capazes de felicidade ou de infelicidade são muitas vezes um desprazer ou um contentamento que sentimos ser produzido em nós pela consideração da existência deles ou da felicidade que desfrutam. TEÓFILO - [Eu também dei mais ou menos esta definição do amor, ao explicar os princípios da justiça, no prefácio do meu Codex iuris gentium diplomaiicus, a saber, que amar significa ser levado a ter prazer na perfeição, no bem ou na felicidade do objeto amado. Por esta razão não se considera e não se pede outro prazer próprio fora daquele que se encontra no bem ou prazer daquele que se ama; neste sentido, não amamos propriamente aquilo que é incapaz de prazer ou de felicidade, e desfrutamos das coisas desta natureza sem amá-las por isto, a não ser por uma prosopopéia, e como se imaginássemos que elas mesmas se regozijassem pela sua perfeição. Por conseguinte, não se trata propriamente de amor, quando dizemos que amamos um belo quadro pelo prazer que temos em sentir as suas perfeições. Todavia, é lícito ampliar o sentido dos termos, sendo que o uso varia. Os filósofos e os próprios teólogos distinguem duas espécies de amor, isto é, o amor que denominam de concupiscência - o qual não é outra coisa senão o desejo ou o sentimento que temos com relação àquilo que nos dá prazer, sem que nos interessemos se ele tem prazer - e o amor de benevolência, o qual consiste no sentimento que temos por aquele que pelo seu prazer ou felicidade nos faz participar disso. O primeiro nos faz visar ao nosso prazer, o segundo nos faz visar ao prazer de outrem, mas como que fazendo ou constituindo o nosso prazer, pois se o prazer do outro não se refletisse em nós de alguma forma, não poderíamos interessar-nos por ele visto ser impossível - diga-se o que se quiser - desapegar-se do próprio bem. É assim que se deve entender o amor desinteressado ou não mercenário, para bem compreender a sua nobreza, e para ao mesmo tempo não cair em quimeras.] § 6. FILALETO - A inquietação (uneasiness em inglês) que um homem ressente em si mesmo pela ausência de uma coisa que lhe daria prazer se estivesse presente, denomina-se desejo. A inquietação é o principal, para não dizer o único estímulo que excita a iniciativa e a atividade dos homens; com efeito, qualquer que seja o bem que se proponha ao homem, se a ausência de tal bem não acarretar nenhum desprazer nem nenhuma dor, e se aquele que dele estiver privado estiver contente e à vontade não o possuindo, não lhe ocorre o deseja-lo, menos ainda empenhar-se por consegui-lo, Sente apenas, em relação a esta espécie de bem, uma simples veleidade, termo que se tem empregado para significar o grau mais baixo do desejo, que mais se aproxima daquele estado em que se encontra a alma em relação a uma coisa que lhe é completamente indiferente, quando o desprazer causado pela ausência de uma coisa é tão pouco considerável que leva apenas a deseja-lo fracamente, sem adotar os meios para consegui-lo. O desejo é ainda extinguido ou mitigado pela ideia que se tem, de que o bem desejado não pode ser atingido à proporção que a inquietação da alma é curada ou diminuída por esta consideração. [Aliás, encontrei o que vos digo sobre a inquietação, neste célebre autor inglês, do qual cito muitas vezes as opiniões. Tenho tido dificuldade quanto à significação exata do termo inglês uneasiness. Entretanto, o intérprete francês, ruja habilidade neste ponto não pode ser posta em dúvida, observa ao pé da página (capítulo 20, § 6) que por este termo o autor entende o estado de um homem que não está à vontade, a falta de bem-estar e tranquilidade na alma, que neste ponto é puramente passiva; esclarece ele também que foi necessário traduzir esta palavra pelo termo inquietação, o qual não exprime precisamente a mesma ideia, mas que se lhe aproxima ao máximo. Esta opinião - acrescenta ele - é sobretudo necessária no capítulo seguinte (Sobre a potência) onde o autor raciocina muito sobre esta espécie de inquietação, pois se não atribuíssemos a esta palavra a ideia que acabo de assinalar, não seria possível compreender exatamente os assuntos tratados neste capítulo, os quais são dos mais importantes e dos mais delicados de toda a obra.] TEÓFILO - [O intérprete tem razão, e a leitura do seu excelente autor me mostrou que esta consideração da inquietação constitui um ponto capital, no qual o autor demonstrou de maneira particular o seu espírito penetrante e profundo. Eis por que examinei o assunto com alguma atenção, e após ter bem considerado a questão, parece-me quase que a palavra inquietação, se não exprime suficientemente a ideia do autor, convém bastante, todavia, à natureza da coisa e ao termo uneasiness; se assinalasse um desprazer, uma mágoa, um incômodo, em uma palavra, alguma dor efetiva, não conviria. Com efeito, preferiria dizer que no próprio desejo existe antes uma disposição e preparação à dor do que a própria dor. E verdade que esta percepção às vezes difere apenas por mais ou por menos da percepção que reside na própria dor, mas é que o grau pertence à essência da dor, visto ser uma percepção notável. Vê-se isso também pela diferença que existe entre o apetite e a fome, pois quando a irritação do estômago se torna excessivamente forte, causa-nos incômodo, de maneira que é necessário aplicar aqui a nossa doutrina sobre as percepções excessivamente pequenas para que sejam aperceptíveis, pois se o que se passa em nós quando temos apetite e desejo fosse aumentado suficientemente, nos causaria dor. Eis por que o Autor infinitamente sábio do nosso ser o fez para o nosso bem, quando o fez de maneira tal que fiquemos muitas vezes na ignorância e em percepções confusas: é para agir mais prontamente por instinto, e para não sermos incomodados por sensações demasiado distintas de uma série de objetos, que não nos voltam absolutamente. Quantos insetos engolimos sem dar-nos conta, quantas pessoas não vemos que, tendo o olfato muito apurado, sofrem incômodos, por isto, e quantos objetos incômodos veríamos, se a nossa vista fosse tão penetrante! É também por esta razão que a natureza nos deu os estímulos do desejo, como rudimentos ou elementos da dor, ou, por assim dizer, da semidor, ou (se quiserdes falar abusivamente para exprimir-vos com mais força) pequenas dores inaperceptíveis, a fim de desfrutarmos da vantagem do mal sem sermos afetados pelo seu incômodo: do contrário, se esta percepção fosse muito distinta, estaríamos sempre infelizes aguardando o bem, ao passo que esta contínua vitória sobre essas semidores, que sentimos ao seguir o nosso desejo e ao satisfazer de alguma forma a este apetite ou a este "prurido", nos dá uma série de semiprazeres, cuja continuação e acúmulo (como na continuação da impulsão de um corpo pesado que desce e que adquire impetuosidade) se tornam finalmente um prazer completo e verdadeiro. No fundo, nessas semidores não haveria prazer, não haveria meio de dar-se conta que alguma coisa nos ajuda e nos alivia, eliminando alguns obstáculos que nos impedem de sentir-nos bem. É também nisso se reconhece a afinidade do prazer e da dor, que Sócrates ressalta no Fédon de Platão, ao sentir coceira nos pés. Esta consideração sobre as pequenas ajudas e os pequenos alívios, dos quais ao final resulta um prazer notável, serve também para fornecer um conhecimento mais distinto da ideia confusa que temos e devemos ter do prazer e da dor; da mesma forma o sentimento do calor ou da luz resulta de uma série de pequenos movimentos, que exprimem os movimentos dos objetos, conforme o que disse acima (capítulo 9, § 13) e diferem deles apenas na aparência e pelo fato de não nos apercebermos desta análise: ao passo que muitos creem hoje em dia que as nossas ideias das qualidades sensíveis diferem toto genere dos movimentos e do que acontece nos objetos, e constituem algo de primitivo e de inexplicável, e até de arbitrário, como se Deus fizesse sentir à alma o que lhe aprouvesse, ao invés do que acontece no corpo. Isso está muito longe da análise verdadeira das nossas ideias. Entretanto, para voltarmos à inquietação, ou seja, às pequenas solicitações imperceptíveis que nos mantêm sempre de prontidão: são elas determinações confusas, de maneira que muitas vezes não sabemos o que nos falta, ao passo que nas inclinações e paixões sabemos ao menos o que estamos querendo, embora as percepções confusas entrem também na sua maneira de agir, e as mesmas paixões causam também esta inquietação ou "prurido". Esses impulsos são como outras tantas pequenas molas que procuram soltar-se e fazem a nossa máquina agir. Já observei acima que é por isso que nunca somos indiferentes - mesmo quando mais parecemos sê-lo - por exemplo, a voltar-nos à direita de preferência à esquerda, ao final de uma rua. Com efeito, a opção que fazemos provém dessas determinações sensíveis, mescladas com as ações dos objetos e do interior do corpo, que nos faz sentir-nos melhor de uma maneira do que de outra. Em alemão denomina-se Unruhe - isto é, inquietação - o pêndulo de um relógio. Pode-se dizer que o mesmo acontece com o nosso corpo, que jamais poderá estar perfeitamente à vontade: com efeito, mesmo que um dia o estivesse, uma nova impressão dos objetos, uma pequena mudança nos órgãos, nos vasos sanguíneos ou nas entranhas mudará logo a balança, o que produz um combate perpétuo que faz, por assim dizer, a inquietação do nosso relógio, de maneira que esta denominação me agrada bastante.] § 6. FILALETO - A alegria constitui um prazer que a alma sente quando considera a posse de um bem presente ou futuro como seguro; estamos de posse de um bem quando ele está de tal modo em nosso poder, que podemos desfrutar dele quando quisermos. TEÓFILO - [Nas línguas faltam palavras adequadas para distinguir as noções próximas entre si. Talvez o latim gaudium se aproxime mais dessa definição da alegria, do que o termo laetitia, que também se traduz pela palavra alegria; mas neste caso a palavra não me parece significar um estado em que o prazer predomina em nós, pois durante a mais profunda tristeza e em meio às mágoas mais profundas, podemos ter algum prazer como em beber ou em ouvir música, porém predomina o desprazer; assim também, em meio às dores mais agudas, o espírito pode estar na alegria, o que acontecia aos mártires.] § 8. FILALETO- A tristeza constitui uma inquietação da alma, quando esta pensa em um bem perdido do qual poderia ter desfrutado por mais tempo, ou quando é atormentada por um mal atualmente presente. TEÓFILO - [Não somente a presença de um mal atual, mas também o temor de um mal futuro pode tornar-nos tristes, de maneira que - acredito eu - as definições da alegria e da tristeza que acabo de dar são as que melhor quadram com o uso. Quanto à inquietação, existe na dor e consequentemente na tristeza algo mais: a inquietação está até na alegria, pois torna o homem desperto, ativo, cheio de esperança para ir mais longe. A alegria já foi capaz de causar a morte por excesso de emoção, caso no qual havia mais do que inquietação.] § 9. FILALETO - A esperança é o consentimento da alma que pensa no prazer que terá provavelmente em uma coisa apta a causar-lhe prazer. § 10. E o temor é uma inquietação da alma ao pensar em um mal futuro que pode ocorrer. TEÓFILO - [Se a inquietação representa um desprazer, reconheço que ela acompanha sempre o temor; todavia, considerando-a esse aguilhão insensível que nos impulsiona, pode-se aplicá-la também à esperança. Os Estoicos viam as paixões como opiniões; assim, para eles a esperança constituía a opinião de um bem futuro, e o temor a opinião de um mal futuro. Prefiro dizer que as paixões não são nem contentamentos ou desprazeres nem opiniões, mas tendências, ou melhor, modificações da tendência, que provêm da opinião ou do sentimento, e que são acompanhadas de prazer ou de desprazer.] § 11. FILALETO - O desespero constitui o pensamento de que um determinado bem não pode ser atingido, o que pode causar aflição e por vezes o ócio. TEÓFILO - [O desespero, considerado uma paixão, será uma forma de tendência forte que se encontra completamente estacionada, o que produz um combate violento e muito desprazer. Entretanto, quando o desespero é acompanhado de ócio e indolência estamos mais diante de uma opinião do que de uma paixão.] § 12. FILALETO - A cólera é esta inquietação ou esta desordem que sentimos após recebermos alguma injúria, e que é acompanhada de um desejo presente de vingar-nos. TEÓFILO - [Parece-me que a cólera é algo de mais simples, e mais geral, visto que também os animais são capazes dela, e no entanto são sofrem injúria. Existe na cólera um esforço violento que tende a vingar-se do mal. O desejo da vingança pode permanecer quando alguém é de sangue-frio, e quando se tem mais ódio que cólera.] § 13. FILALETO - A inveja é a inquietação (o desprazer) da alma, inquietação que provém da consideração de um bem que desejamos, mas que outro possui, e que acreditamos não deveria possuir de preferência a nós. TEÓFILO - [Segundo esta noção, a inveja seria sempre uma paixão louvável e sempre fundada na justiça, pelo menos em nossa opinião. Entretanto, não sei se muitas vezes não temos inveja com relação a um mérito reconhecido. Temos até inveja de pessoas por causa de um bem que não nos importaria possuir. Estaríamos contentes em vê-las privadas deste bem, sem pensarmos em aproveitar e mesmo sem querer espera-lo. Com efeito, existem bens que se assemelham a quadros pintados em afresco, que podemos destruir, mas de que não podemos apropriar-nos.] § 17. FILALETO - A maior parte das paixões causam em muitas pessoas impressões no corpo, produzindo nele diversas alterações, embora estas não sejam sempre sensíveis: por exemplo, a vergonha - que consiste numa inquietação da alma que se sente quando se considera que se praticou algo de indecente ou que pode diminuir a estima que outros têm de nós - nem sempre vem acompanhada de rubor. TEÓFILO - [Se os homens se empenhassem mais em observar os movimentos externos que acompanham as paixões, seria difícil dissimula-los, Quanto à vergonha, é notável que pessoas modestas por vezes sentem alterações semelhantes às da vergonha, quando apenas testemunham uma ação indecente.] CAPÍTULO XXI A POTÊNCIA E A LIBERDADE. § 1. FILALETO - [O espírito, observando como uma coisa deixa de ser, e como outra, que antes não existia, começa a existir, e concluindo que no futuro haverá coisas semelhantes, produzidas por agentes semelhantes, chega a considerar em uma coisa a possibilidade, que existe, de que uma das suas ideias simples seja mudada, e em outra a possibilidade de produzir tal mudança; com base nisso, o espírito se forma a ideia da potência.] TEÓFILO - [Se a potência corresponder ao latim potentia, ela é o oposto do ato, e a passagem da potência ao ato constitui a mudança. É o que Aristóteles entende pelo termo movimento, ao dizer que ele é o ato, ou talvez a atuação do que está em potência. Pode-se, por conseguinte, dizer que a potência em geral é a possibilidade da mudança. Ora, sendo que a mudança ou ato de uma possibilidade é ação em um sujeito e paixão em outro, haverá também duas potências, uma passiva e outra ativa. A ativa poderá denominar-se faculdade, e talvez a passiva poderia chamar-se capacidade ou receptividade. É verdade que a potência ativa se toma às vezes em um sentido mais perfeito, quando, além da simples faculdade, existe tendência; é assim que eu a tomo nas minhas considerações dinâmicas. Poderíamos atribuir-lhe particularmente o termo força, sendo que a força seria ou enteléquia ou esforço; pois a enteléquia (embora Aristóteles a tome de forma tão geral que compreende toda a ação e todo esforço) parece-me convir antes às forças agentes primitivas, e o de esforço às derivativas. Existe ainda uma espécie de potência passiva mais particular e mais carregada de realidade: é a que está na matéria, onde não existe somente a mobilidade - que é a capacidade ou receptividade do movimento - mas ainda a resistência, que compreende a impenetrabilidade e a inércia. As enteléquias, isto é, as tendências primitivas ou substanciais, quando são acompanhadas de percepção são as almas.] § 3. FILALETO - A ideia da potência exprime algo de relativo. Entretanto, que ideia temos, de qualquer espécie que seja, que não encerre alguma relação? As nossas ideias da extensão, da duração, do número, não contêm todas, porventura, uma secreta relação de partes? A mesma coisa se nota de uma forma ainda mais visível na figura e no movimento. Que são as qualidades sensíveis senão potências de diferentes corpos com respeito à nossa percepção? Não dependem elas em si mesmas da espessura, da figura, da contextura e do movimento das partes? Ora, isso coloca uma espécie de relação entre elas. Assim sendo, a nossa ideia da potência bem pode, a meu entender, ser classificada entre as outras ideias simples. TEÓFILO - [No fundo, as ideias que acabamos de enumerar são compostas: as das qualidades sensíveis só mantêm o seu lugar entre as ideias simples devido à nossa ignorância, e as outras, que conhecemos distintamente, só conservam o seu lugar entre as ideias simples por uma indulgência, que seria aliás melhor não ter. É mais ou menos como em relação aos axiomas vulgares que poderiam e mereceriam ser demonstrados entre os teoremas, e que sem embargo se deixa passar como axiomas, como se fossem verdades primitivas. Esta indulgência é mais prejudicial do que se pensa. É verdade que nem sempre podemos passar sem elas.] § 4. FILALETO - Se prestarmos bem atenção, os corpos não nos fornecem através dos sentidos uma ideia tão clara e tão distinta da potência ativa como aquela que temos pelas reflexões que fazemos sobre as operações do nosso espírito. A meu ver, não existem senão duas espécies de ações das quais temos a ideia, a saber: pensar e mover. No que concerne ao pensamento, o corpo não nos dá dele ideia alguma, pois é somente pela reflexão que o temos. Através do corpo tampouco temos nenhuma ideia do início do movimento. TEÓFILO - [Estas considerações são muito boas, e embora se tome aqui o pensamento de uma forma tão geral que engloba qualquer percepção, não quero contestar o uso das palavras.] FILALETO - Quando o próprio corpo está em movimento, este movimento é no corpo uma ação, mais do que uma paixão; mas quando uma bola de bilhar cede ao golpe do taco, não é uma ação da bola, mas uma simples paixão. TEÓFILO - [Existe algo a dizer sobre isso, pois os corpos não receberiam o movimento no choque, segundo as leis que notamos, se já não tivessem movimento em si. Deixemos, porém, este quesito.] FILALETO - Da mesma forma, quando a bola de bilhar empurra outra bola que está em seu caminho e a põe em movimento, não faz outra coisa senão comunicar-lhe o movimento que tinha recebido, perdendo outro tanto do seu próprio movimento. TEÓFILO - [Vejo que esta opinião errônea - posta em voga pelos Cartesianos - de que os corpos perdem tanto movimento quanto o que dão - opinião refutada hoje em dia pelas experiências e pelas razões, e hoje abandonada pelo próprio autor da Pesquisa sobre a verdade, o qual publicou um pequeno estudo especial para retratá-la - vejo que esta opinião errônea não deixa de dar ainda ocasião às pessoas versadas para construírem raciocínios sobre um fundamento tão fraco.] FILALETO - A transferência do movimento nos dá apenas uma ideia muito obscura de uma potência ativa de mover que possa existir no corpo, enquanto não vemos outra coisa, a não ser que o corpo transfere o movimento, porém sem produzi-lo de forma alguma. TEÓFILO - [Não sei se se pretende aqui que o movimento passe de sujeito a sujeito, e que o mesmo movimento (idem numeror se transfere. Sei que alguns afirmaram isso, entre outros o Padre Casati, jesuíta, apesar de todos os Escolásticos pensarem o contrário. Duvido, porém, que seja esta a vossa opinião ou a dos vossos amigos, geralmente bem alheios a tais imaginações. Todavia, se o mesmo movimento não é transportado, é necessário admitir que se produz um movimento novo no corpo que o recebe: assim sendo, aquele que dá agiria verdadeiramente, embora ao mesmo tempo seja passivo, perdendo parte da sua força. Com efeito, embora não seja verdade que ele dá movimento, é sempre verdade que perde tanta força quanta dá, como expliquei alhures, de maneira que é necessário sempre admitir nela força ou potência ativa: entendo a potência no sentido mais nobre que expliquei pouco acima, onde a tendência é associada à faculdade. Entretanto, continuo de acordo convosco em que a mais clara ideia da potência ativa nos vem do espírito: ela só se encontra nas coisas que têm analogia com o espírito, isto é, nas enteléquias, uma vez que a matéria propriamente caracteriza somente a potência passiva.] § 5. FILALETO - Encontramos em nós mesmos a potência de começar ou não começar, de continuar ou de terminar várias ações da nossa alma e vários movimentos do nosso corpo, e isso simplesmente por um pensamento ou uma opção do nosso espírito, que determina e comanda, por assim dizer, que tal ação particular seja praticada ou não. Esta potência é o que denominamos vontade. O uso atual desta potência se chama volição, a cessação ou a produção da ação que segue de tal ordem da alma se denomina voluntária, e toda ação que se pratica sem esta direção da alma se denomina involuntária. TEÓFILO - [Considero tudo isso muito bom e justo. Contudo, para falar mais corretamente e ir talvez um pouco além, direi que a volição constitui o esforço ou a tendência (conatus) para aquilo que consideramos bom e contra o que se acredita mau, de modo que esta tendência resulta imediatamente da apercepção que temos. O corolário desta definição é o célebre axioma: do querer e do poder associados segue a ação, visto que de qualquer tendência segue a ação, se ela não for impedida. Assim, não somente as ações internas voluntárias do nosso espírito seguem deste conatus, mas também as externas, isto é, os movimentos voluntários do nosso corpo, em virtude da união da alma e do corpo, cuja razão indiquei alhures. Existem ainda esforços que resultam das percepções sensíveis, das quais não nos apercebemos, e que prefiro denominar apetições, de preferência a volições (embora existam também apetições aperceptíveis), pois só se denominam ações involuntárias aquelas de que podemos aperceber-nos, e sobre as quais a nossa reflexão pode cair quando elas seguem da consideração do bem e do mal.] FILALETO - A potência de perceber é o que denominamos entendimento: existe a percepção das ideias, a percepção da significação dos sinais, e finalmente a percepção da concordância ou discordância existente entre algumas das nossas ideias. TEÓFILO - [Nós nos apercebemos de muitas coisas em nós e fora de nós que não entendemos, e nós as entendemos quando temos delas ideias distintas, com o poder de refletir e de concluir delas verdades necessárias. Eis por que os animais não possuem entendimento, ao menos neste sentido, se bem que tenham a faculdade de aperceber-se das impressões mais notáveis e mais distinguidas, assim como o javali percebe uma pessoa que grita para ele e vai direto em direção à pessoa, da qual só tinha tido antes uma percepção simples, mas confusa, como de todos os outros objetos que recaíam sob os seus olhos, e cujos raios atingiam a sua pupila. Em minha opinião, o entendimento corresponde, portanto, àquilo que entre os latinos se chama intellectus, sendo que o exercício desta faculdade se denomina intelecção, a qual constitui uma percepção distinta associada à faculdade de refletir, que não se encontra nos animais. Toda percepção associada a esta faculdade é um pensamento, que não reconheço aos animais, como não lhes reconheço o entendimento, de maneira que podemos dizer que a intelecção se verifica quando o pensamento é distinto. De resto, a percepção da significação dos sinais não merece ser distinguida aqui da percepção das ideias significadas.] § 6. FILALETO - Afirma-se comumente que o entendimento e a vontade são duas faculdades da alma, termo bastante cômodo se o utilizássemos como deveríamos utilizar todas as palavras, tomando cuidado para que não gerassem nenhuma confusão nos pensamentos dos homens, como suspeito tenha ocorrido aqui na alma. Quando nos dizem que a vontade é esta faculdade superior da alma que se regula e ordena todas as coisas, que ela é ou não é livre, que ela determina as faculdades inferiores, que ela segue o ditame do entendimento, embora essas expressões possam ser entendidas em um sentido claro e distinto, temo sem embargo que elas tenham sugerido a muitas pessoas a ideia confusa de outros tantos agentes que agem distintamente em nós. TEÓFILO - É um problema que desafiou as escolas filosóficas desde muito tempo: existe uma distinção real entre a alma e as suas faculdades? Uma faculdade é realmente distinta da outra? Os realistas responderam que sim, os nominalistas que não; a mesma questão foi ventilada acerca da realidade de vários outros seres abstratos, que devem seguir o mesmo destino. Não acredito, porém, que seja necessário aqui resolver este problema e afundar-se nestes espinhos, embora me recorde que Episcópíus a considerou de uma importância tal que acreditou não se poder salvar a liberdade do homem se as faculdades do homem .fossem seres reais. Entretanto, mesmo que fossem seres reais e distintos, não poderiam passar como agentes reais a não ser falando abusivamente. Não são as faculdades ou qualidades que agem, mas as substâncias através das faculdades. § 8. FILALETO - Enquanto um homem tiver o poder de pensar ou de não pensar, de mover ou de não mover conforme a preferência ou a escolha do seu próprio espírito é livre. TEÓFILO - [O termo liberdade é muito ambíguo. Existem liberdade de direito e liberdade de fato. No sentido da liberdade de direito, um escravo não é inteiramente livre, um súdito não é inteiramente livre, ao passo que um pobre é tão livre quanto um rico. A liberdade de fato consiste ou no poder de fazer o que se quer, ou no poder de querer como se deve. Vós falais da liberdade de fazer: ela tem os seus graus e as suas variedades. Geralmente aquele que tem mais meios é mais livre de fazer o que quiser: todavia, entende-se a liberdade particularmente do uso das coisas que habitualmente estão em nosso poder e sobretudo do livre uso do nosso corpo. Desta forma a prisão e as doenças, que nos impedem de dar ao nosso corpo e aos nossos membros o movimento que queremos e que podemos ordinariamente dar-lhes, derrogam à nossa liberdade: assim, um prisioneiro não é livre, um paralítico não tem o livre uso dos seus membros. A liberdade de querer se toma em dois sentidos diferentes. Um deles ocorre quando opomos a liberdade à imperfeição ou à escravidão do espírito, que é uma coação ou um constrangimento, porém interno, como o que vem das paixões; o outro sentido se verifica quando opomos a liberdade à necessidade. No primeiro sentido, os Estoicos diziam que só o sábio é livre; com efeito, não temos o espírito livre quando ele é tomado por uma grande paixão, pois neste caso não podemos querer como é necessário, isto é, com a deliberação que se exige. Assim sendo, só Deus é perfeitamente livre, e os espíritos criados só o são na medida em que se sobrepõem às paixões: esta liberdade se relaciona propriamente com o nosso entendimento. Contudo, a liberdade do espírito, oposta à necessidade, se relaciona à vontade nua e enquanto se distingue do entendimento. É o que denominamos o livre-arbítrio, o qual consiste no fato de querermos que as razões ou impressões mais fortes que o entendimento apresenta à vontade não impeçam o ato da vontade de ser contingente e não lhe deem uma necessidade absoluta e, por assim dizer, metafísica. É neste sentido que costumo dizer que o entendimento pode determinar a vontade, segundo a prevalência das percepções e razões, de uma forma que, mesmo quando é certa e infalível, inclina sem obrigar.] § 9. FILALETO - Convém também ponderar que ninguém ainda se lembrou de considerar agente livre uma bola, quer ela esteja em movimento após ter sido impulsionada por uma raquete, quer ela esteja em repouso. Eis por que não concebemos que uma bola pense, nem que tenha qualquer volição que a faça preferir o movimento ao repouso. TEÓFILO - [Se livre fosse aquilo que age sem impedimento, a bola, desde que estivesse em movimento em um horizonte unido, seria um agente livre. Ocorre que Aristóteles já observou com muita razão que, para denominar as ações livres, exigimos que elas sejam não só espontâneas, mas também que sejam deliberadas.] FILALETO - Eis por que englobamos o movimento ou o repouso da bola sob a ideia de uma coisa necessária. TEÓFILO - [A denominação "necessário" exige tanto cuidado quanto a de livre. Esta verdade condicional, a saber - supondo que a bola esteja em movimento em um horizonte unido sem impedimento, ela continuará o mesmo movimento -, pode ser considerada necessária de alguma forma, embora no fundo esta consequência não seja inteiramente geométrica, sendo apenas presuntiva, por assim dizer, e fundada na sabedoria de Deus, que não muda a sua influência sem alguma razão, o que se presume não ocorrer atualmente; todavia, esta proposição absoluta - esta bola está agora em movimento sobre este plano - não passa de uma verdade contingente, e neste sentido a bola é um agente contingente não livre.] § 10. FILALETO - Suponhamos que conduzimos um homem em estado de sono profundo a um quarto, no qual existe uma pessoa que ele custa muito a ver, e que fechemos a porta a chave. Este homem acorda e está encantado de encontrar-se com esta pessoa, ficando assim no quarto com prazer. Não creio que nos ocorra a ideia de duvidar que ele permaneça voluntariamente neste lugar. Todavia, ele não tem a liberdade de sair se quiser. Logo, a liberdade não é uma ideia que pertença à volição. TEÓFILO - [Considero esse exemplo muito bem escolhido para mostrar que, em certo sentido, uma ação ou um estado pode ser voluntário sem ser livre. Todavia, quando os filósofos e teólogos discutem sobre o livre-arbítrio, têm em vista um sentido completamente diferente.] § 11. FILALETO - Falta a liberdade quando a paralisia impede que as pernas obedeçam à determinação do espírito, embora no próprio paralítico possa ser uma coisa voluntária o permanecer assim, visto preferir estar sentado a mudar de lugar. Por conseguinte, voluntário não é o oposto de necessário, mas de involuntário. TEÓFILO - [Esta justeza de expressão me agradaria muito, mas o uso comum é outro; os que opõem a liberdade à necessidade, entendem falar não das ações, mas do próprio ato de querer.] § 12. FILALETO - Um homem acordado não é tão livre de pensar ou de não pensar, como o é de impedir ou de não impedir que o seu corpo toque algum outro corpo. Todavia, transferir os seus pensamentos de uma ideia à outra, isso está muitas vezes em sua liberdade; neste caso ele é tão livre em relação às suas ideias, quanto o é em relação aos corpos sobre os quais se apoia, podendo transferir-se de um para o outro, como bem entender. Existem, todavia, ideias que, como certos movimentos, estão de tal maneira fixos no espírito, que em certas circunstâncias não conseguimos afastá-las, por mais que nos esforcemos. Um homem sob tortura não tem a liberdade de não ter a ideia da dor, e por vezes uma violenta paixão age sobre o nosso espírito como o vento mais furioso age sobre os nossos corpos. TEÓFILO - [Existem ordem e conexão nos pensamentos, como existem nos movimentos, pois um corresponde perfeitamente ao outro, embora a determinação nos movimentos seja bruta e livre ou com opção no ser que pensa, que o bem e o mal só inclinam, sem forçar. Pois a alma, representando os corpos, conserva as suas perfeições, e embora dependa do corpo nas ações involuntárias, ela é independente e faz depender dela o corpo nos outros. Todavia, esta dependência é apenas metafísica, e consiste na consideração que Deus tem por um ao regular o outro, ou mais por um do que pelo outro à medida das perfeições originais de cada um, ao passo que a dependência física consistiria em uma influência imediata que um receberia do outro de que depende. De resto, ocorrem-nos pensamentos involuntários, em parte de fora, pelos objetos que atingem os nossos sentidos, em parte dentro de nós devido às impressões (muitas vezes insensíveis) que restam das percepções precedentes que continuam a sua ação e que se mesclam ao que vem de novo. Somos passivos quanto a isso, e mesmo quando estamos em vigília; imagens (sob as quais compreendo não somente as representações das figuras, mas também as dos sons e de outras qualidades sensíveis) nos ocorrem, como nos sonhos, sem serem chamadas. A língua alemã as denomina fliegende Gedanken como quem dissesse pensamentos volantes, que não estão sob o nosso poder, e nos quais existem por vezes muitos absurdos que produzem escrúpulos às pessoas de bem e quebra-cabeças aos casuístas e diretores de consciência. É como em uma lanterna mágica que faz aparecer figuras na muralha à medida que se gira alguma coisa dentro. Mas o nosso espírito, em percebendo alguma imagem que lhe ocorre, pode dizer: pare, e bloquear-lhe a entrada, por assim dizer. Além disso, o espírito entra, como bem lhe parecer, em certas progressões de pensamentos que o conduzem a outras. Todavia, isso se entende quando as impressões internas ou externas não prevalecem. É verdade que neste ponto os homens diferem muito, tanto conforme o seu temperamento como conforme o que tiverem feito da sua vontade, de maneira que um pode superar impressões que para outro são insuperáveis.] § 13. FILALETO - [A necessidade se verifica sempre que o pensamento não tem parte. E quando esta necessidade se encontra em um agente capaz de volição, e o início ou a continuação de alguma ação é contrária à preferência do seu espírito, denomino-a coação; quando o impedimento ou a cessação de uma ação é contrária à volição deste agente, seja-me permitido chamá-la coibição. Quanto aos agentes que não têm absolutamente nem pensamento nem volição, são agentes necessários sob todos os pontos de vista.] TEÓFILO - [Parece-me que, propriamente falando, embora as volições sejam contingentes, a necessidade não deve ser oposta à volição mas à contingência, como já observei no § 9, e que a necessidade não deve ser confundida com a determinação, pois não existe menos conexão ou determinação nos pensamentos que nos movimentos (visto que ser determinado é completamente distinto de ser forçado ou impulsionado com coação). Se não notamos sempre a razão que nos determina, ou melhor, pela qual nos determinamos, é porque somos tão incapazes de nos aperceber de todo o jogo do nosso espírito e dos seus pensamentos, o mais das vezes imperceptíveis e confusos, quanto somos incapazes de distinguir todas as máquinas que a natureza faz funcionar no corpo. Assim, se pela necessidade se entendesse a determinação certa do homem, a qual um perfeito conhecimento de todas as circunstâncias daquilo que acontece dentro e fora do homem, poderia fazer prever a um espírito perfeito, é certo que, sendo os pensamentos tão determinados quanto os movimentos que eles representam, todo ato livre seria necessário: mas é preciso distinguir o necessário do contingente, embora determinado. Não somente as verdades contingentes não são necessárias, mas nem mesmo as suas conexões revestem sempre uma necessidade absoluta, pois cumpre reconhecer que existe diferença na maneira de distinguir entre as consequências que se verificam em matéria necessária, e as que se verificam em matéria contingente. As consequências geométricas e metafísicas são necessitantes, ao passo que as consequências físicas e morais inclinam sem obrigar; o próprio físico tem algo de moral e de voluntário com relação a Deus, pois as leis do movimento não têm outra necessidade senão a do melhor. Ora, Deus escolhe livremente, embora seja determinado a escolher sempre o melhor. E visto que os corpos não escolhem (foi Deus quem escolheu em lugar deles), quis o uso que se denominem agentes necessários. A isso não me oponho, desde que não se confunda o necessário e o determinado, e que não se imagine que os seres livres agem de maneira indeterminada, erro que dominou certos espíritos, e que destrói as mais importantes verdades, inclusive este axioma fundamental: nada acontece sem razão - axioma sem o qual nem a existência de Deus nem outras grandes verdades podem ser cabalmente demonstradas. Quanto à coação, convém distinguir duas espécies: uma física - como quando se conduz um homem à prisão contra a sua vontade, ou quando o atiramos a um precipício -, a outra moral, como por exemplo, a coação de um mal maior; esta ação, embora de certo modo seja forçada, não deixa de ser voluntária. Pode ser forçado também pela consideração de um bem maior, como quando tentamos um homem, propondo-lhe uma vantagem excessivamente grande, embora não se costume chamar isso de coação.] § 14. FILALETO - Vejamos agora se não poderíamos resolver a questão ventilada desde muito tempo, mas que é a meu juízo muito pouco razoável, por ser ininteligível: a vontade do homem é livre ou não? TEÓFILO - [É muito justo protestar contra a maneira estranha dos homens que se atormentam ventilando questões mal concebidas: procuram o que sabem e não sabem o que procuram.] FILALETO - A liberdade, que é apenas uma potência, pertence unicamente a agentes e não poderia existir sem atributo ou uma modificação da vontade que a mesma não é outra coisa que uma potência. TEÓFILO - [Estais com a razão, segundo a propriedade das palavras. Todavia, pode-se escusar de alguma maneira o uso recebido. É assim que veio o costume de atribuir a potência ao calor ou a outras qualidades; isto é, ao corpo enquanto ele tem essa qualidade; e, todavia, aqui a intenção é a de perguntar se o homem é livre querendo.] § 15. FILALETO - A liberdade é o poder que um homem tem de praticar ou não praticar alguma ação conforme àquilo que quer. TEÓFILO - Se os homens só entendessem isso por liberdade, ao perguntarem se a vontade ou o arbítrio é livre, a sua pergunta seria verdadeiramente absurda. Entretanto, veremos logo o que perguntam, e até já toquei nisso. É verdade - mas em virtude de outro princípio - que não deixam de pedir aqui (ao menos muitos deles) o absurdo e impossível, ao quererem uma vontade de equilíbrio absolutamente imaginária e impraticável, e que nem mesmo lhes serviria, se fosse possível tê-la, isto é, que tenham a liberdade de querer contra todas as impressões que podem provir do entendimento, o que destruiria a verdadeira liberdade, juntamente com a razão, e nos colocaria abaixo dos animais. § 17. FILALETO - Quem dissesse que o poder de falar dirige o poder de cantar, ou que o poder de cantar obedece ou desobedece ao poder de falar, se exprimiria de maneira tão própria e tão inteligível como aquele que diz - como se costuma afirmar - que a vontade dirige o entendimento, que o entendimento obedece ou não à vontade. § 18. Todavia, este modo de falar se impôs e causou, se não me equivoco, muita desordem, embora o poder de pensar não opere mais sobre o poder de escolher do que o poder de cantar opera sobre o poder de dançar. § 19. Concordo em que este ou aquele pensamento pode fornecer ao homem a ocasião de exercer o poder que tem de optar, e que a opção do espírito pode ser causa de ele pensar atualmente em tal ou tal coisa, da mesma forma como cantar atualmente certo canto pode ser a ocasião de dançar tal dança. TEÓFILO - [Existe algo mais do que dar ocasiões, visto que existe certa dependência; pois só podemos querer o que consideramos bom, e conforme a faculdade de entender for adiantada, a escolha da vontade é melhor, como, por outra parte, conforme o homem tiver vigor no querer, determina os pensamentos segundo a sua escolha, ao invés de ser determinado e arrastado por percepções involuntárias.] FILALETO - As potências são relações, e não agentes. TEÓFILO - [Se as faculdades essenciais não passam de relações, e não acrescentam nada à essência, as qualidades e as faculdades acidentais ou sujeitas à mudança são outra coisa, e pode-se dizer destas últimas que umas dependem muitas vezes das outras no exercício das suas funções.] § 21. FILALETO - [A meu juízo a questão não é saber se a vontade é livre (isto seria falar de maneira muito imprópria), mas se o homem é livre. Isso assentado, digo que, enquanto alguém pode, pela direção ou pela escolha do seu espírito, preferir a existência de uma ação à não existência desta ação e vice-versa, isto é, pode fazer com que ela exista ou que não exista segundo o quiser, até ali ele é livre. Dificilmente poderíamos dizer como seria possível conceber um ser mais livre do que na medida em que é capaz de fazer o que quiser, de maneira que o homem parece ser tão livre com relação às ações que dependem deste poder que acha em si mesmo, quanto acha em si mesmo que é possível à liberdade torna-lo livre, se posso atrever-me a falar assim.] TEÓFILO - [Quando refletimos sobre a liberdade da vontade ou sobre o livre-arbítrio, não perguntamos se o homem pode fazer o que quiser, mas se tem suficiente independência na sua própria vontade. Não perguntamos se tem as pernas livres, ou os cotovelos livres, mas se tem o espírito livre, e em que consiste tal liberdade. Sob este aspecto uma inteligência pode ser mais livre que a outra, e a Suprema Inteligência desfrutará de uma liberdade perfeita, liberdade da qual as criaturas são incapazes.] § 22. FILALETO - Os homens naturalmente curiosos e que gostam de afastar o mais possível do seu espírito a ideia de serem culpados (embora isso equivalha a reduzir-se a um estado pior do que o de uma fatal necessidade), não estão todavia satisfeitos com isso. A menos que a liberdade se estenda ainda mais longe, ela não lhes agrada, e constitui a seu juízo uma prova muito boa de que o homem não é totalmente livre, se não tiver tanto a vontade de querer como a liberdade de fazer o que quiser. § 23. Quanto a isso, creio que o homem não pode ser livre com respeito a este ato particular de querer uma ação que está no seu poder, quando esta ação foi uma vez proposta ao seu espírito. A razão disso é bem evidente, pois, visto que a ação depende da sua vontade, é absolutamente necessário que ela exista ou que não exista; e já que a sua existência ou a sua não existência não pode deixar de seguir exatamente a determinação e a escolha da vontade, ele não pode evitar de querer a existência ou a não existência desta ação. TEÓFILO - [Por minha parte acreditaria que se pode suspender a sua escolha, e que isso acontece muitas vezes, sobretudo quando outros pensamentos interrompem a deliberação: assim, embora seja necessário que a ação sobre a qual se delibera exista ou não exista, não segue daí que se deva resolver necessariamente a existência ou a não existência, pois a não existência pode ocorrer também por falta de resolução. Assim é que os Areopagitas absolviam efetivamente aquele homem cujo processo haviam achado excessivamente difícil para ser decidido, adiando-o para bem longe e reservando-se cem anos para refletir.] FILALETO - Tornando o homem assim livre, quero dizer o seguinte: ao fazer com que a ação de querer dependa da sua vontade, é necessário que exista outra vontade ou faculdade de querer anterior para determinar os atos desta vontade, e outra para determinar aquela, e assim até o infinito. Com efeito, onde quer que se pare, as ações da última vontade não podem ser livres. TEÓFILO - [É verdade que não se fala de maneira muito justa, quando se fala como se quiséssemos querer. Não queremos querer, mas queremos fazer, e se quiséssemos querer, queríamos querer querer, e isso iria até o infinito. Todavia, não se deve dissimular que por ações voluntárias contribuímos muitas vezes indiretamente para outras ações voluntárias, e embora não possamos querer o que quisermos, como não se pode nem mesmo julgar o que quisermos, podemos, todavia, fazer, com antecedência, com que julguemos ou queiramos com o tempo o que gostaríamos de poder querer ou julgar hoje. Agarramo-nos às pessoas, às leituras e às considerações favoráveis, a um certo partido, e não se dispensa atenção ao que vem do partido contrário, e por este meio e mil outros que utilizamos o mais das vezes sem deliberação e sem pensar nisso, conseguimos enganar-nos ou pelo menos mudar-nos e converter-nos ou perverter-nos conforme aquilo que encontramos.] § 25. FILALETO - Visto ser evidente que o homem não tem a liberdade de querer querer ou não, a primeira coisa que se pergunta depois disso é se o homem tem a liberdade de querer qual dos dois lhe agradar, por exemplo, o movimento ou o repouso? Todavia, esta questão é tão obviamente absurda, em si mesma, que é suficiente para convencer a quem quer que sobre ela refletir, de que a liberdade não diz respeito em caso algum à vontade. Pois perguntar se um homem tem a liberdade de querer o que lhe aprouver, o movimento ou o repouso, falar ou calar, é o mesmo que perguntar se um homem pode querer o que quer, ou agradar-se daquilo de que se agrada, questão que, a meu juízo, não carece de resposta. TEÓFILO - [É verdade, porém, que os homens veem uma dificuldade aqui, a qual merece ser resolvida. Dizem eles que, após ter conhecido e considerado tudo, têm ainda a liberdade de querer, não somente o que mais agrada, mas também todo o contrário, somente para mostrar a sua liberdade. Cumpre considerar que este capricho ou teimosia, ou pelo menos esta razão que os impede de seguir as outras razões, entra na balança, e faz com que lhes agrade uma coisa que sem isso não lhes teria agradado, de maneira que a escolha é sempre determinada pela percepção. Portanto, não queremos o que quereríamos, mas sim o que agrada, embora a vontade possa contribuir indiretamente e como de longe a fazer com que alguma coisa agrade ou não, como já observei. E já que os homens não distinguem todas as considerações distintas, não é de admirar que o espírito se confunda tanto nesta matéria, que apresenta muitos aspectos ocultos.] § 29. FILALETO - Quando perguntamos quem determina a vontade, a verdadeira resposta consiste em dizer que é o espírito que determina a vontade. Se tal resposta não satisfaz, é óbvio que o sentido desta questão se reduz a isso: quem é que impulsiona o espírito em cada ocasião particular a determinar a tal movimento ou tal repouso particular o poder geral que ele tem de dirigir as suas faculdades para o movimento ou para o repouso? A isso respondo: o que nos leva a permanecer no mesmo estado ou a continuar a mesma ação, é unicamente a satisfação presente que se encontra nisso. Ao contrário, o motivo que incita a mudar é sempre alguma inquietação. TEÓFILO - [Esta inquietação, como demonstrei (no capítulo anterior), não é sempre um desprazer, assim como o contentamento no qual nos encontramos não é sempre uma satisfação ou um prazer. É muitas vezes uma percepção insensível que não conseguimos distinguir, que nos faz inclinar mais para um lado do que para o outro, sem que sejamos capazes de indicar a razão.] § 30. FILALETO - A vontade e o desejo não devem ser confundidos: um homem deseja ser livrado da gota, mas ao compreender que a eliminação desta dor pode causar a transferência de um humor perigoso a alguma parte vital do corpo, a sua vontade não consegue ser determinada para nenhuma ação que possa servir para dissipar esta dor. TEÓFILO - [Este desejo constitui uma forma de veleidade com relação a uma vontade completa: quereríamos, por exemplo, se não houvesse um mal maior a temer em caso de se obter o que se quer, ou talvez um bem maior a esperar em caso de que este faltasse. Entretanto, pode-se dizer que o homem quer ser livrado da gota com certo grau de liberdade, que porém não vai sempre até ao último esforço. Esta vontade se denomina veleidade, quando encerra alguma imperfeição ou impotência.] § 31. FILALETO - Convém, todavia, considerar que aquilo que determina a vontade a agir não é o bem maior, como se supõe comumente, mas antes alguma inquietação atual, e em geral a que é mais forte. Pode-se dar-lhe o nome de desejo, que constitui efetivamente uma inquietação do espírito, produzida pela ausência de algum bem ausente, além do desejo de ser libertado da dor. Nem todo bem ausente produz uma dor proporcionada ao grau de excelência que lhe é próprio, ou que nele reconhecemos, ao passo que toda a dor produz um desejo igual a ela, visto que a ausência do bem não é sempre um mal, como é a presença da dor. Eis por que se pode considerar e encarar sem dor um bem ausente; a inquietação, ao contrário, existe na proporção em que houver desejo. § 32. Quem é que não sentiu em desejo o que o sábio diz da esperança? (Provérbios, 13, 12), a qual, se for adiada, faz murchar o coração? Raquel grita (Gênese, 30, 1): Dai-me filhos, ou morro. § 34. Quando o homem está perfeitamente satisfeito com o estado em que se encontra, ou quando está completamente isento de qualquer inquietação, que outra vontade pode restar-lhe senão a de permanecer neste estado? Assim, o sábio Autor do nosso ser colocou nos homens o incômodo da fome e da sede, bem como dos outros desejos naturais, a fim de evitar e determinar as suas vontades para a sua própria conservação e para a continuação da espécie. É preferível, diz São Paulo (1 Coríntios,7, 9), casar-se a arder de desejo. Tanto isso é verdade, que o sentimento presente de uma pequena queimadura tem mais poder sobre nós que os atrativos de prazeres maiores vistos a distância. § 35. É verdade que constitui máxima tão bem estabelecida ser o bem e o bem maior que determinam a vontade, que não me surpreende em absoluto de tê-lo suposto como indubitável. Todavia, após uma pesquisa exata, vejo-me forçado a concluir que o bem maior, embora julgados e reconhecidos mortais, não determinam a vontade, a menos que, vindo a deseja-los de uma forma proporcionada à sua excelência, este desejo nos torne inquietos pelo fato de estarmos privados deles. Suponhamos que um homem esteja convencido da utilidade da virtude até o ponto de ver que ela é necessária a quem se propõe algo de grande neste mundo, ou espera ser feliz no outro; todavia, até que este homem não sinta fome e sede de justiça, a sua vontade não será jamais determinada para alguma ação que o leve à busca deste excelente bem, e alguma outra inquietação que sobrevenha arrastará a sua vontade a outras coisas. Por outra parte, suponhamos que um homem dado ao vinho considere que, levando a vida que leva, arruína a sua saúde e dissipa o seu bem, perderá a honra no mundo, atrairá para si enfermidades, e finalmente cairá na indigência, até o ponto de não ter com que satisfazer a esta paixão de beber, que o domina de forma tão intensa. Todavia, as inquietações que ressente continuamente, por estar ausente dos seus companheiros de bebida, o arrastam ao cabaré, nas horas em que costuma lá ir, embora tenha diante dos olhos a perda da sua saúde e do seu bem, e talvez até mesmo a perda da felicidade da outra vida: felicidade que não pode considerar um bem sem importância, pois reconhece ser muito mais excelente que o prazer de beber ou que o tagarelar vão de um grupo de desordeiros. Por conseguinte, não é por não ter diante dos olhos o bem supremo que ele persiste na desordem, visto que tem presente este bem supremo e lhe reconhece a excelência, a ponto de, nas horas vagas entre as bebedeiras, resolver entregar-se à busca deste bem supremo; todavia, quando a inquietação de ser privado do prazer habitual de beber o atormenta, o bem que reconhece mais excelente que a bebida não exerce mais força sobre seu espírito, e é essa inquietação atual que determina a sua vontade à ação à qual está habituado, e que por isso, fazendo maior impressão nele, prevalece na primeira ocasião, embora ali mesmo se comprometa por assim dizer com promessas secretas a não repetir a mesma coisa, e imagine que seja a última vez que agirá contra o seu maior interesse. Assim sendo, ele se vê reduzido a dizer, de tempos em tempos: Video meliora proboque, Deteriora sequor. "Vejo o melhor partido, aprovo-o, porém adoto o pior." Esta sentença, que se reconhece como verdadeira, e que é absolutamente confirmada por uma experiência constante, se compreende facilmente por este caminho, não sendo talvez inteligível em outros sentidos. TEÓFILO - [Existe algo de belo e de sólido nas vossas considerações. Todavia, não gostaria que por isso se pensasse que seja necessário abandonar esses antigos axiomas, isto é: que a vontade segue o bem maior, ou que foge ao mal maior que percebe. A fonte da pequena busca do verdadeiro bem provém em boa parte do fato de que nas coisas e nas ocasiões em que os sentidos não agem, a maior parte dos nossos pensamentos são, por assim dizer, surdos (denomino-os cogitationes caecas em latim), isto é, vazios de percepção e de sentimento, consistindo no emprego mais simples dos caracteres, como acontece com os que calculam em álgebra sem considerar que de tempos a tempos as figuras geométricas em questão e as palavras produzem geralmente o mesmo efeito que os caracteres de aritmética e de álgebra. Raciocinamos muitas vezes em palavras, sem sequer ter o objeto no espírito. Ora, um tal conhecimento não pode motivar-nos, requer-se algo de vivo para nos impulsionar. Entretanto, é assim que na maioria das vezes os homens pensam em Deus, na virtude, na felicidade; falam e raciocinam sem ideias expressas; não que não possam tê-las, visto que estas se encontram no seu espírito; o problema é que não se dão ao trabalho de uma análise mais profunda. Por vezes têm ideias sobre um bem ou um mal ausente, porém demasiado fracas; logo, não causa maravilha que não o motivem. Assim, se preferirmos pior, é porque sentimos o bem que ele encerra, sem sentirmos nem mal que encerra, nem o bem que se encontra na parte contrária. Supomos e cremos - ou, melhor, recitamos apenas segundo a crença de outrem, ou ao máximo segundo a crença da memória dos nossos raciocínios passados - que o bem maior se encontra na parte melhor, e o mal maior na parte oposta. Todavia, quando não o temos bem presentes, os nossos pensamentos e raciocínios contrários ao sentimento são uma espécie de psitacismo, que nada fornece no momento ao espírito; e se não tomarmos medidas para remediar, o vento leva tudo, como já observei acima, no capítulo segundo, § 11; os mais belos preceitos da moral, com as melhores normas da prudência só influem decididamente em uma alma que lhes é sensível (ou diretamente, ou, já que isso nem sempre é possível, ao menos indiretamente, como demonstrarei logo) e que não é mais sensível ao oposto. Cícero diz muito bem em algum lugar que, se os nossos olhos pudessem ver a beleza da virtude, amá-la-íamos com ardor; ora, como nem isso nem coisa equivalente ocorre, não devemos surpreender-nos se no combate entre a carne e o espírito, este sucumbe tantas vezes, visto não utilizar bem as suas vantagens. Este combate não é outra coisa senão a oposição das diferentes tendências, que nascem dos pensamentos confusos e dos distintos. Os pensamentos confusos muitas vezes se fazem sentir claramente, ao passo que os nossos pensamentos distintos em geral só são claros em potência: poderiam sê-lo, se quiséssemos entregar-nos ao esforço de penetrar no sentido das palavras ou caracteres, mas uma vez que não o fazemos - ou por negligência, ou devido à brevidade do tempo - opomos palavras nuas ou pelo menos imagens demasiado fracas a sentimentos vivos. Conheci um homem, considerável na Igreja e no Estado, que devido às doenças tinha decidido fazer dieta; confessou-me, porém, que não pôde resistir ao odor das viandas que eram levadas aos outros ao passarem diante de sua residência. È sem dúvida uma fraqueza vergonhosa, mas assim são feitos os homens. Entretanto, se o espírito aproveitasse das suas vantagens, triunfaria brilhantemente. Seria necessário começar pela educação, que deve ser regulada de maneira a tornar os verdadeiros bens e os verdadeiros males o mais presentes possível, revestindo as noções das circunstâncias mais aptas para este fim; um homem feito, ao qual falte esta educação, deve começar antes tarde do que nunca a buscar prazeres luminosos e razoáveis, para opô-los aos dos sentidos, que são confusos mas sedutores. Com efeito, a própria graça divina é um prazer que dá luz. Assim, quando um homem está embalado na boa direção, deve fazer para si leis e regulamentos para o futuro, e executá-los a rigor, livrar-se das ocasiões capazes de corrompê-lo, ou bruscamente ou pouco a pouco conforme a natureza da matéria. Uma viagem feita expressamente para isso é capaz de curar um amante; um retiro é capaz de livrar-nos de companhias que alimentam em nós alguma inclinação má. Francisco de Borgia, superior geral dos jesuítas, que finalmente foi catalogado entre os santos, estando habituado a beber muito, quando pertencia às altas rodas, converteu-se pouco a pouco ao pensar no retiro, fazendo cair todo dia uma gota de cera no copo de bebida que costumava esvaziar. A sensibilidades perigosas se contraporá alguma outra sensibilidade inocente, como a agricultura, o cuidado do jardim; fugir-se-á do ócio, colecionar-se-ão curiosidades da natureza e da arte, far-se-ão experiências e pesquisas; procurar-se-á alguma ocupação indispensável, se não se tem nenhuma, ou alguma conversão útil e agradável. Em uma palavra, cumpre aproveitar dos bons impulsos como da voz de Deus que nos chama, para tomar resoluções eficazes. E visto que não podemos fazer sempre a análise das noções dos verdadeiros bens e dos verdadeiros males até à percepção do prazer e da dor que encerram, para sentir-se por eles motivados, cumpre fazer para nós, uma vez por todas, esta lei: esperar e seguir desde já as conclusões da razão uma vez bem compreendidas, embora não percebidas a seguir a não ser através de pensamentos surdos e destituídos de atrativos sensíveis, e isso para conseguir finalmente a posse do domínio sobre as paixões, bem como sobre as inclinações insensíveis ou inquietações, adquirindo este hábito de agir segundo a razão, o qual tornará a virtude agradável e como que natural. Não se trata aqui de dar e ensinar preceitos de moral, ou diretrizes espirituais para o exercício da verdadeira piedade; basta que, considerando o procedimento da nossa alma, vejamos a fonte das nossas fraquezas, cujo conhecimento nos indica também a fonte dos remédios a empregar.] § 36. FILALETO - A inquietação presente, que nos urge, opera sozinha sobre a vontade e a determina naturalmente em vista desta felicidade (à qual todos tendemos nas nossas ações), visto que cada um considera a dor e a uneasiness (isto é, a inquietação, ou melhor, o incômodo que faz com que não nos sintamos bem) como coisas incompatíveis com a felicidade. Uma pequena dor é suficiente para corromper todos os prazeres de que desfrutamos. Em consequência, o que determina incessantemente a escolha da nossa vontade à ação seguinte, será sempre a eliminação da dor, sendo que esta eliminação é o primeiro degrau para a felicidade. TEÓFILO - [Se considerais a vossa uneasiness ou inquietação um verdadeiro desprazer, neste sentido não concordo em que ela seja o único estímulo. São o mais das vezes essas pequenas percepções insensíveis, que se poderiam denominar dores inaperceptíveis, se a noção da dor não encerrasse a apercepção. Essas pequenas impulsões consistem em libertar-se continuamente dos pequenos impedimentos, tarefa na qual a nossa natureza trabalha sem que pensemos nisso. É nisso que consiste verdadeiramente esta inquietação que sentimos sem conhecê-la, que nos faz agir nas paixões bem como quando parecemos estar na maior tranquilidade, pois nunca estamos sem alguma ação e movimento, o que deriva simplesmente do fato de que a natureza procura sempre estar melhor. É igualmente isso que nos determina também antes de qualquer consulta nos casos que nos parecem os mais indiferentes, visto que não podemos estar repartidos exatamente entre dois casos. Ora, se esses elementos da dor (que por vezes degeneram em dor ou desprazer verdadeiro, quando crescem demais) fossem verdadeiras dores, seríamos sempre infelizes, perseguindo o bem que buscamos com inquietação e ardor. Mas é bem o contrário, e como já disse mais acima (§ 6 do capítulo precedente), o acúmulo desses pequenos acontecimentos da natureza que procura estar sempre melhor, tendendo ao bem e desfrutando da sua imagem, ou diminuindo o sentimento da dor, constitui já um prazer considerável e vale por vezes mais do que desfrutar do próprio bem; e longe de considerar esta inquietação incompatível com a verdadeira felicidade, penso que a inquietação é essencial para a felicidade das criaturas, a qual jamais consiste em uma perfeita posse, que os tornaria insensíveis e como que estúpidos, mas num progresso contínuo e ininterrupto em direção a bens maiores, o qual não pode deixar de estar acompanhado de um desejo ou ao menos de uma inquietação contínua, tal como acabo de explicar; inquietação que não chega a incomodar, mas que se limita a esses elementos ou rudimentos da dor, inaperceptíveis à parte, os quais não deixam de ser suficientes para servir de estímulo e para excitar a vontade; como faz o apetite num homem que goza de boa saúde, quando não chega até o incômodo, a qual nos torna impacientes e nos atormenta por uma ideia demasiado fixa do que nos falta. Essas apetições, pequenas ou grandes, constituem o que nas escolas filosóficas se denomina motus primo primi (movimentos primordialmente primeiros): são verdadeiramente primeiros passos que a natureza nos leva a fazer, não tanto rumo à felicidade como rumo à alegria, pois neles não consideramos senão o presente: todavia, a experiência e a razão ensinam a regrar essas apetições e a moderá-las, a fim de que possam conduzir à felicidade. Já disse alguma coisa sobre isso (livro 1, capítulo 2, § 3). As apetições são como a tendência da pedra, que segue reta, mas nem sempre o melhor caminho rumo ao centro da terra, não podendo prever que encontrará rochedos nos quais se romperá, ao passo que se teria aproximado mais da sua meta, se tivesse tido o espírito e os meios para desviar-se deles. É assim que, indo diretamente rumo ao prazer presente, caímos por vezes no precipício da miséria. Eis por que a razão lhes opõe as imagens dos bens maiores ou males futuros, e uma firme resolução ou hábito de pensar, antes de fazer e depois seguir o que tivermos reconhecido como o melhor, mesmo quando as razões sensíveis das nossas conclusões não nos estiverem mais presentes ao espírito e só consistirem praticamente em imagens fracas ou mesmo nos pensamentos surdos dados pelas palavras ou sinais destituídos de uma explicação atual, de maneira que tudo consiste no pense bem e no memento (lembre-se); o primeiro servirá para estabelecer leis para si mesmo, e o segundo para segui-las, mesmo quando não se pensa na razão que lhes deu origem. Contudo, convém pensar nisso o mais que se possa, para ter a alma repleta de uma alegria racional e de um prazer acompanhado de luz.] § 37. FILALETO - Essas precauções são tanto mais necessárias, pelo fato de que a ideia de um bem ausente não pode contrabalançar o sentimento de alguma inquietação ou de algum desprazer que atualmente nos atormenta, até que este bem excite algum desejo em nós. Quantas pessoas existem, às quais se costuma representar as alegrias indizíveis do paraíso por pinturas vivas que reconhecem como possíveis e prováveis, pessoas que, porém, se contentariam de bom grado com a felicidade de que desfrutam neste mundo. É que as inquietações dos seus desejos presentes, vindo a dominar e a dirigir-se rapidamente rumo aos prazeres desta vida, determinam as suas vontades a procura-los; e durante todo esse tempo, são completamente insensíveis aos bens da outra vida. TEÓFILO - [Isso deriva em parte do fato de que os homens muitas vezes não estão persuadidos; embora o digam, uma incredulidade oculta reina no fundo da sua alma; pois jamais compreenderam as boas razões que comprovam esta imortalidade das almas, digna da justiça de Deus, que é o fundamento da verdadeira religião, ou então não se recordam mais de havê-las compreendido. Poucas pessoas concebem sequer que a vida futura, tal como a verdadeira religião e até a verdadeira razão a ensinam, seja possível; muito menos concebem a sua probabilidade, para não falar da sua certeza. Tudo o que pensam sobre ela não passa de psitacismo ou imagens grosseiras e vãs à la maometana, nas quais eles mesmos enxergam pouco atrativo: pois estão longe de serem estimulados por elas como o estavam - segundo se conta - os soldados do príncipe dos Assassinos, senhor da Montanha. Esses soldados eram transportados, quando estavam profundamente adormecidos, a um lugar repleto de delícias, onde, acreditando estarem no paraíso de Maomé, eram imbuídos, por anjos ou santos disfarçados, de opiniões tais como eram desejadas por esse príncipe. Dali eram, ao depois, reconduzidos ao lugar de onde tinham vindo; isso os estimulava depois a empreender tudo, até a morte dos príncipes inimigos do seu senhor. Não sei se não se fez injustiça a este senhor ou Sênior (Ancião) da Montanha; pois não assinalamos muitos grandes príncipes que ele fez assassinar, embora se possa ver nos historiadores ingleses a carta que se lhe atribui, para escusar o Rei Ricardo I do assassinato de um conde ou príncipe da Palestina, que este senhor da Montanha confessa ter feito matar, por ter sido ofendido por ele. Como quer que seja, a razão seja talvez porque, por um grande zelo pela sua religião, esse príncipe dos Assassinos queria dar às pessoas urna ideia vantajosa do paraíso, ideia que lhes acompanhasse sempre os pensamentos e os impedisse de serem surdos, sem pretender por isso que fossem obrigados a crer que tinham estado no próprio paraíso. Todavia, mesmo supondo que o príncipe tivesse pretendido isso, não se deve estranhar que tais fraudes piedosas tivessem produzido mais efeito do que a verdade maltratada. Entretanto, nada pode ser mais forte do que a verdade, se os homens procurassem conhecê-la bem e fazer-lhe valer os direitos; e haveria sem dúvida meios para conduzir os homens a isso. Quando penso, por menos que seja, de quanto é capaz a ambição e a avareza em todos os que se põem urna vez nesta conduta de vida, quase destituído de atrativos sensíveis e presentes, não desespero de nada, e penso que a virtude produziria infinitamente mais efeito, acompanhada que é de tantos bens sólidos, se alguma feliz revolução do gênero humano a colocasse um dia na moda. É certíssimo que poderíamos habituar os jovens a encontrarem no exercício da virtude o seu maior prazer. Mesmo os adultos poderiam criar para si leis e hábitos de segui-la, hábitos que os levariam a observá-las de maneira tão forte e com tanta inquietação, em caso de se desviarem delas, quanto um beberrão sentiria ao ser impedido de ir ao cabaré. Sinto-me bem à vontade para acrescentar estas considerações sobre a facilidade e até a facilidade de remediar os nossos males, para não contribuir a desencorajar os homens da busca dos verdadeiros bens, expondo apenas as nossas fraquezas.] § 39. FILALETO - [Tudo está em fazer com que se desejem constantemente os verdadeiros bens.] Ora, acontece raramente que se produza em nós alguma ação voluntária, sem que algum desejo a acompanhe; eis por que a vontade e o desejo são tão comumente confundidos. Todavia, não se deve considerar a inquietação, que faz parte, ou pelo menos constitui urna consequência da maior parte das outras paixões como inteiramente excluída deste artigo; pois o ódio, a cólera, a inveja, a vergonha, cada qual tem a sua inquietação e por ela operam na vontade. Duvido de que alguma dessas paixões exista completamente sozinha, creio até que seria difícil encontrar alguma paixão que não seja acompanhada de desejo. Aliás, estou certo de que onde quer que haja inquietação, existe desejo. E visto que a nossa eternidade não depende do momento presente, elevamos a nossa vista para além, quaisquer que sejam os prazeres de que desfrutamos atualmente; e o desejo, acompanhando essa olhada antecipada para o futuro, arrasta sempre a vontade atrás de si: assim sendo, mesmo em meio à alegria, o que sustenta a ação, da qual depende o prazer presente, é o desejo de prolongar este prazer e o medo de ser privado dele; e sempre que urna inquietação maior vem a apoderar-se do espírito, ela determina imediatamente o espírito a urna nova ação, e o prazer presente é negligenciado. TEÓFILO - [Várias percepções e inclinações concorrem para a volição perfeita que constitui o resultado do conflito entre elas. Existem inclinações imperceptíveis à parte, cujo acúmulo constitui urna inquietação, que nos impulsiona sem que vejamos o motivo; existem também várias juntas, que conduzem a algum objeto, ou que dele afastam, caso em que ternos desejo ou temor, também ele acompanhado de urna inquietação, que porém não chega sempre até o prazer ou desprazer. Finalmente, existem impulsões, acompanhadas efetivamente de prazer e de dor, sendo que todas essas percepções constituem ou sensações novas ou imaginações que restaram de alguma sensação passada (acompanhadas ou não da recordação), as quais, renovando os atrativos que essas mesmas imagens tinham nessas sensações precedentes, renovam também as impulsões antigas à proporção da vivacidade da imaginação. De todas essas impressões resulta finalmente o esforço prevalente, que perfaz a vontade plena. Contudo, os desejos e as tendências de que nos apercebemos denominam-se também, muitas vezes, volições, embora menos completas, quer prevaleçam e vençam, quer não. Assim sendo, é fácil julgar que a volição não poderá subsistir sem desejo e sem fuga; pois é assim que, a meu modo de ver, poderíamos denominar o oposto do desejo. A inquietação não está somente nas paixões incômodas, como o ódio, o temor, a cólera, a inveja, a vergonha, mas também nos opostos, como o amor, a esperança, a paz, o favor e a glória. Pode-se dizer que onde houver desejo, haverá também inquietação, ao passo que o contrário nem sempre é verdadeiro, visto que muitas vezes estamos em inquietação sem termos o que pedimos, caso em que não existe desejo formado.] § 40. FILALETO - Em geral, a inquietação mais forte, da qual pensamos poder libertar-nos, determina a vontade à ação. TEÓFILO - Assim como o resultado da balança dá a determinação final, da mesma forma pode acontecer que a inquietação mais forte não prevaleça; com efeito, mesmo que prevalecesse sobre cada uma das tendências opostas, consideradas isoladamente, é possível que as outras, tomadas em conjunto, a superem. O espírito pode até utilizar as dicotomias para fazer prevalecer uma vez umas, outra vez as outras, assim como nas assembleias se pode fazer prevalecer algum partido rela pluralidade de votos, conforme se dispuserem as perguntas. E verdade que o espírito deve tomar providências anteriormente; pois no momento do combate, já não é tempo para utilizar tais artifícios; tudo o que então nos atinge, pesa na balança, e contribui para formar uma direção composta, quase como na mecânica, e sem uma pronta intervenção não podemos bloqueá-la. Fertur equis auriga nec audit currus habenas (O cocheiro é arrastado pelos seus cavalos, que não obedecem às rédeas). § 41. FILALETO - Se além disso perguntamos o que é que excita o desejo, respondemos que é a felicidade, e nada mais. A felicidade e a miséria são os nomes de dois extremos cujos limites últimos nos são desconhecidos. É o que o olho não viu, o ouvido não ouviu, o coração do homem jamais compreendeu. Entretanto, surgem em nós impressões vivas de um e de outro através de diferentes espécies de satisfação e de alegria, de tormento e de mágoa, que eu englobo, por motivo de brevidade, sob os termos prazer e dor, os quais convêm ambos tanto ao espírito como ao corpo, ou os quais, para falar com maior exatidão, só pertencem ao espírito, embora por vezes tenham a sua origem no espírito por ocasião de certos pensamentos, e por vezes no corpo, por ocasião de certas modificações do movimento. § 42. Assim sendo, a felicidade, considerada em toda a sua extensão, constitui o maior prazer de que sejamos capazes, assim como a infelicidade, considerada da mesma forma, constitui a maior dor que possamos sentir. O grau mais baixo do que podemos chamar felicidade é este estado no qual, livres de todas as dores, desfrutamos de tal plenitude de prazer presente, que não conseguimos contentar-nos com menos. Denominamos bem aquilo que é apto a produzir em nós prazer, e denominamos maio que é apto a produzir em nós a dor. Todavia, acontece por vezes que não o denominemos assim, quando outro desses bens ou desses males está em concorrência com um bem ou mal maior. TEÓFILO - [Não sei se o prazer máximo é possível; acredito antes que o prazer pode aumentar ao infinito, visto que não sabemos até onde podem ser conduzidos os nossos conhecimentos e os nossos órgãos, em toda esta eternidade que nos espera. Acredito, portanto, que a felicidade constitui um prazer durável, o que não pode acontecer sem uma progressão contínua em direção a novos prazeres. Assim, de duas pessoas, das quais uma irá incomparavelmente mais depressa do que a outra, cada uma das duas será feliz em si mesma, embora a sua felicidade seja bem desigual. A felicidade é, por conseguinte, um caminho através de prazeres, por assim dizer; o prazer não constitui senão um passo e um avanço em direção à felicidade, o mais breve que se possa fazer segundo as impressões presentes, mas nem sempre o melhor, como assinalei ao final do § 36. Pode-se falhar o verdadeiro caminho, querendo seguir pelo mais curto, como a pedra que vai direta pode encontrar muito cedo obstáculos que a impedem de avançar bastante em direção ao centro da terra. Isso nos mostra que é a razão e a vontade que nos conduzem à felicidade, ao passo que o sentimento e o apetite só nos levam ao prazer. Ora, se bem que o prazer não possa receber uma definição nominal, como também não o podem a luz e a cor, pode todavia receber uma definição causal como elas, e acredito que no fundo o prazer é um sentimento de perfeição, e a dor um sentimento de imperfeição, desde que seja suficientemente notável para fazer com que dele nos possamos aperceber: pois as pequenas percepções insensíveis de alguma perfeição ou imperfeição, que são como os elementos do prazer e da dor, e dos quais já falei tantas vezes, formam inclinações e tendências, mas não ainda as próprias paixões. Assim, existem inclinações insensíveis e das quais não nos apercebemos; existem inclinações sensíveis, das quais conhecemos a existência e o objeto, mas das quais não sentimos a formação; e existem inclinações confusas, que atribuímos ao corpo, embora haja nelas sempre alguma coisa que corresponde ao espírito; finalmente, existem inclinações distintas, dadas pela razão, sendo que sentimos tanto a força como a formação delas; os prazeres desta natureza que se encontram no conhecimento e a produção da ordem da harmonia constituem os mais apreciáveis deles. Tem-se razão em dizer que geralmente todas essas inclinações e paixões, todos esses prazeres e dores só pertencem ao espírito, à alma; acrescentaria até que a sua origem está na própria alma, considerando as coisas com certo rigor metafísico; e todavia temos razão em dizer que os pensamentos confusos provêm do corpo, pois nisso a consideração do corpo, e não a da alma, fornece alguma coisa de distinto e de explicável. O bem é aquilo que serve para o prazer ou contribui para ele, como o mal é aquilo que contribui para a dor. Entretanto, havendo colisão com um bem maior, o bem que nos privasse dele poderia tornar-se verdadeiramente um mal, enquanto contribuiria para a dor que dali deveria originar-se.] § 47. FILALETO - A alma tem o poder de suspender o cumprimento de alguns desses desejos, e por conseguinte tem a liberdade de considerá-los um após o outro, e de compará-los entre si. É nisso que consiste a liberdade do homem e o que denominamos, ainda que impropriamente, a meu juízo, livre-arbítrio; é do mau uso que a liberdade faz, que procede toda esta diversidade de desvios, de erros e falhas em que nos precipitamos, quando determinamos a nossa vontade com excessiva pressa ou com excessiva demora. TEÓFILO - [O cumprimento dos nossos desejos é suspenso ou bloqueado quando este desejo não é suficiente forte para nos arrastar e para superar o incômodo que reside na sua satisfação; este incômodo por vezes não consiste senão em uma preguiça ou frouxidão insensível, que recua sem que percebamos, e que é maior nas pessoas educadas na moleza ou cujo temperamento é fleumático, ou naqueles que estão deprimidos pela idade ou pela má sorte. Entretanto, quando o desejo é suficientemente forte em si mesmo para impulsionar, se não houver obstáculo, pode ser bloqueado por inclinações contrárias; estas podem consistir em uma simples tendência, que constitui como que o elemento ou o começo do desejo, ou então podem ir até o próprio desejo. Todavia, visto que tais inclinações, essas tendências e esses desejos contrários devem encontrar-se já na alma, ela não tem poder sobre elas, e por conseguinte não poderia resistir-lhes de uma forma livre e voluntária, na qual possa participar a razão, se a alma não dispusesse de outro meio, que consiste em desviar o espírito para outra coisa. Mas como lembrar-se de fazê-lo, quando for necessário? Este é o problema, sobretudo quando se está sob o domínio de uma forte paixão. É necessário, portanto, que o espírito esteja preparado de antemão e se encontre já disposto a passar de um pensamento para o outro, para não estacionar em um ponto escorregadio e perigoso. Para isso convém habituar-se de maneira geral a só pensar em certas coisas de passagem, para melhor conservar a própria liberdade de espírito. O melhor é habituar-se a proceder metodicamente e acostumar-se a uma série de pensamentos, cuja conexão seja feita pela razão e não pelo acaso (isto é, as impressões insensíveis e casuais). Para isso convém recolher-se de vez em quando, elevar-se acima do tumulto presente das impressões, sair por assim dizer do lugar em que nos encontramos, e dizer-nos: die eur hie? respiee finem: onde estamos? Olhemos para a meta. Os homens teriam muitas vezes necessidade de alguém que, por ofício (como acontecia com Felipe, pai de Alexandre Magno), os interrompesse e os chamasse ao dever. Na falta de tal pessoa oficial, é bom que nos acostumemos nós mesmos a cumprir este ofício. Uma vez que estivermos em estado de sustar o efeito dos nossos desejos e paixões, isto é, de suspender a ação, podemos encontrar os meios de combatê-las, seja mediante desejos ou inclinações contrárias, seja desviando, isto é, ocupando-nos com coisas de outra natureza. É através de tais métodos e artifícios que nos tornamos por assim dizer mestres de nós mesmos; é por este caminho que podemos, com o tempo, fazer com que pensemos e façamos o que quereríamos querer e o que a razão ordena. Contudo, é sempre por vias determinadas e nunca sem sujeito, ou pelo princípio imaginário duma indiferença perfeita, ou de equilíbrio, na qual alguns quereriam fazer consistir a essência da liberdade, como se fosse possível determinar-se sem sujeito e até contra todo sujeito e ir diretamente contra toda a prevalência das impressões e das propensões. Sem sujeito, digo eu, isto é, sem a oposição de outras inclinações, ou sem que se esteja disposto de antemão a desviar o espírito, ou sem qualquer outro meio semelhante explicável; de outra forma, é recorrer ao quimérico, como nas faculdades nuas ou qualidades ocultas dos escolásticos, onde não há nem pé nem cabeça.] § 48. FILALETO - [Também eu sou por esta determinação inteligível da vontade por aquilo que está na percepção e no entendimento. Querer e agir conforme ao último resultado de um exame sincero, é antes uma perfeição do que um defeito da nossa natureza. Não é isso que sufoca ou mitiga a liberdade; pelo contrário, é o que ela possui de mais perfeito e mais vantajoso. Quanto mais deixamos de nos determinar desta maneira, tanto mais nos aproximamos da miséria e da escravidão. Com efeito, se supuserdes no espírito uma perfeita e absoluta indiferença, que não possa ser determinada pelo último julgamento que o espírito faz sobre o bem e o mal, colocá-lo-íeis em um estado muito imperfeito.] TEÓFILO - [Tudo isso me agrada muito e mostra que o espírito não tem poder completo e direto para sempre bloquear os seus desejos; do contrário, jamais seria determinado, qualquer que fosse o exame que fizesse e por melhores e mais eficazes que fossem os sentimentos que pudesse ter; permaneceria sempre na indecisão e flutuaria eternamente entre o temor e a esperança. É necessário que ele seja finalmente determinado, e que não possa opor-se senão indiretamente aos seus desejos, munindo-se de antemão das armas que os combatam quando necessário, como acabo de explicar.] FILALETO - Entretanto, uma pessoa tem a liberdade de levar a mão à cabeça ou deixá-la em repouso; ela é perfeitamente indiferente quanto a uma ou a outra dessas coisas, e seria uma imperfeição se tal faculdade lhe faltasse. TEÓFILO - [Em se falando a rigor, não somos jamais indiferentes quanto a duas opções, quaisquer que sejam; por exemplo, voltar-se para a direita ou para a esquerda, colocar adiante o pé direito (como era necessário em Trímalcion) ou o esquerdo; pois fazemos uma e outra coisa sem pensar, o que constitui uma prova de que há um concurso de disposições interiores e impressões exteriores - embora ambas insensíveis - que nos determina à opção que adotamos. Entretanto, a prevalência é bem pequena, e na prática é como se estivéssemos indiferentes, visto que o menor sujeito sensível que se apresente a nós é capaz de determinar-nos sem dificuldade para um de preferência ao outro; e embora se necessite algum esforço para levantar a mão e levá-la à cabeça, ele é tão pequeno que o superamos sem dificuldade; de outra forma, reconheço que seria uma grande imperfeição, se o homem fosse menos indiferente e se lhe faltasse o poder de determinar-se facilmente a levantar ou a não levantar o braço.] FILALETO - Entretanto, a imperfeição não seria menor, se o espírito tivesse a mesma indiferença em todas as ocasiões, como quando quisesse defender a cabeça ou os olhos de um golpe do qual se visse ameaçado. [Isto é, se lhe fosse tão fácil sustar este movimento como os outros, dos quais acabamos de falar, e nos quais ele é quase indiferente; pois faria com que ele não fosse levado a isso com força e prontidão suficientes em caso de necessidade. Assim, a determinação nos é útil e necessária muitas vezes; e se fôssemos pouco determinados em toda espécie de ocasiões, e como que insensíveis às razões tiradas da percepção do bem e do mal, estaríamos privados de opção efetiva.] E se fôssemos determinados por outra coisa que pelo último resultado que formamos no nosso próprio espírito conforme tivermos julgado bem ou mal de uma certa ação, não seríamos livres. TEÓFILO - [Nada de mais verdadeiro. Os que procuram outra liberdade não sabem o que exigem.] § 49. FILALETO - Os seres superiores que desfrutam de uma perfeita felicidade são mais fortemente determinados para a escolha do bem do que nós, e, todavia, não temos razão de imaginar que sejam menos livres do que nós. TEÓFILO - [A isso os teólogos dizem que essas substâncias bem-aventuradas no bem são isentas de qualquer perigo de queda.] FILALETO - Acredito até que, se competisse a pobres criaturas finitas como somos nós, julgar acerca daquilo que poderia fazer uma sabedoria e uma bondade infinita, poderíamos dizer que o próprio Deus não pode escolher o que não é bom, e que a liberdade deste Ser todo-poderoso não o impede de ser determinado por aquilo que é o melhor. TEÓFILO - [Estou de tal forma convencido desta verdade, que, a meu entender, podemos estar absolutamente certos dela, pobres e finitos que somos, e faríamos muito mal em duvidar disso; pois com isso derrogaríamos à sua sabedoria, à sua bondade, e às suas outras perfeições infinitas. Contudo, a escolha, por mais que a vontade seja determinada a ela, não deve ser denominada necessária absolutamente e a rigor; com efeito, a prevalência dos bens percebidos inclina sem obrigar, embora, considerando-se tudo, esta inclinação seja determinante e não deixe de surtir o seu efeito.] § 50. FILALETO - Ser determinado pela razão ao melhor equivale a ser livre em ponto máximo. Porventura alguém quereria ser imbecil, pelo fato de que um imbecil é menos determinado por sábias reflexões do que um homem de bom senso? Se a liberdade consistir em sacudir o jugo da razão, os loucos e os insensatos seriam os únicos livres. Não creio que, por amor a tal liberdade, alguém gostaria de ser louco, a não ser que já o seja. TEÓFILO - [Existem hoje em dia pessoas que acreditam ser de bom-tom falar contra a razão e considerá-la um incômodo pedante. Vejo pequenos folhetos de discurso sem valor que festejam tal ideia; vejo mesmo, por vezes, versos belos demais para serem utilizados a serviço de pensamentos tão falsos. Com efeito, se aqueles que ridicularizam a razão falassem sério, seria uma extravagância de espécie nova, desconhecida aos séculos passados. Falar contra a razão equivale a falar contra a verdade, pois a razão é um encadeamento de verdades. É falar contra si mesmo, e contra o seu próprio bem, visto que o ponto principal da razão consiste em conhecer e em seguir este bem.] § 51. FILALETO - Por conseguinte, uma vez que a perfeição mais alta de um ser inteligente consiste em aplicar-se cuidadosa e constantemente à busca da verdadeira felicidade, da mesma forma, o cuidado que devemos ter para não considerar como felicidade real o que não passa de imaginário constitui o fundamento da nossa liberdade: quanto mais nos ligarmos à procura indeclinável da felicidade em geral, que jamais cessa de ser o objeto dos nossos desejos, tanto mais a nossa vontade se encontra livre da necessidade de ser determinada pelo desejo, que nos conduz a algum bem particular até havermos examinado se se coaduna com a nossa verdadeira felicidade ou se se lhe opõe. TEÓFILO - [A verdadeira felicidade deveria sempre constituir o objeto dos nossos desejos, porém podemos duvidar que o seja na realidade: com efeito, muitas vezes não pensamos nela; observei aqui já mais de uma vez que, a não ser que o apetite seja guiado pela razão, tende ao prazer presente, e não à felicidade, isto é, ao prazer durável; vede, para isso, os § § 36 e 41.] § 53. FILALETO - Se alguma perturbação excessiva se apodera da nossa alma, como seria a dor de uma cruel tortura, não somos suficientemente donos do nosso espírito. Todavia, para moderar as nossas paixões na medida do possível, devemos fazer com que o nosso espírito tome o gosto do bem e do mal real e efetivo, e não permitir que um bem excelente e considerável nos escape do espírito sem deixar algum gosto, até que tenhamos excitado em nós desejos proporcionados à sua excelência, de maneira que a sua ausência nos torne inquietos, bem como o temor de perdê-lo, quando dele desfrutamos. TEÓFILO - [Isso concorda bastante com as observações que acabo de fazer nos § § 31 e 35 e com o que disse mais de uma vez dos prazeres luminosos, onde se compreende como eles nos aperfeiçoam sem colocar-nos em perigo de alguma imperfeição maior, como fazem os prazeres confusos dos sentidos, ante os quais cumpre precaver-se, sobretudo quando não nos certificamos pela experiência de que podemos utilizá-los sem perigo.] FILALETO - Que ninguém diga a isso que não pode dominar as suas paixões ou impedir que elas se desencadeiem e forcem a agir; pois, o que podemos fazer ante um príncipe ou algum homem importante, podemos fazê-lo também quando estamos sozinhos ou na presença de Deus, se o quisermos. TEÓFILO - [Esta observação é muito boa e digna de muita reflexão.] § 54. FILALETO - Entretanto, as diferentes opções que os homens fazem neste mundo demonstram que uma e mesma coisa não é igualmente boa para cada um deles. E se os interesses dos homens não fossem além da presente vida, a razão desta diversidade - que faz, por exemplo, que uns se afundem no luxo e na desordem e outros prefiram a temperança à volúpia - proviria apenas do fato de que uns e outros colocariam a sua felicidade em coisas diversas. TEÓFILO - [Ainda agora a diferença provém disso, embora todos tenham - ou devam ter - ante os olhos este objetivo comum da vida futura. E verdade que a consideração da verdadeira felicidade, mesmo desta vida, bastaria para preferir a virtude à volúpia, que afasta da felicidade, embora a obrigação, neste caso, não fosse tão forte e decisiva. É verdade também que os gostos dos homens diferem, e diz-se que não se deve discutir sobre gostos. Entretanto, já que são apenas percepções confusas, não devemos ligar-nos senão aos objetos incapazes de nos prejudicar; do contrário, se alguém encontrasse gosto nos venenos, os quais o matarão ou o tornarão infeliz, seria ridículo afirmar que não devemos contestar-lhe o que é do gosto dele. § 55. FILALETO - Se nada existe a esperar para além do túmulo, a consequência que segue é muito justa: comamos e bebamos, desfrutemos de tudo o que nos causa prazer, pois amanhã morreremos. TEÓFILO - [Creio que há algo a dizer quanto a esta consequência. Aristóteles, os Estoicos e vários outros filósofos antigos pensavam de outra forma, e acredito que tinham razão. Mesmo que nada houvesse além desta vida, a tranquilidade da alma e a saúde do corpo não deixariam de ser preferíveis aos prazeres que contrariam a tais bens. O fato de um bem não durar para sempre não constitui um motivo para menosprezá-lo. Confesso, porém, que existem casos em que seria impossível demonstrar que o mais honesto é também o mais útil. Em consequência, somente a consideração de Deus e da imortalidade pode tornar as obrigações da virtude e da justiça indispensáveis.] § 58. FILALETO - Parece-me que o julgamento presente que fazemos sobre o bem e o mal é sempre correto. Quanto à felicidade ou à miséria presente, quando a reflexão não vai mais longe, o homem nunca escolhe mal. TEÓFILO - [Isto é, se tudo se limitasse ao momento presente, não haveria motivo para recusar o prazer que se apresenta. Com efeito, observei acima que todo prazer constitui um sentimento de perfeição. Todavia, existem certas perfeições que levam consigo imperfeições maiores. Como se alguém passasse toda a vida atirando ervilhas contra alfinetes, a fim de aprender a não falhar em prendê-las, a exemplo daquele a quem Alexandre Magno fez dar um alqueire de ervilhas; é inegável que tal homem atingiria certa perfeição, mas muito insignificante e indigna de comparar-se com tantas outras perfeições muito necessárias que teria negligenciado. Assim é que a perfeição que se encontra em certos prazeres presentes deve ceder sobretudo ao cultivo das perfeições que são necessárias para que não sejamos afundados na miséria, que constitui o estado no qual passamos de imperfeição a imperfeição, ou de dor a dor. Se só houvesse o presente, seria necessário contentar-se com a perfeição que se apresenta no momento, isto é, com o prazer presente.] § 62. FILALETO - Ninguém tornaria voluntariamente a sua condição infeliz, se não fosse levado a isso por falsos julgamentos. Não falo de equívocos, que constituem efeitos de erros invencíveis e que dificilmente merecem o nome de julgamento falso, deste falso julgamento que é tal em virtude da própria confissão que cada homem deve fazer a si mesmo. § 63. Primeiramente, a alma se engana quando comparamos o prazer ou a dor presente com um prazer ou uma dor futura, que medimos à base da distância diferente em que se encontra com relação a nós; assemelhamo-nos no caso a um herdeiro pródigo, que para possuir no momento pouca coisa renunciaria a uma grande herança que seria certa. Cada qual deve reconhecer este falso julgamento, pois o futuro se tornará presente e terá então a mesma vantagem da proximidade. Se, no momento em que o homem toma o copo em mão, o prazer de beber fosse acompanhado das dores de cabeça e de estômago que lhe chegarão dentro de algumas horas, não quereria degustar sequer o vinho com os lábios. Se uma pequena diferença de tempo produz tanta ilusão, com muito maior razão uma distância maior fará o mesmo efeito. TEÓFILO - [Aqui existe certa concordância entre a distância espacial e a temporal. Entretanto, existe também outra diferença: os objetos visíveis diminuem a sua ação sobre a vista, mais ou menos à proporção da distância; não acontece o mesmo quanto aos objetos futuros, que agem sobre a imaginação e o espírito. Os raios visíveis são linhas retas, que se afastam proporcionalmente, porém existem linhas curvas, que após alguma distância parecem cair para a direita e não se afastam mais dela sensivelmente; isso acontece com as linhas assintóticas, onde o intervalo aparente da linha reta desaparece, embora na realidade permaneçam separadas eternamente. Acreditamos até que, ao final, a aparência dos objetos não diminui à proporção do aumento da distância, pois a aparência desaparece em breve inteiramente, embora o afastamento não seja infinito. Assim é que uma pequena distância temporal nos fecha completamente a vista para o futuro, como se o objeto tivesse desaparecido. Dele permanece, por vezes, apenas o nome no espírito, e esta espécie de pensamentos, dos quais já falei, que são surdos e incapazes de impulsionar, se não tivermos o cuidado de cuidar disso por método e por hábito.] FILALETO - Não falo aqui desta espécie de falso julgamento, em virtude do qual o que está ausente não somente é diminuído mas completamente aniquilado, no espírito dos homens, quando desfrutam de tudo o que podem obter no presente e concluem dali que não lhes acontecerá mal algum. TEÓFILO - [Quando a expectativa do bem ou do mal futuro é aniquilada, temos uma outra espécie de julgamento falso, visto que se nega ou põe em dúvida a consequência que se tira do presente; mas fora disso, o erro que aniquila o sentimento do futuro coincide com este falso julgamento já mencionado, que procede de uma representação demasiadamente fraca do futuro, o qual se considera pouco ou nada. Aliás, poder-se-ia talvez distinguir aqui entre mau gosto e falso julgamento, pois muitas vezes nem sequer perguntamos se o bem futuro deve ser preferido, e agimos apenas em força das impressões, sem lembrar-nos de examinar as coisas. Todavia, quando refletimos, acontece um de dois: ou não continuamos a refletir e passamos adiante, sem aprofundar a questão, ou prolongamos o exame e formamos uma conclusão. Por vezes, em ambos os casos permanece um remorso mais ou menos grande; por vezes não existe em absoluto a formido oppositi (medo do contrário) ou escrúpulo, ou porque o espírito se desvia completamente, ou porque é vencido pelos preconceitos.] § 64. FILALETO - A capacidade limitada do nosso espírito constitui a causa dos juízos falsos que fazemos ao comparar os bens e os males; não podemos desfrutar bem de dois prazeres ao mesmo tempo, e muito menos podemos desfrutar de algum prazer no período em que somos atingidos pela dor. Um pouco de amargura, misturada com a bebida, nos impede de degustar-lhe a doçura. O mal que sentimos atualmente é sempre o mais rude de todos, chegamos a gritar: ah, qualquer outra dor, de preferência a esta! TEÓFILO - [Existe muita variedade em tudo isso, segundo o temperamento das pessoas, segundo a força do que sentimos, segundo os hábitos que contraímos. Uma pessoa que tem a doença da gota pode estar alegre pelo fato de ter sido contemplada com uma grande sorte, e, ao contrário, um homem que nada nas delícias e que poderia viver à vontade nas suas propriedades, está afundado na tristeza devido a uma desgraça na sua corte. É que a alegria e a tristeza provêm do resultado ou da prevalência dos prazeres ou das dores, quando existe mescla. Leandro desprezava o incômodo e o perigo de atravessar o mar a nado de noite, movido pelos atrativos da bela Hero. Existem pessoas que não conseguem beber nem comer, ou satisfazer a outros apetites, sem muita dor, devido a alguma enfermidade ou incômodo; e todavia satisfazem a estes apetites, mesmo além do necessário e dos limites justos. Outros são tão fracos, ou tão delicados, que recusam os prazeres aos quais vai mesclada alguma dor, algum desgosto ou incômodo. Existem outros que se colocam muito acima das dores ou dos prazeres presentes e medíocres, e que quase só agem sob temor ou por esperança; outros são tão efeminados que se queixam do menor incômodo ou correm atrás do mínimo prazer sensível presente, assemelhando-se a crianças. A tais pessoas as dores ou a volúpia presente sempre parecem ser as maiores; assemelham-se a pregadores ou panegiristas pouco judiciosos, para os quais - segundo o provérbio - o santo que enaltecem é sempre o maior santo do céu. Todavia, por maior que seja a variedade entre as pessoas, permanece verdade que só agem em força das percepções presentes; quando o futuro os atinge, isso acontece ou em virtude da imagem que têm dele, ou por uma resolução ou hábito que tomaram de seguir, sem ter nenhuma imagem ou sinal natural dele, pois não seria sem inquietação e por vezes sem algum sentimento de mágoa que se oporiam a uma forte resolução já tomada, e sobretudo a um hábito.] § 65. FILALETO - Os homens têm muita inclinação a diminuir o prazer futuro e a concluir dentro de si mesmos que, ao chegar a prova, ele não corresponderia talvez à esperança que se teve nele, nem ao juízo que em geral se tem dele, tendo-se muitas vezes concluído, a partir da própria experiência, que não somente os prazeres que outros exaltaram lhes pareceram muito insípidos, mas que aquilo que lhes causou muito prazer em um certo tempo, depois lhes desagradou e os chocou. TEÓFILO - [Tais são principalmente os raciocínios dos voluptuosos, porém se pode observar que os ambiciosos e os avarentos têm um conceito de todo diverso das honras e das riquezas, embora desfrutem mediocremente, e por vezes até muito pouco, desses bens, quando os possuem, pois estão sempre preocupados em ir mais longe. Acredito ser uma bela invenção desta arquiteta que é a natureza, o ter tornado os homens tão sensíveis ao que toca tão pouco os sentidos; se os homens não pudessem tornar-se ambiciosos ou avaros, seria difícil, no estado presente da natureza humana, que pudessem tornar-se suficientemente virtuosos e razoáveis para empenhar-se na sua perfeição, apesar dos prazeres presentes que desviam.] § 66. FILALETO - No que concerne às coisas boas ou más em suas consequências, e pela aptidão que têm para proporcionar-nos o bem e o mal, julgamos de formas diferentes, ou quando julgamos que são incapazes de nos causar tanto mal como fazem efetivamente, ou quando julgamos que, embora a consequência seja importante, não é certo que a coisa não possa acontecer de outra forma, ou pelo menos que se possa evitá-la por alguns meios, como pelo esforço, por uma mudança de conduta, pelo arrependimento. TEÓFILO - Parece-me que, se pela importância da consequência se entende a do consequente, isto é, a grandeza do bem ou do mal que pode seguir, é inevitável cair na espécie anterior de julgamento falso, onde o bem ou o mal futuro é mal representado. Assim sendo, só resta a segunda espécie de julgamento falso do qual se trata atualmente, isto é, onde a consequência é posta em dúvida. FILALETO - Seria fácil mostrar que as escapatórias que acabo de tocar constituem outros tantos julgamentos irracionais, porém me limitarei a observar genericamente que equivale a agir diretamente contra a razão arriscar um bem maior por um bem menor [ou expor-se à infelicidade para adquirir um bem pequeno e para evitar um mal pequeno], e isso ainda com base em conjecturas incertas e antes de ter feito um justo exame. TEÓFILO - [Tratando-se de duas considerações heterogêneas (ou seja, que não se podem comparar juntamente), a da grandeza da consequência e a da grandeza do consequente, os moralistas, ao quererem compará-las, confundiram-se bastante, como se observa naqueles que trataram da probabilidade. A verdade é que aqui, como em outras avaliações disparatadas e heterogêneas, e, por assim dizer, de mais de uma dimensão, a grandeza daquilo de que se trata está na razão composta de uma e da outra avaliação, e como urra retângulo, no qual existem duas considerações, a do comprimento e a da largura. Quanto à grandeza da consequência e aos graus de probabilidade, falta-nos ainda esta parte da lógica que deve fazê-las estimar, sendo que a maior parte dos casuístas que escreveram sobre a probabilidade nem sequer lhe compreenderam a natureza, fundamentando-a, com Aristóteles, sobre a autoridade, ao invés de fundamentá-la na verossimilhança, como seria necessário, visto que a autoridade constitui apenas uma parte nas razões que perfazem a verossimilhança.] § 67. FILALETO - Eis aqui algumas das causas comuns deste falso julgamento. A primeira é a ignorância, a segunda é a inadvertência, quando, um homem não faz nenhuma reflexão sobre aquilo que conhece. E uma ignorância afetada e presente, que seduz tanto o julgamento como a vontade. TEÓFILO - [Ela é sempre presente, mas nem sempre é afetada; pois nem sempre nos lembramos de pensar, como devemos, naquilo que sabemos e de que deveríamos recordar-nos, se tivéssemos domínio. A ignorância proposital está sempre mesclada com alguma advertência durante o período em que dura; é verdade que depois pode haver inadvertência. A arte de perceber aquilo que sabemos ser necessário seria uma das mais importantes, se fosse inventada; todavia, não creio que os homens tenham até hoje pensado em constituir os elementos desta arte, pois a arte da memória, sobre a qual tantos autores já escreveram, é completamente outra coisa.] FILALETO - Portanto, se juntamos confusamente e às pressas as razões de um dos lados, e deixamos escapar por negligência várias sornas que devem fazer parte desta conta, esta precipitação produz tantos julgamentos falsos como se fosse urna perfeita ignorância. TEÓFILO - [Com efeito, necessitam-se muitas coisas, quando se trata da balança das razões; é mais ou menos como com o livro de contas dos comerciantes. Não se deve negligenciar nenhuma soma separada, deve-se avaliar cada soma em separado, deve-se dispô-las bem, e finalmente deve-se fazer uma comparação exata. Acontece que costumamos negligenciar vários pontos. Isso pode acontecer quando sobrevoamos ligeiramente; não se dá a cada elemento o seu justo valor, caso em que nos parecemos àquele contador que costumava calcular com cuidado as colunas de cada página, mas que calculava muito mal as somas particulares de cada linha antes de colocá-las na coluna, fazendo isso para enganar os revisores, que olham sobretudo para o que se encontra nas colunas. Finalmente, mesmo depois de ter marcado tudo com exatidão, podemos equivocar-nos ao conferir as somas das colunas e mesmo no cotejo final, onde se indica a soma das somas. Assim sendo, ser-nos-ia necessária também a arte de notar e de avaliar as probabilidades, e além disso o conhecimento do valor dos bens e dos males, para bem usar a arte das consequências: teríamos necessidade ainda da atenção e da paciência depois de tudo isso, para chegarmos até a conclusão. Finalmente, requer-se uma firme e constante resolução para executar aquilo que foi concluído, além de métodos, leis particulares e hábitos bem formados para manter posteriormente a execução, quando as considerações que levaram às resoluções não estiverem mais presentes ao espírito. É verdade que, graças a Deus, no que diz respeito ao mais importante, a summa rerum, a felicidade e a miséria, não carecemos de tantos conhecimentos e ajudas, como seria necessário para julgar bem em se tratando de um conselho de Estado ou de guerra, em um tribunal de justiça, em uma consulta de medicina, em uma controvérsia de teologia ou de história, ou em algum ponto da matemática ou da mecânica; em compensação, requer-se mais firmeza de hábito no que concerne a este grande ponto da felicidade e da virtude, para tomar sempre boas resoluções e para segui-las. Em uma palavra, para verdadeira felicidade se requer menos conhecimento e mais boa vontade: assim sendo, pode atingi-la facilmente tanto o maior iletrado como a pessoa mais douta. FILALETO - Conclui-se, portanto, que o entendimento sem liberdade não seria de nenhuma utilidade, e que a liberdade sem entendimento não significaria nada. Se uma pessoa pudesse ver o que lhe pode fazer bem ou mal, sem que fosse capaz de fazer um passo sequer para atingir o bem ou evitar o mal, estaria em melhor situação pelo fato de ter o uso da vista? Seria até mais infeliz, pois desejaria inutilmente o bem e temeria o mal, que veria como inevitável. Por outra parte aquele que tem a liberdade de correr para cá ou para lá na escuridão, por que estaria em situação melhor do que aquele que é manobrado pelo vento? TEÓFILO - [O seu capricho seria mais satisfeito, todavia não estaria em situação melhor no que concerne a encontrar o bem e evitar o mal.] § 68. FILALETO - Outra fonte de falsos julgamentos. Contentes com o primeiro prazer que nos parece ou que o hábito nos tomou agradável, não costumamos olhar para mais longe. Aqui reside outra ocasião de julgar mal: o não considerarem necessário para a sua felicidade aquilo que efetivamente o é. TEÓFILO - [Parece-me que este tipo de falso julgamento se engloba na espécie anterior, quando nos equivocamos com respeito às consequências.] § 69. FILALETO - Resta saber se está no poder do homem mudar a aprovação ou desaprovação que acompanha uma ação particular. Ele o pode em muitos pontos. As pessoas podem e devem corrigir o seu palato. Podemos também mudar o gosto da alma. Um exame justo, a prática, a aplicação, o costume produzirão este efeito. Assim é que nos habituamos ao fumo, que o uso e o costume acabam por tornar agradável. Ocorre o mesmo com a virtude: os hábitos possuem grandes encantos, sendo que não podemos abandoná-los ao depois sem inquietação. Considerar-se-á talvez um paradoxo o fato de que os homens podem fazer com que coisas ou ações lhes sejam mais ou menos agradáveis, tanto é verdade que negligenciamos este dever. TEÓFILO - [É o que também eu observei acima, no § 37, ao final, e no § 47, também ao final. Podemos fazer com que queiramos uma coisa e criar gosto por ela.] § 70. FILALETO - A moral, se assentar sobre fundamentos autênticos, só pode determinar o homem à virtude; basta que uma felicidade ou uma infelicidade infinita após a presente vida sejam possíveis. Cumpre reconhecer que uma vida honesta, associada à expectativa de uma felicidade eterna possível, é preferível a uma vida desonesta, acompanhada do temor de uma miséria espantosa, ou ao menos da esperança espantosa e incerta de ser aniquilado. Tudo isso apresenta evidência, mesmo que as pessoas de bem só descobrissem males no mundo, e mesmo que os maus só conhecessem felicidade, o que comumente está longe de acontecer. Com efeito, considerando bem as coisas, os maus têm a pior parte, mesmo na vida presente. TEÓFILO - [Portanto, mesmo que não houvesse nada para além do túmulo, uma vida à moda dos Epicureus não seria a mais racional. Fico muito satisfeito em verificar que retificais o que havíeis dito de contrário, no § 55.] FILALETO - Quem seria tão insensato para decidir-se por si mesmo (se pensar bem nisso) a expor-se a um perigo possível de ser infinitamente infeliz, de maneira que não teria nada a ganhar senão o puro nada, ao invés de colocar-se no caminho do homem de bem, que só tem a temer o nada e a esperar uma felicidade eterna? Evitei falar sobre a certeza ou a probabilidade do estado futuro, visto que não tenho aqui senão a intenção de mostrar o falso julgamento, pelo qual cada um deve reconhecer-se culpado conforme os seus próprios princípios. TEÓFILO - [Os maus estão fortemente propensos a crer que a outra vida é impossível. Acontece que a única razão que aduzem é que devemos limitar-nos ao que apreendemos pelos sentidos, e que nenhum conhecido retomou jamais do outro mundo. Houve um tempo em que, baseando-nos no mesmo princípio, podíamos rejeitar a existência dos Antípodas, quando não se queria acrescentar a matemática às noções populares; naquele tempo podia-se rejeitar os antípodas com a mesma razão com que se pode hoje rejeitar a existência de uma vida futura, se não quisermos acrescentar a verdadeira metafísica às noções da imaginação. Com efeito, existem três graus de noções ou ideias, a saber: noções populares, matemáticas e metafísicas. As primeiras não eram suficientes para fazer crer na existência dos antípodas; as primeiras e as segundas ainda não são suficientes para fazer crer na existência do outro mundo. É verdade que já fornecem conjecturas favoráveis, porém se as segundas demonstrassem com certeza os antípodas antes da experiência que temos agora (não falo dos habitantes, mas ao menos do lugar que o conhecimento da forma redonda da terra lhes atribuía entre os geógrafos e os astrônomos), as últimas não dão menos certeza acerca de uma outra vida, e isso desde agora, e antes que tenhamos ido vê-la.] § 72. FILALETO - Voltemos agora à potência, que constitui propriamente o tema geral do presente capítulo, sendo que a liberdade é apenas uma espécie dela, ainda que das mais consideráveis. Para termos ideias mais distintas sobre a potência, não será nem fora de propósito nem inútil adquirir um conhecimento mais exato do que denominamos ação. Afirmei, no início do nosso colóquio sobre a potência, que existem duas espécies de ações das quais temos alguma ideia, ou seja, o movimento e o pensamento. TEÓFILO - [Acredito que poderíamos utilizar um termo mais geral do que pensamento, a saber, percepção, atribuindo o pensamento apenas aos espíritos, ao passo que a percepção compete a todas as enteléquias. Isso sem querer contestar a quem quer que seja o direito de tomar o termo pensamento no mesmo sentido genérico. Eu mesmo talvez o tenha feito, sem maior atenção.] FILALETO - Embora se atribua a estas duas coisas o nome de ação, todavia constata-se que o termo não lhes convém sempre com perfeição, havendo exemplos que será melhor qualificar com o termo paixões. Com efeito, nesses exemplos a substância, na qual se encontra o movimento ou o pensamento, recebe puramente de fora a impressão pela qual a ação lhe é comunicada, sendo que ela age exclusivamente pela capacidade que tem de receber essa impressão, o que constitui apenas uma potência passiva. Por vezes a substância ou o agente se põe em ação pelo seu próprio poder, caso em que temos propriamente uma potência ativa. TEÓFILO - Já afirmei que a rigor meta físico, tomando a ação como o que acontece à substância espontaneamente de seu próprio ser, tudo aquilo que é propriamente uma substância não faz outra coisa senão agir, pois tudo lhe vem dela mesma depois de Deus, não sendo possível que uma substância criada tenha influência sobre outra. Entretanto, tomando a ação como um exercício da perfeição e a paixão como o contrário, não existe ação nas verdadeiras substâncias, a não ser quando sua percepção (porque eu a atribuo a todas) se desenvolve e se torna mais distinta, como não existe paixão a não ser quando ela se torna mais confusa; assim sendo, nas substâncias, capazes de prazer e de dor, toda ação é um caminhamento para o prazer, e toda paixão é um caminhamento para a dor. Quanto ao movimento, é apenas um fenômeno real, visto que a matéria e a massa, à qual pertence o movimento, não constitui propriamente uma substância. Todavia, existe uma imagem da ação no movimento, como existe uma imagem da substância na massa; sob este aspecto, pode-se dizer que o corpo age, quando existe espontaneidade na sua mudança, e que ele sofre (é afetado por uma paixão), quando é impulsionado ou impedido por outro; como na verdadeira ação ou paixão de uma verdadeira substância pode-se tomar como sua ação e atribuir a ela mesma a mudança pela qual ela atende à sua perfeição; da mesma forma, pode-se considerar paixão e atribuir a uma causa estranha a mudança em que ocorre o contrário; embora esta causa não seja imediata, visto que no primeiro caso a própria substância, e no segundo caso as coisas estranhas servem para explicar esta mudança de uma forma inteligível. Só atribuo aos corpos uma imagem da substância e da ação, visto que aquilo que é composto de partes não pode passar propriamente por uma substância, tampouco como um rebanho; todavia, pode-se dizer que há nisso algo de substancial, cuja unidade - que faz dela por assim dizer um ser - provém do pensamento. FILALETO - Eu acreditava que a potência de receber ideias ou pensamentos pela operação de algumas substâncias estranhas se chamasse potência de pensar, embora no fundo seja apenas uma potência passiva ou uma simples capacidade que faz abstração das reflexões e mudanças internas que sempre acompanham a imagem recebida, visto que a expressão, que existe na alma, é como seria a de um espelho vivo; todavia, o poder que temos de relembrar ideias ausentes à nossa escolha, e de comparar as que consideramos próprias para tal, é verdadeiramente uma potência ativa. TEÓFILO - [Isso concorda também com as noções que acabo de assinalar, pois nisto existe uma passagem a um estado mais perfeito. Entretanto, acredito que haja também ação nas sensações, enquanto nos dão percepções mais distinguidas, e consequentemente a ocasião de fazer observações, e, por assim dizer, de nos desenvolver.] § 73. FILALETO - Agora parece-me que podemos reduzir as ideias primitivas e originais a estas poucas: a extensão, a solidez, a mobilidade (isto é, potência passiva, ou seja, capacidade de ser movido), que recebemos do corpo através do sentidos; a perceptividade (ou poder de perceber ou pensar) e a motividade (poder de mover), que nos vêm ao espírito por via de reflexão, e finalmente a existência, a duração, e o número, que nos vêm pelas duas vias, de sensação e de reflexão; com efeito, por essas ideias poderíamos explicar, se não me equivoco, a natureza das cores, dos sons, dos gostos, dos odores e de todas as outras ideias que temos, se as nossas faculdades fossem suficientemente sutis para perceber os diferentes movimentos dos pequenos corpos que produzem tais sensações. TEÓFILO - [Para dizer a verdade, acredito que essas ideias, que denominamos aqui originais e primitivas, não o são na maioria dos casos, visto serem, a meu juízo, suscetíveis de uma ulterior resolução; todavia, não vos censuro por não terdes levado a análise mais longe. Aliás, creio que se o número delas pudesse ser diminuído por este meio, poderia ser aumentado acrescentando-lhes outras ideias mais originais ou igualmente originais. Quanto ao seu arranjo, acreditaria, conforme a ordem da análise, que a existência é anterior às outras, o número é anterior à extensão, a duração à motividade ou mobilidade, embora esta ordem analítica não seja geralmente a das ocasiões que nos fazem pensar nelas. Os sentidos nos fornecem a matéria para as reflexões, e não pensaríamos sequer no pensamento se não pensássemos em alguma coisa, isto é, nas particularidades que os sentidos fornecem. Estou convencido de que as almas e os espíritos criados nunca existem sem órgãos e sem sensações, como não poderiam raciocinar sem caracteres. Os que quiseram manter uma separação completa e modos de pensar na alma separada, inexplicáveis por tudo aquilo que conhecemos, e alheios não somente às nossas experiências presentes, mas - o que é bem mais - à ordem geral das coisas, deram demasiada importância aos pretensos espíritos fortes e tomaram suspeitas a muita gente as verdades mais belas e mais importantes, tendo-se até privado assim de alguns bons meios de demonstrá-las, os quais esta ordem nos fornece.] CAPÍTULO XXII OS MODOS MISTOS. § 1. FILALETO - Passemos agora aos modos mistos. Distingo-os dos modos mais simples, que são compostos apenas de ideias simples da mesma espécie. De resto, os modos mistos constituem certas combinações de ideias simples, que não consideramos características de algum ser real que tenha uma existência fixa, mas ideias separadas e independentes, que o espírito combina; devido a isso se distinguem das ideias complexas das substâncias. TEÓFILO - [Para bem compreender isso, é necessário recordar as vossas divisões anteriores. Para vós as ideias são simples ou complexas. As complexas são substâncias, modos ou relações. Os modos são simples (compostos de ideias simples da mesma espécie) ou mistos. Assim, segundo vós, existem ideias simples, ideias dos modos, tanto simples como mistas, ideias das substâncias e ideias das relações. Poder-se-ia talvez dividir os termos ou os objetos das ideias em abstratos e concretos: os abstratos se dividiriam em absolutos e naqueles que exprimem as relações, os absolutos se dividiriam em atributos e em modificações, tanto uns como outros em simples e compostos. Os concretos se dividiriam em substâncias e em coisas substanciais, compostas ou resultantes das substâncias verdadeiras e simples.] § 2. FILALETO - O espírito é puramente passivo em relação às ideias simples, que recebe conforme a sensação e reflexão lhas apresenta. Todavia, ele age muitas vezes por si mesmo em relação aos modos mistos, pois pode combinar as ideias simples e produzir ideias complexas, sem considerar se estas existem nesta forma na natureza. Eis por que damos a estas espécies de ideias a denominação de noção. TEÓFILO - [Acontece, entretanto, que a reflexão que faz pensar nas ideias simples é também ela muitas vezes voluntária, e além disso as combinações que a natureza não fez podem produzir-se em nós por assim dizer por si mesmas nos sonhos e nos devaneios, pela simples memória, sem que o espírito aja mais do que nas ideias simples. No que concerne à palavra noção, muitos a aplicam a toda sorte de ideias ou concepções, tanto às originais como às derivadas.] § 4. FILALETO - A característica de várias ideias em uma só combinada é o nome. TEÓFILO - [Isso se entende se elas podem ser combinadas, e nisso se falha muitas vezes.] FILALETO - Sendo que o crime de matar um ancião não tem denominação própria, como a tem o parricídio, não se considera o primeiro como uma ideia complexa. TEÓFILO - A razão que faz com que o assassinato de um ancião não possua denominação própria está no fato de que este nome seria de pouca utilidade, visto que as leis não sancionaram uma penalidade especial para ele. Entretanto, as ideias não dependem dos nomes. Um moralista que inventasse um termo para este crime e tratasse num capítulo próprio da gerontofonia, mostrando quais são os deveres em relação aos anciãos, e como seria uma ação bárbara o matá-los, nem por isso nos daria uma nova ideia. § 6. FILALETO - É sempre verdadeiro que, uma vez que os costumes e usos de uma nação produzem combinações que lhe são familiares, isto faz com que cada língua tenha termos especiais, e que não se deve sempre fazer traduções literais. Assim, o ostracismo entre os gregos e a proscrição entre os romanos constituíam palavras equivalentes. Eis por que a mudança de costumes produz também novas palavras. TEÓFILO - [O acaso também desempenha o seu papel, pois os franceses utilizam os cavalos como outros povos vizinhos; todavia, tendo abandonado a sua antiga palavra, que correspondia ao cavalcar dos italianos, são agora obrigados a dizer, por perífrase: ir a cavalo.] § 9. FILALETO - Adquirimos as ideias dos modos mistos pela observação, como quando vemos dois homens lutarem; adquirimo-los também por invenção (ou associação voluntária de ideias simples); assim, aquele que inventou a imprensa, tinha a ideia da imprensa antes que esta arte existisse. Adquirimo-los, finalmente, pela explicação dos termos, relacionados com as ações que nunca vimos. TEÓFILO - [Podemos adquiri-los também sonhando ou devaneando, sem que a combinação seja voluntária, por exemplo, quando vemos em sonhos palácios dourados, sem termos pensado neles antes.] § 10. FILALETO - As ideias simples, que foram as mais modificadas, são as do pensamento, do movimento e da potência, donde acreditamos provirem as ações; pois o grande assunto do gênero humano consiste na ação. Todas as ações são pensamentos ou movimentos. A potência ou aptidão que se encontra em um homem de fazer uma coisa constitui a ideia, que denominamos hábito, quando adquirimos esta potência repetindo muitas vezes a mesma coisa; e quando podemos reduzi-la ao ato em cada ocasião que se apresentar, denominamo-la disposição; assim, a ternura constitui uma disposição para a amizade ou para o amor. TEÓFILO - [Acredito que por ternura entendais aqui o coração terno, mas alhures parece-me que se considera a ternura uma qualidade que se tem ao amar, virtude que torna o amante muito sensível aos bens e aos males do objeto amado; é nesta linha que parece ir a carta do Terno no excelente romance da Clélia: E já que as pessoas caridosas amam o próximo com um certo grau de ternura, são sensíveis aos bens e aos males de outrem. E via de regra os que têm um coração terno têm alguma disposição a amar com ternura.] FILALETO - A audácia é a potência de fazer ou dizer diante dos outros o que queremos, sem embaraçar-nos, confiança que, em relação a esta última parte que concerne ao discurso, tinha um nome especial entre os gregos. TEÓFILO - [Seria bom criar uma palavra para esta noção, a qual se atribui aqui ao termo audácia, mas que se utiliza muitas vezes em sentido completamente diverso, como quando se dizia Carlos, o Audaz. Não ficar embaraçado é uma força de espírito, mas da qual os maus abusam quando chegam à impudência; assim como a vergonha constitui uma fraqueza, mas que em certas circunstâncias é escusável e até digna de elogios. Quanto à parresia, que talvez vós compreendais pelo termo grego, atribuímo-la também aos escritores que dizem a verdade sem temor, embora neste caso, não falando diante das pessoas, não tenham motivo para sentir-se embaraçados.] § 11. FILALETO - Como a potência é a fonte da qual procedem todas as ações, dá-se o nome de causa às substâncias nas quais residem essas potências, quando reduzem a sua potência a ato, e denominamos efeitos as substâncias produzidas por este meio, ou melhor, as ideias simples (isto é, os objetos das ideias simples) que pelo exercício da potência são introduzidas em um sujeito. Assim, a eficácia, pela qual é produzida uma nova substância ou ideia (qualidade), se denomina ação no sujeito que exerce este poder, denominando-se paixão no sujeito em que alguma ideia (qualidade) simples é alterada ou produzida. TEÓFILO - [Se a potência é tomada como a fonte da ação, ela diz algo a mais que uma aptidão ou facilidade, pela qual explicamos a potência no capítulo anterior; pois ela encerra também a tendência, como observei mais uma vez. Eis por que, nesse sentido, costumo denominá-la com o termo enteléquia, a qual é ou primitiva - correspondendo à alma considerada como algo de abstrato - ou derivativa - tal como a concebemos no conatus e no vigor e impetuosidade. O termo causa entende-se aqui somente com respeito à causa eficiente; todavia, compreendemo-la também da causa final ou do motivo, para não falar aqui da matéria e da forma, que se denominam, ainda causas nas escolas filosóficas. Não sei se se pode dizer que o mesmo ser é denominado ação no agente e paixão no paciente, e se encontra consequentemente ao mesmo tempo em dois sujeitos, como acontece com a relação; não sei se não é melhor dizer que são dois seres, um no agente, o outro no paciente.] FILALETO - Várias palavras, que parecem exprimir alguma ação, significam apenas a causa e o efeito, como a criação e a aniquilação não encerram nenhuma ideia da ação ou da maneira, mas simplesmente da causa e da coisa que é produzida. TEÓFILO - [Reconheço que, pensando na criação, não concebemos uma maneira de agir, suscetível de algum detalhe, que não pode ter lugar; mas já que se exprime algo mais do que Deus e o mundo, pois se pensa que Deus é a causa e o mundo o efeito, ou então, que Deus criou o mundo é manifesto que se pensa também na ação.] CAPÍTULO XXIII AS NOSSAS IDEIAS COMPLEXAS DAS SUBSTÂNCIAS. § 1. FILALETO - O espírito observa que certo número de ideias simples - as quais, sendo consideradas como pertencentes a uma só coisa, são designadas por um só termo, quando são reunidas em um só sujeito - são constantemente associadas e combinadas. Daí vem que, embora seja na verdade um acúmulo de várias ideias associadas umas às outras, a seguir sejamos levados por inadvertência a falar como de uma só ideia simples. TEÓFILO - [Não vejo nada, nas expressões comumente usadas, que mereça ser taxado de inadvertência; e embora se reconheça um só sujeito e uma só ideia, não se reconhece uma só ideia simples.] FILALETO - Não podendo imaginar como essas ideias simples podem subsistir por si mesmas, habituamo-nos a supor alguma coisa que as sustente (substratum), em que subsistam e de que resultem, coisa à qual em razão disso damos o nome de substância. TEÓFILO - [Acredito que seja justo pensar assim, e só podemos habituar-nos a isso e a supô-lo, visto que concebemos vários predicados de um mesmo sujeito, e essas palavras metafóricas de sustento ou de substratum significam apenas isso, de maneira que não vejo por que fazer dificuldade. Ao contrário, é antes o concretum, como sábio, quente, luzente, que nos vem ao espírito, do que as abstrações ou qualidades (pois são elas que estão no objeto substancial e não as ideias), como saber, calor, luz etc., que são muito mais difíceis de compreender. Pode-se até duvidar se esses acidentes são seres verdadeiros, como de fato muitas vezes não são mais que relações. Sabe-se igualmente que são as abstrações que dão origem à maior parte das dificuldades, quando queremos esquadrinhá-las, como sabem os que estão a par das sutilidades dos escolásticos, para os quais o que existe de mais espinhoso cai de uma só vez se quisermos banir os seres abstratos e resolvemos só falar comumente por concretos e não admitir outros termos nas demonstrações das ciências senão os que representam sujeitos substanciais. Assim sendo, é nodum quaerere in scirpo) se me é lícito falar assim, e inverter as coisas, considerar qualidades ou outros termos abstratos como o que existe de mais fácil, e os termos concretos como algo de muito difícil.] § 2. FILALETO - Não possuímos outra noção da pura substância em geral, como não a temos de qualquer outro sujeito, que lhe é completamente desconhecido e que se supõe ser o sustento das qualidades. Falamos como crianças, a quem não se perguntou o que é tal coisa que lhes é desconhecida, que dão esta resposta, muito satisfatória no entender deles, que é alguma coisa, mas que, empregada desta maneira, significa na realidade que não sabem o que é. TEÓFILO - [Distinguindo-se duas coisas na substância - os atributos ou predicados e o sujeito comum desses predicados - não é de admirar que não se possa conceber nada de especial neste sujeito. É necessário que assim seja, visto que já separamos todos os atributos nos quais se poderia conceber algum detalhe. Assim sendo, exigir algo a mais neste puro sujeito em geral, além do que é necessário para conceber que é a mesma coisa (por exemplo, que ouve e que vê, que imagina e raciocina), é pedir o impossível e contrariar à sua própria suposição, que se fez ao fazer abstração e concebendo separadamente o sujeito e suas qualidades ou acidentes. Poder-se-ia aplicar a mesma pretensa dificuldade à noção do ser e a tudo o que existe de mais claro e mais primitivo, pois podemos perguntar aos filósofos o que entendem ao conceber o puro ser em geral; com efeito, ficando excluído no caso todo detalhe, tem-se tão pouco a dizer como quando se pergunta o que é a pura substância em geral. Assim, não creio que os filósofos mereçam ser censurados, como se fez no caso, comparando-os a um filósofo indiano, a quem se perguntou o que sustentava a terra. A isso ele respondeu que era um grande elefante; depois, quando lhe perguntaram o que sustentava o elefante, disse que era uma grande tartaruga; finalmente, quando o obrigaram a dizer sobre o que se apoiava a tartaruga, viu-se obrigado a dizer que era alguma coisa, não sei o quê. Todavia, esta consideração da substância, por insignificante que pareça, não é tão vazia e tão estéril como se pensa. Dali nascem várias consequências das mais importantes da filosofia, que são capazes de dar-lhe uma nova face.] § 4. FILALETO - Não possuímos nenhuma ideia clara da substância em geral, e § 5, temos uma ideia tão clara do espírito como do corpo; pois a ideia de uma substância corporal na matéria está tão longe das nossas concepções como a da substância espiritual. É mais ou menos como dizia o promotor àquele jovem doutor em direito, que lhe gritava na solenidade e de dizer: utriusque. Tendes razão, senhor, pois conheceis tanto sobre um como sobre outro. TEÓFILO - [A meu juízo, esta opinião da nossa ignorância vem do fato de que se exige um modo de conhecimento que o objeto não comporta. A verdadeira característica de uma noção clara e distinta de um objeto é o meio que temos para conhecer muitas verdades por provas a priori, como mostrei em um discurso sobre as verdades e as ideias, colocado nas atas de Leipzig em 1684.] § 12. FILALETO - Se os nossos sentidos fossem suficientemente penetrantes, as qualidades sensíveis, por exemplo, a cor amarela do ouro, desapareceriam, e em lugar disso veríamos certa contextura admirável das partes. É o que aparece com evidência pelos microscópios. Este conhecimento presente convém ao estado em que nos encontramos. Um conhecimento perfeito das coisas que nos cercam está talvez acima das possibilidades de qualquer ser finito. As nossas faculdades são suficientes para nos levar ao conhecimento do Criador e para instruir-nos sobre os nossos deveres. Se os nossos sentidos se tornassem muito mais vivos, tal mudança seria incompatível com a nossa natureza. TEÓFILO - [Tudo isto é verdade, e já disse algo sobre este assunto. Todavia, a cor amarela não deixa de ser uma realidade como o arco-íris, e somos destinados obviamente a um estado muito superior ao atual e poderemos ir até o infinito, pois não existem elementos na natureza corporal. Se houvesse átomos, como o autor parecia crer em outro lugar, o conhecimento perfeito dos corpos não poderia estar acima de todo ser finito. De resto, se algumas cores ou qualidades desaparecessem aos nossos olhos melhor armados e feitos mais penetrantes, nasceriam obviamente outros: seria então necessário um novo aumento da nossa perspicácia para fazê-los também desaparecer; isso poderia levar ao infinito, como a divisão atual da matéria realmente vai.] § 13. FILALETO - Não sei se uma das grandes vantagens que alguns espíritos possuem em relação a nós não consiste no fato de poderem formar para si órgãos de sensação que convêm precisamente ao seu desígnio presente. TEÓFILO - [Nós o fazemos também ao formar microscópios: mas outras criaturas poderão ir mais além. E se pudéssemos transformar os nossos próprios olhos, o que efetivamente fazemos, de certo modo, conforme queiramos enxergar de perto ou de longe, seria necessário que tivéssemos algo de mais adequado para nós do que os olhos, para formá-los através deles, pois é necessário pelo menos que tudo se faça mecanicamente, visto que o espírito não pode operar imediatamente no corpo. De resto, opino também que os gênios percebem as coisas de uma forma que tem alguma relação com a nossa, mesmo que tivessem a vantagem que o imaginativo Cyrano! atribui a algumas naturezas animadas no sol, compostas de uma infinidade de pequenos voláteis, que em se transportando segundo o comando da alma dominante formam toda sorte de corpos. Não existe nada de tão maravilhoso que o mecanismo da natureza não seja capaz de produzir; creio que os sábios Padres da Igreja tinham razão em atribuir tais corpos aos anjos.] § 15. FILALETO - As ideias de pensar e de mover o corpo, que encontramos na ideia do espírito, podem ser concebidas tão nitidamente e tão distintamente como as ideias da extensão, da solidez e da mobilidade, que encontramos na matéria. TEÓFILO - [No que concerne à ideia do pensamento, concordo. Entretanto, no que concerne à ideia de mover corpos, segundo o meu sistema da harmonia preestabelecida, os corpos são feitos de maneira tal que, uma vez postos em movimento, continuam por si mesmos, conforme exigem as ações do espírito. Esta hipótese é inteligível, ao passo que a outra não o é.] FILALETO - Cada ato de sensação nos faz igualmente encarar as coisas corporais e espirituais; pois no tempo em que a vista e o ouvido me fazem conhecer que existe algum ser corporal fora de mim, sei de uma forma ainda mais certa que existe dentro de mim algum ser espiritual que vê e que ouve. TEÓFILO - [Está muito correto. É muito verdadeiro que a existência do espírito é mais certa que a dos objetos sensíveis.] § 19. FILALETO - Os espíritos, como os corpos, só podem operar onde estão e em tempos e lugares diferentes; assim sendo, só posso atribuir a mudança de lugar a todos os espíritos finitos. TEÓFILO - [Acredito que é com razão, visto que o lugar não passa de uma ordem dos coexistentes.] FILALETO - É suficiente refletir sobre a separação da alma e do corpo, para convencer-se do movimento da alma. TEÓFILO - A alma poderia cessar de operar neste corpo visível; e se ela pudesse deixar completamente de pensar, como o autor sustentou acima, poderia ser separada do corpo sem ser unida a outro; desta forma, a separação se faria sem movimento. Quanto a mim, acredito que ela pensa e sente sempre, que ela está sempre unida a algum corpo; acredito até que ela nunca abandona inteiramente e de uma vez o corpo ao qual está unida. § 21. FILALETO - Se alguém diz que os espíritos não estão in loco sed in aliquo ubi, não creio que se deva dar muita importância a este modo de falar. Mas se alguém imagina que ela pode receber um sentido razoável, peço-lhe que o exprima em linguagem comum inteligível e extraia depois uma razão que mostre que os espíritos são incapazes de movimento. TEÓFILO - [As escolas filosóficas conhecem três espécies de ubiedade, ou seja, maneiras de existir em algum lugar. A primeira se denomina circunscritiva, que se atribui aos corpos que estão no espaço, que ali estão punctatim, de maneira que são medidos segundo se possa assinalar pontos da coisa situada, correspondentes aos pontos do espaço. A segunda forma é a definitiva, na qual se pode definir, isto é, determinar que a coisa situada está em tal espaço, sem poder assinalar pontos precisos ou lugares próprios exclusivamente àquilo que ali se encontra. Assim se julgou que a alma está no corpo, não se acreditando que seja possível assinalar um ponto preciso no qual se encontra a alma ou alguma coisa da alma, sem que esteja também em algum outro ponto. Muitas pessoas inteligentes ainda pensam assim. É verdade que o Sr. Descartes quis indicar limites mais restritos à alma, pretendendo localizá-la propriamente na glândula pineal. Entretanto, nem ele ousou afirmar que ela se encontra privativamente em um certo ponto da citada glândula; sendo assim, esta teoria não apresenta nenhuma. vantagem; equivale, no fundo, a afirmar que a alma está localizada em todo o corpo, como prisão ou lugar. Acredito que aquilo que se afirma das almas, se deveria dizer dos anjos, que o grande Doutor de Aquino" acreditava terem localização apenas quanto à operação, a qual, na minha opinião, não é imediata e se reduz à harmonia preestabelecida. A terceira ubiedade é a repletiva, que se atribui a Deus, o qual enche todo o universo de maneira ainda mais eminente do que os espíritos estão nos corpos, pois ele opera imediatamente sobre todas as criaturas, produzindo-as continuamente, ao passo que os espíritos finitos não podem exercer sobre eles nenhuma operação ou influência imediata. Não sei se esta doutrina das escolas filosóficas merece ser ridicularizada, como me parece que alguém o faz. Todavia, poder-se-á sempre atribuir uma forma de movimento às almas, ao menos com relação aos corpos aos quais estão unidas, ou com respeito à sua maneira de percepção.] § 23. FILALETO - Se alguém diz que não sabe como pensa, replicarei que tampouco sabe como as partes sólidas do corpo são associadas para constituir um todo extenso. TEÓFILO - [É bastante difícil explicar a coesão; todavia esta coesão das partes não parece necessária para constituir um todo extenso, pois pode-se dizer que a matéria perfeitamente sutil e fluida compõe um corpo extenso sem que as partes estejam unidas umas às outras. Todavia, para dizer a verdade, creio que a fluidez perfeita convém exclusivamente à matéria primeira, isto é, na abstração, e como uma qualidade original, da mesma forma que o repouso; não, porém, à matéria segunda, tal como se encontra efetivamente, revestida das suas qualidades derivativas, pois acredito que não exista massa que tenha a última sutilidade, e que em toda parte existe mais ou menos ligação, ligação que provém dos movimentos, enquanto são conspirantes e devem ser perturbados pela separação, o que não pode acontecer sem alguma violência e resistência. De resto, a natureza da percepção, e, ao depois do pensamento, fornece uma das noções mais originais. Todavia, acredito que a doutrina das unidades substanciais ou mônadas o esclarecerá muito.] FILALETO - Quanto à coesão, muitos a explicam pelas superfícies, pelas quais dois corpos se tocam, COTOS que um ambiente (por exemplo, o ar) comprime um contra o outro. E bem verdade que a pressão, § 24, de um ambiente pode impedir que afastemos duas superfícies polidas uma da outra por urna linha que lhes seja perpendicular; todavia, a pressão não pode impedir que as separemos por um movimento paralelo a estas superfícies. Eis por que, se não houvesse outra causa para a coesão dos corpos, seria fácil separar-lhes todas as partes, fazendo-as assim escorregar de lado, tomando o plano que se quiser, que corte alguma massa de matéria. TEÓFILO - [Sim, sem dúvida, se todas as partes planas, aplicadas uma à outra, estivessem em um mesmo plano, ou em planos paralelos; todavia, não sendo assim, e não podendo ser assim, é evidente que, ao procurarmos fazer escorregar umas, agiremos de forma completamente distinta - sobre uma infinidade de outras, cujo plano fará ângulo com o primeiro; pois é necessário saber que é difícil separar as duas superfícies congruentes, não somente quando a direção do movimento de separação é perpendicular, mas também quando é oblíquo às superfícies. É assim que se pode pensar que existem folhas, aplicadas umas às outras em todos os sentidos, nos corpos poliédricos, que a natureza forma nas minas e alhures. Todavia, reconheço que a pressão do ambiente sobre superfícies planas, aplicadas umas às outras, não é suficiente para explicar em toda a sua profundidade a coesão, pois se supõe tacitamente que essas tábuas aplicadas umas às outras já possuem coesão.] § 27. FILALETO - Parecia-me que a extensão do corpo não é outra coisa senão a coesão das partes sólidas. TEÓFILO - [Isso não me parece concordar com as vossas próprias explicações anteriores. Parece-me que um corpo, no qual existem movimentos internos, ou cujas partes estão em ação de se destacar umas das outras (como acredito que isso se faça sempre), não deixa de ser extenso. Assim sendo, a noção da extensão me parece completamente diferente da de coesão.] § 28. FILALETO - Outra ideia que temos do corpo é o poder de comunicar o movimento por impulsão; e outra, que temos da alma, é o poder de produzir movimento através do pensamento. A experiência nos fornece diariamente estas duas ideias de uma forma evidente; todavia, se quisermos pesquisar além, como isso acontece, deparamos igualmente com as trevas. Pois, com respeito à comunicação do movimento, em virtude do qual um corpo perde tanto movimento quanto outro recebe - o que constitui o caso mais comum -, não concebemos nisso outra coisa senão um movimento que passa de um corpo para outro, o que é, na minha opinião, tão obscuro e tão inconcebível quanto a maneira como o nosso espírito põe em movimento ou faz parar o nosso corpo pelo pensamento. É ainda mais difícil explicar o aumento do movimento por via da impulsão que observamos ou pensamos observar-se em certas ocasiões. TEÓFILO - [Não me admiro se encontrarmos dificuldades insuperáveis lá onde parecemos supor uma coisa tão inconcebível como a passagem de um acidente de um sujeito ao outro: todavia, nada vejo que nos obrigue a uma suposição que não é menos estranha que a dos acidentes sem sujeito, dos Escolásticos, acidentes que eles têm o cuidado de só atribuir à ação miraculosa da onipotência divina, ao passo que aqui esta passagem seria comum. Já disse algo sobre isso acima (capítulo XXI, § 4), onde observei também que não é verdade que o corpo perde tanto movimento quanto o que dá a outro; parece conceber-se isso como se o movimento fora alguma coisa de substancial e se assemelhasse à do sal dissolvido na água, o que constitui, na verdade, a comparação da qual se valeu - se não me equivoco - o Sr. Rohaut. Acrescento aqui que não é nem sequer o caso mais comum, pois demonstrei alhures que a mesma quantidade de movimento se conserva somente quando os dois corpos que se chocamvão de um mesmo lado antes do choque, e vão também de um mesmo lado após o choque. É verdade que as verdadeiras leis do movimento são derivadas de uma causa superior à matéria. Quanto ao poder de produzir o movimento pelo pensamento, não acredito que tenhamos alguma ideia sobre isso, como não possuímos qualquer experiência. Os próprios Cartesianos reconhecem que as almas não podem dar uma força nova à matéria, mas pretendem que lhes dão uma nova determinação ou direção da força que ela já possui. Quanto a mim, mantenho que as almas não mudam nada na força nem na direção dos corpos; mantenho, igualmente, que uma coisa seria tão inconcebível quanto a outra, e que é necessário recorrer à harmonia preestabelecida para explicar a união da alma e do corpo.] FILALETO - Não é coisa indigna da nossa pesquisa examinar se a potência ativa constitui o atributo próprio dos espíritos, e a potência passiva o dos corpos. Donde se poderia conjeturar que os espíritos criados, sendo ativos e passivos, não são totalmente separados da matéria; pois o espírito puro, isto é, Deus, sendo puramente ativo, e sendo a pura matéria exclusivamente passiva, pode-se crer que esses outros seres, que são ao mesmo tempo ativos e passivos, participam de uma e de outra coisa. TEÓFILO - [Estes pensamentos concordam inteiramente com o meu ponto de vista, desde que se explique o termo espírito de maneira tão genérica que englobe todas as almas, ou melhor (para falar de forma ainda mais genérica), todas as enteléquias ou unidades substanciais, que apresentam analogia com os espíritos.] § 31. FILALETO - Gostaria que me mostrassem, na noção que temos do espírito, algo de mais complexo ou de mais próximo à contradição, do que aquilo que encerra a própria noção; quero referir-me à divisibilidade ao infinito. TEÓFILO - [O que dizeis aqui, para mostrar que compreendemos a natureza do espírito tanto melhor do que a do corpo, é muito verdadeiro, sendo que Fromondus, que escreveu um livro especial De compositione continui, teve razão de intitulá-lo Labirinto. Entretanto, isso se deve a uma falsa ideia que se tem da natureza corporal, como da natureza do espaço.] . § 33. FILALETO - A própria ideia de Deus nos chega como as outras, visto que a ideia complexa que temos de Deus é composta das ideias simples que colhemos da reflexão, e que estendemos por aquela que temos do infinito. TEÓFILO - [Quanto a isso remeto ao que sobre o assunto afirmei em vários lugares, mostrando que todas essas ideias, em especial a de Deus, se encontram em nós originariamente, sendo que não fazemos outra coisa senão prestar atenção; sobretudo a ideia do infinito não se forma por uma extensão das ideias finitas.] § 37. FILALETO - A maior parte das ideias simples, que compõe as nossas ideias complexas das substâncias, não passam - se bem as considerarmos - de potências, por mais que tendamos a considerá-las qualidades positivas. TEÓFILO - [Acredito que as potências, que não são essenciais à substância e que encerram não somente uma aptidão, mas também certa tendência, constituem justamente o que se entende ou se deve entender pelas qualidades reais.] CAPÍTULO XXIV AS IDEIAS COLETIVAS DAS SUBSTÂNCIAS. § 1. FILALETO - Depois das substâncias simples, vamos às ideias coletivas. Não é porventura verdade que a ideia deste conjunto de homens que constituem um exército é uma só ideia, tanto quanto o é a de um homem? TEÓFILO - [Tem-se razão em afirmar que este conjunto (ens per aggregationem, para falar como os Escolásticos) constitui uma só ideia, embora, falando com propriedade, este conjunto de substâncias não forme uma verdadeira substância. É um resultado, ao qual a alma, pela sua percepção e pensamento, dá o seu último complemento de unidade. Pode-se, entretanto, afirmar de certo modo que é algo de substancial, isto é, que engloba substâncias.] CAPÍTULO XXV A RELAÇÃO. § 1. FILALETO - Resta considerar as ideias das relações, que na realidade são as menos importantes. Quando o espírito considera uma coisa junto a outra, temos uma relação ou suporte, sendo que as denominações e termos relativos que daí derivam são como outras tantas características que servem para levar os nossos pensamentos para além do sujeito, em direção de alguma coisa que seja distinta, e estes dois são denominados sujeitos da relação (relata). TEÓFILO - [As relações e as ordens têm algo do ser de razão, embora tenham o seu fundamento nas coisas; pois se pode dizer que a sua realidade, como a das verdades eternas e das possibilidades, vem da razão suprema.] § 5. FILALETO - Pode haver, todavia, uma mudança de relação sem que aconteça qualquer mudança no sujeito. Tício, que considero hoje um pai, deixa de sê-lo amanhã, sem que se opere qualquer mudança nele, pelo simples fato de que o seu filho vem a falecer. TEÓFILO - [Isso pode dizer-se muito bem conforme as coisas de que percebemos, embora a rigor meta físico seja verdade que não existe denominação inteiramente externa (denomina tio pure extrinseca) devido à conexão real de todas as coisas.] § 6. FILALETO - Penso que a relação só existe entre duas coisas. TEÓFILO - [Entretanto, existem exemplos de uma relação entre várias coisas ao mesmo tempo, como a de ordem ou a de uma árvore genealógica, que exprimem o grau e a conexão de todos os termos ou supostos; mesmo uma figura como a de um polígono encerra a relação de todos os lados.] § 8. FILALETO - Convém igualmente considerar que as ideias das relações são muitas vezes mais claras que as das coisas que constituem os sujeitos da relação. Assim, a relação do pai é mais clara que a do homem. TEÓFILO - [Isso se deve ao fato de que esta relação é tão geral, que pode convir também a outras substâncias. De resto, como um sujeito pode encerrar o claro e o obscuro, a relação pode estar fundada no claro. Mas se o próprio formal da relação encerrasse o conhecimento daquilo que existe de obscuro no sujeito, ela participaria desta obscuridade.] § 10. FILALETO - Os termos que conduzem necessariamente o espírito a outras ideias do que àquelas que se supõe existirem realmente na coisa à qual o termo ou palavra se aplica são relativos, sendo que os outros são absolutos. TEÓFILO - [Foi bom acrescentar necessariamente; poder-se-ia acrescentar ainda expressamente ou primariamente, pois podemos pensar no negro, por exemplo, sem pensar na sua causa; mas é permanecendo nos limites de um conhecimento que se apresenta logo e que é confuso ou então distinto mas incompleto; um, quando não existe resolução da ideia, o outro quando a limitamos. De outra forma não existe termo tão absoluto ou tão destacado que não encerre relações e cuja análise perfeita não conduza a outras coisas e até a todas as outras, de sorte que se pode dizer que os termos relativos marcam expressamente a relação que contêm. Oponho aqui o absoluto ao relativo, sendo em outro sentido que o opus acima ao limitado.] CAPÍTULO XXVI A CAUSA, O EFEITO E ALGUMAS OUTRAS RELAÇÕES. § 1. 2. FILALETO - Causa é aquilo que produz alguma ideia simples ou não complexa, efeito é aquilo que é produzido. TEÓFILO - [Vejo que entendeis muitas vezes por ideia a realidade objetiva da ideia ou a qualidade que esta representa. Vós definis apenas a causa eficiente, como já observei acima. Cumpre reconhecer que, ao dizer que causa eficiente é aquilo que produz, e efeito é aquilo que é produzido, utilizamos apenas sinônimos. E verdade que vos ouvi dizer um pouco mais distintamente que causa é aquilo que faz com que outra coisa comece a existir, embora esta palavra faz deixe inteiramente de pé a principal dificuldade. Mas isso se explicará melhor alhures.] FILALETO - Para tocar ainda algumas outras relações, noto que existem termos que se utilizam para designar o tempo, que no modo comum significam somente ideias positivas, as quais, todavia, são relativas, como jovem, velho etc., pois encerram uma relação à duração ordinária da substância à qual as atribuímos. Assim, um homem é denominado jovem na idade de 20 anos, e muito jovem à idade de 7 anos. Todavia, denominamos velho um cavalo de 20 anos e um cachorro que tem 7. Entretanto, não dizemos que o sol e as estrelas, um rubi ou diamante sejam velhos ou jovens, visto não conhecermos os períodos comuns da sua duração. § 5. Quanto ao lugar ou à extensão, é a mesma coisa, como quando se diz que uma coisa é alta ou baixa, grande ou pequena. Assim, um cavalo que será grande segundo a ideia de um gaulês, parecerá muito pequeno a um flamengo: cada um pensa nos cavalos que conhece no seu país. TEÓFILO - [Estas observações são muitos boas. É verdade que por vezes nos afastamos um pouco deste sentido, como quando afirmamos que uma coisa é velha, comparando-a não com as de sua espécie, mas com outras espécies. Por exemplo, dizemos que o mundo ou o sol é bem velho. Alguém perguntou a Galileu Galilei se acreditava que o sol fosse eterno. Ele respondeu: eterno nó, ma ben antico. CAPÍTULO XXVII O QUE É IDENTIDADE OU DIVERSIDADE. § 1. FILALETO - Uma ideia relativa das mais importantes é a da identidade ou da diversidade. Não achamos nunca, e não podemos conceber que seja possível que duas coisas da mesma espécie existam ao mesmo tempo no mesmo lugar. Eis por que, quando perguntamos se uma coisa é a mesma ou não, isso se relaciona sempre com uma coisa que em tal tempo existe em tal lugar; donde se segue que uma coisa não pode ter dois começos de existência, nem duas coisas um só começo com respeito ao tempo e ao lugar. TEÓFILO - [É necessário sempre que, além da diferença do tempo e do lugar, haja um princípio interno de distinção; e embora haja várias coisas da mesma espécie, é todavia verdade que jamais existem coisas inteiramente semelhantes; assim, se bem que o tempo e o lugar (isto é, a relação ao que está fora) nos sirvam para distinguir as coisas que não distinguimos bem por si mesmas, as coisas não deixam de ser distinguíveis em si. O específico da identidade e da diversidade não consiste, por conseguinte, no tempo e no lugar, embora seja verdade que a diversidade das coisas é acompanhada pela do tempo ou do lugar, visto que acarretam com eles impressões diferentes sobre a coisa. Para não dizer que é antes pelas coisas que se deve discernir um lugar ou um tempo do outro, pois por si mesmos são perfeitamente semelhantes, mas também não são substâncias ou realidades completas. A maneira de distinguir, que pareceis propor aqui como a única nas coisas da mesma espécie, está fundada nesta suposição, que a penetração não é conforme à natureza. Esta suposição é razoável, mas a própria experiência mostra que não estamos vinculados a isso, quando se trata de distinção. Nós vemos, por exemplo, duas sombras ou dois raios de luz que se penetram, e poderíamos forjar-nos um mundo imaginário no qual os corpos tivessem o mesmo costume. Todavia, não deixamos de distinguir um raio do outro pelo próprio fato da sua passagem, até mesmo quando se cruzam.] § 3. FILALETO - O que se denomina princípio de individuação nas Escolas, onde se atormentam tanto para saber o que é, consiste na própria existência, que fixa cada ser a um tempo especial e a um lugar incomunicável a dois seres da mesma espécie. TEÓFILO - [O princípio de individuação reduz-se, nos indivíduos, ao princípio de distinção, do qual acabo de falar. Se dois indivíduos fossem perfeitamente semelhantes e iguais e (em uma palavra) indistinguíveis por si mesmos, não haveria princípio de individuação; ousaria até dizer que não haveria distinção individual ou diferentes indivíduos nesta condição. Eis por que a noção dos átomos é quimérica e provêm apenas das concepções incompletas dos homens. Pois se houvesse átomos, isto é, corpos perfeitamente duros e perfeitamente inalteráveis ou incapazes de mudança interna e que só pudessem distinguir-se entre si por grandeza e figura, é manifesto que, sendo possível que sejam da mesma figura e grandeza, haveria indistinguíveis em si, os quais só poderiam ser discernidos por denominações externas sem fundamento interno, o que contraria os maiores princípios da razão. A verdade é que todo corpo é alterável, e até alterado sempre atualmente, de maneira que em si mesmo difere de qualquer outro. Lembro-me que uma grande princesa, dotada de um espírito sublime, disse um dia passeando no seu jardim que não acreditava houvesse duas folhas perfeitamente semelhantes. Um gentil-homem de espírito, que estava em sua companhia, acreditou que seria fácil encontrar uma; todavia, embora procurasse muito, convenceu-se pelos próprios olhos que sempre se podia notar alguma diferença. Vê-se por estas considerações, até agora negligenciadas, até que ponto na filosofia nos afastamos das noções mais naturais, e como nos afastamos dos grandes princípios da verdadeira metafísica.] § 4. FILALETO - O que constitui a unidade (identidade) de uma mesma planta está em ter tal organização de partes em um só corpo que participa de uma vida comum, o que dura enquanto a planta subsistir, embora as suas partes mudem. TEÓFILO - [A organização ou configuração sem um princípio de vida subsistente, que denomino mônada, não bastaria para fazer com que permaneça idem numero ou o mesmo em indivíduo; pois a configuração pode permanecer especificamente, sem permanecer individualmente. Quando uma ferradura de cavalo se muda em couro dentro de uma água mineral da Hungria, permanece a mesma figura em espécie, mas não permanece o mesmo indivíduo; pois o ferro se dissolve e o couro, do qual a água está impregnada, se precipita e se coloca insensivelmente no seu lugar. Ora, a figura é um acidente, que não passa de um sujeito ao outro (de subicto in subiectum). Assim, é necessário dizer que os corpos organizados, bem como outros, só permanecem os mesmos na aparência, e não se falarmos a rigor. É mais ou menos como um rio, que sempre muda de água, ou como o navio de Teseu, que os atenienses reparavam constantemente. Quanto às substâncias, que possuem em si uma verdadeira e real unidade substancial, à qual possam pertencer as ações vitais propriamente ditas, e quanto aos seres substanciais, quae uno spiritu continentur, como diz um antigo jurisconsulto, isto é, que certo espírito indivisível anima, tem-se razão em dizer que permanecem perfeitamente o mesmo indivíduo por esta alma ou este espírito, que constitui o eu nas substâncias capazes de pensar.] § 5. FILALETO - O caso não é muito diferente nos animais e nas plantas. TEÓFILO - [Se os vegetais e os animais não possuem alma, a sua identidade é puramente aparente; se a têm, a identidade individual é verdadeira a rigor, embora os seus corpos organizados não a conservem.] § 6. FILALETO - Isso mostra ainda em que consiste a identidade do próprio homem, a saber, exclusivamente no fato de que desfruta da mesma vida, continuada por partículas de matéria que estão em um fluxo perpétuo, mas que nesta sucessão são vitalmente unidas ao mesmo corpo organizado. TEÓFILO - [Isso pode ser entendido no sentido que expliquei. Com efeito, o corpo organizado não é o mesmo além de um momento; é apenas equivalente. E se não nos referirmos à alma, não haverá a mesma vida nem tampouco união vital. Assim, esta unidade seria meramente aparente.] FILALETO - Quem quer que atribua a identidade do homem a qualquer outra coisa que não seja um corpo bem organizado em certo instante, e que desde então continua nesta organização vital por uma sucessão de diversas partículas de matéria que lhe são unidas, terá dificuldade em fazer com que um embrião e um homem idoso, um louco e um sábio sejam o mesmo homem, sem que desta suposição siga que é possível que Seth, Ismael, Sócrates, Pila tos, Santo Agostinho sejam um só e mesmo homem. Isso concordaria ainda menos com as noções desses filósofos que reconheciam a transmigração das almas e acreditavam que as almas dos homens podem ser enviadas, por punição das suas desordens, ao corpo dos animais; pois não creio que uma pessoa que tivesse a certeza de que a alma de Heliogábalo existia em um porco, quisesse dizer que este porco era um homem, o mesmo homem que Heliogábalo. TEÓFILO - [Aqui há uma questão de nome e também uma questão real. Quanto à questão real, a identidade de uma mesma substância individual só pode ser mantida pela conservação da mesma alma, pois o corpo está num fluxo contínuo, e a alma não habita em certos átomos ligados a ela, nem em um pequeno osso indomável, tal como o luz dos rabinos. Entretanto, não existe transmigração, pela qual a alma abandona completamente o seu corpo e passa a outro. Ela conserva sempre, mesmo na morte, um corpo organizado, parte do anterior, embora aquilo que conserva seja sempre sujeito a dissipar-se insensivelmente e a recompor-se e até sofrer em certo tempo uma grande mudança. Assim sendo, ao invés de uma transmigração da alma, existe transformação, envolvimento ou desenvolvimento, e finalmente fluxo do corpo desta alma. O Sr. Van Helmont Filho acreditava que as almas passam de um corpo a outro, mas permanecendo sempre dentro da mesma espécie, de maneira que haverá sempre o mesmo número de almas na mesma espécie, e por conseguinte o mesmo número de homens e de lobos, e os lobos, se foram diminuídos e extirpados na Inglaterra, deveriam aumentar na mesma proporção em outras partes. Certas meditações publicadas na França pareciam ir na mesma linha de pensamento. Se a transmigração não for tomada a rigor, isto é, se alguém acreditasse que as almas que permanecem no mesmo corpo sutil mudam apenas de corpo grosseiro, ela seria possível, mesmo até a passagem da mesma alma a um corpo de espécie diferente, à maneira dos Brâmanes e dos Pitagóricos. Todavia, nem tudo o que é possível é por isso mesmo conforme à ordem das coisas. Entretanto, a questão se, em caso de uma tal transmigração ser verdadeira, Caim, Cam e Ismael, suposto que tivessem a mesma alma, conforme os rabinos, mereceriam ser chamados o mesmo homem, é uma pura questão de nome. Vi que o célebre autor cujas opiniões vós defendeis, o reconhece e o explica muito bem (no último parágrafo deste capítulo) ... A identidade de substância existiria, mas caso não houvesse conexão de recordação entre os diferentes personagens que a mesma alma representaria, não haveria suficiente identidade moral para afirmar que seria a mesma pessoa. E se Deus quisesse que a alma humana fosse morar em um corpo de porco, sendo que a alma neste estado não praticaria atos racionais, esta alma não constituiria um homem. Todavia, se no corpo do animal a alma tivesse pensamentos de homem, e até do homem que animava antes da mudança havida, como o asno de ouro de Apuleio, talvez alguém não tivesse dificuldade em dizer que o mesmo Lúcio, vindo à Tessália para ver os seus amigos, permanece sob a pele do burro no qual Photis o tinha colocado a contragosto, e se foi de mestre a mestre, até que as rosas comidas o fizeram voltar à sua forma natural.] § 9. FILALETO - Creio poder adiantar audazmente que alguém de nós que visse uma criatura, feita e formada como ela mesma, embora jamais tivesse mostrado mais razão que um gato ou um periquito, não deixaria de chamá-la homem; ou então, se ouvisse um periquito discorrer racionalmente e como filósofo, não o chamaria e não o consideraria algo mais que um periquito, e que diria do primeiro desses animais que é um homem grosseiro, pesado e destituído de razão, e do último, que é um periquito cheio de espírito e de bom senso. TEÓFILO - [Concordaria mais com o segundo ponto do que com o primeiro, embora sobre isso ainda exista algo a dizer. Poucos teólogos seriam tão audazes para concluir logo e absolutamente em favor do batismo de um animal de figura humana, mas sem aparência de razão, se o tomássemos pequeno no bosque, e talvez algum sacerdote da Igreja romana dissesse talvez condicionalmente: Se és homem, eu te batizo; com efeito, não se saberia se ele é de raça humana e se nele habita uma alma racional; poderia ser um orangotango, símio exteriormente muito parecido com o homem, tal como aquele de que fala Tulpius por tê-lo visto, e tal como aquele do qual um médico sábio publicou a anatomia. É certo, confesso-o, que o homem pode tornar-se tão estúpido como um orangotango, mas o interior da alma racional permaneceria ali não obstante a suspensão do exercício da razão, como expliquei mais acima: é este o ponto sobre o qual não se pode julgar pelas aparências. Quanto ao segundo caso, nada impede que haja animais racionais de uma espécie diversa da nossa, como esses habitantes do reino poético dos pássaros no sol, onde um periquito chegado deste mundo após a sua morte salvou a vida do viajante que lhe tinha feito bem na terra. Todavia, se, como acontece no país das Fadas ou do Mar do Oye, um periquito fosse alguma filha de rei transformada e se fizesse conhecer como tal ao falar, sem dúvida o pai ou a mãe o acariciariam como sua filha e acreditariam tê-la em seu meio, embora disfarçada nesta forma estranha. Todavia, não me oporia a quem dissesse que no burro de ouro ele permaneceu ele mesmo individual, devido ao mesmo espírito imaterial, na mesma medida que Lúcio, ou a pessoa, devido à apercepção deste eu, mas que já não é um homem; como de fato parece que se deve acrescentar alguma coisa da figura e constituição do corpo à definição do homem, quando se diz que ele é um animal racional; de outra forma os gênios também seriam homens, a meu modo de ver.] § 9. FILALETO - O termo pessoa implica um ser pensante e inteligente, capaz de razão e reflexão, que pode considerar-se a si mesmo como o mesmo, uma mesma coisa, que pensa em tempos e lugares diferentes; isso acontece unicamente pelo sentimento que tem das suas próprias ações. Este conhecimento acompanha sempre as nossas sensações e as nossas percepções presentes [quando são bastante distinguidas, conforme observei mais de uma vez acima], sendo por esta razão que cada qual é para si mesmo o que ele denomina ele mesmo. Não se considera neste caso se o mesmo eu é continuado na mesma substância ou em substâncias diversas; pois, visto que a consciência (consciousness ou conscienciosite) acompanha sempre o pensamento, e que é isso que faz com que cada um seja o que denomina ele mesmo e pelo que se distingue de qualquer outra coisa pensante, é também só nisso que consiste a identidade pessoal, ou seja, o que faz com que um ser racional seja sempre o mesmo; quão longe esta consciência pode estender-se sobre as ações ou sobre os pensamentos já passados, tão longe vai a identidade desta pessoa e o eu é agora o mesmo que era antes. TEÓFILO - [Também eu partilho desta opinião, a saber, que a consciência (conscienciosité - conscienciosidade) ou o sentimento do eu prova uma identidade moral ou pessoal. É nisso que distingo a incessabilidade da alma de um animal, da imortalidade da alma de um homem: tanto uma como a outra conservam a identidade física e real, mas quanto ao homem, é conforme às normas da divina providência que a alma conserve também a identidade moral e aparente conosco mesmos, para constituir a mesma pessoa, consequentemente capaz de sentir os castigos e as recompensas. Ao que parece, sustentais que esta identidade aparente se poderia conservar mesmo que não houvesse identidade real. Acredito que isso poderia talvez acontecer pelo poder absoluto de Deus, mas segundo a ordem natural das coisas, a identidade aparente à própria pessoa, que se sente a mesma, supõe a identidade real a cada passagem próxima acompanhada de reflexão ou de sentimento do eu: visto que uma percepção íntima e imediata não pode enganar naturalmente. Se o homem pudesse ser só máquina e não obstante ter consciência (conscienciosité) seria necessário partilhar a sua opinião; considero, porém, que este caso é impossível, pelo menos naturalmente. Tampouco gostaria de dizer que a identidade pessoal e mesmo o eu não permaneçam em nós e que eu não seja este eu que fui no berço, sob pretexto de que não me recordo mais de nada daquilo que fiz outrora. É suficiente, para encontrar a identidade moral por si mesmo, que exista uma ligação média de consciência (conscienciosite) de um estado vizinho ou mesmo um pouco longínquo do outro, quando se entremeasse algum salto ou intervalo esquecido. Assim, se uma enfermidade tivesse feito uma ruptura da continuidade da ligação de consciência, de maneira que eu não soubesse como eu me teria tornado no estado presente, embora me lembrasse das coisas mais longínquas no tempo, o testemunho dos outros poderia preencher a lacuna da minha reminiscência. Poder-me-iam mesmo punir à base deste testemunho, se eu acabasse de praticar algum mal propositadamente em um intervalo que eu tivesse esquecido um pouco depois, devido a essa doença. E se eu viesse a esquecer todas as coisas passadas, e se fosse obrigado a me deixar ensinar de novo até o meu próprio nome e até ler e escrever, poderia sempre aprender dos outros a minha vida passada no meu estado precedente, como conservei os meus direitos, sem que seja necessário repartir-me em duas pessoas, e fazer-me herdeiro de mim mesmo. Tudo isso é suficiente para manter a identidade moral que faz com que alguém seja a mesma pessoa. É verdade que, se os outros se pusessem de acordo para enganar-me (como eu poderia ser enganado até por mim mesmo, por alguma visão, sonho ou enfermidade, acreditando que aquilo que sonhei me aconteceu realmente), a aparência seria falsa; todavia, existem casos onde podemos estar moralmente certos da verdade com respeito ao relato dos outros: junto a Deus, cuja comunhão conosco constituiu o ponto principal da moralidade, o erro não pode ocorrer. No que concerne ao eu, convém distingui-lo da aparência do eu e da consciência (conscienciosité). O eu faz a identidade real e física, e a aparência do eu, acompanhada de verdade, acrescenta-lhe a identidade pessoal. Assim, não querendo dizer que a identidade pessoal não vai além da recordação, muito menos diria que o eu ou a identidade física depende da identidade pessoal. A identidade real e pessoal se prova com a maior certeza possível em matéria de fato; pela reflexão presente e imediata; ela se prova suficientemente, em geral, pela nossa recordação de intervalo ou pelo testemunho concordante dos outros: se, porém, Deus mudasse de forma extraordinária a identidade real, permaneceria ainda a pessoal, desde que o homem conservasse as aparências de identidade, tanto as internas (isto é, da consciência) como as externas, como aquelas que consistem no que aparece aos outros. Assim, portanto, a consciência não é o único meio de constituir a identidade pessoal, visto que o relato de outros ou até outros elementos podem substituí-la; todavia, haverá dificuldade se houver contradição entre essas diversas aparências. A consciência pode calar-se, como no caso do esquecimento; todavia, se ela dissesse bem claramente o que foi contrário às outras aparências, estaríamos embaraçados no tocante à decisão, e por vezes praticamente suspensos entre duas possibilidades: a do erro da nossa recordação e a de alguma decepção nas aparências externas.] § 11. FILALETO - [Dir-se-á] que os membros do corpo de cada homem constituem uma parte dele mesmo, [e que, consequentemente, estando o corpo em um fluxo perpétuo, o homem não pode permanecer o mesmo.] TEÓFILO - [Preferiria dizer que o eu e o ele não têm partes, pois se diz com razão que se conserva realmente a mesma substância, ou o mesmo eu físico, porém não se pode dizer, em se falando segundo a verdade exata das coisas, que se conserva o mesmo todo quando uma parte se perde; ora, aquilo que possui partes corporais não pode deixar de perder algumas a cada momento.] § 13. FILALETO - A consciência que temos das nossas ações passadas não poderia ser transferida de uma substância pensante à outra; [e seria certo que a mesma substância permanece, visto que nos sentimos os mesmos,] se esta consciência fosse uma só e a mesma ação individual, [isto é, se a ação de refletir fosse a mesma com a ação sobre a qual refletimos ao percebê-lo]. Entretanto, visto que é apenas uma representação atual de uma ação passada, resta demonstrar como não é possível que aquilo que nunca foi realmente, possa ser representado ao espírito como tendo sido realmente. TEÓFILO - [Uma recordação de algum intervalo pode enganar; experienciamos isso muitas vezes, podendo-se conceber uma causa natural para este erro: todavia, a recordação presente e imediata, ou a recordação do que aconteceu imediatamente antes, isto é, a consciência ou a reflexão que acompanha a ação interna, não pode enganar naturalmente; do contrário, não teríamos sequer certeza de estarmos pensando nesta ou naquela coisa. Ora, se as experiências internas imediatas não são certas, já não existe nenhuma verdade de fato, da qual possamos estar certos. Já disse que pode haver razão inteligível do erro que se comete nas percepções mediatas e externas, porém nas imediatas internas não pode ocorrer engano, a menos que recorramos à onipotência de Deus.] § 14. FILALETO - Quanto à questão se, permanecendo a mesma substância imaterial, pode haver duas pessoas distintas, eis sobre o que ela está fundada: poderá o mesmo ser imaterial ser despojado de todo sentimento da sua existência passada e perdê-lo inteiramente, sem poder jamais recupera-lo, de maneira que, começando, por assim dizer, uma conta nova a partir de um novo período, ele possua uma consciência de que não possa estender-se além deste novo estado? Todos os que acreditam na pré-existência das almas partilham obviamente deste modo de ver. Conheci um homem que estava persuadido de que a sua alma era a de Sócrates: e posso assegurar que na função que exerceu, e que não era de pequena importância, passou por uma pessoa muito razoável, evidenciando-se, pelas obras que publicou, que não lhe faltava inteligência e saber. Ora, sendo que as almas são indiferentes com respeito a qualquer porção de matéria que seja, na medida em que possamos conhecer pela sua natureza, esta suposição (de uma mesma alma passando por corpos diferentes) não encerra nenhum absurdo aparente. Entretanto, aquele que agora não tem qualquer sentimento de que Nestor ou Sócrates tenha feito ou pensado, poderá porventura conceber que é a mesma pessoa que Nestor ou Sócrates? Pode ele porventura tomar parte nas ações desses dois antigos gregos? Pode ele porventura atribuir a si mesmo tais ações, ou pensar que sejam as suas próprias ações, e não as de algum outro homem que teria existido anteriormente? Ele só seria a mesma pessoa que um deles, se a alma que agora está nele tivesse sido criada quando ela começou a animar o corpo que tem presentemente. Isso não contribuiria mais a fazer com que fosse a mesma pessoa que Nestor, do que se algumas das partículas de matéria que uma vez fizeram parte de Nestor constituíssem agora uma parte desse homem. Pois a mesma substância imaterial sem a mesma consciência não faz a mesma pessoa pelo fato de ser unida a este ou àquele corpo, como tampouco as mesmas partículas de matéria, unidas a algum corpo sem uma consciência comum, podem fazer a mesma pessoa. TEÓFILO - [Um ser imaterial ou espírito não pode ser despojado de toda percepção da sua existência passada. Ficam-lhe impressões de tudo o que lhe aconteceu, e terá até pressentimentos de tudo aquilo que lhe acontecerá: todavia, esses sentimentos são o mais das vezes excessivamente insignificantes para serem distinguíveis e para que os percebamos, embora um dia talvez possam desenvolver-se. Esta continuação ou ligação de percepção constitui o mesmo indivíduo realmente, mas as apercepções (isto é, quando nos apercebemos dos sentimentos passados) provam também uma identidade moral, e fazem aparecer a identidade real. A pré-existência das almas não nos aparece pelas nossas percepções, mas se fosse verdadeira, poderia fazer-se conhecer um dia. Assim, não é irracional supor que a restituição da lembrança seja para sempre impossível, visto que as percepções insensíveis (cujo uso demonstrei em tantas outras ocasiões importantes) servem também aqui para conservar-lhe as sementes. O falecido Sr. Henri Morus, teólogo da Igreja anglicana, estava convencido da preexistência e escreveu para defendê-la. O falecido Sr. Van Helmont filho ia além, como acabo de dizer, e acreditava na transmigração das almas, porém sempre em corpos da mesma espécie, de maneira que segundo ele a alma humana anima sempre um homem. Acreditava, na esteira de alguns rabinos, na passagem da alma de Adão para o Messias como sendo o novo Adão. E não sei se não acreditava ser ele algum homem da antiguidade, tão inteligente que era. Ora, se esta passagem das almas fosse verdadeira, pelo menos da maneira possível que expliquei acima (que, todavia, não parece provável), isto é, que as almas, conservando corpos sutis, passam de repente a outros corpos grosseiros, o mesmo indivíduo subsistiria sempre em Nestor, em Sócrates e em algum homem moderno, e poderia até fazer dar a conhecer a sua identidade a quem penetrasse bastante na sua natureza, devido às impressões ou caracteres que permaneceriam nele de tudo aquilo que Nestor ou Sócrates fizeram, é que algum gênio suficientemente penetrante poderia ler nele. Entretanto, se o homem moderno não tivesse meio interno ou externo para conhecer o que ele foi, seria, quanto à moral, como se não tivesse existido. Todavia, a evidência é que nada se negligencia no mundo, mesmo com relação à moral, pois o rei da moral é Deus, e o seu governo é perfeito. As almas, segundo as minhas hipóteses, não são indiferentes em relação a qualquer porção que seja da matéria, como a vós parece; pelo contrário, elas exprimem originariamente aquelas porções da matéria, às quais estão e devem ser unidas segundo a ordem. Assim sendo, se elas passassem para um novo corpo grosseiro ou sensível, conservariam sempre a expressão de tudo aquilo de que tiveram percepção nos corpos anteriores; seria até necessário que o novo corpo se ressentisse, de maneira que a continuação individual terá sempre as suas marcas reais. Entretanto, qualquer que tenha sido o nosso estado passado, o efeito que ele deixa não pode permanecer-nos para sempre imperceptível. O competente autor do Ensaio sobre o Entendimento, de quem esposáveis as opiniões, observou (livro lI, capo "Sobre a identidade", § 27) que uma parte das suas suposições ou ficções sobre a passagem das almas, consideradas possíveis, se funda sobre aquilo que se considera comumente como espírito, não somente independente da matéria, mas também indiferente a toda espécie de matéria. Espero, porém, que aquilo que eu vos disse aqui e acolá sobre este assunto sirva para esclarecer a presente dúvida, bem como para fazer-vos melhor conhecer o que se pode naturalmente. Por aí se vê como as ações de um homem da antiguidade poderiam pertencer a um homem moderno que tivesse a mesma alma, ainda que disso não se desse conta. Todavia, se chegássemos a conhecê-la, seguiria ainda mais uma identidade pessoal. De resto, uma porção de matéria que passa de um corpo para outro não é suficiente para constituir o mesmo indivíduo humano, nem aquilo que se denomina eu; é a alma que faz isso!] § 16. FILALETO - Entretanto, permanece verdade que sou tão responsável por uma ação praticada há mil anos - ação que me é imputada agora por esta consciência (self-consciousness) que dela tenho - como tendo sido praticada por mim mesmo, quanto sou responsável por aquilo que acabo de fazer no momento que precedeu. TEÓFILO - [Esta opinião de ter feito alguma coisa pode enganar quando se trata de ações longínquas. Houve pessoas que consideraram verdadeiro aquilo que haviam sonhado, ou aquilo que haviam inventado à força de repeti-lo: esta falsa opinião pode embaraçar, porém não pode fazer com que mereçamos ser punidos, se outras não concordem. Por outra parte, podemos ser responsáveis por aquilo que praticamos, mesmo que tivéssemos esquecido, desde que a ação seja verificada por outras fontes.] § 17. FILALETO - Cada qual experiência todos os dias que, enquanto o seu dedo mínimo estiver compreendido sob esta consciência, este dedo mínimo faz parte dele mesmo em igual medida que qualquer outro membro importante do corpo. TEÓFILO – [Já disse (§ 11) por que eu não gostaria de afirmar que o meu dedo constitui uma parte do meu eu; todavia, permanece verdade que o meu dedo faz parte do meu corpo.] FILALETO - [Os que são de outra opinião afirmarão que em caso de o dedo mínimo ser separado do corpo, e em caso de esta consciência acompanhar o dedo mínimo e abandonar o resto do corpo, é evidente que o dedo mínimo seria a pessoa, a mesma pessoa, e que nesta eventualidade o eu não teria nada a ver com o resto do corpo. TEÓFILO - [A natureza não admite tais ficções, que são destruídas pelo sistema da harmonia ou da perfeita correspondência da alma e do corpo.] § 18. FILALETO - Parece, entretanto, que se o corpo continuasse a viver e a ter a sua consciência particular, na qual o dedo mínimo não tivesse nenhuma participação, e que não obstante a alma estivesse no dedo, o dedo não poderia reconhecer nenhuma das ações do resto do corpo, e não se poderia tampouco imputar-lhe qualquer dessas ações. TEÓFILO - [Neste caso a alma que estivesse no dedo não pertenceria a este corpo. Reconheço que, se Deus fizesse com que as consciências (conscienciosités) fossem transferidas a outras almas, seria necessário tratá-las segundo as noções morais, como se fossem as mesmas; isso equivaleria, porém, a perturbar sem motivo a ordem das coisas, e estabelecer um divórcio entre o aperceptível e a verdade, que se conserva pelas percepções insensíveis; isso não seria razoável, visto que as percepções insensíveis para o momento podem desenvolver-se um dia, pois nada existe de inútil, e a eternidade oferece um grande campo para as mudanças.] § 20. FILALETO - As leis humanas não punem o homem louco pelas ações praticadas por um homem calmo, nem punem o homem calmo pelas ações praticadas por um louco: daqui se conclui que o homem em estado de loucura e o homem em estado de posse calma das suas faculdades constituem duas pessoas. É por isso que dizemos: este homem está fora de si. TEÓFILO - [As leis ameaçam punir e prometem recompensar, a fim de impedir as ações más e promover as boas. Ora, um homem louco pode estar em tal estado que as ameaças e as promessas não influem sobre ele, visto que não é a razão que comanda as suas ações; assim sendo, o rigor da pena deve cessar à medida que o uso da razão diminui. Por outra parte, quer-se que o criminoso sinta o efeito do mal que praticou, a fim de que tenha mais temor de cometer crimes; todavia, visto que o louco não é suficientemente sensível a isso, costuma-se esperar um bom período de tempo para executar a sentença que constitui a punição por aquilo que praticou em estado de posse da razão. Assim sendo, o procedimento dos juízes ou das leis nessas emergências não provém do fato de se suporem no caso duas pessoas distintas.] § 22. FILALETO - Com efeito, entre os partidários da opinião que acabo de defender, costuma-se fazer esta objeção: se um homem que agora está ébrio, e depois não o está mais, não é a mesma pessoa, não se deveria puni-lo por aquilo que praticou em estado de ebriedade, porquanto disso não se recorda. Todavia, a isso se responde que ele continua sendo a mesma pessoa, tanto quanto um homem que durante o sono anda e faz outras coisas, e que é responsável por todo o mal que fizer neste estado. TEÓFILO - [Existe bastante diferença entre as ações de um ébrio e as de um verdadeiro sonâmbulo. Punem-se os ébrios, visto que podem evitar a embriaguez, e podem até ter alguma recordação da pena durante a embriaguez. Quanto aos sonâmbulos, não têm o mesmo poder de abster-se das suas passeatas noturnas e de outras coisas que praticam. Todavia, se fosse verdade que, castigando-os no momento, se pudesse obriga-los a ficar no leito, ter-se-ia o direito de fazê-lo, embora isso fosse antes um remédio do que uma punição. De fato, conta-se que este remédio teve efeito.] FILALETO - As leis humanas punem um e outro por urna justiça conforme à maneira segundo a qual os homens conhecem as coisas, visto que nesta espécie de casos os homens não podem distinguir certamente o que é real e o que é falsificado; assim, a ignorância não é reconhecida como escusa daquilo que se fez em estado de embriaguez ou de sono. O fato é provado contra aquele que o cometeu, e não se pode provar para ele a falta de consciência. TEÓFILO - [Não se trata tanto disso, mas antes do que se deve fazer quando se verificou que o ébrio ou o sonâmbulo só pode ser considerado um maníaco: todavia, visto que a embriaguez é voluntária e a doença não o é, pune-se um sem punir o outro.] FILALETO - Entretanto, no grande e temível dia do julgamento, em que se revelarão os segredos de todos os corações, temos o direito de crer que ninguém necessitará responder por aquilo que lhe é inteiramente desconhecido, e que cada um receberá o que lhe for devido, sendo acusado ou escusado pela sua própria consciência. TEÓFILO - [Não sei se será necessário que a memória do homem seja exaltada no dia do juízo, para que ele se recorde de tudo o que havia esquecido, e se não bastará o conhecimento dos outros, e sobretudo o conhecimento do justo juiz. Poder-se-ia forjar uma ficção, na verdade pouco conveniente, mas pelo menos possível: um homem crê, no dia do juízo, ter sido mau, e o mesmo parece verdadeiro a todos os outros espíritos criados, disponíveis para julgar, sem que isso seja verdade. Poder-se-ia porventura supor que o justo juiz, o único a saber a verdade pudesse condenar esta pessoa e julgar contra aquilo de que tem consciência? Ora, parece que esta conclusão seguiria da vossa noção de personalidade moral. Dir-se-á talvez que, se Deus julga contra as aparências, não será bastante glorificado e causará dificuldade aos outros; a isso se poderá responder que ele constitui a sua única e suprema lei, e que os outros devem concluir, neste caso, que se equivocaram.] § 23. FILALETO - Se pudéssemos supor duas consciências distintas e incomunicáveis, que agem alternadamente no mesmo corpo, uma sempre de dia e a outra de noite, e por outra parte a mesma consciência agindo por intervalos em dois corpos diferentes, pergunto se no primeiro caso o homem de dia e o homem de noite - se me for permitido assim falar - não seriam duas pessoas tão distintas quanto Sócrates e Pia tão, e se no segundo caso não seria uma só pessoa em dois corpos distintos. Nada importa dizer que esta mesma consciência, que afeta dois diferentes corpos, e essas consciências que afetam o mesmo corpo em tempos diferentes, pertencem uma à mesma substância imaterial, e as duas outras a duas substâncias imateriais distintas que introduzem essas diversas consciências nesses corpos, visto que a identidade pessoal seria igualmente determinada pela consciência, fosse esta consciência ligada a alguma substância individual imaterial ou não. Além disso, uma coisa imaterial que pensa deve por vezes perder de vista a sua consciência passada e recordá-la de novo. Ora, suponhamos que esses intervalos de memória e de esquecimento voltam sempre de dia e de noite; neste caso tereis duas pessoas com o mesmo espírito imaterial. Daqui se conclui que o eu não é determinado pela identidade ou pela diversidade de substância - da qual não podemos ter certeza - mas tão somente pela identidade da consciência. TEÓFILO - [Reconheço que, se todas as aparências fossem mudadas e transferidas de um espírito a outro, ou se Deus fizesse um intercâmbio entre dois espíritos, dando o corpo visível e as aparências e consciências de um ao outro, a identidade pessoal, ao invés de ser ligada à da substância, seguiria as aparências constantes que a moral humana deve ter em vista: todavia, essas aparências não consistirão apenas nas consciências, e será necessário que Deus opere a mudança não somente das apercepções ou consciências dos indivíduos em questão, mas também das aparências que se apresentam aos outros em relação a essas pessoas; de outra forma haveria contradição entre as consciências de uns e o testemunho dos outros, o que perturbaria a ordem das coisas morais. Entretanto, deve-se também reconhecer que o divórcio entre o mundo insensível e sensível, isto é, entre as percepções que seriam intercambiadas, constituiria um milagre, como quando se supõe que Deus fabrica o vazio. Com efeito, mostrei acima por que isso não é conforme a ordem natural. Eis aqui outra suposição, bem mais conveniente: é possível que em outro lugar do universo ou em outro tempo, se encontre um globo que não difira sensivelmente deste globo da terra em que habitamos, que cada um dos homens que o habitam não difira sensivelmente de cada uma das pessoas daqui que lhes corresponderiam. Assim sendo, haverá ao mesmo tempo mais de cem milhões de pares de pessoas semelhantes, isto é, pessoas com as mesmas aparências e consciências; Deus poderia transferir os espíritos, sozinhos ou com os respectivos corpos, de um globo ao outro, sem que eles o percebam. Entretanto, que Deus os transfira ou não, que se dirá da sua pessoa ou de seu eu na opinião dos vossos autores? São duas pessoas ou a mesma pessoa? Pois que a consciência e as aparências internas e externas dos homens desses globos não podem fazer diferença. É verdade que Deus e os espíritos capazes de considerar os intervalos e as relações externas dos tempos e dos lugares e mesmo as constituições internas, insensíveis aos homens dos dois globos poderiam discerni-los: todavia, segundo as vossas hipóteses, sendo que o elemento de diferenciação é exclusivamente a consciência (conscienciosité), sem precisar preocupar-se com a identidade ou diversidade real da substância ou mesmo do que apareceria aos outros, como evitar dizer que essas duas pessoas, que se encontram ao mesmo tempo nesses dois globos semelhantes, mas afastadas uma da outra por uma distância inexprimível, não constituem senão uma e a mesma pessoa, o que todavia é um absurdo evidente? De resto, falando do que é possível naturalmente, os dois globos semelhantes e as duas almas semelhantes dos dois globos só permaneceriam tais por algum tempo. Pois, visto que existe uma diversidade individual, necessariamente esta diferença consiste pelo menos nas constituições insensíveis, que devem desenvolver-se com o correr dos tempos.] § 26. FILALETO - Suponhamos um homem punido agora por aquilo que praticou em outra vida, da qual não conseguimos suscitar-lhe nenhuma recordação: que diferença haveria, no caso, entre tal tratamento e o tratamento que consistiria em cria-lo infeliz? TEÓFILO - [Os Platônicos, os Origenistas, alguns hebreus e defensores da pré-existência das almas, acreditaram que as almas deste mundo eram colocadas em corpos imperfeitos, a fim de sofrerem por crimes cometidos em existências anteriores. Todavia, é verdade que, se alguém não conhece nem jamais conhecerá a verdade do que aconteceu em outras vidas, nem pela recordação da própria memória nem por outros vestígios, nem pelo conhecimento de outrem, não poderemos chamar a isso de castigo segundo as noções comuns. Entretanto, pode-se duvidar, em se falando dos castigos em geral, se é absolutamente necessário que aqueles que sofrem saberão eles mesmos um dia a razão disso, e se não seria suficiente, muitas vezes, que outros espíritos mais informados encontrassem nisso matéria para glorificar a justiça divina. Todavia, é mais provável supor que os que sofrem saberão um dia o porquê, ao menos de forma genérica.] § 29. FILALETO - [Talvez ao fim das contas podereis concordar com o meu autor, o qual encerra o seu capítulo sobre a identidade afirmando que a questão - se permanece o mesmo homem - é uma questão de termos, conforme se entender por homem ou tão somente o espírito racional, ou tão somente o corpo dessa forma que se denomina humana, ou enfim o espírito unido a um tal corpo. No primeiro caso, o espírito separado (ao menos do corpo grosseiro) será ainda o homem; no segundo, um orangotango, completamente semelhante a nós, excetuada a razão, seria um homem, e se o homem fosse privado da sua alma racional e recebesse uma alma de animal, permaneceria mesmo homem. No terceiro caso, é necessário que tanto um como outro permaneçam com a união, o mesmo espírito, e também o corpo em parte, ou pelo menos o equivalente quanto à forma corporal sensível. Assim sendo, poderíamos permanecer o mesmo ser fisicamente ou moralmente, isto é, a mesma substância e a mesma pessoa, sem permanecer o homem, caso se considere esta forma essencial ao homem, segundo este último sentido.] TEÓFILO - [Reconheço que isso é questão de termos e que no terceiro sentido é como dizer que o mesmo animal é ora lagarta, ora borboleta, e como alguns imaginaram que os anjos deste mundo foram homens em um mundo passado. Entretanto, em nossa conversação nos ativemos a discussões mais importantes do que as que se referem às palavras. Mostrei-vos a fonte da verdadeira identidade física; mostrei que a moral não lhe contradiz, como também não a recordação; mostrei que a moral e a recordação não logram sempre marcar a identidade física da própria pessoa de que se trata, nem das pessoas que estão em relação com ela; e que, no entanto, não contradizem jamais a identidade física e não se divorciam jamais inteiramente dela; mostrei que existem sempre espíritos criados que conhecem ou podem conhecer o que é realidade: que, porém, se pode crer que aquilo que existe de indiferente com respeito às pessoas, só o pode ser por algum tempo.] CAPÍTULO XXVIII ALGUMAS OUTRAS RELAÇÕES, SOBRETUDO AS RELAÇÕES MORAIS. § 1. FILALETO - Além das relações fundadas no tempo, no lugar e na causalidade, sobre as quais acabamos de conversar, existe uma infinidade de outras, dentre as quais proporei algumas. Toda ideia simples, suscetível de partes e graus, fornece uma ocasião para comparar os sujeitos nos quais ela se encontra, por exemplo, a ideia do mais branco (ou a do menos branco, a do igualmente branco). Esta relação Pode ser denominada proporcional. TEÓFILO - [Existe, todavia, um excesso sem proporção: é em relação a uma grandeza que denomino imperfeita, como quando se diz que o ângulo que o raio faz ao arco do seu círculo é menor que o reto, pois não é possível que haja uma proporção entre esses dois ângulos, ou entre um deles e a sua diferença, que é o ângulo de contingência.] § 2. FILALETO - Outra ocasião de comparar é fornecida pelas circunstâncias da origem, que fundam relações de pai, filho, irmãos, primos, compatriotas. Entre nós não nos importa dizer: este touro é o avô de tal bezerro, ou estas duas pombas são primas; pois as línguas são proporcionais ao uso. Mas existem países em que os homens, menos curiosos quanto às suas próprias genealogias que com respeito às dos seus cavalos, dispõem de nomes não somente para cada cavalo em particular, mas também para os seus diferentes graus de parentesco. TEÓFILO - [Podemos acrescentar ainda a ideia e os nomes de família aos nomes de parentesco. É verdade que não se atende bastante ao fato de que, sob o império de Carlos Magno e por um longo período antes e depois dele, houve nomes de família na Alemanha, na França e na Lombardia. Ainda até há pouco tempo atrás havia famílias (mesmo nobres) no Norte, que não tinham sobrenome, e onde só se reconhecia um homem, em seu lugar natal, dizendo o seu nome e o de seu pai, e em outros lugares (quando ele se transferia) acrescentando ao seu nome o do lugar donde vinha. Os árabes e os turcomanos - acredito eu - têm ainda hoje esta usança, não possuindo nomes de famílias especiais, contentando-se com nomearem o pai, o avô etc. de alguém; fazem o mesmo com os seus cavalos de valor, aos quais dão nomes próprios e acrescentam o nome do pai e outros ascendentes. Assim é que se falava dos cavalos que o monarca dos turcos enviou ao imperador após a paz de Carlowitz; e o falecido conde de Oldemburgo, último da sua linhagem, cuja caudelaria era famosa, e que viveu muitos anos, possuía árvores genealógicas dos seus cavalos, de modo que estes podiam demonstrar a sua nobreza, indo até o ponto de possuírem retratos dos seus antepassados (imagines maiorum), o que era tão ambicionado entre os romanos. Entretanto, para voltarmos aos homens, existem entre os árabes e os tártaros nomes de tribos que constituem como grandes famílias que se ampliaram muito no decurso dos tempos. Tais nomes são tomados ou do progenitor, como no tempo de Moisés, ou do lugar de moradia ou de quaisquer outras circunstâncias. O Sr. Worsley, viajante observador, que se informou sobre o estado atual da Arábia do deserto, onde passou algum tempo, assegura que em todo o país e entre o Egito e a Palestina e por onde passou Moisés, só existem hoje em dia três tribos, as quais podem somar, todas juntas, 5 000 homens, e que uma dessas tribos é chamada sali, do progenitor (como acredito eu), cuja posteridade lhe venera o túmulo como de um santo, tomando pó que os árabes colocam sobre as suas cabeças e sobre as dos seus camelos. De resto, existe consanguineidade quando há uma origem comum daqueles que se relacionam; poderse-ia, porém, afirmar que existe aliança ou afinidade entre duas pessoas, quando podem ter consanguineidade com uma mesma pessoa, sem que por isso exista consanguineidade entre eles, o que acontece por intervenção dos casamentos. Todavia, visto não ser costume dizer que existe afinidade entre marido e mulher, embora o casamento deles constitua causa da afinidade em relação a outras pessoas, seria talvez melhor dizer que afinidade existe entre os que teriam consanguineidade entre si se o marido e a mulher fossem tomados como uma mesma pessoa.] § 3. FILALETO - O fundamento de uma relação é por vezes um direito moral, como a relação de um general de exército ou de um cidadão. Estas relações, dependendo dos acordos que os homens fizeram entre si, são voluntárias ou de instituição, que podemos distinguir das naturais. Por vezes os dois correlativos têm cada qual o seu nome, como patrão e cliente, general e soldado. Entretanto, não há sempre nomes próprios, como, por exemplo, não existe para aqueles que se relacionam com o chanceler. TEÓFILO - [Existem por vezes relações naturais que os homens revestiram e enriqueceram com algumas relações morais, como, por exemplo, as crianças têm direito a pretender a parte legítima da sucessão dos seus pais ou das suas mães; igualmente, as pessoas jovens têm certos deveres de sujeição, as idosas gozam de certas imunidades. Entretanto, acontece também que se considerem relações naturais aquelas que não o são, como quando as leis dizem que o pai é aquele que celebrou núpcias com a mãe no tempo durante o qual o filho lhe pode ser atribuído; tal substituição do natural pelo institucional por vezes não passa de presunção, isto é, um julgamento que faz passar como verdadeiro aquilo que talvez não o seja, até que não se lhe demonstre a falsidade. Assim é que se entende a máxima - pater est quem nuptiae demonstrant - no direito romano, e entre a maior parte dos povos que a reconhecem. Disseram-me, porém, que na Inglaterra de nada serve demonstrar o seu álibi, desde que se tenha estado em um dos três reinos, de maneira que neste caso a presunção se transforma em ficção ou naquilo que certos doutores denominam praesumptionem iuris et de iure.] § 4. FILALETO - Relação moral é a concordância ou discordância que existe entre as ações voluntárias dos homens e uma regra que faz com que se julgue se elas são moralmente boas ou más. § 5. E se o bem moral e o mal moral é a concordância ou a oposição que se encontra entre as ações voluntárias e uma determinada lei, o que nos atrai o bem ou o mal (físico) pela vontade e poder do legislador (ou daquele que quer manter a lei), é o que denominamos recompensa e punição. TEÓFILO - [É lícito a autores inteligentes, como aquele de quem defendeis as opiniões, adaptar os termos como julgam melhor. Todavia, é verdade também que, segundo esta noção, uma mesma ação seria moralmente boa e moralmente má ao mesmo tempo, sob diferentes legisladores, assim como o nosso inteligente autor definia acima a virtude como aquilo que é elogiado, donde se segue que uma e mesma ação seria virtuosa ou não, conforme a aprovação ou desaprovação dos homens. Ora, não sendo este o sentido comum que se dá às ações moralmente boas e virtuosas, quanto a mim, preferiria tomar como norma do bem moral e da virtude a regra invariável da razão, que Deus mesmo se encarregou de manter. Assim sendo, podemos ter certeza de que mediante esta lei todo bem moral se torna físico, ou, como se expressavam os antigos, tudo o que é honesto é útil; ao passo que para exprimir a noção do autor seria necessário afirmar que o bem ou o mal moral constitui um bem ou mal de imposição ou institucional, o qual aquele que tem o poder em mão procura fazer seguir ou evitar mediante castigos e recompensas. É bom que aquilo que é de instituição geral divina concorda com a natureza ou com a razão.] § 7. FILALETO - Existem três espécies de leis: a lei divina, a lei civil e a lei de opinião ou de reputação. A primeira é a regra dos pecados ou dos deveres, a segunda é a das ações criminais ou inocentes, a terceira é a das virtudes ou dos vícios. TEÓFILO - [Segundo o sentido comum dos termos, as virtudes e os vícios só diferem dos deveres e dos pecados como os hábitos diferem das ações, não se tomando a virtude e o vício como algo que depende da opinião. Um grande pecado se denomina crime, e não se opõe o inocente ao criminoso, mas antes ao culpado. A lei divina é de duas espécies: natural e positiva. A lei civil é positiva. A lei de reputação só merece o nome de lei em sentido impróprio, ou então está englobada sob a lei natural, como se eu dissesse: a lei da saúde, a lei do casal, quando as ações provocam naturalmente algum bem ou mal, tal como é a aprovação de outrem, a saúde, o lucro.] § 10. FILALETO - Realmente, pretende-se em toda parte que as palavras virtude e vício significam ações boas e más por sua natureza, e até que tais termos forem aplicados a esta acepção, a virtude concordará perfeitamente com a lei divina (natural). Todavia, quaisquer que sejam as pretensões dos homens, é patente que tais termos, considerados nas aplicações particulares, são constante e unicamente atribuídos a tais ou tais ações, que em cada país ou em cada sociedade são consideradas honoráveis ou vergonhosas: de outra forma, os homens condenar-se-iam a si mesmos. Assim sendo, a medida daquilo que se denomina virtude ou vício é esta aprovação ou este desprezo, esta estima ou esta censura, que se forma por um consentimento secreto ou tácito. Com efeito, embora os homens reunidos em sociedades políticas tenham entregue às mãos do público a disposição de todas as suas forças, de maneira que não os podem empregar contra os seus concidadãos além do que é permitido pela lei, todavia conservam sempre o poder de pensar bem ou mal, de aprovar ou desaprovar. TEÓFILO - [Se o inteligente autor que se explica desta forma convosco declarasse que lhe aprouve atribuir esta presente definição arbitrária nominal sob termos de virtude e de vício, poder-se-ia apenas dizer que isso lhe é permitido em teoria para efeito de maior facilidade de expressão, talvez por falta de outros termos; entretanto, seremos obrigados a acrescentar que tal significação não concorda com o uso comum, nem tampouco é útil à edificação, além de soar mal aos ouvidos de muitas pessoas, se alguém quisesse introduzi-la na prática da vida e do relacionamento humano, como o próprio autor parece reconhecer no prefácio. Aqui se vai mais longe, e embora reconheçais que os homens pretendem falar daquilo que é naturalmente virtuoso ou pecaminoso segundo as leis imutáveis, afirmais que na realidade eles só pretendem falar daquilo que depende da opinião. Parece-me, porém, que pela mesma razão se poderia sustentar que também a verdade e a razão, e tudo o que se possa mencionar de mais real, depende da opinião, visto que os homens se enganam quando pronunciam julgamento sobre isso. Em consequência, não será melhor, sob todos os aspectos, dizer que os homens entendem por virtude e por verdade o que é conforme à natureza, que porém muitas vezes se enganam na aplicação? Aliás, enganam-se menos do que se pensa, pois aquilo que elogiam, geralmente o merece, sob certos aspectos. A virtude de beber, isto é, de ser um bom usuário do vinho, constitui uma vantagem que servia a Bonosus para fazer dos bárbaros amigos e a extorquir-lhes os segredos. As forças noturnas de Hércules, ponto em que o próprio Bonosus pretendia assemelhar-se-lhe, também constituía uma perfeição. A sutilidade dos ladrões era elogiada entre os habitantes da Lacedemônia, e não é a própria sutileza, mas antes o mau uso que se faz dela, que é censurável. Assim, tudo isso depende da aplicação, e do bom ou mau uso das vantagens que possuímos. É também muitas vezes verdade - e não se deve estranhá-lo muito - que os homens se condenam a si mesmos, como quando fazem aquilo que censuram nos outros, havendo muitas vezes uma contradição entre as ações e as palavras, contradição que escandaliza o público, quando o que é praticado ou definido por um magistrado aparece aos olhos de todo mundo.] § 11. FILALETO - Em toda parte o que passa como virtude é aquilo que se considera digno de louvor. A virtude e o elogio são muitas vezes designados com o mesmo termo. Sunt hic etiam sua praemia laudi, afirma Virgílio (Eneida, livro I, verso 461); e Cícero: Nihil habet natura praestantius quam honestatem, quam laudem, quam dignitatem, quam decus (Quaest. Tuscul., livro 2, capo 20), acrescentando pouco adiante: Hisce ego pluribus nominibus unam rem declarari volo. TEÓFILO - [E verdade que os antigos designaram a virtude com o termo honesto, como quando elogiaram incoctum generoso pectus honesto. É verdade outrossim que honesto deriva o seu nome de honra (honor) ou louvor. Todavia, isso quer dizer, não que a virtude é aquilo que se louva, mas aquilo que é digno de louvor, e isso depende da verdade, não do julgamento dos homens.] FILALETO - Muitos não pensam seriamente na lei de Deus ou esperam que se reconciliarão um dia com aquele que é o seu Autor, e quanto à lei do Estado, gloriam-se da impunidade. Todavia, não se pensa que aquele que pratica algo contra as opiniões daquele que frequenta, e ao qual se quer tornar recomendável, possa evitar a pena da sua censura e do seu desdém. Nenhuma pessoa à qual possa ainda restar algum sentimento da sua própria natureza pode viver constantemente desdenhado na sociedade; aqui está a força da lei da reputação. TEÓFILO - [Já disse que não é tanto o castigo de uma lei, mas antes uma pena natural, que a ação atrai sobre si mesma. Todavia, é verdade que muitas pessoas não se preocupam com isto, visto que geralmente, se são desdenhadas por alguns devido a alguma ação censurável, encontram cúmplices, ou pelo menos partidários que não as desdenham, se se recomendam por algum outro aspecto, por menos que seja. Esquecem-se até as ações dos mais infames, e muitas vezes basta ser atrevido e destituído de vergonha, como aquele Phormion de Terêncio, para que tudo passe. Se a ex-comunhão desse origem a um verdadeiro desdém constante e geral, ela teria a força dessa lei de que fala o nosso autor: na realidade, ela possuía tal força entre os primeiros cristãos, sendo que ocupava o lugar da jurisdição, a qual lhes faltava para punir os culpados; mais ou menos como os artesã os mantêm certos costumes entre si, não obstante as leis, pelo desdém que mostram por aqueles que não observam tais costumes. É isso que manteve os duelos, contra as leis. Seria desejável que o público concordasse entre si e com a razão no que concerne aos elogios e às censuras; e que os grandes não protegessem os maus rindo das más ações, fazendo parecer muitas vezes que quem é punido pelo desdém e ridicularizado não é aquele que as praticou, mas quem sofreu devido a elas. Ver-se-á também que em geral os homens desdenham não tanto o vício mas a fraqueza e a infelicidade. Assim sendo, a lei da reputação teria muita necessidade de ser reformulada, bem como de ser melhor observada.] § 19. FILALETO - Antes de encerrar o estudo das relações, observarei que possuímos geralmente uma noção tão clara, ou mais clara, da relação do que do seu fundamento. Se eu acreditasse que Semprônia tirou Tito de debaixo de uma couve, como se costuma dizer às crianças, e que em seguida gerou Caio da mesma forma, teria uma noção igualmente clara da relação de irmão entre Tito e Caio, como se tivesse todo o saber das parteiras. TEÓFILO - [Todavia, é interessante que, quando se dizia a uma criança que o seu irmãozinho que acabava de nascer tinha sido tirado de um poço (resposta que se costuma usar na Alemanha para satisfazer a curiosidade das crianças neste ponto) a criança replicou que estranhava que não a atiravam ao mesmo lugar quando gritava e incomodava a mãe. É que a mencionada explicação não lhe revelava nenhuma razão do amor que a mãe tinha para com a criança. Pode-se, portanto, dizer que os que não conhecem o fundamento da relação, têm apenas o que denomino pensamentos surdos em parte e insuficientes, embora tais pensamentos possam ser suficientes sob certos aspectos e em certas ocasiões.] CAPÍTULO XXIX AS IDEIAS CLARAS E OBSCURAS, DISTINTAS E CONFUSAS. § 2. FILALETO - Vejamos agora algumas diferenças das ideias. As nossas ideias simples são claras, quando são tais que os próprios objetos dos quais as recebemos as representam ou podem representá-las com todas as circunstâncias exigidas para uma sensação ou percepção bem ordenada. Quando a memória as conserva desta maneira, neste caso são ideias claras; na medida em que lhes falta esta exatidão original, ou que perderam, por assim dizer, algo do seu primitivo frescor, e são como que amolecidas ou murchadas pelo tempo, na mesma medida são obscuras. As ideias complexas são claras quando as ideias simples que as compõem são claras e o número e a ordem dessas ideias simples é fixado. TEÓFILO - [Em um pequeno discurso sobre as ideias, verdadeiras ou falsas, claras ou obscuras, distintas ou confusas, discurso inserido nas atas de Leipzig em 1684,1 dei uma definição das ideias claras, comum às ideias simples e às compostas, e que corresponde ao que dizemos aqui. Digo, portanto, que uma ideia é clara quando é suficiente para reconhecer a coisa e distingui-la: assim, quando tenho uma ideia bem clara de uma cor, não tomarei outra como sendo a que estou pedindo; e se possuo uma ideia clara de certa planta, distingo-a das vizinhas; sem isto, a ideia é obscura. Acredito que não temos ideias completamente claras acerca das coisas sensíveis. Existem cores que se aproximam de tal maneira, que não se consegue discerni-las pela memória, e, todavia, somos capazes de discerni-las por vezes, colocando uma junto da outra. E quando acreditamos haver descrito bem uma planta, poder-se-á trazer uma das Índias, que terá tudo o que tivermos colocado na nossa descrição, e que não deixará de fazer-se conhecer como sendo de espécie diferente: assim sendo, não conseguiremos jamais determinar à perfeição species infimas, as últimas espécies.] § 4. FILALETO - Assim como uma ideia clara é aquela da qual o espírito possui uma clara e evidente percepção tal qual é, ao recebê-la de um objeto externo que opera devidamente sobre um órgão em boas condições, da mesma forma uma ideia distinta é aquela na qual o espírito percebe uma diferença que a distingue de qualquer outra ideia; uma ideia confusa é aquela que não se pode distinguir suficientemente de uma outra, da qual deve ser diferente. TEÓFILO - [Segundo esta noção que dais da ideia distinta, não vejo como distingui-la da ideia clara. Eis por que costumo seguir aqui o modo de falar do Sr. Descartes, para o qual uma ideia poderá ser clara e confusa ao mesmo tempo: tais são as ideias das qualidades sensíveis, afetas aos órgãos, como a da cor ou do calor. Elas são claras, visto que as reconhecemos e discernimos facilmente umas das outras, porém não são distintas, pois não se distingue o que elas encerram. Assim sendo, não é possível defini-las. Só as fazemos conhecer por exemplos, e no resto somos obrigados a dizer que é um não sei quê, até lhes decifrarmos a contextura. Assim, embora, segundo a nossa opinião, as ideias distintas distinguem o objeto de outro, todavia, como as ideias claras, mas em si mesmas confusas, também o fazem, denominamos distintas não todas as que são bem distintivas ou que distinguem os objetos, mas as que são bem distinguidas, isto é, que são distintas em si mesmas e distinguem no objeto as características que o fazem conhecer, o que nos é dado pela análise ou definição; do contrário, denominamo-las confusas. Neste sentido, a confusão que reina nas ideias pode ser isenta de censura, sendo uma imperfeição da nossa natureza: pois não conseguimos discernir as causas, por exemplo, dos odores e dos sabores, nem o que tais qualidades encerram. Entretanto, esta confusão poderá ser censurável, quando for importante e estiver em meu poder ter ideias distintas, como por exemplo, se tomasse ouro sofisticado por ouro autêntico, por não fazer os ensaios necessários, que fornecem a demonstração do verdadeiro ouro.] § S. FILALETO - Dir-se-á, porém, que não existe ideia confusa (ou obscura, segundo a vossa opinião) em si mesma, pois não pode ser tal a não ser enquanto percebida pelo espírito, e isto a distingue suficientemente de todas as demais. § 6. Para obviar a esta dificuldade, cumpre saber que o defeito das ideias se refere aos nomes, e o que a torna defeituosa é ser ela tal que pode ser designada tão bem por um nome diferente daquele do qual nos servimos para exprimi-la. TEÓFILO - [Parece-me que não se deve fazer isso depender dos termos. Alexandre Magno viu - como se conta - uma planta em sonho, que seria boa para curar Lisímaco, planta que desde então passou a chamar-se Lysimachia, pelo fato de ter curado efetivamente o amigo do rei. Quando Alexandre fez com que lhe trouxessem uma série de plantas, entre as quais reconheceu aquela que tinha visto em sonho, se por infelicidade não tivesse tido a ideia suficiente para reconhecê-la e se tivesse tido necessidade de um Daniel, como Nabucodonosor, para interpretar o seu sonho, é evidente que a ideia que teria tido da planta teria sido obscura e imperfeita (prefiro chamá-la assim, a denominá-la confusa), não por falta de aplicação justa a algum nome - visto que não existia - mas por falta de aplicação à coisa, isto é, à planta que devia operar a cura. Neste caso Alexandre se teria recordado de certas circunstâncias, mas teria tido dúvida sobre outras; e já que o nome serve para designarmos alguma coisa, isso faz com que, quando se falha na aplicação aos nomes, falha-se geralmente em relação à coisa que se espera deste nome.] § 7. FILALETO - Visto que as ideias compostas são as mais sujeitas a esta imperfeição, esta pode provir do fato de que a ideia é composta de um número excessivamente reduzido de ideias simples, como é, por exemplo, a ideia de um animal que tem a pele salpicada, ideia demasiadamente geral, e que não é suficiente para distinguir o lince, o leopardo, ou a pantera, que no entanto distinguimos por nomes especiais. TEÓFILO - [Mesmo que estivéssemos no estado em que se encontrava Adão antes de dar nomes aos animais, este defeito não deixaria de existir. Com efeito, suposto que se soubesse que entre os animais salpicados existe um que tem a vista extremamente penetrante, mas que não se soubesse se é um tigre ou um lince, ou uma espécie, é uma imperfeição o fato de não poder distingui-lo. Assim sendo, não se trata tanto do nome, senão antes daquilo que torna o animal digno de uma denominação especial. Por aí aparece também que a ideia de um animal salpicado é em si mesma boa, e destituída de confusão e obscuridade, enquanto só servir como gênero; quando, porém, é associada a alguma outra ideia da qual não nos lembramos suficientemente e deve designar a espécie, a ideia com ela composta se torna obscura e imperfeita.] § 8. FILALETO - Verifica-se um defeito oposto quando as ideias simples que constituem a ideia composta são em número suficiente, porém excessivamente confusas e complexas, assim como existem quadros que parecem tão confusos como se tivessem como única função representar o céu coberto de nuvens; neste caso não se diria que existe confusão, tampouco como se fosse outro quadro, feito para imitar aquele; todavia, quando se diz que este quadro deve fazer ver um retrato, ter-se-á razão de afirmar que ele é confuso, pois não se saberá dizer se é o retrato de um homem, ou de um símio, ou de um peixe; todavia, pode ser que, ao olha-lo em um espelho cilíndrico, a confusão desapareça e se veja que é um Júlio César. Assim, nenhuma das pinturas mentais (se me for lícito exprimir-me assim) pode ser denominada confusa, qualquer que seja o modo segundo o qual as suas partes são combinadas; pois como quer que sejam, essas pinturas podem ser distinguidas evidentemente de qualquer outra, até serem catalogadas sob algum nome comum, ao qual não se poderia ver que elas pertencem de preferência a qualquer outro nome de significação diferente. TEÓFILO - [Este quadro do qual vemos distintamente as partes sem notar o resultado a não ser que as olhemos de certa maneira, assemelha-se à ideia de um amontoado de pedras, ideia que é verdadeiramente confusa, não somente na vossa opinião mas também na minha, até quando tivermos concebido distintamente o seu nome e outras propriedades dela. Se, por exemplo, houvesse trinta e seis, não se conhecerá (vendo-as apenas juntas e não ordenadas) que elas podem dar um triângulo ou um quadrado, como efetivamente podem, visto que 36 é um numero quadrado e ao mesmo tempo um número triangular. Assim é que, olhando uma figura de mil lados, teremos dela apenas uma ideia confusa, até sabermos o número dos lados, que é o cubo de 10: consequentemente, não se trata dos nomes, mas das propriedades distintas que devem encontrar-se na ideia quando tivermos isolado dela a confusão. Por vezes é difícil encontrar a chave, ou a maneira de olhar de um certo ponto ou por intermédio de um certo espelho ou vidro para ver a finalidade visada por aquele que fez isso.] § 9. FILALETO - Entretanto, não se poderá negar que existe um terceiro defeito nas ideias, o qual depende verdadeiramente do mau uso dos nomes: isso ocorre quando as ideias são incertas ou indeterminadas. Assim, podemos ver todos os dias pessoas que, não vendo nenhuma dificuldade em utilizar as palavras usadas em sua língua materna antes de ter aprendido a significação precisa das mesmas, alteram a ideia quase tantas vezes quantas a utilizam no seu discurso. § 10. Assim, vê-se até que ponto os nomes contribuem para esta denominação de ideias distintas e confusas, e sem a consideração dos nomes distintos, tomados como sinais das coisas distintas, será bem difícil dizer o que é uma ideia confusa. TEÓFILO - [Acabo de explicar este fenômeno sem considerar os nomes, tanto no caso em que a confusão é considerada, segundo a vossa opinião, como aquilo que denomino obscuridade, como no caso em que ela é considerada, segundo o meu ponto de vista, como o defeito da análise da noção que temos. Demonstrei também que toda ideia obscura é efetivamente indeterminada ou incerta, como no exemplo do animal salpicado que vimos, onde se sabe que é necessário acrescentar algo mais a esta noção geral, sem lembrar-se claramente, de maneira que o primeiro e o terceiro defeito que especificastes se reduzem à mesma coisa. Entretanto, é verdade que o abuso das palavras constitui uma fonte muito grande de erros, pois acontece um modo de erro de cálculo, como se ao calcular não marcássemos bem o lugar do jeton, ou escrevêssemos tão mal as notas numerais que não se pudesse discernir um 2 de um 7, ou as omitíssemos ou invertêssemos por distração. Este abuso das palavras consiste ou em não atribuir-lhes ideia alguma ou em atribuir-lhes uma ideia imperfeita, da qual uma parte é vazia e permanece por assim dizer em branco, sendo que em ambos os casos existe algo de vazio e de surdo no pensamento, que só é preenchido pelo nome; ou, finalmente, o defeito consiste em atribuir à palavra ideias diferentes, seja porque não sabemos com certeza qual deve ser escolhida, seja porque as escolhemos alternadamente e nos servimos ora de uma ora de outra para o sentido da mesma palavra de um mesmo raciocínio de um modo suscetível de induzir em erro, sem considerar que essas ideias não concordam entre si. Assim, o pensamento incerto é ou vazio e sem ideia, ou oscilante entre mais de uma ideia. Isso prejudica, seja que queiramos designar alguma coisa determinada, seja que queiramos dar à palavra um certo sentido correspondente ou àquele do qual já nos servimos, ou àquele do qual se servem os outros, sobretudo na linguagem ordinária, comum a todos ou comum às pessoas do ramo. Daí nasce uma infinidade de discussões vagas e inúteis na conversação, nas exposições e nos livros, confusões que por vezes se quer eliminar mediante distinções, as quais o mais das vezes só servem para aumentar a confusão, colocando no lugar de um termo vago e obscuro outros termos ainda mais vagos e mais obscuros, como são muitas vezes os que os filósofos utilizam nas suas distinções, sem possuírem boas definições para eles.] § 12. FILALETO - Se existe alguma outra confusão nas ideias além daquela que tem uma relação secreta com os nomes, pelo menos esta produz confusão, mais do que qualquer outra, nos pensamentos e no falar dos homens. TEÓFILO - [Estou de acordo; todavia, o mais das vezes entra também nisso alguma noção da coisa e da finalidade que se tem ao utilizar o nome; por exemplo, quando se fala da Igreja, muitos têm em vista um governo, ao passo que outros pensam na verdade da doutrina.] FILALETO - O meio de prevenir esta confusão é aplicar constantemente o mesmo nome a certo conjunto de ideias simples, unidas em número fixo e em uma determinada ordem. Entretanto, uma vez que isso não agrada nem à preguiça nem à vaidade dos homens, e como isso só pode servir à defesa e à descoberta da verdade - a qual nem sempre é a meta que os homens buscam - tal exatidão constitui uma dessas coisas mais dignas de serem desejadas do que de serem esperadas. A aplicação vaga dos nomes a ideias indeterminadas variáveis e que são quase puros nadas (nos pensamentos surdos) serve, de um lado, para encobrir a nossa ignorância, e de outro para confundir e embaraçar os outros, o que passa por autêntico saber e como característica de superioridade em matéria de conhecimento. TEÓFILO - [A afetação da elegância e das boas palavras também contribuiu muito para esta confusão da linguagem; com efeito, para exprimir os pensamentos de maneira bela e agradável, as pessoas não veem nenhuma dificuldade em dar às palavras, à guisa de tropa, algum sentido algo diferente do comum, que é ora mais geral ou mais restrito - o que se denomina sinédoque - ora translatício conforme a relação das coisas das quais se altera os nomes, que é ou de concurso nas metonímias, ou de comparação nas metáforas} sem falar da ironia, a qual se serve de um oposto em lugar do outro; assim denominamos estas alterações, quando as reconhecemos; todavia, é raro que as reconheçamos. E nesta indeterminação da linguagem, na qual se sente falta de uma espécie de lei que regulamente a significação das palavras, como existe coisa semelhante no título dos digestos do direito romano, De verborum significationibus, as pessoas mais judiciosas, ao escreverem para leitores comuns, se privariam daquilo que dá elegância e força às suas expressões, se quisessem obedecer rigorosamente à significação fixa dos termos. É necessário apenas que as pessoas prestem atenção para que o fato de se variarem as significações não dê origem a erros e a raciocínios errôneos. Cabe aqui a distinção dos antigos entre a maneira de escrever exotérica, isto é, popular, e a acroamática, que se destina àqueles que se consagram à tarefa de descobrir a verdade. Se alguém quisesse escrever como matemático na metafísica ou moral, nada o impediria de fazê-lo com rigor. Alguns fizeram profissão disso e nos prometeram demonstrações matemáticas fora da matemática, porém é muito raro que se consiga isso. Acredito que tal se deva ao fato de que não queremos assumir o trabalho indispensável em favor de um número reduzido de leitores, onde se poderia perguntar, como Perse: Quis Zeget naec, e responder: VeZ duo uel nemo? Creio, porém, que se nos déssemos a este trabalho como se deve, não teríamos motivo de arrependimento. Eu mesmo fui tentado a fazê-lo.] § 13. FILALETO - Concordareis comigo, porém, em que as ideias compostas podem ser muito claras e muito distintas de um lado, e muito obscuras e muito confusas de outro. TEÓFILO - [Não há razão para duvidar disso: por exemplo, temos ideias muito distintas de uma boa parte das partes sólidas visíveis do corpo humano, porém não as temos dos líquidos que as integram.] FILALETO - Se um homem fala de uma figura de mil lados, a ideia desta figura pode ser muito obscura no seu espírito, embora a ideia do número seja muito distinta. TEÓFILO - Este exemplo não cabe aqui; um polígono regular de mil lados é conhecido tão distintamente como o número milenário, visto que nele se pode descobrir e demonstrar toda sorte de verdades. FILALETO - Entretanto, não possuímos ideia precisa de uma figura de mil lados, de maneira que possamos distingui-la de outra, que tem apenas novecentos e noventa e nove lados. TEÓFILO - [Este exemplo mostra que se confunde aqui a ideia com a imagem. Se alguém me propõe um polígono regular, a vista e a imaginação não podem fazer-me compreender o milenário que nele se encontra; só tenho uma ideia confusa, tanto da figura como do seu número, até quando eu distinga o número contando. Ao encontra-lo, conheço muito bem a natureza e as propriedades do polígono proposto, enquanto são as do quiliógono, e por conseguinte tenho esta ideia, porém não posso ter a imagem de um quiliógono, e seria necessário ter os sentidos e a imaginação mais requintados e mais experimentados para distingui-lo por esses elementos, de um polígono que tivesse um lado a menos. Todavia, os conhecimentos das figuras, como os dos números, não dependem da imaginação, embora esta seja de utilidade no caso; um matemático pode conhecer exatamente a natureza de um eneágono e de um decágono por sua vez,de traça-los e de examina-los, embora não possa discerni-los à vista. E verdade que um operário e um engenheiro, que não conhecem talvez suficientemente a sua natureza, poderão ter esta vantagem mais do que um grande geômetra, que poderá discerni-los à simples vista e sem medi-los, como existem carregadores e vendedores que dirão o peso da carga que devem transportar, sem errar por uma libra, superando nisso o mais hábil especialista de estatística. É verdade que este conhecimento empírico, adquirido por um longo tirocínio, pode ser muito útil para agir com rapidez, assim como um engenheiro necessita muitas vezes fazê-lo, devido ao perigo a que se expõe se parar. Todavia, esta imagem clara, ou este sentimento que se pode ter de um decágono regular ou de um peso de 99 libras, consiste apenas em uma ideia confusa, porquanto não serve para descobrir a natureza e as propriedades deste peso ou do decágono regular, o que exige uma ideia distinta. Este exemplo serve para melhor compreender a diferença das ideias, ou melhor, a diferença entre a ideia e a imagem.) § 15. FILALETO - Outro exemplo: somos levados a crer que possuímos uma ideia positiva e completa da eternidade, o que equivale a dizermos que não existe nenhuma parcela desta duração que não seja claramente conhecida da nossa ideia; ora, por maior que seja a duração que nos representemos, como se trata de uma extensão sem limites, resta sempre uma parte da ideia para além daquilo que nos representamos, parte que permanece obscura e indeterminada; daí vem que nas discussões que se relacionam com a eternidade ou algum outro infinito, estamos sujeitos a enlear-nos em absurdos evidentes. TEÓFILO - [Este exemplo tampouco me parece servir para o vosso intuito, servindo, porém, muito ao meu, que consiste em vos desconvencer do vosso modo de ver neste ponto. Com efeito, no exemplo que destes verifico a mesma confusão entre a imagem e a ideia. Possuímos uma ideia completa ou justa da eternidade, porquanto temos a sua definição, se bem que não tenhamos nenhuma imagem da eternidade. Cumpre notar que não formamos a ideia das grandezas infinitas pela composição das suas partes; os erros que cometemos ao raciocinarmos sobre o infinito não provêm da falta da imagem.) § 16. FILALETO - Entretanto, não é porventura verdade que, ao falarmos da divisibilidade da matéria ao infinito, embora tenhamos ideias claras da divisão, só temos ideias muito obscuras e muito confusas sobre as partículas? Com efeito, pergunto: se um homem toma o mais insignificante átomo de poeira que jamais viu, terá ele alguma ideia distinta entre a 100 000 ésima e a 1 000 000 ésima partícula deste átomo? TEÓFILO - [Volta o mesmo quiproquó da imagem e da ideia, noções que me admira ver tantas vezes confundidas uma com a outra. De forma alguma se trata de ter uma imagem de uma pequenez tão insignificante. Tal imagem é impossível segundo apresente constituição do nosso corpo; se pudéssemos ter tal imagem, ela seria como a das coisas que atualmente nos parecem aperceptíveis; em compensação, aquilo que constitui atualmente objeto da nossa imaginação nos escaparia e se tornaria excessivamente grande para ser imaginado. A grandeza não encerra imagens em si mesma, sendo que as imagens que dela temos não dependem senão da comparação com os órgãos e com os outros objetos, sendo inútil aqui utilizar a imaginação. Assim, de tudo o que me dissestes também nesta parte, parece-me que as pessoas têm habilidade especial para criar dificuldades sem motivo, exigindo mais do que é necessário.) CAPÍTULO XXX IDEIAS REAIS E QUIMÉRICAS. § 1. FILALETO - Em relação às coisas, as ideias são reais ou quiméricas, completas ou incompletas, verdadeiras ou falsas. Por ideias reais entendo as que têm fundamento na natureza, e que concordam com um ser real, à existência das coisas ou aos arquétipos; caso contrário, são fantásticas ou quiméricas. TEÓFILO - [Há alguma obscuridade na vossa explicação. A ideia pode ter um fundamento na natureza sem concordar com este fundamento, como quando se pretende que o sentimento que temos da cor e do calor não se assemelham a nenhum original ou arquétipo. Uma ideia será também real quando for possível, ainda que não lhe corresponda nenhum ser real. Do contrário, se se perdessem todos os indivíduos de uma espécie, a ideia da espécie se tornaria quimérica.) § 2. FILALETO -As ideias simples são todas reais, pois embora [segundo muitos) a brancura e o frio não se encontrem mais na neve do que a dor, todavia as suas ideias são em nós efeitos das potências ligadas às coisas exteriores, e esses efeitos constantes nos servem para distinguir as coisas quanto se fossem imagens exatas do que existe nas próprias coisas. TEÓFILO - [Examinei este ponto acima, e do meu exame aparece que não se exige sempre uma conformidade com o arquétipo; e segundo a opinião (que não aprovo) daqueles que acreditam ter-nos Deus dado arbitrariamente ideias, destinadas a assinalar as qualidades dos objetos, sem que exista semelhança nem mesmo relação natural, haveria pouca conformidade nisso, das nossas ideias com os arquétipos, quanta existe das palavras das quais nos servimos por instituição nas línguas, com as ideias ou com as próprias coisas.) § 3. FILALETO - O espírito é passivo em relação às suas ideias simples, mas a combinação que faz dessas ideias para formar ideias compostas, onde várias simples estão compreendidas sob um mesmo nome, possuem algo de voluntário; pois uma pessoa admite na ideia complexa que possui do ouro ou da justiça, ideias simples que outra pessoa não admite. TEÓFILO - [O espírito é também, ativo em relação às ideias simples, quando as desvincula umas das outras a fim de considerá-las separadamente. Isso é voluntário tanto quanto a combinação de várias ideias, seja que faça esta combinação para dar atenção a uma ideia composta que daí resulta, seja que tencione compreendê-la sob o nome dado à combinação. E o espírito não pode enganar-se, desde que não associe ideias incompatíveis, e desde que este nome seja ainda, por assim dizer, virgem, isto é, que ninguém lhe tenha ainda vinculado alguma noção, a qual poderia ocasionar confusão com a noção nova, ou fazer nascer daí ou noções impossíveis (associando o que não pode estar junto) ou noções supérfluas e que contêm alguma ob-repção associando ideias das quais uma pode e deve ser derivada da outra por demonstração.] § 4. FILALETO - Sendo que os modos mistos e as relações não têm outra realidade além da que possuem no espírito dos homens, tudo o que se requer para fazer com que estas espécies de ideias sejam reais é a possibilidade de existir ou de subsistir juntas. TEÓFILO - [As relações possuem uma realidade dependente do espírito como as verdades; todavia, não do espírito dos homens, visto existir uma inteligência suprema que as determina a todas desde a eternidade. Os modos mistos, que são distintos das relações, podem ser os acidentes reais. Entretanto, quer dependam quer não dependam do espírito, é suficiente, para que as suas ideias sejam reais, que tais modos sejam possíveis ou, o que é a mesma coisa, é necessário que os componentes sejam compatíveis entre si.] § 5. FILALETO - Entretanto, as ideias compostas das substâncias, visto serem todas formadas com relação às coisas, que estão fora de nós, e para representar as substâncias tais como existem realmente, são reais apenas na medida em que são combinações de ideias simples, realmente, e unidas e coexistentes nas coisas que coexistem fora de nós. Ao contrário, são quiméricas aquelas que se compõem de tais coleções de ideias simples que nunca estiveram realmente unidas e que nunca se encontraram juntas em alguma substância, como são as que formam um centauro, um corpo semelhante ao ouro, exceto o peso, e mais leve que a água, um corpo similar em relação aos sentidos, mas dotado de percepção e de movimento voluntário etc. TEÓFILO - [Argumentando desta forma, isto é, tomando o termo real e quimérico em sentido diverso, conforme se trate das ideias dos modos ou conforme se trate das ideias que formam uma coisa substancial, não vejo qual seja a noção comum a um e a outro caso que dais às ideias reais ou quiméricas; pois os modos são para vós reais quando são possíveis, e as coisas substanciais não têm para vós ideias reais a não ser quando existem na realidade. Todavia, se tomarmos como ponto de referência a existência, não conseguiremos determinar se uma ideia é quimérica ou não, pois aquilo que é possível, embora não se encontre no lugar ou no tempo em que nos encontramos, pode ter existido outrora ou existirá talvez futuramente, ou poderá até já encontrar-se igualmente em um outro mundo, ou até no nosso, sem que o saibamos, assim como a ideia que Demócrito possuía da via láctea, que os telescópios constataram existir de fato. Assim sendo, parece melhor afirmar que as ideias possíveis se tornam quiméricas apenas quando lhes ligamos sem fundamento a ideia da existência efetiva, como fazem aqueles que esperam a pedra filosofal, ou como fariam os que acreditassem que existe uma nação composta de centauros. De outra forma, se só nos regularmos pelo critério da existência real, afastamo-nos sem necessidade do modo comum de falar, que não permite dizer que aquele que fala no inverno de rosas ou de cravos, fala de uma quimera, a menos que imagine poder encontrá-las no seu jardim, como se conta de Alberto Magno ou de algum outro pretenso mágico.] CAPÍTULO XXXI IDEIAS COMPLETAS E INCOMPLETAS. § 1. FILALETO - As ideias reais são completas quando representam perfeitamente os originais donde o espírito supõe que sejam tiradas, que elas representam e às quais ele as refere. As ideias incompletas só representam uma parte deles. § 2. Todas as nossas ideias simples são completas. A ideia da brancura ou da doçura, que se nota no açúcar, é completa, visto ser suficiente para isso que ela corresponda inteiramente às potências que Deus colocou neste corpo para produzir tais sensações. TEÓFILO - [Vejo que denominais ideias completas ou incompletas aquelas que o vosso autor favorito chama ideas adaequaias aui inadaequaias, ou seja perfeitas ou não perfeitas (accomplies ou inaccomplies). Defini outrora ideam adaequatam (uma ideia perfeita) aquela que é tão distinta que todos os seus elementos componentes são distintos, como é o caso, aproximadamente, da ideia do número. Todavia, quando uma ideia é distinta e contém a definição ou as características recíprocas do objeto, ela poderá ser inadaequata ou não perfeita, isto é, quando tais características ou esses elementos componentes não são todos tão distintamente conhecidos; por exemplo, o ouro é um metal que resiste ao cadinho e à água-forte, é uma ideia distinta, pois dá características ou a definição do ouro; todavia, não é perfeita, pois a natureza do processamento pelo cadinho e da operação da água-forte não nos é suficientemente conhecida. Daí vem que, quando só existe uma ideia não perfeita, o mesmo sujeito é suscetível de várias definições independentes umas das outras, de maneira que não é sempre possível deduzir uma da outra, nem prever que ambas devem pertencer a um mesmo sujeito, e neste caso só a experiência nos ensina que realmente pertencem juntas. Assim sendo, o ouro pode ser definido como o mais pesado dos nossos corpos, ou então como o mais maleável, sem falarmos de outras definições que poderíamos formular. Entretanto, só quando os homens houverem penetrado mais no íntimo da natureza das coisas, poderemos ver por que o mais pesado dos metais resiste a essas duas provas dos ensaiadores. Ao contrário, na geometria, onde encontramos ideias perfeitas, verifica-se coisa diversa, pois podemos provar que as seções terminadas do cone e do cilindro feitas por um plano são as mesmas, isto é, elipses, e isso não nos pode ser desconhecido se prestarmos atenção, visto que as noções que temos delas são perfeitas. Para mim a divisão entre ideias perfeitas e não perfeitas constitui apenas uma subdivisão das ideias distintas, e não me parece que as ideias confusas, como as que possuímos da doçura, da qual falais, mereçam este nome; com efeito, embora exprimam a potência que produz a sensação, não o exprimem inteiramente, ou pelo menos não o podemos saber, pois se compreendêssemos o que está nesta ideia da doçura que temos, poderíamos julgar se ela é suficiente para atender a tudo o que a experiência nos dá a conhecer.] § 3. FILALETO - Das ideias simples passemos agora às complexas, as quais são ou modos ou substâncias. As ideias complexas dos modos são associações voluntárias de ideias simples, que o espírito coloca juntas, sem considerar certos arquétipos ou modelos reais e atualmente existentes; elas são completas, não podendo ser de outra forma; com efeito, não sendo elas cópias mas arquétipos que o espírito forma para servir-se delas com o fim de ordenar as coisas sob certas denominações, nada lhes pode faltar, visto que cada uma encerra aquela combinação de ideias que o espírito quis formar, e por conseguinte aquelas perfeições que tencionou dar-lhe, e não se concebe que o entendimento de quem quer que seja possa ter uma ideia mais completa ou mais perfeita do triângulo que a de três lados e três ângulos. Aquele que associa as ideias do perigo, da execução, da perturbação produzida pelo medo, de uma consideração tranquila sobre aquilo que seria razoável fazer, e de uma aplicação atual a executá-la sem assustar-se ante o perigo, formou a ideia de coragem e teve o que quis, isto é, uma ideia completa conforme ao seu querer. Ocorre outra coisa com as ideias das substâncias, onde propomos aquilo que existe na realidade. TEÓFILO - [A ideia do triângulo ou da coragem têm os seus arquétipos na possibilidade das coisas, tanto quanto a ideia do ouro. É indiferente, para a natureza da ideia, se a inventamos antes da experiência, ou se a retivemos após a percepção de uma combinação feita pela própria natureza. Igualmente, a combinação que produz os modos não é totalmente voluntária ou arbitrária, pois se poderia associar e colocar junto aquilo que é incompatível, como fazem os que inventam as máquinas dotadas de movimento perpétuo; ao passo que outros podem inventar boas e exequíveis, que não tem em nós outros arquétipos senão a ideia do próprio inventor, a qual tem, por sua vez, como arquétipo a possibilidade das coisas, ou seja, a ideia divina. Ora, tais máquinas são algo de substancial. Podemos também imaginar modos impossíveis, como quando nos propomos o paralelismo das parábolas, imaginando ser possível encontrar duas parábolas paralelas uma à outra, como duas retas ou dois círculos. Consequentemente, podemos dizer que uma ideia, seja ela de um modo ou de uma coisa substancial, poderá ser completa ou incompleta, conforme entendamos bem ou não as ideias parciais que formam a ideia total: é uma característica de uma ideia perfeita o fazer ela com que reconheçamos perfeitamente a possibilidade do objeto.] CAPÍTULO XXXII IDEIAS VERDADEIRAS E FALSAS. § 1. FILALETO - Uma vez que a verdade ou a falsidade correspondem tão somente às proposições, segue-se que, quando as ideias são denominadas verdadeiras ou falsas, existe sempre alguma proposição ou afirmação tácita. § 3. É que existe uma suposição tácita da sua conformidade com alguma coisa, § S., sobretudo com aquilo que outros designam com este nome (como quando falam da justiça), item ao que existe realmente (como é o homem e não o centauro), item à essência da qual dependem as propriedades da coisa, e neste sentido as nossas ideias comuns das substâncias são falsas quando imaginamos certas formas substanciais. Quanto ao resto, as ideias mereceriam antes ser denominadas justas ou defeituosas, preferivelmente a verdadeiras ou falsas. TEÓFILO - [Creio que poderíamos definir assim as verdadeiras e as falsas ideias; como, porém, estes diferentes sentidos não concordam entre si e não podem ser comodamente colocados sob uma noção comum, prefiro denominar as ideias verdadeiras ou falsas, tomando como ponto de referência outra afirmação tácita, que todas elas encerram: a da possibilidade. Assim sendo, as ideias possíveis são verdadeiras, as impossíveis são falsas.] CAPÍTULO XXXIII A ASSOCIAÇÃO DAS IDEIAS. § 1. FILALETO - Nota-se muitas vezes no modo de raciocinar das pessoas algo de estranho, sendo que todos estão sujeitos a isso. § 2. Não é isso somente teimosia ou amor-próprio, pois muitas vezes mesmo pessoas que têm uma boa formação possuem tal defeito. Não basta tampouco atribuí-lo sempre aos preconceitos ou à educação. § 4. É antes uma forma de loucura, e seria louco quem agisse sempre desta forma. § 5. Este defeito provém de uma ligação não natural das ideias, que tem a sua origem do acaso ou do hábito. § 6. Entram também as inclinações e os interesses. Certas picadas, devido à passagem frequente dos animais, se tomam caminhos batidos. Quando se conhece um canto, encontramo-lo facilmente desde que começamos a cantá-lo, § 7. Daí vem as simpatias ou antipatias, que não nasceram conosco. Uma criança comeu mel em excesso e em consequência enfastiou-se dele: tomando-se homem feito, já não pode ouvir a palavra mel. § 8. As crianças são muitos suscetíveis a tais impressões, convém prestar atenção. § 9. Esta associação irregular das ideias tem uma grande influência em todas as nossas ações e paixões naturais e morais. § 10. As trevas despertam as ideias dos espectros às crianças, devido às histórias que ouviram contar. § 11. Não pensamos em uma pessoa que odiamos, sem pensar no mal que nos fez ou nos pode fazer. § 12. Evitamos o quarto onde vimos morrer um amigo. § 13. Uma mãe que perdeu um filho muito caro, perde com ele muitas vezes toda a sua alegria, até que o tempo apague esta impressão de sua ideia, o que por vezes não acontece nunca. § 14. Uma pessoa curada da raiva por uma operação extremamente delicada, reconhece-se agradecida durante toda a vida a quem praticou a operação, embora na ocasião lhe fosse impossível poder percebê-lo. § 15. Alguns detestam os livros durante a vida inteira, devido aos maus tratos que receberam no tempo de escola. § 16. Houve uma pessoa que tinha aprendido bem a dança, mas que não conseguia dançar se não houvesse na sala um cofre parecido com aquele que havia na sala em que havia aprendido a dançar. § 17. A mesma associação não natural se encontra nos hábitos intelectuais; associamos a matéria com o ser, como se não houvesse nele nada de imaterial. § 18. Costumamos associar às nossas opiniões o partido de seita na filosofia, na religião e no Estado. TEÓFILO - Esta observação é importante e me agrada muito. Poderíamos confirmá-la por uma infinidade de exemplos. O Sr. Descartes, tendo sentido na infância certa afeição por uma pessoa estrábica, nunca conseguiu livrar-se de certa inclinação por aqueles que sofrem deste defeito. O Sr. Hobbes, outro eminente filósofo, não conseguia - assim se conta - permanecer sozinho em um lugar obscuro sem ter o espírito assaltado por imagens de espectros, embora não acreditasse nisso, sendo que esta impressão lhe havia ficado na mente desde as histórias que havia ouvido na infância. Pessoas sábias e dotadas de muito bom senso, que estão muito acima das superstições, não conseguem permanecer em número de treze em uma refeição, pois em outros tempos ouviram dizer que num caso desses um dos treze deve morrer durante o ano. Havia um cidadão que, talvez por ter se ferido na infância com um alfinete mal colocado, não podia mais ver um alfinete sem desmaiar. Um Primeiro Ministro, que na corte do seu mestre levava o título de presidente, sentiu-se ofendido pelo título do livro de Ottavio Pisani, denominado Licurgo, e mandou que se escrevesse contra este livro, pelo fato de o autor, ao falar dos oficiais de justiça que acreditava supérfluos, tinha mencionado também os presidentes; e embora este termo na pessoa deste ministro significasse outra coisa, tinha ligado de tal forma este título à sua pessoa, que se sentia ferido com esta palavra. Para melhor compreender a fonte da associação não natural das ideias, é necessário considerar o que já observei acima (capítulo XI, § 1) ao falar do raciocínio dos animais, isto é, que o homem, como o animal, está sujeito a associar pela sua memória e imaginação o que observou associado nas suas percepções e experiências. É nisto que consiste todo o raciocínio dos animais, se for lícito denominá-lo assim, e muitas vezes também o dos homens, na medida em que são meramente empíricos e só se governam pelos sentidos e exemplos, sem examinar se a razão tem ainda lugar. E como muitas vezes as razões nos são desconhecidas, é necessário considerar os exemplos à medida que são frequentes; pois neste caso a expectativa ou reminiscência de uma percepção ao ensejo de outra percepção que lhe está geralmente associada, é razoável, sobretudo quando se trata de precaver-se. Todavia, como a veemência de uma impressão muito forte produz muitas vezes de uma só vez tanto efeito quanto a frequência e repetição de várias impressões medianas poderia tê-las produzido há longo prazo, acontece que esta veemência grava na fantasia uma imagem tão profunda e viva como a longa experiência. Daí vem que alguma impressão fortuita, mas violenta, associa na nossa imaginação e na nossa memória duas ideias que então estavam juntas, mas de forma tão forte e durável, e nos dá a mesma tendência a associá-las e de esperá-las uma após a outra, como se a sua associação constituísse o resultado verificado por um longo hábito. A autoridade, o partido, o costume produzem também o mesmo efeito que a experiência e a razão, e não é fácil libertar-se de tais tendências. Todavia, não seria muito difícil precaver-se de deixar-se enganar pelos seus julgamentos, se os homens se dedicassem com suficiente seriedade à busca da verdade, ou procedessem com método, ao reconhecerem que é para eles importante encontrar esta verdade. Livro III CAPÍTULO I AS PALAVRAS OU A LINGUAGEM EM GERAL. § 1. FILALETO - Tendo criado o homem para ser uma criatura sociável, Deus não só lhe inspirou o desejo e o colocou na necessidade de viver com os de sua espécie, mas outorgou-lhe igualmente a faculdade de falar, faculdade que deveria constituir o grande instrumento e o laço comum desta sociedade. É daí que provêm as palavras, as quais servem para representar, e até para explicar as ideias. TEÓFILO - [Alegro-me por constatar que estais longe da opinião do Sr. Hobbes, o qual não concordava com o princípio de que o homem foi feito para a sociedade. Segundo ele o homem é apenas forçado a viver em sociedade em virtude da necessidade e da malícia dos indivíduos da sua espécie. Todavia, o Sr. Hobbes não levava em conta que os melhores homens, isentos de qualquer maldade, se uniriam para melhor atingirem a sua finalidade, da mesma forma que os pássaros se juntam em bandos para melhor viajarem em companhia, da mesma forma que os castores se unem em centenas para construírem grandes diques, coisa que um número reduzido desses animais não lograria realizar; tais diques lhes são necessários para construir desta maneira reservatórios de água ou pequenos lagos, nos quais constroem as suas casas e pescam peixes de que se nutrem. É nisto que reside o fundamento da sociedade entre os animais, e não no medo que têm dos seus semelhantes, o qual não existe nos animais.] FILALETO - Muito bem. É para melhor cultivar esta sociedade que o homem possui naturalmente seus órgãos, formados de modo tal, que são aptos a formar sons articulados que denominamos palavras. TEÓFILO - [No que concerne aos órgãos, os símios os possuem, aparentemente, tão aptos quanto os nossos para formar a palavra, e no entanto não há nesses animais qualquer indício de palavra. Logo, falta-lhes algo de invisível. Cumpre outrossim considerar que se poderia falar, isto é, fazer-se ouvir pelos sons da boca, sem formar sons articulados, servindo-se para tanto dos tons da música. Contudo, seria necessário possuir mais arte para inventar uma linguagem dos tons, ao passo que a linguagem das palavras foi formada e aperfeiçoada progressivamente por pessoas que vivem na simplicidade natural. Todavia, existem povos, por exemplo os chineses, que variam as suas palavras através dos tons e acentos, possuindo apenas um número reduzido de palavras. Em razão disto o célebre matemático e conhecedor de línguas Gólio acreditava que a língua dos chineses é artificial, isto é, inventada por um homem inteligente para estabelecer através das palavras um relacionamento entre muitas nações diferentes que habitavam esse grande país que chamamos China, embora tal língua possa estar hoje alterada, devido ao uso secular.] § 2. FILALETO - [Como os orangotangos e outros símios possuem os órgãos sem formar palavras, pode-se dizer que os periquitos e alguns outros pássaros possuem as palavras sem possuir linguagem], pois se pode educar estes e vários outros pássaros a formarem sons bastante distintos, e todavia não são em absoluto capazes de falar uma língua. Só o homem é capaz de utilizar esses sons como sinais de concepções interiores, para que assim estas possam ser manifestadas aos outros. TEÓFILO - [Com efeito, acredito que, sem o desejo de fazer-nos compreender aos outros, jamais teríamos formado a linguagem. Uma vez formada, a linguagem serve também ao homem para raciocinar por si mesmo, seja pelo fato de que as palavras lhe não permitem lembrar-se dos pensamentos abstratos, seja pela utilidade que encontramos, ao raciocinar, em servir-nos de caracteres e pensamentos surdos. Pois se exigiria tempo excessivo se fosse necessário explicar tudo e sempre colocar as definições em lugar dos termos.] § 3. FILALETO - Todavia, já que a multiplicação das palavras teria confundido o uso das mesmas em caso de que fosse necessária uma palavra diferente para designar cada coisa particular, a linguagem foi aperfeiçoada ainda mais pelo uso dos termos gerais, quando estes significam ideias gerais. TEÓFILO - [Os termos gerais não servem somente para a perfeição das línguas senão que são necessários para a constituição essencial das mesmas. Pois, se pelas coisas particulares se entendem as individuais, seria impossível falar se só houvesse nomes próprios e não houvesse apelativos, ou seja, se só houvesse palavras para designar os indivíduos, pois a todo o momento voltam novas quando se trata dos indivíduos, dos acidentes e particularmente das ações, que são as que designamos com maior frequência. Ao contrário, se pelas coisas particulares entendemos as espécies mais baixas (species infimas), além de ser muitas vezes difícil determiná-las, é evidente que já se trata de conceitos universais, fundados sobre a similitude. Por conseguinte, já que só se trata de similitude mais ou menos extensa, conforme se fala dos gêneros ou das espécies, é natural que se assinale toda sorte de similitude ou conveniências e, por conseguinte, que se unam termos gerais de todos os graus; mesmo os termos mais gerais, sendo menos plenos em relação às ideias ou essências que encerram em seu bojo, embora sejam mais compreensivos em relação aos indivíduos aos quais convêm, eram muitas vezes os mais aptos a serem formados, e são os mais úteis. Podeis também observar que as crianças e aqueles que conhecem pouco a língua que querem falar, ou então o assunto sobre o qual falam, servem-se de termos gerais como: coisa, planta, animal, em vez de usarem termos próprios, que lhes faltam. E é certo que todos os nomes próprios ou individuais foram originariamente apelativos ou gerais.] § 4. FILALETO - Existem até palavras que os homens empregam, não para significar alguma ideia, mas a falta ou a ausência de certa ideia, tais como: nada, ignorância, esterilidade. TEÓFILO - [Não vejo por que não se possa dizer que não existem ideias privativas, assim como há verdades negativas; pois o ato de negar é positivo. Já disse algo a esse respeito.] § 5. FILALETO - Sem querer discutir sobre isto, será mais útil, para nos aproximarmos um pouco mais da origem de todas as noções e conhecimentos, observar como as palavras que empregamos para formar ações e noções completamente distantes dos sentidos derivam a sua origem das ideias sensíveis, de onde são transferidas a significações mais raras. TEÓFILO - [É que as nossas necessidades nos obrigaram a abandonar a ordem natural das ideias, pois esta ordem seria comum aos anjos, aos homens e a todas as inteligências em geral, e deveria ser seguida por nós, se não considerássemos os nossos interesses; por conseguinte, foi necessário prender-nos àquilo que as ocasiões e os acidentes aos quais está sujeita a nossa espécie nos forneceram. Ora, esta ordem não fornece a origem das noções, mas, por assim dizer, a história das nossas descobertas.] FILALETO - [Muito bem. É a análise das palavras que pode ensinar-nos pelos próprios nomes esta conexão ou este encadeamento, conexão e encadeamento que a análise das noções não pode fornecer, pela razão que vós aduzistes.] Assim, as palavras seguintes - imaginar, compreender, ligar-se, conceber, instilar, degustar, confusão, tranquilidade etc. - são todas tomadas das operações das coisas sensíveis e aplicadas a certos modos de pensar. A palavra espírito, em sua primeira significação, designa o sopro, e o termo anjo significa mensageiro. Daqui podemos conjecturar que espécies de noções possuíam os que foram os primeiros a falar essas línguas, e como a natureza sugeriu inopinadamente aos homens a origem e o princípio de todos os seus conhecimentos através das próprias palavras. TEÓFILO - [Já vos chamei a atenção para o fato de que o credo dos Hotentotes designava o Espírito Santo com uma palavra que significa entre eles um sopro de vento benigno e doce. O mesmo ocorre com a maioria das outras palavras, embora isto não se reconheça sempre, visto que o mais das vezes as verdadeiras etimologias se perderam. Certo cidadão holandês, pouco afeiçoado à religião, abusou desta verdade (isto é, que os termos de teologia, de moral e de metafísica são tomados originariamente das coisas comuns) para ridicularizar a teologia e a fé cristã num pequeno dicionário flamengo, no qual dava para os termos não definições ou explicações tais como exige o uso, mas tais que pareciam estar na força originária das palavras, maliciando-as; visto que o referido cidadão tinha dado outras demonstrações de impiedade, conta-se que por isso foi punido no Raspelhuys. Todavia, será bom considerar esta analogia das coisas sensíveis e não sensíveis, que serviu como fundamento para os tropos; isto se compreenderá melhor, considerando um exemplo muito vasto tal como o que é fornecido pelo uso das preposições, como a, com, de, diante de, em, fora de, por, para, sobre, em direção a, que são todas tomadas do lugar, da distância e do movimento, e depois transferidas a toda espécie de mudanças, ordens, sequências, diferenças e conveniências. A preposição a significa aproximar-se, como quando se diz vou a Roma. Como, porém, para ligar uma coisa, nós a aproximamos daquela à qual queremos uni-la, dizemos que uma coisa está ligada a outra. Além disso, já que existe, por assim dizer, uma ligação imaterial, quando uma coisa segue a outra por motivos de ordem moral, dizemos que aquilo que segue os movimentos e as vontades de alguém pertence a esta pessoa ou está vinculado a ela, como se visasse a esta pessoa, para ir junto dela ou com ela. Um corpo está com outro quando os dois estão no mesmo lugar; todavia, diz-se ainda que uma coisa está com aquela que se encontra no mesmo tempo, em uma mesma ordem, ou parte de ordem ou que concorre para uma mesma ação. Quando se vem de algum lugar, o lugar constitui nosso objeto mediante as coisas sensíveis que nos forneceu, e continua sendo objeto de nossa memória, que está toda repleta dele. Daí vem que o objeto é significado pela preposição de, como quando se diz: trata-se daquilo, fala-se daquilo, ou seja, como se viéssemos daquilo. E, visto que aquilo que se encerra em algum lugar ou em algum todo se apoia nele e desaparece com ele, os acidentes são considerados da mesma forma, como subsistentes no sujeito, sunt in subiecto, inhaerent subiecio. Também a partícula sobre é aplicada ao objeto. Diz-se que estamos sobre esta matéria, mais ou menos como um operário está sobre a madeira ou sobre a pedra que ele corta e forma. E, já que estas analogias são extremamente variáveis e não dependem de algumas noções determinadas, daí vem que as línguas variam muito no emprego dessas partículas e nos casos regidos pelas preposições, ou nas quais se encontram subentendidas e encerradas virtualmente.] CAPÍTULO II A SIGNIFICAÇÃO DAS PALAVRAS. § 1. FILALETO - Sendo as palavras empregadas pelos homens para serem sinais das suas ideias, podemos perguntar primeiro como é que estas palavras receberam um sentido determinado. Ora, temos que convir em que tal acontece, não por algum nexo natural que existiria entre certos sons articulados e certas ideias (pois neste caso só haveria uma língua entre os homens), mas em virtude de uma convenção arbitrária, em razão da qual uma certa palavra se tomou o sinal de uma certa ideia. TEÓFILO - Sei que é costume dizer nas escolas e em toda parte que as significações das palavras são arbitrárias ex instituto, e é verdade que não são determinadas por uma necessidade natural. Todavia, não deixam de ser determinadas por motivos às vezes naturais - onde o caso tem a sua parte -, e às vezes morais - onde entra o elemento escolha. Talvez existam algumas línguas artificiais, que são todas devidas à escolha convencional e inteiramente arbitrária, como se acredita ter sido a língua chinesa, ou como são as línguas de Jorge Dalgarno e do falecido Sr. Wilkins, Bispo de Chester. Todavia, as .línguas das quais consta que foram derivadas de línguas já conhecidas se devem à escolha convencional juntamente com aquilo que existe da natureza e do acaso nas línguas das quais derivam. É o que acontece com as línguas que os ladrões inventaram para só serem entendidos pelos componentes de seu grupo, o que os alemães denominam Rothwelsch, os italianos língua zerga, os franceses narquois, mas que se formam via de regra à base das línguas comuns que lhes são conhecidas, seja mudando a significação tradicional das palavras por meio de metáforas, seja cunhando novos termos por processo de composição ou derivação que lhes é próprio. Formam-se também línguas pelo relacionamento entre os diversos povos, seja misturando indistintamente línguas vizinhas, seja - como acontece o mais das vezes - tomando uma por base, estropiando e alterando-a, mesclando e corrompendo-a, negligenciando e mudando o que ela observa como próprio, e mesmo acrescentando-lhe outras palavras. A língua franca, que serve no intercâmbio dos povos do Mediterrâneo, é tirada do italiano, desconsiderando-se as regras da gramática. Um dominicano armênio, com o qual conversei em Paris, inventou para si - ou quiçá aprendeu dos seus semelhantes - uma espécie de língua franca, feita do latim; trata-se de uma língua que me pareceu bastante inteligível, embora não tivesse nem casos nem tempos nem outras flexões. Ele a falava com facilidade, habituado que estava. O Padre Labbé, jesuíta francês, muito sábio, conhecido por muitas outras obras, inventou uma língua cuja base é o latim: esta língua é mais fácil e tem menos complicações que o nosso latim, e no entanto é mais regular que a língua franca. O Padre Labbé escreveu um livro especial sobre esta língua. No que concerne às línguas que existem há muito tempo, não existe nenhuma que não esteja hoje profundamente alterada. Isto é evidente se as compararmos com os livros e os monumentos antigos que delas permaneceram. O antigo francês se aproximava mais do provençal e do italiano, e vemos o teotisco juntamente com o francês ou o romano antigo (chamado antigamente língua romana rústica) tais como eram no século IX depois de Cristo nas fórmulas de juramento dos filhos do Imperador Luís Débonnaire, que Nithard, seu parente, nos conservou. Em nenhum outro lugar se encontra um francês, um italiano ou um espanhol tão antigos. Ao contrário, para o teotisco ou alemão antigo existe o Evangelho de Otfried, Monge de Weissenburg, desse mesmo tempo, que Flacius publicou, e que M. Schilter quis publicar de novo. Os saxões que entraram na Grã-Bretanha nos deixaram livros ainda mais antigos. Possuímos alguma versão ou paráfrase do início do livro inspirado do Gênese e de algumas outras partes da História Sagrada, feita por certo Caedmon, do qual já Beda faz menção. Todavia, o livro mais antigo, não somente das línguas germânicas senão também de todas as línguas europeias - exceto o grego e o latim -, é o Evangelho dos godos do Ponto Euxino, conhecido pelo nome de Codex Argenteus, escrito em caracteres bem especiais, livro que se encontrou no antigo mosteiro dos beneditinos de Werden na Westfália, tendo sido transportado à Suécia, onde é conservado, com razão, com o mesmo cuidado que se dispensa ao original das Pandectas em Florença, embora esta versão tenha sido feita para os godos orientais e num dialeto bem longínquo do germânico escandinavo: isto porque se acredita com certa probabilidade que os godos do Ponto Euxino vieram originariamente da Escandinávia, ou pelo menos do mar Báltico. Ora, a língua ou o dialeto desses antigos godos é muito diferente do germânico moderno, embora o fundo linguístico seja o mesmo. O antigo gaulês era ainda mais diferente, a julgar pela língua mais próxima do verdadeiro gaulês, que é a do País de Gales, da Cornualha, e o baixo bretão. Todavia, o antigo hibérnico difere ainda mais e nos revela os traços de uma língua britânica, gaulesa e germânica, ainda mais antiga. Contudo, essas línguas procedem todas de uma fonte única, podendo ser consideradas alterações de uma mesma língua, que se poderia denominar o céltico. Tanto é verdade que os antigos denominavam celtas não só os germanos como também os gauleses. Remontando mais para trás, para entender as origens tanto do céltico e do latim como do grego, línguas que possuem muitas raízes comuns com as línguas germânicas ou célticas, pode-se presumir que este fato se deve à origem comum de todos esses povos descendentes dos atas, oriundos do mar Negro, povos que atravessaram o Danúbio e o Vístula, sendo que uma parte deles pode ter-se dirigido à Grécia, e a outra terá atingido a Germânia e as Gálias. Tudo isto seria uma consequência da hipótese segundo a qual os europeus procedem da Ásia. O sarmático (supondo que seja o "esclavon") deriva, no mínimo cinquenta por cento, de origem ou germânica ou comum com o germânico. Algo de semelhante aparece mesmo no finlandês, a língua dos escandinavos mais antigos, antes que os povos germânicos, isto é, os dinamarqueses, suecos e noruegueses ocupassem a parte melhor e mais próxima do mar. E a língua dos finonianos ou do noroeste do nosso continente, que é ainda hoje a língua dos lapões, se estende desde o oceano Germânico ou Norueguês até o mar Cáspio (embora interrompida pelos povos "esclavões" que se instalaram no meio) e tem relações com o húngaro, provindo dos países que agora estão em parte sob o domínio dos moscovitas. Todavia, a língua tártara, que encheu o nordeste da Ásia, com as suas variações, parece ter sido a língua dos hunos e dos cumans, como o é dos usbecs ou turcos, dos calmucs e dos "mugalles". Ora, todas essas línguas da Cítia possuem muitas raízes comuns entre si e com as nossas, sendo que mesmo o árabe (língua na qual devem ser englobados o hebraico, o antigo púnico, o caldeu, o siríaco e o etiópico dos abissínios) apresenta semelhanças tão numerosas e tão manifestas com as nossas línguas, que seria impossível atribuí-las ao mero acaso, nem mesmo exclusivamente ao comércio, mas antes à migração dos povos. Assim sendo, nada há nisto que contrarie ou que não seja a favor da tese da origem comum de todas as nações e de uma língua radical e primitiva. Se o hebraico ou o árabe são as línguas que mais se aproximam da primitiva, ela deve estar no mínimo bem alterada, e parece que o teutônico guardou mais do natural, e (para falar a linguagem de Jacob Boehm) do adâmico: pois se possuíssemos a língua primitiva em sua pureza, ou pelo menos suficientemente conservada para ser reconhecível, seria necessário que nela aparecessem as razões das conexões, quer de ordem física, quer de uma instituição arbitrária, sábia e digna do primeiro autor. Contudo, supondo que as nossas línguas sejam derivadas, quanto ao fundo possuem sem embargo algo de primitivo em si mesmas, que lhes sobreveio com relação a palavras radicais novas, formadas nelas depois, por acaso, mas com base em razões de ordem física. As palavras que significam os sons emitidos pelos animais constituem exemplo disto. Tal é, por exemplo, o termo latino coaxare, atribuído às rãs, palavra que tem relação com couaquen ou quaken do alemão. Ora, ao que parece, o ruído produzido por esses animais constitui a raiz primordial de outras palavras da língua germânica. Com efeito, já que esses animais produzem muito ruído, atribui-se esta palavra hoje aos discursos de pouco conteúdo e de tagarelas, que se denominam quakeler (diminutivo); aparentemente, porém, esta mesma palavra quaken era outrora tomada em bom sentido, significando toda sorte de sons que se produzem com a boca, sem excetuar a própria palavra. E visto que tais sons ou ruídos constituem um testemunho da vida, e visto que por eles se conhece a vida antes mesmo de vermos algum ser vivente, a isto se deve que a palavra quek, no velho alemão, significava vida ou vivente, como se pode notar nos livros mais antigos, havendo também vestígios na língua moderna, uma vez que Queksilber significa prata viva (mercúrio), e erquicken significa confortar, ou seja, revivificar ou recriar depois de um desfalecimento ou de um trabalho intenso. No baixo alemão a palavra Quaeken designa certas ervas malignas, vivas e correntes, como se diz em alemão, que se estendem e se propagam facilmente nos campos, prejudicando os cereais. Em inglês, quickly quer dizer prontamente, e de maneira viva. Assim, pode-se pensar que, quanto a estas palavras, a língua germânica pode considerar-se primitiva, sendo que os antigos não necessitaram tomar emprestado alhures um som que constitui imitação do que é emitido pelas rãs. E existem muitos outros casos semelhantes. Assim, parece que por um instinto natural os antigos germanos, celtas e outros povos com eles aparentados empregavam a letra R para exprimir um movimento violento e um ruído que corresponde ao que se produz pronunciando esta letra. Isto aparece nas palavras rhéo (latim fluo), rinen, rueren (latim fluere), rutir (fluxion), Rhin (Reno), Rhône (Ródano), Ruhr (Rhenus, Rhodanus, Eridanus, Rura), rauben (rapere, ratnr), Radt (rota), radere (raser), rauschen (palavra difícil de traduzir em francês: significa um ruído semelhante ao que é feito pelas folhas ou árvores que o vento ou um animal que passa produzem, ruído produzido por uma roupa que desliza), reckken (estender com violência), donde vem que reichen significa atingir, der Rick significa um bastão longo ou vara que serve para suspender alguma coisa, nesta espécie de plattuetsch ou baixo saxão que existe perto de Brunswick. Daí vem igualmente que rige, reihe, regula, regere têm relação com um comprimento ou percurso reto, e que reck significou uma coisa ou pessoa muito avantajada e comprida, e particularmente um gigante, passando depois a designar um homem poderoso e rico, conforme aparece em reich dos alemães e em riche ou ricco dos semilatinos. Em espanhol ricos hombres designam os nobres ou príncipes. Isto nos faz compreender também como, por efeito das metáforas, das sinédoques e metonímias, as palavras passaram de uma significação para outra, embora não seja sempre possível seguir a pista. Nota-se também este ruído e movimento violento em riss (ruptura), palavra com a qual se relacionam o latim rumpo, o grego rhégnymi, o francês arracher, o italiano straccio. Ora, assim como o R significa naturalmente um movimento violento, a letra L designa um movimento mais doce. Assim, observamos que as crianças e outras pessoas para as quais o R é excessivamente duro e demasiado difícil de ser pronunciado pronunciam L em vez de R, dizendo, por exemplo, mon lévelend pele. Este movimento doce aparece em leben (viver), laben (confortar, fazer viver), lind (latim lenis), lentus, (lento), lieben (amar), lauften (deslizar prontamente, como a água), labi (glisser ou deslizar, labitur uneta vadis abiesi) legen (colocar docemente), donde vem liegen (estar deitado), lage ou laye (um leito, como um leito de pedras, lay-stein, lousa), lego, ieh lese (junto o que foi colocado, é o contrário de colocar e depois leio, e enfim, entre os gregos, falo), laub (folha ou coisa leve para ser removida, com a qual se relacionam também lap, liâ, lenken), luo, lyo (solvo), leien (em baixo saxão), dissolver-se, fundir-se como a neve, donde o Leine, rio de Hanôver, tem o seu nome, rio que, provindo dos países montanhosos, se agiganta muito devido às grandes quantidades de neve derretida. Isto sem falar de uma infinidade de outras apelações semelhantes que demonstram haver algo de natural na origem das palavras, origem que estabelece uma relação entre as coisas e os sons e movimentos dos órgãos da voz. É ainda em razão disso que a letra L, unida a outras palavras, faz com que estas se transformem em diminutivo entre os latinos, os semilatinos e os alemães do Norte. Todavia, não se deve pretender que isto se verifique sempre, pois o leão, o lince e o lobo pouco têm de doce. Todavia, mesmo nestes casos, pode-se observar outro fato, isto é, a rapidez (lauf) que os faz temer ou que obriga a correr, como se alguém que vê aproximarem-se tais animais gritassem aos outros: Lauf (corram embora!). Aliás, notar-se-á também o fato de que, devido a muitos percalços e mudanças, a maioria das palavras está profundamente alterada, bem longe da sua pronúncia e da sua significação primordial. FILALETO - Outro exemplo tornaria ainda mais inteligível o que acabais de dizer. TEÓFILO - Eis um outro, bastante evidente, e que engloba vários outros. Pode servir para tanto a palavra oeil (olho) e seus aparentados. Para demonstrá-la, começarei de mais longe. A (primeira letra do alfabeto), seguido de uma pequena aspiração, nos dá ah, e visto que é uma emissão do ar que produz um som bastante claro no começo e depois se esvai, este som significa naturalmente um pequeno sopro (spiritum lenem) quando o a e o h não são fortes. É daqui que derivam do, aer, aura, haugh, halare, haleine, dimos, aihem, odem (alemão). Mas, como a água também é um fluido, e produz ruído, resultou - ao que parece - que 'ah, reforçado pela repetição aha ou ahha, passou a designar a água. Os teutões e outros celtas, para melhor assinalar o movimento, antepuseram o seu W a um e a outro; eis por que wehen, wind, vento, designam o movimento do ar, e waten, oadum, water o movimento da água ou na água. Voltando agora a aha, parece, como acabo de dizer, que este som constitui uma espécie de raiz que significa a água. Os islandeses, que conservam algo do antigo teutonismo escandinavo, diminuíram a aspiração pronunciando aa; outros aumentaram a aspiração, dizendo Aken (Aquas grani, Aquísgrana), como fazem também os latinos em aqua, e os alemães em certos lugares dizendo aeh nas palavras compostas para designar a água: assim, Sehwarzaeh significa água negra, Biberaeh significa água dos castores. Em lugar de Wiser ou Weser dizia-se Wiseraha nos antigos títulos, e Wisuraeh entre os antigos habitantes; dali os latinos fizeram Visurgis, como de Iler e Ilerach fizeram llargus. De aqua, aigues, auue, os franceses fizeram eau, que pronunciam ôô, não restando nada mais da origem. Auwe, Auge entre os germanos designa hoje em dia um lugar frequentemente inundado pela água, próprio das pastagens, locus, irriguus, paseuus. Mais particularmente significa uma ilha, como no caso do mosteiro de Reichenau (Augia dives) e em muitos outros. E isso deve ter acontecido entre muitos povos teutônicos e célticos, pois daqui vem que tudo aquilo que está como que isolado numa espécie de superfície foi denominado Auge ou Ooge, olho. É assim que se denominam as manchas de óleo na água, entre os alemães; e entre os espanhóis, ojo é um orifício. Todavia, Auge, ooge, oeulus, oeehio etc., foram usados em particular para designar o olho por excelência, pois olho constitui este orifício isolado que brilha na face. Sem dúvida francês oeil também deriva daí, embora a origem não seja mais reconhecível, a menos que se proceda pelo caminho das deduções que acabo de indicar. Parece que o ómma e ópsis dos gregos provêm da mesma raiz. Oe ou Oeland é uma ilha entre os povos nórdicos, existindo alguns traços disto no hebraico, onde Ai é uma ilha. O Sr. Bochart acreditava que os fenícios derivaram daí o nome que, segundo ele, deram ao mar Egeu, cheio de ilhas. Augere, aumento, também deriva de auue ou auge, isto é, da efusão das águas, como também ooken, auken, no antigo saxão, significavam aumentar, e o augustus, falando-se do imperador, era traduzido por ooker. O rio de Brunswíck, que vem das montanhas do Hartz e por esta razão está constantemente sujeito a grandes cheias, chama-se Oeker, antigamente Ouacra. Aliás, digo de passagem que os nomes dos rios, pelo fato de provirem geralmente da antiguidade mais remota que conhecemos, são os que melhor caracterizam a linguagem e os habitantes antigos, razão pela qual mereceriam uma pesquisa especial. Por sua vez as línguas, pelo fato de representarem os mais antigos monumentos dos povos, anteriores à escrita e às artes, são as que melhor assinalam a origem dos parentescos e das migrações dos povos. Eis por que as etimologias bem entendidas apresentariam muitas curiosidades e consequências. Para isto é necessário estudar línguas de vários povos, e não fazer demasiados saltos de um povo a outro, muito distantes entre si, sem dispor de bons critérios de verificação das conclusões. Neste ponto reveste valor especial o próprio testemunho dos povos entre si. Falando de maneira genérica, não se deve dar fé às etimologias, a não ser quando houver boa quantidade de indícios convergentes; do contrário se cai na goropisação. FILALETO - Goropisação? Que significa isto? TEÓFILO - [As etimologias estranhas e muitas vezes ridículas de Goropius Becanus, médico sábio do século XVI, se tornaram proverbiais, embora, sob certos aspectos, não se tenha equivocado tanto ao pretender que a língua germânica, que denomina címbrica, possui tantas características (e mesmo mais) de algo de primitivo, quantas o próprio hebraico. Recordo-me que o falecido Sr. Clauberg, excelente filósofo, elaborou um pequeno ensaio sobre as origens da língua germânica, que me faz lamentar a perda daquilo que o autor havia prometido sobre este assunto. Eu mesmo lhe dei algumas ideias, além de ter levado o falecido Sr. Gerardus Meierus, teólogo de Bremen, a trabalhar nesta pesquisa. Ele o fez, mas a morte interrompeu o seu trabalho. Espero, contudo, que o público possa um dia tirar proveito dessas pesquisas, bem como dos trabalhos similares do Sr. Schilter, jurisconsulto famoso em Estrasburgo, o qual também faleceu recentemente. É certo, no mínimo, que a língua e as antiguidades teu tônicas entram na maioria das pesquisas relativas às origens, aos costumes e às antiguidades europeias. Desejaria que homens sábios fizessem a mesma pesquisa com relação às línguas valiana, biscaiense, eslavônica, finlandesa, turca, persa, armênia, geórgica e outras, a fim de melhor descobrir as harmonias vigentes entre elas. Isso contribuiria de modo especial para esclarecer a origem das nações, como acabo de dizer.] § 2. FILALETO - [Este plano é importante, mas agora já é tempo de deixar o aspecto material das palavras e voltar ao formal, isto é, à significação que é comum às diversas línguas.] Quanto a isto, devereis antes de tudo concordar comigo no seguinte: quando uma pessoa fala com outra, o que quer é pronunciar sinais das suas próprias ideias, uma vez que não pode aplicar palavras a coisas que não conhece. Ora, até que uma pessoa tenha ideias de seu próprio patrimônio, não deveria supor que estas ideias sejam conformes às qualidades das coisas ou às concepções de outra pessoa. TEÓFILO - [Todavia é verdade que muitas vezes se pretende designar antes o que outros pensam, do que aquilo que a pessoa mesma pensa, como ocorre com demasiada frequência com os "leigos" que têm uma fé implícita. Não obstante, concordo que sempre se compreende algo de geral, por mais irracional e destituído de inteligência que seja o pensamento; e no mínimo se toma cuidado para dispor as palavras segundo o hábito dos outros, contentando-se com pensar que se poderia compreender o sentido, em caso de necessidade. Assim, por vezes não passamos de intérpretes dos pensamentos, isto é, de portadores da palavra de outros, como o faria uma carta. Diria mesmo que isto acontece com frequência maior do que se pensa.] § 3. FILALETO - [Tendes razão em acrescentar que compreendemos algo de geral, por mais iletrados que sejamos.] Assim, uma criança, sem notar no que ouve denominar ouro outra coisa senão uma cor amarela brilhante, acaba denominando ouro a própria cor amarela que enxerga no rabo de um pavão. Outros acrescentarão as propriedades do peso elevado, a fusibilidade, a maleabilidade. TEÓFILO - [Concordo. Todavia, muitas vezes a ideia que temos do objeto de que falamos é ainda mais genérica do que a dessa criança. Não duvido de que um cego possa falar razoavelmente sobre cores e fazer um discurso de elogio à luz que não conhece, por ter percebido os efeitos e as circunstâncias da luz.] § 4. FILALETO - O que observais é muito verdadeiro. Acontece frequentemente que as pessoas ligam os seus pensamentos mais às palavras do que às coisas. E, já que aprendemos a maioria dessas palavras antes das ideias que elas significam, existem não somente crianças, mas também homens feitos que muitas vezes falam como periquitos. § 5. Todavia, as pessoas pretendem, via de regra, assinalar as Suas próprias ideias, e além disso atribuem às palavras uma relação secreta com as ideias de outrem e com as próprias coisas. Pois, se os sons fossem ligados, pela pessoa com quem conversamos, a outra ideia, seria o mesmo que falar duas línguas. É verdade que não nos detemos muito a examinar quais são as ideias dos outros, e supomos que a nossa ideia é aquela que as pessoas comuns e inteligentes do país atribuem à mesma palavra. § 6. Isto se verifica em particular quanto às ideias simples e aos modos, mas, quanto às substâncias, acredita-se mais particularmente que as palavras significam também a realidade das coisas. TEÓFILO - [As substâncias e os modos são igualmente representados pelas ideias; e as coisas, bem como as ideias, tanto num caso como no outro, são assinaladas pelas palavras. Assim sendo, não vejo nenhuma diferença a não ser esta: que as ideias das coisas substanciais e das qualidades sensíveis são mais fixas. De resto, acontece por vezes que as nossas ideias e os nossos pensamentos constituem a matéria dos nossos discursos e perfazem a própria coisa que se quer significar, e as noções reflexivas entram mais do que se pensa nas noções das coisas. Às vezes se fala mesmo das palavras materialmente, sem poder nesse momento preciso colocar a significação em lugar da palavra, ou relação às ideias ou às coisas. Isso acontece não somente quando falamos como gramáticos, mas também quando falamos como dicionaristas, ao darmos a explicação da palavra.] CAPÍTULO III OS TERMOS GERAIS. § 1. FILALETO - Embora só existam coisas particulares, a grande maioria das palavras não deixa de ser termos gerais, pois é impossível, § 2, que cada coisa particular tenha um nome particular e distinto, além do que seria necessária uma memória prodigiosa para tanto, muito superior à de certos generais que tinham a possibilidade de chamar pelo nome cada um dos seus soldados. Iríamos mesmo até o infinito, se cada animal, se cada planta, cada grão de trigo ou de areia devesse ter o seu nome próprio em caso de precisarmos designá-los. [E de que maneira denominar individualmente as partes das coisas obviamente uniformes, como as da água e do ferro,] § 3 - além do que todos esses nomes particulares seriam inúteis -, sendo a finalidade primordial da linguagem excitar no espírito de quem me ouve uma ideia semelhante à minha? [Assim, basta a semelhança, que é assinalada pelos termos gerais.] § 4. Mas as palavras individuais sozinhas não serviriam em nada para alargar os nossos conhecimentos, [nem para julgar do futuro pelo passado, ou de um indivíduo para outro.] § 5. Entretanto, visto que muitas vezes temos necessidade de mencionar certos indivíduos, particularmente da nossa espécie, servimo-nos de nomes próprios, os quais são dados também aos países, às cidades, às montanhas e a outras distinções de lugar. Os alquiladores dão nomes próprios até aos seus cavalos, assim como Alexandre o deu ao seu Bucéfalo, a fim de poderem distinguir este ou aquele cavalo individual, ao afastar-se este para longe do dono. TEÓFILO - [Estas observações são boas, havendo algumas que concordam com as que eu mesmo acabo de fazer. Eu acrescentaria, porém - na linha do que já observei acima -, que os nomes próprios via de regra eram apelativos, isto é, gerais, na sua origem. Assim acontece com Bruto, César, Augusto, Capito, Lêntulo, Piso, Cícero, Elba, Reno, Ruhr, Leine, Ocker, Bucéfalo, Alpes, Brenner ou Pireneus. Com efeito, é sabido que o primeiro Bruto teve o seu nome derivado de sua estupidez, que César era o nome de uma criança extraída do ventre de sua mãe por incisão (latim caedere: cortar), que Augusto era um nome de veneração, que Capiton significa uma cabeça grande, como aliás também Bucéfalo, que Lêntulo, Pison e Cícero eram nomes dados no início àqueles que cultivavam em particular certas espécies de legumes. Já disse acima o que significam os nomes destes rios: Reno, Ruhr, Leine e Ocker. E sabe-se que todos os rios se chamam ainda hoje elbes na Escandinávia. Finalmente, alpes são montanhas cobertas de neve (ao que corresponde album, branco) e Brenner ou Pireneus significam uma grande altura, pois bren era alto, ou superior (chef, como Breno) em céltico, como ainda entre os baixos saxões brink é altura, e existe um Brenner entre a Alemanha e a Itália, como os Pireneus estão entre as Gálias e a Espanha. Assim, ousaria dizer que quase todas as palavras são originalmente termos gerais, pois acontecerá muito raramente que se inventará um nome especial sem motivo para assinalar um tal indivíduo. Pode-se, em consequência, dizer que os nomes dos indivíduos eram nomes de espécie, que se davam por excelência ou por outra razão a algum indivíduo, como o nome de grosse-tête (cabeça grande) àquele,que era o mais considerado das grandes cabeças que se conheciam. E também assim que se dão os nomes dos gêneros às espécies, isto é, a gente se contentará com um termo mais geral ou mais vago para designar espécies mais particulares, quando não se atende às diferenças. Assim, por exemplo, contentamo-nos com a palavra geral absinto, embora existam tantas espécies de absinto que um dos Bauhins escreveu um livro especial sobre elas.] § 6. FILALETO - Vossas reflexões acerca da origem dos nomes próprios são muito acertadas. Todavia, para abordarmos a origem dos nomes apelativos, concordareis sem dúvida que as palavras se tomam gerais quando são sinais de ideias gerais, e as ideias se tornam gerais quando, por abstração, se separam delas o tempo, o lugar ou esta ou aquela outra circunstância que pode determiná-las a esta ou àquela existência particular. TEÓFILO - [Não discordo deste emprego das abstrações, mas isto se verifica antes subindo das espécies aos gêneros, que subindo dos indivíduos às espécies. Com efeito - por mais paradoxal que isto possa parecer - é impossível para nós ter o conhecimento dos indivíduos e encontrar o meio de determinar exatamente a individualidade de alguma coisa, a menos que ela mesma a guarde; pois todas as circunstâncias podem repetir-se; as menores diferenças nos são insensíveis; o lugar ou tempo, longe de serem elementos determinantes, necessitam eles mesmos ser determinados pelas coisas que contêm. O que há de mais considerável nisto é que a individualidade envolve o infinito, e só aquele que for capaz de compreender isto pode ter o conhecimento do princípio de individuação desta ou daquela coisa. Isto se deve à influência - a ser entendida retamente - de todas as coisas do universo, de umas sobre as outras. É bem verdade que assim não seria, se existissem os átomos de Demócrito; nesta hipótese, porém, tampouco haveria diferença entre dois indivíduos diferentes da mesma figura e do mesmo tamanho.] FILALETO - Entretanto, é evidente que as ideias que as crianças se fazem das pessoas com as quais conversam - para ficarmos neste exemplo - são semelhantes às próprias pessoas e são apenas particulares. As ideias que possuem de suas amas-secas e de sua mãe estão bem impressas no seu espírito, e os nomes de babá e mamãe, de que se servem as crianças, se referem exclusivamente a estas pessoas. Quando, passado algum tempo, observam que há muitos outros seres semelhantes a seu pai ou à sua mãe, formam uma ideia, da qual acreditam participar igualmente todos esses seres particulares, passam a dar-lhes, como os outros, o nome de homem ou pessoa. § 8. Pelo mesmo caminho as crianças adquirem nomes e noções mais gerais. Assim, por exemplo, a nova ideia do animal não surge por qualquer adição, mas apenas sendo a figura ou as propriedades particulares do homem, e conservando um corpo acompanhado de vida, de sentimento e de movimento espontâneo. TEÓFILO - [Muito bem. Mas isto não faz outra coisa senão evidenciar o que acabo de dizer. Pois, assim como a criança procede por abstração da observação da ideia do homem à observação da ideia do animal, a criança passou desta ideia mais específica, que observou em sua mãe ou em seu pai, e em outras pessoas, à ideia da natureza humana. Com efeito, para demonstrar que a criança não possuía uma ideia precisa do indivíduo, é suficiente considerar que uma semelhança razoável a enganaria facilmente e a levaria a tomar por sua mãe outra mulher, que não o era. Conheceis a história do falso Martin Guerre, o qual enganou a própria mulher do verdadeiro Martin Guerre e os parentes próximos, pela semelhança somada ao endereço, e colocou em embaraço por muito tempo os juízes, quando o verdadeiro cidadão apareceu.] § 9. FILALETO - Assim, todo este mistério do gênero e das espécies, sobre o qual tanto se discute nas escolas - mas que, fora disto, é tão pouco considerado, e com razão -, este mistério, digo eu, se reduz unicamente à formação de ideias abstratas mais ou menos extensas, às quais se dão certos nomes. TEÓFILO - [A arte de classificar as coisas em gêneros e espécies não é de pouca importância e é muito útil, tanto para o julgamento como para a memória. Sabeis que consequência tem isso para a botânica, sem falar dos animais e de outras substâncias, sem falar também dos seres morais e nocionais, como são denominados por alguns. Uma boa parte da ordem depende disto, e vários bons autores escrevem de tal maneira que todo seu discurso pode ser decomposto em divisões e subdivisões, segundo um método que tem relação com os gêneros e as espécies, e serve não só para reter as coisas, mas até para encontrá-las. Os que dispuseram toda espécie de noções sob certos títulos ou predicados subdivididos, fizeram algo de muito útil.] § 10. FILALETO - Ao definirmos as palavras, servimo-nos do gênero ou do termo geral mais próximo; fazemos isto para poupar-nos o trabalho de contar as diferentes ideias simples que este gênero significa, ou talvez, algumas vezes, para poupar-nos a vergonha de sermos incapazes de fazer tal enumeração. Todavia, embora o caminho mais curto para definir seja pelo gênero e pela diferença, como dizem os mestres da lógica, é lícito duvidar, a meu modo de ver, de que seja a melhor maneira. No mínimo, não é a única possível. Na definição que diz ser o homem um animal racional (definição que talvez não seja a mais exata, mas que serve bastante bem para a finalidade aqui visada), em lugar da palavra animal se poderia colocar a definição de animal. Isto revela como é pouco necessária a regra segundo a qual uma definição deve constar de gênero e diferença, e como é pouco vantajoso observar exatamente esta norma. As línguas não são sempre formadas segundo as regras da lógica, de maneira que a significação de cada termo possa ser expressa com exatidão e clareza por dois outros termos. E os que criaram esta regra fizeram mal em dar-nos eles mesmos tão poucas definições que estejam de acordo com a mesma. TEÓFILO - [Concordo com as vossas observações. Todavia, seria bem vantajoso, por várias razões, que as definições comportassem dois termos: isto indubitavelmente abreviaria muito, e todas as divisões poderiam ser reduzidas a dicotomias, que constituem a melhor espécie delas, e muito servem à invenção, ao julgamento e à memória. Todavia, não creio que os mestres da lógica exijam sempre que gênero ou a diferença sejam expressos numa só palavra. Por exemplo, termo polígono regular pode passar pelo gênero do quadrado, e na figura do círculo o gênero poderia ser uma figura plana curvilínea, e a diferença seria aquela cujos pontos da linha ambiente sejam equidistantes de certo ponto como centro. De resto, convém ainda notar que muitas vezes o gênero poderá ser mudado em diferença, e a diferença em gênero, por exemplo: o quadrado é um quadrilátero regular, ou um regular quadrilátero; de maneira que, ao que parece, o gênero ou a diferença se distinguem apenas como o substantivo difere do adjetivo; como se, em vez de dizer que o homem é um animal racional, a língua permitisse afirmar que o homem é um racional animável, isto é, uma substância racional dotada de uma natureza animal; ao passo que os gênios são substâncias racionais cuja natureza não é animal, ou comum com os animais. Esta troca de gêneros e diferenças depende da variação da ordem das subdivisões.) § 11. FILALETO - Do que eu acabava de dizer se conclui que aquilo que se denomina geral e universal não pertence à existência das coisas, mas é obra do entendimento. § 12. E as essências da cada espécie são apenas as ideias abstratas. TEÓFILO - [Não vejo bem esta consequência. Pois a generalidade consiste na semelhança das coisas singulares entre si, e esta semelhança constitui uma realidade.] § 13. FILALETO - Eu mesmo ia dizer-vos que essas espécies se fundam sobre as semelhanças. TEÓFILO - [Por que então não procurar também nisto a essência dos gêneros e das espécies?] § 14. FILALETO - Haverá menos surpresa em me ouvir afirmar que estas essências constituem obra do entendimento, se considerarmos que há pelo menos ideias complexas, que no espírito de pessoas diversas constituem muitas vezes diferentes coleções de ideias simples, sendo assim que o que é avareza no entender de uma pessoa não o é no entender de outra. TEÓFILO - [Confesso que em poucos casos, como no presente, entendi menos a força de vossas conclusões, e isto me penaliza. Se os homens diferem no nome, isto muda porventura as coisas ou as suas semelhanças? Se um aplica o termo avareza a uma semelhança, e outro a outra semelhança, estaremos diante de duas espécies diferentes, designadas pelo mesmo termo.] FILALETO - Na espécie das substâncias, que nos é mais familiar e que conhecemos mais intimamente, duvidou-se por vezes se o fruto que uma mulher colocou no mundo era homem, até ao ponto de pôr em discussão se se devia nutri-lo e batizá-lo. Ora, isto não poderia acontecer, se a ideia abstrata ou a essência, à qual pertence o termo homem, fosse obra da natureza e não uma incerta coleção de ideias simples, que o entendimento humano junta umas às outras, e à qual (coleção) o entendimento atribui um nome, após tê-la tomado geral por via de abstração. De maneira que, no fundo, cada ideia distinta, formada por abstração, constitui uma essência distinta. TEÓFILO - [Perdoai-me, se vos digo que a vossa linguagem me confunde, pois não vejo nexo nela. Se não podemos sempre julgar pelo exterior acerca das semelhanças internas, será que por isto elas deixam de existir na natureza? Quando se duvida se um monstro é um homem, isto ocorre porque se duvida se este monstro é dotado de razão. No momento em que se constatar que tal monstro é dotado de razão, os teólogos ordenarão que seja batizado e os jurisconsultos mandarão alimentá-lo. E verdade que esta discussão pode fazer-se com respeito às espécies mais baixas, consideradas logicamente, as quais variam por acidentes dentro de uma mesma espécie física ou tribo de geração, porém não há necessidade de determiná-las. Pode-se mesmo variá-las ao infinito, como se observa na grande variedade de laranjas, limões e citrões, que os peritos sabem distinguir e designar. Observa-se o mesmo nas tulipas e nos cravos, quando estas flores estavam na moda. De resto, que os homens associem ou unam estas ou aquelas ideias ou não, e mesmo que a natureza as associe ou una ou não, isto em nada afeta as essências, os gêneros ou as espécies, pois se trata apenas de possibilidades que são independentes do nosso pensamento.] § 15. FILALETO - Supõe-se comumente uma constituição real da espécie de cada coisa, e não cabe dúvida de que deve haver isto, donde deve depender cada conjunto de ideias simples ou qualidades coexistentes nesta coisa. Entretanto, visto ser evidente que as coisas são classificadas em sortes ou espécies apenas na medida em que concordam com certas ideias abstratas, às quais atribuímos aquele nome, a essência de cada gênero ou espécie não vem a ser outra coisa senão a ideia abstrata significada pelo nome genérico ou específico, e veremos que é isto que significa o termo essência, conforme o uso mais comum. A meu ver, não faria mal designar estas duas espécies de essências com dois termos diferentes, denominando a primeira essência real, e a outra essência nominal. TEÓFILO - [Tenho a impressão de que a vossa linguagem traz enormes inovações nos modos de se exprimir. Falou-se até hoje, é verdade, de definições nominais e causais, ou reais, mas não - quanto eu saiba - de outras essências que não sejam as reais, a menos que por essências nominais se tenha tencionado dizer apenas essências falsas e impossíveis, que parecem ser essências mas não o são, como seria, por exemplo, a essência de um decaedro regular, ou seja, de um corpo regular compreendido em dez planos ou hedros. A essência, no fundo, não é outra coisa senão a possibilidade daquilo que se propõe. O que se supõe possível é expresso pela definição; porém esta definição é apenas nominal, quando não exprime ao mesmo tempo a possibilidade, pois neste caso se pode duvidar se esta definição exprime algo de real, isto é, de possível até que a experiência nos venha ajudar para nos fazer conhecer esta realidade a posteriori, quando a coisa se encontra efetivamente no mundo; o que é suficiente ao falhar a razão que faria conhecer a realidade a priori expondo a causa ou a geração possível da coisa definida. Por conseguinte, não depende de nós associar ou juntar as ideias como entendemos, a menos que esta combinação seja justificada ou pela razão que a demonstra possível, ou pela experiência que a demonstra atual, e consequentemente também possível. Para melhor distinguir também a essência e a definição, deve-se considerar que só existe uma essência da coisa, existindo porém várias definições que exprimem uma mesma essência, assim como a mesma estrutura ou a mesma cidade pode ser representada por diversas cenografias, conforme os diversos lados a partir dos quais ela é observada.] § 18. FILALETO - Acredito que concordareis comigo em que o real e o nominal são sempre os mesmos nas ideias simples e nas ideias dos modos, porém nas ideias das substâncias são inteiramente diferentes. Uma figura que termina um espaço por três linhas é a essência do triângulo, tanto real como nominal; pois é não somente a ideia abstrata à qual é atribuído o nome geral, mas a essência ou o ser próprio da coisa, ou o fundamento donde procedem as suas propriedades, e ao qual elas estão ligadas. Acontece coisa completamente diferente com o ouro; a constituição real das suas partes, da qual dependem a cor, o peso, a fusibilidade, a fixidez etc., nos é desconhecida, e, não tendo ideia dela, não dispomos de uma palavra que seja sinal dela. Todavia, são essas qualidades que fazem com que esta matéria seja chamada ouro, constituindo a sua essência nominal, isto é, que lhe dá direito ao nome. TEÓFILO - [Preferiria dizer, segundo o uso comum, que a essência do ouro é aquilo que o constitui e que lhe dão as suas qualidades sensíveis, que o fazem reconhecer como tal e que perfazem sua definição nominal, ao passo que teríamos a definição real e causal, se pudéssemos explicar esta contextura ou constituição interna. Todavia, a definição nominal é, no caso, também real, não por ela mesma - pois não faz conhecer a priori a possibilidade ou a geração dos corpos -, mas pela experiência, pelo fato de experimentarmos que há um corpo no qual estas qualidades se encontram juntas: sem isto se poderia duvidar se tal peso seria compatível com tal maleabilidade, assim como se pode duvidar, até hoje, se um vidro maleável a frio é possível na ordem da natureza. De resto não concordo com a vossa opinião, segundo a qual há diferença entre as ideias das substâncias e as ideias dos predicados, como se as definições dos predicados - isto é, dos modos e dos objetos das ideias simples - fossem sempre reais e nominais ao mesmo tempo, e as definições das substâncias fossem apenas nominais. Concordo inteiramente em que é mais difícil obter definições reais dos corpos, que são seres substanciais, visto que a contextura dos mesmos é menos sensível. Todavia, não ocorre o mesmo com todas as substâncias. Pois possuímos um conhecimento das verdadeiras substâncias ou das unidades (como de Deus e da alma) tão íntimo como o que possuímos da maior parte dos modos. De resto, há predicados tão pouco conhecidos como a contextura dos corpos; com efeito, o amarelo ou o amargo, por exemplo, são os objetos das ideias ou fantasias simples, e não obstante possuímos deles apenas um conhecimento confuso, mesmo na matemática, onde um mesmo modo pode ter uma definição nominal e uma real. Poucas pessoas explicaram bem em que consiste a diferença entre estas duas definições, diferença que deve também. distinguir a essência e a propriedade. A meu entender a diferença está em que a definição real faz ver a possibilidade do definido, ao passo que a nominal não o faz: a definição de duas retas paralelas, que diz estarem elas num mesmo plano, e não se encontrarem, mesmo que sejam prolongadas até o infinito, é apenas nominal, pois se poderia de saída duvidar se isto é possível. Contudo, quando tivermos compreendido que se pode prolongar uma reta paralela num plano a uma reta indicada, desde que se tome cuidado para que a ponta do lápis que traça a paralela fique sempre equidistante da reta indicada, vê-se ao mesmo tempo em que isto é possível e por que elas têm esta propriedade de jamais se encontrarem, propriedade que perfaz a sua definição nominal, mas que só constitui o sinal do paralelismo quando as duas linhas são retas, ao passo que, se uma ou outra fosse curva, poderiam ser de natureza a nunca se encontrarem, e todavia não seriam, por isso mesmo, paralelas.] § 19. FILALETO - Se a essência fosse coisa distinta da ideia abstrata, não seria destituída de geração e incorruptível. Um licórnio, uma sirena, um círculo exato talvez não existam no mundo. TEÓFILO - [Já vos disse que as essências são perpétuas, pois nelas só se trata do possível.] CAPÍTULO IV OS NOMES DAS IDEIAS SIMPLES. § 2. FILALETO - Confesso-vos que sempre acreditei ser arbitrário formar modos. Todavia, no que concerne às ideias simples e às ideias das substâncias, tenho a persuasão de que, além da possibilidade, estas ideias devem significar uma existência real. TEÓFILO - [Não vejo nenhuma necessidade para isso. Deus possui as ideias das coisas antes de criar os objetos dessas ideias, e nada impede que ele possa comunicar tais ideias aos seres dotados de inteligência: não existe sequer demonstração cabal que prove que os objetos dos nossos sentidos, bem como das ideias simples que os sentidos nos apresentam, estão fora de nós. Isto se verifica sobretudo com respeito àqueles que, com os Cartesianos, e com o nosso célebre autor, acreditam que as nossas ideias simples das qualidades sensíveis não possuem semelhança com aquilo que está fora de nós nos objetos: consequentemente, nada haveria que obrigasse estas ideias a estarem fundadas em alguma existência real.] § § 4, 5, 6, 7. FILALETO - Concordareis comigo, ao menos, nesta outra diferença entre as ideias simples e as compostas, isto é, que os nomes das ideias simples não podem ser definidos, ao passo que os das ideias compostas o podem. Pois as definições devem encerrar mais do que um termo, sendo que cada um deles significa uma ideia. Assim, vê-se o que pode ou não pode ser definido, e por que as definições não podem ir até o infinito, coisa que, quanto saiba, ninguém até agora observou. TEÓFILO - [Observei também, no pequeno Ensaio sobre as ideias) inserido nas atas de Leipzig há cerca de vinte anos, que os termos simples não possuem definição nominal; acrescentei, porém, que os termos, quando são simples apenas com respeito a nós (uma vez que não dispomos de meios para fazer a sua análise para chegar às percepções elementares de que se compõem), tais como quente, frio, amarelo, verde podem receber uma definição real que explicaria a sua causa: assim é que a definição real de verde é o compor-se de azul e de amarelo bem mesclados, embora o verde não seja mais suscetível de definição nominal que o faça reconhecer, do que o azul e o amarelo. Ao contrário, os termos que são simples em si mesmos, isto é, cuja concepção é clara e distinta, não podem receber nenhuma definição, nem nominal nem real. Podereis encontrar nesse pequeno Ensaio, inserido nas atas de Leipzig, os fundamentos de boa parte da doutrina sobre o entendimento, explicada em resumo.] § § 7, 8. FILALETO - Foi bom explicar este ponto e assinalar o que pode ser definido ou não. Estou tentado a crer que surgem muitas vezes grandes discussões e que nascem muitas confusões no discursar das pessoas por não se atender a isso. Essas célebres bagatelas, em tomo das quais tanta celeuma se tem feito nas escolas, derivam do fato de não se ter atentado a esta diferença que se encontra nas ideias. Os mais insignes mestres na arte têm sido forçados a deixar a maior parte das ideias simples sem defini-las, e, quando tentaram fazê-lo, não o conseguiram. Por exemplo, como poderia o espírito humano ter inventado uma confusão mais sutil do que a encerrada nesta definição de Aristóteles: o movimento é o ato de um ser em potência, enquanto está em potência? § 9. E os modernos, ao definirem o movimento como sendo a passagem de um lugar a outro, não fazem outra coisa senão colocar uma palavra sinônima no lugar da outra. TEÓFILO – [Já observei, numa de nossas conversações passadas, que vós considerais simples muitas ideias que não o são. O movimento, que acredito seja definível, pertence a este número, e a definição segundo a qual o movimento constitui uma mudança de lugar não é de se desprezar. A definição de Aristóteles não é tão absurda como se pensa, e isto porque não se costuma entender que o grego kíneses na sua terminologia não significava o que denominamos movimento, mas o que exprimiríamos pelo termo mudança. Daí vem que Aristóteles lhe dá uma definição tão abstrata e tão metafísica, ao passo que aquilo que denominamos movimento, ele o denomina phorá, latio, sendo uma das espécies de mudança (tes kinéseos).] § 10. FILALETO - Pelo menos não encontrareis escusa para a definição da luz, do mesmo autor, que segundo ele é o ato do que é transparente. TEÓFILO - [Como vós, também eu a considero muito inútil. Aristóteles utiliza demais o seu ato, que não nos diz muita coisa. Diáfano é para ele um meio através do qual se poderia enxergar, e a luz é, segundo ele, o que consiste no trajeto atual. A explicação veio em boa hora.] § 11. FILALETO - Concordamos, portanto, em que as nossas ideias simples não podem ter definições nominais, da mesma forma como não poderíamos conhecer o gosto do ananás pelo relato dos viajantes, a menos que pudéssemos degustar as coisas pelos ouvidos, assim como Sancho Pança tinha a faculdade de ver Dulcinéia por ouvir falar dela, ou como aquele cego que, tendo ouvido falar muito do brilho do escarlate, acreditou que devia parecer-se com o som da trombeta. TEÓFILO - [Tendes razão. Nem todos os viajantes do mundo poderiam ter-nos fornecido mediante seus relatos o que devemos a um nobre cidadão deste país, o qual cultiva com êxito ananás em três lugares de Hanôver, quase às margens do rio Weser. O referido cidadão encontrou o meio de aumentar a produção dos ananases de tal maneira, que um dia poderemos talvez tê-los em abundância tão grande como as laranjas de Portugal, embora haja talvez alguma diferença no gosto.] § § 12, 13. FILALETO - Coisa muito diferente acontece com as ideias complexas. Um cego pode compreender o que é uma estátua, e uma pessoa que nunca tivesse visto o arco-íris poderia compreender o que é, desde que tenha visto as cores que o compõem. § 15. Todavia, embora as ideias simples sejam inexplicáveis, não deixam de ser as menos sujeitas a dúvidas. [Pois a experiência ajuda mais que a definição.] TEÓFILO - [Entretanto, existe alguma dificuldade acerca das ideias que são simples apenas com respeito a nós. Por exemplo, seria difícil estabelecer com precisão os limites entre o azul e o verde, e em geral discernir as cores muito próximas, ao passo que podemos possuir noções precisas dos termos dos quais nos servimos na aritmética e na geometria.] § 16. FILALETO - As ideias simples possuem ainda isto de particular, que têm muito pouca subordinação naquilo que os mestres da lógica denominam linha predicamental, desde a última espécie até o gênero supremo. É que a última espécie, sendo uma só ideia simples, não se pode cortar nada dela; por exemplo, não se pode cortar nada das ideias do branco e do vermelho para conservar a aparência comum, na qual concordam; é por isso que as compreendemos, com o amarelo e outros, sob o gênero ou o nome de cor. E quando se quer formar um termo ainda mais geral, que compreenda também os sons, os gostos e as qualidades acessíveis ao tato, servimo-nos do termo geral de qualidade no sentido que se lhe dá comumente para distinguir estas qualidades da extensão, do número, do movimento, do prazer e da dor que agem sobre o espírito e nele introduzem as suas ideias através de mais de um sentido. TEÓFILO - [Tenho algo mais a dizer sobre esta observação. Espero que, aqui como alhures, acrediteis que não o faço por espírito de contradição, mas porque o assunto parece exigi-lo. Não constitui vantagem o fato de que as ideias das qualidades sensíveis têm tão pouca subordinação, e são passíveis de tão poucas divisões. Isto vem do fato de as conhecermos pouco. Todavia, a própria característica que é comum a todas as cores, ou seja, de serem vistas pelos olhos, de passarem todas através de corpos pelos quais passa a aparência de alguns dentre eles, e de serem refratadas pelas superfícies polidas dos corpos que não as deixam passar, nos faz conhecer que podemos cortar algo das ideias que delas possuímos. Pode-se mesmo dividir com razão as cores em extremas (uma positiva, isto é, o branco, e a outra, privativa, isto é, o preto) e intermediárias, que se denominam cores num sentido especial, as quais nascem pela luz da refração; pode-se também dividi-las assim: as do lado convexo e as do lado côncavo do raio quebrado. Ora, estas divisões e subdivisões das cores revestem não pequena importância.] FILALETO - Mas como encontrar gêneros nessas ideias simples? TEÓFILO - [Por serem simples apenas na aparência, são acompanhadas por circunstâncias que têm ligação com elas, embora esta ligação não seja compreendida por nós. E estas circunstâncias fornecem algo de explicável e de suscetível de análise, o que nos autoriza a esperar que poderemos um dia descobrir as razões destes fenômenos. Assim, acontece que há uma forma de pleonasmo nas percepções que temos das qualidades sensíveis, como também das massas sensíveis, pleonasmo que consiste em possuirmos mais do que uma noção do mesmo sujeito. O ouro pode ser definido nominalmente de várias maneiras: pode-se dizer que é o mais pesado dos nossos corpos, que é o mais maleável, que é um corpo fusível que resiste ao cadinho e à água-forte, e assim por diante. Cada uma ,dessas características é boa o suficiente para reconhecer o ouro, ao menos provisoriamente e no estado atual dos nossos corpos, até que encontremos um corpo mais pesado, como alguns químicos o pretendem de sua pedra filosofal, ou, então, até que possamos ver esta lune fixa, a qual é um metal que se diz ter a cor da prata e quase todas as outras qualidades do ouro, e que o Sr. Cavaleiro Boyle parece afirmar ter fabricado. Pode-se também dizer que, em se tratando das matérias que só conhecemos empiricamente, todas as nossas definições são apenas provisórias, conforme penso ter já observado acima. Por conseguinte, é verdade que não sabemos demonstrativamente se não é possível que uma cor possa ser gerada apenas pela reflexão, e que as cores que observamos até agora na concavidade do ângulo de refração comum se encontram na convexidade de um modo de refração desconhecida até o momento, e vice-versa. Assim sendo, a ideia simples do azul seria despojada do gênero que lhe atribuímos, baseados em nossas experiências. Mas é bom fixar-nos no azul que temos, bem como nas circunstâncias que o acompanham. Elas nos fornecem algo de que nascem os gêneros e as espécies.] § 17. FILALETO - Entretanto, que dizeis da observação feita, que as ideias simples, sendo tomadas da existência das coisas, não são de forma alguma arbitrárias, ao passo que as dos modos mistos o são em absoluto, e as das substâncias o são de alguma forma? TEÓFILO - [Creio que o arbitrário reside somente nas palavras, de forma alguma nas ideias. Pois elas exprimem apenas possibilidades; assim, mesmo que não tivesse jamais havido parricídio, e mesmo que todos os legisladores tivessem tão pouco juízo como Sólon ao falar dele, o parricídio continuaria sendo um crime possível e a sua ideia seria real. Pois as ideias residem em Deus desde toda a eternidade, e mesmo em nós estão antes de pensarmos nelas atualmente, como demonstrei em nossas primeiras conversações. Se alguém quer tomá-las como pensamentos atuais dos homens, isto lhe é permitido, mas com isto contrariará o modo comum de falar.] CAPÍTULO V OS NOMES DOS MODOS MISTOS E AS RELAÇÕES. § 2,355. FILALETO - Todavia, o espírito não forma porventura as ideias mistas, juntando as ideias simples como melhor julga, sem necessitar de modelo real? Ao contrário, as ideias simples não lhe ocorrem porventura sem escolha, pela própria existência das coisas? Porventura o espírito não vê muitas vezes a ideia mista antes de a coisa existir? TEÓFILO - Se tomardes as ideias como pensamentos atuais, tendes razão. Entretanto, não vejo que seja necessário aplicar a vossa distinção ao que concerne à própria forma ou à possibilidade desses pensamentos, e todavia é disso que se trata no mundo ideal, que distinguimos do mundo existente. A experiência real dos seres que não são necessários constitui um ponto de fato ou de história, porém o conhecimento das possibilidades e das necessidades - já que o necessário é aquilo cujo oposto é impossível - é o âmbito das ciências demonstrativas. FILALETO - Todavia, existe porventura ligação maior entre as ideias de matar e de homem, do que entre as ideias de matar e de ovelha? Porventura o parricídio se compõe de noções mais interligadas que o infanticídio? E porventura o que os ingleses denominam stabbing, isto é, um homicídio cometido com punhal ou com a ponta da espada - que entre eles é mais grave que matar com o corte da espada - é mais natural para ter merecido um nome e uma ideia, nome e ideia que não se concederam, por exemplo, ao ato de matar uma ovelha ou de matar um homem cortando-o? TEÓFILO - [Em se tratando apenas das possibilidades, todas essas ideias são igualmente naturais. Os que viram matar ovelhas tiveram uma ideia deste ato no pensamento, embora não lhe tenham dado nome e não lhe tenham dispensado atenção. Por que então limitar-se aos nomes quando se trata das próprias ideias, e por que amarrar-se à dignidade das ideias dos modos mistos, quando se trata dessas ideias em geral?] §, 8. FILALETO - Já que os homens formam arbitrariamente diversas espécies de modos mistos, isto faz com que se encontrem numa determinada língua palavras para as quais não existe nenhuma correspondente em outra (língua). Não existe em outras línguas palavra que corresponda ao termo versura, usado entre os romanos, e ao termo corban, empregado pelos judeus. Atrevemo-nos a traduzir as palavras latinas hora, pes e libra por hora, pé e libra, porém as ideias dos romanos eram muito diferentes das nossas. TEÓFILO - [Vejo que muitas coisas que discutimos quando se tratava das próprias ideias e das suas espécies voltam agora quanto aos nomes dessas ideias. A observação é boa quanto aos nomes e quanto aos costumes dos homens, mas nada muda nas ciências e na natureza das coisas. É bem verdade que quem escrevesse uma gramática universal faria bem passando da essência das línguas à sua existência e comparando as gramáticas de várias línguas, assim como o autor que quisesse escrever uma jurisprudência universal baseado na razão faria bem acrescentando-lhe paralelismos das leis e costumes dos povos, o que ajudaria não só na prática mas também na contemplação e daria ocasião ao próprio autor de perceber várias considerações que sem isto lhe teriam escapado. Contudo, na própria ciência, separada de sua história ou existência, não importa se os povos agiram ou não de acordo com o que manda a razão.] § 9. FILALETO - A significação duvidosa do termo espécie faz com que certas pessoas se choquem ao ouvir dizer que as espécies dos modos mistos são formadas pelo entendimento humano. Pergunto, porém, quem é que fixa os limites de cada variedade ou espécie, uma vez que estas duas palavras não são de todo sinônimas. TEÓFILO - [É a natureza das coisas que de ordinário fixa estes limites das espécies, por exemplo, entre o homem e o animal, entre a cepa e a poda. Concedo, entretanto, que há noções nas quais existe algo de arbitrário, verdadeiramente; por exemplo, quando se trata de determinar um pé, pois, sendo a linha reta uniforme e indefinida, a natureza não estabelece limites para ela. Há também essências vagas e imperfeitas, nas quais entra algo de opinável, como quando se pergunta quanto cabelo deve ter uma pessoa para que não seja calva; era um dos sofismas dos antigos, para confundir o adversário: Dum cadat elusus ratione ruentis aceroi. A verdadeira resposta, porém, é que a natureza não determinou esta noção e que aqui tem a sua parte o opinável; que há pessoas a respeito das quais se pode duvidar se são calvas ou não, e que haverá casos ambíguos em que a pessoa passará por calva na opinião de alguns e por não calva no parecer de outros, como vós observastes acerca de um cavalo, considerado pequeno na Holanda e grande no País de Gales. Existe até algo desta natureza nas ideias simples, pois acabo de observar que os últimos limites entre as cores são duvidosos. Existem também essências verdadeiramente seminominais, nas quais o nome entra na definição da coisa, por exemplo, o grau ou a qualidade de doutor, de cavaleiro, de embaixador, de rei, se reconhece quando uma pessoa adquiriu o direito reconhecido de usar este título. Um ministro estrangeiro, por mais poderes plenos e por mais aparência que possua, não será considerado embaixador se as suas credenciais não lhe derem este nome. Todavia, estas essências e ideias são vagas, duvidosas, arbitrárias, nominais num sentido algo diverso daquelas que vós mencionastes.] § 10. FILALETO - Parece, porém, que o nome conserva muitas vezes as essências dos modos mistos, que, segundo vosso modo de ver, não são arbitrárias; por exemplo, no termo triunfo, não teríamos ideia do _que realmente acontecia entre os romanos em tal ocasião. TEÓFILO - [Concordo em que o nome serve para chamar atenção à coisa, e para conservar-lhe a memória e o conhecimento atual; contudo, isto nada altera quanto ao ponto de que se trata, e não torna as essências nominais; confesso que não compreendo por que razão os vossos colegas querem à força que as próprias essências dependam da escolha dos nomes. Seria de desejar que o vosso célebre autor, em vez de insistir nisto, tivesse preferido entrar em maiores detalhes acerca das ideias e dos modos, bem como ordenar e desenvolver as suas variedades. Eu tê-lo-ia seguido em seu caminho com prazer e com fruto, pois nos teria fornecido muita luz.] § 12. FILALETO - Ao falarmos de um cavalo ou do ferro, consideramo-los como coisas que nos fornecem os padrões originais das nossas ideias; mas quando falamos dos modos mistos, ou pelo menos dos mais importantes dentre eles, que são os seres morais - por exemplo, a justiça, o reconhecimento -, consideramos os seus modelos originais como existentes no espírito. Eis por que falamos da noção da justiça, da temperança, ao passo que não falamos da noção de um cavalo, de uma pedra. TEÓFILO - [Os padrões das ideias de uns são tão reais quanto os das ideias dos outros. As qualidades do espírito não são menos reais que as do corpo. É verdade que não vemos a justiça como um cavalo, mas nem por isso deixamos de compreendê-la, pelo contrário, entendemo-la melhor; a justiça não está menos nas ações do que a retilinidade e a obliquidade se encontram nos movimentos, quer as consideremos quer não. E, para vos mostrar que os homens são, a meu entender, os mais capazes e os mais experimentados nas coisas humanas, é suficiente servir-me da autoridade dos jurisconsultos romanos, seguidos por todos os outros, que denominam estes modos mistos ou estes seres morais coisas, e, em particular, coisas incorpóreas. Assim, por exemplo, as servidões - como a da passagem pelo terreno do vizinho - constituem entre eles coisas incorpóreas, constituindo objeto de propriedade, a qual se pode adquirir por um uso demorado, o qual se pode possuir e reivindicar. No que concerne ao termo noção, pessoas muito inteligentes deram a esta palavra um sentido tão vasto como o de ideias; o uso latino não se opõe a isso, e não sei se o dos ingleses ou dos franceses lhe é contrário.] § 15. FILALETO - Cumpre ainda notar que os homens aprendem os nomes antes das ideias dos modos mistos, sendo que o nome faz conhecer que esta ideia merece ser observada. TEÓFILO - [Esta observação é boa, embora seja verdade que hoje as crianças, valendo-se das nomenclaturas, aprendem em geral não somente os nomes dos modos, mas também das substâncias, antes das coisas, e mesmo antes os nomes das substâncias que os dos modos; pois um defeito existente nestas nomenclaturas está no fato de que nelas se colocam apenas os nomes, e não os verbos, esquecendo que os verbos, embora signifiquem modos, são mais necessários na conversação do que a maioria dos nomes, os quais assinalam substâncias particulares.] CAPÍTULO VI OS NOMES DAS SUBSTÂNCIAS. § 1. FILALETO - Os gêneros e as espécies das substâncias, como dos outros seres; são apenas espécies (sortes). Por exemplo, os sóis são uma espécie de estrelas, a saber, estrelas fixas, pois não é sem razão que se crê que cada estrela fixa se daria a conhecer como um sol a uma pessoa que estivesse colocada a uma distância certa. § 2. Ora, o que delimita cada espécie é a sua essência. Ela é conhecida ou pela sua estrutura interna ou por características externas, que no-la fazem conhecer e designar com certo nome: é assim que se pode conhecer o relógio de Estrasburgo ou como o relojoeiro que o fez, ou como um espectador que observa os seus efeitos. TEÓFILO - [Se vos exprimis assim, nada tenho a objetar.] FILALETO - Exprimo-me de uma forma própria a não renovar as nossas discordâncias. Agora quero acrescentar que a essência não se refere às espécies (sortes), e que nada é essencial aos indivíduos. Um acidente ou uma doença podem alterar a minha cor ou a minha estatura; uma febre ou uma queda podem privar-me do uso da razão e da memória, uma apoplexia pode reduzir-me a não ter nem sentimento, nem entendimento, nem vida. Se me perguntarem se para mim é essencial ser dotado de razão, responderei que não. TEÓFILO - [Acredito haver algo de essencial para os indivíduos, e mais do que se pensa. É essencial às substâncias o agir, às substâncias criadas é essencial o sofrer, aos espíritos é essencial o pensar, aos corpos é essencial a extensão e o movimento. Em outros termos, existem sortes, ou espécies, às quais um indivíduo não cessa de pertencer (ao menos na ordem natural), desde que tenha pertencido a elas uma vez, quaisquer que sejam as revoluções que possam ocorrer na natureza. Todavia, existem sortes ou espécies - reconheço-o - que são acidentais ao indivíduo que a elas pertence, e neste caso ele pode cessar de pertencer a esta espécie. Assim, pode-se cessar de ser são, belo, sábio, e até de ser visível e palpável: entretanto, não cessamos de ter vida, órgãos, percepção. Expliquei suficientemente, mais acima, por que razão parece às pessoas que a vida e o pensamento cessam por vezes, embora não deixem de durar e de ter efeitos.] § 8. FILALETO - Uma série de indivíduos, englobados sob um nome comum, considerados de uma só espécie, possuem todavia qualidades muito diferentes que dependem das suas constituições reais (particulares). É o que observam sem esforço todos os que examinam os corpos naturais, e muitas vezes os químicos se convencem disto por experiências desastrosas, procurando em vão numa parcela de antimônio, de enxofre e de vitríolo as qualidades que encontraram em outras partes desses minerais. TEÓFILO - [Nada de mais verdadeiro do que isto, eu mesmo poderia acrescentar outros exemplos. Assim é que se escreveram expressamente livros de infido experimentorum chymicorum successu. Todavia, enganamo-nos ao considerar tais corpos como similares ou uniformes, quando na realidade são mistos, mais do que se pensa; com efeito, nos corpos dessemelhantes não nos surpreendemos ao observar diferenças entre os indivíduos, e os médicos sabem perfeitamente quanto os temperamentos e o natural dos corpos humanos são diferentes. Numa palavra, não encontraremos jamais as últimas espécies lógicas, como já observei acima, e jamais dois indivíduos reais ou completos de uma mesma espécie serão perfeitamente semelhantes.] FILALETO - Não observamos todas essas diferenças, pelo fato de não conhecermos as pequenas partes, nem por conseguinte a estrutura interna das coisas. Igualmente, não utilizamos as diferenças para determinar as sortes ou espécies das coisas, e, se o quiséssemos fazer através dessas essências ou através daquilo que as escolas filosóficas denominam formas substanciais, seríamos como cegos que quisessem classificar os corpos conforme as cores. § 11. Não conhecemos sequer as essências dos espíritos, não somos capazes de formar diferentes ideias específicas dos anjos, embora saibamos bem ser necessário que haja várias espécies de espíritos. Parece também que nas nossas ideias não colocamos nenhuma diferença entre Deus e os espíritos por nenhum número de ideias simples, exceto o fato de que atribuímos a Deus a infinitude. TEÓFILO - [No meu sistema existe ainda outra diferença entre Deus e os espíritos criados: a meu juízo, é necessário que todos os espíritos criados tenham corpo, assim como a nossa alma o tem.] § 12. FILALETO - Acredito que pelo menos existe esta analogia entre os corpos e os espíritos, a saber: assim como não existe vazio nas variedades do mundo corporal, não existirá menos variedade nas criaturas inteligentes. Começando por nós e indo até as coisas mais baixas, é uma descida que se opera através de graus muito pequenos e por uma sequência continuada das coisas, que em cada distanciamento diferem muito pouco uma da outra. Existem peixes que têm asas, e para os quais o ar não é estranho; existem, por outra parte, pássaros que habitam na água, que têm o sangue frio como os peixes, e cuja carne se assemelha tanto à dos peixes no gosto que se permite aos escrupulosos comê-la em dias de abstinência. Existem animais que se aproximam tanto da espécie dos pássaros e da dos animais, que estão situados a meio caminho entre ambos. Os anfíbios têm algo dos animais terrestres e algo dos aquáticos. Os cervos marinhos vivem na terra e no mar; e os marsuínos (cujo nome significa porco do mar) têm o sangue quente e as entranhas de um suíno. Isto para não falar do que se conta dos homens marinhos; existem animais que parecem possuir tanto conhecimento e tanta razão quanto alguns animais racionais que se denominam homens. Existe, igualmente, uma proximidade tão grande entre os animais e os vegetais que, se tomarmos o que existe de mais imperfeito nos animais e o mais perfeito nos vegetais, será difícil notar alguma diferença considerável entre uns e outros. Assim, até que cheguemos às partes mais baixas e menos organizadas da matéria, veremos em toda parte que as espécies estão ligadas entre si e diferem tão somente por graus quase insensíveis. Ao considerarmos a sabedoria e o poder infinitos do Autor de todas as coisas, temos razão para pensar que é algo conforme a suntuosa harmonia do universo e ao grande desígnio, bem como à bondade infinita do Arquiteto supremo, que as diferentes espécies das criaturas se elevem progressivamente desde nós até a sua infinita perfeição. Assim sendo, temos razão de persuadir-nos de que existem muito mais espécies de criaturas acima de nós do que abaixo de nós, visto estarmos muito mais longe em graus de perfeição do ser infinito de Deus que daquilo que mais se aproxima do nada. Entretanto, não possuímos nenhuma ideia clara e distinta de todas essas diferentes espécies. TEÓFILO - [Em outro lugar tinha eu a intenção de dizer algo de semelhante ao que acabais de dizer; todavia, fico satisfeito em verificar que outros exprimem as coisas melhor do que poderia fazê-lo eu. Excelentes filósofos abordaram esta questão, utrum detur vacuum formarum, isto é, se existem espécies possíveis, que porém não existem, espécies que poderiam parecer ter sido esquecidas pela natureza. Tenho motivos para crer que todas as espécies possíveis não são compatíveis no universo, por maior que este seja, e isto não só em relação às coisas que estão associadas ao mesmo tempo, mas também em relação a toda a sequência das coisas. Em outros termos: creio haver espécies que jamais existiram e jamais existirão, por não serem compatíveis com esta sequência das criaturas que Deus escolheu. Todavia, acredito que todas as coisas compatíveis com a perfeita harmonia do universo nele se encontram realmente. Que existam criaturas que se encontram a meio caminho entre as mais altas e as mais baixas é algo de conforme a esta mesma harmonia, embora não seja sempre num mesmo globo ou sistema, e aquilo que se encontra a meio caminho entre duas espécies, o está por vezes com respeito a certos aspectos, e não com respeito a outros. Os pássaros, tão diferentes do homem em outras coisas, aproximam-se dele pela palavra; todavia, se os símios pudessem falar como os periquitos, iriam mais longe. A lei da continuidade implica que a natureza não deixa vazios na ordem que costuma seguir; todavia, nem toda forma ou espécie pertence a todas as ordens. Quanto aos espíritos ou gênios, uma vez que acredito que todas as inteligências criadas possuem corpos organizados, cuja perfeição corresponde à da inteligência ou do espírito que está neste corpo em virtude da harmonia preestabelecida, defendo que, para conceber algo sobre as perfeições dos espíritos colocados acima de nós, é muito útil imaginar perfeições também nos órgãos do corpo, que ultrapassam as do nosso. É aqui que a imaginação mais viva e mais rica e - para utilizar um italiano que não consigo expressar de outra forma - l'invenzione la piu vaga - terá a melhor serventia para elevar-nos acima de nós. O que eu disse para justificar o meu sistema da harmonia, que exalta as perfeições divinas muito mais do que se costuma pensar, servirá também para ter ideias das criaturas, incomparavelmente mais sublimes do que as que tivemos até agora. § 14. FILALETO - Para voltar ao problema da espécie, pergunto-vos se a água e o gelo são de espécies diferentes. TEÓFILO - [Por minha vez pergunto se o ouro fundido no cadinho e o ouro reduzido a lingotes gelados são da mesma espécie.] FILALETO - Não se responde a uma questão, retrucando com outra. Qui litem lite resolvit. Entretanto, haveis de reconhecer que a redução das coisas a espécies se prende exclusivamente às ideias que delas temos, o que é suficiente para distingui-las por nomes. Todavia, se supusermos que esta distinção está fundada na sua constituição real e interna, e que a natureza distingue as coisas existentes em outras tantas espécies pelas suas essências reais, da mesma forma como nós mesmos as distinguimos em espécies por estas ou aquelas denominações, estaremos sujeitos a grandes equívocos. TEÓFILO - Existe certa ambiguidade no termo espécie ou ser de espécie diferente, que gera todas estas confusões. Se conseguirmos eliminar tal ambiguidade, não haverá nenhuma outra contestação a não ser talvez quanto ao termo. Pode-se considerar a espécie sob o ponto de vista matemático, e sob o ponto de vista físico. A rigor matemático, a menor diferença que faz com que duas coisas não sejam semelhantes em tudo faz com que se diferenciem na espécie. Assim é que na geometria todos os círculos são de uma mesma espécie, pois são todos perfeitamente semelhantes, e pela mesma razão também todas as parábolas pertencem a uma mesma espécie; todavia, o mesmo não ocorre com as elipses e as hipérboles, pois existe ali uma infinidade de espécies, embora haja também uma infinidade de cada espécie delas. Todas as elipses inumeráveis, nas quais a distância dos focos está na mesma razão da distância dos pontos extremos, pertencem a uma mesma espécie; todavia, visto que as razões dessas distâncias só variam em grandeza; segue-se que todas essas espécies infinitas das elipses constituem um único gênero, não existindo mais subdivisões. Ao contrário, uma oval de três focos teria uma infinidade de tais gêneros, e teria um número de espécies infinitamente infinito, pelo fato de cada gênero ter um número simplesmente infinito delas. Assim sendo, dois indivíduos físicos jamais serão perfeitamente semelhantes, e, o que é mais, o mesmo indivíduo passará de uma espécie a outra, pois jamais será em tudo semelhante a si mesmo, depois de um instante. Todavia, os homens que determinam espécies físicas não observam este rigor, e depende deles dizer que uma massa que eles mesmos podem fazer voltar à primeira forma permanece dentro de uma mesma espécie e a seu ver. Assim, dizemos que a água, o ouro, o mercúrio, o sal comum permanecem dentro da mesma espécie e mudam apenas de aparência nas alterações comuns: todavia, nos corpos orgânicos ou nas espécies das plantas e dos animais, definimos a espécie pela geração, de maneira que este semelhante, que provém ou poderia provir de uma mesma origem ou semente, pertenceria a uma mesma espécie. No homem, além da geração humana, prendemo-nos à qualidade de animal racional; e, embora existam homens que permanecem semelhantes aos animais durante toda a sua vida, presumimos que isto não acontece por falta da faculdade ou do princípio, mas devido a obstáculos que impedem esta faculdade de operar. Entretanto, ainda não nos determinamos em relação a todas as condições externas que queremos considerar suficientes para dotar esta suposição. Todavia, quaisquer que sejam os regulamentos que os homens estabeleçam para as suas denominações e para os direitos concernentes aos termos, desde que o regulamento seja seguido e seja inteligível, será fundado na realidade, e não poderão imaginar espécie que a natureza não fez ou não distinguiu antes deles. Quanto ao interior, embora não haja aparência externa que não esteja fundada na constituição interna, é porém verdade que uma mesma aparência poderia por vezes resultar de duas constituições diferentes: todavia, haverá algo de comum, é o que os nossos filósofos denominam causa próxima formal. Entretanto, mesmo que isto não fosse assim, como se, segundo o Sr. Mariotte, o azul do arco-íris tivesse uma origem completamente diferente do azul de uma turquesa, sem que tivesse uma causa formal comum - no que discordo da opinião dele - as nossas definições não deixariam de ser fundadas nas espécies reais; pois os próprios fenômenos são realidades. Podemos, por conseguinte, afirmar que tudo aquilo que distinguimos ou comparamos com verdade, também a natureza o distingue e o faz ser comparado, embora ela tenha distinções e comparações que desconhecemos, e que podem ser melhores do que as nossas. Assim sendo, será necessário ainda muito cuidado e muita experiência para atribuir os gêneros e as espécies de uma forma suficientemente próxima da natureza. Os botânicos modernos acreditam que as distinções tiradas das formas das flores são as que mais se aproximam da ordem natural. Entretanto, encontram ainda bastante dificuldade, e seria conveniente estabelecer comparações não segundo um só fundamento, como seria a que acabo de mencionar, tomada das flores, a qual talvez seja a mais apropriada até aqui para um sistema tolerável e cômodo para os que estudam, mas também segundo os outros fundamentos, tomados das outras partes e circunstâncias das plantas, sendo que cada fundamento de comparação merece tabelas à parte; sem isto se omitirão muitos gêneros subalternos, muitas comparações, distinções e observações úteis. Todavia, quanto mais aprofundarmos a geração das espécies, tanto mais seguiremos, nas convenções, as condições exigidas, tanto mais nos aproximaremos da ordem natural. Eis por que, se fosse verdadeira a conjetura de certas pessoas entendidas - isto é, que existe na planta, além do grão ou semente conhecida que corresponde ao óvulo no animal, outra semente que mereceria o nome de masculina, isto é, um pó (pólen, muitas vezes visível, embora por vezes invisível, como o próprio grão o é em certas plantas) que o vento ou outros fatores comuns espalham para juntá-la ao grão que vem por vezes de uma mesma planta e por vezes de outra vizinha da mesma espécie, planta que, por conseguinte, terá certa analogia com o macho, embora talvez a fêmea nunca seja inteiramente desprovida desse mesmo pólen; se - digo eu - isto se confirmasse verdadeiro, e se o modo da geração das plantas se tornasse mais conhecido, não duvido de que as variedades que se notariam forneceriam um fundamento para divisões muito naturais. E, se tivéssemos a penetração de certos gênios superiores e conhecêssemos suficientemente as coisas, talvez encontrássemos atributos fixos para cada espécie, comuns a todos os seus indivíduos e sempre subsistentes no mesmo organismo vivo, quaisquer que sejam as alterações ou transformações que lhe possam ocorrer, assim como na mais conhecida das espécies físicas, que é a humana, a razão constitui tal atributo fixo que compete a cada um dos indivíduos e sempre de forma inadmissível, embora nem sempre nos demos conta disso. Entretanto, faltando-nos tais conhecimentos, utilizamos os atributos que nos parecem os mais fáceis de distinguir e para comparar as coisas: ora, esses atributos possuem sempre os seus fundamentos reais. § 14. FILALETO - Para distinguir os seres substanciais segundo a suposição comum - segundo a qual existem certas essências ou formas precisas das coisas, pelas quais todos os indivíduos existentes se distinguem naturalmente em espécies - seria necessário ter certeza, primeiramente, § 15, de que a natureza se propõe sempre, na produção das coisas, fazê-las participar de certas essências estabelecidas, como de modelos; em segundo lugar, § 16, seria necessário ter certeza de que a natureza sempre atinge este objetivo. Ora, os monstros nos autorizam a duvidar de ambas as suposições. § 17. Seria necessário determinar, em terceiro lugar, se esses monstros não constituem realmente uma espécie distinta e nova, pois verificamos que alguns desses monstros possuem poucas - ou nenhuma - dessas qualidades que supomos resultarem da essência dessa espécie da qual derivam a sua origem e à qual parecem pertencer em virtude do seu nascimento. TEÓFILO - Em se tratando de determinar se os monstros pertencem a certa espécie, estamos muitas vezes reduzidos a conjecturas. Isto demonstra que neste caso não nos limitamos ao exterior, pois desejaríamos adivinhar se a natureza interna (como, por exemplo, a razão no homem), comum aos indivíduos de tal espécie, ainda convém (como o faz presumir o nascimento) a esses indivíduos, em que falta uma parte das características externas que se encontram ordinariamente nessa espécie. Entretanto, a nossa incerteza nada importa para a natureza das coisas, e, se existe tal natureza comum interna, ela se encontrará ou não se encontrará no monstro, quer o saibamos quer não. E se no monstro não se encontrar a natureza interna de nenhuma espécie, o monstro poderá ser da sua própria espécie. Todavia, se não houvesse tal natureza interna nas espécies em questão, e se não nos fixássemos também no nascimento, neste caso somente as características externas determinariam a espécie, e os monstros não pertenceriam à espécie da qual se afastam, a menos que tomássemos a espécie em sentido vago: também neste caso o nosso esforço por adivinhar a espécie seria vão. Talvez seja isto o que quereis dizer com tudo aquilo que objetais às espécies tiradas das essências reais internas. Por conseguinte, deveríeis demonstrar que não existe interior específico comum, quando o exterior não existir mais inteiro. Todavia, o contrário se verifica na espécie humana, onde por vezes as crianças que têm algo de monstruoso atingem uma idade na qual aparece a razão. Por que motivo não poderia haver algo de semelhante nas outras espécies? É verdade que, pelo fato de não as conhecermos, não podemos utilizá-las para defini-las, porém o exterior as substitui, embora reconheçamos que não é suficiente para termos uma definição exata, sendo que as próprias definições nominais, nessas ocasiões, são apenas conjecturais: aliás, já ressaltei que por vezes elas são apenas provisórias. Por exemplo, poderíamos encontrar a maneira de sofisticar o ouro de modo tal que ele satisfaria a todos os testes feitos até hoje; todavia, poderíamos neste caso descobrir também uma nova maneira de teste, a qual nos daria a possibilidade de distinguir o ouro natural deste ouro feito artificialmente. Documentos antigos atribuem uma e outra coisa a Augusto, eleitor da Saxônia; todavia não sou competente para garantir este fato. Entretanto, se isso fosse verdade, poderíamos ter uma definição mais perfeita do ouro, mais perfeita do que aquela que temos atualmente; e, se o ouro artificial pudesse ser feito em quantidade e a baixo preço, como pretendem os alquimistas, este novo teste seria importante; com efeito, através dele, conservar-se-ia para o gênero humano a vantagem que o ouro natural nos dá pela sua raridade, fornecendo-nos uma matéria que é durável, uniforme, fácil de repartir e de ser reconhecida, além de preciosa em volume reduzido. Quero aproveitar este ensejo para eliminar uma dificuldade (ver o § 50 do capítulo "Os nomes das substâncias", da obra Ensaio sobre o Entendimento). Objeta-se que ao dizer - todo ouro é fixo -, se entendermos pela ideia de ouro o acúmulo de algumas qualidades entre as quais se compreende a fixidez, não se faz outra coisa senão enunciar uma proposição idêntica e inútil, como se disséssemos: o fixo é fixo; todavia, se entendermos um ser substancial, dotado de certa essência interna, da qual a fixidez constitui uma consequência, não se falará de maneira inteligível, visto que essa essência real é completamente desconhecida. Respondo que o corpo dotado dessa constituição interna é designado por outras características externas nas quais não está compreendida a fixidez; como se alguém dissesse: o mais pesado de todos os corpos é também um dos mais fixos. Entretanto, tudo isso é apenas provisório, pois poderíamos encontrar algum dia um corpo volátil, como poderia ser um novo mercúrio, que fosse mais pesado que o ouro, e sobre o qual o ouro flutuaria, como o chumbo flutua sobre o nosso mercúrio. § 19. FILALETO - É verdade que desta maneira não podemos jamais conhecer precisamente o número das propriedades que dependem da essência real do ouro, a menos que conheçamos a essência do próprio ouro. § 21. [Mas, se nos limitarmos precisamente a certas propriedades, isto nos bastará para termos definições nominais exatas, que nos servirão no momento, a não ser que mudássemos a significação dos nomes, se se descobrisse alguma nova distinção útil.] Todavia, é necessário ao menos que esta definição corresponda ao uso do nome, e possa substituí-lo. Isto serve para refutar aqueles que pretendem que a extensão perfaz a essência do corpo, pois, quando se afirma que um corpo dá impulso a outro, o absurdo seria evidente, se, substituindo a extensão, se dissesse que uma extensão põe em movimento outra extensão por via de impulso, pois se requer também a solidez. Assim também não se dirá que a razão ou o que torna o homem racional perfaz a conversação; pois a razão não constitui tampouco toda a essência do homem, são os animais racionais que fazem conversação entre si. TEÓFILO - Creio que tendes razão, pois os objetos das ideias abstratas e incompletas não são suficientes para dar a razão de todas as ações das coisas. Todavia, acredito que a conversação convém a todos os espíritos, que podem intercomunicar os seus pensamentos. Os Escolásticos encontram grande dificuldade em explicar como os anjos o possam fazer; todavia, se atribuíssem aos anjos corpos sutis, como faço eu, segundo a teoria dos antigos, não haveria mais dificuldade. § 22. FILALETO - Existem criaturas que possuem uma forma semelhante à nossa, mas que são peludas e não têm o uso da palavra e da razão. Existem entre nós pessoas imbecis, que têm exatamente a mesma forma que nós, e todavia são destituídas de razão, sendo que algumas delas não têm o uso da palavra. Existem criaturas - pelo que se conta - que juntamente com o uso da palavra e da razão, além de uma forma em tudo semelhante à nossa, possuem rabos peludos; pelo menos devemos admitir a possibilidade de existirem tais seres. Existem outros seres, entre os quais os machos não têm barba, sendo que as fêmeas a têm. Se perguntarmos se todas essas criaturas são homens ou não, se são de espécie humana, é evidente que o problema se refere exclusivamente à definição nominal, ou à ideia complexa que nos formamos para assinalá-la com este nome: pois a essência interna nos é completamente desconhecida, embora tenhamos razão de pensar que, lá onde as faculdades ou a forma externa são tão diferentes, a constituição interna não é a mesma. TEÓFILO - Acredito que no caso do homem possuímos uma definição que é ao mesmo tempo real e nominal. Com efeito, nada pode ser mais interno ao homem que a razão, e esta em geral se reconhece com facilidade. Eis por que a barba e o rabo não necessitam ser considerados. Um homem silvestre, embora peludo, se fará reconhecer como tal. Os imbecis estão desprovidos do uso da razão; todavia, visto sabermos que muitas vezes a razão não entra em exercício devido a certos obstáculos, e que isto acontece a homens que demonstraram possuir razão, faremos provavelmente o mesmo juízo acerca desses imbecis, baseados em outros indícios, isto é, na forma corporal. Baseamo-nos exclusivamente em tais indícios, somados à origem, para presumir que as crianças são homens, e que demonstraram ter razão; e não nos enganamos nisto. Entretanto, se houvesse animais racionais de uma forma externa algo diferente da nossa, estaríamos em dificuldades. Isto mostra que as nossas definições, quando dependem do exterior dos corpos, são imperfeitas e provisórias. Se alguém se declarasse anjo, e conhecesse ou soubesse fazer coisas muito acima das nossas possibilidades, poderíamos acreditar nele. Se algum outro homem viesse da lua por meio de alguma máquina extraordinária, como Conzales, e nos contasse coisas razoáveis do seu país natal, passaria por habitante lunar, e não obstante isto poderíamos dar-lhe os direitos de cidadania com o título de homem, por mais estranho que fosse ao nosso globo; todavia, se pedisse o batismo e quisesse ser recebido como membro da nossa religião, acredito que surgiriam grandes discussões entre teólogos. E se o relacionamento com esses homens planetários, bastante próximos aos nossos, segundo Huygens, estivesse aberto, o problema mereceria um concílio universal, para saber se deveríamos estender os esforços da propagação da nossa fé para além dos confins do nosso globo. Muitos defenderiam indubitavelmente que os animais racionais desse país, não pertencendo à raça de Adão, não participam da redenção de Jesus Cristo; ao contrário, outros diriam talvez que não sabemos com certeza nem sequer onde viveu Adão, nem o que foi feito com toda a sua posteridade, pois houve até teólogos que defenderam que o paraíso estava localizado na lua; talvez, segundo a maioria, se optasse pelo mais seguro, que seria batizar esses homens ambíguos sob condição, se forem disso suscetíveis. Entretanto, duvido de que estivessem dispostos a ordená-los ministros na Igreja romana, visto que as suas consagrações seriam sempre duvidosas, e as pessoas seriam expostas ao risco de uma idolatria material, segundo a hipótese dessa Igreja. Por felicidade, a natureza das coisas nos livra de todos esses embaraços; todavia, essas ficções estranhas se utilizam na especulação, para bem conhecer a natureza das nossas ideias. § 23. FILALETO - Não somente nas questões teológicas mas também em outras ocasiões, alguns quereriam talvez dirigir-se pela raça, e afirmar que entre os animais a propagação pela cópula do macho e da fêmea, e nas plantas mediante as sementes, conserva as espécies supostas reais distintas e na sua inteireza. Todavia, isto serviria apenas para fixar as espécies dos animais e dos vegetais. Que fazer com o resto? Aliás, nem mesmo para os vegetais e animais este critério é suficiente, pois, se for lícito dar crédito à história, houve mulheres que foram engravidadas por macacos. Surge estão um novo problema: a que espécie pertence o fruto de tal união? Observam-se muitas vezes mulas e jumentos - ver o Dicionário Etimológico de Ménage -, os primeiros oriundos de um burro e uma égua, os segundos de um touro e de uma jumenta. Já vi um animal resultante da união de um gato e uma ratazana, o qual tinha as características evidentes dos dois animais. Quem a isto acrescentar ainda os monstros, verá que é bem difícil determinar a espécie pela geração; e se isto só fosse possível por este caminho, serei porventura obrigado a ir até as Índias para ver o pai e a mãe de um tigre e a semente da planta do chá? Não poderia eu julgar diversamente, se os indivíduos que dali procedem pertencem a essas espécies? TEÓFILO - A geração ou a raça fornecem pelo menos uma forte presunção - isto é, uma prova provisória -, sendo que, conforme já frisei, as nossas classificações são apenas conjecturais. A raça por vezes é desmentida pela forma externa, quando a criança não se assemelha nem ao pai nem à mãe; igualmente, a mescla de formas externas diferentes nem sempre constitui a marca da mescla das raças; com efeito, pode ocorrer que uma mulher gere um animal que pareça pertencer a outra espécie, e que esta irregularidade provenha exclusivamente da imaginação da mãe; isto, para não falar do que se denomina mola. Todavia, assim como se conclui provisoriamente da raça para a espécie, pode-se também concluir da espécie para a raça. Assim, quando apresentaram a João Casimiro, rei da Polônia, uma criança selvagem, tomada dentre os ursos, que tinha muitos comportamentos de urso, mas que ao final se demonstrou como um animal racional, não tiveram receio de considerá-la da raça de Adão, e de batizá-la sob o nome de José, embora talvez sob a condição si baptizatus non es (se não estiverdes batizado) conforme o uso da Igreja romana, visto que poderia ter sido roubado por um urso depois do batismo. Ainda não possuímos conhecimentos suficientes sobre os efeitos da mescla dos animais; muitas vezes matam-se os monstros, em vez de educa-los, embora não costumem ter longa vida. Acredita-se que os animais mesclados não se reproduzem; entretanto, Estrabão atribui a capacidade de propagação aos mulos da Capadócia, e me escreveram da China que na Tartária existem mulos de raça. Observamos também que as mesclas de plantas são capazes de conservar a sua nova espécie. Continuamos a ignorar se o que mais determina a espécie entre os animais é o macho ou a fêmea, ou ambos, ou nenhum deles. A teoria dos óvulos das mulheres, que o falecido Kerkring tornou célebre, parecia reduzir os machos à condição do ar pluvial em relação às plantas, ar que possibilita às sementes brotarem e emergirem da terra, segundo os versos que os priscilianistas repetiam de Virgílio: Cum pater omnipotens foecundis imbribus aether Conjugis in laetae gremium descendit et omnes Magnus alit magno commistus corpore foetus. Numa palavra, segundo esta hipótese, o macho não faria mais do que faz a chuva. Entretanto, Leeuwenhoek reabilitou o gênero masculino, degradando em contrapartida o sexo feminino, como se este tivesse apenas a função da terra em relação às sementes, fornecendo-lhes o lugar e o alimento; isto poderia acontecer, mesmo que se mantivesse a existência dos óvulos femininos. Todavia, isto não impede que a imaginação da mulher tenha uma grande influência sobre a forma do feto, se supuséssemos que o animal já veio do macho. Pois é um estado destinado a uma grande mudança ordinária, e tanto mais suscetível de mudanças extraordinárias. Há quem assegure que a imaginação de uma dama de alta condição, chocada por ter visto um estropiado, fez com que a mão do seu feto - próximo ao seu termo - fosse decepada do braço, mão que passou a crescer na parte traseira do corpo; contudo, isto precisa de confirmação. Talvez haja alguém que pretenda, embora a alma só possa provir de um sexo, que tanto um como o outro sexo fornecem algo de organizado, e que de dois corpos se originou um só, assim como observamos que o bicho-da-seda é como um animal duplo e encerra um inseto que voa sob forma de uma lagarta; a tal ponto estamos ainda mal esclarecidos sobre uma coisa tão importante. Possivelmente a analogia com as plantas nos fornecerá um dia maiores luzes, porém até agora não temos informações sequer sobre a geração das próprias plantas: a suspeita da poeira, que se faz notar como o que poderia corresponder ao sêmen masculino, ainda não está suficientemente esclarecida. De resto, um rebento da planta muitas vezes é capaz de dar em uma planta nova e inteira, coisa que ainda não apresenta analogia entre os animais; assim sendo, não se pode dizer que o pé de um animal é um animal, como parece poder-se afirmar que cada ramo da árvore é uma planta capaz de frutificar sozinha. As mesclas ou enxertos das espécies, e até as mudanças numa espécie, muitas vezes logram grande êxito nas plantas. Possivelmente em algum tempo ou em algum lugar do universo as espécies dos animais são, eram ou serão mais sujeitas a mudar do que o são entre nós atualmente; vários animais que possuem algo do gato, como o leão, o tigre e o lince, poderiam ter pertencido a uma mesma raça e talvez sejam atualmente como novas subdivisões da antiga espécie dos gatos. Assim sendo, volto sempre de novo ao que já afirmei mais de uma vez, isto é, que as nossas determinações das espécies físicas são provisórias e proporcionais ao estado dos nossos conhecimentos atuais. § 24. FILALETO - Os homens, ao menos, ao fazer as suas divisões das espécies, jamais pensaram nas formas substanciais, excetuados aqueles que, neste único lugar do mundo em que nos encontramos, aprenderam a linguagem das nossas escolas. TEÓFILO - Ao que parece, desde há algum tempo o termo formas substanciais se tornou infame para certas pessoas, que têm vergonha de falar disso. Talvez haja nisto mais moda do que razão. Os Escolásticos empregavam mal uma noção geral, quando se tratava de explicar os fenômenos particulares; todavia, este abuso não destrói a coisa como tal. A alma humana decepciona um pouco a confiança de alguns dos nossos autores modernos. Existem alguns que reconhecem ser ela a forma do homem, porém querem que seja a única forma substancial da natureza conhecida. O Sr. Descartes fala desta maneira; ele corrigiu o Sr. Regius pelo fato de este contestar esta qualidade de forma substancial à alma e negar que o homem seja unum per se, um ser dotado de uma verdadeira unidade. Alguns acreditam que este homem insigne o tenha feito por política. Duvido, pois creio que ele tinha razão. Creio, porém, que não devemos atribuir este privilégio exclusivamente ao homem. Há motivos para julgar que existe uma infinidade de almas, ou, para falar de maneira mais geral, de enteléquias primitivas, que possuem algo de analógico com a percepção e o apetite, e que todas elas são e permanecem sempre formas substanciais dos corpos. É verdade que existem aparentemente espécies que não constituem verdadeiramente unum per se (isto é, corpos dotados de uma verdadeira unidade, ou de um ser indivisível que seja o princípio ativo total dessa unidade), tal como tampouco um moinho ou um relógio o constituem. Os sais, os minerais e os metais poderiam ser desta natureza, isto é, simples contexturas ou massas nas quais existe alguma regularidade. Todavia, os corpos de uns e dos outros, isto é, os corpos animados como as contexturas sem vida, serão especificados pela estrutura interior, pois, nos próprios corpos que são animados, a alma e a máquina, cada uma em separado, bastam para a determinação; pois elas concordam perfeitamente, e, embora uma não tenha influência imediata sobre a outra, elas se exprimem reciprocamente, sendo que uma concentrou numa perfeita unidade tudo o que a outra dispersou na multidão. Assim, quando se trata do arranjo das espécies, é inútil discutir sobre as formas substanciais, embora seja conveniente, por outras razões, conhecer se existem, e como; com efeito, sem isto sentir-nos-emos estranhos no mundo intelectual. Aliás, os gregos e os árabes falaram dessas formas, tanto como os europeus; se o homem comum não fala delas, será em virtude da mesma razão pela qual não se fala nem de álgebra nem de valores incomensuráveis. § 25. FILALETO - As línguas se formaram antes das ciências, e o povo ,ignorante e iletrado reduziu as coisas a certas espécies. TEÓFILO - Isto é verdade, porém as pessoas que estudam essas matérias retificam as noções populares. Os químicos (essayers) descobriram os meios exatos para discernir e separar os metais; os cultores da botânica enriqueceram maravilhosamente os nossos conhecimentos sobre as plantas, e as experiências feitas com insetos nos forneceram alguns elementos novos para o conhecimento dos animais. Todavia, estamos ainda bem longe da metade da nossa caminhada. § 26. FILALETO - Se as espécies fossem uma obra da natureza, não poderiam ser concebidas de maneira tão diferente em diferentes pessoas; a um, o homem aparece como um animal sem penas, com dois pés e unhas longas, ao passo que o outro, depois de um exame mais profundo, acrescenta a razão. Todavia, muitas pessoas determinam as espécies dos animais pela sua forma externa, antes que pela sua geração, porquanto mais de uma vez se pôs em dúvida se certos fetos humanos deveriam ser batizados ou não, pela simples razão de que a sua configuração externa divergia da forma comum das crianças, sem que se soubesse se também eles não são tão capazes de razão quanto outras crianças, das quais algumas jamais serão capazes de demonstrar durante toda a sua vida mais razão do que um símio ou um elefante, e que nunca dão algum sinal de ser guiados por uma alma racional; daqui aparece evidentemente que a forma externa foi considerada essencial para qualificar a espécie humana. Nessas ocasiões os teólogos e os jurisconsultos mais insignes são obrigados a renunciar à sua sagrada definição de animal racional e a substituí-la por alguma outra essência da espécie humana. O Sr. Ménage (Menagiana, tomo I, p. 278 da edição da Holanda, 1694) nos dá o exemplo de um certo sacerdote de Saint-Martin, que merece ser mencionado. Diz ele que quando este sacerdote de Saint-Martin nasceu, tinha uma forma tão pouco humana que se parecia com um monstro. Passaram algum tempo em deliberar se convinha batizá-lo. Ao final foi batizado e declarado homem provisoriamente, isto é, até quando o tempo revelasse o que ele era na verdade. Ele tinha uma natureza tão infeliz, que durante toda a sua vida o chamaram de Abbé Malotru (Padre Tosco). Era natural de Caen. Aqui temos o caso de uma criança que quase foi excluída da espécie humana devido à sua forma externa. Apenas conseguiu ser classificada como homem; é certo que, se a sua forma tivesse sido um pouco mais irregular, tê-la-iam feito desaparecer como um ser que não merece passar por homem. Todavia, ninguém seria capaz de indicar alguma razão pela qual uma alma racional não teria podido habitar nele, se os traços do seu rosto tivessem sido um pouco mais alterados. Por que motivo um rosto pouco mais longo, um nariz mais plano, uma boca mais aberta não teriam podido subsistir tão bem como os restos da forma irregular com uma alma e qualidades que o tornariam capaz de possuir uma dignidade na Igreja, por mais feio que ele fosse? TEÓFILO - Até agora não se encontrou nenhum animal racional de forma externa muito diferente da nossa; eis por que, quando se tratava de batizar uma criança, a raça e a forma externa sempre foram consideradas apenas como indícios para julgar se era um animal racional ou não. Assim os teólogos e jurisconsultos não precisaram renunciar à sua definição consagrada. § 27. FILALETO - Entretanto, a dificuldade seria maior se aquele monstro - do qual fala Liceto, livro I, capítulo 3 - que tinha a cabeça de homem e o corpo de suíno, ou outros monstros com corpo de homem e cabeça de cão ou de cavalo tivessem permanecido vivos. TEÓFILO - Reconheço-o. Se tal acontecesse, seríamos mais cuidadosos antes de desfazer-nos dos monstros. Pois parece que a razão venceria entre os teólogos e os jurisconsultos, não obstante a forma externa e as diferenças que a anatomia poderia fornecer aos médicos, diferenças que deporiam tão pouco contra a dignidade de homem quanto esta inversão de vísceras naquele homem - cuja anatomia foi vista por conhecidos meus -, homem no qual a natureza "pouco sábia e sem dúvida com abuso colocou o fígado no lado esquerdo E vice-versa Colocou o coração no lado direito", se bem recordo alguns dos versos feitos pelo Sr. Alliot, médico insigne por ter-se ocupado com a cura do câncer. Isto se compreende, desde que a variação das formas não vá muito longe nos animais racionais, e que não voltemos aos tempos em que os animais falavam, pois neste caso perderíamos o nosso privilégio da razão e estaríamos mais atentos ao nascimento e à forma externa, a fim de podermos discernir os da raça de Adão dos que poderiam descender de um rei ou patriarca de alguma região de símios da África; o nosso versado autor teve razão em observar (§ 29) que se a mula de Balaão tivesse discorrido toda a vida de maneira tão inteligente como o fez uma vez com o seu dono - na hipótese de que não tenha sido uma visão profética - teria tido muita dificuldade em conquistar uma posição de destaque entre as mulheres. FILALETO - Como vejo, estais rindo, e talvez o vosso autor fizesse o mesmo. Todavia, para falar com seriedade, vedes que não se deveria assinalar limites fixos para as espécies. TEÓFILO - Já manifestei o meu acordo. Com efeito, quando se trata de ficções e da mera possibilidade das coisas, a passagem de uma espécie para a outra pode ser insensível; para discerni-las, seria mais ou menos como decidir a seguinte questão: quanto cabelo deve ter uma pessoa, para que não seja calva? Esta indeterminação permaneceria, mesmo que conhecêssemos perfeitamente o interior das criaturas em questão. Todavia, não concordo em que esta indeterminação possa impedir as coisas de possuírem essências reais independentemente do entendimento, e possa impedir a nós de conhecer tais essências. É verdade que os nomes e os limites das espécies seriam por vezes como os nomes das medidas e dos pesos, onde é necessário escolher para ter limites fixos. Todavia, normalmente não há nada disso a temer, visto que as espécies muito próximas não se encontram juntas. § 28. FILALETO - Ao que parece, estamos de acordo quanto à matéria, embora usemos termos um pouco diferentes. Reconheço também que existe menos arbitrariedade na denominação das substâncias que nos nomes dos modos compostos. Com efeito, não nos lembramos de juntar o balido de uma ovelha com uma forma de cavalo, nem a cor do chumbo com a fixidez do ouro. TEÓFILO - Isto acontece não tanto pelo fato de que, nas substâncias, consideramos apenas o que existe efetivamente, mas antes pelo fato de que não estamos certos, nas ideias físicas - que não compreendemos a fundo -, se a sua junção é possível ou útil, quando não temos como garantia a existência real. Isto acontece também nos modos, não somente quando a sua obscuridade nos é impenetrável - como ocorre por vezes na física - mas também quando não é fácil penetrá-la, como existem muitos exemplos na geometria. Pois em ambas as ciências não está em nosso poder estabelecer combinações conforme a nossa fantasia; do contrário teríamos o direito de falar de decaedros regulares, e procuraríamos no semicírculo um centro de grandeza, como existe um centro de gravidade. Com efeito, é surpreendente que um exista e o outro não exista. Ora, como nos modos as combinações não são sempre arbitrárias, acontece por oposição que o sejam, por vezes, nas substâncias: depende muitas vezes de nós fazermos combinações das qualidades para definir também seres substanciais antes da experiência, quando compreendemos suficientemente tais qualidades para julgar da possibilidade da combinação. Assim é que um jardineiro experimentado no cultivo de laranjas poderá com razão e sucesso tentar a produção de alguma nova espécie e dar-lhe antecipadamente uma denominação. § 29. FILALETO - Reconhecerei sempre que, quando se trata de definir as espécies, o número das ideias que combinamos depende da diferente aplicação do empenho ou fantasia de quem forma esta combinação; assim como é pela forma externa que nos regulamos o mais das vezes para determinar a espécie dos vegetais e dos animais, da mesma forma, quanto à maioria dos corpos naturais que não são produzidos por semente, é na cor que nos fixamos o mais das vezes. § 30. Na verdade, muitas vezes são apenas concepções confusas, grosseiras e inexatas, e os homens estão longe de concordar quanto ao número preciso das ideias simples ou das qualidades que pertencem a tal espécie ou a tal nome, pois requer-se trabalho, atenção e tempo para encontrar as ideias simples que são constantemente unidas. Todavia, poucas qualidades, que compõem essas definições inexatas, são em geral suficientes na conversação; todavia, apesar do falatório que se faz em torno dos gêneros e das espécies, as formas de que tanto se falou nas escolas filosóficas não passam de quimeras, que em nada nos ajudam a penetrar no conhecimento de naturezas específicas. TEÓFILO - Todos os que fazem uma combinação possível não se enganam nisto, nem se enganam ao dar-lhe uma denominação; enganam-se, porém, ao pensar que o que concebem é tudo aquilo que outros mais peritos concebem sob o mesmo nome, ou o mesmo corpo. Possivelmente eles concebem um gênero demasiado comum, em vez de outro mais específico. Nada existe em tudo isto que se oponha às escolas (filosóficas) e não vejo por que voltais a investir contra os gêneros, as espécies e as formas, uma vez que vós mesmo deveis reconhecer os gêneros, as espécies e até as essências internas ou formas, que não se pretendem empregar para conhecer a natureza específica da coisa, quando se confessa ignorá-las ainda. § 30. FILALETO - No mínimo é evidente que os limites que assinalamos para as espécies não são exatamente conformes àqueles que foram estabelecidos pela natureza. Com efeito, na necessidade que ternos dos nomes gerais para o uso atual, não nos damos ao trabalho de descobrir as suas qualidades, as quais nos fariam conhecer melhor as suas diferenças e concordâncias mais essenciais: nós mesmos as distinguimos em espécies, em virtude de certas aparências que impressionam os olhos de todos, a fim de podermos comunicar-nos mais facilmente com os outros. TEÓFILO - Se combinamos ideias compatíveis, os limites que marcamos para as espécies são sempre exatamente conformes à natureza; e se prestamos atenção em combinar as ideias que atualmente se encontram associadas, as nossas noções concordam com a experiência; e se as considerarmos provisórias somente para corpos efetivos, e se recorrermos aos peritos quando se trata de algo de preciso em relação ao que comumente se entende pelo nome, não nos enganaremos. Assim, a natureza pode proporcionar ideias mais perfeitas e mais cômodas, porém não desmentirá as que possuímos. Estas são boas e naturais, embora talvez não sejam as melhores e as mais naturais. § 32. FILALETO - As nossas ideias genéricas das substâncias, como, por exemplo, a do metal, não seguem exatamente os modelos que lhes são propostos pela natureza, pois não podemos encontrar nenhum corpo que encerre simplesmente a maleabilidade e a fusibilidade sem outras qualidades. TEÓFILO - Não se exigem tais modelos, e não haveria razão para exigi-los, pois eles não se encontram nem mesmo nas noções mais distintas. Não existe um número no qual não haja nada além da multidão em geral, não existe um corpo extenso no qual só exista extensão, não existe um corpo no qual só haja solidez e não existam outras qualidades. E, quando as diferenças específicas são positivas e opostas, necessariamente o gênero faz parte delas. FILALETO - Em consequência, se alguém imagina que um homem, um cavalo, um animal, uma planta etc., se distinguem por essências reais, formadas pela natureza, deve imaginar a natureza bem liberal dessas essências reais, se ela produzir uma para o corpo, uma para o animal, e outra para o cavalo, e comunica generosamente todas essas essências ao Bucéfalo; ao passo que os gêneros e as espécies não passam de sinais mais ou menos extensos. TEÓFILO - Se considerardes as essências reais como sendo esses modelos substanciais, que seriam um corpo e nada mais, um animal e nada mais de específico, um cavalo sem qualidades individuais, tendes razão em considerá-las puras quimeras. Quanto saiba, ninguém pretendeu - nem mesmo os maiores realistas de outrora - que existem tantas substâncias que se limitem ao genérico, quantos existem gêneros. Não segue, porém, que, se as essências gerais não são isto, são puros sinais; pois mais de uma vez vos fiz notar que são possibilidades nas semelhanças. Assim também, do fato de que as cores não são sempre substâncias ou tintas removíveis, não segue que elas sejam imaginárias. Aliás, não é possível imaginar a natureza excessivamente liberal; ela o é além de tudo o que possamos inventar, sendo que todas as possibilidades compatíveis em prevalência se encontram realizadas no grande teatro das suas representações. Existiam antigamente dois axiomas entre os filósofos: o dos realistas parecia conceber a natureza como pródiga, o dos nominalistas parecia concebê-la como mesquinha. Um diz que a natureza não admite vazio, o outro afirma que a natureza nada faz em vão. Os dois axiomas são bons, desde que sejam entendidos retamente; pois a natureza é como um bom administrador, que poupa onde é necessário, sendo pródiga em tempo e lugar. Ela é pródiga nos efeitos, econômica nas causas que emprega. § 34. FILALETO - Sem querermos ocupar-nos mais com esta discussão sobre as essências reais, é suficiente que atinjamos a finalidade da linguagem e o uso das palavras, que é a de indicar os nossos pensamentos em resumo. Se quero falar a alguém sobre uma espécie de pássaros de três ou quatro pés de altura, cuja pele é coberta de alguma coisa intermediária entre as penas e os pelos, de um pardo escuro, sem asas, mas que no lugar de asas possui dois ou três pequenos ramos parecidos com ramos de giesta, que descem ao longo do seu corpo com pernas longas e reforçadas, de pés com apenas três unhas e sem cauda, sou obrigado a fazer esta descrição pela qual posso fazer-me entender aos outros. Entretanto, quando me dizem que o nome deste animal é cassiovaris, posso utilizar este nome para designar no discurso toda esta ideia composta. TEÓFILO - Possivelmente uma ideia bem exata da cobertura da pele, ou de alguma outra parte, bastaria para discernir este animal de qualquer outro conhecido, assim como Hércules se fazia conhecer pelo passo que tinha feito, e como o leão se reconhece pela unha, conforme o provérbio latino. Entretanto, quanto mais circunstâncias acumularmos, tanto menos provisória é a definição. § 35. FILALETO - Podemos cortar da ideia, neste caso, sem prejuízo da coisa; todavia, quando é a natureza que corta, pergunta-se se a espécie permanece. Por exemplo: se houvesse um corpo que tivesse todas as qualidades do ouro exceto a maleabilidade, seria ouro? Depende dos homens decidirem. Por conseguinte, são eles que determinam as espécies das coisas. TEÓFILO - Em absoluto. Os homens determinariam apenas a denominação. Entretanto, esta experiência nos ensinaria que a maleabilidade não tem conexão necessária com as outras qualidades do ouro, tomadas em conjunto. Ela nos ensinaria portanto uma nova possibilidade, e por conseguinte uma nova espécie. No que concerne ao ouro quebradiço, isto provém exclusivamente das adições e não é consistente com os outros ensaios do ouro; pois o cadinho e o antimônio lhe tiram este caráter quebradiço. (§ 36.) FILALETO - Daqui segue uma coisa que parecerá muito estranha. E que toda ideia abstrata que tem certo nome forma uma espécie distinta. Mas que fazer, se a natureza assim o quer? Gostaria de saber por que um cão fraldiqueiro e um galgo não constituem espécies tão distintas como um épagneul e um elefante. TEÓFILO - Mais acima distingui as diferentes acepções da palavra espécie. Tomando-a logicamente, ou melhor, matematicamente, a menor dessemelhança pode ser suficiente; assim, cada ideia diferente dará uma nova espécie, não importando se esta tem ou não um nome. Falando fisicamente, porém, não nos fixamos em todas as variedades e falamos ou nitidamente, quando se trata apenas das aparências, ou conjecturalmente, quando se trata da verdade interior das coisas, presumindo alguma natureza essencial e imutável, como a razão o é no homem. Presume-se portanto que aquilo que só difere por mudanças acidentais, como a água e o gelo, a prata viva na sua forma corrente, constitui uma mesma espécie: nos corpos orgânicos colocamos ordinariamente a marca provisória da mesma espécie na geração ou raça, como nos mais similares a colocamos na reprodução. É verdade que não podemos julgar com precisão, por não conhecermos o interior das coisas; mas, como já disse mais de uma vez, julgamos provisoriamente e muitas vezes em caráter conjectural. Todavia, quando só queremos falar do exterior por temor de nada dizer que não seja certo, existe latitude: neste caso, disputar se uma diferença é específica ou não equivale a disputar acerca do termo; neste sentido existe uma diferença tão grande entre os cães, que bem se pode afirmar que os dogues da Inglaterra e os cães de Boulogne são de espécies diferentes. Todavia, não é impossível que eles sejam de uma mesma raça longínqua igualou semelhante, que poderíamos encontrar se pudéssemos retroceder bem longe e os seus ancestrais tivessem sido semelhantes ou iguais, porém, depois de grandes mudanças, alguns da posteridade se tivessem tornado muito grandes e outros muito pequenos. Pode-se mesmo crer, sem chocar a razão, que tenham em comum uma natureza interna, constante, específica, que não mais seja assim subdividida, ou que não se encontre aqui em várias outras naturezas tais, e por conseguinte só seja diversificada por acidentes; embora não haja nada que nos faça crer que deva ser necessariamente assim em tudo aquilo que denominamos a mais baixa espécie (speciem infimam). Entretanto, não há indícios de que um cão épagneul e um elefante sejam da mesma raça e que possuam uma tal natureza específica comum. Assim, nas diferentes espécies de cães, em falando das aparências, pode-se distinguir as espécies, e falando da essência interior, pode-se hesitar; todavia, comparando o cão e o elefante, não existe meio de atribuir-lhes exteriormente ou interiormente o que poderia fazer considera-los da mesma espécie. Assim, não há motivo algum para hesitar contra a presunção. No homem poder-se-ia também distinguir as espécies, falando logicamente; e, se nos fixássemos nos elementos externos, encontraríamos também, falando fisicamente, diferenças que poderiam passar como específicas. Assim, houve um viajante que pensou que os negros, os chineses e finalmente os americanos não pertenciam à mesma raça, nem entre si nem em relação aos outros povos que se parecem conosco. Todavia, como se conhece o interior essencial do homem, isto é, a razão, que reside no mesmo homem e se encontra em todos os homens, e não se nota nada de fixo e de interno entre nós, que forme uma subdivisão, não temos motivo algum para pensar que existe entre os homens, segundo a verdade da essência interna, uma diferença específica essencial, ao passo que tal diferença existe entre o homem e o animal, supondo que os animais sejam apenas empíricos, conforme o que expliquei acima, e uma vez que a experiência não nos permite pensar de outra forma. § 39. FILALETO - Tomemos o exemplo de uma coisa artificial cuja estrutura interior nos é conhecida. Um relógio que só assinala as horas e um relógio sonoro constituem uma só espécie, em relação àqueles que só têm um nome para designá-los; todavia, com respeito àquele que possui o nome "relógio de bolso" (montre) para designar o primeiro, e o de "relógio de parede" (horloge) para significar o último, em relação a ele são duas espécies diferentes. É o nome, e não a disposição interior, que constitui uma nova espécie, de outra forma haveria espécies demais. Existem relógios de quatro rodas e outros de cinco; alguns têm cordas e fuselas, outros não as têm; alguns têm o balanço livre, ao passo que outros têm o balanço movido por uma mola feita em forma de linha espiral, outros enfim feitos de outro material: porventura algum desses elementos é suficiente para perfazer uma diferença específica? Digo que não, embora esses relógios concordem quanto ao nome. TEÓFILO - Quanto a mim, diria que sim, pois, sem fixar-me nos nomes, gostaria de considerar as variedades do objeto e sobretudo a diferença dos balanços; com efeito, desde o momento em que se lhe aplicou uma mola que governa as suas vibrações segundo as suas, e as toma por conseguinte mais iguais, os relógios de bolso mudaram de aspecto e se tornaram incomparavelmente mais exatos. Outrora notei até outro princípio de igualdade que se poderia aplicar aos relógios. FILALETO - Se alguém quiser estabelecer divisões fundadas nas diferenças que conhece na configuração interior, pode fazê-lo: todavia, não seriam espécies distintas em relação a pessoas que ignoram esta construção. TEÓFILO - Não sei por que razão, entre vós, querem fazer depender da nossa opinião, do nosso conhecimento, as virtudes, as verdades e as espécies. Elas existem na natureza, quer o saibamos e aprovemos, quer não. Falar de outro modo equivale a alterar os nomes das coisas e a linguagem usual, sem motivo algum. Até agora os homens terão crido que existem várias espécies de relógios de parede ou de bolso, sem informar-se em que consistem ou como poderiam ser denominados. FILALETO - Entretanto, reconhecestes, não faz muito tempo, que, quando queremos distinguir as espécies físicas pelas aparências, limitamo-nos de maneira arbitrária onde achamos bom, isto é, conforme se considera a diferença mais ou menos considerável, conforme a finalidade a que se visa. Vós mesmo utilizastes a comparação dos pesos e das medidas, que se costuma regular conforme o gosto dos homens. TEÓFILO - Fiz isto desde o tempo em que comecei a ouvir-vos. Entre as diferenças específicas puramente lógicas, onde basta a menor variação de definição atribuível por mais acidental que seja, e entre as diferenças específicas que são puramente físicas, fundadas sobre o essencial ou imutável, mas que não mudam facilmente, sendo que uma se aproxima mais do essencial do que a outra. E, visto que também um conhecedor pode ir mais longe do que o outro, a coisa parece arbitrária e tem relação com os homens, parecendo cômodo regular também os nomes segundo essas diferenças principalmente. Poder-se-ia portanto dizer que são diferenças específicas civis e espécies nominais, que não se deve confundir com aquilo que mais acima denominei definições nominais, e que se verificam tanto nas diferenças específicas lógicas como nas físicas. De resto, além do uso vulgar, as próprias leis podem autorizar as significações das palavras, e então as espécies se tornariam legais, como nos contratos que se denominam nominati, isto é, designados por um nome particular. Assim é que a lei romana faz começar a puberdade com os catorze anos completos. Toda esta consideração não deve ser menosprezada, todavia não vejo que ela seja muito útil. Com efeito, além do fato de que, se não me equivoco, vós a aplicastes algumas vezes indevidamente, ter-se-á mais ou menos o mesmo efeito, se considerarmos que depende dos homens proceder, nas subdivisões, tão longe quanto considerarem conveniente, e de fazer abstração das diferenças ulteriores, sem que seja necessário negá-las; que depende também deles escolher o certo pelo incerto, a fim de fixar algumas noções e medidas, dando-lhes denominações. FILALETO - Aprecio constatar que neste ponto não estamos tão longe um do outro como parecia. § 41. Reconhecereis ainda - pelo que vejo - que as coisas artificiais têm espécies, tanto como as naturais, contrariamente ao que afirmam alguns filósofos. § 42. Entretanto, antes de deixarmos o problema dos nomes das substâncias, acrescentarei que, de todas as diversas ideias que possuímos, as ideias das substâncias são as únicas que possuem nomes próprios ou individuais. Pois acontece raramente que os homens necessitem fazer uma menção frequente de alguma qualidade individual ou de algum outro indivíduo de acidente: além disso, as ações individuais perecem antes, e a combinação das circunstâncias que ali se opera não subsiste como nas substâncias. TEÓFILO - Existem, contudo, casos em que temos necessidade de recordar-nos de um acidente individual e que lhe demos uma denominação; assim sendo, a vossa norma é boa em casos normais, porém é passível de exceções. A religião nos fornece tais exceções; como celebramos anualmente a memória do nascimento de Jesus Cristo, os gregos denominavam este acontecimento de teogenia, e o da adoração dos magos, de epifania. Por sua vez, os hebreus denominavam Passah (Páscoa) por excelência a passagem do anjo que fez morrer os primogênitos dos egípcios, sem tocar os dos hebreus, sendo que todos os anos deviam recordar a memória deste evento. Quanto às espécies das coisas artificiais, os filósofos escolásticos se opuseram a que entrassem nos seus predicamentos: todavia, a sua delicadeza era pouco necessária, pois essas tabelas predicamentais servem para fazer uma revisão geral das nossas ideias. Entretanto, convém reconhecer a diferença que existe entre as substâncias perfeitas e as associações de substâncias (aggregata), que são seres substanciais compostos ou pela natureza ou por obra dos homens. Com efeito, também a natureza tem tais associações, como são os corpos cuja mescla é imperfeita, para falar a linguagem dos nossos filósofos (imperfecte mixta), que não constituem unum per se e não possuem em si uma perfeita unidade. Creio, todavia, que os quatro corpos que denominam elementos - corpos que consideram simples - e os sais, os metais e outros corpos - que acreditam mesclados perfeitamente e aos quais reconhecem os seus caracteres - tampouco constituem unum per se, tanto mais porque se deve pensar que são uniformes e semelhantes apenas na aparência, e mesmo um corpo semelhante não deixará de ser um amontoado. Numa palavra, a unidade perfeita deve ser reservada aos corpos animados, ou dotados de enteléquias primitivas; pois essas enteléquias possuem analogia com as almas, e são tão indivisíveis e imperecíveis como elas; alhures expressei a convicção de que os seus corpos orgânicos são máquinas efetivas, mas que ultrapassam as artificiais, de nossa invenção, na mesma medida em que o inventor das naturais nos ultrapassa. Pois essas máquinas da natureza são tão imperecíveis como as próprias almas, e o animal com a alma subsiste sempre; é como o caso de Arlequim - para usar um exemplo plástico, por mais ridículo que seja -, que queriam despir no teatro, mas não conseguiram fazê-lo, porque tinha não sei quantas roupas uma por cima da outra, embora essas réplicas dos corpos orgânicos até ao infinito, que se encontram num animal, não sejam tão semelhantes, pois os produtos da natureza possuem uma sutilidade toda diferente. Tudo isso mostra que os filósofos não andaram tão errados ao estabelecerem uma distância tão grande entre as coisas artificiais e entre os corpos naturais dotados de uma verdadeira unidade. Estava, porém, reservado ao nosso tempo desenvolver este mistério e fazer compreender a sua importância e as suas consequências para bem estabelecer a teologia natural e o que se denomina pneumática, e isto de uma forma que seja verdadeiramente natural e conforme com aquilo que podemos experimentar e compreender, forma que não sacrifique nada das importantes considerações que devem fornecer, ou antes que as realça, como faz o sistema de harmonia preestabelecida. Acredito que com isto estamos no melhor ponto possível para encerrar esta longa discussão sobre os nomes das substâncias. CAPÍTULO VII AS PARTÍCULAS. § 1. FILALETO - Além das palavras que servem para designar as ideias, temos necessidade das que significam a conexão das ideias ou as proposições. Isto é, isto não é, constituem sinais gerais da afirmação ou da negação. O espírito, porém, além de ligar as partes das proposições, liga também sentenças ou proposições inteiras, § 2, servindo-se das palavras que exprimem esta ligação das diversas afirmações e negações: é o que denominamos partículas; é no seu reto uso que consiste sobretudo a arte de bem falar. É para que os raciocínios sejam seguidos e metódicos que são necessários termos que revelem a conexão, a restrição, a distinção, a oposição, a ênfase etc. E quando não se toma cuidado nisto, põe-se em situação embaraçosa a quem escuta. TEÓFILO - Confesso que as partículas são de largo uso, mas não sei se a arte do bem falar reside principalmente nisto. Se alguém não pronunciasse outra coisa senão aforismos, ou teses sem nexo - como se faz nas universidades, ou como nos chamados libelos articulados entre os jurisconsultos, ou como nos artigos, que se propõem às testemunhas - neste caso, desde que se ordenem retamente estas proposições, alcançar-se-á mais ou menos o mesmo efeito em ser compreendido que se tivéssemos usado a ligação e as partículas, pois o leitor as supre. Todavia, reconheço que o leitor ficaria confuso se colocássemos mal as partículas, e isto bem mais do que se as omitíssemos. Parece-me igualmente que as partículas ligam não somente as partes do discurso composto de proposições e as partes da proposição composta de ideias, mas também as partes da ideia, composta de várias maneiras pela combinação de outras ideias. É esta última ligação que é assinalada pelas preposições, ao passo que os advérbios têm influência sobre a afirmação ou a negação que está no verbo; e as conjunções têm influência sobre a ligação de diferentes afirmações ou negações. Não duvido, porém, que vós mesmo tenhais notado tudo isto, ainda que as vossas palavras pareçam dizer outra coisa. § 3. FILALETO - A parte da gramática que trata das partículas tem sido menos cultivada do que aquela que representa pela ordem os casos, os gêneros, os modos, os tempos, os gerundivos e os supinos. É bem verdade que em algumas línguas classificaram-se também as partículas sob títulos por subdivisões distintas, e isto com uma grande aparência de exatidão. Não basta, porém, percorrer estes catálogos. Cumpre refletir sobre os seus próprios pensamentos para observar as formas que o espírito assume ao discorrer, já que as partículas são também características da ação do espírito. TEÓFILO - É bem verdade que a doutrina das partículas é importante, e gostaria que entrássemos em mais detalhes sobre esta matéria. Pois nada seria mais próprio para dar a conhecer as diversas formas do entendimento. Os gêneros não significam nada na gramática filosófica, mas os casos correspondem às preposições, e muitas vezes a preposição está envolvida no nome e como que absorvida nele, e outras partículas estão escondidas nas flexões dos verbos. § 4. FILALETO - Para bem explicar as partículas, não é suficiente traduzi-las (como se faz via de regra num dicionário) pelas palavras duma outra língua, que se aproximam dela ao máximo, visto que é tão difícil compreender-lhes o sentido preciso numa língua quanto na outra; além disso, as significações das palavras vizinhas das duas línguas não são sempre exatamente as mesmas, variando também numa e mesma língua. Lembro-me de que na língua hebraica existe uma partícula de uma só letra, que tem mais de cinquenta significações. TEÓFILO - Homens sábios têm-se dedicado a elaborar tratados explícitos sobre as partículas do latim, do grego e do hebraico; Strauch, célebre jurisconsulto, escreveu um livro sobre o uso das partículas na jurisprudência, onde a significação tem grandes consequências. Vê-se, contudo, que via de regra é mais por meio de exemplos e de sinônimos que se pretende explicá-las, do que por meio de noções distintas. Tampouco se pode encontrar uma significação geral ou formal, como o denominava o falecido Sr. Bohl, que possa satisfazer a todos os exemplos; não obstante isto, poder-se-ia sempre reduzir todos os usos de uma palavra a um determinado número de significações. É isto que se deveria fazer. § 5. FILALETO - Realmente, o número das significações ultrapassa de muito o das partículas. Em inglês a partícula but possui significações muito diversas. 1) Quando digo - but to say no more - significa: mas para não dizer nada mais; como se esta partícula significasse que o espírito pára no caminho, antes de terminar a carreira. 2) Ao dizer, porém: I saw but two planets, isto é - Só vi dois planetas - o espírito limita o sentido daquilo que quer dizer àquilo que foi expresso, com exclusão de qualquer outra coisa. 3) E quando digo - Your pray, but it is not that God would bring you to the religion, but that he would confirm you in your own, isto é: Vós orais a Deus, mas não é que ele queira conduzir-vos ao conhecimento da verdade da religião, mas que ele vos confirma na vossa - o primeiro destes but ou mas designa uma suposição no espírito, a qual é diferente do que deveria ser, e o segundo faz ver que o espírito coloca uma oposição direta entre o que segue e o que precede. 4) All animals have sense, but a dog is an animal, isto é: Todos os animais têm sentimento, ora (mais, em francês) o cão é um animal. Aqui a partícula significa a conexão da segunda proposição com a primeira. TEÓFILO - O francês mais pode ser colocado em lugar de but em todos esses casos, excetuado o segundo. Ao contrário, o alemão allein, tomado como partícula, que significa conjuntamente algo de mais e de seulement, pode sem dúvida ser colocado em lugar de but em todos os referidos exemplos, exceto no último, que comporta alguma dúvida. O mais francês se traduz em alemão às vezes por aber, às vezes por sondem, que estabelece uma separação e se aproxima da partícula allein. Para bem explicar as partículas, não basta delas dar uma explicação abstrata, como acabamos de fazer. Cumpre recorrer a uma perífrase que possa ser colocada em seu lugar, assim como a definição pode ser colocada no lugar da coisa definida. Quando nos dedicarmos a procurar e a determinar essas perífrases substituíveis em todas as partículas, na medida em que cada uma delas é suscetível disto, então teremos regulado as suas significações. Procuremos fazê-lo nos quatro exemplos citados. No primeiro exemplo queremos dizer: até aqui falemos só disto, e nada mais (non piu). No segundo quer-se dizer: Vi somente dois planetas, e não mais. No terceiro: Vós orais a Deus e é só isto, isto é, para ser confirmado na vossa religião, e não mais etc. No quarto caso é como se disséssemos: Todos os animais têm sentimento, basta considerar isto somente, não é necessário nada mais. O cão é um animal, logo tem sentimento. Assim, todos esses exemplos assinalam limites, um non plus ultra, seja nas coisas, seja no discurso. Também but é um fim, um termo da carreira, como se disséssemos; paremos, eis-nos, chegamos ao nosso but. But, Bute, é uma antiga palavra teutônica, que significa algo fixo, uma parada. Beuten (palavra antiquada, que se encontra ainda em algumas canções de igreja) significa ficar, demorar. O francês mais tem a sua origem de magis, como se alguém quisesse dizer: quanto ao resto, é preciso deixá-lo, o que equivale a dizer: não é preciso mais, é suficiente, vamos a outra coisa, ou então, é outra coisa. Todavia, visto que o uso das línguas varia de maneira estranha, seria necessário entrar bem mais no detalhe dos exemplos, para determinar suficientemente as significações das partículas. Em francês evita-se o duplo mais por um cependant, e dir-se-ia, no caso: Vous priez, cependant ce n' est pas pour obtenir la vérité, mais pour être confirmé dans votre opinion. O sed dos latinos era frequentemente expresso antigamente por ains, que constitui o anzi dos italianos; os franceses, tendo reformado a língua, privaram-na de uma expressão vantajosa. Por exemplo: Il n'y avait rien de sur, cependant on état persuadé de ce que je vous ai mande, parce qu'on aime à croire ce qu'on souhaite; mais il s'esi trouvé que ce n'était pas cela; ains plutôt etc. § 6. FILALETO - O meu plano era tocar neste assunto apenas de leve. Gostaria de acrescentar que muitas vezes partículas encerram, ou constantemente ou numa certa construção, o sentido de uma proposição inteira. TEÓFILO - Contudo, quando é um sentido completo, creio que é por um modo de elipse. Outra coisa acontece só com as interjeições, em minha opinião, que podem substituir por si mesmas e dizem tudo numa palavra, como por exemplo: ah! hoi me! Pois quando dizemos mais, sem acrescentar nada, trata-se de uma elipse, como para dizer: mas aguardemos o coxo e não nos gloriemos a propósito disso. Existe algo de parecido a isto no nisi dos latinos: si nisi non esset, se não houvesse o mas. De resto, senhor, eu não me teria irritado, se tivésseis entrado algo mais nos detalhes dos truques de espírito, que aparecem maravilhosamente no emprego das partículas. Contudo, visto termos pressa de encerrar esta pesquisa acerca das palavras e de voltar às coisas, não quero entreter-vos mais, embora acredite realmente que as línguas constituem o melhor espelho do espírito humano, e que uma análise exata da significação das palavras ajudaria, melhor que qualquer outra coisa, a conhecer as operações do entendimento. CAPÍTULO VIII OS TERMOS ABSTRATOS E CONCRETOS. § l.FILALETO - Deve-se notar ainda que os termos são abstratos ou concretos. Cada ideia abstrata é distinta, de maneira que de duas, uma nunca pode ser a outra. O espírito deve perceber pelo seu conhecimento intuitivo a diferença que existe entre elas, e por conseguinte duas dessas ideias nunca podem ser afirmadas uma da outra. Qualquer um vê logo a falsidade destas proposições: a humanidade é a animalidade ou racionalidade; isto reveste uma evidência superior à de qualquer outra das máximas comumente admitidas. TEÓFILO - Entretanto, há algo a dizer. Concorda-se em que a justiça é uma virtude, um hábito, uma qualidade, um acidente etc. Assim dois termos abstratos podem ser enunciados um do outro. Tenho o costume de distinguir duas espécies de abstratos. Existem termos abstratos lógicos, e existem também termos abstratos reais. Os abstratos reais, ou pelo menos concebidos como reais, são ou essências e partes da essência, ou acidentes, isto é, seres acrescentados à substância. Os termos abstratos lógicos são as predicações reduzidas a termos, como se eu dissesse: ser homem, ser animal; deste sentido, pode-se enunciá-las um do outro, dizendo: Ser homem é ser animal. Nas realidades, porém, isto não se verifica. Pois não se pode dizer que a humanidade ou a "hominidade" (o ser homem) que constitui toda a essência do homem seja a animalidade, a qual constitui apenas uma parte dessa essência; todavia, esses seres abstratos e incompletos significados por termos abstratos reais também possuem os seus gêneros e espécies, que também são expressos por termos abstratos reais: assim, existe predicação entre eles, conforme demonstrei pelo exemplo da justiça e da virtude. § 2. FILALETO - Pode-se sempre dizer que as substâncias têm apenas poucos nomes abstratos. Dificilmente se falou, nas escolas filosóficas, de humanidade, animalidade, corporalidade. Ora, isto não foi autorizado no mundo. TEÓFILO - A razão é que se teve pouca necessidade desses termos para servir de exemplo e para esclarecer a sua noção geral, que não convinha negligenciar inteiramente. Se os antigos não utilizavam a palavra humanidade no sentido das escolas filosóficas, diziam a natureza humana, o que significa a mesma coisa. Também é certo que diziam divindade, ou então, natureza divina. E sendo que os teólogos precisaram falar dessas duas naturezas e dos acidentes reais, as escolas filosóficas e teológicas se fixaram nessas entidades abstratas, talvez mais do que convinha. CAPÍTULO IX A IMPERFEIÇÃO DAS PALAVRAS. (§ 1.) FILALETO - Já falamos do duplo uso das palavras. Um deles é registrar os nossos próprios pensamentos para ajudar nossa memória, que nos faz falar a nós mesmos; o outro é comunicar os nossos pensamentos aos outros por intermédio das palavras. Estes dois empregos nos fazem conhecer a perfeição e a imperfeição das palavras. § 2. Quando só falamos a nós mesmos, é indiferente que palavras empregamos, desde que nos lembremos do seu sentido e não o alteremos. Contudo, § 3, o uso da comunicação é também de duas espécies, civil e filosófico. O civil consiste na conversação e no uso da vida civil. O uso filosófico é aquele que se deve fazer das palavras para dar noções precisas e para exprimir verdades certas em proposições gerais. TEÓFILO - Muito bem. As palavras são tanto marcas (notae) para nós (como poderiam ser os caracteres dos números ou da álgebra) quanto sinais para outros; e o emprego das palavras como dos sinais tem lugar tanto quando se trata de aplicar os preceitos gerais ao uso da vida ou aos indivíduos, como quando se trata de encontrar ou verificar estes preceitos; o primeiro uso dos sinais é civil, o segundo é filosófico. § 5. FILALETO - Acontece que é difícil, sobretudo nos casos que seguem, aprender e reter as ideias que cada palavra significa: 1) quando essas ideias são muito compostas; 2) quando essas ideias, que compõem uma nova, não têm ligação natural com elas, de modo que não existe na natureza medida alguma fixa nem modelo algum para retificá-las e regulá-las; 3) quando o modelo não é fácil de ser conhecido; 4) quando a significação da palavra e o sentido real não são exatamente os mesmos. As denominações dos modos são mais suscetíveis de serem duvidosas e imperfeitas pelas duas primeiras razões, e a das substâncias em virtude das duas segundas. § 6. Quando a ideia dos modos é muito complexa, como a da maior parte dos termos de moral, raramente possuem a mesma significação precisa nos espíritos de duas pessoas diversas. § 7. Também a falta de modelo torna essas palavras equívocas. Quem por primeiro inventou a palavra brusquer, deu-lhe o sentido que mais a propósito lhe pareceu, e os que, com ele, se serviram do termo depois, não se informaram sobre o que ele queria dizer precisamente, e o inventor tampouco lhes revelou um modelo constante. § 8. O uso comum regulamenta bastante bem o sentido das palavras para a conversação comum, mas nada tem de exato; discutimos todos os dias sobre a significação mais conforme à propriedade da linguagem. Muitos falam da glória, mas poucos são aqueles para os quais o termo tem o mesmo significado. § 9. São puros sons na boca de muitos, ou pelo menos as significações são muito indeterminadas. E em um discurso ou conversa em que se fala de honra, de fé, de graça, de religião, de igreja, e sobretudo na controvérsia, notar-se-á antes de tudo que os homens possuem noções diferentes, que aplicam aos mesmos termos. Se é difícil entender o sentido dos termos das pessoas do nosso tempo, muito mais difícil é entender os livros antigos. A vantagem é que podemos dispensá-los, exceto quando contêm o que devemos crer ou fazer. TEÓFILO - Essas observações são boas. Contudo, quanto aos livros antigos, visto termos que ouvir sobretudo as Santas Escrituras, e visto que as leis romanas estão ainda em grande uso numa boa parte da Europa, este fato nos obriga a compulsar uma quantidade de outros livros antigos: os rabinos, os Padres da Igreja, e mesmo os historiadores profanos. Aliás, os médicos antigos também merecem ser ouvidos. A prática da medicina dos gregos veio dos árabes até nós: a água da fonte foi deturpada nos riachos dos árabes e depois retirada em muitos pontos quando se começou a recorrer aos originais gregos. Todavia, esses árabes não deixam de ser úteis, havendo quem nos assegure, por exemplo, que Ebenbitar, o qual nos seus livros dos Simples copiou Dioscórides, serve frequentemente para esclarecê-lo. Acredito igualmente que, após a religião e a história, é sobretudo na medicina, enquanto empírica, que a tradição dos antigos, conservada pela Escritura, e geralmente as observações de outros, podem ser úteis. Eis por que sempre tive grande estima pelos médicos versados também no conhecimento da antiguidade. Irritei-me muito pelo fato de que Reínesius, excelente nas duas ciências, se tenha voltado mais a esclarecer os ritos e as histórias dos antigos do que a restabelecer uma parte dos conhecimentos que estes tinham da natureza, setor no qual tinha mostrado grande possibilidade de êxito. Quando um dia os latinos, os gregos, os hebreus e os árabes estiverem esgotados, os chineses, dotados ainda de livros antigos, entrarão na lista e fornecerão matéria para a curiosidade dos nossos críticos. Isto sem falar de alguns antigos livros dos persas, dos armênios, dos coptas e dos brâmanes, que com o tempo desenterraremos, para não negligenciarmos nenhuma luz que a antiguidade poderia fornecer pela tradição das doutrinas e pela história dos fatos. E, quando não houver mais livros antigos a examinar, as línguas ocuparão o lugar dos livros, pois são os mais antigos monumentos do gênero humano. Com o avançar do tempo registrar-se-ão todas as línguas do universo, elas serão colocadas em dicionários e em gramáticas, far-se-á a comparação entre elas. Isto terá utilidade muito grande, tanto para o conhecimento das coisas - pois que os nomes muitas vezes correspondem às suas propriedades (como se vê pelas denominações das plantas entre os diversos povos) - como para o conhecimento do nosso espírito e da maravilhosa variedade das suas operações. Isto sem falar da origem dos povos, que conheceremos através das etimologias sólidas, para cujo conhecimento a melhor fonte constitui a comparação das línguas. Porém já falei disto. Tudo isso revela a utilidade e a extensão da crítica, pouco considerada por certos filósofos, de resto muito inteligentes, que se comprazem em falar com desprezo do rabinismo e, em geral, da filologia. Vê-se também que os críticos encontrarão ainda por muito tempo assunto de pesquisar com fruto, e que fariam bem em não ocupar-se excessivamente com minúcias, visto terem muitos outros objetos mais rendosos a tratar. Digo isto, embora saiba que as minúcias são ainda necessárias para os críticos, a fim de descobrirem conhecimentos mais importantes. E uma vez que a crítica gira, em grande parte, em torno da significação das palavras e em torno da interpretação dos autores, sobretudo antigos, esta discussão, das palavras, somada à menção que fizestes dos antigos, me levou a tocar este ponto importante. Todavia, para voltar aos quatro defeitos que mencionastes na arte de dar nomes, dir-vos-ei que é possível obviar a todos, principalmente desde que se inventou a escrita, e que tais defeitos subsistem apenas em razão da nossa negligência. Pois depende de nós fixar as significações pelo menos em alguma língua de sábios, depende de nós concordarmos para destruir esta torre de Babel. Há, porém, dois defeitos mais difíceis de remediar: um deles consiste na dúvida que temos sobre se as ideias são compatíveis, quando a experiência não no-las fornece todas combinadas num e mesmo sujeito; o outro consiste na necessidade que temos de estabelecer definições provisórias das coisas sensíveis, quando não dispomos de suficiente experiência para ter delas definições mais completas. Contudo, mais de uma vez já falei desses dois defeitos. FILALETO - [Vou dizer-vos coisas que servirão ainda para esclarecer, de alguma forma, os defeitos que acabais de assinalar, sendo que o terceiro defeito por mim indicado, ao que parece, faz com que as definições sejam provisórias: é quando não conhecemos suficientemente os nossos modelos sensíveis, isto é, os seres substanciais de natureza corpórea. Este defeito faz também com que não saibamos se é permitido combinar qualidades sensíveis que a natureza não combinou, visto que não os entendemos a fundo.] Ora, se a significação das palavras que servem para os modos compostos é duvidosa, por falta de modelos que façam ver a mesma composição, a dos nomes dos seres substanciais o é por uma razão completamente oposta, isto é, por terem que significar aquilo que é suposto concordante com a realidade das coisas, e se referem a modelos formados pela natureza. TEÓFILO - Já assinalei mais de uma vez em nossas conversações precedentes que isto não é essencial às ideias das substâncias; reconheço, porém, que as ideias feitas conforme a natureza são as mais seguras e as mais úteis. § 12. FILALETO - Por conseguinte, quando seguimos os modelos feitos pela própria natureza, sem que a imaginação precise reter mais do que as suas representações, os nomes dos seres substanciais possuem, na linguagem comum, uma dupla relação, como já demonstrei. A primeira é que significam a constituição interna e real das coisas; todavia não se consegue conhecer este modelo, e por conseguinte ele não pode servir para regulamentar as significações. TEÓFILO - Aqui não se trata disso, visto estarmos falando das ideias cujos modelos possuímos; a essência interna reside na coisa, mas concordamos em que ela não pode servir de padrão. § 13. FILALETO - A segunda relação é, portanto, aquela que os nomes dos seres substanciais têm imediatamente com as ideias simples, que existem ao mesmo tempo na substância. Mas, uma vez que o número dessas ideias unidas é elevado, as pessoas, ao falarem desse mesmo sujeito, formam ideias muito diferentes, tanto devido à combinação diferente das ideias simples que fazem, como porque a maior parte das qualidades dos corpos são os poderes que possuem de produzir mudanças nos outros corpos e de recebê-las dos outros; prova disso são as mudanças que um dos metais mais belos é capaz de sofrer pela operação do fogo, sendo capaz de receber mudanças ainda maiores nas mãos de um químico, pela aplicação dos outros corpos. De resto, enquanto uma pessoa se contenta com o peso e a cor para conhecer o ouro, outra faz entrar também a ductilidade, a fixidez, e uma terceira pessoa chama a atenção para o fato de que podemos dissolvê-lo na água-régia. § 14. Como as coisas também apresentam muitas vezes semelhanças entre si, é frequentemente difícil apontar as diferenças exatas. TEÓFILO - Com efeito, uma vez que os corpos são sujeitos a serem alterados, disfarçados, falsificados e mascarados, é muito importante poder distingui-los e reconhecê-los. O ouro é disfarçado na solução, mas podemos retirá-lo, seja precipitando-o, seja destilando dele a água; por sua vez, o ouro sofisticado é reconhecido ou purificado pela arte dos que fazem ensaios, e, não sendo esta arte conhecida a todos, não é de estranhar que nem todos os homens tenham a mesma ideia do ouro. Via de regra, são apenas os peritos que possuem ideias suficientemente corretas das diversas matérias. § 15. FILALETO - Esta variedade, porém, não é responsável por tanta desordem no intercâmbio civil, como o é nas pesquisas filosóficas. TEÓFILO - Seria mais suportável se esta confusão não tivesse influência na prática, onde muitas vezes é importante não receber um quiproquó, e por conseguinte conhecer as características das coisas, ou pelo menos ter à mão pessoas que as conheçam. Isto é importante sobretudo em se tratando de drogas e materiais de valor, dos quais podemos ter necessidade em ocasiões importantes. A desordem filosófica se fará notar sobretudo no uso dos termos mais gerais. § 18. FILALETO - Os nomes das ideias simples são menos sujeitos a equívoco, sendo que raramente nos desentendemos acerca dos termos branco, amargo etc. TEÓFILO - Contudo, é verdade que mesmo estes termos não são inteiramente isentos de qualquer incerteza. Já assinalei o exemplo das cores limítrofes, que estão nos confins de dois gêneros, e cujo gênero é duvidoso. § 19. FILALETO - Após os nomes das ideias simples, os dos modos simples são os menos duvidosos, como, por exemplo, os das figuras e dos números. Mas, § 20, são os modos compostos e as substâncias que causam toda a confusão. § 21. Dir-se-á que, em vez de imputar tais imperfeições às palavras, cumpre antes atribuí-las ao nosso entendimento: a isto respondo que as palavras se interpõem de tal maneira entre o nosso espírito e a verdade das coisas, que se podem comparar as palavras com o meio pelo qual passam os raios dos objetos visíveis, que muitas vezes espalha nuvens sobre os nossos olhos; estou tentado a crer que, se examinássemos mais a fundo as imperfeições da linguagem, desapareceria por si mesma a maior parte dos discursos, sendo que o caminho do conhecimento, e talvez também da paz, estaria mais aberto aos homens. TEÓFILO - Creio que poderíamos realizar isso desde já, nas discussões por escrito, se os homens quisessem concordar com certas regras e estivessem dispostos a segui-las cuidadosamente. Todavia, nos entendimentos orais, seriam necessárias mudanças na linguagem. Entrei neste exame alhures. § 22. FILALETO - Enquanto aguardamos a reforma, que não estará feita tão logo, esta incerteza das palavras deveria ensinar-nos a ser moderados, sobretudo quando se trata de impor aos outros o sentido que atribuímos aos autores antigos; com efeito, constatamos que, entre os autores gregos, quase cada um deles fala uma linguagem diferente. TEÓFILO - Surpreendi-me muito ao constatar que autores gregos tão distantes uns dos outros no tempo e no espaço, tais como Homero, Heródoto, Estrabão, Plutarco, Luciano, Eusébio, Próculo, Fócio, se aproximam tanto, ao passo que os latinos mudaram tanto, e mais ainda os alemães, os ingleses e os franceses. É que os gregos tiveram, desde os tempos de Homero, e mais ainda desde que Atenas se tornou um centro florescente, bons autores, que a posteridade tomou como modelos, ao menos na linguagem escrita. Pois sem dúvida a língua vulgar dos gregos deve ter-se alterado muito ao tempo do domínio dos romanos. Esta mesma razão faz com que o italiano não tenha mudado tanto como o francês, visto que os italianos, tendo possuído mais cedo escrituras de reputação durável, imitaram e estimam ainda Dante, Petrarca, Boccaccio e outros autores de um tempo em que os autores franceses estão fora de moda. CAPÍTULO X O ABUSO DAS PALAVRAS. § 1. FILALETO - Além das imperfeições naturais da linguagem, existem imperfeições voluntárias, provenientes da nossa negligência, e servir-se tão mal das palavras equivale a abusar delas. O primeiro abuso, e o mais visível, consiste, § 2, em não atribuirmos ideias claras às palavras. Quanto a essas palavras, existem duas classes: algumas delas nunca tiveram ideia determinada, nem na sua origem nem no seu uso comum. A maioria das seitas de filosofia e de religião as introduziram para defender alguma opinião estranha, ou para esconder algum ponto fraco do seu sistema. Todavia, são caracteres distintivos na boca das pessoas de partido. § 3. Existem outras palavras que, no seu uso original e comum, possuem alguma ideia clara, mas foram ao depois apropriadas a matérias muito importantes sem lhes atribuir nenhuma ideia certa. É assim que as palavras sabedoria, glória, graça figuram muitas vezes na boca das pessoas. TEÓFILO - Não acredito que existam tantas palavras sem significação quanto se pensa, e creio que com um pouco de cuidado e de boa vontade se poderia encher o vazio, ou seja, fixar a indeterminação. A sabedoria não parece ser outra coisa senão a ciência da felicidade. A graça é um bem que se faz àqueles que não o mereceram, e que se encontram num estado em que necessitam dele. E a glória consiste no renome do valor de alguém. § 4. FILALETO - Não quero examinar agora se haveria algo a dizer acerca destas definições. Prefiro antes anotar as causas dos abusos das palavras. Primeiramente, aprendemos as palavras antes das ideias que lhes competem, e as crianças habituadas a isto desde o berço assim procedem durante toda a sua vida, tanto mais que se fazem entender na sua conversação, sem jamais ter fixado a sua ideia, servindo-se de expressões diferentes para revelar aos outros o que querem dizer. Todavia, isto enche muitas vezes os seus discursos de uma série de sons inúteis, sobretudo em assuntos de moral. As pessoas tomam as palavras que encontram em uso entre os vizinhos, para não parecer que ignoram o que as palavras significam, e usam as palavras com segurança, sem atribuir-lhes um sentido certo; e, assim como em tais espécies de discurso raramente lhes acontece terem razão, da mesma forma raramente se convencem de que não têm razão; querer tirá-los do erro seria o mesmo que querer privar um vagabundo das suas posses. TEÓFILO - Com efeito, é tão raro as pessoas darem-se ao necessário trabalho para lograr a compreensão dos termos ou das palavras, que mais de uma vez me surpreendi com o fato de as crianças aprenderem tão cedo as línguas, e de que as pessoas falam ainda com tanta justeza. Isto, considerando que se dá tão pouca atenção à instrução das crianças na sua língua materna, e que os outros se preocupam tão pouco por adquirir definições nítidas: tanto mais que as palavras que aprendemos nas escolas pouco têm a ver com as palavras de uso comum. Do resto, reconheço que é frequente as pessoas não terem razão, mesmo quando discutem seriamente e falam conforme o sentimento. Por outra parte, notei também com frequência que, em suas discussões especulativas sobre assuntos de sua competência, os dois lados têm razão, exceto nas oposições que fazem uns aos outros, quando interpretam mal o pensamento do outro. Isto se deve ao mau uso dos termos, e às vezes também a um espírito de contradição e a um sentimento de superioridade. § 5. FILALETO - Em segundo lugar, o emprego das palavras é por vezes inconstante, o que acontece com demasiada frequência entre os sábios. Todavia, trata-se de um engano manifesto, e, se for voluntário, é loucura ou malícia. Se alguém fizesse isto em suas contas (tomando, por exemplo, um X por um V), quem quereria ter relações comerciais com ele? TEÓFILO - Visto que este abuso é tão comum, não somente entre os sábios mas também no grande público, creio ser o mau hábito e a inadvertência que o levam a cometer, e não tanto a malícia. Em geral as significações diversas de uma palavra têm alguma afinidade, que faz com que se tome uma pela outra, e as pessoas não se dão tempo necessário para considerar com a exatidão desejável o que dizem. Ora, estamos habituados aos tropos e às figuras, e facilmente procuramos certa elegância e falso brilho. Pois o mais das vezes procuramos o prazer, o divertimento e as aparências, mais do que a verdade, para não falar da vaidade que se imiscui. § 6. FILALETO - O terceiro abuso consiste numa obscuridade afetada, seja conferindo aos termos significações inusitadas, seja introduzindo termos novos sem explicá-los. Os antigos sofistas, que Luciano ridiculariza tão razoavelmente, pretendendo falar de tudo, encobriam a sua ignorância sob o véu da obscuridade das palavras. Entre as seitas dos filósofos, a dos peripatéticos se tornou notável por este defeito. As outras seitas, porém, mesmo entre os modernos, não permanecem totalmente isentas deste erro. Há, por exemplo, pessoas que abusam do termo étendu (extenso) e consideram necessário confundi-lo com a palavra corpo. § 7. A lógica, ou arte de discutir, que se apreciou tanto, serviu para favorecer a obscuridade. § 8. Os que se dedicaram a ela têm sido inúteis à sociedade, ou até prejudiciais. § 9. Ao contrário, os homens das artes mecânicas, tão desprezados pelos doutores, têm sido úteis à vida humana. Todavia, esses doutores obscuros têm sido admirados pelos ignorantes, tendo sido considerados invencíveis pelo fato de estarem munidos de espinhos nos quais ninguém tem prazer de se introduzir, uma vez que só a obscuridade podia servir como defesa da absurdidade. § 12. O mal é que esta arte de obscurecer as palavras confundiu as duas grandes normas das ações do homem, a religião e a justiça. TEÓFILO - Vossas queixas são em boa parte justas. Contudo, é verdade que existem, ainda que raramente, obscuridades escusáveis, e mesmo elogiáveis: assim, por exemplo, quando se faz profissão de ser enigmático e o enigma está na moda. Pitágoras agia assim, sendo também esta a forma dos orientais. Os alquimistas, que se declaram adeptos, alegam que só querem ser compreendidos pelos filhos da arte. Todavia seria isto bom se estes pretensos filhos da arte possuíssem a chave dos números. Certa obscuridade poderia ser permitida: todavia é necessário que ela esconda alguma coisa que mereça ser adivinhada, e que o enigma seja decifrável. Ao contrário, a religião e a justiça exigem noções claras. Parece que a pouca ordem que logramos ao ensiná-las tomou a sua doutrina confusa, e a indeterminação dos termos é talvez mais prejudicial do que a obscuridade. Ora, uma vez que a lógica consiste na arte que ensina a ordem e a conexão dos pensamentos, não vejo razão para censurá-la. Ao contrário, é por falta de lógica que os homens se equivocam. § 14. FILALETO - O quarto abuso consiste em tomar as palavras pelas coisas, isto é, acredita-se que os termos respondem à essência real das substâncias. Quem é que, havendo sido educado na filosofia peripatética, não imagina que os termos que significam os predicamentos concordam exatamente com a natureza das coisas?, que as formas substanciais, as almas vegetativas, o horror do vácuo, as espécies intencionadas etc., são algo de real? Os platônicos têm a sua alma do mundo, os epicureus a tendência dos seus átomos para o movimento, no período em que estão em repouso. Se os veículos aéreos ou etéreos do doutor More tivessem prevalecido em alguma parte do mundo, não os teriam considerado menos reais. TEÓFILO - Não se trata propriamente de tomar as palavras pelas coisas, mas de considerar verdadeiro o que não o é. Erro demasiado comum em todos os homens, mas que não depende apenas do abuso das palavras, consistindo em completamente outra coisa. A ideia dos predicamentos é muito útil, o que importa é retificá-los, e não rejeitá-los. As substâncias, as quantidades, as qualidades, as ações e as paixões, bem como as relações, isto é, cinco títulos gerais dos seres, poderiam bastar juntamente com aqueles que se formam a partir da sua combinação. Vós mesmo, ao ordenar as ideias, não quisestes porventura indicá-los como predicamentos? Mais acima falei das formas substanciais. Não sei se há suficiente fundamento para rejeitar as almas vegetativas, visto que pessoas de muita experiência e mui judiciosas reconhecem uma grande analogia entre as plantas e os animais, e vós mesmo, ao que parece, admitistes a existência de alma nos animais. O horror do vácuo pode ser entendido retamente, isto é: uma vez que a natureza tiver enchido os espaços, e que os corpos sejam impenetráveis e incondensáveis, ela não pode admitir o vácuo; eu pessoalmente considero essas três suposições bem fundamentadas. Não o são, porém, as espécies intencionais, que devem fazer a ligação entre a alma e o corpo, embora se possam talvez escusar as espécies sensíveis, que vão do objeto ao órgão afastado, subentendendo a propagação dos movimentos. Reconheço que a alma do mundo, de Platão, não existe, visto que Deus está acima do mundo, extramundana intelligentia, ou melhor, supramundana. Não sei se pela tendência dos átomos ao movimento, dos epicureus, não entendeis o peso que eles lhes atribuíam, o qual indubitavelmente não tinha fundamento, visto pretenderem que os corpos vão todos de um mesmo lado para si mesmos. O falecido Sr. Henry More, teólogo da Igreja Anglicana, versado como era, demos trava uma facilidade exagerada em forjar hipóteses que não eram nem inteligíveis nem prováveis, como demonstra o seu princípio hilárquico da matéria, causa do peso e das outras maravilhas que nela se encontram. Nada posso dizer-vos sobre os seus veículos etéreos, por não ter examinado a sua natureza. § 15. FILALETO - Um exemplo sobre a palavra matéria vos fará entrar melhor no meu pensamento. Considera-se a matéria um ser realmente existente na natureza, distinto do corpo, o que, realmente, é da maior evidência. Se assim não fosse, estas duas ideias poderiam ser intercambiáveis uma pela outra. Pois pode-se dizer que uma só matéria compõe todos os corpos, mas não é lícito dizer que de um só corpo se compõem todas as matérias. Tampouco se dirá que uma matéria é maior do que a outra. A matéria exprime a substância e a solidez do corpo; assim, consideramos não haver mais diferentes matérias do que diferentes graus de solidez. Todavia, desde o momento em que tomamos a matéria como nome de alguma coisa que existe sob esta denominação, este pensamento produziu discursos ininteligíveis e discussões confusas sobre a matéria primeira. TEÓFILO - Parece-me que este exemplo serve mais para escusar do que para censurar a filosofia peripatética. Se toda prata fosse figurada, ou melhor, pelo fato de toda prata ser figurada pela natureza ou pela arte, porventura, em razão disto, será menos lícito dizer que a prata é um ser realmente existente na natureza, distinto (considerando-o em sua precisão) da louça ou da moeda? Não será por isto que se afirmará que a prata não consiste em outra coisa senão em algumas qualidades da moeda. Também não é tão inútil raciocinar na física geral sobre a matéria primeira e determinar-lhe a natureza, para saber se ela é sempre uniforme, se possui alguma outra propriedade além da impenetrabilidade (como de fato demonstrei, depois de Kepler, que ela possui ainda o que se pode chamar de inércia) etc., embora jamais se encontre completamente despida: como seria permitido raciocinar sobre a prata pura, mesmo que não houvesse prata em nosso país, e mesmo que não tivéssemos meios para purificá-la. Em consequência, não desaprovo que Aristóteles tenha falado da matéria primeira. Isto não impede de censurar os que se detiveram exageradamente nela, e que forjaram quimeras acerca das palavras mal-entendidas deste filósofo, o qual talvez também tenha propiciado demasiadas ocasiões para tais confusões. Todavia, não se deve exagerar tanto os defeitos desse autor famoso, visto ser notório que muitas de suas obras não foram terminadas nem publicadas por ele. § 17. FILALETO - O quinto abuso consiste em colocar as palavras em lugar das coisas que elas não significam, nem podem significar de forma alguma. Isto ocorre quando pelos nomes das substâncias queremos expressar algo mais do que o seguinte: o que denomino ouro é maleável (embora, no fundo, o ouro, neste caso, não signifique outra coisa senão aquilo que é maleável), pretendendo dar a entender que a maleabilidade depende da essência real do ouro. Assim, afirmamos que é justo, com Aristóteles, definir o homem como animal racional, e que não é justo defini-lo na esteira de Pia tão, como um animal bípede e implume, dotado de unhas largas. § 18. Dificilmente se encontrará uma só pessoa que não suponha que essas palavras significam uma coisa que possui a essência real da qual dependem estas propriedades; todavia, é um abuso óbvio, pois isto não está encerrado na ideia complexa significada por esta palavra. TEÓFILO - De minha parte, acreditaria antes ser óbvio que é injusto censurar este uso comum, visto ser verdadeiro que na ideia complexa do ouro está encerrado o fato de que o ouro é uma coisa que possui uma essência real, cuja constituição detalhada não nos é conhecida a não ser pelo fato de que dela dependem qualidades tais como a maleabilidade. Contudo, para enunciar a sua maleabilidade sem identidade e sem o defeito do coccismo ou de repetição (ver capo 8, § 18), deve-se reconhecer esta coisa por outras qualidades, como pela cor e pelo peso. É como se disséssemos que certo corpo fusível, amarelo e muito pesado, que se denomina ouro, possui uma natureza que lhe dá ainda a qualidade de ser muito doce ao martelo e de poder ser tornado extremamente reduzido. No que concerne à definição do homem, atribuída a Platão, definição que o autor parece ter dado apenas a título de exercício mental e que vós mesmo não quereríeis comparar seriamente à que está comumente em voga, é óbvio que ela é demasiado externa e demasiado provisória. Pois se este cassiovaris do qual faláveis ultimamente (cap. 6, § 34) por um acaso tivesse unhas largas, eis que seria homem. Com efeito, não seria necessário arrancar-lhe as penas, como àquele galo que Diógenes, ao que se conta, queria transformar em homem platônico. § 19. FILALETO - Nos modos compostos, desde que se altere uma das ideias que os compõem, reconhece-se de imediato que é outra coisa, como se vê obviamente nestas palavras: murther, que significa em inglês (analogamente a Mordt em alemão) homicídio premeditado; manslaughter (palavra que, em sua origem, corresponde a homicídio), que significa um homicídio voluntário, porém não premeditado; chancemedly (briga acontecida por acaso, conforme a força da palavra), homicídio cometido sem premeditação. Pois o que se exprime pelos termos, e aquilo que acredito estar na coisa (o que acima denominava essência nominal e essência real) é a mesma coisa. Contudo, não acontece isto nos nomes das substâncias, pois, neste caso, se alguém coloca na ideia do ouro o que o outro omite, por exemplo, a fixidez e a capacidade de ser dissolvido na água-régia, os homens não acreditarão, por isso, que se tenha mudado a espécie, mas concluirão apenas que um tem uma ideia mais perfeita que o outro, sobre aquilo que perfaz a essência real escondida à qual atribuem o nome de ouro, embora esta relação escondida seja inútil e só sirva para confundir-nos. TEÓFILO - Creio tê-lo já dito, mas vou mostrar-vos mais uma vez que o que acabais de dizer, senhor, se encontra nos modos, como nos seres substanciais, e que não há razão de censurar esta relação com a essência interna. Eis um exemplo. Pode-se definir uma parábola no sentido dos geômetras, como uma figura na qual todos os raios paralelos a certa reta são reunidos pela reflexão num certo ponto ou foco. Contudo, o que esta definição exprime é mais o exterior e o efeito, e não a essência interna desta figura, ou aquilo que poderia de imediato dar-nos a conhecer a sua origem. Pode-se mesmo duvidar, de começo, se tal figura, que se deseja e que deve produzir este efeito, é algo de possível; é o que para mim faz reconhecer se uma definição é apenas nominal, ou se é também real. Todavia, quem designa a parábola e só a conhece pela definição que acabo de enunciar quando fala dela não deixa de entender uma figura que possui certa construção ou constituição, que ele não conhece, mas que deseja aprender para poder traçá-la. Outro, que tiver se aprofundado mais, acrescentará alguma outra propriedade, e descobrirá, por exemplo, que, na figura que se pede, a porção do eixo interceptada entre a ordenada e a perpendicular, traçada no mesmo ponto da curva, é sempre constante, e ela é igual à distância do ponto mais alto e do foco. Assim terá uma ideia mais perfeita que o primeiro, e chegará mais facilmente a traçar a figura, embora ainda não tenha chegado a isso. Todavia, concordar-se-á que se trata da mesma figura, mas cuja constituição é ainda desconhecida. Vedes portanto, senhor, que tudo o que encontrais e censurais em parte no uso das palavras que significam coisas substanciais se encontra ainda, e se encontra justificado manifestamente no uso das palavras que significam modos compostos. Contudo, aquilo que vos havia feito crer que existia diferença entre as substâncias e os modos é que não consultastes aqui modos inteligíveis de difícil discussão, que se acreditam parecidos em tudo isto aos corpos, os quais são ainda mais difíceis de conhecer. § 20. FILALETO - Acredito dever desistir daquilo que vos queria dizer sobre o que considerava um abuso. Pois isto se devia ao fato de crermos falsamente que a natureza age sempre regularmente e fixa limites a cada uma das espécies por esta essência específica ou constituição interior que nela subentendemos, e a qual segue sempre o mesmo nome específico. TEÓFILO - Por conseguinte, vedes bem, pelo exemplo dos modos geométricos, que não é tão irracional referir-se às essências internas e específicas, embora exista bastante diferença entre as coisas sensíveis, sejam substâncias, sejam modos, dos quais só possuímos definições nominais provisórias e dos quais não esperamos facilmente definições reais, e entre os modos inteligíveis de difícil discussão, visto que podemos enfim atingir a constituição interna das figuras geométricas. (§ 21.) FILALETO - [Vejo enfim que não teria razão de censurar esta relação às essências e constituições internas, sob pretexto de que equivaleria a tornar as nossas palavras sinais de nada ou de algo desconhecido. Pois o que é desconhecido sob certos aspectos pode fazer-se conhecer por outra maneira, e o interior se faz conhecer em parte pelos fenômenos que dele derivam. No que concerne à pergunta: se um feto monstruoso é homem ou não, vejo que, se não se pode resolver de imediato a questão, isto não impede que a espécie esteja bem fixada em si mesma, e a nossa ignorância nada altera na natureza das coisas.] TEÓFILO - Com efeito, aconteceu a geômetras muito versados não terem sabido suficientemente quais eram as figuras das quais conheciam várias propriedades que pareciam esgotar o assunto. Por exemplo, havia linhas que se denominavam pérolas, das quais se indicavam até as quadraturas e a medida das suas superfícies e sólidos fatos para a sua revolução, mesmo antes de saber que isto não passava de um composto de certas parabolóides cúbicas. Em considerando antes essas pérolas como uma espécie particular, só se possuíam delas conhecimentos provisórios. Se isto pôde acontecer na geometria, por que admirar-se ante a dificuldade de determinar as espécies da natureza corpórea, que são incomparavelmente mais compostas? § 22. FILALETO - Passemos ao sexto abuso, para continuarmos a enumeração iniciada, embora me dê conta de que seria necessário eliminar alguns. Este sexto abuso, geral mas pouco advertido, consiste no fato de as pessoas, tendo atribuído certas ideias a certas palavras devido a um longo uso, imaginam que esta conexão é evidente, e que todo mundo concorda nisto. Daí vem que consideram muito estranho quando se lhes pergunta a significação das palavras que empregam, mesmo quando isto é absolutamente necessário. Há poucas pessoas que não se sentiriam ofendidas se lhes perguntássemos o que entendem quando falam da vida. Todavia, a ideia vaga que podem ter dela não é suficiente quando se trata de saber se uma planta que já está formada na semente tem vida, ou um pintinho que está no ovo ainda não chocado, ou então um homem deficiente, sem sentimento nem movimento. E embora as pessoas não queiram parecer tão pouco inteligentes ou tão importunas ao ponto de necessitarem pedir explicação dos termos de que nos servimos, nem críticos tão incômodos ao ponto de repreenderem constantemente os outros pelo uso que fazem das palavras, todavia, quando se trata de uma pesquisa exata, é necessário procurar a explicação. Muitas vezes os sábios de partidos diferentes nos raciocínios que expõem uns contra os outros não fazem outra coisa senão falar linguagens diferentes, pensando a mesma coisa, embora talvez os seus interesses sejam diversos. TEÓFILO - Acredito ter-me explicado suficientemente acerca da noção da vida, que deve sempre ser acompanhada de percepção na alma. De outra forma, será apenas uma aparência, como a vida que os selvagens da América atribuíam aos monstros ou aos relógios, ou que atribuíam às marionetas esses magistrados que as consideravam animadas por demônios, quando quiseram punir como cultor da bruxaria aquele que por primeiro deu esse espetáculo na sua cidade. (§ 23.) FILALETO - Para concluir, as palavras servem: 1) para fazer compreender os nossos pensamentos; 2) para fazê-lo com facilidade; 3) para possibilitar a entrada no conhecimento das coisas. Peca-se contra o primeiro ponto quando não temos a ideia determinada e constante das palavras, nem a temos recebida ou compreendida pelos outros. § 23. Falta-se contra a facilidade quando temos ideias muito complexas, sem ter nomes distintos; frequentemente é culpa das próprias línguas, que não têm nomes; muitas vezes é culpa do homem, que não as conhece, caso em que temos necessidade de grandes perífrases. § 24. Quando as ideias, significadas pelos nomes, não concordam com o que é real, peca-se contra o terceiro ponto. § 26. 1) Aquele que possui os termos sem as ideias é como aquele que tivesse apenas um catálogo de livros. § 27. 2) Aquele que possui ideias muito complexas seria como um homem que possui uma quantidade de livros com folhas destacadas sem títulos, e não poderia dar o livro sem dar as folhas uma após a outra. § 28. 3) Aquele que não é constante no uso dos sinais seria como um comerciante que vendesse coisas diferentes sob o mesmo nome. § 29. 4) Aquele que atribui ideias particulares às palavras recebidas não consegue esclarecer os outros com as luzes que pode ter. § 30. 5) Aquele que tem na cabeça ideias de substâncias que jamais existiram não consegue avançar nos conhecimentos reais. § 33. O primeiro falará em vão da tarântula ou da caridade. O segundo verá animais novos, sem poder torna-los facilmente conhecidos aos outros. O terceiro considerará o corpo ora sinônimo de sólido, ora sinônimo de que é apenas uma extensão; pela frugalidade designará ora a virtude, ora o vício próximo. O quarto designará uma mula com o nome de cavalo, e aquele que todo mundo denomina pródigo, para ele será generoso. O quinto procurará na Tartária, fiando-se da autoridade de Heródoto, uma nação composta de homens que têm um olho só. Quero observar que os quatro primeiros defeitos são comuns aos nomes das substâncias, ao passo que o último é característico das substâncias. TEÓFILO - Vossas observações são muito instrutivas. Acrescentaria apenas, de minha parte, que há ainda algo de quimérico nas ideias que temos dos acidentes ou modos de ser e que, assim, o quinto defeito é ainda comum às substâncias e aos acidentes. O pastor extravagante não era tal somente porque acreditava haver ninfas escondidas nas árvores, mas também porque aguardava sempre aventuras romanescas. § 34. FILALETO - Pensava haver concluído, mas recordo-me do sétimo e último abuso, que é o dos termos figurados ou das alusões. Contudo, sente-se dificuldade em considera-lo abuso, pois aquilo que denominamos espírito e imaginação é melhor recebido que a verdade nua e crua. Isto vai bem nos discursos, onde só se procura agradar, porém no fundo, excetuando-se a ordem e a limpidez, toda a arte da retórica, todas essas aplicações artificiais e figuradas das palavras só servem para insinuar ideias falsas, excitar as paixões e seduzir o julgamento, de maneira que não passam de puras fraudes. Entretanto, é a esta arte falaciosa que se dá o primeiro lugar e as recompensas. É que os homens não se preocupam pela verdade, mas gostam muito de enganar e ser enganados. Isto é verdade a tal ponto, que não duvido de que o que acabo de dizer contra esta arte seja considerado uma extrema ousadia. Pois a eloquência, semelhante ao belo sexo, possui encantos demasiado poderosos para que se possa admitir como lícito opor-se a ela. TEÓFILO - Longe de censurar o vosso zelo pela verdade, considero-o justo. Seria desejável que ele atingisse o seu escopo. Não perco de todo a esperança, pois parece que impugnais a eloquência com as suas próprias armas, e que possuís até uma arma de outra espécie, superior a esta enganosa; como havia uma Vênus Urânia, mãe do divino Amor, ante a qual esta outra Vênus bastarda, mãe de um Amor cego, não se atrevia a comparecer com o seu filho com olhos vendados. Todavia, isto mesmo demonstra que a vossa tese necessita de alguma moderação, e que certos ornamentos da eloquência são como os vasos dos egípcios, dos quais as pessoas podiam servir-se no culto do verdadeiro Deus. Acontece o mesmo que com a pintura e a música, das quais se abusa, e das quais uma representa muitas vezes imaginações grotescas e mesmo prejudiciais, e a outra amolece o coração, e ambas divertem de maneira vã. Todavia, ambas podem ser usadas com utilidade, uma para tornar a verdade clara, a outra para torná-la tocante, efeito que deve ser também o da poesia, que tem algo da retórica e da música. CAPÍTULO XI OS REMÉDIOS QUE SE PODEM APLICAR CONTRA AS IMPERFEIÇÕES E OS ABUSOS DE QUE SE ACABA DE FALAR. § 1. FILALETO - Não é aqui o lugar para aprofundar-se nesta discussão sobre o uso de autêntica eloquência, e muito menos para responder aos vossos gentis cumprimentos, pois devemos pensar em encerrar esta discussão sobre as palavras, procurando os remédios contra as imperfeições que acabamos de anotar. § 2. Seria ridículo tentar a reforma das línguas, querer obrigar os homens a só falarem na medida dos seus conhecimentos. § 3. Todavia, não é demais pretender que os filósofos falem com exatidão, ao tratar-se de uma pesquisa séria acerca da verdade: sem isto, tudo estará cheio de erros, teimosias e discussões vãs. § 8. O primeiro remédio consiste em não empregar nenhuma palavra sem atribuir-lhe uma ideia, ao passo que se usam muitas vezes palavras como instinto, simpatia, antipatia sem dar-lhes sentido algum. TEÓFILO - A regra é boa, mas não sei se os exemplos são convenientes. Ao que parece, todo mundo entende por instinto uma inclinação de um animal em relação ao que lhe convém, sem saber a razão disto; os próprios homens deveriam negligenciar menos esses instintos, que se descobrem ainda neles, embora a sua maneira artificial de viver os tenha quase apagado em sua maioria; o médico de si mesmo o notou bem. A simpatia ou antipatia significam aquilo que, nos corpos destituídos de sentimento, responde ao instinto de se unir ou de se separar, que se encontra nos animais. E, embora não se compreenda a causa dessas inclinações ou tendências, como seria desejável, temos delas uma noção suficiente para discorrer inteligivelmente sobre elas. § 9. FILALETO - O segundo remédio consiste em que as ideias dos nomes dos modos sejam pelo menos determinadas e, § 10, que as ideias dos nomes das substâncias sejam mais conformes ao que existe. Se alguém diz que a justiça é uma conduta conforme a uma lei com respeito ao bem de outrem, esta ideia não é suficientemente determinada, quando não se tem nenhuma ideia distinta sobre aquilo que se denomina lei. TEÓFILO - Poder-se-ia dizer aqui que a lei é um preceito da sabedoria, ou da ciência da felicidade. § 11. FILALETO - O terceiro remédio consiste em empregar termos conforme o uso recebido, na medida em que tal é possível. § 12. O quarto remédio consiste em declarar em que sentido tomamos as palavras, seja que se cunhem termos novos, seja que se empreguem termos velhos em sentidos novos, seja que se acredite que o uso não fixou suficientemente a sua significação. § 13. Entretanto, existe diferença. § 14. As palavras das ideias simples que não podem ser definidas são explicadas por palavras sinônimas, quando são mais conhecidas, ou então mostrando a coisa. É por estes meios que se pode fazer compreender a um camponês o que é a cor de uma folha morta, dizendo-lhe que é a cor das folhas secas que caem no outono. § 15. Os nomes das coisas compostas devem ser explicados pela definição, pois isto é possível. § 16. É por este caminho que a moral é suscetível de demonstração. Tomar-se-á o homem como um ser corpóreo e racional, sem se preocupar pela figura externa, § 17, pois é mediante definições que os assuntos de moral podem ser tratados com clareza. É mais rápido definir a justiça conforme a ideia que temos no espírito que procurar um modelo dela fora de nós, como Aristóteles, e formar a definição com base nisto. § 18. Como a maior parte dos modos compostos não existem juntos em parte alguma, só podemos fixa-los definindo-os, pela enumeração dos elementos dispersos. § 19. Nas substâncias há geralmente algumas qualidades diretivas ou características, que consideramos a ideia mais distintiva da espécie, às quais supomos que as outras ideias que integram a ideia complexa da espécie estão ligadas. É a figura nos vegetais e animais, e a cor nos corpos inanimados, e em alguns são a cor e a figura juntas. Eis por que, § 20, a definição do homem dada por Platão é mais característica do que a de Aristóteles. Ou então, não se deveria fazer morrer as produções monstruosas, § 21, e muitas vezes a vista serve tanto como outro exame; pois pessoas habituadas a examinar o outro muitas vezes distinguem à simples vista o verdadeiro ouro do falso, o ouro puro falsificado. TEÓFILO - Tudo compete indiscutivelmente às definições que podem ir até as ideias primitivas. Um mesmo objeto pode ter várias definições, mas, para saber quais convêm ao mesmo, é necessário apreendê-lo pela razão, demonstrando uma definição pela outra, ou pela experiência, provando que elas vão constantemente juntas. No que concerne à moral, uma parte dela está toda fundamentada em razões, porém existe outra que depende das experiências e se relaciona com os temperamentos. Para conhecer as substâncias, a figura e a cor, isto é, o visível, nos dão as primeiras ideias, pois é por aí que se conhecem as coisas de longe; todavia, são em geral muito provisórias, e, nas coisas que nos importam, procuramos conhecer a substância mais de perto. De resto, admiro-me de que volteis novamente à definição de homem, atribuída a Platão, uma vez que vós mesmo acabais de dizer, § 16, que na moral se deve tomar o homem como um ser corporal e racional, sem preocupar-se pela figura externa. De resto, é verdade que uma grande experiência contribui muito para discernir à vista aquilo que outro só pode descobrir após esforços penosos. Existem médicos de grande experiência, que possuem a vista e a memória muito boas e conhecem frequentemente à primeira vista do enfermo aquilo que outro lhe arrancará trabalhosamente, à força de perguntar e de tomar o pulso. Entretanto, é conveniente juntar todos os indícios que é possível obter. § 22. FILALETO - Reconheço que aquele, a quem um bom ensaiador fizer conhecer todas as qualidades do ouro, terá um conhecimento mais exato do que o que nos pode provir da simples vista. Todavia, se pudéssemos apreender a constituição interna do ouro, a significação da palavra ouro seria determinada com a mesma facilidade que a de triângulo. TEÓFILO - A significação seria determinada, e não haveria nela nada mais de provisório, porém não seria determinada com tanta facilidade. Pois acredito que seria necessária uma distinção algo prolixa para explicar a contextura do ouro, como existem, mesmo na geometria, figuras cuja definição é longa. § 23. FILALETO - Os espíritos separados dos corpos possuem indubitavelmente conhecimentos mais perfeitos do que nós, embora não tenhamos noção alguma sobre a maneira pela qual os possam adquirir. Contudo, poderão ter ideias tão claras sobre a constituição radical dos corpos como as que nós podemos ter de um triângulo. TEÓFILO - Já vos disse que tenho razões para pensar que não há espíritos criados inteiramente separados dos corpos. Todavia, existem sem dúvida seres cujos órgãos e cujo entendimento são incomparavelmente mais perfeitos que os nossos, e que nos ultrapassam em toda sorte de concepções, tanto e mais do que o Sr. Frenicle, ou, então, aquele rapaz sueco de que vos falei ultrapassam o comum dos homens no cálculo dos números, feito por imaginação. § 24. FILALETO - Já observamos que as definições das substâncias que podem servir para explicar os nomes são imperfeitas em relação ao conhecimento das coisas. Pois em geral colocamos o nome em lugar da coisa, e por conseguinte o nome diz mais do que as definições; sendo assim, para bem compreender as substâncias, impõe-se estudar a história natural. TEÓFILO - Vedes, por exemplo, que o termo ouro significa não somente aquilo que a respeito dele conhece quem pronuncia a palavra; por exemplo, um amarelo muito pesado, mas ainda o que ele não conhece, e que outro pode conhecer, isto é, um corpo dotado de uma constituição interna, da qual derivam a cor e o peso, e da qual se originam ainda outras propriedades, que a pessoa reconhece serem melhor conhecidas pelos peritos. § 25. FILALETO - Seria agora de desejar que os peritos nas pesquisas físicas estivessem dispostos a propor as ideias simples, nas quais observam que os indivíduos de cada espécie convergem constantemente. Entretanto, para compor um dicionário desta espécie, que contivesse por assim dizer a história natural, seria necessário um número excessivamente elevado de pessoas, demasiado tempo, demasiado trabalho e demasiada sagacidade, para que se pudesse esperar por tal obra. Seria bom, todavia, acompanhar as palavras com pequenas figuras, com relação às coisas que conhecemos pela forma externa. Tal dicionário serviria muito à posteridade e pouparia muito trabalho aos críticos futuros. Pequenas representações como do aipo (apium), de um cabrito-montês (ibex, espécie de bode selvagem) valeriam mais do que longas descrições desta planta ou deste animal. Assim também, para conhecer o que os latinos entendiam por strigiles e sistrum, tunica e pallium, as representações colocadas na margem valeriam incomparavelmente mais do que os pretensos sinônimos almofaça, címbalo, pálio, veste, manto, que não nos fazem conhecer o que realmente eram. De resto, não me deterei no sétimo remédio contra os abusos das palavras, que consiste em usar constantemente o mesmo termo no mesmo sentido, ou advertir quando se muda o sentido. Pois já falamos suficientemente sobre isto. TEÓFILO - O Rev. Padre Grimaldi, presidente do tribunal de matemática em Pequim, me disse que os chineses possuem dicionários acompanhados de figuras. Existe um pequeno nomenclador, impresso em Nuremberg, no qual existem tais figuras para cada palavra, e as figuras são bastante boas. Tal dicionário universal figurado seria desejável, e não seria tão difícil de elaborar. Quanto à descrição das espécies, é justamente a história natural, e nisto trabalha-se pouco a pouco. Se não tivesse havido as guerras (que perturbaram a Europa desde as primeiras fundações das Sociedades ou Academias Reais) estaríamos longe e poderíamos já estar tirando proveito dos nossos trabalhos. Contudo, os grandes, em sua maioria, não conhecem a importância disto nem sabem de que bens se privam ao descuidarem do avanço dos conhecimentos sólidos. Além disso, em geral são excessivamente perturbados pelos prazeres da paz ou pelas preocupações da guerra para avaliarem as coisas que não os atingem de imediato. Livro IV CAPÍTULO I O CONHECIMENTO EM GERAL. § 1. FILALETO - Até agora falamos das ideias e das palavras que as representam. Passemos agora aos conhecimentos fornecidos pelas ideias, pois os conhecimentos são veiculados exclusivamente pelas ideias. § 2. O conhecimento não é outra coisa que a percepção da conexão e concordância, ou da oposição e discordância que se encontra entre duas das nossas ideias. Quer imaginemos, quer conjeturemos, quer creiamos, é sempre isto. Por este caminho nos damos conta, por exemplo, de que o branco não é preto, de que os ângulos de um triângulo e a sua igualdade com dois ângulos retos têm uma conexão necessária. TEÓFILO - O conhecimento tem ainda um sentido mais geral, de sorte que se encontra também nas ideias ou termos, antes de chegarmos às proposições ou verdades. Pode-se dizer que aquele que tiver visto com atenção mais retratos de plantas e de animais, mais figuras de máquinas, mais descrições ou representações de casas ou de fortalezas, que tiver lido mais romances engenhosos, ouvido mais narrações curiosas, este, digo eu, terá mais conhecimento que outro, mesmo que não houvesse uma só palavra de verdade em tudo o que viu representado ou ouviu. Com efeito, o hábito que tem de representar no espírito muitas concepções ou ideias expressas e atuais o torna mais apto a conceber o que se lhe propõe, e é certo que ele será mais instruído e mais capaz do que outro, que não viu, não leu nem ouviu nada, sob a condição de que nessas histórias e representações não considere verdadeiro o que não o é, e que as suas impressões não o impeçam de discernir o real do imaginário, ou o existente do puramente possível. Eis por que certos mestres de lógica do século da Reforma, que tinham algo do partido dos ramistas, tinham razão em dizer que os tópicos ou os lugares de invenção (argumenta, como os denominavam) servem tanto para explicação ou descrição bem circunstanciada de um tema incomplexo, isto é, de uma coisa ou ideia, quanto para a prova de um tema complexo, isto é, de uma tese, proposição ou verdade. Mesmo uma tese pode ser explicada, para bem conhecer-lhe o sentido e a força, sem que se trate da sua verdade ou prova, como se observa nos sermões ou homilias, que explicam certas passagens da Sagrada Escritura, ou nas repetições ou leituras sobre alguns textos do direito civil ou eclesiástico, cuja verdade é pressuposta. Pode-se até afirmar que existem temas que estão a meio caminho entre uma ideia e uma proposição: são as questões, das quais existem algumas que pedem apenas o sim ou o não; são as mais próximas das proposições. É verdade que se pode dizer que nas descrições (mesmo das coisas puramente ideais) existe uma afirmação tácita da possibilidade. Mas é verdade também que, assim como se pode empreender a explicação e a prova de uma falsidade - o que serve por vezes para melhor refutá-la -, a arte das descrições pode também recair sob o impossível. Acontece aqui o que acontece com o que se encontra nas ficções do Conde de Scandiano continuado pelo Ariosto, e no Amadis de Gaula ou outros romances antigos, nos contos de fadas, que voltaram à moda a alguns anos atrás, nas verdadeiras histórias de Luciano e nas viagens de Cyrano de Bergerac, para nada dizer dos grotescos dos pintores. Sabe-se também que entre os teóricos as fábulas pertencem ao número dos progymnásmata ou exercitações preliminares. Tomando-se, porém, o conhecimento num sentido mais restrito, isto é, como conhecimento da verdade, como fazeis aqui, digo ser verdadeiro que a verdade está sempre fundada na concordância ou discordância das ideias, porém não é em geral verdade que o nosso conhecimento da verdade constitui uma percepção desta concordância ou discordância. Pois, quando só conhecemos a verdade empiricamente, isto é, por tê-la experimentado, sem conhecer a conexão das coisas e a razão existente naquilo que experimentamos, não temos percepção desta concordância ou discordância, a não ser que se diga que a sentimos confusamente, sem dar-nos conta. Entretanto, os vossos exemplos indicam, ao que parece, que exigis sempre um conhecimento, no qual nos damos conta da conexão ou da oposição, e com isto não posso concordar. Além disso, pode-se tratar um tema complexo não somente procurando as provas da verdade, mas também explicando e esclarecendo-o de outra forma, segundo os lugares tópicos, como já observei. Finalmente, tenho outra observação a fazer acerca da nossa definição: é que ela parece servir apenas para as verdades categóricas, onde existem duas ideias, o sujeito e o predicado; contudo, existe ainda um conhecimento das verdades hipotéticas ou que podem ser reduzidas a isto (como as disjuntivas e outras), onde existe ligação entre a proposição antecedente e a proposição consequente. Logo, podem entrar em jogo mais de duas ideias. § 3. FILALETO - [Limitemo-nos aqui ao conhecimento da verdade e apliquemos ainda à ligação das proposições o que se dirá da ligação das ideias, para compreender nisto as categóricas e as hipotéticas juntas.] Ora, creio que se pode reduzir esta concordância ou discordância a quatro espécies, que são: 1) identidade ou diversidade; 2) relação; 3) coexistência ou conexão necessária; 4) existência real. § 4. Com efeito, o espírito se dá conta de imediato que uma ideia não é a outra, que o branco não é o preto, § 5, pois que percebe a sua relação comparando-os juntamente; por exemplo, que dois triângulos cujas bases são iguais, e que se encontram entre duas paralelas, são iguais. § 6. Segundo isto existe coexistência (ou antes conexão), como a fixidez acompanha sempre as outras ideias do ouro. § 7. Finalmente, há existência fora do espírito, como quando dizemos: Deus é. TEÓFILO - Acredito que se possa afirmar que a ligação não é outra coisa senão a relação, tomada de modo geral. Ora, observei acima que toda relação é ou de comparação ou de concurso. A relação de comparação dá a diversidade e a identidade, ou em tudo ou em alguma coisa; é isto que faz o mesmo ou o diverso, o semelhante ou o dessemelhante. O concurso encerra o que vós denominais coexistência, isto é, conexão de existência. Quando, porém, se diz que uma coisa existe, ou que tem a existência real, esta mesma existência constitui o predicado, ou seja, ela tem uma noção ligada à ideia de que se trata, havendo conexão entre estas duas noções. Pode-se também conceber a existência do objeto de uma ideia como o concurso deste objeto comigo. Assim, acredito que se possa dizer que só existe comparação ou concurso; todavia, a comparação, que marca a identidade ou diversidade, e o concurso da coisa comigo são as relações que merecem ser distinguidas entre as outras. Poder-se-ia talvez realizar pesquisas mais exatas e mais profundas, mas contento-me aqui com observações. § 8. FILALETO - Existe um conhecimento atual, que constitui a percepção presente da relação das ideias, e existe também um conhecimento habitual, quando o espírito percebeu com tal evidência a concordância ou discordância das ideias, e a colocou de tal forma na sua memória, que todas as vezes que reflete sobre a proposição, se assegura imediatamente da verdade que ela contém, sem ter a mínima dúvida. Pois, não sendo capaz de pensar claramente e distintamente a não ser sobre uma só coisa ao mesmo tempo, se as pessoas só conhecessem o objeto atual de seus pensamentos seriam todos muitos ignorantes; e aquele que mais conhecesse só conheceria uma verdade. TEÓFILO - É verdade que a nossa ciência, mesmo a mais demonstrativa, pelo fato de devermos com muita frequência adquiri-la através de uma longa cadeia de consequências, deve envolver a recordação de uma demonstração passada, pois não se vê mais distintamente quando a conclusão está feita; de outra forma, seria repetir constantemente esta demonstração. E, mesmo enquanto ela dura, não seria possível compreendê-la inteira ao mesmo tempo, pois todas as suas partes não podem estar presentes ao mesmo tempo em nosso espírito. Assim, recolocando sempre diante dos olhos a parte que precede não chegaríamos nunca até a última, que encerra a conclusão. Isto faz também com que, sem a escrita, seja difícil estabelecer bem as ciências, uma vez que a memória não é suficientemente segura. Ao contrário, tendo posto por escrito uma longa demonstração, quais são, por exemplo, as de Apolônio, e tendo percorrido todas as suas partes, como se examinasse uma cadeia, anel por anel, as pessoas podem certificar-se dos seus raciocínios: a isto servem ainda as provas, e o sucesso final justifica tudo. Entretanto, por aí se vê que toda crença, consistindo na memória da vista passada, das provas ou razões, não está no nosso poder nem no nosso livre-arbítrio de crer ou de não crer, pois a memória não é algo que depende da nossa vontade. § 9. FILALETO - É verdade que o nosso conhecimento habitual é de duas espécies ou graus. Por vezes as verdades, colocadas como que de reserva na memória, não se apresentam ao espírito antes que vejamos a relação existente entre as ideias que as compõem; outras vezes, ao contrário, o espírito se contenta em lembrar-se da convicção, sem conservar as provas e mesmo, às vezes, sem poder recordá-las quando gostaria. Poder-se-ia imaginar que isto é mais crer em sua memória do que conhecer realmente a verdade em questão, e em outros tempos me parecia que é um meio-termo entre a opinião e o conhecimento, e que é uma garantia que ultrapassa a simples crença fundada sobre o testemunho de outrem. Hoje, porém, após ter refletido melhor, acredito que este conhecimento encerra uma certeza perfeita. Recordo-me, isto é, conheço (visto que a recordação não é outra coisa que a renovação de uma coisa passada), que uma vez tive certeza da verdade desta proposição, isto é, que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos. Ora, a imutabilidade das mesmas relações entre as mesmas coisas imutáveis é presentemente a ideia mediata que me faz ver que, se uma vez foram iguais, sê-lo-ão ainda agora. É com base neste fundamento que na matemática as demonstrações particulares fornecem conhecimentos gerais; se assim não fora, o conhecimento de um geômetra não se estenderia além desta figura particular que ele traçara para a demonstração. TEÓFILO - A ideia media ta de que falais supõe a fidelidade da nossa recordação. Entretanto, acontece por vezes que a nossa recordação nos engana, e que não tomamos todas as precauções necessárias, embora acreditemos que sim. Isto se observa claramente nas revisões das contas. Por vezes existem revisores de ofício, como nas nossas minas do Harz, e para tornar os recebedores das minas particulares mais atentos, instituiu-se uma multa pecuniária para cada erro de cálculo, e não obstante se cometem erros. Todavia, quanto mais cuidado se tem, tanto mais confiança se pode ter nos raciocínios passados. Projetei uma forma de assentar as contas, de modo que aquele que junta as somas das colunas deixa no papel os traços dos passos progressivos do seu raciocínio, de maneira que não dê passos inúteis. Pode sempre rever, corrigindo as últimas faltas sem interferir nas primeiras: desta forma a revisão, mesmo feita por outro, quase não custa trabalho, visto que pode examinar os mesmos passos com um relance de olhos. Além dos meios de verificar ainda as contas de cada artigo, por uma espécie de prova muito fácil, sem que essas observações aumentem consideravelmente o trabalho de contagem. Tudo isto nos faz compreender bem que os homens podem apresentar demonstrações rigorosas no papel, e apresentam, de fato, uma infinidade. Contudo, sem se recordar de ter usado de rigor perfeito, não se pode ter esta certeza no espírito. Ora, este rigor consiste num regulamento cuja observância em cada parte constitui uma garantia com respeito ao todo; como no exame da corrente por anéis, onde, inspecionando cada um para verificar se está firme, e, tomando medidas com a mão para não saltar nenhum, podemos ter garantia de que a corrente é boa. Através deste meio temos toda a certeza de que as coisas humanas são suscetíveis. Entretanto, não concordo que na matemática as demonstrações particulares sobre a figura que se traça forneçam esta certeza geral, como vós pareceis afirmar. Pois cumpre saber que não são as figuras que fornecem a prova entre os geômetras, ainda que o estilo ectéico o faça crer. A força da demonstração independe da figura traçada, que só existe para facilitar a inteligência do que se quer dizer e fixar a atenção. São as proposições universais, ou seja, as definições, os axiomas, e os teoremas já demonstrados que perfazem o raciocínio, e o sustentariam em caso de faltar a figura. Eis por que um sábio geômetra, como Scheubelius, deu as figuras de Euclides sem as suas letras que as possam ligar com a demonstração que lhes junta; e outro, Herlinus, reduziu as próprias demonstrações a silogismos e prossilogismos. CAPÍTULO II OS GRAUS DO NOSSO CONHECIMENTO. § 1. FILALETO - O conhecimento é, portanto, intuitivo, quando o espírito percebe a concordância de duas ideias imediatamente, em virtude delas mesmas, sem intervenção de outras. Neste caso o espírito não tem nenhuma dificuldade em demonstrar e examinar a verdade. Da mesma forma que o olho enxerga a luz, o espírito vê que o branco não é o preto, que um círculo não é um triângulo, que três são dois mais um. Este tipo de conhecimento é o mais claro e o mais certo de que a fraqueza humana seja capaz; ele age de maneira irresistível, sem permitir ao espírito hesitar. Equivale a conhecer que a ideia está no espírito tal qual a percebemos. Se alguém exigir uma certeza maior, não sabe o que pede. TEÓFILO - As verdades primitivas que se conhecem por intuição podem ser de duas espécies, como as derivativas. Podem ser verdades de razão ou verdades de fato. As verdades de razão são necessárias, enquanto as de fato são contingentes. As verdades primitivas de razão são aquelas a que dou o nome geral de idênticas, pois parecem não fazer outra coisa que repetir a mesma coisa, sem nos ensinar nada de novo. Podem ser afirmativas ou negativas. As afirmativas são como as que seguem: Cada coisa é aquilo que é, e em quantos exemplos se quiser, A é A, B é B. Eu serei o que serei. Escrevi o que escrevi. E nada, tanto em verso como em prosa, é não ser nada ou pouca coisa. O retângulo equilátero é um retângulo. O animal racional é sempre um animal. E nas hipotéticas: Se a figura regular de quatro lados é um retângulo equilátero, esta figura é um retângulo. As copulativas, as disjuntivas e outras proposições são ainda suscetíveis deste identicismo, e conto entre as afirmativas: Não-A é não-A. E esta hipotética: Se A é não-B, segue-se que A é não-B. Analogamente, se não-A é BC, segue-se que não-A é BC. Se uma figura que não possui ângulo obtuso pode ser um triângulo regular, uma figura que não possui ângulo obtuso pode ser regular. Passo agora às proposições idênticas negativas que são ou do princípio de contradição ou disparates. O princípio de contradição é em geral: Uma proposição é ou verdadeira ou falsa. Isto encerra duas enunciações verdadeiras, ou seja: a primeira, que o verdadeiro e o falso não são compatíveis na mesma proposição, ou então, que uma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa; a segunda, que o oposto ou a negação do verdadeiro e do falso não são compatíveis, ou que não há meio-termo entre o verdadeiro e o falso, ou então: é impossível que uma proposição não seja nem verdadeira nem falsa. Ora, tudo isto é ainda verdadeiro em todas as proposições imagináveis em particular, como esta: O que é A não pode ser não-A. Analogamente, AB não pode ser não-A. Um retângulo equilátero não pode ser não-retângulo. Igualmente, é verdadeiro que todo homem é um animal, consequentemente é falso que possa existir algum homem que não seja animal. Podemos variar essas enunciações de muitas formas, aplicando-as às copulativas, disjuntivas e outras. Quanto aos disparates, são as proposições que dizem que o objeto de uma ideia não é o objeto de outra ideia, como por exemplo: que o calor não é a mesma coisa que a cor, ou então: o homem e o animal não são a mesma coisa, embora todo homem seja animal. Tudo isso é certo independentemente de qualquer prova ou da redução à oposição, ou ao princípio de contradição, quando essas ideias são suficientemente entendidas para não necessitarem aqui de análise. De outra forma, estamos sujeitos a equivocar-nos, pois ao dizermos: O triângulo e o trilátero não são a mesma coisa, enganar-nos-íamos, pois, considerando bem, vê-se que os três lados e os três ângulos vão sempre juntos. Ao dizermos: O retângulo quadrilátero e o retângulo não constituem a mesma coisa, ainda então nos enganaríamos. Pois a única figura que pode ter todos os ângulos retos é a figura de quatro lados. Entretanto, pode-se sempre dizer, em abstrato, que o triângulo não é o trilátero, ou que as razões formais do triângulo e do trilátero não são as mesmas, como dizem os filósofos. São relações diferentes de uma e mesma coisa. Possivelmente alguém, após ter ouvido com paciência o que acabamos de dizer até agora, a perderá finalmente, e dirá que nos divertimos com enunciações frívolas, e que todas as verdades idênticas de nada servem. Contudo, faz-se este julgamento por não haver meditado suficientemente sobre estes assuntos. As consequências de lógica (por exemplo) se demonstram pelos princípios idênticos; e os geômetras têm necessidade do princípio de contradição nas suas demonstrações, que reduzem ao impossível. Limitemo-nos aqui a mostrar a Utilidade das idênticas nas demonstrações das consequências do raciocínio. Digo que só o princípio de contradição basta para demonstrar a segunda e a terceira figura dos silogismos pela primeira. Por exemplo, pode-se concluir na primeira figura, em Barbara: Todo B é C, Todo A é B, Logo, Todo A é C. Suponhamos que a conclusão seja falsa (ou que seja verdadeiro que algum A não é C), em consequência uma ou outra das premissas também o será. Suponhamos que a segunda é verdadeira, caso em que necessariamente será falsa a primeira, que afirma que todo B é C. Logo, a sua contraditória será verdadeira, ou seja: algum B não será C. Isto será a conclusão de um argumento novo, tirado da falsidade da conclusão e da verdade de uma das premissas do precedente. Eis este argumento novo: Algum A não é C. Isto se opõe à conclusão precedente, suposta falsa. Todo A é B. E à premissa precedente, suposta verdadeira. Logo, algum B não é C. É a conclusão presente verdadeira, oposta à premissa precedente falsa. Este argumento está no modo Disamis da terceira figura, que se demonstra assim manifestamente e com um relance de olhos do modo Barbara da primeira figura, empregado apenas o princípio de contradição. Observei em minha juventude, quando investigava estas coisas, que todos os modos da segunda e da terceira figura podem ser tirados da primeira só por este método, supondo que o modo da primeira é bom, e por conseguinte que, sendo a conclusão falsa, ou a sua contraditória sendo considerada verdadeira, e uma das premissas sendo considerada verdadeira também, é necessário que a contraditória da outra premissa seja verdadeira. É verdade que nas escolas lógicas se gosta de mais de usar as conversões para tirar as figuras menos principais da primeira, que é a principal, visto que isto parece mais fácil para os alunos. Todavia, para aqueles que procuram razões demonstrativas, onde se deve empregar o menor número possível de suposições, não se demonstrará pela suposição da conversão o que se pode demonstrar só pelo princípio primitivo, que é o da contradição e que não supõe nada. Fiz até esta observação, que parece notável: só as figuras menos principais, que se denominam diretas, a saber, a segunda e a terceira, se podem demonstrar pelo princípio de contradição exclusivamente: mas a figura menos principal indireta, que é a quarta, e cuja invenção os árabes atribuem a Caleno, embora nada encontremos disso nas obras que restam dele, nem nos autores gregos, a quarta, digo, apresenta a desvantagem de não poder ser tirada da primeira ou principal só por este método, e é ainda necessário empregar outra suposição, isto é, as conversões, de sorte que ela é mais longínqua de um grau do que a segunda e a terceira, as quais estão à altura e igualmente longínquas da primeira; ao passo que a quarta tem necessidade ainda da segunda e da terceira para ser demonstrada. Pois as próprias conversões de que ela tem necessidade se demonstram pela figura segunda ou terceira, demonstráveis independentemente das conversões, como acabo de mostrar. Foi Pierre de la Rarnée? que já fez esta observação acerca da demonstrabilidade da conversão por essas figuras; e (se não me equivoco) ele objetou o círculo aos mestres de lógica que se servem da conversão para demonstrar essas figuras, embora não fosse tanto o círculo que era necessário objetar-lhes (pois não se serviam dessas figuras para justificar as conversões) mas o hysteron próteron ou o inverso; visto que as conversões mereciam ser demonstradas por essas figuras, antes que essas figuras pelas conversões. Contudo, já que esta demonstração das conversões nos faz ver o uso das idênticas afirmativas, que muitos consideram absolutamente frívolas, será tanto mais oportuno colocá-la aqui. Só quero falar das conversões sem contra posição, que me bastam aqui, e que são simples ou por acidente, como se denominam. As conversões simples são de duas espécies: a da universal negativa, como: Nenhum quadrado é obtusângulo, logo nenhum obtusângulo é quadrado; e a da particular afirmativa, como: Algum triângulo é obtusângulo, logo algum obtusângulo é um triângulo. Entretanto, a conversão por acidente, como se denomina, diz respeito à universal afirmativa, como: Todo quadrado é retângulo, logo algum retângulo é quadrado. Entende-se sempre aqui por retângulo uma figura cujos ângulos são todos retos, sendo que por quadrado entende-se um quadrilátero regular. Agora trata-se de demonstrar estas três espécies de conversão, que são: (1) Nenhum A é B, logo nenhum B é A (2) Algum A é B, logo algum B é A (3) Todo A é B, logo algum B é A. Demonstração da primeira conversão em Cesare, que é da segunda figura: Nenhum A é B Todo B é B Logo, nenhum B é A. Demonstração da segunda conversão em Datisi, que é da terceira figura: Todo A é A Algum A é B Logo, algum B é A. Demonstração da terceira conversão em Darapti, que é a terceira figura: Todo A é A Todo A é B Logo, algum B é A. Isto faz ver que as proposições idênticas mais puras, e que parecem as mais inúteis, são de uma utilidade considerável no abstrato e geral, e isto pode ensinar-nos que não devemos desprezar verdade alguma. Com respeito a esta proposição, que três equivale a dois mais um, que alegais ainda como exemplo dos conhecimentos intuitivos, dir-vos-ei que é apenas a definição do termo três, pois as definições mais simples dos números se formam desta maneira: Dois são um mais um, Três são dois mais um, Quatro são três mais um e assim por diante. É verdade que ali existe uma enunciação escondida, que já observei, isto é, que essas ideias são possíveis: e isto se conhece aqui intuitivamente, de modo que se pode dizer que um conhecimento intuitivo está compreendido nas definições quando a sua possibilidade aparece à primeira vista. Desta maneira, todas as definições adequadas contêm verdades primitivas de razão, e por conseguinte conhecimentos intuitivos. Enfim, pode-se dizer em geral que todas as verdades primitivas de razão são imediatas de uma imediação de ideias. No que concerne às verdades primitivas de fato, são as experiências imediatas internas de uma imediação de sentimento. É aqui que tem lugar a primeira verdade dos Cartesianos ou de Santo Agostinho: Penso, logo sou, isto é: Sou uma coisa que pensa. Todavia, cumpre saber que, assim como as idênticas são gerais ou particulares, e umas são tão claras como as outras - pois é tão claro dizer que A é A, como dizer que uma coisa é aquilo que é - o mesmo acontece com as primeiras verdades de fato. Pois não somente para mim é claro imediatamente que eu penso, mas é igualmente claro que tenho pensamentos diferentes, que ora penso em A, e ora penso em B etc. Assim, o princípio cartesiano é bom, mas não é o único da sua espécie. Vê-se por aí que todas as verdades primitivas de razão ou de fato têm isto em comum, que não é possível demonstrá-las por alguma coisa mais certa. § 2. FILALETO - Aprecio muito que leveis mais longe o que eu havia apenas tocado acerca dos conhecimentos intuitivos. Ora, o conhecimento demonstrativo é apenas um encadeamento dos conhecimentos intuitivos em todas as conexões das ideias mediatas. Pois muitas vezes o espírito não pode juntar, comparar ou aplicar imediatamente as ideias uma à outra, o que obriga a servir-se de outras ideias intermédias (uma ou mais) para descobrir a concordância ou a discordância que se procura, e é isto que se denomina raciocinar. Como em demonstrando que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos, encontram-se alguns outros ângulos que se veem iguais tanto aos três ângulos do triângulo como a dois retos. § 3. Essas ideias que fazemos intervir se denominam provas, e a disposição do espírito para encontrá-las denomina-se a sagacidade. § 4. Mesmo quando as encontramos, não é sem trabalho e sem atenção, nem por uma só vista passageira, que se pode adquirir este conhecimento; pois é preciso engajar-se numa progressão de ideias, feita pouco a pouco e em graus sucessivos, § 5, e existe dúvida antes da demonstração. § 6. A demonstração é menos clara que a intuitiva, como a imagem refletida por vários espelhos de um a outro se enfraquece sempre mais em cada reflexão, e não é mais tão reconhecível, sobretudo a olhos fracos. Acontece o mesmo com um conhecimento produzido por uma longa sequência de provas. § 7. E embora cada passo que a razão faz ao demonstrar seja um conhecimento intuitivo ou de simples vista, não obstante, visto que nesta longa sequência de provas a memória não conserva tão exatamente esta conexão de ideias, os homens muitas vezes consideram coisas falsas como demonstrações. TEÓFILO - Além da sagacidade natural ou adquirida por exercício, existe uma arte de encontrar as ideias intermediárias (o medium), esta arte é a análise. Ora, convém considerar aqui que se trata tanto de encontrar a verdade ou a falsidade de uma proposição dada, o que não é outra coisa senão responder à questão An (será que?), isto é, se isto é ou não é. Por vezes trata-se de responder a uma questão mais difícil (caeteris paribust) na qual se pergunta, por exemplo: por quem e como? e neste caso existe mais coisa a suprir. São somente estas questões que deixam uma parte da proposição em branco, que os matemáticos denominam problemas. Como quando pedimos que se encontre um espelho que junte todos os raios do sol num ponto, isto é, pede-se a figura dele, ou então, como é feito. Quanto às primeiras questões, onde se trata exclusivamente do verdadeiro e do falso, e onde nada existe a suprir no sujeito ou no predicado, existe menos invenção, contudo algo dela existe, sendo que só o julgamento não é suficiente. É verdade que um homem de juízo, isto é, que é capaz de atenção e de reserva, e que tem o lazer, a paciência e a liberdade de espírito necessária, pode compreender a mais difícil demonstração, se ela for devidamente proposta. Todavia, o homem mais judicioso do mundo, sem outra ajuda, não será sempre capaz de encontrar esta demonstração. Assim, existe invenção também nisto: e entre os geômetras havia mais antigamente do que hoje em dia. Com efeito, quando a análise era menos cultivada, necessitava-se de mais sagacidade para chegar a elas, e é por isso que ainda alguns geômetras da velha geração, ou outros que ainda não têm abertura suficiente para os novos métodos, acreditam obrar maravilhas quando encontram a demonstração de algum teorema, que outros inventaram. Contudo, os que são versados na arte da invenção sabem quando isto é apreciável ou não; por exemplo, se alguém publica a quadratura de um espaço compreendido entre uma linha curva e uma reta, que sai bem em todos os seus segmentos e que denomino geral, está sempre em nosso poder, segundo os nossos métodos, encontrar a sua demonstração, desde que se queira assumir o trabalho. Porém existem quadraturas particulares de certas porções, onde a coisa poderá ser tão complexa que não estará sempre in potestate até aqui desenvolvê-la. Acontece também que a indução nos apresente verdades nos números e nas figuras, para os quais ainda não se descobriu a razão geral. Pois falta muito para termos chegado à perfeição da análise na geometria e nos números, como muitos imaginaram, fiando-se das fanfarronadas de alguns homens, de resto excelentes, mas exageradamente prontos ou ambiciosos. Todavia, é bem mais difícil encontrar verdades importantes, e mais ainda encontrar os meios para fazer o que se procura, do que encontrar a demonstração das verdades que foram descobertas por outro. Chega-se muitas vezes a belas verdades pela síntese, indo do simples ao composto; mas, quando se trata justamente de encontrar o meio de realizar o que nos propomos, a síntese em geral não é suficiente, e muitas vezes seria o mesmo que beber o mar, fazer todas as combinações exigidas, embora muitas vezes possamos socorrer-nos do método das exclusões, que elimina uma boa parte das combinações inúteis, e muitas vezes a natureza não admite outros métodos. Todavia, não possuímos sempre os meios para bem seguir esta. Compete, portanto, à análise fornecer-nos um fio neste labirinto, quando isto é possível, pois existem casos em que a própria natureza da questão exige que tateemos em toda parte, uma vez que os atalhos nem sempre são possíveis. § 8. FILALETO - Já que, ao demonstrar, supomos sempre conhecimentos intuitivos, isto, no meu entender, deu ocasião a este axioma, que todo raciocínio vem das coisas já conhecidas e já concordadas (ex praecognitis et praeconcessis). Todavia, teremos ocasião de falar da falsidade encerrada neste axioma, quando tratarmos das máximas que injustamente se tomam como fundamentos dos nossos raciocínios. TEÓFILO - Estaria curioso por saber que falsidade encontrais num axioma que parece tão razoável. Se fosse necessário sempre reduzir tudo aos conhecimentos intuitivos, as demonstrações seriam muitas vezes de uma prolixidade insuportável. Eis por que os matemáticos tiveram a habilidade de dividir as dificuldades, e de demonstrar à parte proposições intervenientes. E ainda existe arte nisto; pois, como as verdades intermédias (que se denominam lemas) podem ser designadas de diversos modos, é bom, para auxiliar a compreensão e a memória, escolher as que abreviam muito e que parecem memoráveis e dignas por si mesmas de serem demonstradas. Existe, porém, outro obstáculo, isto é, que não é fácil demonstrar todos os axiomas, e reduzir inteiramente as demonstrações aos conhecimentos intuitivos. E, se tivéssemos querido esperar por isto, talvez não tivéssemos ainda a ciência da geometria. Disto, porém, já tivemos ocasião de falar em nossas primeiras conversações, e teremos ocasião de falar mais do assunto. § 9. FILALETO - Retomaremos a isso em breve. No momento, observarei ainda o que já toquei mais de uma vez, a saber, uma opinião comum, segundo a qual só as ciências matemáticas são capazes de oferecer uma certeza demonstrativa. Ora, como a concordância e a discordância que podem ser conhecidas intuitivamente não constituem um privilégio ligado exclusivamente às ideias dos números e das figuras, é talvez por falta de aplicação de nossa parte que só a matemática chegou a apresentar demonstrações. § 10. Várias razões concorreram para tanto. As ciências matemáticas têm uma utilidade muito geral, reconhecendo-se com facilidade a menor diferença. § 11. Essas outras ideias simples, que são aparências ou situações produzidas em nós, não possuem nenhuma medida exata de seus diferentes graus. § 12. Quando, porém, a diferença dessas qualidades visíveis, por exemplo, é suficientemente grande para excitar no espírito ideias claramente distinguidas, como as do azul e do vermelho, elas são tão capazes de demonstração como aquelas do número e da extensão. TEÓFILO - [Existem exemplos bem consideráveis de demonstrações fora da matemática, podendo se dizer que Aristóteles já indicou algumas em seus primeiros analíticos. Com efeito, a lógica é tão suscetível de demonstrações como a geometria, podendo-se afirmar que a lógica dos geômetras, ou as maneiras de argumentar que Euclides explicou e estabeleceu ao falar das proposições, constitui uma extensão ou promoção particular da lógica geral. Arquimedes é o primeiro - do qual possuímos as obras - que tenha exercido a arte de demonstrar numa ocasião na qual entra o físico, como fez no seu livro Sobre o Equilíbrio. Além disso, pode-se também dizer que os jurisconsultos têm várias boas demonstrações, sobretudo os antigos jurisconsultos romanos, cujos fragmentos nos foram conservados nas Pandectas. Concordo inteiramente com a opinião de Lorenzo Valla que não pode admirar suficientemente esses autores, entre outras coisas pelo fato de falarem todos de maneira tão justa e tão límpida, e por raciocinarem de uma forma que se aproxima muito da demonstrativa, e por vezes é inteiramente demonstrativa. Igualmente, não conheço nenhuma ciência, afora a do direito e a das armas, onde os romanos tenham acrescentado algo de considerável ao que haviam recebido dos gregos. Tu regere imperio populos, Romane, memento, Hae tibi erunt artes: pacique imponere morem, Parcere subiectis, et debellare superbos. Esta maneira precisa de explicar-se fez com que todos esses jurisconsultos das Pandectas, embora por vezes muito distantes uns dos outros no tempo, pareçam ser todos um só autor, e seria difícil distinguir um do outro, se os seus escritos não tivessem à testa os seus respectivos nomes; como aliás não é fácil distinguir Euclides, Arquimedes e Apolônio ao ler as suas demonstrações sobre matérias que foram tratadas por vários deles. Impõe-se reconhecer que os gregos raciocinaram com toda a exatidão possível na matemática, e deixaram ao gênero humano os padrões da arte de demonstrar; pois, se os babilônios e os egípcios tiveram uma geometria um pouco mais que empírica, pelo menos nada mais nos resta dela; todavia, é impressionante que os próprios gregos decaíram tanto, desde que se distanciaram o mínimo dos números e das figuras, para entrarem na filosofia. Com efeito, é estranho que não se veja sombra de demonstração em Platão e em Aristóteles (exceto os seus Analíticos Primeiros) e em todos os outros filósofos antigos. Prodo era um bom geômetra, porém parece outro homem quando fala de filosofia. O que fez com que seja mais fácil raciocinar de maneira demonstrativa na matemática, é em boa parte porque a experiência pode, neste caso, garantir o raciocínio a qualquer momento, como acontece também nas figuras dos silogismos. No domínio da metafísica e da moral, este paralelismo das razões e das experiências deixa de existir, sendo que na física as experiências exigem trabalho e despesas. Ora, os homens negligenciaram a sua atenção, e consequentemente se desencaminharam, quando perderam este guia fiel da experiência, que os ajudava e sustentava em sua demarche, como faz essa pequena máquina rolante que impede as crianças de caírem quando andam. Havia algum sucedâneo, mas disso não se deram e continuam não se dando conta suficientemente. Falarei disto no devido lugar. De resto, o azul e o vermelho não são capazes de fornecer matéria a demonstrações pelas ideias que deles possuímos, visto que estas ideias são confusas. Tampouco essas cores fornecem matéria ao raciocínio senão na medida em que, pela experiência, as encontramos acompanhadas de algumas ideias distintas, mas onde a conexão com as suas próprias ideias não aparece.] § 14. FILALETO - Além da intuição e da demonstração, que constituem os dois graus do nosso conhecimento, todo o resto é fé ou opinião, e não conhecimento, pelo menos com respeito a todas as verdades gerais. Todavia, o espírito possui ainda outra percepção, que diz respeito à existência particular dos seres finitos fora de nós: é o conhecimento sensitivo. TEÓFILO - [A opinião fundada no provável talvez também mereça o nome de conhecimento; caso contrário, quase todos os conhecimentos históricos, e muitos outros, cairão. Entretanto, sem querer discutir sobre palavras, considero que a pesquisa dos graus de probabilidade seria muito importante e nos falta ainda, sendo este um grande defeito das nossas lógicas. Pois, quando não se pode absolutamente decidir a questão, poder-se-ia sempre determinar o grau de probabilidade ex datis e por conseguinte se pode julgar razoavelmente qual parte é a mais evidente. Quando os nossos moralistas (entendo os mais sábios, como o Superior Geral moderno dos jesuítas) juntam o mais seguro com o mais provável, e preferem até o seguro ao provável, na realidade não se afastam do mais provável, visto que a questão da segurança é aqui a da pouca probabilidade de um mal a temer. A falta dos moralistas, negligentes neste ponto, foi, em boa parte, o terem tido uma noção por demais limitada e insuficiente do provável, noção que confundiram com os endoxos ou opinável de Aristóteles. Com efeito, Aristóteles, em seus Tópicos, quis apenas adaptar-se às opiniões dos outros, como faziam os oradores e os sofistas. Endoxos é aquilo que é aceito pelo maior número ou pelos mais abalizados: ele fez mal em restringir os seus tópicos a isso; foi o que fez com que ele só aceitasse máximas geralmente aceitas, a maioria delas vaga, como se só se quisesse raciocinar mediante quodlibets ou provérbios. Ora, o provável é mais extenso: é preciso deduzi-lo da natureza das coisas; por outra parte, a opinião de pessoas de peso é uma das coisas que podem contribuir para tornar uma opinião provável, mas não é só nisto que consiste a verossimilhança. Quando Copérnico estava quase sozinho na defesa da sua opinião, esta era sempre incomparavelmente mais provável que a de todo o resto do gênero humano. Ora, não sei se o estabelecimento da arte de apreciar as probabilidades não seria mais útil que uma boa parte das nossas ciências demonstrativas, sendo que pensei nisto mais de uma vez.] FILALETO - O conhecimento sensitivo, que estabelece a existência dos seres particulares fora de nós, vai além da simples probabilidade, porém não encerra toda a certeza dos dois graus de conhecimento de que acabamos de falar. Que a ideia que recebemos de um objeto externo esteja em nosso espírito, nada mais certo do que isto, sendo um conhecimento intuitivo. Entretanto, resta saber se daí podemos inferir com certeza a existência de alguma coisa fora de nós que corresponda a esta ideia, visto que tal é questionado por certas pessoas, pois os homens podem possuir tais ideias no seu espírito, sem que nada disto exista na realidade. Quanto a mim, creio haver um grau de evidência que nos eleva acima da dúvida. Estamos invencivelmente convencidos de que há uma grande diferença entre as percepções que se têm quando de dia se olha o sol e quando de noite se pensa neste astro; igualmente, a ideia que é renovada com o auxílio da memória é muito diferente daquela que nos vem atualmente por intermédio dos sentidos. Alguém dirá que um sonho pode produzir o mesmo efeito; respondo, antes de tudo, que não importa muito que eu elimine esta dúvida, pois que se tudo não passa de sonho, os raciocínios são inúteis, a verdade e o conhecimento não são absolutamente nada. Em segundo lugar, reconhecer-se-á, a meu ver, a diferença que existe entre sonhar que estamos num fogo, e estar atualmente nele. E, se a pessoa persiste em parecer cética, dir-lhe-ei que basta que achemos com certeza que o prazer ou a dor seguem a aplicação de certos objetos sobre nós, verdadeiros ou imaginados, e que tal certeza é tão grande como a nossa felicidade ou a nossa miséria, duas coisas além das quais não temos interesse algum. Assim sendo, acredito que podemos enumerar três espécies de conhecimento: o intuitivo, o demonstrativo e o sensitivo. TEÓFILO - [Creio que tendes razão. Penso até que a estas espécies de certeza ou ao conhecimento certo poderíeis acrescentar o conhecimento do provável. Assim sendo, haverá duas espécies de conhecimento, como existem duas espécies de provas, das quais umas terminam na certeza, e outras na probabilidade. Vamos, porém, a esta queixa que os céticos movem contra os dogmáticos, acerca da existência das coisas fora de nós. Já tocamos no assunto, mas necessitamos voltar a ele. Discuti muito antigamente sobre isto, oralmente e por escrito, com o Padre Foucher, cônego de Dijon, homem sábio e sutil, mas excessivamente convencido dos seus acadêmicos, cuja seita ele gostaria de ter ressuscitado, assim como Gassendi tinha ressuscitado a de Epicuro. A sua crítica da Pesquisa da Verdade e os outros pequenos tratados que publicou a seguir fizeram conhecer o seu autor bastante bem. Ele publicou também no Jornal dos Sábios objeções contra o meu sistema da harmonia preestabelecida, quando o publiquei após tê-lo digerido durante vários anos; todavia, a morte o impediu de replicar à minha resposta. O Padre Foucher pregava sempre que era necessário precaver-se dos preconceitos e cultivar uma grande exatidão. Todavia, além de ele mesmo não se obrigar a fazer o que aconselhava - e nisto era escusável -, parece-me que não olhava a se outro o fazia, prevenido que estava, sem dúvida, de que ninguém o faria. Ora, eu lhe mostrei que a verdade das coisas sensíveis consistia exclusivamente na conexão dos fenômenos, que deve ter a sua razão, e que é isto que as distingue dos sonhos: que, porém, a verdade da nossa existência e da causa dos fenômenos é de outra natureza, visto que estabelece substâncias, e que os céticos arruinavam o que dizem de bom levando-o demasiado longe, e querendo estender as suas dúvidas até as experiências imediatas, e mesmo até as verdades geométricas - o que o Padre Foucher não fazia -, bem como às outras verdades da razão (o que Foucher fazia um pouco demais). Para voltar ao vosso ponto de vista, tendes razão em dizer que há diferença, via de regra, entre o sentimento e a imaginação; ora, os céticos dirão que o mais e o menos não alteram a espécie. De resto, embora os sentimentos em geral sejam mais vivos que as imaginações, sabe-se todavia que existem casos em que pessoas imaginativas são atingidas pelas suas imaginações tanto ou talvez mais do que outros o são pela verdade das coisas; de sorte que, no meu entender, o verdadeiro critério em questão de objetos dos sentidos é a conexão dos fenômenos, isto é, a conexão daquilo que aconteceu em lugares e tempos diferentes, e na experiência de homens diferentes, que são eles mesmos, uns em relação aos outros, fenômenos muito importantes nesta matéria. Ora a conexão dos fenômenos, que garante as verdades de fato em relação às coisas sensíveis existentes fora de nós, se verifica por intermédio das verdades de razão, como as aparências da óptica se esclarecem pela geometria. Entretanto, impõe-se admitir que toda esta certeza não é do grau mais alto, como vós mesmo bem reconhecestes. Com efeito, não é impossível, falando metafisicamente, que exista um sonho seguido e durável como a vida de um homem; contudo, é uma coisa tão contrária à razão, quanto o seria imaginar um livro que se formasse ao acaso, simplesmente pela junção casual de uma multidão de caracteres tipográficos. De resto, é verdade também que, desde que os fenômenos sejam ligados em conexão, pouco importa que os denominemos sonhos ou não, visto que a experiência demonstra que não nos enganamos nas medidas que haurimos dos fenômenos, quando estas são tomadas conforme as verdades de razão.] § 15. FILALETO - De resto, o conhecimento não é sempre claro, ainda que as ideias o sejam. Um homem que possui ideias tão claras dos ângulos de um triângulo e da igualdade a dois ângulos retos, quanto as não tem nenhum matemático do mundo, pode possuir uma percepção muito obscura da sua concordância. TEÓFILO - [Via de regra, quando as ideias são compreendidas a fundo, as suas concordâncias e discordâncias aparecem. Reconheço, porém, que por vezes existem algumas tão compostas, que se necessita de muito cuidado para explicitar o que nelas está escondido; sob este aspecto, certas concordâncias podem permanecer ainda obscuras. Quanto ao vosso exemplo, observaria que, por termos na imaginação os ângulos de um triângulo, nem por isso se têm ideias claras a respeito. A imaginação não pode fornecer-nos uma imagem comum aos triângulos acutângulos e obtusângulos, e todavia a ideia do triângulo lhes é comum; assim sendo, esta ideia não consiste nas imagens, e não é tão fácil, como se poderia pensar, compreender a fundo os ângulos de um triângulo.] CAPÍTULO III A EXTENSÃO DO CONHECIMENTO HUMANO. § 1. FILALETO - O nosso conhecimento não vai além das nossas ideias, § 2, nem além da percepção da concordância ou discordância das mesmas. § 3. O nosso conhecimento não pode ser sempre intuitivo, visto que não se pode sempre comparar as coisas imediatamente, por exemplo, as grandezas de dois triângulos sobre uma mesma base iguais e no entanto muito diferentes. § 4. O nosso conhecimento tampouco pode ser sempre demonstrativo, pois nem sempre conseguimos encontrar as ideias intermédias. § 5. Finalmente, o nosso conhecimento sensitivo só diz respeito à existência das coisas que atingem atualmente os nossos sentidos. § 6. Assim, não somente as nossas ideias são limitadas, senão que o nosso conhecimento é mais limitado que as nossas ideias. Todavia, não duvido de que o conhecimento humano poderia ir muito além, se os homens quisessem procurar com afinco os meios de aperfeiçoar a verdade, com uma completa liberdade de espírito e com toda a diligência e iniciativa que usam para colorir ou para sustentar a verdade, para defender um sistema ao qual aderiram, ou então, certas opiniões e interesses com os quais se comprometeram. Entretanto, ao final o nosso conhecimento não consegue jamais abarcar tudo aquilo que podemos desejar conhecer no tocante às ideias que possuímos. Por exemplo, jamais seremos talvez capazes de encontrar um círculo igual a um quadrado, e saber com certeza se tal coisa existe. TEÓFILO - [Existem ideias confusas, nas quais não podemos lograr um conhecimento completo, como são as ideias de algumas qualidades sensíveis. Entretanto, quando elas são distintas, podemos esperar tudo. No que concerne ao quadrado igual ao círculo, Arquimedes já demonstrou que ele existe: é aquele cujo lado é a média proporcional entre o semidiâmetro e a semicircunferência. Ele até determinou uma reta igual à circunferência do círculo por meio de uma reta tangente da espiral, como outras pela tangente de uma quadratriz, maneira de quadratura que alegrou muito a Clavíus: sem falar de um fio aplicado à circunferência, e depois estendido, ou da circunferência, que roda para descrever o ciclóide, e se transforma em reta. Alguns exigem que a construção se faça empregando exclusivamente a régua e o compasso; todavia, a maior parte dos problemas da geometria não podem ser construídos por este meio. Por conseguinte, trata-se antes de encontrar a proporção entre o quadrado e o círculo. Todavia, uma vez que esta proporção não pode ser expressa em números racionais finitos, foi necessário, para empregar exclusivamente números racionais, exprimir esta mesma proporção por uma série infinita desses números, que assinalei de uma forma bastante simples. Agora, querer-se-ia saber se não existe alguma quantidade finita que possa exprimir esta série infinita, isto é, se podemos encontrar justamente um resumo para isto. Todavia, as expressões finitas, sobretudo as irracionais, podem variar de muitas maneiras para que possamos enumerá-las e determinar facilmente tudo o que se pode. Talvez fosse possível fazê-lo, se esta absurdidade devesse ser explicável por uma equação ordinária, ou mesmo extraordinária, que faça entrar o irracional ou mesmo o desconhecido na exposição, embora se deva dizer que seria necessário um longo cálculo para fazer isto, coisa para a qual ninguém se decidirá facilmente, se não encontrarmos um dia um caminho breve. Entretanto, excluir todas as expressões finitas, isto não é possível, pois disto tenho experiência, e determinar com justeza a melhor é um problema difícil. Tudo isto mostra que o espírito humano se propõe questões tão estranhas, sobretudo quando entra o infinito, que não devemos admirar-nos se é difícil resolvê-las, tanto mais que tudo depende muitas vezes de um caminho abreviado nessas matérias geométricas, caminho que não podemos sempre esperar encontrar, assim como não podemos sempre reduzir as frações a termos menores, ou encontrar os divisores de um número. É verdade que se pode sempre ter esses divisores se for possível, visto que a sua enumeração é finita. Entretanto, quando aquilo que devemos examinar é variável ao infinito e sobe de grau em grau, não conseguimos dominá-los conforme queremos, sendo muito trabalhoso fazer tudo o que é necessário para tentar metodicamente chegar ao caminho abreviado ou à regra de progressão, que isenta da necessidade de ir mais além. E, já que a utilidade não compensa o trabalho, deixamos o êxito desta tarefa à posteridade, que poderá desfrutar dela quando este trabalho ou prolixidade forem diminuídos por progressos e aberturas novas, que o tempo poderá trazer consigo. Não pretendo dizer que, se as pessoas que de tempo em tempo se entregam a tais estudos quisessem fazer justamente o que é necessário para ir mais longe, não se poderia esperar progredir muito em pouco tempo. Não devemos imaginar que tudo está feito, pois, mesmo na geometria ordinária, ainda não possuímos um método para determinar as melhores construções, quando os problemas são um pouco compostos. Certa progressão de síntese deveria aliar-se à nossa análise para melhor consegui-lo, Lembro-me ter ouvido dizer que De Witt possuía algumas meditações sobre este assunto.] FILALETO - Outra dificuldade é saber se um ser puramente material pensa ou não; talvez jamais seremos capazes de sabê-lo, embora tenhamos as ideias da matéria e do pensamento, pelo motivo de que nos é impossível descobrir pela contemplação das nossas próprias ideias, sem a revelação, se Deus não deu a algumas massas de matéria, dispostas como ele quiser, o poder de perceber e de pensar; ou se ele não associou à matéria, assim disposta, uma substância imaterial capaz de pensar. Com efeito, em relação às nossas noções, não nos é mais difícil conceber que Deus possa, se lhe aprouver, acrescentar à nossa ideia da matéria a faculdade de pensar, que compreender que ele lhe associe outra substância dotada da faculdade de pensar, visto ignorarmos em que consiste o pensamento, e a que espécie de substância este Ser todo-poderoso resolveu conceder tal poder, poder que não pode encontrar-se em nenhum ser criado senão em virtude do arbítrio e da bondade do Criador. TEÓFILO - [Sem dúvida, esta questão é incomparavelmente mais importante do que a precedente. Todavia, ouso dizer-vos que eu desejaria que fosse tão fácil tocar as almas e curar os corpos das suas enfermidades, quanto acredito estar em nosso poder resolver a citada questão. Espero que conheçais, ao menos, que posso afirmar isto sem faltar contra a modéstia e sem sentenciar como mestre; pois, além de estar falando segundo a opinião comum, acredito ter examinado este problema com atenção não comum. Antes de tudo, reconheço que quando só temos ideias confusas sobre o pensamento e sobre a matéria, como acontece ordinariamente, não devemos admirar-nos se não enxergamos ainda o meio de resolver tais questões. É como observei um pouco antes: uma pessoa que não tem ideias dos ângulos de um triângulo senão da maneira comum jamais chegará a pensar que são sempre iguais a dois ângulos retos. É necessário considerar que a matéria, tomada como um ser completo (isto é, a matéria segunda, oposta à primeira, que constitui algo de puramente passivo, e por conseguinte incompleto), é apenas um acúmulo, ou o que disso resulta, e que todo acúmulo real supõe substâncias simples ou unidades reais, e, quando se considerar ainda o que é da natureza dessas unidades reais, isto é, a percepção e as suas consequências, transferimo-nos por assim dizer para um outro mundo, isto é, ao mundo inteligível das substâncias, ao passo que anteriormente estávamos apenas entre os fenômenos dos sentidos. Este conhecimento do interior da matéria mostra bastante bem de que ela é capaz naturalmente, e que todas as vezes que Deus lhe der órgãos aptos para exprimir o raciocínio, a substância imaterial, que raciocina, também não deixará de ser-lhe dada, em virtude dessa harmonia que constitui uma consequência natural da substâncias. A matéria não pode subsistir sem substâncias imateriais, isto é, sem as unidades; depois disto, não se deve mais perguntar se Deus tem ou não a liberdade de conferir-lhas ou não. Se essas substâncias não tivessem nelas a correspondência ou harmonia das quais acabo de falar, Deus não agiria segundo a ordem natural. Quando se fala simplesmente de dar, ou de conceder poderes, isto equivale a voltar às faculdades nuas das escolas filosóficas e imaginar pequenos seres subsistentes, que podem entrar e sair como pombos num columbário. Isto equivale a fazer delas substâncias, sem pensar. As potências primitivas constituem as próprias substâncias, e as potências derivativas - ou, se preferirdes, as faculdades - constituem apenas modos de ser, que se devem derivar das substâncias, e não podemos derivá-las da matéria enquanto esta não passa de máquina, isto é, enquanto não se considera por abstração senão o ser incompleto da matéria primeira, ou o puro passivo. Nisto acredito que estejais de acordo, isto é, que a simples máquina não é capaz de fazer nascer a percepção, a sensação, a razão. Por conseguinte, é necessário que essas provenham de alguma outra coisa substancial. Querer que Deus aja de outra forma e dê às coisas acidentes, que não constituem modos de ser ou modificações derivadas das substâncias, é recorrer aos milagres e àquilo que as escolas denominavam a potência obediencial, por uma forma de exaltação sobrenatural, como quando certos teólogos pretendem que o fogo do inferno queima as almas separadas. Neste caso pode-se até duvidar se seria o fogo que age, ou se não seria Deus quem produz este efeito, agindo em lugar do fogo.] FILALETO - Vós me surpreendeis um pouco pelos vossos esclarecimentos. Antecipais também muitas coisas que queria dizer-vos sobre os limites dos nossos conhecimentos. Ter-vos-ia dito que não estamos num estado de visão, como dizem os teólogos, que a fé e a probabilidade devem bastar-nos em muitas coisas, e sobretudo no tocante à imaterialidade da alma; ter-vos-ia dito também que todas as grandes finalidades da moral e da religião assentam sobre fundamento bastante sólido sem o auxílio das provas desta imaterialidade, provas tiradas da filosofia; ter-vos-ia dito outrossim que é evidente que Aquele que começou a fazer-nos subsistir aqui como seres sensíveis e inteligentes, e que durante muitos anos nos conservou neste estado, pode e quer fazer-nos ainda desfrutar de um tal estado de sensibilidade na outra vida e tornar-nos capazes de receber a retribuição que destinou aos homens conforme se conduzirem durante esta vida; finalmente, que por aí se pode pensar que a necessidade de se pronunciar pró ou contra a imaterialidade da alma não é tão grande como o quiseram fazer crer certas pessoas excessivamente levadas pelos seus sentimentos. [Ia dizer-vos tudo isso, e ainda mais, porém agora vejo como é diferente afirmar que somos sensíveis, pensantes e imortais naturalmente, e que o somos apenas por milagre. Com efeito, reconheço ser necessário admitir um milagre, se a alma não for imaterial; ora, esta opinião do milagre, além de ser destituída de fundamentos, não fará boa impressão na inteligência de muitas pessoas. Vejo também que, da forma como considerais a questão, podemos pronunciar-nos razoavelmente sobre a presente questão, sem necessidade de desfrutarmos do estado de visão e de encontrar-nos na companhia desses gênios superiores, que penetram bem longe na constituição interior das coisas, e cuja vista viva e penetrante, bem como o seu vasto campo de conhecimentos, podem dar-nos uma ideia da felicidade de que desfrutam. Acreditava eu que fosse completamente acima do nosso conhecimento aliar a sensação com uma matéria extensa, e a existência com uma coisa que não tem absolutamente extensão. Eis por que me tinha persuadido de que aqueles que assim se definiam seguiam o método irracional de certas pessoas que, ao verem que certas coisas, consideradas sob certo aspecto, são incompreensíveis, se atiram cegamente para a parte oposta, embora esta não seja menos ininteligível. Isso provinha, a meu juízo, do fato de que uns, tendo o espírito por assim dizer excessivamente afundado na matéria, não conseguiam reconhecer a existência de nada que não fosse material; ao passo que os outros, não acreditando que o pensamento está encerrado nas faculdades naturais da matéria, concluíam disso que o próprio Deus não podia dar a vida e a percepção a uma substância sólida sem colocar alguma substância imaterial. Ao contrário, agora vejo que, se Deus o fizesse, seria por milagre, e que esta incompreensibilidade da união da alma e do corpo, ou da aliança da sensação com a matéria parece cessar, aceitando-se a vossa hipótese do acordo preestabelecido entre as substâncias diferentes.] TEÓFILO - [Com efeito, nada existe de ininteligível nesta hipótese nova, pois ela só atribui à alma e ao corpo modificações que experimentamos em nós e neles, e afirma que tais modificações apenas são mais ordenadas e mais conexas do que até hoje se pensou. A dificuldade que permanece é apenas com relação aos que querem imaginar o que é apenas inteligível, como se quisessem ver os sons ou escutar as cores; são essas pessoas que recusam existência a tudo aquilo que não é extenso, o que os obrigará a negar a existência de Deus, isto é, a renunciar às causas que não podem provir da extensão e das naturezas puramente passivas, e mesmo não inteiramente das naturezas ativas particulares e inferiores sem o ato puro e universal da substância suprema.] FILALETO - Resta-me uma objeção quanto às coisas das quais a matéria é naturalmente suscetível. O corpo, na medida em que o podemos conceber, só é capaz de atingir e afetar um corpo, e o movimento não pode produzir outra coisa além do movimento: assim sendo, quando convimos em que o corpo produz o prazer ou a dor, ou então a ideia de uma cor ou de um som, parece que somos obrigados a abandonar a nossa razão e ir além das nossas próprias ideias, e atribuir esta produção pura e simplesmente ao arbítrio do nosso Criador. Por conseguinte, que razão teremos para concluir que não acontece o mesmo com a percepção na matéria? Vejo mais ou menos o que se pode responder, e, embora já tenhais dito algo sobre isto mais de uma vez, estou mais disposto a ouvir agora do que nunca. Todavia, estarei bem-disposto a ouvir ainda o que respondereis a isso nesta importante ocasião. TEÓFILO - [Acertais ao pensar que afirmarei que a matéria não pode produzir em nós prazer, dor ou sentimento. É a alma que produz em si mesma tais efeitos, conforme o que acontece na matéria. Certas pessoas versadas, entre os autores modernos, começam a declarar que entendem as causas ocasionais como as entendo eu. Assim sendo, não ocorre nada de ininteligível, exceto que não podemos distinguir claramente tudo o que entra nas nossas percepções confusas, que têm algo do infinito, e que constituem expressões do detalhe do que acontece no corpo. Quanto ao arbítrio do Criador, cumpre salientar que ele se regula conforme as naturezas das coisas, de maneira que ele só produz e conserva nas coisas criadas aquilo que é conforme à natureza das mesmas, ao menos de maneira geral; com efeito, o detalhe nos escapa muitas vezes, tanto quanto o cuidado e a capacidade de ordenar os grãos de uma montanha de areia segundo a ordem das figuras, embora nisto não haja nada difícil de entender, além da multidão. De outra forma, se este conhecimento nos ultrapassasse, e se nem sequer pudéssemos conceber a razão das relações da alma e do corpo em geral, enfim, se Deus desse às coisas poderes acidentais separados das suas naturezas, e por conseguinte alheios à razão em geral, teríamos uma espécie de porta traseira para reintroduzir as qualidades demasiado ocultas que nenhum espírito pode compreender, e esses pequenos traquinas de faculdades incapazes de razões, Et quidquid Schola finxit otioea. traquinas que vêm em auxílio e aparecem como deuses de teatro, ou como as fadas do Amadis, e que servirão para desempenhar qualquer função que seja necessária para um filósofo. Todavia atribuir a origem disso ao arbítrio (bon plaisir) de Deus não parece convir Àquele que é a Suprema Razão, no Qual tudo é regrado, tudo é conexo. Este bel-prazer (bon plaisir) não seria sequer belo, nem seria prazer, se não houvesse um paralelismo perpétuo entre o poder e a sabedoria de Deus.] § 8.FILALETO - O nosso conhecimento da identidade e da diversidade vai tão longe quanto as nossas ideias, ao passo que o conhecimento da ligação das nossas ideias, § 9, 10, em relação à sua coexistência num mesmo sujeito, é muito imperfeito e quase nulo, § 11, sobretudo com respeito às qualidades segundas como cores, sons e gostos, § 12, visto que desconhecemos a sua conexão com as qualidades primeiras, isto é, § 13, de que maneira dependem da grandeza da figura ou do movimento. § 15. Conhecemos algo mais sobre a incompatibilidade dessas qualidades segundas; pois um sujeito não pode ter, por exemplo, duas cores ao mesmo tempo; quando nos parece ver duas cores numa opala, ou numa infusão do Lignum nephriticum, isto ocorre em partes diferentes do objeto. § 16. Acontece o mesmo com as potências ativas e passivas dos corpos. As nossas pesquisas quanto a isso devem depender da experiência. TEÓFILO - [As ideias relativas às qualidades sensíveis são confusas, e as potências que devem produzi-las não fornecem tampouco, por consequência, senão em que entra a confusão; assim, não podemos conhecer as conexões de tais ideias de outra forma que pela experiência, enquanto as reduzimos a ideias distintas, que as acompanham, como se fez, por exemplo, em relação às cores do arco-íris e dos prismas. Este método fornece algum começo de análise, que é de grande utilidade na física; prosseguindo nesta linha, não duvido de que a medicina progrida muito com o tempo, sobretudo se o público se interessar um pouco mais por isto do que até agora.] § 18. FILALETO - No que concerne ao conhecimento das relações, é o campo mais vasto dos nossos conhecimentos, sendo difícil determinar até onde ele se estende. Os progressos dependem da sagacidade em encontrar ideias médias. Os que ignoram a álgebra não conseguem imaginar as coisas espantosas que se podem realizar neste setor por meio desta ciência. Não me parece que seja fácil determinar que os outros meios de aperfeiçoar as outras partes dos nossos conhecimentos possam ser ainda inventados por um espírito penetrante. Pelo menos as ideias que dizem respeito à quantidade não são as únicas capazes de demonstração; existem ainda outras, que constituem possivelmente a parte mais importante das nossas contemplações, das quais se poderia deduzir conhecimentos certos, se os vícios, as paixões e os interesses dominantes não se opusessem diretamente à execução de tal tarefa. TEÓFILO - [Nada mais verdadeiro do que isso que acabais de dizer agora. Que existe de mais importante, suposto que seja verdadeiro, do que aquilo que, segundo creio, determinamos quanto à natureza das substâncias, sobre as unidades e as multiplicidades, sobre a identidade e a diversidade, sobre a constituição dos indivíduos, sobre a impossibilidade do vácuo e dos átomos, sobre a origem da coesão, sobre a lei da continuidade e sobre as demais leis da natureza, porém sobretudo sobre a harmonia das coisas, a imaterialidade das almas,e até do animal, para além da morte? Em tudo isso nada existe que eu não creia demonstrado ou demonstrável.] FILALETO - [É verdade que a vossa hipótese parece extremamente coerente e de uma grande simplicidade: uma pessoa inteligente que quis refutá-la na França reconhece publicamente que se admirou diante dela. E, ao que me parece, trata-se de uma simplicidade muito fecunda. Será bom colocar em destaque sempre maior esta doutrina. Todavia, ao falar das coisas que mais nos importam, pensei na moral, para a qual reconheço que a vossa meta física fornece fundamentos maravilhosos: todavia, sem aprofundar tanto, a moral possui já fundamentos bastante sólidos, embora não se estendam talvez tão longe (como me recordo que vós mesmo já observastes) no caso de não aceitar como base uma teologia natural como vossa. Contudo, a simples consideração dos bens da vida presente já serve para estabelecer consequências importantes para governar as sociedades humanas. Pode-se julgar do justo e do injusto de maneira tão incontestável como na matemática: por exemplo, esta proposição - não pode existir injustiça onde não existe propriedade - é tão certa como qualquer demonstração dada por Euclides; sendo que a propriedade consiste no direito a uma certa coisa, e a injustiça, a violação de um direito. Ocorre o mesmo com esta proposição: nenhum governo concede uma liberdade absoluta. Com efeito, o governo é um estabelecimento de certas leis, das quais exige a execução, e a liberdade absoluta consiste no poder que cada um tem de fazer o que bem entender.] TEÓFILO - [Via de regra utilizamos o termo propriedade num sentido algo diverso, pois se entende um direito de alguém sobre a coisa, com a exclusão do direito de outro. Assim, se não houvesse propriedade, e tudo fosse comum a todos, mesmo então haveria injustiça. Além disso, é necessário que, na definição de propriedade, por coisa entendais também ação; de outra forma, se não houvesse direito sobre as coisas, seria sempre uma injustiça impedir os homens de agir, lá onde têm necessidade de fazê-lo, Todavia, segundo esta explicação, é impossível que não exista propriedade. No que concerne à proposição da incompatibilidade do governo com a liberdade absoluta, ela faz parte dos corolários, isto é, das proposições sobre as quais é suficiente chamar a atenção. Existem, na jurisprudência, algumas que são mais compostas, como, por exemplo, no tocante ao que se denomina ius accrescedi no tocante às condições, e muitas outras matérias; mostrei isso, publicando na minha juventude teses sobre as condições, onde demonstrei algumas delas. Se dispusesse de tempo, daria alguns retoques.] FILALETO - [Isto faria prazer aos curiosos, servindo também para prevenir alguém que pudesse estar tentado a reimprimir as vossas teses antes de serem retocadas.] TEÓFILO - [Foi o que ocorreu com a minha obra Arte das Combinações, fato que já tive ocasião de lamentar. Foi um fruto da minha primeira adolescência, e todavia a obra foi reimpressa por muito tempo, sem consultar-me e mesmo sem observar que se tratava de uma segunda edição. Isso levou alguns a crerem, a meu desfavor, que eu era capaz de publicar uma tal obra em idade avançada. Com efeito, embora existam ali teses que ainda aprovo, outras há que só podem convir a um jovem estudante.] § 19. FILALETO - Acredito que as figuras constituem um grande remédio para a incerteza das palavras, o que não pode acontecer nas ideias morais. Além disso, as ideias de moral são mais compostas que as figuras que consideramos comumente na matemática; assim, o espírito tem dificuldade em reter as combinações precisas do que entra nas ideias morais, de uma forma tão perfeita como seria necessário quando se impõem longas deduções. Se na aritmética não designássemos OS diferentes números por sinais cujo significado preciso seja conhecido, e que permanecem em vista, seria quase impossível efetuar grandes cálculos. § 20. As definições fornecem alguma ajuda desde que as empreguemos constantemente na moral. De resto, não é fácil prever que métodos podem ser sugeridos pela álgebra ou algum outro meio desta natureza, para evitar as demais dificuldades. TEÓFILO - [O falecido Erhard Weigel, matemático de Iena, na Turíngia, inventou engenhosamente figuras que representavam coisas morais. E, quando o falecido Samuel de Pufendorf, seu discípulo, publicou os seus Elementos de Jurisprudência Universal, bastante concordantes com as ideias de Weigel, acrescentaram na edição de Iena a Esfera Moral deste matemático. Todavia, essas figuras constituem uma forma de alegoria, mais ou menos como a tabela de Cebes, embora menos popular, servindo mais à memória, para reter e ordenar as ideias, do que ao julgamento, para adquirir conhecimentos demonstrativos. Não deixam, porém, de ter a sua utilidade para despertar o espírito. As figuras geométricas parecem mais simples que as coisas morais; entretanto, não o são, visto que o contínuo envolve o infinito, a partir do qual é necessário escolher. Por exemplo, cortar um triângulo em quatro partes iguais por duas retas perpendiculares entre si, trata-se de uma questão aparentemente simples, porém na verdade bastante difícil. Não acontece o mesmo com as questões de moral, quando são determináveis pela simples razão. Aliás, não é este o lugar de falar de proferendis scientiae demonstrandi promoeriis, e de propor os verdadeiros meios de estender a arte de demonstrar para além dos seus antigos limites, que até agora têm sido praticamente os mesmos que os da área matemática. Se Deus me der tempo, espero poder publicar algum ensaio sobre isto, pondo efetivamente em prática tais meios, sem me limitar aos preceitos.] FILALETO - [Se levardes a efeito esta empresa devidamente, ser-vos-ão gratos muitos Filaletos como eu, isto é, pessoas que desejam sinceramente conhecer a verdade.] A verdade é naturalmente agradável aos espíritos, não havendo nada tão discordante e tão incompatível com o entendimento como a mentira. Todavia, não convém alimentar a ilusão de que as pessoas se apliquem muito a tais descobertas, ao passo que o desejo e o amor das riquezas ou do poder conduzirão os homens a esposar as opiniões autorizadas pela moda, e a seguir a procurar argumentos, ou para fazê-las passar por boas, ou para encobrir a sua discordância com a retidão. E enquanto os diversos partidos procuram incutir as suas opiniões a todos aqueles que podem dominar, sem examinar se são falsas ou verdadeiras, que nova luz se pode esperar nas ciências que pertencem à moral? Esta parte do gênero humano que está sob o jugo deveria esperar, em lugar disso, na maior parte do mundo, trevas tão espessas como as do Egito, se a própria luz do Senhor não estivesse presente no espírito dos homens, luz sagrada que nenhum poder do mundo é capaz de extinguir totalmente. TEÓFILO - [Não desespero da possibilidade de que, num tempo ou num país mais tranquilo, os homens se entreguem mais do que até agora ao cultivo da razão, pois de nada se deve desesperar. Acredito que à humanidade estão ainda reservadas grandes surpresas, tanto no bem como no mal, mas ao final, mais para o bem do que para o mal. Suponhamos que haja um dia algum insigne príncipe, que como os antigos reis da Assíria ou do Egito, ou como outro Salomão, reine longamente numa paz profunda, e que tal príncipe, amante da virtude e da verdade e dotado de um espírito grande e sólido, conceba a ideia de tornar os homens mais felizes, mais harmoniosos entre si e mais senhores da natureza: que maravilhas não obrará tal príncipe em poucos anos? Pois é certo que em tal caso se faria mais em dez anos do que em cem, ou talvez em mil, deixando as coisas trilharem o seu curso normal. Mas sem isso, se o caminho estivesse uma vez aberto, muitas entrariam por ele como entre geômetras, mesmo que fosse apenas para o seu prazer, e para adquirir glória. O público voltar-se-á um dia mais do que até hoje para o progresso da medicina; haverá em todos os países Histórias Naturais como os almanaques ou como Mercure Galant; não se deixará passar nenhuma observação boa sem registrá-la; ajudar-se-á àqueles que a isto se aplicarem; aperfeiçoar-se-á a arte de fazer tais observações, e também a arte de empregá-las para estabelecer aforismos. Haverá um tempo em que, tendo aumentado o número dos bons médicos e diminuído o das pessoas de certas profissões que se tornarão menos importantes, o público terá condições para estimular mais a pesquisa da natureza e sobretudo o progresso da medicina, e então esta importante ciência avançará muito além do seu estado atual. Acredito, com efeito, que esta ciência deveria constituir o objeto dos maiores cuidados dos governantes, depois do setor da virtude, e que um dos grandes frutos da boa moral ou política será o de nos trazer uma medicina mais desenvolvida, quando os homens começarem a ser mais sábios do que o são, e quando os grandes tiverem aprendido a empregar melhor as suas riquezas e os poderes para a sua própria felicidade.] § 21. FILALETO - No que concerne ao conhecimento da existência real (que constitui a quarta espécie de conhecimento) é necessário dizer que possuímos um conhecimento intuitivo da nossa existência, um conhecimento demonstrativo da existência de Deus, e um conhecimento sensitivo das demais coisas. Falaremos mais explicitamente disto a seguir. TEÓFILO - [Nada se poderia afirmar de mais correto do que isso.] § 22. FILALETO - Tendo falado sobre o conhecimento, parece conveniente que discutamos um pouco sobre o lado obscuro do conhecimento, e tomemos conhecimento da nossa ignorância, a fim de melhor descobrirmos o presente estado do nosso espírito. Eis aqui as causas desta ignorância: 1) faltam-nos ideias; 2) não podemos descobrir as conexões das ideias que possuímos; 3) negligenciamos segui-las e examiná-las com exatidão. § 23. Quanto à falta das ideias, as únicas ideias simples que temos são as que nos vêm dos sentidos [internos ou externos]. Assim, no tocante a uma infinidade de criaturas do universo e das suas qualidades, somos como cegos em relação às cores, não possuindo sequer as faculdades necessárias para conhecê-las; e, segundo as aparências, o homem ocupa o último lugar entre todos os seres intelectuais. TEÓFILO - [Não sei se não existem criaturas intelectuais abaixo de nós. Por que degradar-nos sem necessidade? Talvez ocupemos um lugar bastante honroso entre os animais racionais; pode ocorrer que gênios superiores tenham corpos de outra forma, de maneira que o termo animal poderia não lhes convir. Não é possível dizer se o nosso sol, entre o grande número de outros sóis, tem mais astros superiores a ele que inferiores, e estamos bem colocados no seu sistema: pois a terra ocupa o centro entre os planetas, e a sua distância parece bem escolhida para um animal contemplativo que deveria habitá-la. De resto, temos muito mais razões para orgulhar-nos do que para queixar-nos da nossa sorte, visto que a maioria dos nossos males se deve imputar às nossas falhas. Em particular, andaríamos muito errados se nos queixássemos das falhas do nosso conhecimento, uma vez que utilizamos tão pouco aqueles que a natureza caridosa nos apresenta.] § 24. FILALETO - Entretanto, é verdade que a extrema distância de quase todas as partes do mundo que estão expostas à nossa vista as priva do nosso conhecimento, e aparentemente o mundo visível é apenas uma pequena parte deste imenso universo. Estamos encerrados num pequeno canto do espaço, isto é, no sistema do nosso sol, e todavia não sabemos sequer o que acontece nos outros planetas que circulam em tomo dele, assim como o nosso globo. § 25. Esses conhecimentos nos escapam devido à grandeza e à distância, porém, outros corpos nos estão escondidos em razão da sua pequenez, e são aqueles que mais nos interessaria conhecer; pois de sua contextura poderíamos inferir os usos e as operações daqueles que são visíveis, e saber por que o ruibarbo cura, a cicuta mata, o ópio faz adormecer. Assim, § 26, por mais que o empenho humano possa fazer avançar a filosofia experimental quanto às coisas físicas, estou tentado a crer que não poderemos jamais chegar, nestes assuntos, a um conhecimento científico. TEÓFILO - [Acredito realmente que jamais chegaremos tão longe quanto seria de desejar. Todavia, parece-me que faremos alguns progressos consideráveis com o tempo, na explicação de alguns fenômenos, visto que a maior parte das experiências que estão ao nosso alcance podem fornecer-nos dados mais que suficientes, de maneira que falta apenas a arte de utilizá-los, cujas bases espero possam ser colocadas, desde que a analise infinitesimal nos deu o meio de aliar a geometria com a física e a dinâmica nos forneceu as leis gerais da natureza.] § 27. FILALETO - Os espíritos estão ainda mais longe do nosso conhecimento. Não podemos formar-nos nenhuma ideia sobre as suas diferentes ordens, e todavia o mundo intelectual é certamente maior e mais belo que o mundo material. TEÓFILO - [Esses mundos são sempre perfeitamente paralelos quanto às causas eficientes, mas não quanto às causas finais. Pois, à medida que os espíritos dominam na matéria, produzem nela combinações maravilhosas. Isso aparece pelas mudanças que os homens fizeram para embelezar a superfície da terra, como pequenos deuses que imitam o grande arquiteto do universo, embora seja apenas pelo emprego dos corpos e das suas leis. Que é que não se pode conjecturar sobre esta imensa multidão dos espíritos que nos ultrapassam? E uma vez que os espíritos formam todos juntos uma espécie de Estado debaixo de Deus, cujo governo é perfeito, estamos bem longe de compreender o sistema deste mundo inteligível e de conceber as penas e as recompensas que estão preparadas para os que as merecem segundo a mais exata razão, e de imaginar o que nenhum olho viu e nem ouvido ouviu, e que jamais entrou no coração do homem. Entretanto, tudo isso mostra que possuímos todas as ideias distintas que não necessárias para conhecer os corpos e os espíritos, porém não o detalhe suficiente dos fatos, nem sentidos suficientemente penetrantes para distinguir as ideias confusas, ou suficientemente extensos para percebê-las todas.] § 28. FILALETO - Quanto à conexão, cujo conhecimento nos falta nas ideias que possuímos, queria dizer-vos que as afecções mecânicas dos corpos não têm nenhuma ligação com as ideias das cores, dos sons, dos odores e dos gostos, de prazer e de dor; e que a sua conexão não depende senão do arbítrio e da livre (arbitra ire) vontade de Deus. Lembro-me, porém, que, em vossa opinião, existe uma perfeita correspondência, embora nem sempre seja uma semelhança perfeita. Todavia, reconheceis que o detalhe muito grande das pequenas coisas que nelas entram nos impede de distinguir o que nelas está escondido, embora alimenteis a esperança de que um dia nos aproximaremos muito desta meta; assim sendo, não gostaríeis que se dissesse, com o meu ilustre autor, § 29, que é perder tempo engajar-se numa tal pesquisa, temendo que esta convicção prejudique o progresso da ciência. Ter-vos-ia também falado da dificuldade que se teve até hoje em explicar a conexão existente entre a alma e o corpo, pois não se poderia conceber que um pensamento produza um movimento no corpo, nem que um movimento produza um pensamento no espírito. (Entretanto, desde que concebi a vossa hipótese da harmonia preestabelecida, esta dificuldade, que parecia insuperável, parece-me desaparecer de uma vez e como por encanto.) § 30. Resta, por conseguinte, a terceira causa da nossa ignorância: é que não seguimos as ideias que temos ou que podemos ter, e não nos preocupamos em encontrar as ideias médias; assim é que se ignoram as ideias matemáticas, embora não exista nenhuma imperfeição nas nossas faculdades, nem nenhuma incerteza nas próprias coisas. É o mau uso das palavras que mais contribui para nos impedir de encontrar a concordância ou discordância das ideias; e os matemáticos que formam os seus pensamentos independentemente dos nomes e se habituam a apresentar ao espírito as próprias ideias em vez dos sons, com isto mesmo evitaram grande parte das dificuldades. Se os homens tivessem agido nas suas descobertas do mundo material como fizeram nas coisas que dizem respeito ao mundo intelectual, confundindo tudo num caos de termos de significação incerta, teriam discutido indefinidamente sobre as zonas, as marés, a construção dos navios, as estradas; jamais se teria disso além da linha, e os antípodas seriam ainda hoje tão desconhecidos como quando s,e declarou que era heresia defender a sua existência. TEÓFILO - [Esta terceira causa da ignorância é a única censurável. E, como vedes, a desesperança de ir mais longe faz parte dela. Esta falta de coragem prejudica muito, e pessoas inteligentes e consideráveis impediram os progressos da medicina pela falsa persuasão de que é perder tempo entregar-se a tais pesquisas. Quando virdes os filósofos aristotélicos do tempo passado falarem dos meteoros, como do arco-íris, por exemplo, acreditareis que, na convicção deles, nem sequer se devia pensar em explicar distintamente este fenômeno; e as empresas de Maurolyco e, depois, de Marco Antônio de Dominis, lhes pareciam ser como um voo de Ícaro. Todavia, a sequência dos fatos mostrou o contrário. É bem verdade que o mau uso dos termos causou uma boa parte da desordem que se encontra nos nossos conhecimentos, não só na moral e na metafísica, ou naquilo que denominais o mundo intelectual, mas também na medicina, onde este abuso dos termos aumenta constantemente. Nem sempre podemos socorrer-nos das figuras, como na geometria; entretanto, a álgebra demonstra que podemos fazer grandes descobertas sem recorrer às próprias ideias das coisas. No que concerne à pretensa heresia da existência dos antípodas, direi de passagem que é verdade que Bonifácio, arcebispo de Mogúncia, acusou Virgilio de Salzburgo numa carta que escreveu ao papa contra ele, e que o papa respondeu numa linha que parece favorecer à acusação de Bonifácio. Todavia, não há provas de que tal acusação tenha sido feita por outros. Virgílio continuou a manter a sua tese. Os dois antagonistas passam por santos, e os sábios da Baviera, que consideram Virgilio um apóstolo da Caríntia e dos países vizinhos, justificaram a sua memória.] CAPÍTULO IV A REALIDADE DO NOSSO CONHECIMENTO. § 1. FILALETO - Se alguém não tiver compreendido a importância de ter boas ideias. e de entender sua concordância ou discordância pensará que, ao raciocinarmos sobre isso com tanto cuidado, construímos castelos no ar, e que em todo o nosso sistema só existe imaginação. Um extravagante com imaginação quente terá a vantagem de ter ideias mais vivas e em maior número; assim, haveria também mais conhecimento. Haverá tanta certeza nas visões de um entusiasta quantas existem nos raciocínios de um homem de bom senso, desde que este entusiasta fale consequentemente; e será tão verdadeiro dizer que uma harpia não é um centauro, como afirmar que um quadrado não é círculo. § 2. Respondo que as nossas ideias concordam com as coisas. § 3. Todavia, perguntar-se-á qual é o critério. § 4. Respondo, primeiramente, que esta concordância é manifesta quanto às ideias simples do nosso espírito, pois, não podendo o espírito formá-las ele mesmo, é necessário que sejam produzidas pelas coisas que agem sobre o espírito; em segundo lugar, § 5, que todas as nossas ideias complexas (excetuadas as das substâncias), sendo arquétipos que o próprio espírito formou, e que não destinou a serem cópias do que quer que seja, nem relacionou com a existência de qualquer coisa como a seus originais, não podem elas deixar de ter toda a conformidade com as coisas necessárias a um conhecimento real. TEÓFILO - [A nossa certeza seria pequena ou antes nula, se não houvesse outro fundamento das ideias simples a não ser o que deriva dos sentidos. Porventura esquecestes como demonstrei que as ideias estão originariamente no nosso espírito, e que mesmo os nossos pensamentos provêm do fundo de nós mesmos, sem que as outras criaturas possam ter uma influência imediata sobre a alma? De resto o fundamento da nossa certeza em relação às verdades universais e eternas está nas próprias ideias, independentemente dos sentidos, como também as ideias puras e inteligíveis não dependem dos sentidos, por exemplo, a ideia do ser, do uno, do igual etc. Mas as ideias das qualidades sensíveis, como da cor, do sabor etc. (que na realidade não passam de fantasmas), nos vêm dos sentidos, isto é, das nossas percepções confusas. E o fundamento da verdade das coisas contingentes e singulares está no sucesso, que faz com que os fenômenos dos sentidos sejam ligados justamente como as verdades inteligíveis o exigem. Eis a diferença que se deve fazer, ao passo que a diferença que vós estabeleceis aqui entre as ideias simples e ideias compostas pertencentes às substâncias e aos acidentes não me parece fundada, visto que todas as ideias inteligíveis têm os seus arquétipos na possibilidade eterna das coisas.] § 5. FILALETO - É verdade que as nossas ideias compostas não necessitam de arquétipos fora do espírito a não ser quando se trata de uma substância existente que deve unir efetivamente fora de nós estas ideias complexas e as ideias simples de que são compostas. O conhecimento das verdades matemáticas é real, embora ele repouse apenas sobre as nossas ideias e não se encontrem em parte alguma círculos exatos. Todavia, temos certeza de que as coisas existentes convirão com os nossos arquétipos na medida em que aquilo que nelas se supõe existe de fato. § 7. Isto também serve para justificar a realidade das coisas morais. § 8. Os ofícios de Cícero não são menos conformes à verdade, pelo fato de não haver ninguém no mundo que ordene a sua vida exatamente conforme o modelo de um homem de bem qual Cícero no-lo apresentou. § 9. Mas - dir-se-á -, se as ideias morais são da nossa invenção, que noção estranha teremos da justiça e da temperança? § 10. Respondo que a incerteza só estará na linguagem, pois nem sempre se compreende o que se diz, ou pelo menos se compreende sempre da mesma maneira. TEÓFILO - [Poderíeis responder - e bem melhor, a meu ver - que as ideias da justiça e da temperança não são invenção nossa, como não o são as do círculo e do quadrado. Acredito tê-lo demonstrado suficientemente.] § 11. FILALETO - No que concerne às ideias das substâncias, que existem fora de nós, o nosso conhecimento é real na medida em que é conforme a estes arquétipos: neste ponto, o espírito não deve combinar as ideias arbitrariamente, tanto mais que exigem muito poucas ideias simples das quais possamos garantir que podem ou não podem existir juntas na natureza, além do que aparece por observações sensíveis. TEÓFILO - Como já disse mais de uma vez, é porque tais ideias, quando a razão não pode julgar da sua compatibilidade ou conexão, são confusas, como são as ideias das qualidades particulares dos sentidos. § 13. FILALETO - Convém igualmente, no que concerne às substâncias existentes, não limitar-se aos nomes, ou às espécies, que se supõem estabelecidas pelos nomes. Isso me faz voltar ao que discutimos bastantes vezes quanto à definição de homem. Com efeito, falando de um inocente, que viveu quarenta anos sem dar sinal algum de razão, não se poderia dizer que ele está a meio caminho entre o homem e o animal? Isto passaria talvez por um paradoxo bem ousado, ou mesmo por uma falsidade de consequências muito perigosas. Todavia, parecia-me outrora - e alguns dos meus amigos ainda hoje assim opinam - que isto ocorre apenas em virtude de um preconceito fundado sobre esta falsa pressuposição de que estes dois nomes - homem e animal - significam espécies distintas, tão bem marcadas por essências reais na natureza, que entre elas não pode haver nenhuma outra espécie, como se todas as coisas fossem colocadas no mundo segundo o número exato dessas essências. § 14. Quando se pergunta a esses amigos que espécies de animais são esses inocentes, se não são nem homens nem animais, respondem que são inocentes, e que isto é suficiente como resposta. E, se perguntarmos o que serão no outro mundo, os nossos amigos respondem que não lhes importa saber nem pesquisá-lo. Que caiam ou fiquem de pé, isto é com o seu Senhor (Rom 14,4), o qual é bom e fiel, e não dispõe das suas criaturas segundo os limites estreitos dos nossos pensamentos ou das nossas opiniões particulares, e não os distingue conforme aos nomes e espécies que nos agrada imaginar; respondem que basta saber que os que são capazes de instrução serão chamados a dar contas da sua conduta, e que receberão a sua recompensa segundo o que tiverem feito no seu corpo (2 Cor 5, 10). § 15. Reapresentar-vos-ei ainda o resto dos seus raciocínios. A questão - dizem eles - se é necessário privar os imbecis de um estado futuro assenta em duas suposições igualmente falsas: a primeira é que todo ser que possui forma e aparência externa de homem está destinado a um estado de imortalidade após a presente vida; a segunda, é que todo o que tem um nascimento humano deve desfrutar deste privilégio. Eliminai estas imaginações, e vereis que esta espécie de questões são ridículas e destituídas de fundamento. Com efeito, acredito que se rejeitará a primeira suposição, e que não se terá o espírito tão afundado na matéria para crer que a vida eterna se deva a alguma forma de uma massa material, de sorte que a massa deva ter eternamente sentido, pelo fato de haver sido moldada conforme tal figura. § 16. Todavia, a segunda suposição vem em auxílio: dir-se-á que este inocente procede de pais racionais e, por consequência, deve ter uma alma racional. Não sei em virtude de que regra de lógica se possa estabelecer tal consequência, e como, após isto, se ousaria destruir criaturas malformadas e imitadas. Dir-se-á que se trata neste caso de monstros! Pois bem, seja. Mas que será este inocente, sempre intratável? Será que um defeito no corpo constitui um monstro, e não um defeito no espírito? Seria voltar à primeira suposição, •já refutada, de que o exterior é suficiente. Um inocente bem formado é um homem, conforme se crê, ele possui uma alma racional, embora esta não apareça: fazei, porém, as orelhas algo mais longas e mais pontudas, e o nariz um pouco mais achatado que comumente e já começais a hesitar. Fazei o rosto mais estreito, mais achatado e mais longo. E se a cabeça for perfeitamente aquela de algum animal, é sem dúvida um monstro, e isto constitui para vós uma demonstração de que ele é destituído de alma racional e deve ser eliminado. Pergunto-vos agora onde encontrar a justa medida e os últimos limites que importam numa alma racional. Existem fetos humanos, metade humanos metade animais, outros há cujas três quartas partes participam de um, e a outra parte do outro. Como determinar com justeza os limites que demarcam a razão? Além disso, este monstro não será uma espécie intermediária entre o homem e o animal? Tal é precisamente o inocente de que estamos tratando. TEÓFILO - [Admiro-me de que volteis a este problema, que já o examinamos suficientemente, mais de uma vez; admiro-me também de que não tenhais catequizado melhor os vossos amigos. Se distinguimos o homem do animal em virtude da faculdade de raciocinar, não existe meio-termo, é necessário que o animal em questão tenha ou não tenha razão: ora, visto que tal faculdade por vezes não aparece, julgamos por indícios, que não são demonstrativos da verdade, até que esta razão se demonstre: pois sabemos por experiência daqueles que a perderam ou que finalmente adquiriram o seu exercício, que a função racional pode ser temporariamente suspensa. O nascimento e a forma externa fornecem presunções do que está escondido. Porém a presunção do nascimento é apagada (eliditur) por uma forma extremamente diferente da humana, tal como o era a de um animal nascido de uma mulher da Zelândia, em Levinus Lemnius (livro I, capítulo 8), que tinha um bico recurvado, um pescoço longo e redondo, olhos brilhantes, cauda pontuda, uma grande habilidade para correr pelo quarto. Dir-se-á que existem monstros ou irmãos dos lombardos (como os denominavam outrora os médicos, por afirmar-se que as mulheres da Lombardia estavam sujeitas a ter tais filhos) que se aproximam mais da forma humana. Pois bem, seja. Como então - direis vós - se pode determinar os justos limites da forma que se deve considerar como a humana? Respondo que em matéria conjetural nada existe de preciso. E com isso o assunto está encerrado. Objeta-se que o inocente não demonstra gozar de razão, e todavia passa por homem, mas se tivesse uma forma monstruosa, não o seria, e, assim sendo, tem-se mais consideração pela forma externa do que pela razão? Entretanto, este monstro demonstra gozar da razão? Não, sem dúvida. Vedes, portanto, que lhe falta mais do que ao inocente. A falta do exercício da razão é muitas vezes temporária, mas não cessa naqueles em que é acompanhada por uma cabeça de cão. De resto, se este animal de forma humana não for um homem, não é grande mal considerar a sua sorte como incerta. Quer tenha ele uma alma racional, quer tenha uma alma irracional, Deus não o terá feito sem motivo, e se dirá, das almas dos homens que permanecem num estado sempre semelhante ao da primeira infância, que a sua sorte poderá ser a mesma que a das almas dessas crianças que morrem no berço. CAPÍTULO V A VERDADE EM GERAL. § 1. FILALETO - Há vários séculos perguntou-se o que é a verdade. § 2. Nossos amigos acreditam que seja a conjunção ou a separação dos sinais, conforme concordem ou discordem entre si. Pela conjunção ou a separação dos sinais cumpre entender o que se denomina, em outros termos, proposição. TEÓFILO - Entretanto, um epíteto não faz uma proposição; por exemplo, o homem sábio; e todavia existe uma conjunção de dois termos. Além disso, a negação é coisa diversa da separação. Com efeito, ao dizer o homem, e pronunciando, depois de um intervalo, sábio, isso não é negar. A concordância também, ou a discordância, não é propriamente o que se exprime pela proposição. Dois ovos contêm concordância, e dois amigos possuem discordância. Trata-se aqui de uma forma de concordar ou de discordar toda particular. Assim, creio que esta definição não explica o ponto em questão. Todavia, o que mais me desagrada na vossa definição é que se procura a verdade nas palavras. Assim, o mesmo sentido, expresso em latim, alemão, inglês, francês, não será a mesma verdade, e será necessário dizer com o Sr. Hobbes que a verdade depende de arbítrio dos homens, o que é falar de maneira bem estranha. Atribui-se até a verdade a Deus, que, como reconhecereis - creio eu - não necessita de sinais. Enfim, já me admirei mais de uma vez do humorismo de vossos amigos, que se comprazem em tornar as essências, espécies, verdades nominais. FILALETO - Não vades tão depressa. Sob os sinais se compreendem as ideias. Assim sendo, as verdades serão ou mentais ou nominais, conforme as espécies dos sinais. TEÓFILO - [Por conseguinte, teremos ainda verdades literais, que se poderão distinguir em verdades de papel ou de pergaminho, de preto de tinta comum, ou de tinta de imprensa, se for necessário distinguir as verdades pelos sinais. É melhor, portanto, colocar as verdades na relação entre os objetos das ideias a qual faz com que uma esteja compreendida ou não na outra. Isso não depende das línguas, sendo-nos comum com Deus e com os anjos; quando Deus nos manifesta uma verdade, adquirimos a que está no seu entendimento, pois, embora exista uma diferença infinita entre as ideias de Deus e as nossas quanto à perfeição e à extensão, é sempre verdade que concordamos na mesma relação. Por conseguinte, é nesta relação que se deve colocar a verdade, e podemos distinguir entre as verdades, que são independentes do nosso arbítrio, e entre as expressões, que inventamos como bem nos parece.] § 3. FILALETO - É perfeitamente verdade que os homens, mesmo no seu espírito, colocam as palavras no lugar das coisas, sobretudo quando as ideias são complexas e indeterminadas. Todavia, é verdade também, conforme observastes, que neste caso o espírito se contenta apenas com assinalar a verdade, sem compreendê-la no momento, na persuasão de que depende dele compreendê-la quando quiser. De resto, a ação que se exerce ao afirmar ou ao negar é mais fácil de conceber em refletindo sobre o que acontece em nós, do que explicá-lo por palavras. Por esta razão, não leveis a mal se, por falta de expressão melhor, tenha falado de juntar ou de separar. § 8. Concordareis também em que pelo menos as proposições podem ser denominadas verbais, e que, quando são verdadeiras, são verbais e também reais, pois, § 9, a falsidade consiste em juntar os nomes de maneira diferente de as ideias concordarem ou discordarem. No mínimo, § 10, as palavras são grandes veículos da verdade. § 11. Existe também uma verdade moral, que consiste em falar das coisas segundo a persuasão do nosso espírito; finalmente, existe uma verdade meta física, que é a existência real das coisas conforme as ideias que delas temos. TEÓFILO - [A verdade moral se denomina veracidade por alguns, e a verdade metafísica é considerada vulgarmente pelos metafísicos como um atributo do ser, porém se trata de um atributo bem inútil e quase vazio de sentido. Contentemo-nos em procurar a verdade na correspondência das proposições que estão no espírito juntamente com as coisas das quais se trata. É verdade que atribuí também a verdade às ideias, ao dizer que as ideias são verdadeiras ou falsas; todavia, neste caso entendo a verdade das proposições que afirmam a possibilidade do objeto da ideia. Neste mesmo sentido pode-se dizer ainda que um ser é verdadeiro, isto é, a proposição que afirma a sua existência atual ou pelo menos possível.] CAPÍTULO VI AS PROPOSIÇÕES UNIVERSAIS, A SUA VERDADE E A SUA CERTEZA. § 2. FILALETO - Todo o nosso conhecimento versa sobre as verdades gerais ou particulares. Jamais conseguiremos fazer entender bem as primeiras, que são as mais importantes, nem lograremos entendê-las nós mesmos a não ser raramente, senão na medida em que são concebidas e expressas por palavras. TEÓFILO - [Acredito que também outros sinais poderiam produzir este efeito; vê-se pelos caracteres dos chineses. Poder-se-ia introduzir um caráter universal muito popular e melhor que o deles, se se utilizassem pequenas figuras em lugar das palavras, que representassem as coisas visíveis pelos seus traços, e as invisíveis que as acompanhem, juntando-lhes certos-sinais adicionais, convenientes para fazer compreender as flexões e as partículas. Isto serviria antes de tudo para se comunicar facilmente com as nações distantes; todavia, se as introduzíssemos também entre nós, sem contudo renunciar à escritura comum, o uso desta maneira de escrever seria de grande utilidade para enriquecer a imaginação e para dar pensamentos menos verbais do que os que temos atualmente. É verdade que, não sendo a todos conhecida a arte de desenhar, se conclui que, excetua dos os livros impressos desta forma - que todo mundo aprenderia logo a ler -, nem todos poderiam servir-se dela de outra forma senão por um modo de imprensa, ou seja, tendo figuras gravadas prontas para imprimi-las no papel, acrescentando depois, com a pena, os sinais das flexões e das partículas, Com o tempo, porém, todo mundo aprenderia o desenho desde a juventude, para não ser privado da comodidade deste caráter figurado, que falaria verdadeiramente aos olhos, e que agradaria muito ao povo, como de fato os camponeses têm já certos almanaques que sem palavras lhes dizem uma boa parte daquilo que querem saber; recordo-me de haver visto impressos satíricos, em gravuras, que tinham algo de enigmático, onde havia figuras que significavam por si mesmas, mescladas com palavras, ao passo que as nossas letras e os caracteres chineses só têm significação em virtude da convenção dos homens (ex instituto). § 3. FILALETO - [Acredito que a vossa ideia se realizará um dia, a tal ponto esta escrita me parece agradável e natural: e creio que ela terá grande importância para aumentar a perfeição do nosso espírito e para tornar as nossas concepções mais reais.] Todavia, para voltar aos conhecimentos gerais e à sua certeza, vem a propósito notar que existe neles certeza de verdade, e que há também certeza de conhecimento. Quando as palavras são juntadas de maneira tal nas proposições, que exprimem exatamente a concordância ou discordância, tal como é realmente, estamos diante de uma certeza de verdade; a certeza de conhecimento consiste em perceber a concordância ou a discordância das ideias, na medida em que é expressa nas proposições. É o que denominamos comumente estar certo de uma proposição. TEÓFILO - [Com efeito, esta última espécie de certeza será suficiente mesmo sem o uso das palavras, não sendo outra coisa senão um perfeito conhecimento da verdade, ao passo que a primeira espécie de certeza não parece ser outra coisa senão a própria verdade.] § 4. FILALETO - Como não podemos estar seguros da verdade de nenhuma proposição geral, a menos que conheçamos os limites precisos da significação dos termos de que ela se compõe, seria necessário que conhecêssemos a essência de cada espécie, o que não é difícil quanto às ideias simples e aos modos. Todavia, nas substâncias, onde se supõe que uma essência real, distinta da nominal, determina as espécies, a extensão do termo geral é muito incerta, porque não conhecemos esta essência real, e por conseguinte neste sentido não podemos estar seguros de nenhuma proposição geral formulada a respeito dessas substâncias. Todavia, quando se supõe que as espécies das substâncias não são outra coisa senão a redução dos indivíduos substanciais a certas espécies, classificadas sob diversos nomes gerais, segundo convém às diferentes ideias abstratas que designamos por esses nomes, não se pode duvidar se uma proposição, bem conhecida como é necessário, é verdadeira ou não. TEÓFILO - [Não sei por que voltais ainda a um ponto bastante discutido entre nós, que eu acreditava resolvido. Por outro lado, sinto-me bem à vontade, pois me dais oportunidade muito propícia para desenganar-vos outra vez. Dir-vos-ei, portanto, que podemos estar seguros, por exemplo, de mil verdades que dizem respeito ao outro, este corpo cuja essência interna se faz reconhecer pelo máximo peso conhecido, ou pela máxima ductilidade, ou por outras características. Pois podemos dizer que o corpo que tem a máxima ductilidade conhecida é também o mais pesado de todos os corpos conhecidos. É bem verdade que não seria impossível que tudo quanto até hoje se notou no ouro se encontrasse um dia em dois corpos discerníveis por outras qualidades novas, e que assim o ouro não fosse mais a espécie mais baixa, como ele é considerado até agora. Poderia também acontecer que, permanecendo uma espécie rara e a outra sendo comum, se considerasse conveniente reservar a denominação de ouro verdadeiro unicamente à espécie rara, para conservá-la no uso da moeda por meio de novos ensaios que lhe seriam próprios. Depois disto não se duvidará mais de que a essência interna dessas duas espécies seja diferente; e mesmo que a definição de uma substância atualmente existente não fosse bem determinada sob todos os pontos de vista - como de fato a do homem não o é quanto à figura externa - não se deixaria de ter uma infinidade de proposições gerais sobre ela, que seguiriam da razão e das outras qualidades que se reconhecem nele. Tudo o que se pode dizer sobre essas proposições gerais é que, no caso de se tomar o homem como a espécie mais baixa, restringindo-a à raça de Adão, não se terão propriedades do homem das que se denominam in quarto modo, ou que possam enunciar dele por uma proposição recíproca ou simplesmente conversível, a não ser provisoriamente, como ao dizer: O homem é o único animal racional. Tomando o homem como aqueles da nossa raça, o provisório consiste em subentender que ele é o único animal racional dos que nos são conhecidos; pois poderia acontecer que houvesse um dia outros animais aos quais fosse comum com os homens futuros tudo aquilo que observamos no homem até hoje, mas que fossem de outra origem. É como se os australianos imaginários viessem invadir as nossas regiões, sendo evidente que encontraríamos meios para distingui-los de nós. Em caso negativo, e supondo que Deus tivesse proibido a mistura dessas raças e que Jesus Cristo só tivesse remido a nossa, seria necessário procurar estabelecer características artificiais para distingui-los entre si. Haveria sem dúvida uma diferença interna, mas, visto que esta não se tornaria reconhecível, estaríamos reduzidos exclusivamente à denominação extrínseca do nascimento, que procuraríamos acompanhar com uma característica artificial durável, a qual daria uma denominação intrínseca, e um meio constante de discernir a nossa raça das outras. Tudo isto é ficção, pois não temos necessidade de recorrer a tais distinções, sendo nós os únicos animais racionais deste mundo. Todavia, essas ficções servem para conhecer a natureza das ideias, das substâncias e das verdades gerais a seu respeito. Entretanto, se o homem não fosse considerado a espécie mais baixa nem a dos animais racionais da raça de Adão, e se em lugar disto ele significasse um gênero comum a várias espécies, que atualmente pertence a uma única raça conhecida, mas que poderia pertencer também a outras, discerníveis ou pelo nascimento ou mesmo por outras características naturais, como, por exemplo, aos pseudo-australianos, neste caso, digo, este gênero teria proposições recíprocas, e a presente definição de homem não seria provisória. Ocorre o mesmo com o ouro; pois, supondo-se que tivéssemos um dia duas espécies discerníveis deste metal, uma rara e conhecida até agora, e a outra comum e talvez artificial, encontrada com o correr do tempo: neste caso, supondo-se que o nome ouro deva permanecer para a espécie atual, isto é, ao ouro natural e raro, para conservar mediante ele a comodidade da moeda de ouro baseada na raridade deste material, sua definição conhecida até agora por denominações intrínsecas teria sido apenas provisória, e deveria ser aumentada pelas novas características que se descobrirão, para distinguir o ouro raro ou da espécie antiga do ouro novo artificial. Todavia, se a palavra ouro devesse permanecer então comum às duas espécies, isto é, se por ouro se compreendesse um gênero do qual até agora não conhecemos subdivisão e que consideramos no momento a espécie mais baixa (apenas provisoriamente, até quando a subdivisão seja conhecida), e se um dia se encontrasse uma nova espécie, isto é, um ouro artificial fácil de fabricar e que poderia tornar-se comum; digo que, neste sentido, a definição deste gênero não deve ser julgada provisória, mas perpétua. E até, sem preocupar-nos dos termos homem e ouro, qualquer que seja o nome que se dê ao gênero ou à mais baixa espécie conhecida, e mesmo que não lhes déssemos nenhum nome, o que acabamos de dizer seria sempre verdadeiro das ideias, ou das espécies, e as espécies só serão definidas provisoriamente às vezes pelas definições dos gêneros. Todavia, será sempre permitido e razoável ouvir que existe uma essência real interna que pertence, por uma proposição recíproca, seja ao gênero, seja às espécies, a qual se faz conhecer geralmente pelas características externas. Supus até agora que a raça não degenera ou não muda: mas, se a mesma raça passasse a outra espécie, seríamos tanto mais obrigados a recorrer a outras características e denominações intrínsecas ou extrínsecas, sem prender-nos à raça.] § 7. FILALETO - As ideias complexas, justifica das pelos nomes que atribuímos às espécies das substâncias, são coleções das ideias de certas qualidades que notamos coexistir num suporte desconhecido que denominamos substâncias. Contudo, não podemos conhecer com certeza que outras qualidades coexistem necessariamente com tais combinações, a menos que pudéssemos descobrir a sua dependência com respeito às suas primeiras qualidades. TEÓFILO - [Já observei outrora que o mesmo acontece nas ideias dos acidentes, cuja natureza é um pouco estranha, como são por exemplo as figuras geométricas; com efeito, quando se trata, por exemplo, da figura de um espelho, que concentra todos os raios paralelos num só ponto como foco, podemos encontrar várias propriedades deste espelho antes de conhecer a sua constituição, porém estaremos na incerteza quanto a muitas outras propriedades que ele pode ter, até que encontremos nele aquilo que corresponde à constituição interna das substâncias, isto é, a construção desta figura do espelho, que será como a chave do conhecimento ulterior.] FILALETO - Todavia, se tivéssemos conhecido a constituição interna deste corpo, encontraríamos nele apenas a dependência que as qualidades primeiras, que vós denominais manifestas, podem ter em relação a ele, isto é: conheceríamos que grandezas, figuras e forças moventes dependem dele; todavia, não conheceríamos jamais a conexão que elas podem ter com as qualidades segundas ou confusas, isto é, com as qualidades sensíveis como as cores, os gostos etc. TEÓFILO - É que vós supondes ainda que as qualidades sensíveis, ou melhor, as ideias que temos delas, não dependem das figuras e movimentos naturalmente, mas somente do arbítrio de Deus, que nos dá tais ideias. Pareceis ter esquecido o que já objetei mais de uma vez contra esta opinião, para vos fazer pensar que estas ideias sensitivas dependem dos detalhes das figuras e movimentos e as exprimem com exatidão, embora não possamos distinguir nelas estes detalhes na confusão de uma multidão muito grande e pequenez das ações mecânicas que atingem nossos sentidos. Entretanto, se tivéssemos chegado à constituição interna de alguns corpos, veríamos também quando deveriam ter essas qualidades, que seriam elas mesmas reduzidas às suas razões inteligíveis, mesmo que não estivesse jamais em nosso poder reconhecê-las sensivelmente nessas ideias sensitivas, que constituem um resultado confuso das ações dos corpos sobre nós, como agora que temos a perfeita análise do verde em azul e amarelo, e não temos quase nada mais a inquirir a seu respeito a não ser em relação a estes ingredientes, não somos, todavia, capazes de distinguir as ideias do azul e do amarelo em nossa ideia sensitiva do verde, pelo próprio fato de ser uma ideia confusa. É mais ou menos a mesma coisa como não podemos distinguir a ideia dos dentes da roda, isto é, da causa da percepção de um transparente artificial, que notei entre os relojoeiros, feito pela pronta rotação de uma roda dentada, o que faz desaparecer os seus dentes e aparecer em seu lugar um transparente contínuo imaginário, composto das aparências sucessivas dos dentes e dos seus intervalos, mas onde a sucessão é tão rápida que a nossa fantasia não pode distingui-la. Por conseguinte, encontram-se estes dentes na noção distinta dessa transparência, mas não nesta percepção sensitiva confusa, cuja natureza é ser e permanecer confusa; de outra forma, se a confusão cessasse (como se o movimento fosse tão lento que pudéssemos observar-lhe as partes e a sucessão), não seria mais ela, isto é: não seria mais esta transparência imaginária (fantôme de transparence). E já que não necessitamos imaginar que Deus, pelo seu arbítrio, nos dá esta aparência e que ela é independente do movimento dos dentes da roda e dos seus intervalos, e uma vez que, ao contrário, concebemos que é apenas uma expressão confusa do que acontece neste movimento, expressão, digo, que consiste no fato de coisas sucessivas serem confundidas numa simultaneidade aparente, assim é fácil julgar que acontecerá o mesmo com respeito às outras aparências sensitivas (fantômes sensitifs), das quais não possuímos ainda uma análise tão perfeita, como das cores, dos gostos etc. Pois, para dizer a verdade, merecem este nome de fantasmas, preferivelmente ao de qualidades, ou mesmo de ideias. Bastar-nos-ia sob todos os aspectos compreendê-los tão bem como esta transparência artificial, sem que seja razoável nem possível pretender saber mais; pois querer que esses fantasmas confusos permaneçam, e apesar disso se distingam neles os ingredientes pela própria fantasia, equivale a contradizer-se, é o mesmo que querer ter o prazer de ser enganado por uma agradável perspectiva, e querer que ao mesmo tempo os olhos vejam o embuste, o que equivaleria a estragar esta perspectiva. É um caso em que nihilo plus agas Quam si des operam, ut cum ratione insanias Todavia, acontece muitas vezes aos homens de procurarem nodum in scirpo e de fabricarem dificuldades lá onde estas não existem, exigindo o que não se pode exigir e queixando-se depois da sua impotência e dos limites da sua luz. § 8. FILALETO - Todo ouro é fixo - é uma proposição cuja verdade não poderemos conhecer com certeza. Com efeito, se o ouro significa uma espécie de coisa distinguida por uma essência real que a natureza lhe deu, ignoramos que substâncias particulares são desta espécie: assim, não podemos afirmá-la com certeza, embora seja ouro. E se tomamos o ouro como sendo um corpo dotado de certa cor amarela, maleável, fusível, e mais pesado que qualquer outro corpo conhecido, não é difícil reconhecer o que é ouro e o que não o é; porém, com tudo isto, nenhuma outra qualidade pode ser afirmada ou negada com certeza a respeito do ouro, a não ser aquilo que com esta ideia tem uma conexão ou uma incompatibilidade que se pode descobrir. Ora, sendo que a fixidez não tem nenhuma conexão conhecida com a cor, o peso e as outras ideias simples que eu supus constituírem a ideia complexa que temos do ouro, é impossível que possamos conhecer com certeza a verdade desta proposição, isto é, que todo ouro é fixo. TEÓFILO - Sabemos mais ou menos com a mesma certeza que o mais pesado de todos os corpos conhecidos na terra é fixo, que sabemos que amanhã o dia amanhecerá. E porque o experimentamos cem mil vezes, é uma certeza experimental e de fato, embora não conheçamos a ligação da fixidez com as outras qualidades deste corpo. De resto, não se devem opor duas coisas que concordam e que se equivalem. Quando penso num corpo, que é ao mesmo tempo amarelo, fusível e resistente ao cadinho, penso num corpo cuja essência específica, embora desconhecida na sua interioridade, faz brotar essas qualidades da sua própria natureza e se dá a conhecer por meio delas, ao menos confusamente. Nenhum mal vejo nisto, nem algo que mereça que se volte sempre de novo à carga para atacá-lo, § 10. FILALETO - No momento é suficiente, para mim, que este conhecimento da fixidez do mais pesado dos corpos não nos é manifesto pela concordância ou discordância das ideias. Tenho para mim que, entre as segundas qualidades dos corpos e as potências que com elas se relacionam, não é possível mencionar duas cuja coexistência necessária ou a incompatibilidade possam ser conhecidas com certeza, excetuadas as qualidades que pertencem ao mesmo sentido e se excluem necessariamente uma à outra, como quando se pode dizer que aquilo que é branco não é preto. TEÓFILO - Entretanto, acredito que talvez se encontrem tais qualidades segundas. Por exemplo, todo corpo palpável - que podemos perceber pelo tato - é visível. Todo corpo duro faz ruído, quando o batemos no ar. É verdade que aquilo que exigis só se consegue na medida em que se concebem ideias distintas, associadas às ideias sensitivas confusas. § 11. FILALETO - Entretanto, não devemos imaginar que os corpos possuam as suas qualidades por si mesmos, independentemente de outra coisa. Um pedaço de ouro, separado da impressão e da influência de qualquer outro corpo, perderia imediatamente a sua cor amarela e o seu peso, tornando-se talvez também friável, e perderia a sua maleabilidade. Sabe-se quanto os animais e os vegetais dependem da terra, do ar, do sol; sabemos, porventura, se as estrelas fixas muito afastadas de nós não exercem também influências sobre nós? TEÓFILO - Esta observação é muito boa, e, se nos fosse conhecida a contextura de certos corpos, não poderíamos julgar bastante sobre os seus efeitos sem conhecer a natureza interna dos que os tocam ou os atravessam. § 13. FILALETO - Todavia, o nosso julgamento pode ir mais longe do que o nosso conhecimento. Com efeito, pessoas que se aplicam em fazer observações podem penetrar mais além, e por meio de algumas probabilidades de uma observação exata e de algumas aparências, devidamente reunidas, emitir muitas vezes conjeturas corretas sobre aquilo que a experiência ainda não lhes mostrou: entretanto, não ultrapassamos o âmbito das conjeturas. TEÓFILO - Se a experiência justifica estas consequências de uma forma constante, não acreditais que possamos por esse caminho adquirir proposições certas? Certas, digo, pelo menos, na mesma medida que aquelas que asseguram, por exemplo, que o mais pesado dos corpos é fixo, e que aquele que depois dele é o mais pesado, é volátil? Com efeito, parece-me que a certeza (entende-se, moral, ou física) mas não a necessidade (ou certeza metafísica) destas proposições, que aprendemos exclusivamente pela experiência, e não pela análise e conexão das ideias, é conhecida entre nós, e com razão. CAPÍTULO VII AS PROPOSIÇÕES DENOMINADAS MÁXIMAS OU AXIOMAS. § 1. FILALETO - Existe uma espécie de proposições que, sob o nome de máximas ou axiomas, passam como sendo os princípios das ciências; pelo fato de serem evidentes por si mesmas, costuma-se denominá-las inatas, sem que ninguém tenha jamais procurado - quanto saiba eu - mostrar a razão e o fundamento da sua extrema clareza, a qual por assim dizer nos força a dar-lhes o nosso consentimento. Entretanto, não é inútil entrar neste exame e ver se esta grande evidência se estende apenas a estas proposições, como também examinar até que ponto elas contribuem para outros conhecimentos nossos. TEÓFILO - Esta pesquisa é muito útil e até importante. Não deveis, porém, imaginar que ela tenha sido negligenciada totalmente até agora. Vereis em cem lugares que os filósofos da Escola afirmaram que tais proposições são evidentes ex terminis, logo que se lhes estendem os termos, de maneira que tais filósofos estavam persuadidos de que a força da convicção estava fundada na compreensão dos termos, ou seja, na conexão das suas ideias. Todavia, os geômetras fizeram bem mais: muitas vezes tentaram demonstrá-las. Proclo atribui já a Tales de Mileto, um dos mais antigos geômetras de que temos conhecimento, o ter querido demonstrar as proposições que Euclides considerou evidentes. Diz-se que Apolônio demonstrou outros axiomas, e Proclo também o faz. O falecido Roberval, já mais ou menos octogenário, tinha a intenção de publicar novos Elementos de Geometria, dos quais acredito ter-vos já falado. Possivelmente os novos Elementos de Arnauld, que naquele tempo despertavam sensação, contribuíram para tal. Ele demonstrou algo na Academia Real das Ciências, e alguns criticaram a afirmação de que, supondo este axioma - que, se a fatores iguais se acrescentam grandezas iguais, daí nascem fatores iguais -, ele demonstrava este outro axioma, que se considera igualmente evidente: se de fatores iguais se subtraem grandezas iguais, permanecem fatores iguais. Dizia-se que o autor deveria supor ambos os princípios, ou então demonstrá-los ambos. Eu não partilhava deste ponto de vista, acreditando que é sempre vantajoso diminuir o número dos axiomas. Sem dúvida a adição é anterior à subtração, e mais simples, visto que os dois termos são usados na adição, tanto um como o outro, o que não ocorre na subtração. Arnauld fazia o contrário de Roberval. Ele supunha ainda mais do que Euclides. No que concerne às máximas, são elas por vezes consideradas proposições estabelecidas, quer sejam evidentes quer não. Isto poderia ser bom para os iniciantes, inibidos pela escrupulosidade; quando, porém, se trata de estabelecer a ciência, é outra coisa. Assim é que se tomam tais máximas muitas vezes na moral, e mesmo entre os mestres da lógica, onde existe um bom número delas, onde, todavia, uma parte contém máximas bastante vagas e obscuras. Aliás, já faz tempo que afirmei publicamente e em particular que seria importante demonstrar todos os nossos axiomas secundários, dos quais nos servimos comumente, reduzindo-os aos axiomas primitivos ou imediatos e indemonstráveis, que são aqueles que ultimamente tenho denominado os idênticos. § 2. FILALETO - O conhecimento é evidente por si mesmo, quando a concordância ou discordância das ideias é percebida imediatamente. § 3. Todavia, existem verdades que não se reconhecem como axiomas, e que não são menos evidentes por si mesmas. Vejamos se as quatro espécies de concordâncias de que falamos acima - capítulo I, § 3; capítulo III, § 7 -, a saber, a identidade, a conexão, a relação e a existência real, nos fornecem tais princípios. § 4. Quanto à identidade ou à diversidade, temos tantas proposições evidentes quantas forem as ideias distintas que temos; pois podemos negar tanto uma como a outra, como ao dizermos que o homem não é um cavalo, que o vermelho não é o azul. Além disso, é tão evidente afirmar: O que é, é, como dizer: Um homem é um homem. TEÓFILO - É verdade, e já observei que é tão evidente afirmar, em particular, ecteticamente: A é A, quanto é evidente afirmar, em geral: Somos aquilo que somos. Entretanto, não é sempre seguro - conforme também já observei - negar os sujeitos das ideias diferentes uma da outra; como se alguém quisesse dizer: o trilátero - a figura que tem três lados - não é triângulo, pelo fato de que, na verdade, a trilateralidade não é a triangularidade; da mesma forma, se alguém tivesse dito que as pérolas do Sr. Slusius - do qual vos falei não faz muito tempo - não são as linhas da parábola cúbica, ter-se-ia enganado, e todavia isso teria parecido evidente a muitos. O falecido Hardy, conselheiro no Châtelet de Paris, excelente geômetra e orienta lista, além de grande conhecedor dos geômetras antigos, que publicou o comentário de Marino sobre os Data de Euclides, estava de tal modo convencido de que a seção oblíqua do cone - que se denomina elipse - é diferente da seção oblíqua do cilindro, que a demonstração de Serenus lhe parecia paralogística, e de nada serviram as minhas advertências. Aliás, tinha ele mais ou menos a mesma idade de Roberval, quando o encontrei, e eu era ainda muito jovem, diferença que não poderia dar-lhe muita força de persuasão com respeito a ele, embora de resto tivesse ótimas relações com ele. Este exemplo pode mostrar, de passagem, o poder do preconceito, mesmo em se tratando de pessoas inteligentes; com efeito, Hardy era muito inteligente, sendo que se fala com estima dele nas cartas de Descartes. Aduzi o seu nome apenas para mostrar como nos podemos enganar ao negarmos uma ideia da outra, quando não as tivermos aprofundado suficientemente, onde for necessário. § 5. FILALETO - No que concerne à conexão ou coexistência, possuímos muito poucas proposições evidentes por si mesmas; todavia, existem algumas, e, ao que parece, é uma proposição evidente por si mesma que dois corpos não podem estar no mesmo lugar. TEÓFILO - Muitos cristãos o contestam, como já assinalei, e mesmo Aristóteles e os que, na sua esteira, admitem condensações reais e exatas, que reduzem um mesmo corpo inteiro a um lugar menor do que aquele que ele ocupava antes, e os quais, como o falecido Comênio, num pequeno livro, pretendem acabar com a filosofia moderna pela experiência do arcabuz a vento, provavelmente não concordarão. Se considerais o corpo uma massa impenetrável, a vossa enunciação será verdadeira, visto que será idêntica ou quase: porém negar-vos-ão que o corpo real será tal. Pelo menos se dirá que Deus poderá fazer de outra forma, de sorte que se admitirá somente esta impenetrabilidade como conforme à ordem natural das coisas que Deus estabeleceu e da qual a experiência nos assegurou, embora por outra parte seja necessário reconhecer que ela é também muito conforme à razão. § 6. FILALETO - Quanto às relações dos modos, os matemáticos formaram vários axiomas apenas sobre a relação de igualdade, como aquele de que acabais de falar, que se de coisas iguais se tiram coisas iguais, o que resta é igual. Todavia, não é menos evidente - creio eu - que um mais um são dois, e que se de cinco dedos de uma mão tirardes dois e mais dois dos cinco dedos da outra mão, o número dos dedos que resta será igual. TEÓFILO - Que um mais um faz dois, não é propriamente uma verdade, mas a definição de dois. Embora haja isto de verdadeiro e de evidente que é a definição de uma coisa possível. Quanto ao axioma de Euclides, aplicado aos dedos da mão, quero reconhecer que é tão fácil conceber o que dizeis dos dedos, quanto ver isto em relação a A e B; entretanto, para não fazer muitas vezes a mesma coisa, assinalamo-lo em geral, e depois disso basta fazer subtrações. De outra forma, é como se preferisse o cálculo em números particulares às regras universais; o que seria obter menos do que é possível obter. Pois é melhor resolver este problema geral: encontrar dois números cuja soma perfaça um número dado, e cuja diferença perfaça também um número determinado, do que procurar somente dois números cuja soma perfaça 10, e cuja diferença perfaça 6; com efeito, se procedo neste segundo problema à maneira da álgebra numérica, mesclada com a "especiosa", o cálculo será o seguinte: sejam a + b = 10, e a - b = 6; acrescentando conjuntamente o lado direito ao direito e o lado esquerdo ao esquerdo, faço com que resulte a + b + a - b = 10 + 6, isto é - visto que +b e -b se eliminam reciprocamente -, 2a = 16 ou a = 8. Subtraindo o lado direito do direito e o esquerdo do esquerdo - visto que tirar a - b é somar -a + b -, faço com que resulte a + b - a + b = 10 - 6, isto é, 2b = 4 ou b = 2. Assim terei, na verdade, os a e b, que procuro, que são 8 e 2, que satisfazem à questão, isto é, cuja soma perfaz 10 e cuja diferença perfaz 6; entretanto, não tenho com isto o método geral para alguns outros números, que se quererá ou se poderá colocar em lugar de 10 ou 6, método que, sem embargo, poderia encontrar com a mesma facilidade que estes dois números 8 e 2, colocando x e v em lugar dos números 10 e 6. Com efeito, procedendo da mesma forma que antes, haverá a + b + a - b = x + v, isto é, 2a = x + v ou a = 1/2 (x + v), havendo ainda a + b - a + b = x - v, isto é, 2b = x - v ou b = 1/2 (x - v). Este cálculo fornece este teorema ou cânon geral, que quando se pedem dois números cuja soma e diferença são dadas, basta tomar para o maior dos números pedidos a metade da soma feita da soma e a diferença dadas, e para o menor dos números pedidos, a metade da diferença entre a soma e a diferença dadas. Vê-se também que eu poderia ter dispensado as letras, isto é, se, em lugar de colocar 2a = 16 e 2b = 4, tivesse escrito 2a = 10 + 6, 2b = 10 - 6, o que me teria dado a = 1/2(10+6) e b = 1/2(10-6). Assim, no próprio cálculo particular, eu teria tido o cálculo geral, tomando esses números 10 e 6 como números gerais, como se fossem letras x e v; a fim de ter uma verdade ou um método mais geral e tomando esses mesmos caracteres 10 e 6 ainda como sendo os números que os caracteres significam ordinariamente, terei um exemplo sensível, o que pode até servir como prova. E, como Viête substituiu os números pelas letras para conseguir maior generalidade, eu quis reintroduzir os caracteres dos números, vistos serem mais próprios que as letras. Pareceu-me ser isto muito útil nos grandes cálculos, para evitar os erros, e mesmo para aplicar-lhes provas, tais como a objeção do novenário no meio da conta, sem esperar o resultado, quando só existem números em lugar das letras; isto pode ocorrer muitas vezes, quando utilizamos direção nas posições, de sorte que as suposições se confirmam verdadeiras no particular, além da utilidade que há em ver ligações e ordens, que só as letras não conseguem fazer distinguir bem ao espírito, conforme demonstrei alhures, tendo chegado à conclusão de que a boa característica constituiu uma das maiores ajudas do espírito humano. § 7. FILALETO - Quanto à existência real, que eu havia citado como a quarta espécie de concordância que se pode notar nas ideias, ela não nos teria fornecido nenhum axioma, pois não temos sequer um conhecimento demonstrativo dos seres fora de nós, excetuado Deus. TEÓFILO - Pode-se sempre dizer que esta proposição - eu existo - apresenta a máxima evidência, por ser uma proposição que não pode ser demonstrada por nenhuma outra, ou então, uma verdade imediata. Dizer - eu penso, logo existo - não é propriamente demonstrar a existência pelo pensamento, pois pensar e ser pensante são a mesma coisa; dizer: eu sou pensante, é já dizer: eu sou. Todavia podeis excluir esta proposição dos números dos axiomas, e isto com certa razão, pois é uma proposição de fato, fundada sobre uma experiência imediata; é uma proposição necessária, da qual se vê a necessidade na concordância imediata das ideias. Ao contrário, só Deus vê como estes termos - eu e existência - são ligados, isto é, por que eu existo. Todavia, se o axioma se tomar de maneira mais geral como uma verdade imediata ou não demonstrável, pode-se dizer que esta proposição - eu sou - constitui um axioma, e, em todo caso, pode-se assegurar que é uma verdade primitiva, ou então, unum ex primis cognitis inter terminas complexos) isto é, que é uma das enunciações primárias entre as conhecidas, o que se entende na ordem natural dos nossos conhecimentos, pois é possível que um homem jamais tenha pensado em formar expressamente esta proposição, a qual todavia é inata. § 8. FILALETO - [Sempre tinha acreditado que os axiomas exercem pouca influência sobre as outras partes do nosso conhecimento. Entretanto, vós me desconvencestes, visto que demonstrastes um uso importante das idênticas. Permiti, porém, que vos reapresente o que eu tinha no espírito no tocante a este ponto, pois os vossos esclarecimentos poderão servir também para converter a outros do seu erro.] § 8. É uma regra célebre nas Escolas que todo raciocínio provém das coisas já conhecidas e admitidas, ex praecognitis et praeconcessis. Esta regra parece fazer considerar tais máximas como verdades conhecidas ao espírito antes das outras, e as outras partes do nosso conhecimento como verdades dependentes dos axiomas. § 9. [Eu acreditava haver demonstrado (no livro 1, capítulo I) que estes axiomas não são os primeiros conhecidos, visto que a criança conhece muito antes que a vara que lhe mostro não é o açúcar que degustou, que qualquer axioma que quiserdes. Porém vós distinguistes entre os conhecimentos singulares ou experiências de fato e entre os princípios de um conhecimento universal e necessário - caso no qual reconheço ser necessário recorrer aos axiomas - como também entre a ordem acidental e a natural.] TEÓFILO - Eu tinha acrescentado que na ordem natural vem antes dizer que uma coisa é aquilo que é, que dizer que ela não é outra coisa; pois aqui não se trata da história das nossas descobertas, a qual é diferente de homem para homem, mas da ligação e da ordem natural das verdades, a qual é sempre a mesma. Todavia, a vossa observação, isto é, que aquilo que a criança vê não passa de um fato, merece ainda mais reflexão; pois as experiências dos sentidos não dão verdades absolutamente certas (como vós mesmo observastes, não faz muito tempo) nem verdades que sejam isentas de todo perigo de ilusão. Pois, se é permitido imaginar ficções metafisicamente possíveis, o açúcar poderia mudar-se em vara de maneira imperceptível, para punir a criança se ela tiver sido má, como entre nós a água se muda em vinho na véspera de Natal, se a criança tiver sido bem-comportada. Entretanto, nunca a dor - direis vós - causada pela vara será o prazer que proporciona o açúcar. A isto respondo que a criança não conseguirá fazer disto uma proposição expressa ou notar este axioma, embora possa muito bem perceber a diferença entre o prazer e a dor, como também a diferença entre perceber e não perceber. § 10. FILALETO - Existe, porém, uma série de outras verdades, as quais são tão evidentes por si mesmas como essas máximas. Por exemplo, que um mais dois equivale a três constitui uma proposição tão evidente quanto o axioma que diz que o todo é igual a todas as suas partes tomadas em conjunto. TEÓFILO - Pareceis haver esquecido, como vos demonstrei mais de uma vez, que um mais dois faz três não constitui senão a definição de três, de maneira que dizer que um mais dois é igual a três é dizer que uma coisa é igual a si mesma. No que concerne a este axioma - que o todo é igual a todas as suas partes tomadas em conjunto - Euclides não o utiliza expressamente. Assim sendo, este axioma tem necessidade de limitação, pois é preciso acrescentar que estas partes não devem ter elas mesmas parte comum, pois 7 e 8 são partes do 12, mas compõem mais que 12. O abuso e o tronco tomados em conjunto são mais que o homem, no sentido de que o tórax é comum aos dois. Mas Euclides afirma que o todo é maior do que a sua parte, o que é isento de dúvida. Dizer que o corpo é maior do que o tronco não difere do axioma de Euclides a não ser pelo fato de que este axioma se limita ao que é precisamente necessário; todavia, ao exemplificá-lo e ao revesti-lo de corpo, faz-se com que o inteligível se torne também sensível, pois dizer - tal todo é maior que esta tal parte dele - é com efeito a proposição que um todo é maior do que a sua parte, mas cujos traços são carregados de alguma adição; é como quem diz AB diz A. Assim, não se deve opor aqui o axioma e o exemplo como diferentes verdades sob este aspecto, mas considerar o axioma incorporado no exemplo e tornando o exemplo verdadeiro. Outra coisa ocorre quando a evidência não se nota no próprio exemplo, e a afirmação do exemplo é uma consequência e não somente uma subsunção da proposição universal, como pode acontecer também com respeito aos axiomas. FILALETO - Quanto a isso, diz o nosso inteligente autor: gostaria de perguntar a estes senhores, segundo os quais qualquer outro conhecimento - que não seja o conhecimento de fato - depende dos princípios gerais inatos e evidentes por si mesmos, de que princípio necessitam para provar que dois mais dois são quatro. Pois conhecemos - segundo o nosso autor - a verdade destas espécies de proposições sem o auxílio de qualquer prova. Que dizeis vós a isto? TEÓFILO - Asseguro-vos que estava preparado para esta pergunta. Não constitui uma verdade de todo imediata que dois mais dois são quatro, suposto que quatro significa três mais um. Por conseguinte, pode-se demonstrar tal verdade, eis de que maneira: Definições: 1)Dois são um mais um. 2)Três são dois mais um. 3)Quatro são três mais um. Axioma. Colocando em lugar dos números coisas iguais, a igualdade permanece. Demonstração: 2 mais 2 são 2 mais 1 mais 1 (em virtude da definição 1) ... 2 + 2 2 mais 1 mais 1 são 3 mais 1 (em virtude da definição 2) ... 2 + 1 + 1 3 mais 1 são 4 (em virtude da definição 3) ... 3 + 1 Por conseguinte (em virtude do axioma) 2 mais 2 são 4. É o que cumpria demonstrar. Eu poderia, em vez de dizer que 2 mais 2 são 2 mais 1 mais 1, colocar que 2 mais 2 é igual a 2 mais 1 mais 1, fazendo o mesmo com as outras equações. Todavia podemos subentender isto em toda parte, por ser mais rápida esta operação; e isto em virtude de outro axioma, segundo o qual uma coisa é igual si mesma, ou então, que aquilo que é o mesmo é igual. FILALETO - [Esta demonstração, por menos necessária que seja com relação à sua conclusão demasiado conhecida, serve para mostrar como as verdades dependem das definições e dos axiomas. Assim prevejo o que respondereis a várias objeções que se fazem contra o uso dos axiomas. Objeta-se que haverá uma multidão inumerável de princípios; mas acontece quando se contam entre os princípios os corolários que seguem das definições com o auxílio de algum axioma. E já que as definições ou ideias são inúmeras, os princípios também o serão neste sentido, e mesmo supondo convosco que os princípios indemonstráveis são os axiomas idênticos. Eles se tornam inumeráveis também pela exemplificação, mas no fundo se pode contar A é A, e B é B em virtude de um mesmo princípio, formulado de outra maneira.] TEÓFILO - Além disso, esta diferença dos graus que existe na evidência faz com que eu não concorde com o vosso autor em que todas essas verdades, que são denominadas princípios, e que passam como evidentes por si mesmas, pelo fato de serem tão próximas aos primeiros axiomas indemonstráveis, são inteiramente independentes e incapazes de receber umas das outras qualquer luz ou prova. Pois se pode sempre reduzi-las ou aos próprios axiomas, ou a outras verdades mais próximas dos axiomas, como esta verdade que dois mais dois são quatro vos demonstrou. Acabo de contar-vos como o Sr. Roberval diminuía o número dos axiomas de Euclides, reduzindo por vezes um ao outro. § 11. FILALETO - Este escritor judicioso, que deu ocasião às nossas discussões, reconhece que as máximas têm a sua utilidade, mas ele acredita que a sua vantagem consista antes em fechar a boca dos obstinados que em estabelecer as ciências. Sentir-me-ia muito feliz - diz ele - se alguém me mostrasse que alguma dessas ciências está baseada sobre tais axiomas gerais, e demonstrasse que sem tais axiomas as ciências careceriam de fundamento. TEÓFILO - A geometria constitui sem dúvida uma dessas ciências. Euclides emprega expressamente os axiomas nas demonstrações, e este axioma - duas grandezas homogêneas são iguais quando uma não é nem maior nem menor do que a outra - constitui o fundamento das demonstrações de Euclides e de Arquimedes sobre a grandeza das curvilíneas. Arquimedes empregou axiomas de que Euclides não tinha necessidade; por exemplo, que de duas linhas das quais cada uma tem a sua concavidade sempre do mesmo lado, a que encerra a outra é a maior delas. Tampouco podemos dispensar os axiomas idênticos em geometria, como, por exemplo, do princípio de contradição ou das demonstrações que conduzem ao impossível. E quanto aos outros axiomas, que são demonstráveis a partir daqueles, poderíamos dispensá-los, falando de maneira absoluta, e tirar as conclusões imediatamente das idênticas e das definições; mas a prolixidade das demonstrações e das repetições sem fim, em que se cairia neste caso, causaria uma confusão terrível, se fosse necessário recomeçar sempre ab ovo; ao passo que, supondo as proposições médias, já demonstradas, se vai facilmente mais longe. E esta suposição das verdades já conhecidas é útil sobretudo com relação aos axiomas, pois estes voltam tão frequentemente que os geômetras são obrigados a utilizá-los a cada momento sem citá-los; assim sendo, enganar-nos-íamos se acreditássemos que eles não existem pelo fato de não serem citados sempre expressamente. FILALETO - Todavia, o nosso autor objeta o exemplo da teologia. É da revelação - afirma ele - que nos veio o conhecimento desta santa religião, e sem este auxílio as máximas jamais teriam sido capazes de nos fazê-la conhecer. Por conseguinte, a luz nos vem das próprias coisas, ou imediatamente da infalível veracidade de Deus. TEÓFILO - É como se eu dissesse: a medicina está fundada na experiência, portanto a razão de nada serve. A teologia cristã, que constitui a verdadeira medicina das almas, está fundada na revelação, que corresponde à experiência; todavia, para fazer um todo completo, é necessário acrescentar a teologia natural, que é tirada dos axiomas da razão eterna. O próprio princípio de que a veracidade constitui um atributo de Deus - sobre o qual reconheceis estar fundada a revelação - não é porventura uma máxima tomada da teologia natural? FILALETO - O nosso autor quer que se distinga entre o meio de adquirir o conhecimento e o meio de ensiná-lo, ou então entre ensinar e comunicar. Após ter instituído as escolas e estabelecido professores para ensinar as ciências que outros tinham inventado, esses professores utilizaram essas máximas para imprimir as ciências no espírito dos seus alunos e para convencê-los, através dos axiomas, de algumas verdades particulares; ao passo que as verdades particulares serviram aos primeiros inventores para encontrar a verdade sem as máximas gerais. TEÓFILO - Gostaria que nos justificassem este pretenso procedimento por exemplos de algumas verdades particulares. Considerando bem as coisas, constata-se que tal procedimento não foi seguido no estabelecimento das ciências. E, se o inventor descobre apenas uma verdade particular, é inventor apenas pela metade. Se Pitágoras tivesse observado apenas que o triângulo cujos lados são 3, 4, 5 tem a propriedade da igualdade do quadrado da hipotenusa com aqueles dos lados (isto é, que 9 + 16 são 25), teria ele com isto sido o inventor desta grande verdade, que compreende todos os triângulos retângulos, e que se impôs como máxima entre os geômetras? É verdade que muitas vezes um exemplo, considerado por acaso, serve como ocasião a um homem engenhoso para conduzi-lo a procurar a verdade geral, mas mesmo assim é outra coisa descobrir tal verdade; além disso, este caminho de invenção não é o melhor nem o mais usado entre aqueles que procedem com ordem e método, sendo que só se servem desta via nas ocasiões em que falham métodos melhores. É como alguns pensaram que Arquimedes descobriu a quadratura da parábola cortando um pedaço de madeira talhado em forma de parábola, e que foi esta experiência particular que o fez descobrir a verdade geral; entretanto, os que conhecem a penetração desse grande homem veem bem que ele não necessitava de tal ajuda. Todavia, mesmo que este caminho empírico das verdades particulares tivesse constituído a ocasião de todas as descobertas, ela não teria sido suficiente para produzi-las; os próprios inventores se admiraram em notar as máximas e as verdades gerais quando conseguiram atingi-las, do contrário as suas invenções teriam sido muito imperfeitas. Por conseguinte, tudo aquilo que se pode atribuir às escolas e aos professores é terem recolhido e ordenado as máximas e as outras verdades gerais: e oxalá se tivesse feito mais deste trabalho, com mais cuidado e mais escolha, pois, se assim fosse, as ciências não se encontrariam tão dissipadas e tão complicadas. Aliás, reconheço que há muitas vezes diferença entre o método que se utiliza para ensinar as ciências e o método que levou à descoberta dessas ciências, porém a questão em foco não é esta. Por vezes, conforme já observei, foi o acaso que levou às invenções. Se se tivessem anotado essas ocasiões e conservado a sua memória para a posteridade - o que teria sido muito útil - este detalhe teria constituído uma parte muito considerável da história das artes, mas não teria sido próprio para construir os seus sistemas. Por vezes também os inventores procederam racionalmente em direção à verdade, porém por longos desvios. Acredito que em ocasiões de importância os autores teriam prestado serviço ao público, se tivessem assinalado nos seus escritos os passos dos seus ensaios; entretanto, se o sistema da ciência tivesse que ser construído sobre esta base, seria como se numa casa terminada se quisesse conservar toda a aparelhagem de que o arquiteto teve necessidade para construí-la. Os bons métodos de ensinar são todos tais que a ciência poderia ter sido descoberta certamente por este caminho; e então, se esses métodos não são empíricos, isto é, se as verdades são ensinadas pelas razões ou por provas tiradas das ideias, será sempre por axiomas, teoremas, cânones e outras proposições gerais deste gênero. Outra coisa ocorre quando as verdades são aforismos, como os de Hipócrates, ou seja, verdades de fato ou gerais, ou pelo menos na maioria dos casos verdadeiras, aprendidas pela observação ou fundadas em experiências, e para as quais não se têm razões de todo convincentes. Entretanto, não é disso que se trata aqui, visto que estas verdades não são conhecidas pela conexão das ideias. FILALETO - Eis aqui de que maneira - na opinião do nosso inteligente autor - foi introduzida a necessidade das máximas. Pelo fato de as escolas estabelecerem a discussão como a pedra de toque para medir a habilidade das pessoas, atribuíam a vitória àquele que ficava no campo de batalha e que falava por último. Entretanto, para encontrar meios de convencer os obstinados, era necessário estabelecer as máximas. TEÓFILO - As escolas de filosofia teriam agido melhor, sem dúvida, juntando a prática à teoria, como fazem as escolas de medicina, de química e de matemática, e dando o prêmio a quem tivesse agido melhor, sobretudo em moral, preferivelmente àquele que tivesse falado melhor. Todavia, como existem assuntos em que o próprio discurso constitui um efeito, e por vezes o único efeito e obra-prima que possa mostrar a habilidade de uma pessoa, como nas matérias metafísicas, foi razoável, em certas ocasiões, julgar da habilidade das pessoas pelo êxito que tiveram nos debates. Sabe-se até que no início da Reforma os protestantes provocaram os seus adversários a entrar em colóquios e debates, e por vezes o público se decidiu pela Reforma, baseado no êxito dos debates. Sabe-se também de quanto é capaz a arte de falar e de reforçar as razões, e - se assim se pode denominá-la - a arte de debater, num Conselho de Estado ou de Guerra, numa corte de justiça, numa consulta médica, e até numa conversação. Está-se obrigado a recorrer a este meio e contentar-se com falar, em vez de agir, em tais ocasiões, pela simples razão de que se trata no caso de um acontecimento ou fato futuro, em que seria demasiado tarde aprender pelos efeitos. Assim, a arte de debater ou de combater com razões - entendo aqui também o recurso às autoridades e aos exemplos - é muito grande e muito importante. Por infelicidade, porém, esta arte está muito mal regrada, sendo também por isso que muitas vezes não se conclui nada, ou se conclui mal. Eis por que mais de uma vez tive a ideia de fazer observações sobre os diálogos dos teólogos com os quais temos relações, para mostrar os defeitos que neles podem encontrar-se, bem como os remédios que se poderiam empregar. Em consultas sobre os negócios, se aqueles que têm mais poder não têm o espírito bem sólido, a autoridade e a eloquência se sobrepõem geralmente, ao serem brandidas contra a verdade. Numa palavra, a arte de dialogar e debater teria necessidade de ser completamente refundida. No que concerne à vantagem daquele que fala por último, isto ocorre praticamente apenas nas conversações livres, visto que, nos conselhos, os sufrágios ou votos seguem a ordem, quer se comece quer se termine pelo último na ordem. É verdade que, via de regra, compete ao presidente começar ou terminar, isto é, propor e concluir; todavia, o presidente conclui segundo a pluralidade dos votos. E, nos debates acadêmicos, é o respondente ou o defendente que fala por último, e, por um hábito quase estabelecido, o campo de batalha permanece quase reservado a ele. Para dizer a verdade, em tais ocasiões quase não entra em questão a verdade; assim, o defendente sustenta em tempos diferentes teses opostas na mesma cátedra. Mostraram a Casaubon a sala de conferências na Sorbonne e lhe disseram: Eis o lugar onde se debateu durante tantos séculos. Ele respondeu: Que é que se concluiu desses debates? FILALETO - Entretanto, quis-se impedir que o debate fosse até o infinito, e fazer com que houvesse maneira de decidir entre dois conferentes igualmente preparados, a fim de que a discussão não entrasse numa série infinita de silogismos. O meio que se encontrou foi introduzir certas proposições gerais, a maioria delas evidentes por si mesmas, e as quais, podendo por natureza ser aceitas por todos os homens com um consenso completo, deviam ser consideradas medidas gerais da verdade e figurar como princípios - quando os conferentes não haviam assentado outros - além dos quais não se podia avançar e aos quais os conferentes estavam obrigados a ater-se. Assim sendo, pelo fato de essas máximas terem recebido o nome de princípios que não se podiam negar no debate, as quais encerravam o debate, foram elas erroneamente - conforme o meu autor - consideradas a fonte dos conhecimentos e o fundamento das ciências. TEÓFILO - Oxalá se utilizassem os princípios desta maneira nos debates, pois neste caso nada haveria a censurar, já que se decidiria alguma coisa. Que se poderia fazer de melhor senão reduzir a controvérsia, isto é, as verdades contestadas, a verdades evidentes e incontestáveis? Não equivaleria isso a estabelecê-las de forma demonstrativa? E quem pode duvidar de que tais princípios, que encerrariam os debates estabelecendo a verdade, não constituiriam ao mesmo tempo as fontes dos conhecimentos? Com efeito, desde que o raciocínio seja correto, não importa que ele seja feito tacitamente em seu gabinete, ou que o seja publicamente na cátedra. E mesmo que tais princípios fossem antes interrogações do que axiomas, considerando as questões não como Euclides mas como Aristóteles, isto é, como suposições com as quais se quer concordar, aguardando que haja ocasião de demonstrá-los, tais princípios teriam sempre esta utilidade, a saber, que através deles todas as outras questões seriam reduzidas a um pequeno número de proposições. Assim sendo, surpreende-me muito ver censurar uma coisa elogiável, em virtude de não sei que preconceito, ao qual estão sujeitos os homens mais inteligentes, como se pode ver do exemplo do vosso autor. Infelizmente, o que se costuma fazer nos debates acadêmicos é bem outra coisa. Em lugar de estabelecer axiomas gerais, faz-se tudo o que se pode para enfraquecê-los através de distinções vãs e pouco inteligíveis, e se tem prazer em utilizar certas regras filosóficas, das quais os livros estão repletos, mas que são pouco seguras e pouco determinadas, e que se tem prazer em eludir, fazendo mil distinções. Não é este o meio de terminar debates mas sim o meio para prolongá-los ao infinito e cansar finalmente o adversário. É como se se conduzisse o adversário a um lugar obscuro, onde se bate a torto e a direto e onde ninguém pode fazer um julgamento correto sobre as batidas. Esta invenção é admirável para os defendentes (respondentes) que se comprometeram a sustentar certas teses. É um escudo de Vulcano, que os torna invulneráveis; é como a Orci galea e elmo de Plutão, que os torna invisíveis. Desta forma, só será possível surpreendê-los sem a razão se forem muito pouco hábeis e infelizes na argumentação. É verdade que existem regras que possuem exceções, sobretudo nas questões em que entram muitas circunstâncias, como na jurisprudência. Entretanto, para tornar seguro o uso dessas regras, é necessário que essas exceções sejam determinadas em número e no sentido, na medida do possível; e neste caso pode acontecer que a própria exceção tenha as suas subexceções, isto é, réplicas, e que a réplica tenha duplicações etc., mas ao final das contas é necessário que todas essas exceções e subexceções, bem determinadas, junto com a regra, atinjam a universalidade. Disso a jurisprudência fornece exemplos muito notáveis. Entretanto, se essas espécies de regras, cheias de exceções e subexceções, devessem entrar nos debates acadêmicos, seria necessário sempre discutir com a pena na mão, fazendo uma espécie de protocolo sobre o que se diz por parte de um e do outro. Isto seria necessário também, ao debater constantemente segundo as regras por vários silogismos, mesclados de tempos a tempos de distinções, onde a melhor memória do mundo se confunde inevitavelmente. Todavia, não se tem o cuidado de dar-se a este trabalho, de acentuar bastante os silogismos de forma rigorosa e de registra-los para descobrir a verdade quando ela é sem recompensa, e não se atingiria isto quando se quisesse a menos que as distinções sejam excluídas ou melhor regradas. FILALETO - Sem embargo, é verdade, como observa o nosso autor, que o método da Escola, tendo sido introduzido também nas conversações fora das escolas, para fechar assim a boca dos chicaneiros, produziu um mau efeito. Pois, desde que se tenham ideias médias, não se pode ter a conexão delas sem o auxílio das máximas e antes que elas sejam produzidas, e isto bastaria para pessoas sinceras e tratáveis. Entretanto, uma vez que o método das escolas autorizou e encorajou os homens a se oporem e a resistirem a verdades evidentes até que sejam obrigados a se contradizer, ou então a combater contra princípios estabelecidos, não se deve admirar que na conversação ordinária não tenham vergonha de fazer o que constitui título de glória e passa por virtude nas escolas. O nosso autor acrescenta que no caso de pessoas razoáveis, espalhadas pelo resto do mundo, as quais não foram corrompidas pela educação, terão elas muita dificuldade em acreditar que tal método jamais tenha sido seguido por pessoas que professam amar a verdade e que passam a sua vida estudando a religião ou a natureza. Não examinarei aqui - diz o autor - quanto esta maneira de ensinar é apta a desviar o espírito das pessoas jovens do amor e de uma busca sincera da verdade, ou melhor, a fazê-las duvidar se existe efetivamente alguma verdade no mundo, ou pelo menos alguma verdade que mereça ser aceita irreversivelmente. O que acredito firmemente - acrescenta ele - é que, excetuados os lugares em que se admitiu a filosofia peripatética nas suas escolas, onde ela reinou muitos séculos sem ensinar outra coisa ao mundo que a arte de discutir, em parte alguma se consideraram tais máximas como os fundamentos das ciências e como meios importantes para progredir no conhecimento das coisas. TEÓFILO - Segundo o vosso inteligente autor, só as escolas têm inclinação para estabelecer máximas, porém estamos aqui diante de um instinto geral e muito razoável de todo gênero humano. Podeis concluí-lo dos provérbios que estão em uso em todos os povos, os quais via de regra não são outra coisa que máximas com as quais o público concordou. Todavia, quando pessoas de critério pronunciam alguma coisa que nos parece contrária à verdade, é preciso suspeitar que existe mais defeito nas suas expressões do que nos seus julgamentos: é o que se confirma no caso do nosso autor, no qual começo a adivinhar os motivos que o levam a combater as máximas. É que, realmente, nos discursos comuns, nos quais não se trata de exercitar-se, como nas escolas, é chicanear querer ser convencido para se render. De resto, o mais das vezes prefere-se suprimir as premissas maiores, que se subentendem, e contentar-se com os entimemas, e mesmo sem formar premissas muitas vezes colocar o simples medius terminus ou a ideia média, sendo que neste caso o espírito compreende a sua conexão sem que seja necessário formulá-la explicitamente. Todavia, isto é correto quando esta conexão é incontestável. Mas vós mesmo reconheceis que muitas vezes se supõe isto com muita pressa, e que disto nascem paralogismos, de maneira que seria melhor, muitas vezes, levar em conta a segurança ao exprimir-se, do que preferir a brevidade e a elegância. Entretanto, o preconceito do vosso autor contra as máximas o levou a rejeitar completamente a sua utilidade para o estabelecimento da verdade e chega ao ponto de afirmar que elas são responsáveis pelas desordens da conversação. É verdade que as pessoas jovens que se habituaram aos exercícios acadêmicos, nos quais as pessoas se preocupam demais em exercitar-se e pouco em haurir do exercício os melhores resultados possíveis, ou seja, o conhecimento, têm dificuldade em desfazer-se deles no mundo. E uma das suas chicanas é não querer render-se à verdade a não ser quando ela se tenha tomado inteiramente palpável, embora a sinceridade e mesmo a civilidade devessem obrigá-los a não chegar a esses extremos, que os fazem tornarem-se incômodos e lhes conferem má reputação. Este é reconhecidamente um vício que afeta muitas vezes as pessoas letradas. Entretanto, a falha não está em querer reduzir as verdades às máximas, mas em querer fazê-lo fora de tempo e sem necessidade, pois o espírito humano considera tudo de uma vez, e equivale a perturbá-lo querer obrigá-lo a parar em cada passo que faz e a exprimir tudo aquilo que pensa. É como se, ao acertar a conta com um comerciante ou um hóspede, quiséssemos obriga-lo a contar tudo com os dedos para maior segurança. Para exigi-lo, seria necessário ser um estúpido ou um caprichoso. Com efeito, por vezes acho que Petrônio teve razão em dizer adolescentes in scholis stultissimos fieri, ou seja, que os jovens por vezes se tomam estúpidos e mesmo destituídos de cérebro nos lugares que deveriam ser as escolas da sabedoria; corruptio optimi péssima. Além disso muitas vezes se tornam vãos, confusos, caprichosos, incômodos, o que frequentemente depende do mau humor dos mestres que têm. Aliás, acho que existem faltas muito maiores, na conversação, do que a de exigir demasiada clareza. Pois via de regra cai-se no vício contrário, sendo que não se dá e não se exige suficiente clareza. Se uma coisa é incômoda, a outra é prejudicial e perigosa. § 12. FILALETO - O uso das máximas também o é, por vezes, quando as aplicamos a noções falsas, vagas e incertas, pois então as máximas servem para nos confirmar nos erros, e mesmo para demonstrar contradições. Por exemplo, quem, na esteira de Descartes, se forma uma ideia do que ele denomina corpo como sendo uma coisa que é apenas extensão, pode demonstrar facilmente, por esta máxima - o que é, é - que não existe vácuo, isto é, espaço sem corpo. Pois ele conhece a sua própria ideia, ele sabe que ela é o que é, e não outra ideia; assim estendida, sendo que corpo e espaço são para ele três palavras que significam uma mesma coisa, é-lhe tão verdadeiro afirmar que o espaço é corpo como dizer que o corpo é corpo. § 13. Ao contrário, outro, para o qual o corpo significa um extenso sólido, concluirá da mesma forma que afirmar que o espaço não é corpo é tão certo como qualquer proposição que se possa demonstrar por esta máxima: é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo. TEÓFILO - O mau uso das máximas não deve levar a censurar sem discriminação o seu uso; todas as verdades estão sujeitas a este inconveniente, isto é, que associando-as a afirmações falsas, pode-se tirar conclusões falsas, e mesmo contraditórias. E, neste exemplo, não se tem necessidade desses axiomas idênticos a quem se atribui a causa do erro e da contradição. Isto se veria se o argumento daqueles que concluem das suas definições que o espaço é corpo, ou que o espaço não é corpo, fosse reduzido a forma. Existe até algo demais nesta consequência: o corpo é extenso e sólido, portanto a extensão, ou seja, o extenso, não é um corpo, e a extensão não é coisa corporal; pois já assinalei que existem expressões supérfluas das ideias, ou que não multiplicam as coisas, como se alguém dissesse: por triquetrum entendo um triângulo trilátero, e daqui concluísse que nem todo trilátero é um triângulo. Assim, um Cartesiano poderá dizer que a ideia do extenso sólido é desta mesma natureza, isto é, que existe o supérfluo; como, com efeito, tomando a extensão como algo de substancial, toda extensão será sólida, ou então toda extensão será corporal. No que concerne ao vácuo, um Cartesiano terá o direito de concluir da sua ideia ou modo de ideia que não existe, supondo que a sua ideia seja correta; contudo, outro não terá razão de concluir da sua que possa existir, como de fato, embora eu não partilhe o ponto de vista cartesiano, acredito entretanto que não existe vácuo, e creio que neste exemplo se faz uso pior das ideias que das máximas. § 15. FILALETO - Pelo menos parece que, qualquer que seja o uso que se queira fazer das máximas nas proposições verbais, elas não podem dar o mínimo conhecimento sobre as substâncias que existem fora de nós. TEÓFILO - Sou completamente de outra opinião. Por exemplo, esta máxima - que a natureza age pelos caminhos mais curtos, ou pelo menos pelos mais determinados - basta sozinha para dar razão quase de toda a óptica, catóptrica e dióptrica, isto é, daquilo que acontece fora de nós nas ações da luz, como demonstrei outrora, e Molyneux o aprovou perfeitamente na sua Dióptrica, que é um livro muito bom. FILALETO - Pretende-se, entretanto, que quando nos servimos dos princípios idênticos para provar proposições nas quais existem palavras que significam ideias compostas como homem, ou virtude, o seu uso é extremamente perigoso e obriga os homens a considerar ou receber a falsidade como uma verdade manifesta. É porque os homens acreditam que, quando se conservam os mesmos termos, as proposições se referem às mesmas coisas, como o fazem ordinariamente, essas máximas servem geralmente para demonstrar proposições contraditórias. TEÓFILO - Que injustiça, censurar as pobres máximas por aquilo que deve ser atribuído ao mau uso dos termos e aos seus equívocos! Pela mesma razão censurar-se-ão os silogismos, pelo fato de se concluir mal, quando os termos são equívocos. Entretanto, o silogismo é inocente, pois na realidade existem então quatro termos contra as regras dos silogismos. Em virtude da mesma razão censurar-se-á também o cálculo dos mestres da aritmética ou da álgebra, pois ao colocar X em lugar de V, ou tomando a por b, por distração, tiram-se dali conclusões falsas e contraditórias. § 19. FILALETO - Acreditaria no mínimo que as máximas são pouco úteis quando se têm ideias claras e distintas; outros querem até que neste caso elas não têm utilidade alguma, e pretendem que quem quer que, nessas ocasiões, não possa discernir a verdade e a falsidade sem estas espécies de máximas não poderá fazê-lo através delas; e o nosso autor (§ 16, 17) mostra até que elas não servem para decidir se tal é homem ou não. TEÓFILO - Se as verdades são muito simples e evidentes e muito próximas das idênticas e das definições, não se necessita empregar expressamente máximas para concluir essas verdades, pois o espírito as emprega virtualmente e formula a sua conclusão de uma só vez, sem intermediários. Todavia, sem os axiomas e os teoremas já conhecidos, os matemáticos teriam muita dificuldade em avançar; pois, nas longas consequências, é bom parar de tempos em tempos, e fazer por assim dizer colunas militares ao meio do caminho, que servirão também para os outros para marca-lo. Sem isso, estes longos caminhos serão demasiado incômodos e parecerão até confusos e obscuros, sem que possamos discernir neles nada, a não ser o lugar em que estamos. É o mesmo que ir ao mar sem agulha numa noite escura, sem ver o fundo, a margem, nem estrelas; é o mesmo que andar em vastas planícies, onde não existem nem árvores, nem colinas, nem riachos; é como uma cadeia de anéis, destinada a medir comprimentos, onde houvesse algumas centenas de anéis semelhantes entre si, sem uma distinção de grãos mais grossos, ou anéis maiores, ou outras divisões que pudessem assinalar os pés, as toesas, as perchas etc. O espírito que ama a unidade na multidão associa algumas das consequências para formar delas conclusões médias, sendo esta a utilidade das máximas e dos teoremas. Por este meio existe mais prazer, mais luz, mais recordação, mais aplicação e menos repetição. Se algum analista não quisesse supor, ao calcular essas duas máximas geométricas, que o quadrado da hipotenusa é igual aos dois quadrados dos lados do ângulo reto, e que tais lados correspondentes dos triângulos semelhantes são proporcionais, imaginando que, pelo fato de que se tem a demonstração desses dois teoremas pela ligação das ideias que eles encerram, poderia dispensa-los facilmente colocando as próprias ideias em seu lugar, estará muito distante do seu objetivo. Todavia, a fim de que não penseis que o bom uso dessas máximas está encerrado nos limites das puras ciências matemáticas, vereis que não é menor na jurisprudência, e um dos principais meios de torná-lo mais fácil e de considerar o seu vasto oceano como numa carta geográfica é reduzir uma série de decisões particulares a princípios mais gerais. Por exemplo, ver-se-á que uma série de leis, digestos, ações ou exceções, das que se denominam in factum, dependem desta máxima: ne quis alterius damno fiat locupletior, que não se deve aproveitar do prejuízo que acontece a um outro, o que, porém, se deveria exprimir com um pouco mais de precisão. É verdade que existe uma grande distinção a fazer entre as regras de direito. Falo das boas, e não de certos brocardiar (brocardos) introduzidos pelos doutores, que são vagos e obscuros; embora tais regras pudessem tornar-se boas e úteis se as reformássemos, ao passo que com as suas distinções infinitas (cum suis fallentiis) só servem para confundir. Ora, as boas regras são ou aforismos, ou máximas, sendo que sob a denominação de máximas compreendo tanto os axiomas como os teoremas. Se são aforismos, que se formam por indução e observação, e não por razões a priori, e que as pessoas inteligentes fabricaram após uma resenha do direito estabelecido, este texto do jurisconsulto... no título dos digestos, que fala das regras de direito, tem lugar: non ex regula ius sumi, sed ex iure quod est regulam fieri, isto é, que se tiram regras de um direito já conhecido, para melhor lembrar-se, mas que não se estabelece o direito sobre essas regras. Existem, porém, máximas fundamentais que constituem o próprio direito e formam ações, exceções, réplicas etc., as quais, quando são ensinadas pela pura razão e não vêm do poder arbitrário do Estado, constituem o direito natural, sendo tal a regra da qual acabo de falar, a qual proíbe o lucro que prejudica a outrem. Existem também regras cujas exceções são raras e por conseguinte passam por universais. Tal é a regra das Instituições do Imperador Justiniano no § 2 do título das Ações, segundo a qual, quando se trata das coisas corporais, o agente não possui, exceto num só caso, que o imperador afirma estar assinalado nos digestos. Entretanto, ainda não se encontrou este caso. É verdade que alguns, ao invés de sane uno casu, leem: sane non uno. E por vezes de um caso se podem fazer vários. Entre os médicos, o falecido Barner, que nos tinha dado a esperança de um novo Sennertus ou sistema de medicina adaptado às novas descobertas ou opiniões, ao dar-nos o seu Pródromo, afirma que a maneira que os médicos observam ordinariamente nos seus sistemas de prática é explicar a arte de curar, tratando de uma doença após a outra, segundo a ordem das partes do corpo humano ou de outra forma, sem ter dado preceitos de prática universais, comuns a várias enfermidades e sintomas, o que os obriga a uma infinidade de repetições; assim sendo, segundo ele se poderia cortar três quartos do Sennertus e abreviar infinitamente a ciência por proposições gerais e sobretudo por aquelas às quais convém o kathôlou prõton de Aristóteles, isto é, que são recíprocas ou se aproximam. Creio que é com razão que se aconselha este método, sobretudo em relação aos preceitos, onde a medicina é raciocinativa; porém à proporção que ela é empírica, não é tão fácil nem tão seguro formar proposições universais. Além disso, existem geralmente complicações nas enfermidades particulares, que formam como uma imitação das substâncias, de tal forma que uma doença é como uma planta ou um animal, que exige uma história à parte, isto é: são modos ou formas de ser, aos quais convém o que dissemos dos corpos ou das coisas substanciais. Assim, é bom, apesar dos preceitos universais, procurar nas espécies de doenças métodos de curar e remédios que satisfazem a várias indicações e concursos de causas juntas, e sobretudo recolher aqueles que a experiência autorizou. O que Sennertus não fez suficientemente, pois pessoas inteligentes observaram que as composições das receitas que ele propõe são muitas vezes mais formadas ex ingenio, por estima, que autorizadas pela experiência, como seria necessário para maior segurança. Acredito, por conseguinte, que o melhor será unir as duas vias e não queixar-se das repetições em uma matéria tão delicada e tão importante como a medicina, onde acredito faltar-nos o que temos demais, a meu juízo, na jurisprudência, isto é, livros de casos particulares e repertórios do que já foi observado. Com efeito, creio que a milésima parte dos livros dos jurisconsultos seria suficiente, mas que não teríamos nada demais em matéria de medicina, se tivéssemos mil vezes mais observações bem circunstanciadas. É que a jurisprudência está toda fundada sobre a razão em relação ao que não está expressamente marcado pelas leis ou pelos costumes. Com efeito, pode-se sempre hauri-lo ou da lei ou do direito natural, na falta da lei, por meio da razão. As lei de cada país são finitas e determinadas, ou pelo menos podem tornar-se tais, ao passo que na medicina os princípios de experiência, isto é, as observações, não devem ser multiplicadas demais, para dar mais ocasião à razão de decifrar o que a natureza só nos dá a conhecer pela metade. Aliás, não conheço ninguém que utilize os axiomas da maneira que o autor inteligente da vossa preferência o mostra (§ 16, 17) como se alguém, para demonstrar a uma criança que um negro é um homem, se servisse deste princípio: o que é, é, dizendo: um negro possui alma racional; ora, a alma racional e o homem é a mesma coisa, e por conseguinte se, tendo alma racional, não fosse homem, seria falso afirmar que aquilo que é, é, ou então, uma mesma coisa seria e não seria ao mesmo tempo. Com efeito, sem utilizar essas máximas, que não entram diretamente no raciocínio, como também não avançam nada, todo mundo se contentará em raciocinar assim: um negro tem a alma racional, todo o que tem alma racional é homem, logo o negro é homem. E se alguém, imbuído do preconceito de que não existe alma racional quando esta não nos aparece, concluísse que as crianças que apenas acabam de nascer e os imbecis não pertencem à espécie humana (efetivamente, o vosso autor conta ter conversado com pessoas muito inteligentes que o negavam), não acredito que o mau uso da máxima que é impossível que uma coisa seja e não seja os seduziria, nem que pensem nisto ao formular este raciocínio. A fonte do seu erro seria a extensão do princípio do nosso autor, que nega haver algo na alma, de que não se aperceba, ao passo que esses senhores iriam até o ponto de negar a própria alma, quando outros não a percebem. CAPÍTULO VIII AS PROPOSIÇÕES FRÍVOLAS. FILALETO - Estou convencido de que as pessoas razoáveis não têm o cuidado de utilizar os axiomas idênticos da maneira que acabamos de falar. § 2. Ao que parece, essas máximas puramente idênticas não passam de proposições frívolas ou nugatoriae, como as denominam as próprias escolas filosóficas. Eu não me contentaria em dizer que de fato assim parece, se o vosso surpreendente exemplo da demonstração da conversão por intermédio das idênticas não me fizesse tomar cuidado, para o futuro, quando se trata de menosprezar alguma coisa. Todavia, relatar-vos-ei o que se alega para declará-las completamente frívolas. É que, § 3, se reconhece à primeira vista que elas não encerram nenhuma instrução, a não ser, por vezes, mostrar a um homem a absurdidade na qual se encontra. TEÓFILO - Acreditais porventura que isto não é nada, e não reconheceis que reduzir uma proporção ao absurdo é demonstrar a sua contraditória? Acredito realmente que não instruiremos uma pessoa ao dizer-lhe que ela não deve afirmar a mesma coisa ao mesmo tempo, porém a instruímos ao mostrar-lhe pela força das consequências que ela o faz sem pensar. É difícil, a meu juízo, dispensar sempre essas demonstrações apagógicas - isto é, que reduzem ao absurdo - e demonstrar tudo pelas proposições ostensivas, como são denominadas; os geômetras, que são muito curiosos neste ponto, o experienciam suficientemente. Proclo o assinala de vez em quando, ao observar que certos geômetras antigos, posteriores a Euclides, encontraram uma demonstração mais direta - como se crê - do que a sua. Todavia, o silêncio deste antigo comentador mostra bem que nem sempre se fez isto. § 3. FILALETO - Havereis de reconhecer, pelo menos, que se podem formar um milhão de proposições com facilidade, mas também de muito pouca utilidade; com efeito, não é porventura frívolo notar, por exemplo, que a ostra é a ostra, e que é falso negá-lo, ou então dizer que a ostra não é a ostra? Com respeito a isso, o nosso autor afirma que uma pessoa que fizesse desta ostra ora o sujeito, ora o atributo ou o praedicatum seria exatamente como um símio que se divertisse em jogar uma ostra de uma mão à outra, o que poderia satisfazer tão bem à fome do símio quanto essas proposições são capazes de satisfazer ao entendimento humano. TEÓFILO - Creio que este autor, dotado de espírito e de capacidade de julgamento, tem toda a razão do mundo para falar contra aqueles que fizeram tal uso das idênticas. Entretanto, vós bem vedes como se devem utilizar as idênticas para torná-las úteis; é mostrando à força de consequências e definições que outras verdades, que se quer estabelecer, se reduzem a elas. § 4. FILALETO - Reconheço-o, e bem vejo que se pode aplica-lo, com maior razão, às proposições que parecem frívolas e o são em muitas ocasiões, onde uma parte da ideia complexa é afirmada do objeto destas ideias, como ao dizer: o chumbo é um metal; no espírito de um homem que conhece o significado destes termos e sabe que o chumbo designa um corpo muito pesado, fusível e maleável, existe só isto que, ao dizermos metal, lhe designamos de uma só vez várias das ideias simples, em vez de contá-las uma depois da outra. § 5. Acontece o mesmo quando uma parte da definição é afirmada do termo definido; como ao dizer: todo ouro é fusível, supondo que tenhamos definido o ouro, que é um corpo amarelo, pesado, fusível e maleável. Idem dizer que o triângulo tem três lados, que o homem é um animal, que um palafrém (palefroi, antiga palavra francesa) é um animal que relincha, o que serve para definir as palavras, e não para aprender algo mais além da definição. Entretanto, aprendemos algo ao dizermos que o homem tem uma noção de Deus, e que o ópio afunda o homem no sono. TEÓFILO - Além do que afirmei das idênticas, que o são inteiramente, ver-se-á que estas idênticas pela metade também têm uma utilidade particular. Por exemplo: um homem sábio é sempre um homem; isto nos diz que o homem não é infalível, que é mortal etc. Alguém tem necessidade, em caso de perigo, de uma bala para a pistola, e falta o chumbo para ser fundido na forma necessária. Um amigo lhe diz: lembrai-vos de que a prata que tendes no bolso é fusível; este amigo não lhe ensinará uma qualidade da prata, mas o fará pensar num emprego que pode fazer dela, para ter balas de pistola nesta urgente necessidade. Urna boa parte das verdades morais, e das mais belas sentenças dos autores é deste tipo: muitas vezes elas não dizem nada de novo, mas nos fazem pensar corretamente naquilo que sabemos. Este jambo senário da tragédia latina: Cuivis potest accidere, quod cuiquam potest - que se poderia exprimir desta forma, embora não tão belamente: O que pode acontecer. a um pode ocorrer a qualquer um - apenas nos faz recordar a condição humana, quod nihil humani a nobis alienum putare debemus. Esta regra dos jurisconsultos: qui iure suo utitur, nemini facit iniuriam (aquele que usa do seu direito não faz justiça a ninguém) parece frívola. Entretanto, tem um emprego muito bom em certas ocasiões e faz pensar corretamente no que é necessário. Como se alguém fizesse levantar a sua casa, tanto quanto é permitido pelos estatutos e pelas usanças, e assim tirasse alguma vista a um vizinho, recordaríamos logo ao vizinho esta regra, se ele se queixasse. Aliás, as proposições de fato, ou as experiências, como a que afirma que o ópio é um narcótico, nos levam mais longe que as verdades da pura razão, as quais nunca podem conduzir além do que se encontra nas nossas ideias distintas. No que concerne a esta proposição - que todo homem tem uma noção de Deus -, ela deriva da razão, quando noção se torna no sentido de ideia. Com efeito, a meu entender a ideia de Deus é inata em todos os homens: todavia, se esta noção significa uma ideia na qual se pensa atualmente, é uma proposição de fato, que depende da história do gênero humano. § 7. Enfim, dizer que um triângulo tem três lados, isto não é tão idêntico quanto parece, pois se requer um pouco de atenção para mostrar que um polígono deve ter tantos ângulos quantos lados; assim, haveria um lado a mais, se o polígono não se supusesse fechado. § 9. FILALETO - Parece que as proposições gerais que formamos sobre as substâncias são na maioria frívolas, se forem certas. E quem sabe as significações das palavras: substância, homem, animal, forma, alma vegetativa, sensitiva, racional, formará várias proposições indubitáveis, porém inúteis, particularmente sobre a alma, da qual muitas vezes se fala sem saber o que ela é realmente. Cada qual pode ver uma infinidade de proposições, de raciocínios e de conclusões desta natureza nos livros de meta física, de teologia escolástica, e de certa espécie de física, cuja leitura não lhe ensinará nada de novo sobre Deus, sobre os espíritos e os corpos, além do que já sabia antes de percorrer tais livros. TEÓFILO - É verdade que os resumos de meta física e tais outros livros desta espécie, que se veem em geral, só ensinam palavras. Dizer, por exemplo, que a metafísica é a ciência do ser em geral, a qual explica os seus princípios e as consequências que deles emanam; que os princípios do ser são a essência e a existência; e que as afecções são ou primitivas, isto é, o uno, o verdadeiro, o bom, ou derivativas, isto é, o mesmo e o diverso, o simples e o composto etc., e, ao falar de cada um desses termos, dar apenas noções vagas, e distinções de palavras, significa certamente abusar do termo ciência. Todavia, é preciso fazer esta justiça aos Escolásticos mais profundos, como Suárez - pelo qual Grotius tinha tanta consideração -, de reconhecer que por vezes existem entre eles discussões consideráveis, como sobre o contínuo, sobre o infinito, sobre a contingência, sobre a realidade dos abstratos, sobre o princípio da individuação, sobre a origem e o vácuo das formas, sobre a alma e as suas faculdades, sobre o concurso de Deus com as criaturas etc., e, mesmo na moral, sobre a natureza da vontade e sobre os princípios da justiça; numa palavra, cumpre reconhecer que existe ainda ouro entre essas escórias, porém só pessoas esclarecidas o aproveitam. Por outra parte, carregar a cabeça das pessoas jovens com uma quantidade de coisas inúteis, pelo fato de haver algo de bom aqui e acolá, seria malbaratar a coisa mais preciosa, que é o tempo. De resto, não estamos completamente desprovidos de proposições gerais sobre as substâncias, que sejam certas e mereçam ser conhecidas: existem grandes e belas verdades sobre Deus e sobre a alma, que o nosso inteligente autor ensinou, por si mesmo ou na esteira de outros. Nós também talvez tenhamos acrescentado algo. E quanto aos conhecimentos gerais no tocante aos corpos, acrescentam-se conhecimentos bastante consideráveis àqueles que Aristóteles nos legou, e deve-se dizer que a física, mesmo a geral, se tornou bem mais real do que era antes. Quanto à metafísica real, quase começamos a estabelecê-la, e encontramos verdades importantes fundadas na razão e confirmadas pela experiência, que pertencem às substâncias em geral. Espero também ter eu feito progredir em algo o conhecimento geral da alma e dos espíritos. Tal metafísica é o que pedia Aristóteles, é a ciência que ele denomina Zetouméne, a Desejada, ou que ele procurava, a qual deve ser em relação às outras ciências teoréticas aquilo que a ciência da felicidade é em relação às artes de que tem necessidade e aquilo que o arquiteto é com relação aos operários. Eis por que Aristóteles afirmava que as outras ciências dependem da metafísica como da ciência mais geral e deveriam haurir dela os princípios, demonstrados nela. Cumpre também saber que a verdadeira moral é para a metafísica aquilo que a prática é com relação à teoria, visto que da doutrina das substâncias em geral depende o conhecimento dos espíritos, particularmente de Deus e da alma, que dá uma justa dimensão à justiça e à virtude. Com efeito, como notei alhures, se não houvesse nem Providência nem vida futura, o sábio seria mais limitado nas práticas da virtude, pois reduziria tudo ao seu contentamento presente, e mesmo este contentamento, que aparece já em Sócrates, no Imperador Marco Antonino, em Epicteto e outros antigos, não estaria tão solidamente fundado sem estas belas e grandes vistas que a ordem e a harmonia do universo nos abrem até um futuro sem limites; de outra forma, a tranquilidade da alma será apenas aquilo que se denomina paciência à força, de sorte que se pode afirmar que a teologia natural, englobando duas partes, a teorética e a prática, contém no mesmo tempo a metafísica real e a moral mais perfeita. § 12. FILALETO - Eis aqui, sem dúvida, conhecimentos que estão bem longe de serem frívolos, ou puramente verbais. Parece, porém, que estes últimos são aqueles em que dois abstratos são afirmados um do outro; por exemplo, que a poupança é frugalidade, que a gratidão é justiça; e por mais especiosas que pareçam essas proposições e outras à primeira vista, todavia, se analisarmos em profundidade, veremos que tudo isso não acarreta consigo nada além da significação dos termos. TEÓFILO - Entretanto, as significações dos termos, isto é, as definições, junto aos axiomas idênticos exprimem os princípios de todas as demonstrações: e, uma vez que essas definições podem revelar ao mesmo tempo as ideias e a sua possibilidade, é óbvio que aquilo que delas depende nem sempre é puramente verbal. No que concerne ao exemplo, que a gratidão é justiça, ou melhor, uma parte da justiça, ele não se deve menosprezar, pois ele mostra que aquilo que se denomina actio ingrati, ou a queixa que se pode fazer contra os ingratos, deveria ser menos negligenciada nos tribunais. Os romanos recebiam esta ação contra os libertos, e ainda hoje ela deve ter lugar no que concerne à revogação de presentes. Aliás, já observei alhures que mesmo ideias abstratas podem ser atribuídas uma à outra, o gênero à espécie, como ao dizermos: A duração é uma continuidade, a virtude é um habito; mas a justiça universal é não somente uma virtude, mas a virtude moral inteira. CAPÍTULO IX O CONHECIMENTO QUE TEMOS DA NOSSA EXISTÊNCIA. § 1. FILALETO - Até agora só consideramos as essências das coisas e, uma vez que o nosso espírito só as conhece por abstração, desvinculando-as de toda existência particular outra que aquela que está no nosso entendimento, elas não nos dão absolutamente conhecimento de nenhuma existência real. As proposições universais, das quais podemos ter um conhecimento certo, não se referem à existência. De resto, toda vez que se atribui alguma coisa a um indivíduo de um gênero ou de uma espécie por uma proposição que não seria certa, se o mesmo fosse atribuído ao gênero ou à espécie em geral, a proposição pertence apenas à existência e não dá a conhecer senão uma ligação acidental nestas coisas existentes em particular, como quando dizemos que tal homem é douto. TEÓFILO - Muito bem. É neste sentido que também os filósofos, distinguindo tantas vezes o que é da essência, e o que é da existência, referem à existência tudo o que é acidental ou contingente. Muitas vezes não se sabe sequer se as proposições universais, que só conhecemos por experiência, não são talvez acidentais também, visto que a nossa experiência é limitada; como nos países em que a água não é gelada, esta proposição - que a água está sempre em estado fluido - não é essencial, e conhecemos isto indo a países mais frios. Todavia, pode-se considerar o acidental de uma forma mais rígida, de maneira que exista como um meio-termo entre ele e o essencial; este meio-termo é o natural, isto é, o que não pertence necessariamente à coisa, porém lhe convém de per si, salvo algum impedimento. Assim, alguém poderia manter que, na verdade, não é essencial à água, mas que pelo menos lhe é natural ser fluida. Poder-se-ia sustentá-lo - digo - porém não é uma coisa demonstrada, e talvez os habitantes da lua - se os houvesse - teriam motivo de pensar, com não menos razão, que é natural à água ser gelada. Entretanto, existem outros casos em que o natural é menos duvidoso, por exemplo: um raio de luz se desloca sempre em linha reta no mesmo meio, a menos que acidentalmente se encontre com alguma superfície que o reflita. Aliás, Aristóteles costuma referir à matéria a fonte das coisas acidentais; todavia, neste caso se deve entender a matéria segunda, isto é, a massa dos corpos. § 2. FILALETO - Já observei - seguindo o excelente autor inglês que escreveu o Ensaio sobre o Entendimento - que conhecemos a nossa existência por intuição, a de Deus por demonstração e a dos outros por sensação. § 3. Ora, esta intuição, que nos faz conhecer a nós mesmos a nossa existência, faz com que a conheçamos com plena evidência, que não é capaz de ser demonstrada e não tem necessidade disto; de tal maneira que, mesmo que eu resolva duvidar de tudo, não me é permitido duvidar de minha existência. Enfim, temos dela o mais alto grau de certeza que se possa conceber. TEÓFILO - Concordo inteiramente com tudo isso. Acrescento que a apercepção imediata da nossa existência e dos nossos pensamentos nos fornece as primeiras verdades a posteriori, ou de fato, isto é, as primeiras experiências, como as proposições idênticas contêm as primeiras verdades a priori, ou de razão, isto é, as primeiras luzes. Umas e outras são incapazes de ser demonstradas e podem ser denominadas imediatas: aquelas, porque existe imediação entre o entendimento e o seu objeto, estas porque existe imediação entre o sujeito e o predicado. CAPÍTULO X O CONHECIMENTO QUE TEMOS DA EXISTÊNCIA DE DEUS. § 1. FILALETO - Deus, tendo dado à nossa alma as faculdades de que está ornada, não deixou de imprimir nela o seu testemunho; pois os sentidos, a inteligência e a razão nos fornecem provas manifestas da sua existência. TEÓFILO - Deus não só deu à alma faculdades próprias para conhecê-lo, senão que também lhe imprimiu caracteres que o assinalam, embora a alma careça das faculdades para dar-se conta desses caracteres. Todavia, não quero repetir o que foi discutido entre nós sobre as ideias e as verdades inatas, entre as quais coloco a ideia de Deus e a verdade da sua existência. Vamos antes ao fato como tal. FILALETO - Ora, se bem que a existência de Deus seja a verdade mais fácil de ser demonstrada pela razão, e embora a sua evidência iguale - se não me equivoco - à das demonstrações matemáticas, ela requer atenção. Basta refletir sobre nós mesmos e sobre a nossa própria existência indubitável. § 2. Assim, suponho que cada qual conhece que ele é algo que existe atualmente, e que assim existe um ser real. Se existe alguém que possa duvidar da sua própria existência, declaro que não é a ele que falo. § 3. Sabemos também, por um conhecimento de simples vista, que o puro nada não pode produzir um ser real. Daqui segue, com evidência matemática, que algo existiu desde toda a eternidade, visto que tudo aquilo que tem um início deve ter sido produzido por alguma outra coisa. § 4. Ora, todo ser que tem a sua existência de outro tem também dele tudo o que possui e todas as suas faculdades. Por conseguinte, a fonte eterna de todos os seres é também o princípio de todas as suas potências, de sorte que este ser eterno deve ser também todo-poderoso. § 5. Além disso, o homem encontra em si mesmo conhecimento. Logo, existe um ser inteligente. Ora, é impossível que uma coisa absolutamente destituída de conhecimento e de percepção produza um ser inteligente, e é contrário à ideia da matéria, privada de sentimento, produzir-se a si mesma. Consequentemente, a fonte das coisas é inteligente, e houve um ser inteligente desde toda a eternidade. § 6. Um ser eterno, muito poderoso e muito inteligente, é o que se denomina DEUS. Se houvesse alguém suficientemente irracional para supor que o homem é o único ser dotado de conhecimento e de sabedoria, e que teria sido formado por puro acaso, e que é este mesmo princípio cego e destituído de conhecimento que conduz todo o resto do universo, eu o advertiria a examinar a censura inteiramente sólida e cheia de ênfase de Cícero (De Legibus, livro 11). Certamente - diz ele - ninguém deveria ser tão totalmente orgulhoso para imaginar que existe dentro dele um entendimento e a razão, e que sem embargo não existe nenhuma inteligência que governe os céus e todo este vasto universo. Do que acabo de dizer segue claramente que possuímos um conhecimento mais certo de Deus do que qualquer outra coisa que exista fora de nós. TEÓFILO - Asseguro-vos, com inteira sinceridade, que estou extremamente irritado por ver-me obrigado a dizer algo contra esta demonstração; entretanto, faço-o somente para dar-vos ocasião de preencher o vazio que permaneceu na demonstração. É sobretudo na passagem em que concluís (§ 3) que algo existiu desde toda a eternidade. Encontro ambiguidade nisto. Se isto significa que jamais houve um tempo em que nada existia, estou de acordo, e isto segue verdadeiramente dás proposições anteriores, por uma consequência inteiramente matemática. Pois se jamais tivesse havido nada, sempre teria existido nada, uma vez que o nada nunca pode produzir um ser; logo, nós mesmos não seríamos, o que é contrário à primeira verdade de experiência. Entretanto, a sequência nos mostra logo que, ao dizermos que algo existiu desde toda a eternidade, entendeis uma coisa eterna. Todavia, não segue, em virtude do que afirmastes até agora, que, se sempre existiu alguma coisa, sempre existiu certa coisa, isto é, que existe um ser eterno. Pois alguns adversários dirão que eu fui produzido por outras coisas, e essas coisas foram produzidas por outras. Além disso, se alguns admitem seres eternos - como os epicureus admitem os seus átomos - não acreditam por isso serem obrigados a reconhecer um ser eterno, que seja a única fonte de todos os outros. Pois, mesmo que reconhecessem que aquilo que dá a existência dá também as outras qualidades e potências da coisa, negarão que uma só coisa dê a existência às outras, e dirão até que para cada coisa muitas outras devem concorrer. Assim sendo, não chegaremos, só por este método, a uma fonte de todas as potências. Entretanto, é muito razoável julgar que há tal fonte e, até, que o universo é governado com sabedoria. Quando, porém, se considera a matéria suscetível de sentimento, poder-se-á estar disposto a crer que não é possível que ela o possa produzir. Pelo menos será difícil trazer uma prova que não mostre ao mesmo tempo que ela é de todo incapaz disto; e, supondo que o nosso pensamento provém de um ser pensante, pode-se porventura considerar concedido, sem prejuízo da demonstração, que deve ser Deus? § 7. FILALETO - Não duvido que o inteligente autor, do qual tomei esta demonstração, seja capaz de aperfeiçoá-la: procurei conduzi-lo, visto que não se poderia prestar maior serviço ao público. Vós mesmo o desejais. Isto me leva a crer que vós não acreditais que, para fechar a boca dos ateus, devamos fazer girar tudo em torno da ideia de Deus em nós, como nos fazem alguns, que atribuem demasiada importância a esta descoberta favorita, até o ponto de rejeitar todas as outras demonstrações da existência de Deus, ou pelo menos procuram enfraquecê-las e proibir de usá-las, como se fossem fracas ou falsas: embora no fundo sejam provas que nos mostram tão claramente e de forma convincente a existência deste soberano ser pela consideração da nossa própria existência e das partes sensíveis do universo, que não penso que um homem sábio deva resistir. TEÓFILO - Embora eu seja pelas ideias inatas, e particularmente pela ideia inata da existência de Deus, não acredito que as demonstrações dos Cartesianos, hauridas da ideia de Deus, sejam perfeitas. Demonstrei amplamente alhures - nas atas de Leipzig, e nas Memórias de Treooux - que a prova que o Sr. Descartes tirou de Anselmo, arcebispo de Cantuária, é muito bela e muito engenhosa na verdade, mas que também nela existe uma lacuna a preencher. Este célebre arcebispo, que indiscutivelmente foi um dois homens mais capazes do seu tempo, afirma, não sem razão, haver encontrado um meio de provar a existência de Deus a priori, pela sua própria noção, sem recorrer aos seus efeitos. Aqui está, em resumo, a força do seu argumento: Deus é o maior, ou - como diz Descartes - o mais perfeito dos seres, ou então, é um ser de uma grandeza e de uma perfeição suprema, que envolve todos os graus. Esta é a noção de Deus. Eis como a existência se conclui desta noção. Existir é algo mais do que não existir, ou seja: a existência acrescenta um grau à grandeza ou à perfeição, e, como afirma o Sr. Descartes, a própria existência constitui uma perfeição. Logo, este grau de grandeza e de perfeição, que consiste na existência, está neste ser supremo, todo grande, todo perfeito: pois de outra forma lhe faltaria algum grau, contrariamente à sua definição. Por conseguinte, este ser supremo existe. Os Escolásticos, sem excetuar sequer O seu Doutor Angélico, menosprezaram este argumento, considerando-o um paralogismo. Nisto se equivocaram gravemente; e Descartes, que tinha estudado por muito tempo a filosofia escolástica no colégio dos jesuítas de La Flêche, teve muita razão em revalorizar este argumento. Não é um paralogismo, mas uma demonstração perfeita, que supõe algo que era ainda necessário provar para dar-lhe uma evidência matemática; é que se supõe tacitamente que esta ideia do ser todo grande, ou todo perfeito, é possível e não implica nenhuma contradição. Já é alguma coisa que, por esta observação, se demonstra que, supondo que Deus seja possível, ele existe, o que constitui privilégio absoluto da divindade. Tem-se o direito de presumir a possibilidade de qualquer ser, e sobretudo a de Deus, até que alguém demonstre o contrário. Assim sendo, este argumento metafísico já fornece uma conclusão moral demonstrativa, segundo a qual, conforme o estado atual dos nossos conhecimentos, cumpre pensar que Deus existe, e agir de acordo. Entretanto, seria de desejar que pessoas inteligentes concluíssem a demonstração no rigor de uma evidência matemática, e acredito haver dito algo alhures, que poderá servir para este objetivo. O outro argumento do Sr. Descartes, que tenta provar a existência de Deus, pelo fato de que a sua ideia se encontra na nossa alma, e de que ela deve ter provindo do original, é ainda menos concludente. Pois em primeiro lugar o argumento tem este defeito, comum com o procedente: supõe que existe em nós tal ideia, isto é, que Deus é possível. Pois o que alega o Sr. Descartes, isto é, que ao falar de Deus, sabemos o que dizemos e por conseguinte temos ideia dele, constitui um indício enganoso, visto que ao falar do movimento perpétuo mecânico, por exemplo, sabemos o que dizemos, e todavia este movimento constitui uma coisa impossível, da qual por conseguinte só podemos ter ideia na aparência. Em segundo lugar, este mesmo argumento não prova suficientemente que a ideia de Deus, se a tivermos, deve provir do original. Todavia, não quero fixar-me nisto agora. Dir-me-eis que, reconhecendo em nós a ideia inata de Deus, não devo dizer que se pode duvidar se existe tal ideia? Eu só permito esta dúvida em relação a uma demonstração rigorosa, fundada exclusivamente na ideia. Pois temos certeza da ideia da existência de Deus por outros caminhos. Recordar-vos-ei que vos mostrei como as ideias se encontram em nós, não sempre de tal forma que delas nos damos conta, mas sempre de tal maneira que podemos hauri-las do nosso próprio ser e torná-las perceptíveis. É também o que acredito da ideia de Deus, cuja possibilidade e cuja existência considero demonstradas de várias maneiras. A própria harmonia preestabelecida constitui um novo caminho incontestável para demonstrá-lo. Aliás, creio que quase todos os meios que se têm empregado para provar a existência de Deus são bons e poderiam servir, se fossem aperfeiçoados; de forma alguma acredito que se deva desprezar o argumento tirado da ordem das coisas. § 9. FILALETO - Talvez venha a propósito insistir um pouco sobre esta questão: se um ser pensante pode provir de um ser não pensante e destituído totalmente de razão e conhecimento, tal como poderia ser a matéria. § to. É até bastante evidente que uma parte da matéria é incapaz de produzir qualquer coisa por si mesma e de dar a si mesma movimento; por conseguinte, é necessário, ou que o seu movimento seja eterno, ou que ele lhe seja dado por um ser mais poderoso. Se este movimento fosse eterno, seria sempre incapaz de produzir conhecimento. Podeis dividi-la em tantas pequenas partes quantas quiserdes, como para espiritualizá-la; dai-lhe todas as formas e todos os movimentos que quiserdes, fazei dela um globo, um cubo, um prisma, um cilindro etc., cujo diâmetro não ultrapasse a milionésima parte de um gry, que corresponde a um décimo de uma linha, que é um décimo de uma polegada, a qual é um décimo de um pé filosófico, o qual é um terço de um pêndulo, do qual cada vibração na latitude de 45 graus é igual a um segundo de tempo, esta partícula de matéria, por menor que seja, não agirá de outra forma sobre outros corpos de uma espessura que lhe seja proporcional que os corpos que têm uma polegada ou um pé de diâmetro agem entre si. E podemos esperar com tanta razão produzir sentimento, pensamentos e conhecimento, juntando grandes partes de matéria de certa forma e de certo movimento quanto mediante as menores partes de matéria que existam no mundo. Estas últimas se chocam, se empurram, e resistem umas às outras justamente como as grandes, sendo isto o que podem fazer. Entretanto, se a matéria pudesse haurir de si mesma o sentimento, a percepção e o conhecimento, imediatamente e sem máquina, ou sem o auxílio das figuras e dos movimentos, neste caso deveria ser uma propriedade inseparável da matéria e de todas as suas partes. A isso se poderia acrescentar que, ainda que a ideia geral e específica que temos da matéria nos leve a falar dela como se fosse uma coisa única em número, sem embargo toda a matéria não é propriamente uma coisa individual, que existe como um ser material ou um corpo singular que conhecemos, ou que podemos conceber. Desse modo, se a matéria fosse o primeiro ser eterno pensante, não existiria um ser único eterno, infinito e pensante, mas um número infinito de seres eternos, infinitos, pensantes, que seriam independentes uns dos outros, e cujas forças seriam limitadas e os pensamentos diferentes, e que por conseguinte jamais poderiam produzir esta ordem, esta harmonia e esta beleza que apreciamos na natureza. Donde se infere necessariamente que este primeiro ser eterno não pode ser a matéria. Espero que estareis mais satisfeito com este raciocínio tirado do célebre do autor da demonstração precedente, mais do que aconteceu com a sua demonstração, ao que parece. TEÓFILO - Considero este raciocínio o mais sólido do mundo, e não apenas exato, mas também profundo e digno do seu autor. Partilho inteiramente o seu ponto de vista, que não existem combinação e modificação das partes da matéria, por menores que sejam, que possam produzir a percepção, tanto mais que as partes maiores tampouco poderiam produzi-la - como se reconhece manifestamente - e que tudo é proporcional nas pequenas partes àquilo que pode acontecer nas grandes. Outra observação importante sobre a matéria é aquela que o autor faz, isto é, que não se deve tomá-la como uma coisa única em número, ou - como costumo falar - como uma verdadeira e perfeita mônada ou unidade, visto não ser ela mais do que um acúmulo de um número infinito de seres. Bastaria um passo para que o excelente autor chegasse ao meu sistema. Pois, com efeito, reconheço percepção a todos esses seres infinitos, dos quais cada um deles é como um animal, dotado de alma (ou de algum princípio ativo analógico, que perfaz a sua verdadeira unidade) juntamente com aquilo que é necessário a este ser para ser passivo e dotado de um corpo orgânico. Ora, esses seres receberam a sua natureza tanto ativa como passiva - isto é, o que possuem de imaterial e de material - de uma causa geral e suprema, pois de outra forma, como nota muito bem o autor, sendo independentes uns dos outros, jamais poderiam produzir esta ordem, esta harmonia, esta beleza que apreciamos na natureza. Entretanto, este argumento, que parece apresentar apenas certa moral, é levado a uma necessidade inteiramente meta física pela nova espécie de harmonia que introduzi, a qual é a harmonia preestabelecida. Com efeito, uma vez que cada uma dessas almas exprime da sua maneira o que acontece fora e não pode ter nenhuma influência dos outros seres particulares, ou melhor, devendo haurir essa expressão do próprio fundo da sua natureza, é necessário que cada uma tenha recebido esta natureza (ou esta razão interna das expressões do que está fora) de uma causa universal, da qual dependem todos esses seres, e a qual faz com que um seja perfeitamente concordante com o outro; ora, isto não pode acontecer sem um conhecimento e poder infinitos, e por um artífice grande em relação sobretudo ao consentimento espontâneo da máquina com as ações da alma racional, que um ilustre autor, que formulou objeções no seu maravilhoso Diciondriol quase duvidou se não ultrapassava toda a sabedoria possível, dizendo que a de Deus não lhe parecia demasiado grande para um tal efeito, e reconheceu ao menos que jamais se deu um destaque tão grande às fracas concepções que podemos ter da perfeição divina. § 12. FILALETO - Como me alegro em constatar este vosso acordo com as ideias do meu autor! Espero que não vos irriteis se vos trouxer ainda o resto do seu raciocínio sobre este ponto. Primeiramente, examina ele se o ser pensante, do qual dependem todos os outros seres inteligentes - e com maior razão todos os demais seres - é matéria ou não. § 13. Ele objeta que um ser pensante poderia ser material. Responde, porém, que, se isso acontecesse, basta que seja um ser eterno que possua uma ciência e um poder infinito. Além disso, se o pensamento e a matéria podem ser separados, a existência eterna da matéria não será uma consequência da existência eterna de um ser pensante. § 14. Perguntar-se-á também àqueles que concebem Deus como material se creem que cada parte da matéria pensa. Neste caso seguirá que haveria tantos deuses quantas são as partículas da matéria. Se, porém, cada parte da matéria não pensa, temos outra vez um ser pensante composto de partes não pensantes, o que já ficou refutado. § 15. Se só algum átomo de matéria pensa, e as outras partes, embora igualmente eternas, não pensam, equivale isto a afirmar gratuitamente que uma parte da matéria está infinitamente acima da outra, e produz os seres pensantes não eternos. § 16. Se dissermos que o ser pensante, eterno e material, constitui certo acúmulo particular de matéria, cujas partes não seriam pensantes, recairemos naquilo que já foi refutado, visto que as partes de matéria podem estar juntas, porém mesmo assim não podem ter daí mais do que uma relação local, que é incapaz de comunicar-lhes o conhecimento. § 17. Não importa se este acúmulo está em repouso ou em movimento. Se estiver em repouso, não passa de uma massa sem ação a qual não tem privilégio sobre um átomo; se estiver em movimento, este movimento, que o distingue de outras partes, pelo fato de dever produzir o pensamento, todos seus pensamentos serão acidentais e limitados, sendo que cada parte separada está sem pensamentos e nada terá que regule os seus movimentos. Assim, não haverá nem liberdade, nem escolha, nem sabedoria, tampouco como isto não existe na simples matéria bruta. § 18. Alguns acreditarão que a matéria é pelo menos coeterna com Deus. Entretanto, não dizem por quê: a produção de um ser pensante, que eles admitem, é muito mais difícil que a produção da matéria, que é menos perfeita. E talvez - diz o autor - se quiséssemos distanciar-nos um pouco das ideias comuns, dar asas ao nosso espírito e entrar no exame mais profundo que possamos fazer da natureza das coisas, poderíamos chegar a conceber, embora de uma forma imperfeita, como a matéria pode ter sido feita, e como começou a existir em virtude do poder deste primeiro ser eterno. Ver-se-ia, porém, ao mesmo tempo, que dar o ser a um espírito é um efeito deste poder eterno e infinito muito mais difícil de compreender. Contudo, já que isto talvez me distanciasse demais - acrescenta ele - das noções sobre as quais está hoje fundada a filosofia no mundo, não teria escusas se me afastasse tanto, ou se procurasse, tanto quanto a gramática o poderia permitir, se no fundo a opinião comumente aceita é contrária a este ponto de vista particular; faria mal- digo eu - em entrar em tal discussão, sobretudo nesta parte da terra, onde a doutrina comumente aceita é bastante boa para o meu intuito, já que ela assenta como uma coisa indiscutível que, se admitirmos uma vez a criação ou o começo de qualquer substância que seja, tirada do nada, podemos supor com a mesma facilidade a criação de todas as outras substâncias, excetuado o próprio Criador. TEÓFILO - Proporcionastes-me um verdadeiro prazer, ao relatar-me algo de um pensamento profundo do vosso inteligente autor, que a sua prudência excessivamente escrupulosa impediu de transmitir inteiro. Seria muito lastimável se o autor suprimisse o seu pensamento e nos deixasse neste ponto, após ter-nos feito vir água à boca. Asseguro-vos que, a meu entender, existe algo de belo e de importante escondido sob esta forma de enigma. A SUBSTÂNCIA em letras maiúsculas poderia fazer suspeitar que ele concebe a produção da matéria como a dos acidentes, que não se tem dificuldade em tirar do nada: e distinguindo o seu pensamento singular da filosofia que, no mundo ou nesta parte da terra, está presentemente fundada, não sei se ele não teve em vista os platônicos, que consideravam a matéria algo de fugitivo e passageiro, à guisa dos acidentes, e tinham uma ideia completamente diferente dos espíritos e das almas. § 19. FILALETO - Enfim, se alguns negam a criação, em virtude da qual as coisas são feitas do nada, pelo fato de não poderem concebê-la, o nosso autor, escrevendo antes de ter conhecimento da vossa descoberta sobre a razão da união da alma e do corpo, lhes objeta que eles nãocompreendem como os movimentos voluntários são produzidos nos corpos pela vontade da alma, e não deixam de crer, convencidos pela experiência: ele replica, com razão, aos que respondem que a alma, não podendo produzir um novo movimento, produz apenas uma nova determinação dos espíritos animais, ele lhes replica - digo - que uma coisa é tão inconcebível como a outra. E nada pode ser melhor dito do que aquilo que ele acrescenta nesta ocasião, isto é, que pretender limitar o que Deus pode fazer àquilo que nós podemos compreender, equivale a atribuir uma extensão infinita à nossa compreensão, ou então, a fazer de Deus um ser finito. TEÓFILO - Embora agora a dificuldade sobre a união da alma e do corpo esteja, a meu entender, eliminada, permanecem outras dificuldades. Demonstrei a posteriori pela harmonia preestabelecida que todas as mônadas receberam a sua origem de Deus e dele dependem. Todavia, não somos capazes de compreender detalhadamente a maneira como isso acontece. No fundo, a conservação das mônadas não é outra coisa senão uma criação contínua, como reconheceram muito bem os Escolásticos. CAPÍTULO XI O CONHECIMENTO QUE TEMOS DA EXISTÊNCIA DAS OUTRAS COISAS. § 1. FILALETO - Uma vez que só a existência de Deus tem uma conexão necessária com a nossa, as ideias que podemos ter de alguma coisa não provam a existência desta coisa mais do que o retrato de um homem demonstra a sua existência no mundo. § 2. Entretanto, a certeza que tenho do branco e do preto sobre este papel pela sensação é tão grande como a do movimento da minha mão, que só é ultrapassada pelo conhecimento da nossa existência e da de Deus. § 3. Esta certeza merece o nome de conhecimento. Pois não acredito que alguém possa ser seriamente tão cético, a ponto de não ter certeza da existência das coisas que vê e sente. No mínimo, aquele que é capaz de levar as suas dúvidas tão longe nunca terá discussão comigo, pois jamais poderá estar certo de que eu diga o que quer que seja contra a sua opinião. As percepções das coisas sensíveis, § 4, são produzidas por causas externas, que afetam os nossos sentidos, visto que não adquirimos essas percepções sem os órgãos, e se os órgãos, fossem suficientes, eles as produziriam sempre. § 5. Além disso, acho por vezes que eu seria incapaz de impedir que elas sejam produzidas no meu espírito, como, por exemplo, a luz, quando tenho os olhos abertos num lugar em que a luz pode entrar; ao passo que sou capaz de abandonar as ideias que se encontram na minha memória. Por conseguinte, é necessário que exista alguma causa externa desta impressão viva, a cuja eficácia não me posso sobrepor. § 6. Algumas dessas percepções são produzidas em nós com dor, embora ao depois nos recordemos disso sem ressentir o menor incômodo. Embora também as demonstrações matemáticas não dependam dos sentidos, todavia o exame que delas fazemos, pelas figuras, muito serve para demonstrar a evidência da nossa vista e parece conferir-lhe uma certeza que se aproxima da certeza da própria demonstração. § 7. Também os nossos sentidos por vezes dão testemunho um ao outro. Aquele que vê o fogo pode senti-lo, se dele duvidar. Ao escrever isto, vejo que posso mudar as aparências do papel e dizer antecipadamente que nova ideia ele vai apresentar ao espírito: mas quando esses caracteres estiverem traçados, não posso mais evitar de vê-los tais quais são, e além disso a vista desses caracteres fará um outro homem pronunciar os mesmos sons. § 8. Se alguém pensar que tudo isso não passa de um longo sonho, poderá sonhar, se lhe aprouver, que lhe dou esta resposta, que a nossa certeza, fundada sobre o testemunho dos sentidos, é tão perfeita quanto a nossa natureza o permite e a nossa condição o exige. Quem vai acender uma vela e sente o calor da chama que lhe faz mal se não retirar o dedo não exigirá uma certeza maior para regular a sua ação, e, se este sonhador não o fizesse, encontrar-se-ia acordado. Por conseguinte, tal certeza nos é suficiente, pois é tão grande quanto a certeza do prazer e da dor, duas coisas além das quais não temos interesse algum no conhecimento ou existência das coisas. § 9. Entretanto, além da nossa sensação atual, não existe conhecimento, não passa de verossimilhança, como quando acredito que existem homens no mundo; nisto existe uma extrema probabilidade, ainda que neste momento, encontrando-me sozinho em meu gabinete, não veja pessoa alguma. § 10. Seria também uma loucura esperar uma demonstração sobre cada coisa e só agir segundo as verdades claras e evidentes quando não são demonstráveis. Uma pessoa que quisesse fazer tal uso não conseguiria ter certeza sobre nada, a não ser sobre o fato de que haveria de morrer em tempo muito breve. TEÓFILO - Já observei nos nossos diálogos anteriores que a verdade das coisas sensíveis se justifica pela sua ligação, a qual depende das verdades intelectuais, fundadas na razão, e das observações constantes nas próprias coisas sensíveis, mesmo quando as razões não apareçam. E, uma vez que essas razões e observações nos dão a possibilidade de julgar sobre o futuro em relação ao nosso interesse e que o evento corresponde ao nosso julgamento razoável, não podemos exigir nem possuir uma certeza maior com respeito a esses objetos. Pode-se também explicar os próprios sonhos e a sua pouca conexão com outros fenômenos. Todavia, creio que se poderia estender a apelação do conhecimento e da certeza além das sensações atuais, visto que a clareza e a evidência vão tão além que considero uma espécie da certeza: seria inquestionavelmente uma loucura duvidar seriamente se existem homens no mundo, quando não os vemos. Duvidar seriamente é duvidar com respeito à prática, e poderíamos considerar a certeza um conhecimento da verdade, com o qual não se pode duvidar em relação à prática, sem risco de loucura; por vezes considera-se a certeza, de maneira mais geral, e se aplica aos casos em que não se pode duvidar sem merecer grave censura. Entretanto, a evidência seria uma certeza luminosa, isto é, onde não se duvida devido à causa da conexão que se enxerga entre as ideias. Segundo esta definição da certeza, estamos certos de que Constantinopla está no mundo, que Constantino, Alexandre Magno e Júlio César viveram. É verdade que algum camponês das Ardennes poderia razoavelmente duvidar disto, por falta de informação; um homem letrado, porém, não poderia fazê-lo sem com isso mesmo denotar uma grande desordem de espírito. § 11. FILALETO - Na verdade, pela nossa memória somos certificados de muitas coisas que passaram, porém não poderemos julgar bem se elas ainda subsistem. Ontem vi água, e certo número de belas cores na superfície das garrafas que se formaram sobre esta água. Agora estou certo de que essas garrafas existiram, tanto quanto esta água, porém não conheço a existência presente da água com certeza maior do que a existência das garrafas, embora a primeira seja infinitamente mais provável, pois observamos que a água é durável e as garrafas desaparecem. § 12. Enfim, fora de nós mesmos e de Deus, só conhecemos outros espíritos por revelação, e deles só temos a certeza da fé. TEÓFILO - Já observamos que a nossa memória nos engana por vezes. Fiamo-nos ou não na nossa memória, conforme ela for mais ou menos viva, e mais ou menos ligada com as coisas que sabemos. E, mesmo que tenhamos certeza sobre o principal, muitas vezes podemos duvidar das circunstâncias. Recordo-me de ter conhecido certo homem, pois sinto que a sua imagem não me é nova, como também a sua voz; este duplo indício me dá mais garantia que um deles tomado isoladamente, e todavia não consigo lembrar-me onde vi este homem. Entretanto, acontece, ainda que raramente, que vejamos uma pessoa em sonhos, antes de vê-la em carne e osso. Alguém me assegurou que uma donzela de uma corte conhecida viu em sonho e pintou para as suas amigas aquele que mais tarde desposou, bem como a sala na qual se desenrolou o casamento, o que fez antes de ter visto e conhecido tanto a pessoa como o local. Atribuíam isto a não sei que pressentimento secreto; entretanto, o acaso pode produzir este efeito, visto ser bastante raro que isto aconteça; além disso, sendo que as imagens dos sonhos são um pouco obscuras, tem-se mais liberdade de relacioná-las posteriormente com algumas outras. § 13. FILALETO - Concluamos que existem duas espécies de proposições, umas particulares e sobre a existência, como, por exemplo, que um elefante existe; as outras, gerais, sobre a dependência das ideias, como, por exemplo, que os homens devem obedecer a Deus. § 14. A maior parte dessas proposições gerais e certas levam o nome de verdades eternas, e na realidade todas elas o são. Não que sejam proposições formadas atualmente nalgum ponto de toda a eternidade, ou que sejam gravadas no espírito segundo algum modelo que existiu sempre, mas é porque estamos certos de que, se uma criatura, provida de faculdades e de meios para isso, aplicar os seus pensamentos à consideração das suas ideias, encontrará a verdade dessas proposições. TEÓFILO - A vossa divisão parece coincidir com a minha, das proposições de fato e das proposições de razão. Também as proposições de fato podem tornar-se gerais de alguma forma, porém isto acontece pela indução ou observação, de maneira que é apenas uma multidão de fatos semelhantes, como quando se observa que todo mercúrio se evapora pela força do fogo, e não é uma generalidade perfeita, porque não se vê a necessidade disso. As proposições gerais de razão são necessárias, embora a razão forneça também algumas que não são absolutamente gerais, e são apenas prováveis, como, por exemplo, quando presumimos que uma ideia é possível, até que se descubra o contrário, através de uma pesquisa mais exata. Existem finalmente proposições mistas, as quais são tiradas de premissas, das quais algumas provém dos fatos e das observações, e outras são proposições necessárias; tais são uma série de conclusões geográficas e astronômicas sobre o globo da terra e sobre o curso dos astros, que nascem pela combinação das observações dos viajantes e dos astrônomos com os teoremas de geometria e de aritmética. Todavia, como segundo o uso dos mestres da lógica a conclusão segue a premissa mais fraca e não pode fornecer mais certeza do que as premissas, essas proposições mistas não podem apresentar mais do que a certeza e a generalidade que pertencem às observações. No que concerne às verdades eternas, cumpre observar que no fundo elas são todas condicionais e dizem, com efeito: supondo-se tal coisa, acontece esta outra coisa. Por exemplo, dizendo: Toda figura que tiver três lados terá também três ângulos, não digo outra coisa senão que, supondo que exista uma figura de três lados, esta mesma figura terá três ângulos. Digo esta mesma, e é nisso que as proposições categóricas, que podem ser enunciadas sem condições, embora no fundo sejam condicionais, diferem daquelas que denominamos hipotéticas, como seria esta proposição: Se uma figura tem três lados, seus ângulos são iguais a dois retos, onde se vê que a proposição antecedente (isto é, a figura de três lados) e a consequente (a saber, os ângulos da figura de três lados são iguais a dois retos) não tem o mesmo sujeito, como tinham no caso precedente, onde o antecedente era: Esta figura é de três lados, e o consequente: A mencionada figura é de três ângulos. Embora ainda a hipotética muitas vezes possa ser transformada em categórica, porém mudando um pouco os termos, como se ao invés da hipotética precedente eu dissesse: Os ângulos de qualquer figura de três lados são iguais a dois retos. Os Escolásticos discutiram muito de constantia subiecti, como diziam, isto é, como a proposição feita sobre um sujeito pode ter uma verdade real, se este sujeito não existe. É que a verdade é apenas condicional e diz que, no caso de que o sujeito exista, ele será assim. Todavia, perguntar-se-á ainda em que está fundada esta conexão, visto existir nela uma verdade que não engana. A resposta será que ela está na ligação das ideias. Entretanto, perguntar-se-á, replicando, onde estariam tais ideias, se não existisse nenhum espírito, e qual seria neste caso o fundamento real desta certeza das verdades eternas. Isto nos conduz finalmente ao último fundamento das verdades, isto é, a este Princípio supremo e universal que não pode deixar de existir, cujo entendimento é a região das verdades eternas, como Santo Agostinho o reconheceu e o exprime de maneira muito viva. E, a fim de que não se pense ser desnecessário recorrer a Ele, cumpre considerar que essas verdades necessárias contêm a razão de terminante e o princípio regulador das próprias existências, e, numa palavra, as leis do universo. Assim, uma vez que essas verdades necessárias são anteriores às existências dos seres contingentes, é necessário que elas estejam fundadas na existência de uma substância necessária. É ali que encontro o original das ideias e das verdades que estão gravadas nas nossas almas, não em forma de proposições, mas como fontes das quais a aplicação e as ocasiões darão origem a enunciados atuais. CAPÍTULO XII OS MEIOS PARA AUMENTAR OS NOSSOS CONHECIMENTOS. § 1. FILALETO - Temos falado das espécies de conhecimento que temos. Abordemos agora os meios para aumentar o conhecimento ou para encontrar a verdade. É uma opinião aceita entre os sábios que as máximas constituem os fundamentos de todo conhecimento, e que cada ciência em particular está fundada sobre certas coisas já conhecidas (praecognita). § 2. Reconheço que a matemática parece favorecer este método pelo seu êxito, e vós insististes muito nisto. Entretanto, duvida-se ainda se não foram as ideias que, pela sua ligação, serviram a isso, bem mais do que três ou quatro máximas gerais que foram assentadas de início. Um rapaz conhece que o seu corpo é maior que o seu dedo mínimo, não porém em virtude deste axioma, isto é, que o todo é maior do que a sua parte. O conhecimento teve início com as proposições particulares; entretanto, posteriormente quis-se desencarregar a memória mediante as noções gerais de um acúmulo incômodo de ideias particulares. Se a linguagem fosse tão imperfeita que não houvesse os termos relativos todo e parte, não se poderia porventura conhecer que o corpo é maior do que o dedo? Pelo menos quero apresentar-vos as razões do meu autor, embora já possa prever o que a elas direis, a julgar pelo que afirmastes até aqui. TEÓFILO - Não sei por que motivo tanto se atacam as máximas. Se elas servem para desencarregar a memória de uma série de ideias particulares, como se reconhece, elas devem ser muito úteis, ainda que não tivessem outra utilidade. Acrescento, porém, que não é dali que elas nascem, pois não as encontramos pela indução dos exemplos. Aquele que conhece que dez são mais do que nove, que o corpo é maior do que o dedo, e que a casa é grande demais para poder sair pela porta conhece cada uma dessas proposições particulares por uma mesma razão geral que está como que incorporada e iluminada, assim como se veem traços carregados de cores, onde a proporção e a configuração consistem propriamente nos traços, qualquer que seja a cor. Ora, esta razão comum é o próprio axioma que é conhecido, por assim dizer, implicitamente, embora não o seja imediatamente de uma forma abstrata e separada. Os exemplos tiram a sua verdade do axioma incorporado, e o axioma não tem o seu fundamento nos exemplos. E, como esta razão comum dessas verdades particulares se encontra no espírito de todos os homens, bem vedes que ela não tem necessidade de que os termos todo e parte se encontrem na linguagem daquele que fala. § 4. FILALETO - Entretanto, não é perigoso autorizar as suposições, sob pretexto de axiomas? Um suporá com os antigos que tudo é matéria; o outro, com Polêmon, suporá que o mundo é Deus; um terceiro afirmará que o sol é a principal divindade. Julgai vós que religião teríamos se tudo isso fosse permitido. Tanto é verdade, que é perigoso aceitar princípios sem questioná-los, sobretudo se dizem respeito à moral. Com efeito, alguém esperará outra vida, semelhante àquela de Aristipo, que fazia a felicidade consistir no prazer do corpo, preferivelmente à de Antístenes, que defendia que a virtude é suficiente para tornar o homem feliz. E Arquelau, que assentará o princípio de que o justo e o injusto, o honesto e o desonesto são determinados exclusivamente pelas leis e não pela natureza, terá sem dúvida outras medidas do bem e do mal moral, diferentes das daqueles que reconhecem obrigações anteriores às constituições humanas. § 5. Por conseguinte, é necessário que os princípios sejam certos. § 6. Entretanto, esta certeza vem exclusivamente da comparação das ideias; assim, não temos necessidade de outros princípios, e, segundo esta única regra, iremos mais longe do que submetendo o nosso espírito à discrição de outros. TEÓFILO - Surpreendo-me que volteis contra as máximas, isto é, contra os princípios evidentes, aquilo que se pode e se deve ler contra os princípios supostos gratuitamente. Quando se exigem praecognita nas ciências, ou conhecimentos anteriores que servem para fundamentar a ciência, exigem-se princípios conhecidos, e não posições arbitrárias, cuja verdade não é conhecida. O próprio Aristóteles o entende assim, que as ciências inferiores e subalternas tiram os seus princípios de outras ciências superiores, onde foram demonstrados, excetuada a primeira das ciências, que denominamos metafísica, a qual, segundo ele, não tira nada das outras, pelo contrário, fornece-lhes os princípios de que têm necessidade; quando Aristóteles diz: dei pisteúein tón mantánonta, "O aprendiz deve crer em seu mestre", o seu pensamento é que ele deve comportar-se assim apenas provisoriamente, quando ainda não está a par das ciências superiores, por motivo de cautela. Assim sendo, estamos longe de aceitar princípios gratuitos. A isto cumpre acrescentar que mesmo os princípios cuja certeza não é completa podem ter a sua utilidade, se sobre eles construirmos apenas para efeito de demonstração. Com efeito, ainda que neste caso todas as conclusões sejam apenas condicionais e valham somente na suposição de que este princípio seja verdadeiro, não obstante esta ligação e esses enunciados condicionais estariam no mínimo demonstrados; desta forma, seria muito de desejar que tivéssemos muitos livros escritos desta maneira, nos quais não haveria risco algum de erro, uma vez que o leitor ou discípulo estão advertidos desta condição. Além disso, não devemos regular a prática segundo essas conclusões, a não ser na medida em que a suposição for verificada por outros meios. Este método serve também muitas vezes para verificar as suposições ou hipóteses, quando delas nascem muitas conclusões, cuja verdade é conhecida de outras fontes, e por vezes isto dá um perfeito retorno, o qual é suficiente para demonstrar a verdade da hipótese. O Sr. Conring, médico de profissão, porém inteligente em toda espécie de erudição, excetuada talvez a matemática, tinha escrito uma carta a um amigo, ocupado com a tarefa de fazer reimprimir em Helrnstaedt o livro de Viotti, apreciado filósofo peripatético, que procura explicar a demonstração e os Analfticos Posteriores de Aristóteles. Essa carta foi acrescentada ao livro, sendo que Sr. Conring repetia Pappus, ao dizer que a análise propõe encontrar desconhecido, supondo-o e chegando dali, por consequência, ao conhecimento de verdades conhecidas; isto é contra a lógica - dizia ele - que ensina que partindo de falsidades não é possível chegar a verdades. Entretanto, mostrei-lhe posteriormente que a análise se serve das definições e outras proposições recíprocas, que nos possibilitam fazer o retorno e encontrar demonstrações sintéticas. E mesmo quando este retorno não é demonstrativo, como na física, não deixa de apresentar por vezes uma grande probabilidade, quando a hipótese explica facilmente muitos fenômenos, difíceis sem isso e muito independentes uns dos outros. Na verdade, defendo que o princípio dos princípios consiste, de certa forma, em fazer bom uso das ideias e das experiências; todavia, ao aprofundar, ver-se-á que, no que tange às ideias, o que importa é ligar as definições através dos axiomas. Todavia, não é sempre coisa fácil chegar a esta última análise, e, por mais que os geômetras, pelo menos os antigos, tenham querido fazer tal análise, ainda não a conseguiram fazer. O célebre autor do Ensaio Sobre o Entendimento Humano lhes daria muito prazer se terminasse esta pesquisa, um pouco mais difícil do que se pensa. Euclides, por exemplo, colocou entre os axiomas o que equivale a dizer que duas linhas retas só podem encontrar-se uma vez. A imaginação, tomada da experiência dos sentidos, não nos permite imaginar mais de um encontro de duas retas, porém a ciência não pode fundar-se sobre tal afirmação. E, se alguém acreditar que esta imaginação dá a ligação das ideias distintas, não está suficientemente instruído sobre a fonte dessas verdades, e uma série de proposições, demonstráveis por outras anteriores, seriam por ele consideradas imediatas. É o que muitas pessoas que retomaram Euclides não consideraram suficientemente; estas espécies de imagens são apenas ideias confusas, e aquele que só conhece a linha reta por este meio não será capaz de demonstrar nada através delas. Eis por que Euclides, por falta de uma ideia bem expressa, isto é, de uma definição da linha reta - pois a que ele dá provisoriamente é obscura e não lhe é útil nas demonstrações -, foi obrigado a retornar a dois axiomas, que para ele figuram como definição e que utiliza nas suas demonstrações; o primeiro, que duas retas não têm parte comum, o segundo, que elas não compreendem espaço. Arquimedes forneceu uma forma de definição da reta, ao dizer que ela é a linha mais curta que existe entre dois pontos. Todavia, ele supõe tacitamente (empregando nas suas demonstrações elementos tais como os de Euclides, fundados sobre os dois axiomas que acabo de mencionar) que as afecções de que falam esses axiomas convêm à linha que ele define. Assim, se acreditais com os vossos amigos, sob pretexto da concordância e discordância das ideias, que era e é ainda permitido acolher em geometria o que nos dizem as imagens, sem procurar este rigor de demonstrações pelas definições e pelos axiomas, que os antigos exigiam nessas ciências, confessar-vos-ei que com isso podem contentar-se somente aqueles que se preocupam apenas com a geometria prática, porém não aqueles que querem ter a ciência que serve até para aperfeiçoar a prática. Se os antigos tivessem partilhado esta opinião e tivessem negligenciado este ponto, creio que não teriam avançado e só nos teriam deixado uma geometria empírica, qual era, ao que parece, a dos egípcios, e qual é ainda, ao que parece, a dos chineses. Isto nos teria privado dos mais belos conhecimentos físicos e mecânicos que a geometria nos permitiu descobrir, os quais são desconhecidos àqueles que ignoram a nossa geometria. Parece igualmente que, seguindo os sentidos e as suas imagens, se teria caído em erros; analogamente, vê-se que todos aqueles que não são suficientemente instruídos na geometria exata, dando crédito à sua imaginação, consideram uma verdade inquestionável que duas linhas que se aproximam continuamente devem finalmente encontrar-se, ao passo que os geômetras fornecem exemplos contrários em certas linhas, que denominam assintóticas. Além disso, seríamos privados daquilo que considero o maior na geometria em relação à contemplação, que consiste em deixar entrever a verdadeira fonte das verdades eternas e no meio de nos fazer compreender a sua necessidade, a qual as ideias confusas das imagens dos sentidos não conseguem mostrar distintamente. Dir-me-eis que Euclides foi obrigado, não obstante isto, a limitar-se a certos axiomas, cuja evidência só se enxerga confusamente, através das imagens. Reconheço que ele se limitou a esses axiomas, porém era melhor limitar-se a um pequeno número de verdades desta natureza, que lhe pareciam ser as mais simples, e dali deduzir outras, que deixar muitas verdades não demonstradas e, o que é pior, deixar às pessoas a liberdade de estender a sua negligência conforme o seu bom ou mau humor. Como vedes, o que dissestes - juntamente com os vossos amigos - sobre a ligação das ideias como sendo a verdadeira fonte da verdade necessita de explicação. Se quiserdes contentar-vos com enxergar confusamente esta ligação, enfraqueceis a exatidão das demonstrações, e Euclides fez melhor reduzindo tudo às definições e a um pequeno número de axiomas. Se quiserdes que esta ligação das ideias se veja e se exprima distintamente, sereis obrigado a recorrer às definições e aos axiomas, como eu exijo, e por vezes sereis obrigado a contentar-vos com alguns axiomas menos primitivos, como fizeram Euclides e Arquimedes, quando vos for difícil chegar a uma perfeita análise; assim agindo, fareis melhor do que negligenciar algumas belas descobertas, que podeis encontrar por meio delas. Como já vos disse outras vezes, acredito que não teríamos geometria - entendo uma ciência demonstrativa - se os antigos não tivessem avançado antes de ter demonstrado os axiomas que foram obrigados a empregar. § 7. FILALETO - Começo agora a entender o que é uma ligação das ideias conhecida distintamente, e bem vejo que desta forma os axiomas são necessários. Vejo bem, igualmente, como é necessário que o método que seguimos nas nossas pesquisas quando se trata de examinar as ideias seja regulado conforme os exemplos dos matemáticos, que partindo de certos inícios muito claros e fáceis - que não constituem outra coisa senão os axiomas e as definições - sobem em pequenos degraus e por encadeamento contínuo de raciocínios até a descoberta e a demonstração das verdades que de início parece superar a capacidade humana. A arte de encontrar provas e estes métodos admiráveis que inventaram para distinguir e pôr em ordem as ideias médias é o que produziu descobertas tão admiráveis e tão inesperadas. O que não quero determinar, é se com o tempo não se poderá inventar algum método semelhante que sirva para as outras ideias, como também àquelas que pertencem à grandeza. Se outras ideias fossem examinadas segundo o método comum aos matemáticos, conduziriam os nossos pensamentos mais longe do que poderíamos talvez imaginar. § 8. Isto se poderia fazer particularmente na moral, como observei mais de uma vez. TEÓFILO - Creio que tendes razão, e estou disposto desde há muito tempo a cumprir as vossas previsões. § 9. FILALETO - No que tange ao conhecimento dos corpos, é necessário tomar um caminho completamente oposto, pois, por não termos nenhuma ideia sobre as suas essências reais, somos obrigados a recorrer à experiência. § 10. Todavia, não nego que um homem acostumado a fazer experiências razoáveis e regulares seja capaz de formar conjeturas mais acertadas que outro sobre as suas propriedades ainda desconhecidas, porém isto é uma opinião, e não conhecimento e certeza. Isto me faz crer que a física não é capaz de tornar-se ciência em nossas mãos. Entretanto, as experiências e as observações históricas podem servir em relação à saúde dos nossos corpos e às comodidades da vida. TEÓFILO - Estou de acordo que a física inteira jamais será uma ciência perfeita entre nós, mas não deixaremos de poder ter alguma ciência física, e até já possuímos amostras. Por exemplo, a magnetologia pode passar como tal ciência, pois, fazendo poucas suposições fundadas na experiência, podemos demonstrar por consequência certa uma série de fenômenos que acontecem efetivamente. Não devemos esperar que possamos dar a razão de todas as experiências, como até mesmo os geômetras ainda não demonstraram todos os seus axiomas; porém, assim como eles se contentaram em deduzir um grande número de teoremas de um pequeno número de princípios da razão, da mesma forma é suficiente que os físicos, mediante alguns princípios de experiência, deem a razão de uma série de fenômenos e possam até prevê-los na prática. § 11. FILALETO - Uma vez, portanto, que as nossas faculdades não estão dispostas a nos fazer discernir a constituição interna dos corpos, devemos pensar que basta que elas nos revelem a existência de Deus, e um conhecimento bastante grande de nós mesmos, para nos instruir sobre os nossos deveres e sobre os nossos maiores interesses, sobretudo em relação à eternidade. Acredito ter o direito de deduzir daí que a moral é a própria ciência e o grande problema dos homens em geral, como de outra parte as diferentes artes que dizem respeito a diferentes setores da natureza constituem a partilha dos particulares. Pode-se dizer, por exemplo, que a ignorância do uso do ferro é a causa de que nos países da América, onde a natureza espalhou abundantemente toda espécie de bens, falte a maior parte das comodidades da vida. Assim, bem longe de menosprezar a ciência da natureza, § 12, considero que, se este estudo for dirigido como deveria ser, ela pode ser de maior utilidade ao gênero humano que tudo o que se fez até agora. Aquele que descobriu a imprensa, que descobriu o emprego da bússola e descobriu a força da quinquina contribuiu mais para a propagação do conhecimento e para o progresso das comodidades da vida e salvou mais pessoas da morte que os fundadores dos colégios, dos hospitais e de outros monumentos da mais insigne caridade. TEÓFILO - Não poderíeis afirmar nada que fosse mais de acordo com a minha opinião. A verdadeira moral ou piedade deve estimular-nos a cultivar as artes, ao contrário de favorecer à preguiça de alguns quietistas que nada fazem. E conforme afirmei, não há muito tempo, uma política melhor seria capaz de nos trazer um dia uma medicina muito melhor que a de agora. Nunca podemos apregoá-lo suficientemente, após o cuidado pela virtude. § 13. FILALETO - Embora eu recomende a experiência, não menosprezo as hipóteses prováveis. Elas podem conduzir a novas descobertas e constituem no mínimo um grande auxílio para a memória. Entretanto, o nosso espírito está muito inclinado a proceder com pressa demais e a contentar-se com algumas aparências levianas, por não querer dar-se ao trabalho e empregar o tempo necessário para aplicá-las a uma série de fenômenos. TEÓFILO - A arte de descobrir as causas verdadeiras dos fenômenos, ou as hipóteses verdadeiras, é como a arte de decifrar, onde muitas vezes uma conjetura engenhosa abrevia muito o caminho. O Sr. Bacon começou a elaborar normas para a arte de experimentar, sendo que o Sr. Boyle demonstrou grande talento em pô-las em prática. Todavia, se não se lhe acrescentar a arte de utilizar as experiências e de tirar as consequências acertadas, não se chegará, com as maiores despesas, àquilo que uma pessoa de grande penetração poderia descobrir sozinha. O Sr. Descartes fez uma observação semelhante nas suas cartas. por ocasião do Método do chanceler da Inglaterra; e Espinosa - que cito de bom grado, quando afirma coisas acertadas -, numa das suas cartas ao falecido Sr. Oldenburg, secretário da Sociedade Real da Inglaterra, impressas entre as obras póstumas deste judeu sutil, faz uma observação idêntica a respeito de uma obra do Sr. Boyle. § 14. FILALETO - Após ter estabelecido ideias claras e distintas com nomes fixos, o grande meio de aumentar os nossos conhecimentos é a arte de encontrar ideias médias, que nos possam fazer ver a conexão ou a incompatibilidade das ideias extremas. As máximas, pelo menos, não servem para no-las fornecer. Supondo que um homem não tenha ideia exata de um ângulo reto, empenhar-se-á em vão em demonstrar alguma coisa sobre o triângulo retângulo; e, quaisquer que sejam as máximas que empregue, será difícil chegar, através delas, a demonstrar que os quadrados dos seus lados que compreendem o ângulo reto são iguais ao quadrado da hipotenusa. Uma pessoa poderia ruminar por muito tempo esses axiomas, sem ver com maior clareza na matemática. TEÓFILO - De nada serve ruminar os axiomas, sem ter como aplica-los. Os axiomas servem muitas vezes para ligar as ideias, como, por exemplo, esta máxima, que os extensos semelhantes da segunda e da terceira dimensão estão em razão dupla e tripla dos extensos correspondentes da primeira dimensão, é de um emprego muito vasto; por exemplo, a quadratura da lúnula de Hipócrates nasce daqui, no caso dos círculos, acrescentando-lhe a aplicação dessas duas figuras uma à outra, quando sua posição dada fornece a facilidade, como sua comparação conhecida promete luzes disso. CAPÍTULO XIII OUTRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O NOSSO CONHECIMENTO. § 1. FILALETO - Vem talvez a propósito acrescentar que o nosso conhecimento tem muita afinidade com a vista - nisso como em outros elementos - sob o aspecto de que ele não é nem totalmente necessário, nem totalmente voluntário. Não se pode deixar de enxergar, quando se tem os olhos abertos, porém podemos dirigir a vista para certos objetos, § 2, e considera-los com maior ou menor atenção. Assim, uma vez que a faculdade é aplicada, não depende da vontade o determinar o conhecimento; da mesma forma, aliás, que um homem não pode deixar de enxergar o que está enxergando. Todavia, é necessário empregar devidamente as próprias faculdades, se quisermos instruir-nos. TEÓFILO - Já tivemos ocasião de falar sobre isso, estabelecendo que não depende do homem ter este ou aquele sentimento no estado presente, porém depende dele preparar-se para tê-lo e para não tê-lo a seguir, e, sendo assim, as opiniões só são voluntárias de uma forma indireta. CAPÍTULO XIV O JULGAMENTO. § 1. FILALETO - O homem se encontraria indeterminado na maior parte das ações da sua vida, se nada pudesse fazer quando lhe falta um conhecimento certo. § 2. Muitas vezes é necessário contentar-se com um simples crepúsculo de probabilidade. § 3. E a faculdade para isso é o julgamento. Muitas vezes nos contentamos com isso por necessidade, mas outras vezes é falta de diligência, de paciência, de habilidade. § 4. A isso se denomina assentimento ou dissentimento: ele se verifica quando presumimos alguma coisa, isto é, quando a consideramos verdadeira antes da demonstração. Quando isso se faz conforme a realidade das coisas, estamos diante de um julgamento correto. TEÓFILO - Outros denominam julgar a ação que se pratica todas as vezes que fazemos um pronunciamento depois de conhecer o assunto; existirão até outros que distinguirão o julgamento da opinião, como a dizer que o julgamento deve apresentar maior certeza do que a opinião. Entretanto, não quero julgar a ninguém no que concerne ao uso dos termos; quanto a vós, nada impede que considereis o julgamento uma opinião provável. Quanto à presunção, que é um termo dos jurisconsultos, o bom uso vigente entre eles o distingue da conjetura. E algo a mais, e que deve provisoriamente passar como uma verdade provisória, até que se demonstre o contrário, ao passo que um indício, uma conjetura, muitas vezes deve ser pesada e comparada com outra conjetura. Assim, aquele que tomou dinheiro emprestado de outro, presume-se que deva pagá-lo, a menos que demonstre tê-lo já feito, ou que a dívida cesse em virtude de algum outro princípio. Por conseguinte, presumir não é, neste sentido, o mesmo que julgar antes da prova, o que não é permitido - mas equivale, sim, a afirmar com antecedência, porém com fundamento, aguardando a possibilidade de uma demonstração do contrário. CAPÍTULO XV A PROBABILIDADE. § 1. FILALETO - Se a demos tração faz ver a ligação das ideias, a probabilidade não é outra coisa que a aparência desta ligação fundada sobre provas, nos casos em que não se vê conexão imutável. § 2. Existem vários graus de assentimento, desde a certeza até a conjetura, a dúvida, a desconfiança. § 3. Quando se tem certeza, existe intuição em todas as partes do raciocínio, que assinalam a ligação; todavia, o que me faz crer é algo de estranho. § 4. Ora, a probabilidade está fundada em concordância com aquilo que sabemos, ou no testemunho daqueles que sabem. TEÓFILO - Preferiria dizer que a probabilidade está sempre fundada na verossimilhança ou na conformidade com a verdade; sendo que o testemunho de outros é uma coisa que o verdadeiro costuma ter a seu favor, em relação aos fatos que estão ao alcance. Pode-se, portanto, afirmar que a semelhança do provável com o verdadeiro é tomada ou da própria coisa, ou de alguma coisa estranha. Os mestres da retórica afirmam duas espécies de argumentos: os artificiais, que são derivados das coisas por raciocínio, e os inartificiais, que se fundam apenas no testemunho expresso ou do homem ou talvez da própria coisa. Além disso, existem também argumentos mistos, pois o testemunho pode também fornecer um fato, que serve para formar um argumento artificial. § 5. FILALETO - É por falta de semelhança com o verdadeiro que não cremos facilmente naquilo que nada tem de semelhante com aquilo que sabemos. Assim, quando um embaixador disse ao rei do Sião que a água se solidificava de tal modo no inverno entre nós que um elefante poderia andar sobre ela sem afundar, o rei exclamou: Até agora acreditei que fôsseis um homem de boa fé, agora vejo que mentis. § 6. Se, porém, o testemunho dos outros pode tornar um fato provável, a opinião dos outros não deve considerar-se um verdadeiro fundamento de probabilidade. Com efeito, existe entre os homens mais erro do que conhecimento, e, se a fé naqueles que conhecemos e estimamos constitui um fundamento legítimo do assentimento, os homens terão razão de serem pagãos no Japão, maometanos na Turquia, papistas na Espanha, calvinistas na Holanda e luteranos na Suécia. TEÓFILO - Sem dúvida, o testemunho dos homens tem mais peso do que a opinião deles, sendo razoável dar mais crédito ao primeiro do que à segunda. Entretanto, é sabido que o juiz por vezes obriga a prestar juramento de fé, como se diz; é sabido que nos interrogatórios muitas vezes se pergunta às testemunhas não somente o que viram, mas também o que julgam, interrogando-as ao mesmo tempo sobre as razões do seu julgamento. Além disso, os juízes dão muito crédito às opiniões dos peritos em cada profissão; os particulares também estão obrigados a fazê-lo, Assim, uma criança ou outra pessoa que não merecer maior confiança do que ela, está obrigada, mesmo quando se encontra numa certa situação, a seguir a religião do país, enquanto não vir nenhum mal nisso e não estiver em condições de encontrar uma religião melhor. Um governante de pajens, de qualquer partido que seja, obrigá-los-á cada um a ir à igreja à qual vão os da religião que este jovem professa. Pode-se consultar as discussões entre o Sr. Nicole e outros sobre o argumento do número elevado em matéria de fé, onde se verifica por vezes que um lhe dá demasiada importância, ao passo que o outro não lhe dá suficiente consideração. Existem outros preconceitos semelhantes, pelos quais os homens gostariam de se eximir da discussão. É o que Tertuliano denomina, num tratado especial, praescriptiones usando um termo que os antigos jurisconsultos - cuja linguagem não lhe era desconhecida - atribuíram a várias espécies de exceções ou alegações estranhas, termo que hoje, porém, só se aplica à prescrição temporal quando se pretende recusar o pedido de outrem, pelo fato de não ter sido feito dentro do prazo prescrito pelas leis. Assim é que se encontrou motivo para publicar preconceitos legítimos tanto do lado da Igreja romana como do lado dos protestantes, Acreditou-se que existe possibilidade de opor a novidade, por exemplo, tanto aos primeiros como aos segundos, sob certos aspectos; como, por exemplo, quando os protestantes na maioria abandonaram a forma das antigas ordenações dos ministros eclesiásticos, e os seguidores da Igreja romana alteraram o antigo cânon dos livros da Santa Escritura do Antigo e do Novo Testamento, conforme demonstrei com clareza numa discussão que tive por escrito e por várias vezes com o bispo de Meaux, discussão cuja documentação acaba de perder-se, segundo notícias que chegaram há poucos dias. Desta forma, sendo essas recriminações recíprocas, a novidade, embora autorize alguma suspeita de erro nessas matérias, não constitui todavia uma prova certa de erro. CAPÍTULO XVI OS GRAUS DE ASSENTIMENTO. § 1. FILALETO - No que concerne aos graus de assentimento, cumpre tomar cuidado para que os fundamentos de probabilidade que temos não operem além do grau da aparência que neles se encontra. Pois é necessário reconhecer que o assentimento não é sempre fundado sobre uma visão atual das razões que prevaleceram no espírito, e seria muito difícil, mesmo àqueles que possuem uma memória admirável, recordar sempre todas as provas que os levaram a dar certo assentimento, e que por vezes poderiam encher um volume inteiro sobre uma única questão. Basta que uma vez tenham estudado sinceramente a matéria, e que tenham por assim dizer feito a conta. § 2. Do contrário, seria necessário que os homens fossem muito céticos, ou mudassem de opinião a cada momento, para render-se a qualquer homem que, tendo examinado a questão recentemente, lhes proponha argumentos aos quais não pudessem satisfazer inteiramente no momento, por falta de memória ou de aplicação. § 3. Cumpre reconhecer que isto muitas vezes torna os homens obstinados no erro: porém a falta não é daqueles que repousam sobre a sua memória, mas daqueles que julgaram mal anteriormente. Ordinariamente, todavia, os que menos examinaram as suas opiniões são os que mais se apegam a elas. Entretanto, a adesão àquilo que se viu é louvável, não porém sempre àquilo que se creu, pois se pode ter deixado atrás alguma consideração, capaz de inverter tudo. E talvez não haja ninguém no mundo que tenha o tempo, a paciência e os meios para reunir todas as provas de uma parte e da outra sobre as questões nas quais tem as suas opiniões, para comparar essas suas provas e para concluir com segurança que nada mais lhe resta por saber para uma instrução mais ampla. Todavia, o cuidado pelos nossos interesses supremos não pode sofrer dilação, sendo absolutamente necessário que o nosso julgamento se determine em questões nas quais somos incapazes de chegar a um conhecimento certo. TEÓFILO - Tudo o que acabastes de dizer é bom e sólido. Entretanto, seria desejável que os homens tivessem, em certas ocasiões, resumos por escrito - em forma de memórias - das razões que os conduziram a alguma opinião de importância, a qual muitas vezes são obrigados a justificar posteriormente, a si mesmos ou aos outros. Aliás, embora em matéria de justiça não seja permitido, em geral, retratar os julgamentos passados, e rever contas encerradas - do contrário seria necessário estar em perpétua inquietação, o que seria tanto mais intolerável quanto não se pode sempre conservar as notícias das coisas passadas -, todavia por vezes se pode, baseado em novas luzes, recorrer à justiça e obter até o que se denomina restituição, in iniegrum contra aquilo que havia sido previamente determinado. Da mesma forma, nos nossos próprios assuntos, sobretudo nas matérias muito importantes nas quais ainda é permitido começar o caminho ou voltar atrás, e onde não é prejudicial suspender a execução, as decisões do nosso espírito, fundadas sobre probabilidades, não devem jamais passar in rem iudicatam - como dizem os jurisconsultos -, isto é, para estabelecer que não se está disposto a rever o raciocínio, caso novas razões consideráveis se apresentem? Todavia, quando não há mais tempo para deliberar, é necessário seguir o julgamento feito, com tanta firmeza como se ele fosse infalível, embora nem sempre com igual rigor. § 4. FILALETO - Uma vez que, por conseguinte, os homens não podem evitar de expor-se ao erro no julgar, como não podem evitar de ter opiniões diversas quando não podem considerar as coisas sob os mesmos aspectos, devem conservar a paz entre si e os deveres de humanidade, em meio a esta diversidade de opiniões, sem pretender que um outro deva mudar prontamente e diante das nossas objeções uma opinião arraigada, sobretudo se ele pode pensar que o seu adversário age por interesse ou ambição, ou por algum outro motivo particular. O mais das vezes os que querem impor aos outros a necessidade de render-se às suas opiniões não examinaram as coisas a fundo. Pois aqueles que entraram suficientemente na discussão para sair da dúvida são em número tão reduzido e encontram tão pouco motivo para condenar os outros, que não se deve esperar nada de violento da parte deles. TEÓFILO - Efetivamente, o que mais se tem direito de censurar nos homens não é a sua opinião, mas o seu juízo temerário em censurar a opinião dos outros, como se para ter uma opinião contrária à deles fosse necessário ser estúpido ou mau. Não que muitas vezes não haja verdadeiramente motivo para censurar as opiniões dos outros, porém é necessário fazê-lo, com espírito de equidade, e ter compreensão pela fraqueza humana. E verdade que temos direito de tomar precauções contra doutrinas más, que exercem influências sobre os costumes e na prática da piedade, porém não se deve atribuí-las às pessoas, em seu prejuízo, sem ter sólidas razões para tanto. Se a equidade exige que se poupem as pessoas, a piedade manda mostrar, onde for necessário, o mau efeito dos seus dogmas, quando estes forem prejudiciais, como são aqueles que vão contra a providência de um Deus perfeitamente sábio, bom e justo, e contra esta imortalidade das almas que os torna suscetíveis dos efeitos da sua justiça, sem falar de outras opiniões perigosas em relação à moral. Sei que homens excelentes e bem-intencionados defendem que essas opiniões teóricas exercem menos influência do que se pensa, na prática, e sei também que existem pessoas de um caráter excelente, as quais nunca farão nada de indigno por causa das opiniões dos outros; aliás, os que chegaram a esses erros pela especulação costumam por natureza distanciar-se mais dos vícios aos quais a maioria dos homens estão sujeitos, além de terem cuidado para manter a dignidade da seita na qual são como chefes; pode-se, por exemplo, dizer que Epicuro e Espinosa tiveram uma vida inteiramente exemplar. Acontece, porém, que essas razões desaparecem, o mais das vezes, nos seus discípulos ou imitadores, os quais, crendo-se livres do medo importuno de uma Providência vigilante e de um futuro ameaçador, largam as rédeas às suas paixões brutais e voltam o seu espírito a seduzir e a corromper os outros; e, se forem ambiciosos e de caráter um pouco duro, serão capazes, para o seu prazer ou progresso, de pôr fogo nos quatro pontos extremos da terra, como na realidade conheci pessoas deste jaez, que já foram arrebatadas pela morte. Penso igualmente que opiniões parecidas, insinuando-se pouco a pouco no espírito dos homens do grande mundo, os quais governam os outros, e dos quais dependem os acontecimentos, e, entrando nos livros que estão na moda, dispõem todas as coisas à revolução geral que no momento ameaça a Europa, e acabam de destruir o que ainda resta no mundo dos sentimentos generosos dos antigos gregos e romanos, que preferiam o amor à pátria e ao bem público, bem como o cuidado da posteridade à fortuna e mesmo à vida. Estes publiks spirits, como os denominam os ingleses, vão diminuindo ao extremo, não estando mais na moda; cessarão ainda mais, quando não mais forem apoiados pela boa moral e pela verdadeira religião, que a própria razão natural nos ensina. Os melhores da parte oposta, que começa a dominar, não possuem outro principio fora do que denominam de honra. Entretanto, a característica do homem honesto e do homem honrado, para eles, é apenas não praticar nenhuma baixeza como a consideram. E se por grandeza, ou por capricho, alguém derramasse um dilúvio de sangue, se ele invertesse tudo, não se daria nenhuma importância a isto, e um Heróstrato dos antigos, ou então um Don Juan no Festim de Pedra passaria por um herói. Ridiculariza-se muito o amor à pátria, ridicularizam-se os que têm cuidado do bem público, e, quando algum homem bem-intencionado fala do que será a humanidade do futuro, responde-se: que assim seja. Pode, porém, acontecer que essas pessoas mesmas sejam atingidas pelos males que acreditam reservados aos outros. Se ainda nos corrigirmos desta epidemia cujos maus efeitos começam a tornar-se visíveis, talvez esses males sejam prevenidos; ao contrário, se esta epidemia crescer, a providência corrigirá os homens pela própria revolução que surgirá. Com efeito, aconteça o que acontecer, tudo reverterá, ao final das contas, em bem, embora isso não deva e não possa ocorrer sem a punição daqueles que contribuíram, mesmo que fosse para o bem, com as suas ações más. Deixemos agora uma digressão, à qual me conduziram a consideração das opiniões prejudiciais e o direito de censurá-las. Ora, como na teologia as censuras vão ainda mais longe que alhures e aqueles que fazem valer a sua ortodoxia, condenando muitas vezes os seus adversários, ao que se opõem no próprio partido os que são denominados sincretistas pelos seus adversários - esta opinião deu origem a guerras civis entre os rígidos e os condescendentes dentro de um mesmo partido. Todavia, visto que recusar a salvação eterna àqueles que partilham outra opinião equivale a arrogar-se os direitos de Deus, os mais sábios dos condenadores entendem-no apenas do perigo no qual acreditam ver as almas errantes e abandonam à misericórdia singular de Deus aqueles cuja maldade não os torna incapazes de aproveitar-se dela, e do seu lado se consideram obrigados a envidar todos os esforços imagináveis para retirá-los de um estado tão perigoso. Se essas pessoas, que assim julgam acerca do perigo dos outros, chegaram a esta opinião após um exame conveniente, e se não houver meio de desconvencê-las. não se pode censurar a sua conduta, enquanto só andarem pelos caminhos da doçura. Entretanto, no momento em que forem mais longe, violam as leis da equidade. Pois devem pensar que outros, tão persuadidos quanto eles, têm o mesmo direito de sustentar as suas opiniões e mesmo de divulgá-las, se as considerarem importantes. Devem-se excetuar as opiniões que ensinam crimes, opiniões que não se devem admitir, e que temos o direito de extinguir pelas vias do rigor, mesmo que fosse verdade que os seus defensores não conseguem desfazer-se delas, da mesma forma como temos o direito de matar um animal venenoso, mesmo que ele seja inocente. Entretanto, falo de extinguir a seita, e não os homens, visto ser possível impedi-los de prejudicar e de apregoar os seus dogmas. § 5. FILALETO - Para retomar ao fundamento e aos graus do assentimento, vem a propósito observar que as proposições podem ser de duas espécies: umas são proposições de fato, pois, dependendo da observação, podem estar fundadas sobre um testemunho humano; as outras são as proposições de especulação, pois, referindo-se às coisas que os nossos sentidos não podem revelar-nos, não são capazes de tal testemunho. § 6. Quando um fato particular é conforme as nossas observações constantes e ao testemunho uniforme dos outros, nós nos apoiamos neles com a mesma firmeza como se fosse um conhecimento certo, e quando ele for concordante com o testemunho de todos os homens, em todos os séculos, na medida em que este pode ser conhecido, temos o primeiro e mais alto grau de probabilidade; por exemplo, a afirmação de que o fogo aquece, de que o ferro afunda na água. A nossa crença construída sobre tais fundamentos se alteia até a certeza. § 7. Em segundo lugar, todos os historiadores testemunham que tal homem preferiu o interesse particular ao público, e, como se observou que é este o costume da maior parte dos homens, o assentimento que dou a tais histórias é uma confiança. § 8. Em terceiro lugar, quando a natureza das coisas não apresenta nada nem pró nem contra, um fato atestado pelo testemunho de pessoas não suspeitas, como, por exemplo, que Júlio César existiu, é admitido com uma crença firme. § 9. Entretanto, quando os testemunhos são contrários ao curso ordinário da natureza, ou são contrários entre si, os graus de probabilidade podem diversificar-se ao infinito, sendo daí que provêm esses graus que denominamos opinião, conjetura, dúvida, incerteza, desconfiança. Aqui se impõe exatidão para formar um julgamento reto e dosar o nosso assentimento conforme os graus de probabilidade. TEÓFILO - Os jurisconsultos, ao tratarem das provas, presunções, conjeturas e indícios, afirmaram uma série de coisas boas a este respeito, e deram alguns detalhes consideráveis. Começam pela notoriedade, na qual não há necessidade de provas. Posteriormente chegam a provas inteiras, ou que se consideram tais, sobre as quais se faz um pronunciamento, ao menos em matéria civil, sendo-se mais reservado, em alguns lugares, em se tratando de matéria criminal. Neste caso não é irracional exigir provas mais do que plenas, e sobretudo o que se denomina o corpus delicti, conforme a natureza do fato. Existem, por conseguinte, provas mais do que plenas, existindo também provas plenas comuns. Depois, existem presunções, que se consideram provisoriamente como provas inteiras, isto é, enquanto não se demonstrar o contrário. Existem provas mais do que semiplenas, nas quais se permite àquele que se funda sobre elas jurar para suprir (o iuramentum suppletorium); existem outras provas menos que semiplenas, nas quais se transfere o julgamento àquele que nega o fato, para purgar-se (é o iuramentum purgationis). Fora disso, existe uma série de graus de conjeturas, de indícios. Particularmente em matéria criminal existem indícios (ad torturam) para ir à questão; existem indícios (ad terrendum) suficientes para fazer ver os instrumentos da tortura e preparar as coisas como se se quisesse chegar a ela. Existem também indícios (adcapturam) para apoderar-se de uma pessoa suspeita, como existem indícios ad inquirendum para informar-se secretamente e sem ruído. Essas diferenças podem também servir em outras ocasiões proporcionais. Toda a forma dos processos na justiça não é outra coisa, na realidade, senão uma espécie de lógica, aplicada às questões de direito. Também os médicos têm uma série de graus e diferenças dos seus sinais e indicações que se podem verificar entre eles. Os matemáticos do nosso tempo começaram a estimar os acasos por ocasião dos jogos. O Cavaleiro de Méré, do qual se imprimiram os Agréments e outras obras, homem de espírito penetrante e filósofo, deu ocasião a isto, formando questões sobre os partidos, para saber quanto valeria o jogo se este fosse interrompido neste ou naquele ponto. Desta maneira ele conduziu Pascal, seu amigo, a examinar um pouco tais coisas. A questão tornou-se conhecida e deu ocasião ao Sr. Huygens de escrever o seu tratado De Alea. Outros homens sábios se engajaram na discussão. Estabeleceram-se alguns princípios, dos quais se serviu também o Sr. Witt num pequeno discurso impresso em holandês, sobre as rendas vitalícias? O fundamento sobre o qual se construiu reduz-se à prosthaférèse, isto é, tomar uma média aritmética entre várias suposições igualmente admissíveis. Os nossos camponeses utilizaram este método, há muito tempo, conforme a sua matemática natural. Por exemplo, quando alguma herança ou terra deve ser vendida, eles formam três grupos de avaliadores; esses grupos se denominam Schurzen em baixo saxão, sendo que cada grupo faz uma avaliação do bem em questão. Suponhamos que um dos grupos avalia em 1 000 escudos, o segundo em 1 400, o terceiro em 1 500; toma-se a soma dessas três estimativas - que é 3 900 - e, visto que houve três grupos, toma-se como resultado a terça parte - 1 300 - como sendo o valor médio; ou então - o que equivale à mesma coisa - toma-se a soma das terças partes de cada estimativa. É o axioma; aequalibus aequalia, ou seja: para as suposições iguais impõem-se considerações iguais. Quando, porém, as suposições forem desiguais, elas são comparadas entre si. Suponhamos, por exemplo, que, com dois dados, um deve ganhar se fizer 7 pontos, o outro, se fizer 9; pergunta-se que proporção se encontra entre as suas probabilidades de ganhar? Afirmo que a probabilidade para o último vale apenas dois terços da probabilidade para o primeiro, pois o primeiro pode fazer 7 de três modos com dois dados, isto é, por 1 e 6, ou 2 e 5, ou 3 e 4; o outro só pode fazer 9 de duas maneiras, jogando 3 e 6, ou 4 e 5. E todas essas maneiras são igualmente possíveis. Por conseguinte, as probabilidades, que são como os números das possibilidades iguais, estarão como 3 para 2, ou como 1 para 2/3. Mais de uma vez observei que seria necessária uma nova espécie de lógica, que tratasse os graus de probabilidade, visto que Aristóteles, no seus Tópicos, nada mais fez do que isso, e contentou-se em colocar em certa ordem certas regras populares, distribuídas segundo os lugares-comuns, que podem servir em alguma ocasião em que se trata de amplificar o discurso e conferir-lhe boa aparência, sem preocupar-se em dar-nos uma balança necessária para pesar as probabilidades e para formar nesta matéria um julgamento sólido. Seria bom que aquele que quisesse tratar esta matéria continuasse o exame dos jogos de azar de maneira genérica, desejaria que um hábil matemático escrevesse uma vasta obra, bem circunstanciada e bem pensada sobre todas as espécies de jogos, o que seria de grande utilidade para aperfeiçoar a arte de inventar, uma vez que o espírito humano aparece melhor nos jogos que nas matérias mais sérias. § 10. FILALETO - A lei da Inglaterra observa esta regra, a saber, que a cópia de uma ata, reconhecida como autêntica por testemunhas, constitui uma boa prova, ao passo que a cópia de uma cópia, por mais que seja credenciada pelas testemunhas mais qualificadas, jamais é admitida como prova em juízo. Jamais ouvi qualquer censura contra esta sábia precaução. Disto se pode tirar no mínimo esta observação, isto é, que um testemunho tem menos valor à medida que estiver mais distante da verdade original, que reside na própria coisa; ao contrário, para certas pessoas, procede-se de maneira completamente oposta, as opiniões adquirem força ao envelhecerem, e aquilo que não teria parecido provável há mil anos a um homem razoável contemporâneo daquele que por primeiro o certificou passa agora como certo, pelo fato de que muitos o relataram, baseados no seu testemunho. TEÓFILO - Os críticos em matéria de história têm grande consideração pelas testemunhas contemporâneas aos acontecimentos; todavia, mesmo um contemporâneo do fato só merece praticamente crédito em se tratando de acontecimentos públicos; quando ele fala dos motivos, dos segredos, das motivações ocultas e das coisas discutíveis, como, por exemplo, dos envenenamentos, dos assassinatos, tem-se no mínimo aquilo que vários acreditaram. Procópio! merece muito crédito quando fala da guerra de Belisário contra os vândalos e os godos, porém, quando ele atribui maledicências horríveis à Imperatriz Teodora nas suas Anedotas, creia quem quiser. Em geral, deve-se ter muita reserva antes de crer nas sátiras: em nosso tempo alguns se deram a tais publicações, veiculando coisas contrárias a qualquer probabilidade, e no entanto muitos foram os ignorantes que as devoraram avidamente. Dir-se-á talvez um dia: será possível que se ousou publicar tais coisas nesse tempo, se não houvesse algum fundamento provável? Se isto se disser algum dia, julgar-se-á com muito desacerto. Entretanto, o mundo está inclinado à sátira; para citar um só exemplo: o falecido Sr. du Maurier filho publicou, não sei com que meios, nas suas Memórias impressas há alguns anos atrás, certas coisas mal fundadas contra o incomparável Hugo Crotius, embaixador da Suécia na França, irritado, ao que parece, por não sei o que contra a memória deste ilustre amigo de seu pai; pois bem, observei que uma série de autores as repetiram à vontade, embora as negociações e as cartas deste ilustre cidadão revelem o contrário. Chega-se ao ponto de escrever romances na história, e aquele que escreveu a última biografia de Cromwell acreditou que lhe era permitido, no intuito de tornar a história mais interessante, ao falar da vida particular deste hábil usurpador, afirmar que ele viajou para a França, dando a crer que o seguiu pelos hotéis de Paris, como se o autor tivesse sido o seu governante. Ao contrário, aparece claramente, pela história de Cromwell, escrita por Carrington - homem informado - e dedica da ao seu filho Ricardo, que Cromwell jamais deixou as ilhas britânicas. O detalhe sobre todos os acontecimentos é pouco seguro. Quase não se tem bons relatórios sobre as batalhas, sendo que a maior parte das que se contam de Tito Lívio parecem imaginárias, como aquelas que se atribuem a Quinto Cúrcio. Seria necessário ter os relatos de pessoas exatas e capazes, que elaborassem planos semelhantes àqueles que o Conde de Dahlberg - que já servira com distinção sob o rei da Suécia Carlos Custavo e, sendo governador geral da Livônia, ultimamente defendeu Riga - fez gravar sobre os atos e as batalhas deste príncipe; Todavia, não se deve logo desacreditar um bom historiador, baseando-se numa palavra de algum príncipe ou ministro, que se queixa contra ele em alguma ocasião, ou sobre algum assunto que não lhe agrada e onde verdadeiramente pode existir alguma falha. Conta-se que Carlos Quinto, querendo que lhe lessem alguma coisa de Sleidan, dizia: Trazei-me o meu mentiroso! Conta-se também que Carlowitz, gentil-homem muito conhecido naquele tempo, afirmava que a história de Sleidan destruía no seu espírito todo o conceito favorável que ele se formara sobre as histórias antigas. Isto, digo eu, não terá força alguma, no espírito das pessoas informadas, para destruir a autoridade da história de Sleidan, cuja parte melhor é constituída por um conjunto de atas públicas das dietas e reuniões e dos escritos autorizados pelos príncipes. Se a respeito disto existisse ainda o mínimo escrúpulo, ele acaba de ser erguido pela excelente história de meu ilustre amigo, o falecido Sr. Seckendorff - no qual, todavia, não posso deixar de desaprovar o nome de luteranismo no título, nome que um mau hábito autorizou na Saxônia -, obra em que a maior parte das coisas são justifica das pelos extratos de uma infinidade de documentos, extraídos dos arquivos da Saxônia, que estavam à disposição do autor, embora o Sr. de Meaux - que na obra é atacado - se tenha limitado a escrever-me que a obra em questão apresenta uma prolixidade horrível. De minha parte, desejaria que a obra fosse vezes mais volumosa. Aliás, existem obras históricas bem cotadas, as quais são bem mais volumosas. De resto, nem sempre se menosprezam os autores posteriores ao tempo de que falam, quando aquilo que relatam é provável por outras fontes. Por vezes acontece que eles conservam relatos dos autores mais antigos. Por exemplo, duvidou-se de que família é Suitberto, bispo de Bamberga, e posteriormente papa com o nome de Clemente II. Um autor anônimo da história de Brunswick, que viveu no século XIV, nomeou a sua família, sendo que pessoas sábias na nossa história não quiseram dispensar-lhe consideração: eu, porém, tive em mãos uma crônica muito mais antiga, ainda não impressa, na qual a mesma coisa é dita com mais circunstâncias, donde aparece que ele era da família dos antigos senhores de Hornburg - não muito longe de Wolfenbuttel -, cujas terras foram doadas pelo último proprietário à igreja catedral de Halberstadt. § 11. FILALETO - Não quero que se pense que, com a minha observação, tencionei diminuir a autoridade e a utilidade da história. É desta fonte que recebemos, com uma evidência convincente, uma grande parte das nossas verdades úteis. Nada vejo de mais apreciável que as memórias que nos restam da antiguidade, e gostaria que as tivéssemos em maior número e menos corrompidas. Permanece, porém, verdadeiro, que nenhuma cópia está acima da certeza do seu primeiro original. TEÓFILO - É certo que, quando se tem um único autor da antiguidade como garantia de um fato, todos aqueles que o copiaram não acrescentam peso algum, ou melhor, não contam para nada. É o mesmo como se tudo o que dizem fosse do número tõn hápax legoménon, isto é, das coisas que foram ditas uma só vez, coisas sobre as quais o Sr. Ménage queria escrever um livro. E mesmo hoje, se cem mil pequenos escritores repetissem as maledicências de Bolsee - para dar um exemplo -, uma pessoa de bom discernimento não lhes daria mais importância do que ao barulho dos gansos. Houve jurisconsultos que escreveram de fide historica, porém o assunto mereceria uma pesquisa mais exata, sendo que alguns desses escritores foram excessivamente indulgentes. No que tange à antiguidade, alguns dos fatos mais brilhantes são duvidosos. Pessoas inteligentes duvidaram com razão se Rômulo foi o primeiro fundador da cidade de Roma. Discute-se outrossim acerca da morte de Ciro, e a oposição entre Heródoto e Ctésias difundiu dúvidas sobre a história dos assírios, babilônios e persas. A história de Nabucodonosor, de Judite e até do Assuero de Ester apresenta grandes dificuldades. Os romanos, ao falar do ouro de Tolosa, contradizem ao que contam sobre a derrota dos gauleses por Camilo. Sobretudo a história própria e particular dos povos é sem crédito, quando não for tirada dos originais muito antigos nem suficientemente conforme à história pública. Eis por que aquilo que se conta dos antigos reis germânicos, gauleses, britânicos, escoceses, poloneses e outros é considerado com razão como repleto de fábulas. O tal Trebeta, filho de Ninus, fundador de Treves, e o tal Brutus, autor dos Bretões ou Brittains, não são mais verdadeiros que os Amadis. Os contos tirados de alguns escritores de fábulas, que Trithemius, Aventino e até Albino e Sifrid Petri tomaram a liberdade de relatar acerca dos antigos príncipes francos, boêmios, saxões, frisões, bem como aquilo que Saxão, o gramático, e Edda nos contam a respeito das antiguidades recuadas do Setentrião, não podem ter mais autoridade que o que conta Kadlubko, primeiro historiador polonês, acerca de um dos seus reis, genro de Júlio César. Ao contrário, quando os historiadores de povos diferentes se encontram e convergem nos casos em que não há probabilidade de que um tenha copiado do outro, temos um grande indício de verdade, Tal é a concordância de Heródoto com a história do Antigo Testamento em muitas coisas, por exemplo, quando fala da batalha de Megido, entre o rei do Egito e os sírios da Palestina, isto é, os judeus, onde, segundo o relato da história sagrada que temos dos hebreus, o Rei Josias foi mortalmente ferido. Também o consentimento dos historiadores árabes, persas e turcos com os gregos, romanos e outros ocidentais proporciona satisfação àqueles que pesquisam sobre os fatos históricos; o mesmo acontece com o testemunho que as medalhas e inscrições, que restam da antiguidade, dão dos livros dos antigos que chegaram até nós, e que na realidade são cópias de cópias. É necessário esperar o que ainda nos ensinará a história da China, quando tivermos mais condições para julgar, e até que ponto ela merece credibilidade por si mesma. A utilidade da história consiste principalmente no prazer que existe em conhecer as origens, na justiça que se faz aos homens que se mostraram beneméritos dos outros, no estabelecimento da crítica histórica, e sobretudo da história sagrada, que sustenta os fundamentos da revelação, e - deixando de lado as genealogias e direitos dos príncipes e das potências - nos ensinamentos úteis que os exemplos nos fornecem. Não desprezo que se investiguem as antiguidades até os mínimos detalhes; pois às vezes os conhecimentos que os críticos haurem delas podem servir às coisas mais importantes. Estou de acordo, por exemplo, em que se escreva toda história das vestes e da arte dos alfaiates, desde as vestimentas dos pontífices dos hebreus, ou, se quiserem, desde as peles que Deus deu ao primeiro casal na saída do paraíso, até as vestes do nosso tempo, e que a isso se acrescente tudo o que se pode tirar das antigas esculturas e das pinturas executadas desde alguns séculos para cá. Para isso estaria eu disposto a fornecer, se alguém o desejar, as memórias de um homem de Augsburgo do século passado, que se enfeitou com todas as vestes que usou desde a sua infância até a idade de sessenta e três anos. E não sei quem me disse que o falecido Sr. Duque de Aumont, grande conhecedor das antiguidades clássicas, teve uma curiosidade semelhante. Isto poderá talvez servir para discernir os monumentos legítimos daqueles que não o são, sem falar de algumas outras utilidades. E uma vez que é permitido aos homens brincar e jogar, ser-lhes-á ainda mais permitido divertir-se nestas espécies de trabalhos, se os deveres essenciais não sofrerem prejuízo. Entretanto, eu desejaria que houvesse pessoas que se aplicassem preferivelmente a tirar da história o que nela existe de mais útil, como seriam os exemplos extraordinários de virtude, as observações sobre as comodidades da vida, os estratagemas de política e de guerra. Gostaria, igualmente, que se escrevesse expressamente uma espécie de história universal que só assinalasse tais coisas, além de algumas outras de maior importância. Com efeito, por vezes se lerá um grande livro de história, cheio de erudição, bem escrito, adequado à finalidade do autor, excelente no seu gênero, que porém não contém ensinamentos úteis, pelos quais não entendo aqui simples moralizações, das quais estão repletos o Theatrum Vitae Humanae e certos outros florilégios. Gostaria ainda que se tirasse dos relatos de viagens uma infinidade de coisas desta natureza, e que se colocasse em ordem conforme a sucessão das matérias. É surpreendente que, restando tantas coisas úteis a fazer, os homens se divirtam quase sempre em fazer o que já feito está, ou em meras inutilidades, ou pelo menos naquilo que é o menos importante; não vejo para isso outro remédio antes que o público aprenda a conceder-se momentos mais tranquilos em sua vida. § 12. FILALETO - As vossas digressões proporcionavam prazer e aproveitamento. Entretanto, deixemos agora as probabilidades dos fatos e analisemos as probabilidades das opiniões concernentes às coisas, que não recaem sob os sentidos. Elas não são suscetíveis de nenhum testemunho, como sobre a existência da natureza dos espíritos, anjos, demônios etc., sobre as substâncias corporais que se encontram nos planetas e em outras moradas deste vasto universo, e finalmente sobre a maneira de operar da maior parte das obras da natureza, já que de todas essas coisas só podemos ter conjeturas, onde a analogia constitui a grande regra da probabilidade. Com efeito, não podendo essas coisas ser atestadas, não podem parecer prováveis senão na medida em que concordam mais ou menos com as verdades estabelecidas. Uma vez que uma fricção violenta de dois corpos produz calor e até fogo, e as refrações dos corpos transparentes fazem aparecer cores, julgamos que o fogo consiste numa agitação violenta das partes imperceptíveis, e que as cores, cuja origem não enxergamos, provêm de semelhante refração, e julgando que existe uma conexão gradual em todas as partes da criação, que podem ser sujeitas ã observação humana sem vazio algum considerável entre duas, temos a razão para pensar que as coisas se elevam rumo à perfeição pouco a pouco e através de graus insensíveis. É difícil dizer onde começa o sensível e o racional, e qual a mais baixa das coisas viventes; é como a quantidade que aumenta ou diminui num cone regular. Existe uma diferença excessiva entre certos homens e certos animais brutos; se, porém, quisermos comparar o entendimento e a capacidade de certos homens e de certos animais, encontraremos tão pouca diferença, que será muito difícil assegurar que o entendimento desses homens seja mais nítido ou mais amplo que os animais. Quando, portanto, observamos tal gradação insensível entre as partes da criação desde o homem até as partes mais baixas que estão abaixo dele, a regra da analogia nos faz considerar provável que exista uma gradação semelhante nas coisas acima de nós e fora da esfera das nossas observações, e esta espécie de probabilidade é o grande fundamento das hipóteses racionais. TEÓFILO - É baseado nesta analogia que Huygens julga, no seu Cosmotheoros que o estado dos outros planetas principais é bastante semelhante ao do nosso, excetuada a diferença que deve provir da diferença de distância em relação ao sol; e o Sr. de Fontenelle, que já antes tinha publicado as suas considerações cheias de espírito e de saber a respeito da pluralidade dos mundos, disse coisas lindas acerca disso, encontrando a arte de tornar amena uma matéria difícil. Dir-se-ia quase que no império da lua de Arlequim é tudo como aqui; é verdade que a opinião que se tem das luas - as quais não passam de satélites - é completamente diferente daquela que se tem sobre os planetas principais. Kepler deixou um pequeno livro que contém uma ficção engenhosa sobre o estado da lua, e um inglês, homem de espírito, deixou a gostosa descrição de um espanhol por ele inventado, que foi transportado à lua por pássaro de passagem, sem falar de Cyrano, que depois foi encontrar-se com o tal espanhol. Alguns homens de espírito, no desejo de fornecer um belo quadro da outra vida, fazem as almas dos bem-aventurados passearem de um mundo ao outro, e a nossa imaginação encontra nisto uma grande parte das belas ocupações que se podem conceder aos gênios. Entretanto, por mais esforço que a nossa imaginação faça, duvido de que ela possa encontrar isto, devido à grande distância existente entre nós e os gênios. E até que não encontremos lunetas tais quais o Sr. Descartes nos deu a esperança de encontrar para discernir partes do globo da lua não maiores que as nossas casas, não podemos determinar o que existe num globo diferente do nosso. As nossas conjeturas serão mais úteis e mais verdadeiras no que concerne às partes internas dos nossos corpos. Espero que possamos ir além da conjetura em muitas ocasiões, e já agora acredito que pelo menos a violenta agitação das partes do fogo - de que acabais de falar - não deve ser contada entre as coisas que não passam de prováveis. É lastimável que a hipótese do Sr. Descartes sobre a contextura das partes do universo visível foi tão pouco confirmada pelas pesquisas e descobertas posteriores, ou que o Sr. Descartes não tenha vivido cinquenta anos mais tarde para nos dar uma hipótese baseada nos conhecimentos atuais, tão engenhosa como a que deu baseado nos conhecimentos do seu tempo. No que tange à conexão gradual das espécies, já dissemos algo sobre isso nas discussões precedentes, onde assinalei que já certos filósofos raciocinaram sobre o vácuo nas formas ou espécies. Tudo procede por graus na natureza, e nada em saltos, sendo que esta regra a respeito das mudanças constitui uma parte da minha lei sobre a continuidade. Entretanto a beleza da natureza, que quer percepções distintas, exige aparências de saltos, e por assim dizer quedas de música nos fenômenos, e tem prazer em mesclar as espécies. Desta forma, embora possa haver em algum outro mundo espécies intermédias entre o homem e o animal - conforme se entende o sentido dessas palavras - e existam aparentemente em algum lugar animais racionais que nos ultrapassam, a natureza achou bom distanciá-los de nós, para nos entregar sem contradição a superioridade que desfrutamos no nosso globo. Falo das espécies intermediárias, e não gostaria de regular-me aqui pelos indivíduos humanos que se aproximam dos animais, pois aparentemente não é um defeito da faculdade, mas um obstáculo para exercê-la: de sorte que acredito que o mais imbecil dos homens - que não estiver num estado contrário à natureza em virtude de alguma enfermidade ou por outro defeito permanente, equivalente a uma doença - é incomparavelmente mais racional e mais dócil que o mais espiritual de todos os animais, embora por vezes se diga o contrário, por um jogo de espírito. Aliás, aprovo a pesquisa sobre as analogias: as plantas, os insetos e a anatomia comparativa dos animais fornecerão sempre mais analogia, sobretudo se continuarmos a servir-nos do microscópio ainda mais do que se faz agora. Nas matérias mais gerais ver-se-á que as minhas opiniões sobre as Mônadas difundidas em toda parte, sobre a sua duração perpétua, sobre a conservação do animal com a alma, sobre as percepções pouco distintas num certo estado, tal como a morte dos simples animais, sobre os corpos que é razoável atribuir aos gênios, sobre a harmonia das almas e dos corpos, que faz com que cada um siga perfeitamente as suas próprias leis sem ser perturbado pelo outro e sem que o voluntário e o involuntário necessitem ser distinguidos: ver-se-á, digo eu, que todas essas opiniões são inteiramente conformes com a analogia das coisas que observamos e que estendo apenas além das nossas observações, sem limitá-las a certas porções da matéria, ou a certas espécies de ações, e que só existe diferença do grande ao pequeno, do sensível ao insensível. § 13. FILALETO - Não obstante, há um caso em que concedemos menos à analogia das coisas naturais - que conhecemos através da experiência - que ao testemunho contrário de um fato estranho. Pois, quando acontecimentos sobrenaturais são conformes aos fins daquele que tem o poder de alterar o curso da natureza, não temos motivo para recusar crer neles quando forem bem atestados: é o caso dos milagres, que só possuem crédito por si mesmos, senão que também o comunicam a outras verdades que necessitam de uma tal confirmação. § 14. Finalmente, existe um testemunho que supera qualquer outro assentimento: é a revelação, ou seja, o testemunho de Deus, que não pode enganar nem enganar-se. O assentimento que lhe damos se denomina fé, a qual exclui qualquer dúvida, tanto quanto o conhecimento mais certo. Entretanto, o problema é ter garantia de que a revelação é divina, bem como ter certeza de que lhe compreendemos o verdadeiro sentido; ao contrário, expomo-nos ao fanatismo e a erros de uma falsa interpretação. Quando a existência e o sentido da revelação forem apenas prováveis, o assentimento não pode ter uma probabilidade maior do que aquela que se encontra nas provas. Sobre isto teremos que falar mais explicitamente. TEÓFILO - Os teólogos distinguem entre os motivos de credibilidade - como soem denominá-los - com o assentimento natural, o qual deve brotar desses motivos e não ter maior probabilidade que estes últimos, e o assentimento sobrenatural, que constitui um efeito da graça divina. Escreveram-se livros especiais sobre a análise da fé, livros que não concordam totalmente entre si. Todavia, já que disto falaremos a seguir, não quero aqui antecipar o que será dito no devido lugar. CAPÍTULO XVII A RAZÃO. § 1. FILALETO - Antes de falarmos explicitamente sobre a fé, trataremos da razão. Esta significa, por vezes, princípios claros e verdadeiros, por vezes conclusões deduzidas desses princípios, e por vezes a causa, particularmente a causa final. Aqui a consideramos uma faculdade, pela qual supomos que o homem se distingue do animal e o supera de muito. § 2. Temos necessidade da razão, tanto para aumentar o nosso conhecimento como para regular a nossa opinião, e ela constitui, a rigor, duas faculdades, que são a sagacidade, para encontrar ideias médias, e a faculdade de tirar conclusões ou de concluir. § 3. Podemos considerar na razão estes quatro graus: 1) descobrir provas; 2) colocá-las numa ordem que revele a sua conexão; 3) perceber a conexão em cada parte da dedução; 4) tirar daí a conclusão. Pode-se observar esses quatro graus nas demonstrações matemáticas. TEÓFILO - A razão é a verdade conhecida, cuja conexão com outra menos conhecida faz dar o nosso assentimento à última. De maneira particular e por excelência denomina-se razão, se é a causa não apenas do nosso julgamento, mas também da própria verdade, o que se denomina também razão a priori, sendo que a causa nas coisas corresponde à razão nas verdades. Eis por que a própria causa é muitas vezes denominada razão, particularmente a causa final. Finalmente, a faculdade que percebe esta conexão das verdades, ou a faculdade de raciocinar, é também denominada razão, sendo este o sentido que aqui empregais. Ora, esta faculdade pertence exclusivamente ao homem, na terra, não aparecendo nos outros animais existentes no globo; com efeito, já mostrei que a sombra da razão, que se pode observar nos animais, não é mais que a espera de um acontecimento semelhante num caso que parece semelhante ao passado, sem conhecer se a mesma razão tem lugar. Os próprios homens não agem de outra forma, nos casos em que são puramente empíricos. Todavia, elevam-se acima dos animais enquanto enxergam as conexões das verdades, as conexões que constituem elas mesmas verdades necessárias e universais. Essas conexões são até necessárias quando produzem apenas uma opinião, quando, após uma exata pesquisa, a prevalência de uma probabilidade, na medida em que se pode julgar, pode ser demonstrada, de maneira que então existe demonstração, não da verdade da coisa, mas do partido que a prudência quer que se adote. Ao partilhar esta faculdade da razão, creio que não se faz mal em reconhecer-lhe duas partes, conforme uma opinião bastante difundida que distingue a invenção e o julgamento. Quanto aos quatro graus que observais nas demonstrações da matemática, acho que via de regra o primeiro, que consiste em descobrir provas, não aparece, como seria de desejar. São sínteses, que foram encontradas por vezes sem análise, e por vezes a análise foi suprimida. Os geômetras colocam nas suas demonstrações primeiramente a proposição que deve ser demonstrada, e para chegar à demonstração expõem por alguma figura o que é dado. É o que se denomina ectese: Depois disso chegam à preparação e traçam novas linhas de que têm necessidade para o raciocínio; muitas vezes a maior arte consiste em encontrar essa preparação. Feito isso, fazem o próprio raciocínio, tirando consequências daquilo que foi dado na ectese, e daquilo que foi acrescentado pela preparação; e, empregando para isso as verdades já conhecidas ou demonstradas, chegam à conclusão. Entretanto, existem casos em que se dispensa a ectese e a preparação. § 4. FILALETO - Acredita-se geralmente que o silogismo é o grande instrumento da razão e o melhor meio para pôr esta faculdade em exercício. Quanto a mim, tenho dúvidas, pois o silogismo serve apenas para ver a conexão das provas num só exemplo e não vai além disso, ao passo que o espírito vê esta conexão facilmente, e talvez melhor sem o silogismo. Os que sabem utilizar as figuras e os modos supõem o mais das vezes o seu uso e utilidade em virtude de uma fé implícita nos seus mestres, sem saber a razão. Se o silogismo fosse necessário, ninguém conheceria o que quer que seja mediante a razão, antes da sua invenção, e seria necessário dizer que Deus, tendo feito o homem como criatura de duas pernas, deixou a Aristóteles o cuidado de fazer do homem um animal racional; quero dizer, deste pequeno número de homens que poderiam examinar os fundamentos dos silogismos, pois, dentre mais de sessenta maneiras de formar as três proposições que compõem um silogismo, existem apenas umas catorze que são seguras. Entretanto, Deus foi muito mais bondoso com os homens, dando-lhes um espírito capaz de raciocinar. Não digo isto para menosprezar Aristóteles, que considero um dos maiores homens da antiguidade, a quem poucos igualarão em amplidão, em sutileza, em penetração de espírito e em força de discernimento, e que, pelo próprio fato de haver inventado este pequeno sistema das formas da argumentação, prestou um grande serviço aos sábios. Todavia, essas formas não constituem o único nem sequer o melhor instrumento para raciocinar; aliás, Aristóteles não o descobriu pelas próprias formas, senão pelo caminho original da concordância manifesta das ideias; e o conhecimento que se adquire pela ordem natural nas demonstrações matemáticas aparece melhor sem o auxílio de qualquer silogismo. Inferir é tirar uma proposição como verdadeira de outra já afirmada como verdadeira, supondo uma certa conexão de ideias médias; por exemplo, do fato de que os homens serão punidos no outro mundo infere-se que eles podem determinar-se a si mesmos neste mundo. Eis aqui a conexão: Os homens serão punidos, e Deus é Aquele que pune; logo, o punido é culpado; logo, ele poderia ter agido de outra forma; logo, ele desfruta da liberdade; logo, ele tem a faculdade de determinar-se a si mesmo. A conexão se vê melhor aqui do que se houvesse cinco ou seis silogismos complicados, caso em que as ideias seriam transpostas, repetidas e enquadradas nas formas artificiais. Trata-se de saber que conexão tem uma ideia média com os extremos no silogismo: ora, é isto que nenhum silogismo é capaz de mostrar. É o espírito que pode perceber tais ideias colocadas assim por uma espécie de justaposição, e isto pela sua própria vista. Para que serve então o silogismo? Ele tem utilidades nas escolas, onde não se tem vergonha de negar a concordância das ideias que visivelmente concordam. Donde vem que os homens jamais fazem silogismos em si mesmos; quando procuram a verdade ou a ensinam àqueles que desejam sinceramente conhecê-la. Também é bastante óbvio que esta ordem é mais natural: Homem - animal - ser vivente, isto é, o homem é um animal, o animal é um ser vivente, logo o homem é um ser vivente; mais natural, digo, que a ordem deste silogismo: Animal - ser vivente. Homem - animal. Homem - ser vivente, isto é: o animal é um ser vivente, o homem é um animal, logo o homem é um ser vivente. É verdade que os silogismos podem servir para descobrir uma falsidade oculta sob o brilho de um ornamento tirado da retórica, e outrora acreditei que o silogismo fosse necessário, ao menos para precaver-se contra os sofismas disfarçados em discursos semeados de flores; todavia, após um exame mais severo, cheguei à conclusão de que é necessário apenas distinguir as ideias das quais depende a consequência daquelas que são supérfluas, e colocá-las numa ordem natural para demonstrar a incoerência. Conheci uma pessoa para a qual as regras do silogismo eram completamente desconhecidas, a qual percebia imediatamente a fraqueza e os falsos raciocínios de um longo discurso artificioso e plausível, discurso pelo qual se deixaram enganar outras pessoas exercitadas em toda a fineza da lógica. Creio que haverá poucos dos meus leitores que não conheçam tais pessoas. Se não fosse assim, os príncipes nos assuntos que interessam às suas coroas e à sua dignidade não deixariam de fazer entrar os silogismos nas discussões mais importantes, nas quais seria ridículo utilizá-los, como todos concordarão. Na Ásia, na África e na América, entre os povos independentes da Europa, quase ninguém ouviu falar alguma vez de silogismo. Afinal de contas, vê-se que essas formas escolásticas também podem induzir ao erro, tanto quanto as outras; além disso, raramente o método do silogismo chega a convencer as pessoas. Tais pessoas reconhecerão, no máximo, que o seu adversário é mais preparado intelectualmente, porém nem por isso deixarão de continuar persuadidas da justeza das suas convicções. E, se se podem envolver raciocínios falaciosos em silogismos, é necessário que a falácia possa ser descoberta por outro meio que não seja o silogismo. Não obstante o que acabo de dizer, não creio que se devam rejeitar os silogismos, nem que se deva renunciar a qualquer meio capaz de ajudar o nosso entendimento. O que pretendo afirmar é que as pessoas que deles se servem não devem dizer que não é possível enxergar sem usar óculos. Isso seria rebaixar demais a natureza humana, em favor de uma arte à qual tais pessoas possivelmente devam algo. Pode até acontecer a eles o que por vezes acontece aos que usam óculos em demasia ou cedo demais: a vista deles foi tão ofuscada pelo abuso deste instrumento, que chegaram ao ponto de não mais poder enxergar sem usá-lo. TEÓFILO - O vosso arrazoado sobre a pouca utilidade dos silogismos está repleto de uma série de observações sólidas e boas. Cumpre reconhecer que a forma escolástica dos silogismos é pouco usada no mundo; além disso, que ela é excessivamente longa e complicada, se quiséssemos empregá-la com seriedade. Não obstante - mesmo que não o acrediteis - estou convencido de que a invenção dos silogismos constitui uma das mais belas do espírito humano, e até uma das mais consideráveis. É uma espécie de matemática universal, cuja importância não é suficientemente conhecida. Pode-se dizer que o silogismo encerra uma arte de infalibilidade, desde que se saiba e se tenha capacidade para bem usa-lo, o que nem sempre acontece. Entretanto, é necessário saber que, ao falar dos argumentos em forma, não entendo exclusivamente esta maneira escolástica de raciocinar que se utiliza nos colégios, mas todo raciocínio que conclui pela força da forma, e onde não há necessidade de suprir ponto algum, de maneira que um sorites, outro tipo de silogismo que evite a repetição, um cálculo de álgebra, uma análise dos infinitesimais serão para mim mais ou menos argumentos em forma, porque a sua forma de raciocinar foi pré-demonstrada, de maneira que estamos seguros de não nos enganar. Pouco falta para que as demonstrações de Euclides sejam, na maioria dos casos, argumentos em forma, pois quando ele faz entimemas na aparência, a proposição suprimida e que parece faltar é suprida pela citação na margem, onde se indica o meio de encontrá-la já demonstrada, o que dá um grande resumo, sem nada sacrificar da força de convicção. Essas inversões, composições e divisões das razões, das quais se serve Euclides, não passam de espécies de formas de argumentar particulares e próprias aos matemáticos e à matéria com a qual se ocupam, e demonstram essas formas com o auxílio das formas universais da lógica. Além disso, importa saber que existem consequências assilogísticas boas, as quais não se podem demonstrar a rigor por nenhum silogismo, sem mudar-lhes um pouco os termos, sendo que esta mesma mudança dos termos faz a consequência assilogística. Existem vários tipos, como entre outros a recto ad obliquum por exemplo: Jesus Cristo é Deus; portanto, a mãe de Jesus Cristo é mãe de Deus. Analogamente, aquela que os grandes mestres da lógica denominaram inversão de relação, como, por exemplo, esta consequência: se Davi é pai de Salomão, sem dúvida Salomão é o filho de Davi. Estas consequências não deixam de ser demonstráveis por verdades das quais dependem os próprios silogismos vulgares. Também os silogismos não são somente categóricos, mas também hipotéticos, nos quais se englobam os disjuntivos. Pode-se dizer que os categóricos são simples ou compostos. Os categóricos simples são aqueles que se encontram comumente, isto é, segundo os modos das figuras; descobri que as quatro figuras têm cada qual seis modos, de maneira que existem ao todo vinte e quatro modos. Os quatro modos vulgares da primeira figura não são senão o efeito da significação dos sinais: Todo, Nenhum, Algum. E os dois que acrescento, para nada omitir, não são senão as subalternações das proposições universais. Com efeito, destes dois modos ordinários: Todo B é C, e todo A é B, do qual todo A é C; analogamente: Nenhum B é C, todo A é B, logo nenhum A é C, podem-se construir estes dois modos adicionais: Todo B é C, todo A é B, logo algum A é C; analogamente, nenhum B é C, todo A é B, logo algum A não é C. Pois não é necessário demonstrar a subalternação e provar as suas consequências: Todo A é C, logo algum A é C; analogamente, nenhum A é C, logo algum A não é C, embora seja possível demonstrá-la pelos idênticos, acrescentados aos modos já resultantes da primeira figura, da seguinte maneira: Todo A é C, algum A é A, logo algum A é C; analogamente, nenhum A é C, algum A é A, logo algum A não é C. De maneira que os dois modos adicionais da primeira figura se demonstram pelos dois primeiros modos ordinários da dita figura com a intervenção da subalternação, ela mesma demonstrável pelos dois outros modos da mesma figura. Da mesma forma, a mesma figura também recebe dois modos novos. Assim, a primeira e a segunda têm seis modos, a terceira sempre teve seis; dava-se cinco à quarta figura, mas vê-se que ela também tem seis, pelo mesmo princípio de adição. Todavia, cumpre saber que a forma lógica não nos obriga a esta ordem de proposições que utilizamos comumente, e partilho a vossa opinião, que é melhor este outro arranjo: Todo A é B, todo B é C, logo todo A é C, o que seria particularmente pelos sorites, que são um conjunto de tais silogismos. Pois se houvesse ainda um: Todo A é C, todo C é D, logo todo A é D, poder-se-ia fazer um conjunto desses dois silogismos, que evita a repetição dizendo: Todo A é B, todo B é C, todo C é D, logo todo A é D, onde se vê que a proposição inútil, todo A é C, é negligenciada, e a repetição inútil desta mesma suposição que os dois silogismos exigiam, é evitada; pois esta proposição já é inútil, e o conjunto é um argumento perfeito e bom em forma sem esta mesma proposição, quando a força do conjunto foi demonstrada de uma vez por todas através desses dois silogismos. Existe uma infinidade de outros conjuntos mais compostos, não somente porque neles entra um número maior de silogismos simples, mas também porque os silogismos que entram são mais diferentes entre si, pois se pode fazer entrar não somente categóricos simples, mas ainda copulativos, e não somente categóricos, mas também hipotéticos; e não apenas silogismos plenos, mas também entimemas, onde as proposições que se consideram evidentes são suprimidas. Tudo isso associado a consequências assilogísticas, e às transposições das proposições, e uma série de pensamentos que escondem essas preposições pela inclinação natural do espírito a abreviar, e pelas propriedades da linguagem, que aparecem em parte no uso das partículas, constituirá um conjunto de raciocínios que representará qualquer argumentação, mesmo de um orador, mas despojada dos seus ornamentos e reduzida à forma lógica, não escolasticamente, mas sempre de forma suficiente para conhecer a força, segundo as leis da lógica, que não são outras senão as do bom senso, postas em ordem e por escrito. Estas leis da lógica não diferem do bom senso mais do que o costume de uma província difere do que tinha sido antes, pelo fato de passar de costume não escrito a costume escrito. O que acontece é que a lógica, podendo ser colocada por escrito e podendo ser vista toda ela de uma só vez, fornece mais luz para poder ser aplicada. Com efeito, o bom senso natural, sem o auxílio da arte, ao fazer a análise de algum raciocínio, por vezes terá certa dificuldade para enxergar a força das consequências, encontrando, por exemplo, alguns que encerram algum modo, na verdade bom mas menos usado comumente. Entretanto, um mestre de lógica que quisesse que não nos servíssemos de tais conjuntos, ou não quisesse ele mesmo servir-se deles, pretendendo que se deve sempre reduzir todos os argumentos compostos aos silogismos simples dos quais na realidade dependem, seria, conforme o que já vos disse, como uma pessoa que quisesse obrigar os comerciantes, dos quais compra alguma coisa, a contar-lhe os números um por um como se conta nos dedos, ou como se contam as horas do relógio da cidade. Isso denotaria a sua estupidez, se ele não fosse capaz de contar de outra forma e se só fosse capaz de concluir que 5 mais 3 fazem 8 com os dedos. Ou então, denotaria capricho, se conhecesse tais métodos abreviados e não quisesse servir-se deles, ou permitir que os outros deles se sirvam. Assemelhar-se-ia ele também a uma pessoa que não quisesse que se utilizassem os axiomas e os teoremas já demonstrados, pretendendo que se deve sempre reduzir todo o raciocínio aos primeiros princípios, nos quais se veja a conexão imediata das ideias, dos quais na realidade esses teoremas dependem. Após explicar a utilidade das formas lógicas da maneira que acredito que se deve explicar, abordo as vossas considerações. Não vejo por que afirmar que o silogismo só serve para ver a conexão das provas num só exemplo. Dizer que o espírito enxerga sempre com facilidade as consequências é o que não se verificará, pois às vezes se vê algumas - ao menos nos raciocínios dos outros - em que se pode duvidar, enquanto não se vir a demonstração. Comumente servimo-nos dos exemplos para justificar as consequências, mas isto não é sempre suficientemente seguro, embora exista uma arte de escolher exemplos que não se enxergariam como verdadeiros se a consequência não fosse correta. Eu não acreditava que fosse permitido nas escolas bem organizadas negar sem nenhuma vergonha as concordâncias evidentes das ideias, e não me parece que se empregue o silogismo para demonstrá-las. Ao menos não é este seu emprego único e principal. Ver-se-á com maior frequência do que se pensa - ao examinar os paralogismos dos autores - que eles pecaram contra as regras da lógica, e eu mesmo experimentei algumas vezes ao discutir, mesmo por escrito, com pessoas de boa-fé, que só se começou a entender quando se argumentou em forma rigorosa para desentranhar um caos de arrazoados. Seria ridículo querer argumentar à maneira escolástica nas deliberações importantes, devido às prolixidades importunas e embaraçantes desta forma de raciocinar, e porque é como contar com os dedos. Entretanto, é muito verdade que nas mais importantes deliberações, que dizem respeito à vida, ao Estado, à salvação, as pessoas muitas vezes se deixam enganar pelo peso da autoridade, pelo brilho da eloquência, por exemplos mal aplicados, por entimemas que supõem falsamente a evidência daquilo que suprimem, e até por consequências falhas. Assim sendo, uma lógica severa, porém de outro feitio que a da escola, lhes seria muito necessária, entre outras coisas para determinar de que lado se encontram as razões mais fortes. De resto, o fato de que a maioria dos homens ignora a lógica artificial, e de que tais pessoas não deixam de raciocinar, por vezes, melhor do que pessoas exercitadas na lógica, não prova a inutilidade desta última, assim como não ficaria demonstrada a inutilidade da aritmética, pelo fato de haver certas pessoas que contam corretamente sem saber ler e escrever, e sem saber manejar a pena, até o ponto de chegarem a corrigir as faltas de outro que aprendeu a calcular, mas que pode descuidar ou deixar-se confundir com os caracteres ou números. É verdade que também os silogismos podem tornar-se sofísticos, mas as suas próprias leis servem para reconhecê-los: é verdade que os silogismos não convertem nem convencem sempre, mas é porque o abuso das distinções e dos termos mal-entendidos torna o seu uso prolixo até tornar-se insuportável se fosse necessário levá-lo até o fim. Só me resta aqui considerar e suprir o vosso argumento, trazido para servir de exemplo para um raciocínio claro sem a forma lógica: Deus pune o homem - é um fato suposto -, Deus pune com justiça aquele a quem pune - é uma verdade da razão que se pode considerar demonstrada -, logo Deus pune o homem com justiça - é uma consequência silogística estendida assilogisticamente a recto ad obliquum -, logo o homem é punido com justiça - é uma inversão de relação, que porém se suprime devido à sua evidência -, logo o homem é culpado - é um entimema, no qual se suprime esta proposição que na realidade é apenas uma definição: aquele que se pune justamente é culpado -, logo o homem teria podido agir de outra forma - suprime-se esta proposição: aquele que é culpado teve a liberdade de agir de outra forma -, logo o homem foi livre - suprime-se ainda: quem teve a possibilidade de agir de outra maneira foi livre -, portanto - em virtude da definição do termo livre -, ele teve o poder de autodeterminar-se. Era isto que cumpria demonstrar. Observo aqui que este próprio portanto encerra, na realidade, tanto a proposição subentendida - que aquele que é livre tem o poder de autodeterminar-se - como serve para evitar a repetição dos termos. Neste sentido, não haveria nada de omitido, e sob este aspecto o argumento poderia passar por completo. Observa-se que este raciocínio constitui um conjunto de silogismos inteiramente concordes com a lógica; pois neste momento não quero considerar a matéria deste arrazoado, onde haveria talvez reparos a fazer, ou esclarecimentos a pedir. Por exemplo, quando um homem não pode agir de outra forma, há casos em que poderia ser culpado diante de Deus, como se fosse bem fácil não poder socorrer ao seu próximo para ter uma escusa. Para concluir, reconheço que a forma de argumentação escolástica é em geral incômoda, insuficiente, maltratada, mas ao mesmo tempo afirmo que nada seria mais importante que a arte de argumentar em forma segundo a verdadeira lógica, isto é, plenamente quanto à matéria e claramente quanto à ordem e à força das consequências, sejam evidentes por si mesmas, sejam pré-demonstradas. § 5. FILALETO - Acreditava eu que o silogismo fosse ainda menos útil, ou melhor, absolutamente de nenhuma utilidade nas probabilidades, visto que ele emprega um único argumento tópico. Agora, porém, vejo que é necessário sempre provar solidamente o que existe de seguro no próprio argumento tópico, isto é, a evidência que nele se encontra, e que a força da consequência consiste na forma. § 6. Todavia, se os silogismos servem para julgar, duvido de que possam servir para inventar, isto é, para encontrar provas e para fazer novas descobertas. Por exemplo, não creio que a descoberta da quadragésima sétima proposição do primeiro livro de Euclides se deva às regras da lógica ordinária, pois primeiramente se conhece, e depois se é capaz de demonstrar em forma silogística. TEÓFILO - Englobando sob os silogismos também os conjuntos de silogismos e tudo aquilo que denominei argumentação em forma, pode-se dizer que o conhecimento que não é evidente por si mesmo se adquire através de consequências, as quais só são corretas quando possuem a sua forma devida. Na demonstração da dita proposição que faz o quadrado da hipotenusa igual aos dois quadrados dos lados, corta-se o grande quadrado em pedaços e os dois pequenos também, e resulta que os pedaços dos dois quadrados pequenos podem encontrar-se todos no quadrado grande, e nem mais nem menos. É demonstrar a igualdade em forma, e as igualdades dos pedaços se provam também por argumentos em boa forma. A análise dos antigos era, segundo Pappus, tomar o que se pede e tirar dali consequências até que se chegue a alguma coisa dada ou conhecida. Observei que para este efeito é necessário que as proposições sejam recíprocas, a fim de que a demonstração sintética possa repassar de volta pelo caminho da análise, mas é sempre tirar consequências. Entretanto, convém notar-se aqui que, nas hipóteses astronômicas ou físicas, a volta não se verifica, porém tampouco o evento não demonstra a verdade da hipótese. É verdade que ele a torna provável, mas como esta probabilidade parece pecar contra a regra da lógica, que ensina que o verdadeiro pode ser derivado do falso, dir-se-á que as regras lógicas não se verificarão inteiramente nas questões prováveis. Respondo que é possível que o verdadeiro seja concluído do falso, porém não é sempre provável, sobretudo quando uma simples hipótese dá a razão de muitas verdades, o que acontece com dificuldade e raramente. Poder-se-ia dizer com Cardan que a lógica dos prováveis tem outras consequências que a lógica das verdades necessárias. Entretanto, a própria probabilidade dessas consequências deve ser demonstrada pelas consequências da lógica das necessárias. § 7. FILALETO - Ao que me parece, fazeis a apologia da lógica vulgar, mas vejo perfeitamente que a vossa contribuição pertence a uma lógica mais sublime, em comparação com a qual a lógica vulgar é o que são os rudimentos do alfabeto em relação à erudição. Isto me recorda uma passagem do judicioso Hooker, que, no seu livro intitulado As Leis do Estado Eclesiástico, livro I, §6, acredita que, se pudéssemos obter os verdadeiros meios do saber e da arte de raciocinar - que não se conhece muito e pelo que poucos se preocupam, neste nosso século que passa por esclarecido -, haveria tanta diferença em relação à solidez do julgamento entre os homens que o utilizariam e o que os homens são atualmente, como entre os homens de hoje e os imbecis. Desejo que a nossa discussão possa fornecer ocasião de fazer alguns encontrarem esses verdadeiros meios da arte dos quais fala esse grande homem que possuía espírito tão penetrante. Não serão os imitadores que, como costuma fazer o gado, seguem pelo caminho batido (imitatorum servum pecusi). Todavia, ouso dizer que existem neste século pessoas de tal força de julgamento e de uma amplidão de espírito tão grande, que poderiam contribuir para o avanço do conhecimento dos caminhos novos, se quisessem dar-se ao esforço de dedicar-se a isto. TEÓFILO - Observastes bem, como Hooker, que o mundo não se preocupa com isso, embora acredite também eu que tenha havido e ainda haja pessoas capazes para isso. Cumpre reconhecer, porém, que temos atualmente grandes meios, tanto do lado da matemática como da filosofia, sendo que o Ensaio sobre o Entendimento Humano, de autoria do vosso insigne amigo, não constitui o menor deles. Veremos se existe maneira de tirar proveito dele. § 8. FILALETO - Sinto necessidade de dizer-vos ainda que, a meu entender, há um menosprezo visível nas regras do silogismo. Entretanto, desde que começamos a conferir os nossos pontos de vista, comecei a hesitar. Não obstante isso, apresentar-vos-ei a minha dificuldade. Diz-se que nenhum raciocínio silogístico pode ser concludente, se não contiver no mínimo uma proposição universal. Parece-me, porém, que somente as coisas particulares são o objeto imediato dos nossos raciocínios e dos nossos conhecimentos; elas repousam apenas sobre a concordância e a discordância das ideias, das quais cada uma tem apenas uma exigência particular e representa apenas uma coisa singular. TEÓFILO - Na medida em que concebeis a similitude das coisas, concebeis algo a mais, e a universalidade consiste exclusivamente nisto. Permanece de pé que jamais proporeis nenhum dos nossos argumentos sem empregar neles verdades universais. Todavia, convém notar que se deve englobar - quanto à forma - as proposições singulares nas universais. Pois embora seja verdade que só existe um São Pedro Apóstolo, pode-se dizer que, quem quer que tenha sido São Pedro Apóstolo, renegou o seu mestre. Desta forma, pode-se dizer que este silogismo: São Pedro renegou o seu mestre, São Pedro foi discípulo, logo algum discípulo renegou o seu mestre - embora só contenha proposições singulares - encerra proposições universais afirmativas, e• o modo será darapti da terceira figura. FILALETO - Queria dizer-vos ainda que me parecia melhor transpor as premissas dos silogismos e afirmar: Todo A é B. Todo B é C, logo todo A é C, quer dizer: todo B é C, todo A é B, logo todo A é C. Entretanto, pelo que dissestes, parece que não nos distanciamos disso, e que se contam ambos como sendo um e mesmo modo. Continua sempre verdade - como observastes - que a disposição diferente da vulgar é mais apta para fazer um conjunto de vários silogismos. TEÓFILO - Concordo inteiramente com a vossa opinião. Parece, porém, que se acreditou ser mais didático começar por proposições universais, como são as premissas maiores na primeira e na segunda figuras; e existem ainda oradores que têm este hábito. Todavia, a ligação aparece melhor da maneira que propondes. Observei outrora que Aristóteles pode ter tido um motivo especial para optar pela disposição comum. Pois, ao invés de dizer A é B, costuma dizer B é A. E, desta maneira, a própria ligação que procurais virá na disposição comumente admitida. Com efeito, em vez de dizer: B é C, A é B, logo A é C, ele a enunciará assim: C está em B, B está em A, logo C está em A. Por exemplo, ao invés de dizer: O retângulo é isógono (com ângulos iguais), o quadrado é retângulo, logo o quadrado é isógono, Aristóteles, sem transpor as proposições, conservará o lugar do meio para o termo médio por esta forma de enunciar as proposições, que inverte os seus termos, e dirá: o isógono está no retângulo, o retângulo está no quadrado, logo o isógono está no quadrado. Esta forma de enunciar não deve ser menosprezada, pois na realidade o predicado está no sujeito, ou então, a ideia do predicado está envolta na ideia do sujeito. Por exemplo, o isógono está no retângulo, pois o retângulo é a figura na qual todos os ângulos retos são iguais entre si, e por conseguinte na ideia do retângulo está a ideia de uma figura na qual todos os ângulos são iguais, o que constitui o conceito do isógono. A maneira comum de enunciar considera preferivelmente os indivíduos, ao passo que a de Aristóteles considera mais as ideias ou universais. Com efeito, dizendo todo homem é animal, quero dizer que todos os homens estão compreendidos em todos os animais; ao mesmo tempo, porém, entendo que a ideia do animal está compreendida na ideia do homem. O animal compreende mais indivíduos que o homem, mas o homem compreende mais ideias ou mais formalidades; um tem mais exemplos, o outro mais graus de realidade; um tem maior extensão, o outro maior intenção. Pode-se também dizer verdadeiramente que toda a doutrina silogística poderia ser demonstrada pela de continente et contento, ou seja, do compreendente e do compreendido, que é diferente da do todo e da parte, visto que o todo ultrapassa sempre a parte, ao passo que o compreendente e o compreendido por vezes são iguais, como acontece nas proposições recíprocas. § 9. FILALETO - Começo a fazer da lógica uma ideia completamente diversa da que possuía outrora. Considerava-a uma brincadeira de escolares, ao passo que agora vejo que existe uma espécie de matemática universal, da forma como entendeis. Oxalá se conseguisse fazê-la progredir mais do que até agora, a fim de que possamos encontrar nela esses verdadeiros subsídios ou meios da razão, dos quais falava Hooker, meios que elevariam os homens bem- acima do seu estado atual. Ora, a razão é uma faculdade que tem tanto maior necessidade disto, quanto a sua extensão é bastante limitada e nos falta em muitas ocasiões. Isto provém do fato de que: 1) muitas vezes nos faltam as próprias ideias. § 10. 2) as ideias são muitas vezes obscuras e imperfeitas, ao passo que onde elas são claras (e distintas), como nos números, não encontramos dificuldades insuperáveis e não caímos em nenhuma contradição. § 11. 3) muitas vezes também a dificuldade provém do fato de que nos faltam as ideias médias. É sabido que antes de se descobrir a álgebra - este grande instrumento e esta prova insigne da sagacidade do homem - os homens olhavam com espanto para muitas das demonstrações dos antigos matemáticos. § 12. Acontece também 4) que se constrói sobre falsos princípios, o que pode levar a dificuldades onde a razão confunde, ao invés de aclarar. § 13. Finalmente, 5) os termos cuja significação é incerta perturbam a razão. TEÓFILO - Não sei se nos faltam tantas ideias como se crê, isto é, ideias distintas. Quanto às ideias confusas, ou melhor, imagens, ou, se quiserdes, impressões, como cores, gostos etc., - que constituem um resultado de várias pequenas ideias distintas em si mesmas, mas que não percebemos distintamente -, falta-nos uma infinidade delas, que competem a outras criaturas, mais do que a nós. Entretanto, também essas impressões servem mais para dar instintos e fundar observações de experiência do que para fornecer matéria à razão, a não ser que sejam acompanhadas por percepções distintas. Por conseguinte, é principalmente a falta do conhecimento que ternos dessas ideias distintas, escondidas mas confusas, que nos paralisa, e, mesmo quando tudo está distintamente exposto aos nossos sentidos ou ao nosso espírito, a multidão das coisas que cumpre considerar por vezes nos confunde. Por exemplo, quando existe um monte de 1 000 balas diante dos nossos olhos, é evidente que, para bem conservar o número e as propriedades dessa multidão, é muito útil ordená-las em figuras, como se faz nas casas de comércio, a fim de ter delas ideias distintas e fixá-las de maneira a não ser necessário contá-las de uma vez. É também a multidão das considerações que faz com que na ciência dos próprios números existam dificuldades muito grandes, pois se procuram resumos e abreviações, e não se sabe se a natureza os possui, para o caso em questão. Por exemplo, que existe de mais simples na aparência do que a noção do número primitine, isto é, do número inteiro dividido por qualquer outro, exceto pela unidade e por si mesmo? Todavia, procura-se ainda uma característica positiva e fácil para reconhecê-los com certeza sem ensaiar todos os divisores primitivos, menores que a raiz quadrada do primitivo dado. Existe uma infinidade de características que fazem conhecer sem muito cálculo que tal número não é primitivo, mas procura-se uma que seja fácil e que nos mostre com certeza que ele é primitivo. É isto que faz também com que a álgebra seja ainda tão imperfeita, embora nada exista mais conhecido que as ideias que ela utiliza, visto que elas não significam outra coisa senão números em geral; pois o público ainda não tem os meios para tirar as raízes irracionais de nenhuma equação além do quarto grau - exceto num caso muito limitado - sendo que os métodos utilizados por Diofante, Cipião du Fer e Luís de Ferrara para o segundo, terceiro e quarto graus - a fim de reduzi-los ao primeiro, ou a fim de reduzir uma equação complexa e uma equação pura - são todos diferentes entre si, ou seja: o que serve para um grau difere um grau daquele que serve para o outro. Com efeito, o segundo grau, ou da equação quadrada, se reduz ao primeiro, tirando apenas o segundo termo. O terceiro grau, ou da equação cúbica, foi resolvido, pois cortando a incógnita em partes resulta felizmente numa equação do segundo grau. E no quarto grau, ou das biquadradas, acrescenta-se alguma coisa dos dois lados da equação para torná-la extraível das duas partes, e de novo resulta felizmente que, para obtê-lo, é suficiente apenas uma equação cúbica. Tudo isto, porém, não é mais que uma mescla de sorte e de acaso com a arte ou o método. Tentando esta mescla nesses dois últimos graus, não se sabia se haveria êxito. É necessário algum outro artifício ainda, para conseguir êxito no quinto ou sexto graus, que são dos supersólidos ou dos bicubos. E, embora Descartes tenha pensado que o método que utilizou no quarto grau, concebendo a equação como produzida por duas outras equações quadradas - mas que no fundo não pode dar mais do que a de Luís de Ferrara -, lograria êxito também na sexta, isto não se constatou. Esta dificuldade nos revela que mesmo as ideias mais claras e mais distintas não nos dão sempre tudo o que se exige e tudo o que se pode deduzir. Isto ao mesmo tempo mostra que falta ainda muito para que a álgebra seja a arte de inventar, visto que ela mesma tem necessidade de uma arte mais geral; pode-se até afirmar que a "especiosa" em geral, isto é, a arte dos caracteres, constitui um recurso maravilhoso, pois desencarrega a imaginação. Não se duvidará, ao ver a aritmética de Diofante e os livros geométricos de Apolônio e de Pappus, de que os antigos tenham visto algo dessas coisas. Viête estendeu mais este método, exprimindo não somente o que é exigido, mas ainda os números dados, mediante caracteres gerais, fazendo com o cálculo o que Euclides já fazia através do raciocínio, sendo que Descartes ampliou a aplicação deste cálculo à geometria, marcando as linhas pelas equações. Todavia, mesmo depois da descoberta da nossa álgebra moderna, o Sr. Bouillaud (Ismael Bullialdus), sem dúvida excelente geômetra, que ainda conheci em Paris, considerava com admiração as demonstrações de Arquimedes sobre a espiral e não podia compreender como este grande homem tenha tido a ideia de empregar a tangente desta linha para a dimensão do círculo. O Padre Gregório de Saint- Vincent parece tê-lo adivinhado, dizendo que ele chegou a isso pelo paralelismo da espiral com a parábola. Todavia, este caminho é apenas particular, ao passo que o novo cálculo dos infinitesimais que procede pela via das diferenças - que descobri e comuniquei com êxito ao público - dá um caminho geral, no qual esta descoberta pela espiral não passa de um jogo e um ensaio dos mais fáceis, como aliás quase tudo o que se encontrou antes em matéria de dimensões das curvas. A razão da vantagem deste novo cálculo é ainda que ele desencarrega a imaginação nos problemas que o Sr. Descartes tinha excluído da sua geometria, sob pretexto de que eles conduziam o mais das vezes ao mecânico, mas no fundo porque não convinham ao seu cálculo. No que concerne aos erros que provêm dos termos ambíguos, depende de nós evitá-los. FILALETO - Existe também um caso em que a razão não pode ser aplicada, mas onde se tem necessidade dela, sendo que a vista vale mais do que a razão. É no conhecimento intuitivo, no qual a conexão das ideias e das verdades se enxerga imediatamente. Tal é o conhecimento das máximas indubitáveis, e estou tentado a crer que é este o grau de evidência que os anjos possuem atualmente e que os espíritos dos homens justos, chegados à perfeição, terão num estado futuro acerca de mil coisas que agora escapam ao nosso entendimento. § 15. A demonstração, porém, fundada sobre ideias médias, fornece um conhecimento raciocinado. É porque a conexão da ideia média com as extremas é necessária e se vê por uma justaposição de evidência, semelhante à de uma vara que se aplica ora a um pano ora a outro para mostrar que são iguais. § 16. Ao contrário, se a conexão é apenas provável, o julgamento fornece apenas uma opinião. TEÓFILO - Só Deus tem o privilégio de ter apenas conhecimentos intuitivos. As almas dos bem-aventurados, por mais livres que estejam desses corpos grosseiros, e os próprios gênios, por mais elevados que sejam embora desfrutem de um conhecimento incomparavelmente mais intuitivo do que nós, e embora muitas vezes enxerguem num relance de olhos o que nós só descobrimos à força de consequência, após muito esforço e trabalho, devem também encontrar dificuldades no seu caminho, pois sem isso não teriam o prazer de fazer descobertas, que é um dos maiores que existem. É necessário reconhecer que haverá sempre uma infinidade de verdades que lhes estão ocultas, completamente ou por certo tempo, verdades às quais é necessário que cheguem à força de consequências e pela demonstração, ou até, muitas vezes, através de conjeturas. FILALETO - Se assim for, esses gênios são apenas animais mais perfeitos do que nós: é como se dissésseis com o imperador da lua que é tudo como aqui. TEÓFILO - Direi que sim: não completamente, mas quanto ao fundo das coisas, visto que as maneiras e os graus de perfeição variam ao infinito. Entretanto, o fundo é sempre e em toda parte o mesmo, o que constitui para mim uma máxima fundamental, que domina em toda a filosofia. Só concebo as coisas desconhecidas ou conhecidas confusamente da maneira daquelas que nos são conhecidas distintamente. Isso torna a filosofia simples. Todavia, se esta filosofia é a mais simples quanto ao fundo, é também a mais rica nas maneiras, pois a natureza pode variá-las ao infinito, como na realidade o faz, com tanta abundância, ordem e ornamentos quantos seja possível imaginar. Eis por que acredito que não haja gênio, por mais elevado que seja, que não tenha uma infinidade de outros acima dele. Entretanto, embora sejamos muito inferiores a muitos seres inteligentes, temos a vantagem de não sermos controlados visivelmente nesta terra, onde ocupamos sem contestação o primeiro lugar. E com toda a ignorância em que estamos mergulhados, temos sempre o prazer de não ver nada que nos ultrapasse. Júlio César preferia ser o primeiro numa aldeola a ser o segundo em Roma. Aliás, aqui falo exclusivamente dos conhecimentos naturais desses espíritos, e não da visão beatifica, nem das luzes sobrenaturais que Deus pode conceder-lhes. § 19. FILALETO - Uma vez que cada qual utiliza a razão, ou em relação a si mesmo ou em relação a um outro, não será inútil fazer algumas considerações sobre quatro espécies de argumentos dos quais os homens costumam servir-se para convencer os outros das suas opiniões, ou pelo menos para mantê-los numa espécie de respeito, que os impede de contradizê-los, O primeiro argumento pode chamar-se argumentum ad verecundiam; isto acontece quando citamos a opinião daqueles que adquiriram autoridade pelo seu saber, posição, poder ou outro fator. Com efeito, quando uma pessoa não se rende a tal argumento imediatamente, somos inclinados a censurá-la como cheia de vaidade e mesmo a tachá-la de insolente. § 20. Existe 2) argumentum ad ignorantiam, o qual consiste em exigir a prova que damos, ou que se forneça uma melhor. § 21. Existe 3) argumentum ad hominem, quando se pressiona alguém por aquilo que ele mesmo disse. § 22. Finalmente, temos 4) argumentum ad iudicium, que consiste em empregar provas tiradas de alguma das fontes do conhecimento ou da probabilidade. E o único dos quatro que nos faz progredir e nos instrui. Com efeito, se não me atrevo a contradizer por respeito, ou se não tenho nada de melhor a dizer, ou se me contradigo, daqui não segue que vós tenhais razão. Posso ser modesto, ignorante, enganado, e vós podeis estar na mesma situação. TEÓFILO - Sem dúvida é necessário fazer diferença entre o que é bom para dizer e o que é verdadeiro para crer. Entretanto, já que a maior parte das verdades podem ser sustentadas atrevidamente, existe certo preconceito contra uma opinião que é necessário esconder. O argumento ad ignorantiam é bom nos casos de presunção, quando é razoável manter uma opinião até que se demonstre o contrário. O argumento ad hominem tem este efeito: mostra que uma das duas asserções é falsa, e que o adversário se enganou de qualquer forma que se considere. Poder-se-ia ainda aduzir outros argumentos dos quais as pessoas se servem, por exemplo, o que se poderia denominar ad vertiginem, quando se raciocina da seguinte maneira: Se esta prova não é concludente, não temos meio algum para chegar à certeza quanto ao ponto em questão, o que se considera um absurdo. Este argumento é bom em certos casos, como quando alguém quisesse negar as verdades primitivas e imediatas, por exemplo, que nada pode ser e não ser ao mesmo tempo, ou então, que nós mesmos existimos, visto que, se o oponente tivesse razão, não haveria possibilidade de demonstrar absolutamente nada. Todavia, quando criamos certos princípios para nós e quando queremos mantê-los, pois que de outra forma todo o sistema de uma doutrina aceita ruiria por terra, o argumento não é decisivo, pois é necessário distinguir entre aquilo que é necessário para sustentar os nossos conhecimentos e entre aquilo que serve como fundamento para as nossas doutrinas e para as nossas práticas. Entre os jurisconsultos dá-se por vezes o caso de utilizar um argumento similar, a fim de justificar a condenação ou a tortura das pretensas bruxas, baseados no depoimento de outros acusados do mesmo crime, pois se dizia: Se este argumento cai por terra, como haveremos de convencê-lo? Por vezes, em matéria criminal, certos autores pretendem que, nos fatos em que a convicção é mais difícil, provas mais leves podem passar por suficientes. Não é esta uma razão aceitável. Isso demonstra apenas que é necessário ter mais cuidado, e não que se deva crer levianamente, exceto nos crimes extremamente perigosos, como por exemplo em matéria de alta traição, onde esta consideração é de peso, não para condenar uma pessoa, mas para impedi-la de causar dano a outros. Assim, pode haver um meio-termo, não entre culpado e não culpado, mas entre a condenação e a libertação, nos julgamentos em que a lei, o costume o admitem. Utilizou-se um argumento semelhante na Alemanha, de algum tempo a esta parte, para "colorir" as fábricas de moeda falsa: dizia-se que, se for necessário ater-se às regras prescritas, não se poderá cunhar moedas sem com isto perder. Por conseguinte, deve ser lícito deteriorar a liga. Acontece o seguinte: além de que se devia diminuir apenas o peso, e não a liga ou o título, para melhor obviar às fraudes, supõe-se necessária uma prática que na realidade não o é, pois não existe lei do céu ou da terra que obrigue a cunhar os que não têm minas nem a ocasião de ter prata em barras para cunhar moedas. Além disso, fazer moeda de moeda é uma prática má, que naturalmente acarreta consigo a deterioração. Entretanto - dizem tais pessoas - como exerceremos o nosso direito real de cunhar moedas? A resposta é fácil. Contentai-vos em fazer cunhar um pouco de boa moeda, mesmo com uma pequena perda, se acreditais que vos importa ser escondidos sob o martelo, sem que tenhais necessidade nem direito de inundar o mundo de maus milhões. § 23. FILALETO - Após termos dito algo sobre a relação da nossa razão com os outros homens, digamos algo acerca da sua relação com Deus, o que faz com que distingamos entre o que é contrário à razão e o que está acima da razão. À primeira categoria pertence tudo aquilo que é incompatível com as ideias claras e distintas; à segunda pertence toda opinião, cuja verdade ou probabilidade não vemos como possa ser deduzida da sensação ou da reflexão através da razão. Assim, a existência de mais um Deus é contrária à razão, ao passo que a ressurreição dos mortos está acima da razão. TEÓFILO - Tenho algo a observar quanto à vossa definição daquilo que está acima da razão, ao menos se a referirdes ao emprego comum desta frase. Com efeito, parece-me que, conforme se entender esta definição, ela vai muito longe por um lado, e por outro lado não vai suficientemente longe. Se seguirmos esta definição, tudo que ignoramos e não temos a capacidade de conhecer no nosso estado atual seria acima da razão, por exemplo, que esta estrela fixa é maior ou menor do que o sol, ou então, que o Vesúvio vomitará fogo no ano tal, constituem fatos cujo conhecimento nos ultrapassa, não porque estejam acima da razão, mas porque estão acima dos sentidos. Com efeito, poderíamos muito bem conhecer isto, se tivéssemos órgãos mais perfeitos e maiores informações sobre as circunstâncias. Existem igualmente dificuldades que estão acima da nossa atual capacidade, mas não acima de toda razão. Por exemplo, não existe astrônomo algum na terra que possa calcular o detalhe de um eclipse no espaço de um Pai Nosso e sem tomar a pena na mão, e todavia existem talvez gênios para os quais isto seria uma brincadeira. Assim todas essas coisas poderiam tornar-se conhecidas ou praticáveis com o auxílio da razão, se houvesse mais informação sobre os fatos, órgãos mais perfeitos e um espírito mais agudo. FILALETO - Esta objeção cessa, se eu entender a minha definição não apenas da nossa sensação ou reflexão, mas também da sensação e reflexão de qualquer outro espírito criado possível. TEÓFILO - Se tomardes a definição nestes termos, tendes razão. Permanecerá, porém, a outra dificuldade: é que não haverá nada acima da razão, conforme a nossa definição, visto que Deus poderá sempre dar possibilidades de aprender pela sensação e a reflexão qualquer verdade que seja, como na realidade os maiores mistérios se nos tornam conhecidos pelo testemunho de Deus, que reconhecemos pelo motivos de credibilidade, sobre os quais se funda a nossa religião. Ora, esses motivos dependem inquestionavelmente da sensação e da reflexão. Parece, portanto, que a questão é, não se a existência de um fato ou a verdade de uma proposição pode ser deduzida dos princípios que a razão utiliza, isto é, da sensação e da reflexão, ou dos sentidos externos e internos, mas se um espírito criado é capaz de conhecer como se opera este fato, ou a razão a priori dessa verdade; de maneira que se pode afirmar que o que está acima da razão bem pode ser aprendido, porém não pode ser compreendido pelos caminhos e as forças da razão criada, por maior e mais elevada que seja. Está reservado exclusivamente a Deus entendê-la, como só a ele compete criar e realizar tal verdade. FILALETO - Esta consideração se me afigura boa, é assim que quero seja compreendida minha definição. Esta mesma consideração me confirma também na opinião, isto é, de que a maneira de falar que opõe a razão à fé, embora seja muito autorizada, é imprópria, pois é pela razão que verificamos aquilo que devemos crer. A fé é um assentimento firme, e o assentimento, se for como deve ser, não pode ser dado a não ser baseado em boas razões. Assim, aquele que crê sem ter nenhuma razão de crer pode ser um amador das suas fantasias, mas não é verdade que ele procura a verdade, nem que presta uma obediência legítima ao seu divino mestre, o qual quer que ele faça uso das faculdades de que o dotou para preservá-lo do erro. De outra forma, se ele estiver no bom caminho, é por acaso; e, se estiver no mau caminho, é por sua falta, da qual é culpado perante Deus. TEÓFILO - Muito vos aplaudo, ao dizerdes que a fé deve estar fundada na razão: se não fosse assim, por que motivo haveríamos de preferir a Bíblia ao Alcorão ou aos antigos livros dos brâmanes? Os nossos teólogos e homens sábios bem o reconheceram, é isto que nos fez ter tão belas obras sobre a verdade da religião cristã, e tantas belas provas que se aduziram contra os pagãos e outros descrentes antigos e modernos. Assim, as pessoas sábias sempre consideraram suspeitos os que pretenderam que não é necessário preocupar-se pelas razões e provas, em se tratando de crer. Isso na realidade é impossível, a menos que crer signifique apenas recitar, ou repetir e deixar passar sem preocupação, como fazem muitas pessoas, e como fazem, por índole, certas nações mais do que outras. Eis por que, querendo alguns filósofos dos séculos XV e XVI, cujos vestígios subsistiram por muito tempo depois deles - como se pode ver pelas cartas do falecido Naudé e as Naudeana -, defender duas verdades opostas - a da razão e a da fé - uma filosófica e a outra teológica, o último concílio de Latrão, celebrado sob Leão X, teve razão para opor-se, como acredito ter já observado. Uma discussão inteiramente semelhante teve lugar em Helmstaedt antigamente, entre Daniel Hoffmann, teólogo, e Cornélio Martin, filósofo, porém com esta diferença: o filósofo conciliava a filosofia com a revelação, ao passo que o teólogo queria rejeitar o seu uso. Entretanto, o Duque Júlio, fundador da universidade, se pronunciou em favor do filósofo. É verdade que, em nossa época, uma pessoa da mais alta consideração dizia que em matéria de fé era necessário perfurar os próprios olhos para ver com clareza, sendo que Tertuliano afirma em algum lugar: Isto é verdadeiro, pois é impossível; é necessário crê-lo, pelo fato de ser um absurdo. Todavia, se é boa a intenção dos que assim falam, não deixa de ser verdade que as expressões usadas são exageradas e podem produzir o mal. São Paulo fala com maior justeza quando diz que a sabedoria de Deus está fundamentada perante os homens. é porque os homens julgam sobre as coisas apenas segundo a sua experiência, que é extremamente limitada, e tudo o que não é conforme à experiência lhes parece um absurdo. Este julgamento é muito temerário, pois existe até uma infinidade de coisas naturais que nos pareceriam absurdas, se alguém no-las contasse, assim como tal foi a convicção do rei do Sião quando lhe falaram do gelo que cobre os nossos rios. A ordem da própria natureza, por não ter nenhuma necessidade metafísica, está fundada exclusivamente na vontade livre de Deus, de maneira que ele pode violá-la por motivos superiores da graça, embora isto não se deva aceitar a não ser com base em boas provas, que só podem provir do testemunho do próprio Deus. CAPÍTULO XVIII A FÉ E A RAZÃO, BEM COMO OS SEUS LIMITES DISTINTOS. § 1. FILALETO - Adaptemo-nos, porém, à maneira comum de falar e admitamos que em certo sentido se faz distinção entre a fé e a razão. É justo que se explique nitidamente este sentido, e que se estabeleçam os limites que distinguem a fé da razão, pois a incerteza sobre este ponto certamente produziu no mundo grandes discussões e talvez tenha até causado grandes desordens. No mínimo é evidente que, até que não se tenha determinado quais são esses limites, se discute em vão, visto ser necessário utilizar a razão ao discutir sobre a fé. § 2. Acredito que cada seita se serve a seu bel-prazer da razão, na medida em que crê poder tirar proveito dela; todavia, desde o momento em que a razão vem a faltar, grita-se que se trata de um artigo de fé que ultrapassa as forças da razão. Entretanto, o adversário teria podido utilizar a mesma derrota quando se raciocinava contra ele, a menos que se assinale por que razão isto não lhe era permitido num caso que parece semelhante. Suponho que a razão é aqui a descoberta da certeza ou da probabilidade das proposições tiradas dos conhecimentos que adquirimos pelo uso das nossas faculdades naturais, isto é, por sensação e por reflexão, e que a fé é o assentimento que se dá a uma proposição fundada na revelação, isto é, uma comunicação extraordinária de Deus, que a revelou aos homens. § 3. Um homem inspirado por Deus, porém, não pode comunicar aos outros qualquer nova ideia simples, pois ele não se serve senão de palavras ou outros sinais, que despertam em nós ideias simples que os costumes a elas ligaram, ou da sua combinação: por mais novas que fossem as ideias que São Paulo recebeu quando foi arrebatado ao terceiro céu, tudo o que pôde dizer é que são coisas que o olho não viu, que o ouvido não ouviu, e que jamais entraram no coração do homem. Suposto que houvesse criaturas no globo do planeta Júpiter, providas de seis sentidos, e que Deus desse sobrenaturalmente a um homem dentre nós as ideias próprias deste sexto sentido, ele não poderá fazê-las nascer por palavras no espírito dos demais homens. Cumpre, por conseguinte, distinguir entre revelação original e tradicional. A primeira consiste numa impressão que Deus faz imediatamente sobre o espírito, para a qual não podemos fixar limite algum, ao passo que a outra provém exclusivamente pelas vias ordinárias da comunicação e não pode fornecer ideias simples. § 4. É verdade que mesmo as verdades que podemos descobrir mediante a razão podem ser-nos comunicadas por uma revelação tradicional, como se Deus tivesse querido comunicar aos homens teoremas geométricos, porém não seria com tanta certeza como se tivéssemos a demonstração, tirada da conexão das ideias. É também como Noé, que tinha um conhecimento mais certo sobre o dilúvio do que o que adquirimos pelo livro de Moisés: assim como a segurança daquele que viu que Moisés escrevia atualmente o livro e que fazia os milagres que justificavam que a sua inspiração era maior do que a nossa. § 5. Isto faz com que a revelação não possa ir contra uma clara evidência da razão, pois, mesmo quando a revelação é imediata e original, é necessário saber com evidência que não nos enganamos ao atribuí-la a Deus e lhe compreendemos o sentido; esta evidência jamais pode ser maior do que a do nosso conhecimento intuitivo; por conseguinte, nenhuma proposição poderia ser acolhida como revelação divina quando se opõe contraditoriamente a este conhecimento imediato. Do contrário, não restaria diferença no mundo entre a verdade e a falsidade, nenhum critério haveria para se saber o que pode e o que não pode ser crido. Não é concebível que uma coisa venha de Deus, este Autor benéfico do nosso ser, a qual, sendo recebida como verdadeira, deva fazer ruir por terra os fundamentos dos nossos conhecimentos e tornar inúteis todas as nossas faculdades. § 6. Os que só têm a revelação de maneira media ta, ou pela tradição de boca em boca, ou por escrito, têm ainda maior necessidade da razão para certificar-se da revelação. § 7. Todavia, continua sempre verdadeiro que as coisas que vão além daquilo que as nossas faculdades podem descobrir constituem matérias da fé, como a queda dos anjos rebeldes, a ressurreição dos ortos. § 9. Nestes pontos cumpre ouvir unicamente a revelação. E, mesmo em relação às proposições prováveis, uma revelação evidente nos determinará contra a probabilidade. TEÓFILO - Se tomardes a fé apenas como aquilo que está fundado nos motivos de credibilidade - como se denominam - e a desligais da graça interna que determina o espírito imediatamente, tudo o que acabais de dizer é incontestável. Cumpre reconhecer que existem muitos julgamentos mais evidentes do que os que dependem desses motivos. Uns são mais avançados que os outros, e existe até uma infinidade de pessoas que jamais os conheceram, muito menos os pesaram, e que por conseguinte não têm sequer o que se poderia considerar um motivo de probabilidade. Entretanto, a graça interna do Espírito Santo supre imediatamente de uma forma sobrenatural, sendo isto que faz o que os teólogos denominam provavelmente uma fé divina. E verdade que Deus jamais a dá, a não ser que aquilo que nos propõe a crer for fundado racionalmente; do contrário ele destruiria os meios de conhecer a verdade e abriria a porta ao entusiasmo: todavia, não é necessário que todos os que têm esta fé divina conheçam essas razões, e muito menos que as tenham sempre diante dos olhos. Do contrário, os simples e os iletrados, pelo menos os de hoje, jamais teriam a verdadeira fé, e os mais esclarecidos não a teriam quando eventualmente mais tivessem necessidade dela, pois nem sempre podem recordar as razões de crer. A questão do emprego da razão na teologia tem sido das mais discutidas, tanto entre os socinianos e os que se podem chamar de católicos num sentido geral como entre os reformados e os evangélicos, como se denominam preferivelmente, na Alemanha, aqueles que impropriamente muitos denominam luteranos. Recordo-me de ter lido um dia uma Metafísica de tal Stegmannus, sociniano - diferente de Josué Stegmann, que escreveu contra os socinianos-, a qual ainda não foi impressa, quanto saiba; do outro lado, certo Kesslerus, teólogo da Saxônia, escreveu uma Lógica e algumas outras ciências filosóficas, explicitamente opostas aos socinianos. Pode-se dizer, de maneira geral, que os socinianos são precipitados em recusar tudo o que não concorda com a ordem da natureza, mesmo quando não conseguem provar absolutamente a impossibilidade. Entretanto, também os seus adversários por vezes vão excessivamente longe, levando o mistério até os limites da contradição, e nisto fazem mal à verdade que se empenham em defender. Surpreendi-me por ver um dia, na suma de teologia do Padre Honoré Fabry, que aliás foi um dos mais versados da sua linha, que ele negava nas coisas divinas - como fazem ainda hoje certos outros teólogos - este grande princípio, segundo o qual as coisas que são idênticas como uma terceira coisa são iguais entre si. Isto equivale a dar a vitória aos adversários sem pensar, equivale a privar todo e qualquer raciocínio de qualquer certeza. O que é necessário dizer é que este princípio é mal aplicado. O mesmo autor rejeita na sua filosofia as distinções virtuais, que os escotistas colocam nas coisas criadas, visto que elas deitariam por terra - afirma ele - o princípio de contradição; e, ao se lhe objetar que é necessário admitir essas distinções em Deus, ele responde que é a fé que o ordena. Entretanto, como poderia a fé ordenar o que quer que seja que destrua um princípio sem o qual toda fé, afirmação ou negação seria vã? Por conseguinte, é absolutamente necessário que duas proposições verdadeiras ao mesmo tempo não sejam absolutamente contraditórias; se A e C não são a mesma coisa, é necessário que B - que é idêntico a A - seja tomado de outra forma que B, que é idêntico a C. Nicolaus Vedelíus, professor em Genebra e depois em Deventer, publicou outrora um livro intitulado Rationale Theologicum, ao qual João Musaeus, professor em Iena - uma universidade evangélica na Turíngia -, opôs outro livro sobre o mesmo tema, isto é, sobre o emprego da razão na teologia. Lembro-me de ter considerado outrora essas duas obras, e de ter observado que a controvérsia principal era confusa devido às questões incidentes, como quando se pergunta o que é uma conclusão teológica, e se se deve julgar dela pelos termos que a compõem ou pela prova que se aduz, e por conseguinte se Ockham teve ou não razão ao dizer que a ciência de uma mesma conclusão é a mesma, qualquer que seja o meio que se emprega para demonstrá-la. Detêm-se os autores numa série de outras minúcias ainda menos relevantes, que concernem exclusivamente aos termos. Todavia, Musaeus concordava ele mesmo com que os princípios da razão necessários por uma necessidade lógica, isto é, aqueles cujo oposto implica contradição, devem e podem ser empregados com segurança na teologia: tinha, porém, motivo para negar que aquilo que é somente necessário em virtude de uma necessidade física - isto é, fundado na indução daquilo que se pratica na natureza, ou nas leis naturais, que são por assim dizer de instituição divina - basta para refutar a crença num mistério ou num milagre, visto que depende de Deus alterar o curso ordinário das coisas. Assim é que, segundo a ordem da natureza, se pode assegurar que uma mesma pessoa não pode ser ao mesmo tempo mãe e virgem, ou que um corpo humano não pode deixar de ser objeto dos sentidos, embora o contrário de um e do outro seja possível a Deus. Também Vedelius parece concordar com esta distinção. Todavia, discute-se por vezes acerca de certos princípios, se são necessários logicamente, ou se o são apenas fisicamente. Tal é a discussão com os socinianos: se a substância pode ser multiplicada quando a essência singular não o é; e a discussão com os zwínglianos é se um corpo só pode estar num lugar. Ora, cumpre reconhecer que, sempre que não estiver demonstrada a necessidade lógica, não se pode supor numa proposição mais do que uma necessidade física. Parece-me, porém, que resta uma questão que os autores de que acabo de falar não examinaram, a saber: suponhamos que de um lado esteja o sentido literal de um texto da Santa Escritura, e que de outro lado exista uma grande probabilidade de uma impossibilidade lógica, ou pelo menos de uma impossibilidade física reconhecida. Será neste caso mais razoável renunciar ao sentido literal ou ao princípio filosófico? É certo que existem casos em que não há dificuldade em abandonar a letra, como quando a Escritura atribui mãos a Deus, ou lhe atribui a cólera, a penitência e outros sentimentos humanos; do contrário seria necessário adotar o ponto de vista dos antropomorfistas, ou de certos fanáticos da Inglaterra, que acreditaram que Herodes foi efetivamente metamorfoseado numa raposa quando Jesus Cristo o denominou com este termo. É aqui que têm o seu lugar as regras da interpretação, e se elas nada fornecem que contrarie ao sentido literal para favorecer a máxima filosófica, e se por outra parte o sentido literal nada encerra que atribua a Deus qualquer imperfeição, ou acarrete algum perigo na prática da piedade, é mais seguro e até mais razoável segui-lo. Esses dois autores que acabo de citar discutem também sobre a tentativa de Keckermann, que pretendia demonstrar a Trindade pela razão, como Raimundo Lulo já tentara fazê-lo, Entretanto, Musaeus reconhece com bastante equidade que, se a demonstração do autor reformado tivesse sido boa e correta, nada haveria a objetar; neste caso teria ele tido razão em sustentar em relação a este ponto que a luz do Espírito Santo poderia ser acesa pela filosofia. Levantaram também a célebre questão: aqueles que, sem ter conhecimento da revelação do Antigo ou do Novo Testamento, morreram nos sentimentos de uma piedade natural, terão podido salvar-se através deste meio e obter a remissão dos seus pecados? Sabe-se que Clemente de Alexandria, Justino Mártir e São Crisóstomo pendiam de certa forma para esta afirmação, sendo que eu mesmo mostrei outrora a Pelísson- que uma série de excelentes autores da Igreja romana, bem longe de condenar os protestantes de boa vontade, quiseram até salvar os pagãos e defender que as pessoas de que acabo de falar podem ter sido salvas por um ato de contrição, isto é, de penitência fundada no amor de benevolência, em virtude do qual amamos a Deus sobre todas as coisas pelo fato de que as suas perfeições o tornam sumamente digno de amor. Isso faz com que a pessoa seja conduzida de todo o coração a conformar-se com a vontade de Deus e a imitar as suas perfeições para melhor unir-se a ele, visto parecer justo que Deus não recuse a sua graça a quem está possuído de tais sentimentos. E, sem falar de Erasmo e de Luís Vives, eu referi o pensamento de Tiago Payva Andradius, doutor português muito renomado em seu tempo, que foi um dos teólogos do Concílio de Trento e que afirmou que aqueles que não concordam com esta tese atribuem a Deus a crueldade em grau supremo (neque enim, inquit, immanitas deterior ulla esse potest). Paul Pellisson teve dificuldade em encontrar este livro em Paris, sinal de que os autores estimados em seu tempo são depois facilmente esquecidos. Isto levou o Sr. Bayle a pensar que muitos citam Andradius apenas baseando-se em Chemnitz, seu adversário. Isto pode bem ser verdadeiro; quanto a mim, porém, li o autor antes de citá-lo. A sua discussão com Chemnitz tornou-o célebre na Alemanha, pois ele escreveu a favor dos jesuítas contra este autor, sendo que no seu livro se encontram alguns detalhes sobre a origem desta célebre Companhia de Jesus. Observei que alguns protestantes denominavam andradianos aqueles que neste assunto partilhavam o seu ponto de vista. Houve autores que escreveram explicitamente sobre a salvação de Aristóteles, baseados nesses mesmos princípios, com a aprovação dos censores. São também muito conhecidos os livros de Collius, em latim, e os do Sr. La Mothe Le Vayer, em francês, sobre a salvação dos pagãos. Entretanto certo Franciscus Puccíusê foi longe demais. Santo Agostinho, por mais versado e penetrante que fosse, caiu num outro extremo, chegando ao ponto de condenar as crianças mortas sem batismo, sendo que os Escolásticos parecem ter tido razão em abandonar esta teoria, embora certos autores competentes, alguns até de grande mérito, porém um pouco afetados de misantropia neste ponto, tenham querido ressuscitar esta doutrina agostiniana, exagerando-a mesmo. Este espírito pode ter exercido alguma influência na discussão entre vários doutores excessivamente animados e os jesuítas missionários da China, que haviam insinuado que os antigos chineses tiveram a verdadeira religião no seu tempo, bem como verdadeiros santos, e que a doutrina de Confúcio não encerrava nada de idolatria ou de ateu. Parece que se foi mais razoável em Roma, não querendo condenar uma das maiores nações, sem ouvi-la. Ainda bem que Deus é mais amigo dos homens que os próprios homens. Conheço pessoas que, acreditando assinalar o seu zelo por sentimentos duros, imaginam que não se pode crer no pecado original sem ser da sua opinião, mas nisto se equivocam. Não segue que aqueles que salvam os pagãos ou outros a quem faltam os auxílios ordinários devam atribuir isto exclusivamente às forças da natureza - ainda que talvez alguns Santos Padres tenham defendido esta opinião -, pois pode-se defender que Deus, dando-lhes a graça de excitar um ato de contrição, lhes dê também, seja explicitamente seja virtualmente, mas sempre sobrenaturalmente, antes da morte, mesmo que fosse nos últimos momentos, toda a luz da fé e todo o ardor da caridade que lhes são necessários para a salvação. É assim que certos reformados explicam em Vedelius a opinião de Zuínglio, que foi tão explícito neste ponto da salvação dos homens virtuosos do paganismo, quanto o puderam ser os autores da Igreja romana. Assim, esta doutrina nada tem de comum com a doutrina particular dos pelagianos ou dos semipelagianos, da qual Zuínglio estava muito distante, como se sabe. E já que se ensina contra os pelagianos uma graça sobrenatural em todos aqueles que possuem a fé - ponto em que concordam as três religiões admitidas, excetuados talvez os discípulos do Sr. Pajon,- e uma vez que se concede ou a fé ou um sentimento semelhante às crianças que recebem o batismo, não há nada de extraordinário em conceder o mesmo, pelo menos em caso de morte, às pessoas de boa vontade que não tiveram a felicidade de ser instruídas no cristianismo. Aliás, o mais sábio é não decidir nada acerca de assuntos tão pouco conhecidos, e contentar-se com pensar, de maneira geral, que Deus não pode fazer nada que não seja cheio de bondade e de justiça: Melius est dubitare de occultis quam litigare de incertis (Agostinho, livro 8, Gênese Comentado Literalmente, capítulo 5). CAPÍTULO XIX O ENTUSIASMO. § 1. FILALETO - [Oxalá todos os teólogos e o próprio Santo Agostinho tivessem praticado sempre a máxima expressa na passagem citada.] Os homens acreditam que o espírito dogmatizante constitui uma característica do seu zelo pela verdade, e o que acontece é exatamente o contrário. Só se ama verdadeiramente a verdade na medida em que se gosta de examinar as provas que dão a conhecer a verdade como ela é. E, quando somos precipitados no julgamento, somos sempre levados por motivos menos sinceros. § 2. O espírito de dominação é um dos mais comuns, e certa complacência que temos pelos nossos próprios devaneios é outro, que dá origem ao entusiasmo. § 3. É este o nome que se dá ao defeito dos que imaginam uma revelação imediata quando ela não está fundada na razão. § 4. E como se pode dizer que a razão constitui uma revelação natural da qual Deus é o autor, da mesma forma como o é da natureza, pode-se também dizer que a revelação é uma razão sobrenatural, isto é, uma razão estendida por um novo fundo de descobertas, emanadas diretamente de Deus. Todavia, essas descobertas supõem que temos a possibilidade de discerni-las, que é a própria razão: e querer proscrevê-la para dar lugar à revelação equivaleria a arrancar os olhos para ver melhor os satélites de Júpiter através de um telescópio. § 5. A fonte do entusiasmo é que uma revelação imediata é mais cômoda e mais curta que um raciocínio longo e penoso, e que nem sempre é seguido de um êxito feliz. Em todos os séculos se viram homens cuja melancolia mesclada com a devoção, somada ao bom conceito que tiveram de si mesmo, lhes fez crer que tinham com Deus uma familiaridade completamente diversa da dos outros homens. Eles supõem que Deus a prometeu aos seus, e acreditam ser o povo de Deus de preferência aos outros. § 6. A sua fantasia se torna uma iluminação e uma autoridade divina, e os seus desígnios constituem uma direção infalível do céu, que são obrigados a seguir. § 7. Esta opinião teve grandes consequências e causou grandes males, pois um homem age mais vigorosamente quando segue os seus próprios impulsos e a opinião de uma autoridade divina é sustentada pela nossa inclinação. § 8. É difícil demover alguém desta posição, pois esta pretensa certeza sem provas lisonjeia a vaidade e o amor que temos por aquilo que é extraordinário. Os fanáticos comparam a sua opinião com a vista e com o sentimento. Eles veem a luz divina como nós vemos a luz do sol em pleno meio-dia, sem ter necessidade que o crepúsculo da razão lha mostre. § 9. Estão seguros porque estão seguros, e a sua persuasão é reta porque é forte, pois é a isso que se reduz a sua linguagem figurada. § 10. Todavia, já que existem duas percepções, a da proposição e a da revelação, pode-se perguntar-lhes onde está a clareza. Se está na vista da proposição, para que serve a revelação? Por conseguinte, é necessário que seja no sentimento da revelação. Mas como podem eles ver que é Deus que revela, e que não é um fogo-fátuo que os faz girar em torno deste círculo: é uma revelação pelo fato de que eu o creio firmemente, e eu o creio porque é uma revelação. § 11. Existe alguma coisa mais apta a precipitar no erro do que tomar por guia a imaginação? § 12. São Paulo tinha um grande zelo quando perseguia os cristãos, e no entanto não deixava de enganar-se. Sabe-se que o diabo teve os seus mártires, e, se basta estar bem persuadido, não poderemos distinguir as ilusões de Satanás das inspirações do Espírito Santo. § 14. É, portanto, a razão que faz conhecer a verdade da revelação. § 15. E, se a nossa crença a demonstrasse, seria o círculo vicioso do qual acabo de falar. Os santos homens que recebiam revelações de Deus tinham sinais externos, que os persuadiam da verdade da luz interna. Moisés viu uma moita que queimava sem consumir-se e ouviu uma voz do meio da moita; Deus, para dar-lhe mais certeza da missão, ao envia-lo ao Egito para libertar os seus irmãos, empregou o milagre da vara transformada em serpente. Gedeão foi enviado por um anjo para livrar o povo de Israel do jugo dos madianitas. Todavia, pediu um sinal para convencer-se de que esta comissão lhe era dada por Deus. § 16. Entretanto, não nego que Deus por vezes ilumine o espírito dos homens para fazê-los compreender certas verdades importantes ou para leva-los a boas ações pela influência e a assistência imediata do Espírito Santo, sem quaisquer sinais extraordinários que acompanhem. esta influência. Entretanto, nesses casos, temos a razão e a Escritura, duas normas infalíveis para julgar sobre essas iluminações, pois, se elas concordam com essas normas, pelo menos não incorremos em nenhum risco ao considerá-las inspiradas por Deus, ainda que talvez não seja uma revelação imediata. TEÓFILO - O entusiasmo era, no início, um bom termo. E, assim como o sofisma assinala propriamente um exercício da sabedoria, o entusiasmo significa que existe uma divindade em nós. Est Deus in-nobis. Sócrates pretendia que um deus ou demônio lhe dava advertências interiores, de sorte que o entusiasmo seria um instinto divino. Entretanto, já que os homens consagraram as suas paixões, as suas fantasias, os seus sonhos, e até os seus furores como algo de divino, o entusiasmo começou a significar um desregramento de espírito atribuído à força de alguma divindade, que se supunha naqueles que eram atingidos pelo entusiasmo, pois os adivinhadores e as adivinhadoras revelavam uma alienação de espírito quando o seu deus se apoderava deles, como a Sibila de Cumas em Virgilio. Desde então, atribui-se o entusiasmo àqueles que creem sem fundamento que os seus movimentos provêm de Deus. Niso, segundo o mesmo poeta - Virgilio -, sentindo-se movido por não sei que impulsão a uma empresa perigosa, na qual pereceu juntamente com o seu amigo, lha propõe nos seguintes termos, repletos de uma dúvida racional: Dine hunc ardorem mentibus addunt Euryale, an sua cuique Deus fit dira cupido? Ele não deixou de seguir este instinto, do qual não sabia se vinha de Deus ou de uma infeliz vontade de se projetar. Todavia, se tivesse logrado êxito, não teria deixado de valer-se num outro caso, e de acreditar-se movido por alguma potência divina. Os entusiastas de hoje em dia acreditam ainda receber de Deus dogmas que os esclarecem. Os tremedores mantêm esta persuasão, e Barclay, o seu primeiro autor sistemático, pretende que eles encontram em si certa luz que se faz conhecer por si mesma. Mas por que chamar luz àquilo que não faz nada ver? Sei que existem pessoas com esta disposição de espírito, que veem centelhas e até algo de mais luminoso, mas esta imagem de luz corporal excitada quando os seus espíritos estão excitados não dá luz ao espírito. Algumas pessoas iletradas, por terem a imaginação agitada, se formam concepções que não tinham antes; ficam em condições de dizer belas coisas, ou pelo menos coisas muito animadas. Elas mesmas admiram e fazem os outros admirar esta fertilidade que passa como sendo inspiração. Esta vantagem lhes vem em boa parte de uma forte imaginação, estimulada pela paixão, e de uma memória feliz que conservou bem as maneiras de falar dos livros proféticos, que a leitura ou os discursos dos outros lhes tornaram familiares; Antonieta de Bourígnon se servia da facilidade que tinha de falar e escrever como sendo uma prova da sua missão divina. Conheço um visionário que fundamenta a sua missão no talento que tem para falar e orar bem alto durante quase um dia inteiro sem cansar-se e sem deixar de falar. Existem pessoas que, após terem praticado austeridades ou após um estado de tristeza, degustam uma paz e consolação na alma que as encanta, encontrando tanta doçura que acreditam ser um efeito do Espírito Santo. É bem verdade que a alegria que se encontra na consideração da grandeza e da bondade de Deus, no cumprimento da sua vontade, na prática das virtudes, constitui uma graça de Deus, e das maiores que existem; entretanto, não é sempre uma graça que tenha necessidade de um auxílio sobrenatural novo, como muitas dessas boas pessoas pretendem. Viu-se, não há muito tempo, uma senhorita- muito sábia e dotada de todas as outras qualidades, que acreditava desde a sua juventude falar com Jesus Cristo e ser a sua esposa de maneira toda particular. Sua mãe, conforme se contava, tinha pendido um pouco para o entusiasmo, porém a filha foi muito além. Sua satisfação e alegria eram indizíveis, a sua sabedoria aparecia na sua conduta, e seu espírito se manifestava em seus discursos. A coisa foi, porém, tão longe que ela recebia cartas que as pessoas dirigiam a Nosso senhor, sendo que ela as reenviava, seladas, como as havia recebido, com a resposta que por vezes parecia dada com exatidão, e sempre razoável. Ao final deixou de receber tais cartas, para não levantar demasiada celeuma. Se fora na Espanha, esta donzela teria sido outra Santa Tereza. Todavia, nem todas as pessoas que têm semelhantes visões têm a mesma conduta. Existem algumas que procuram formar seita e até suscitar perturbações, sendo que a Inglaterra foi provada por este fenômeno. Quando essas pessoas agem de boa fé, é difícil reconduzi-las: por vezes é a derrubada de todos os seus projetos que as corrige, mas muitas vezes é tarde demais. Existia um visionário, falecido há pouco tempo, que se acreditava imortal, pelo fato de ser muito idoso e gozar de boa saúde; sem ter lido o livro de um inglês publicado há pouco - que queria fazer crer que Jesus Cristo voltou para isentar da morte corporal os verdadeiros crentes -, ele mantinha mais ou menos os mesmos sentimentos e convicções desde há longos anos; entretanto, ao sentir a morte aproximar-se, chegou ao ponto de duvidar de toda a religião, pelo fato de ela não corresponder às suas quimeras. Quirino Kulman, da Silésia, homem cheio de saber e de espírito, mas que ao depois caiu em duas espécies de visões igualmente perigosas, a dos entusiastas e a dos alquimistas, e que levantou celeuma na Inglaterra, na Holanda e até em Constantinopla, ocorrendo-lhe finalmente à ideia de ir a Moscou e imiscuir-se em certas intrigas contra o ministério, no tempo em que governava a princesa Sofia, foi condenado ao fogo e não morreu persuadido daquilo que tinha pregado. As dissensões dessas pessoas entre si também deveriam convencê-las de que o seu pretenso testemunho interno não é divino, e que se requerem outras características para justifica-lo, Os labadístas, por exemplo, não estão de acordo com a Srta. Antonieta, e, embora William Pen pareça ter tido o plano, em sua viagem da Alemanha, de estabelecer uma espécie de concordância entre aqueles que se fundam sobre este testemunho, não parece haver conseguido a sua meta. Seria de desejar que as pessoas de bem fossem concordes e agissem concordemente; nada seria mais indicado para tornar o gênero humano melhor e mais feliz, mas seria necessário que eles mesmos fossem do número das pessoas de bem, isto é, benfeitores e, além disso, dóceis e razoáveis, ao passo que se acusam muito, hoje em dia, os chamados devotos, de serem duros, imperiosos, teimosos. As suas dissensões mostram no mínimo que o seu testemunho interno tem necessidade de uma verificação externa para ser crido, e ser-lhes-iam necessários milagres para terem o direito de passar por profetas e inspirados. Haveria, entretanto, um caso em que essas inspirações trariam as suas provas consigo. Isto aconteceria se elas esclarecessem verdadeiramente o espírito por descobertas importantes de algum conhecimento extraordinário, que estariam acima das forças da pessoa que as teria adquirido sem qualquer auxílio externo. Se Jacob Boehme, famoso sapateiro da Lusace, cujos escritos foram traduzidos do alemão para outras línguas sob o nome de Filósofo Teutônico e têm realmente algo de grande e belo para um homem desta condição, tivesse sabido fazer ouro, como alguns acreditam, ou como fez São João Evangelista, se dermos fé a um hino feito em sua honra: Inexhaustum fert thesaurum Qui de virgis fecit aurum, Gemmas de lapidibue, haveria algum motivo para creditar mais fé a este sapateiro extraordinário. E se a Srta. Bourignon tivesse fornecido a Bertrand Lacoste, engenheiro francês em Hamburgo, a luz nas ciências que acreditou ter recebido dela, como ele mesmo afirma ao dedicar-lhe o seu livro Sobre a Quadratura do Circulo, não se teria tido o que dizer. Entretanto, não se veem exemplos de um sucesso considerável desta natureza, como também não das predições bem circunstanciadas que tais pessoas tenham conseguido. As profecias de Poniatovia, de Drabitius e de outros que Comênio publicou no seu livro Lux in Tenebris, e que contribuíram para causar celeuma nas terras do imperador, resultaram falsas, e os que lhes deram crédito foram infelizes. Ragóski, príncipe da Transilvânia, foi levado por Drabitius à empresa da Polônia, onde perdeu o seu exército, o que ao final lhe fez perder os Estados com a vida: e o pobre Drabitius, muito tempo após, na idade de oitenta anos, ao final teve a cabeça decepada por ordem do imperador. Todavia, não duvido de que haja agora pessoas que façam reviver esse tipo de predições, na conjuntura presente das desordens da Hungria, não considerando que esses pretensos profetas falavam dos acontecimentos do seu tempo; ao fazê-lo, agiriam mais ou menos como aquele que depois do bombardeio de Bruxelas publicou uma folha volante, na qual havia uma passagem tirada de um livro da Srta. Antonieta, que não quis vir a esta cidade porque - se bem me recordo - tinha sonhado de vê-la no fogo, quando na realidade este bombardeio se verificou muito tempo após a sua morte. Conheci um homem que foi à França, durante a guerra que terminou com a paz de Nimega, importunar o Sr. de Montausier e o Sr. de Pomponne com base nas profecias publicadas por Comênior ele mesmo se acreditaria inspirado, se lhe tivesse acontecido de fazer tais profecias em um tempo semelhante ao nosso. Isto mostra não somente o pouco fundamento, mas também o perigo que encerram essas coisas. As histórias estão repletas do mau efeito das profecias falsas ou mal compreendidas, como se pode ver numa sábia e judiciosa dissertação, De Ofticio Viri Boni circa Futura Contingentia, que o falecido Sr. Iacobus Thomasíus, célebre professor de Leipzig, publicou outrora. Entretanto, é verdade que essas persuasões por vezes produzem bom efeito e servem para grandes coisas: pois Deus pode servir-se do erro para estabelecer ou manter a verdade. Não creio, porém, que seja permitido a nós servir-nos de fraudes piedosas para um fim legítimo. E, quanto aos dogmas da religião, não temos necessidade de novas revelações: basta que se nos proponham regras salutares para que sejamos obrigados a segui-las, embora aquele que as propõe não opere milagre algum. Embora Jesus Cristo fosse credenciado por milagres, não deixou por vezes de recusar tais sinais a uma raça perversa que os pedia, pregando apenas a virtude e aquilo que já havia sido ensinado pela razão natural e pelos profetas. CAPÍTULO XX O ERRO. § 1. FILALETO - Após termos falado bastante sobre todos os meios que nos fazem conhecer ou adivinhar a verdade, digamos ainda alguma coisa acerca dos nossos erros e dos nossos julgamentos. É necessário que os homens se enganem muitas vezes, visto haver tantas dissensões entre eles. As razões disso podem reduzir-se às quatro seguintes: 1) a falta de provas; 2) a pouca habilidade em utilizar as provas; 3) a falta de vontade de utilizá-las; 4) as falsas regras das probabilidades. § 2. Quando falo da falta de provas, entendo também aquelas que poderíamos encontrar se tivéssemos os meios e a facilidade, porém é precisamente isso que falta o mais das vezes. Tal é o estado dos homens cuja vida se passa em procurar de que subsistir: são tão pouco instruídos sobre aquilo que acontece no mundo como um cavalo que trilha sempre o mesmo caminho pode tornar-se prático na carta geográfica do país. Ser-lhes-iam necessárias as línguas, a leitura, a conversação, as observações da natureza e as experiências da arte. § 3. Ora, tudo isso não convinha ao seu estado; diremos então que a maioria dos homens só é conduzida à felicidade e à infelicidade por um acaso cego? É preciso que se entreguem às opiniões correntes e aos guias autorizados no país, mesmo em relação à felicidade ou à infelicidade eterna? Ou seremos eternamente infelizes, pelo fato de ter nascido num país e não em outro? Cumpre, entretanto, reconhecer que ninguém está tão absorvido pelos cuidados de prover à sua subsistência, que não lhe sobre nenhum tempo para pensar na sua alma e para instruir-se sobre o que diz respeito à religião, se a isto se aplicasse tanto quanto se aplica a coisas menos importantes. TEÓFILO - Supondo que os homens nem sempre tenham as condições necessárias para instruir-se a si mesmos, e que, não podendo abandonar com prudência o cuidado da subsistência da sua família para procurar verdades difíceis, sejam obrigados a seguir as opiniões autorizadas, será sempre necessário acreditar que, naqueles que possuem a verdadeira religião sem possuir as provas dela, a graça interior suprirá a falta de motivos de credibilidade. E a caridade nos faz também pensar - como já tive ocasião de dizer-vos - que Deus faz em prol das pessoas de boa vontade, conduzidas de entre as espessas trevas dos erros mais perigosos, tudo aquilo que a sua bondade e a sua justiça exigem, embora talvez de uma forma que nos é desconhecida. Conhecem-se histórias aplaudidas, na Igreja romana, de pessoas que foram ressuscitadas para que não lhes faltassem auxílios salutares. Porém Deus pode socorrer as almas pela operação do Espírito Santo, sem ter necessidade de um milagre tão grande. O que existe de bom e de consolador para o gênero humano é que, para colocar-se no estado da graça de Deus, basta a boa vontade, porém sincera e séria. Reconheço que sem a graça de Deus nem sequer é possível ter essa boa vontade, tanto mais que todo bem natural ou sobrenatural procede de Deus; basta sabermos, porém, que é suficiente ter a vontade para isso, e que é impossível que Deus exija uma condição mais fácil e mais razoável. § 4. FILALETO - Há pessoas que teriam, bastante à sua vontade, todos os meios para esclarecer as suas dúvidas, porém são desviadas disso por obstáculos cheios de artifício, que é bastante fácil perceber, sem que seja necessário fundamentá-los aqui. § 5. Prefiro falar daqueles a quem falta a habilidade para fazer valer as provas que possuem por assim dizer à mão, e que são incapazes de reter uma longa sequência de consequências e de pesar todas as circunstâncias. Existem pessoas de um só silogismo, como existem pessoas de dois. Não é aqui o lugar para determinar se esta imperfeição provém de uma diferença natural das próprias almas ou dos órgãos, ou se depende da falta de exercício, a qual aperfeiçoa as faculdades naturais. Basta aqui assentar que esta diferença é visível, e que basta ir do Palácio ou da Bolsa aos hospitais e às pequenas casas para dar-se conta disso. TEÓFILO - Não são somente os pobres que estão necessitados. A certos ricos falta mais do que ao pobre, pelo fato de que esses ricos exigem demais e se colocam voluntariamente numa espécie de indigência, que os impede de dedicar-se às considerações importantes. O exemplo tem muita influência. Costumamos seguir aqueles dos nossos semelhantes que somos obrigados a frequentar sem fazer aparecer um espírito de contrariedade, e isso faz com que nos tornemos facilmente semelhantes a eles. É bem difícil contentar ao mesmo tempo a razão e o costume. Quanto àqueles que têm pouca capacidade, existem talvez menos do que se pensa, acredito que o bom senso, somado à aplicação, pode bastar para tudo. Pressuponho o bom senso, pois não creio que queirais exigir a pesquisa da verdade por parte dos habitantes das pequenas casas. Ainda que possa haver alguma diferença original entre as nossas almas - na verdade acredito que tal diferença existe -, é certo que uma alma poderia ir tão longe como a outra, embora talvez não tão depressa - se fosse conduzida como seria necessário. § 6. FILALETO - Existe outra espécie de pessoas, às quais falta apenas a vontade. Um violento apego ao prazer, uma constante aplicação ao que diz respeito à sua fortuna, uma preguiça ou negligência geral, uma aversão particular ao estudo e à meditação os impedem de pensar seriamente na verdade. Há mesmo os que temem que uma pesquisa isenta de qualquer parcialidade não fosse favorável às opiniões que melhor se adaptam aos seus preconceitos e aos seus planos. Conhecemos pessoas que não querem ler uma carta que se supõe portadora de más notícias, e muitas pessoas evitam fazer as suas contas e informar-se sobre o seu estado real, por medo de aprenderem o que preferem ignorar para sempre. Existem pessoas que têm grandes rendas e tudo empregam para prover ao seu corpo, sem pensar nos meios de aperfeiçoar o seu espírito. Sem falar dos interesses que deveriam ter por um estado futuro, não negligenciam menos o que lhes interessa conhecer na vida que levam neste mundo. É algo de estranho que muitas vezes aqueles que consideram o poder e a autoridade um adorno de nascença ou da sua fortuna a abandonem com negligência a pessoas de uma condição inferior à sua, mas que os ultrapassam em conhecimentos. Pois é necessário que os cegos sejam guiados por aqueles que enxergam, ou que caiam na fossa, e não existe maior escravidão do que a do entendimento. TEÓFILO - Nãoexiste prova mais evidente da negligência dos homens, em relação aos seus verdadeiros interesses, do que o pouco cuidado que se tem em conhecer e praticar o que convém à saúde, que constitui um dos nossos maiores bens; e, embora os grandes se ressintam tanto e até mais do que os outros dos maus efeitos dessa negligência, não se convertem. No que concerne à fé. Muitos consideram o pensamento que poderia levá-los à discussão como uma tentação do demônio, que pensam dever superar voltando o pensamento a outras coisas. Os homens que só amam os prazeres, ou que se entregam a alguma ocupação têm o hábito de descuidar dos outros assuntos. Um jogador, um caçador, um bebedor, e até um curioso de bagatelas perderá a sua fortuna e o seu bem-estar por não dar-se ao cuidado de solicitar um processo ou de falar com pessoas altamente colocadas. Existem pessoas como o Imperador Honório, o qual, ao lhe levarem a notícia da perda de Roma, acreditou que fosse a sua galinha, que tinha este nome, o que o irritou mais do que a verdade. Seria desejável que os homens que têm poder tivessem o conhecimento na mesma medida. Embora, porém, o detalhe da ciências, da história e das línguas faltasse, um julgamento sólido e bem exercitado, e um conhecimento das coisas igualmente grandes e gerais, numa palavra, summa rerum poderia bastar. E como o Imperador Augusto possuía um grupo restrito de forças do Estado, que denominava Breviarium Imperii, poder-se-ia ter um resumo dos interesses do homem, o qual mereceria o nome de Enchiridion Sapientiae, se os homens estivessem dispostos a interessar-se por aquilo que mais importa. § 7. FILALETO - Finalmente, a maior parte dos nossos erros provém das falsas medidas de probabilidade que tomamos, seja suspendendo o nosso julgamento não obstante as razões manifestas, seja fazendo este julgamento apesar das probabilidades contrárias. Essas falsas medidas consistem: 1) nas proposições duvidosas, consideradas princípios; 2) nas hipóteses admitidas; 3) nas paixões ou inclinações dominantes; e 4) na autoridade. § 8. Julgamos em geral sobre a verdade segundo a concordância com aquilo que consideramos princípios incontestáveis, e isso nos faz menosprezar o testemunho dos outros e até aquele dos nossos sentidos quando são ou parecem contrários. Entretanto, antes de dar-lhes crédito com tanta segurança, seria necessário examiná-los com a máxima exatidão. § 9. As crianças recebem proposições, que lhes são inculcadas pelo pai e pela mãe, pelas babás e pelos educadores e outras pessoas que as circundam. Essas proposições, tendo criado raízes, passam por sagradas como um urim e thummimi que o próprio Deus teria colocado na alma. § 10. Tem-se dificuldade em admitir o que vai contra esses oráculos internos, ao passo que digerimos os maiores absurdos, desde que concordem com eles. Isso aparece na extrema obstinação que se nota em certos homens em crer firmemente em opiniões diretamente opostas como artigos de fé, embora muitas vezes sejam igualmente absurdas. Tomai um homem de bom senso, mas persuadido desta máxima - deve-se crer o que se crê na sua comunhão -, tal como se ensina em Wíttenberg ou na Suécia; que disposição não terá ele para admitir sem dificuldade a doutrina da consubstanciação e a crer que uma e mesma coisa é ao mesmo tempo carne e pão? TEÓFILO - Ao que parece, não estais suficientemente informado sobre os pontos de vista dos evangélicos, que admitem a presença real do corpo de Nosso Senhor da Eucaristia. Explicaram a sua posição mil vezes, que não querem consubstanciação do pão e do vinho com a carne e o sangue de Jesus Cristo, e muito menos que uma e mesma coisa sejam carne e pão conjuntamente. Ensinam apenas que, ao recebermos os símbolos visíveis, recebemos de uma forma invisível e sobrenatural o corpo do Salvador, sem que este esteja encerrado no pão. A presença a que se referem não é uma presença local, ou por assim dizer, espacial, isto é, determinada pelas dimensões do corpo presente; assim sendo, tudo o que os sentidos poderiam opor não lhes diz respeito. E, para mostrar que os inconvenientes que se poderiam tirar da razão tampouco os atingem, declaram que aquilo que entendem pela substância do corpo não consiste na extensão ou dimensão; tampouco veem qualquer objeção em admitir que o corpo glorioso de Jesus Cristo conserva uma certa presença ordinária e local, porém condizente com o seu estado no lugar sublime em que se encontra, presença inteiramente distinta desta presença sacramental de que aqui se trata, como é diferente dessa presença miraculosa mediante a qual Jesus Cristo governa a sua Igreja, presença que faz com que ele esteja, não em toda parte - como Deus - mas onde quiser estar. Esta é a opinião dos mais moderados, de maneira que para mostrar o absurdo da sua doutrina seria necessário demonstrar que toda a essência do corpo consiste exclusivamente na extensão e naquilo que só pode ser comensurado desta maneira, e que ninguém fez, quanto eu saiba. Além disso, toda esta dificuldade não atinge menos os reformados que seguem as confissões galicana e belga, a declaração da assembléia de Sendomir, composta de pessoas das duas confissões, a augustana e a helvética, conforme à confissão saxônica, destinada ao Concílio de Trento; a profissão de fé dos reformados que participaram do colóquio de Thorn, convocado sob a autoridade de Ladislau, rei da Polônia, e a doutrina constante de Calvino e de Beza, que declararam com a maior clareza e com a maior força desejáveis que os símbolos transmitem efetivamente aquilo que representam, e que nos tornamos participantes da substância do próprio corpo e do próprio sangue de Jesus Cristo. E Calvino, após ter refutado os que se limitam a afirmar uma participação metafórica de pensamento ou de selo e de uma união ao nível da fé, acrescenta estar disposto a assinar tudo o que se disser de mais forte, desde que se evite tudo o que diga respeito à circunscrição dos lugares ou à difusão das dimensões. Assim sendo, parece que no fundo a sua doutrina era a de gmelanchton e até de Lutero - como a supõe o próprio Calvino numa das suas cartas -, excetuado um ponto, isto é: além da condição da percepção dos símbolos - com a qual Lutero se contenta - ele exige também a condição da fé, para excluir a participação dos indignos. Achei Calvino tão positivo no que tange a esta comunhão real - e isto numa centena de passos das suas obras, e até nas cartas familiares - que não vejo motivo para considerá-la suspeita de artifício. § 11. FILALETO - Escuso-me por haver falado das opiniões desses autores conforme a opinião corrente. Recordo-me agora de ter observado que teólogos muito competentes da Igreja Anglicana defenderam esta participação real. Entretanto, passemos agora dos princípios estabelecidos às hipóteses admitidas. Os que reconhecem que se trata apenas de hipóteses não deixam muitas vezes de defendê-las com ardor, mais ou menos como princípios seguros, e de desprezar as probabilidades contrárias. Seria insuportável a um sábio professor ver a sua autoridade destruída num instante por um novato que rejeitasse as suas hipóteses; digo a sua autoridade, que está consolidada de trinta ou quarenta anos a esta parte, autoridade conquistada através de muitas vigílias, apoiada numa infinidade de textos do patrimônio grego e latino, confirmada por uma tradição geral e por uma barba venerável. Todos os argumentos que se podem aduzir para convencê-lo da falsidade da sua hipótese serão tão pouco capazes de convencer o seu espírito quanto os esforços que fez Boreu para obrigar o viajante a abandonar o seu manto, que segurou com tanto maior firmeza quanto o vento soprava com maior violência. TEÓFILO - Na realidade, os adeptos de Copérnico constataram nos seus adversários que as hipóteses reconhecidas como tais não deixam de ser defendidas com zelo ardente. E os cartesianos não são menos positivos e categóricos na defesa dos seus postulados, como se se tratasse dos teoremas de Euclides. É verdade que aqueles que condenaram Galileu acreditaram que a imobilidade da terra era mais do que uma hipótese; pois consideravam esta tese concordante com a Escritura e com a razão. Ao depois, porém, chegou-se à conclusão de que pelo menos a razão não vinha em abono desta teoria; no que concerne à Escritura, o Padre Fabry, penitenciário de São Pedro, excelente teólogo e filósofo, publicando na própria Roma uma apologia das observações de Eustáquio Divini, renomado óptico, declarou que era apenas provisoriamente que se acreditava que o texto sagrado fala de um verdadeiro movimento do sol, e que, se a opinião de Copérnico ficasse constatada, não haveria dificuldade em explicá-lo como esta passagem de Virgílio: terraeque urbesque recedunt. Não obstante tudo isso, continua-se, na Itália e na Espanha, e mesmo nos países hereditários do imperador, a banir a doutrina de Copérnico, com grande prejuízo dessas nações, cujos espíritos poderiam altear-se a descobertas mais belas, se desfrutassem de uma liberdade razoável e filosófica. § 12. FILALETO - Efetivamente, como dizeis, as paixões dominantes parecem constituir a fonte de amor que se tem pelas hipóteses; entretanto, as paixões vão muito mais longe. A maior probabilidade do mundo não servirá de nada para mostrar a sua injustiça a um avarento e a um ambicioso; e um amante terá toda a facilidade do mundo para deixar-se enganar pela sua namorada, tanto é verdade que cremos facilmente naquilo que queremos, e segundo a observação de Virgílio, [qui amant ipsi sibi somnia fingunt.] É isto que faz com que nos sirvamos de dois meios para escapar às probabilidades mais evidentes, quando contradizem às nossas paixões e aos nossos preconceitos. § 13. O primeiro é crer que pode haver alguma sofisticação, escondida no argumento que nos objetam. § 14. O segundo consiste em supor que podemos alegar argumentos iguais ou até melhores para rebater o adversário, se tivéssemos a facilidade ou a habilidade necessárias para encontrá-los. § 15. Estes meios de defender-se contra a convicção por vezes são bons, porém são também sofismas quando o assunto está suficientemente esclarecido, e quando se levou tudo em consideração, pois após isso existe a possibilidade de ver de que lado se encontra a probabilidade. Assim é que não se pode duvidar de que os animais foram formados por movimentos que um agente inteligente conduziu, e não por um concurso fortuito de átomos; da mesma forma, não existe ninguém que duvide se os caracteres de imprensa que formam um discurso inteligível foram reunidos por um homem atento ou resultam de uma mescla confusa. Acredito, por conseguinte, que não depende de nós suspender o nosso assentimento nessas ocasiões; entretanto, podemos fazê-lo quando a probabilidade é menos evidente, sendo que podemos até contentar-nos com as provas mais fracas que vão mais de acordo com a nossa inclinação. § 16. Na verdade, parece-me impraticável que uma pessoa se incline mais para o lado em que vê menor probabilidade: a percepção, o conhecimento e o assentimento não são arbitrários, como não depende de mim ver ou não ver a concordância de duas ideias, quando o meu espírito a elas se volta. Todavia, podemos fazer voluntariamente com que estacione o progresso das nossas pesquisas; não fora isto, a ignorância ou o erro não poderiam constituir pecado em caso algum. É nisto que exercemos a nossa liberdade. É verdade que, nas ocasiões em que não temos nenhum interesse, abraçamos a opinião comum, ou a opinião do primeiro que se manifesta, porém, nos pontos em que entra em linha de conta a nossa felicidade ou infelicidade, o espírito se aplica com maior diligência a pesar as probabilidades, e acredito que neste caso - isto é, quando prestamos atenção - não temos a liberdade de determinar-nos para o lado que quisermos, se existirem entre as duas opiniões diferenças bem visíveis; neste caso será a probabilidade maior que determinará o nosso assentimento. TEÓFILO - No fundo concordo convosco, sendo que quanto a este ponto explicamo-nos suficientemente nos nossos diálogos anteriores, ao falarmos sobre a liberdade. Ali mostrei que nunca cremos o que queremos, mas aquilo que vemos com maior evidência; ao mesmo tempo, porém, podemos fazer com que creiamos o que queremos, desviando a atenção de um objeto desagradável para aplicá-la a outro que nos agrada. Isso faz com que, ao encararmos mais as razões de uma opinião favorita, acabemos por convencer-nos de que ela é mais provável. Quanto às opiniões pelas quais não tomamos interesse e que admitimos baseadas em motivos levianos, isso acontece pelo fato de que, não notando quase nada das razões que militam em contrário, achamos que a opinião que outros nos apresentam como sendo a mais provável é superior à opinião oposta, a qual, na nossa percepção, nada tem a seu favor. § 17. FILALETO - A última medida falsa de probabilidade que tenciono assinalar é a autoridade mal-entendida. Esta aprisiona nas malhas da ignorância e do erro mais pessoas que todas as outras juntas. Quantas pessoas existem, que não têm outro fundamento para as suas opiniões, a não ser as opiniões admitidas entre os nossos amigos ou entre as pessoas da nossa profissão, do nosso partido ou do nosso país... Tal doutrina foi aprovada pela venerável antiguidade; ela chega até mim com o passaporte dos séculos precedentes; outras pessoas se rendem a ela; eis por que acredito que, ao admiti-la, estou protegido contra o risco de erro. Basear-se neste método é mais ou menos a mesma coisa que escolher as opiniões com base nos resultados fornecidos por um jogo de azar. Além do fato de que todos os homens são sujeitos ao erro, acredito que, se pudéssemos ver os motivos secretos que fazem agir os sábios e os chefes de partido, constataríamos muitas vezes que o verdadeiro motivo pouco ou nada tem a ver com uma busca sincera da verdade. De qualquer forma, é certo que não existe nenhuma opinião tão absurda que não possa ser abraçada com base em tal argumento, visto que não existe erro que não tenha tido os seus defensores. TEÓFILO - Entretanto, cumpre reconhecer que é impossível deixar de render-se à autoridade em certos casos. Santo Agostinho escreveu um livro bastante belo, De Utilitate Credenti, que merece ser lido. Quanto às opiniões admitidas, têm elas algo em comum com aquilo que os jurisconsultos denominam presunção. Embora não sejamos obrigados a seguir sempre tais opiniões sem antes encontrar provas, tampouco temos o direito de destruí-las no espírito dos outros, sem motivos que militem em contrário. A razão deste procedimento é que não temos o direito de mudar nada, se não houver motivo para tal. Tem-se discutido muito sobre o argumento baseado no grande número dos que aprovam uma opinião, desde que o falecido Sr. Nicole publicou seu livro sobre a Igreja: entretanto, tudo o que se pode tirar deste argumento, quando se trata de aprovar uma razão e não de atestar um fato, pode ser reduzido apenas àquilo que acabo de dizer. Assim como cem cavalos não correm mais depressa do que um cavalo só, embora possam puxar mais, acontece o mesmo com cem homens comparados a um só; eles não podem acertar mais do que um só, mas trabalharão com maior eficácia; não poderão julgar melhor, mas serão capazes de fornecer mais matéria para a reflexão. É este o significado do provérbio: plus vident oculi quam oculus. Nota-se isso nas assembleias, nas quais vem à tona uma série de considerações que talvez teriam escapado a um só ou a dois. Entretanto, em tais casos corre-se o risco de não fazer a opção certa, apesar de todas essas considerações; isto acontece quando não existem pessoas dotadas da capacidade de dirigir os debates e pesar as razões alegadas pelas diversas partes. Esta é a razão pela qual alguns teólogos judiciosos da Igreja de Roma, vendo que a autoridade da Igreja, isto é, a autoridade dos mais elevados em dignidade e dos mais apoiados pela multidão, não podia ser segura em matéria de raciocínio, a reduziram à mera atestação dos fatos, sob o nome de tradição. Esta foi a opinião de Henrique Holden, inglês, doutor da Sorbonne, autor de um livro intitulado Análise da Fé, no qual, seguindo os princípios do Commonitorium de Vicente Lerinense, o autor defende que não se podem emitir decisões novas na Igreja, e tudo o que podem fazer os bispos reunidos em concílio é apenas atestar o fato de que esta ou aquela doutrina é comumente aceita nas suas dioceses. O princípio é especioso, enquanto permanecermos nas generalidades; entretanto, quando vamos ao fato, constata-se que países diferentes admitiram opiniões diferentes desde há muito tempo. Nos mesmos países se passou do branco ao preto, não obstante os argumentos do Sr. Amauld contra as mudanças insensíveis, além do fato de que, muitas vezes, não só se atestaram as diferenças, mas se passou ao julgamento delas. Esta é também, no fundo, a opinião de Gretser, sábio jesuíta da Baviera, autor de outra Análise da Fé, aprovada pelos teólogos da sua ordem: A Igreja pode emitir julgamento sobre as controvérsias elaborando e proclamando novos artigos de fé, sendo que lhe está prometida para isso a assistência do Espírito Santo, embora o mais das vezes se procure dissimular esta opinião, sobretudo na França, como se competisse à Igreja apenas esclarecer doutrinas já estabelecidas. Todavia, o esclarecimento ou é uma enunciação já admitida, ou é uma enunciação nova, que se crê haurir da doutrina já admitida. A prática o mais das vezes se opõe ao primeiro sentido, e, no segundo sentido, que pode ser a enunciação nova senão um novo artigo? Todavia, não creio que se deva menosprezar a antiguidade em matéria de religião. Acredito até poder-se afirmar que Deus preservou os concílios verdadeiramente ecumênicos celebrados até hoje de qualquer erro contrário à doutrina da salvação. De resto, o preconceito do parti pris é realmente uma coisa estranha. Vi pessoas abraçarem com ardor uma opinião, pelo simples motivo de que ela é admitida pelas pessoas da sua classe, ou até pelo simples motivo de que ela é contrária à de um homem de uma religião ou de um país que não amavam, embora a questão praticamente não tivesse nada a ver com a religião ou com os interesses dos povos. Tais pessoas não sabiam talvez que a verdadeira fonte do seu zelo era esta: entretanto, eu constatava que à primeira notícia de que tal ou tal pessoa tinha escrito isto ou aquilo, tais pessoas se enterravam nas bibliotecas e atormentavam o espírito para encontrar argumentos para refutar o autor. É isto que fazem muitas vezes aqueles que defendem teses nas universidades e procuram destacar-se contra os seus adversários. Que diremos então das doutrinas prescritas nos livros simbólicos do partido, mesmo entre os protestantes, doutrinas que muitas vezes somos obrigados a abraçar sob forma de juramento? Alguns creem que só é necessário aceitar tais profissões na medida em que coincidem com o ensinamento da Sagrada Escritura, porém outros afirmam o contrário. Nas ordens religiosas da Igreja de Roma vai-se mais longe: prescrevem-se limites mais restritos àqueles que ensinam; basta citar como exemplo as proposições que o Superior Geral dos Jesuítas, Cláudio Aquaviva - se não me equivoco -, proibiu de ensinar nas suas escolas. Seria conveniente fazer uma coleção sistemática das proposições decididas e censuradas dos concílios, dos papas, bispos, superiores, faculdades, coletânea que serviria à história eclesiástica. Pode-se distinguir entre ensinar e abraçar uma opinião. Não existe juramento algum no mundo, nem proibição que possa forçar uma pessoa a permanecer com a mesma opinião, pois os sentimentos são involuntários em si mesmos; todavia, podemos e devemos abster-nos de ensinar uma doutrina que passa por perigosa, a menos que estejamos obrigados a ela em consciência. Neste caso é necessário declarar-se sinceramente e abandonar o seu posto, quando se tem o ofício de ensinar; supondo-se, entretanto, que se possa fazê-lo sem expor-se a um perigo extremo que poderia forçar a abandonar sem celeuma. Não vejo outra possibilidade de harmonizar os direitos do público e os do indivíduo, visto que um deve impedir o que considera mau, e o outro não pode dispensar-se dos deveres exigidos pela sua consciência. § 18. FILALETO - Esta oposição entre o público e o individual, e mesmo entre as opiniões públicas de diferentes partidos, constitui um mal inevitável. Entretanto, muitas vezes as próprias oposições são meramente aparentes, consistindo apenas nas fórmulas. Sinto-me também obrigado a dizer, para fazer justiça ao gênero humano, que não existem tantas pessoas engajadas no erro como se pensa comumente; não que acredite que elas abraçam a verdade, mas porque na realidade, a respeito das doutrinas em torno das quais se faz tanta celeuma, não têm em absoluto opinião positiva, e além disso, sem nada examinarem e sem terem no espírito as ideias mais superficiais sobre o problema em foco, estão decididas a agarrar-se ao seu ponto de vista, como soldados que não examinam a causa que defendem: e se a vida de uma pessoa revela que ela não tem nenhuma consideração sincera pela religião, basta-lhe ter a mão e a língua prontas a defender a opinião comum para tomar-se recomendável àqueles que lhe podem dar apoio. TEÓFILO - Esta justiça que fazeis ao gênero humano não reverte em seu louvor; os homens seriam mais escusáveis por seguirem sinceramente as suas opiniões do que por contradizê-las por interesse. Entretanto, é possível que haja mais sinceridade no seu agir do que estais a supor. Pois, sem nenhum conhecimento de causa, podem ter chegado a uma fé implícita submetendo-se geralmente e por vezes cegamente, porém muitas vezes de boa fé, ao julgamento daqueles cuja autoridade uma vez reconheceram. É verdade que o interesse que têm na coisa contribui para esta submissão, porém isto não impede que ao final a opinião se forme. Na Igreja romana considera-se mais ou menos suficiente esta fé implícita, uma vez que talvez ela não conheça artigo devido à revelação que seja considerado absolutamente fundamental e que passe como necessário necessitate medii, isto é, cuja aceitação seja uma condição absolutamente necessária para a salvação. Todos o são por necessitate praecepti, isto é, em virtude da necessidade de obedecer à Igreja (conforme o ensinamento da Igreja romana), e de conceder toda a atenção devida ao que é proposto, tudo sob pena de pecado mortal. Entretanto esta necessidade exige apenas uma docilidade razoável, não obrigando em absoluto ao assentimento, conforme o ensinamento dos mais sábios doutores dessa Igreja. Todavia, o próprio Cardeal Belarmino acreditou que nada é melhor do que essa fé de criança que se submete a uma autoridade estabelecida; ele relata e aprova os dizeres de um moribundo, que afugentou o diabo por este círculo vicioso que o doente repete com frequência: Creio tudo o que a Igreja crê, A Igreja crê o que eu creio. CAPÍTULO XXI A DIVISÃO DAS CIÊNCIAS. § 1. FILALETO - Eis-nos chegados ao final do nosso itinerário, sendo que todas as operações do entendimento humano estão esclarecidas. O nosso intento não é entrar no próprio detalhe dos nossos conhecimentos. Entretanto, vem aqui a propósito, talvez, antes de encerrar, empreender uma revisão geral considerando a divisão das ciências. Tudo aquilo que pode entrar na esfera do entendimento humano é ou a natureza das coisas em si mesmas, ou, em segundo lugar, o homem na qualidade de agente, tendendo ao seu fim e particularmente à sua felicidade, ou, em terceiro lugar, os meios de adquirir e de comunicar o conhecimento. Com isso temos a ciência dividida em três espécies. § 2. A primeira espécie é a física ou a filosofia natural, que engloba não somente os corpos e as suas afecções, como número e figura, mas também os espíritos, o próprio Deus e os anjos. § 3. A segunda espécie é a filosofia prática ou a moral, que ensina o meio de obter as coisas boas e úteis, e se propõe não apenas o conhecimento da verdade, mas também a prática daquilo que é justo. § 4. A terceira, enfim, é a lógica ou o conhecimento dos sinais, pois lógos significa palavra. Temos necessidade dos sinais das nossas ideias para podermos comunicar entre nós os nossos pensamentos, bem como para registrá-los para o nosso próprio uso. Talvez, se se considerasse distintamente e com todo o esmero possível que esta última espécie de ciência se baseia sobre as ideias e as palavras, teríamos uma lógica e uma crítica diferentes das que se conhecem até agora. Essas três espécies, a física, a moral e a lógica, constituem como que três grandes províncias no mundo intelectual, completamente separadas e distintas uma da outra. TEÓFILO - Esta divisão já gozou de renome entre os antigos, pois na lógica eles englobavam também, como fazeis vós, tudo o que relacionamos com as palavras e com a explicação dos nossos pensamentos: artes dicendi. Todavia, existe certa dificuldade nisso. Com efeito, a ciência de raciocinar, de julgar e de inventar parece muito diferente do conhecimento das etimologias das palavras e do uso das línguas, que constitui algo de indefinido e arbitrário. Além disso, ao explicar as palavras, estamos obrigados a entrar nas próprias ciências, como se vê pelos dicionários; de outro lado, não se pode tratar a ciência sem dar ao mesmo tempo as definições dos termos. Entretanto, a principal dificuldade existente na divisão proposta das ciências consiste no fato de que cada parte parece engolir o todo: primeiramente a moral e a lógica cairão na física, se esta for tomada de maneira tão genérica como se acaba de expor; pois ao falar dos espíritos, isto é, das substâncias que têm inteligência e vontade, e ao explicar esta inteligência a fundo, fareis com que entre nela toda a lógica; e, ao explicar na doutrina sobre os espíritos aquilo que concerne à vontade, seria necessário falar do bem e do mal, da felicidade e da infelicidade, e só a vós competirá levar esta doutrina até o ponto de fazer entrar nela toda a filosofia prática. Em contrapartida, tudo poderia entrar na filosofia como estando a serviço de nossa felicidade. Sabeis que com razão se considera a teologia uma ciência prática, e a jurisprudência, tanto quanto a medicina, também o é; desta forma, a doutrina da felicidade humana, ou do nosso bem e mal, absorverá todos esses conhecimentos, se quisermos explicar suficientemente todos os meios que servem ao fim proposto pela razão. Assim é que Zwinger englobou tudo no seu teatro metódico da vida humana, o qual Beyerling alterou, colocando-o em ordem alfabética, e, ao tratar todas as matérias por dicionários conforme a ordem alfabética, a doutrina das línguas - que vós catalogais, juntamente com os antigos, na lógica, isto é, na discursiva - se apoderará, por sua vez, do território das duas outras. Com isso tereis as vossas três grandes províncias da enciclopédia em guerra contínua, visto que uma se arrogará sempre os direitos das outras. Os nominalistas acreditaram que existem tantas ciências particulares quantas são as verdades. Outros compararam o conjunto completo dos nossos conhecimentos a um oceano, que consta todo ele de uma peça única, sendo dividido em caledoniano, atlântico, etiópico e índico, apenas por linhas arbitrárias. Constata-se em geral que uma mesma verdade pode ser colocada em diferentes lugares, conforme os termos que contém, e até conforme os termos médios ou causas de que depende, e segundo as consequências e os efeitos que pode produzir. Uma proposição categórica simples tem apenas dois termos; entretanto, uma proposição hipotética pode ter quatro, sem falar das enunciações compostas. Uma história memorável pode ser colocada nos anais da história universal e na história do país em que aconteceu, e na história da vida de uma pessoa que nela estava interessada. Supondo que se trate de algum belo preceito de moral, de algum estratagema de guerra, de alguma invenção útil para as artes que servem para a comodidade da vida ou para a saúde dos homens, esta mesma história será relacionada utilmente com a ciência ou arte à qual diz respeito, e até se poderá fazer menção dela em dois lugares dessa ciência, isto é, na história da respectiva disciplina, para contar o seu crescimento efetivo, e também nos preceitos, para confirma-los ou esclarecê-los através dos exemplos. Por exemplo, o que se conta bem a propósito na vida do cardeal Xímenes, que uma mulher mourisca o curou de uma héctica quase desesperadora apenas através de fricções, merece também ser mencionado num sistema de medicina, tanto no capítulo concernente à respectiva enfermidade como onde se trata de uma dieta medicinal que compreende os exercícios; esta observação servirá também para melhor descobrir a causa dessa enfermidade. Além disso, poder-se-ia mencioná-la também na lógica medicinal, que trata da arte de encontrar remédios, bem como na história da medicina, para mostrar a maneira como os remédios chegaram ao conhecimento dos homens, e que isso acontece muitas vezes através de simples empíricos e até de charlatães. Beverovícíus, num belo livro sobre a medicina antiga, tirado inteiramente dos autores não médicos, teria tornado a sua obra ainda mais bela se tivesse chegado até os autores modernos. Por aí se vê que uma mesma verdade pode ter vários lugares, conforme os diferentes enfoques que pode apresentar. Os que ordenam uma biblioteca muitas vezes não sabem onde colocar alguns livros, pelo fato de hesitarem entre duas ou três localizações possíveis. Entretanto, falemos agora apenas das doutrinas gerais, colocando à parte os fatos individuais, a história e as línguas. Encontro duas disposições principais de todas as verdades doutrinais, sendo que cada uma terá os seus méritos. Uma seria sintética e teórica, ordenando as verdades conforme a ordem das provas, como fazem os matemáticos, de maneira que cada proposição viria depois daquelas das quais depende. A outra disposição seria analítica e prática, começando pelo objetivo dos homens, ou seja, pelos bens, cujo cúmulo é a felicidade, e procurando ordenadamente os meios que servem para adquirir esses bens ou para evitar os males contrários. Esses dois métodos se verificam na enciclopédia em geral, como alguns ainda os têm praticado nas ciências particulares; pois a própria geometria, tratada sinteticamente por Euclides como uma ciência, foi tratada por alguns outros como uma arte e poderia apesar disso ser tratada demonstrativamente sob esta forma, que revelaria até a sua invenção. Como se alguém se propusesse medir todas as espécies de figuras planas, e, começando pelas retilíneas, se recordasse que se pode dividi-las em triângulos e que cada triângulo constitui a metade de um paralelogramo, e que os paralelogramos podem ser reduzidos aos retângulos, cuja medição é fácil. Todavia, ao escrever a enciclopédia segundo todas essas duas disposições conjuntamente, poder-se-iam tomar medidas para remeter, a fim de evitar as repetições. A essas duas disposições seria necessário acrescentar a terceira conforme os termos, a qual, na realidade, constituiria apenas uma espécie de repertório, seja sistemático, ordenando os termos segundo certos predicamentos que seriam comuns a todas as nações, seja alfabético, conforme a língua admitida entre os sábios. Ora, tal repertório seria necessário para encontrar conjuntamente todas as proposições nas quais o termo entra de uma forma bastante notável, pois segundo as duas vias precedentes, nas quais as verdades são catalogadas de acordo com sua origem ou seu uso, as verdades que dizem respeito ao mesmo termo não podem encontrar-se juntas. Por exemplo, não foi permitido a Euclides, ao ensinar ele a encontrar a metade de um ângulo, acrescentar-lhe o meio para encontrar a terça parte, pois teria sido necessário falar das seções cônicas, das quais ainda não era possível tomar conhecimento naquele lugar. Todavia, o repertório pode e deve indicar os lugares em que se encontram as proposições importantes que concernem ao mesmo assunto. Falta-nos ainda tal repertório na geometria, o qual seria de grande utilidade para facilitar até a invenção e impulsionar a ciência, pois ele aliviaria a memória e nos pouparia o trabalho de procurar de novo aquilo que já foi encontrado. Com maior razão tais repertórios serviriam também nas outras ciências, nas quais a arte de raciocinar tem menos poder, e seria sobretudo de extrema utilidade na medicina. Entretanto, não é das mais simples a arte de elaborar tais repertórios. Ora, ao considerar essas três disposições, chego a uma conclusão curiosa, a saber, que elas correspondem à antiga divisão, que vós renovastes, a qual divide a ciência ou a filosofia em teórica, prática e discursiva, ou em física, moral e lógica. Com efeito, a disposição sintética corresponde à teórica, a analítica à prática, e a do repertório segundo os termos à lógica: de sorte que esta antiga divisão é muito válida, contanto que seja entendida da forma como acabo de explicar essas disposições, ou seja, não como ciências distintas, mas como disposições diversas das mesmas verdades. Existe ainda uma divisão civil das ciências conforme as faculdades e as profissões. Ela é utilizada nas universidades e no catalogamento de praxe nas bibliotecas. Draudius, juntamente com o seu seguidor Lipenius, que nos legaram o mais amplo catálogo de livros, ainda que não o melhor, em vez de seguir os métodos das Pandectas de Gesner, que são inteiramente sistemáticos, contentaram-se com servir-se da grande divisão das matérias - mais ou menos como os livreiros - segundo as quatro faculdades - como se denominam - de teologia, de jurisprudência, de medicina e de filosofia, e a seguir ordenaram os títulos de cada faculdade segundo a ordem alfabética dos termos principais que entram na inscrição dos livros: isso aliviava esses autores, pois não tinham necessidade de ver o livro nem ouvir a matéria de que trata o livro, porém não serve bastante para os outros, a menos que se remetam os títulos a outros de significação igualou semelhante; com efeito, sem falar de uma série de faltas que cometeram, vê-se que muitas vezes uma mesma coisa é denominada com nomes diferentes, como, por exemplo: observationes iuris, miscellanea, coniectanea, electa, semestria, probabilia, benedicta e uma série de outras inscrições congêneres; tais livros de jurisconsultos significam meras miscelâneas do direito romano. Eis por que a disposição sistemática das matérias é indiscutivelmente a melhor, podendo-se acrescentar-lhe os índices alfabéticos bem amplos segundo os termos e os autores. A divisão civil e comumente admitida segundo as quatro faculdades não é de se menosprezar. A teologia trata da felicidade eterna e de tudo o que com ela se relaciona, na medida em que isto depende da alma e da consciência; é como uma jurisprudência que concerne ao que se diz ser de foro interno e emprega substâncias e inteligências invisíveis. A jurisprudência tem por objeto o governo e as leis, cujo objetivo é a felicidade dos homens, na medida em que se pode contribuir para ela através do externo e do sensível; entretanto, ela considera principalmente apenas o que depende da natureza do espírito, não entrando muito no detalhe das coisas corporais, das quais supõe a natureza para empregá-las como meios. Assim sendo, ela se desencarrega de imediato de um grande ponto, que diz respeito à saúde, ao vigor, à perfeição do corpo humano, cujo cuidado é atribuído à faculdade da medicina. Alguns acreditaram com certa razão que se poderia acrescentar às outras a faculdade econômica, que englobaria as artes matemáticas e mecânicas, e tudo o que diz respeito ao detalhe da subsistência dos homens e das comodidades da vida, nas quais estariam compreendidas a agricultura e a arquitetura. Entretanto, deixa-se à faculdade da filosofia tudo aquilo que não está compreendido nas três faculdades que se denominam superiores: procedeu-se bastante mal, pois é sem dar possibilidade aos que são desta quarta faculdade de se aperfeiçoarem pela prática, como podem fazer os que ensinam as outras faculdades. Assim, excetuada talvez a matemática, considera-se a faculdade de filosofia apenas como uma introdução às outras. Eis por que se quer que a juventude aprenda nela a história e as artes de falar, bem como alguns rudimentos da teologia e da jurisprudência natural, independentes das leis divinas e humanas, sob o título de meta física ou pneumática, de moral e de política, com alguma coisa também de física, para servir aos médicos recém-formados. Esta é a divisão civil das ciências conforme os corpos e as profissões dos sábios que as ensinam, sem falar das profissões daqueles que trabalham pelo público de outra forma que não seja o seu discurso, e que deveriam ser dirigidos pelos verdadeiros sábios, se se tomassem as devidas medidas no tocante ao saber. Mesmo nas artes manuais mais nobres, o saber foi muito bem aliado à operação, e poderia sê-lo ainda mais. Como na realidade os associamos na medicina, isto não somente outrora, entre os antigos - quando os médicos eram ainda cirurgiões e farmacêuticos - mas mesmo nos nossos dias, sobretudo entre os químicos. Esta conjunção entre a prática e a teoria se observa na guerra, e entre aqueles que ensinam o que se denomina exercícios, como também entre os pintores e os escultores e músicos, e entre algumas outras espécies de virtuosi. Se os princípios de todas essas profissões e artes fossem ensinados de maneira prática entre os filósofos, ou em qualquer outra faculdade de sábios, estes passariam realmente a ser os mestres do gênero humano. Entretanto, para isso seria imprescindível alterar em muitos pontos o presente estado da literatura e da educação da juventude, e por conseguinte da conduta. Ao considerar quanto os homens avançaram em conhecimento, de um ou dois séculos a esta parte, e quanto poderiam facilmente progredir ainda mais para tornar-se mais felizes, não perco a esperança de que se chegue a alguma mudança considerável; isto numa época mais tranquila, sob o reinado de algum notável príncipe que Deus poderá suscitar para o bem do gênero humano.