Gottfried Wilhelm Leibniz - A Monadologia 1. As substâncias simples ou mônadas. 1. A mônada em questão aqui é uma substância simples que entra nos compostos; “simples”, isto é, sem partes. 2. E é necessário que existam substâncias simples, pois existem substâncias compostas: o composto, com efeito, é um amontoado ou agregado de simples. 3. Ora, onde não há partes, não é possível nem extensão nem figura nem divisibilidade. As mônadas são, portanto, os verdadeiros átomos da Natureza: em poucas palavras, são os elementos das coisas. 4. Por isso não é preciso temer que uma substância simples se dissolva, e é totalmente impensável que possa perecer por via natural. 5. Pela mesma razão é também impensável que uma substância simples tenha um início por via natural: ela, com efeito, não poderia formar-se mediante composição. 6. Podemos, portanto, dizer que as mônadas podem começar e terminar unicamente de forma repentina, ou seja: podem começar apenas por criação e terminar apenas por aniquilação. Aquilo que é composto, ao contrário, começa e termina por composição e dissolução das partes. 7. Além disso, não há modo de explicar como uma mônada possa ser alterada ou mudada em seu interior por obra de alguma outra criatura. Na mônada, com efeito, não se poderia transpor nada, nem é pensável nela algum movimento interno que seja impresso, dirigido, acrescido ou diminuído; isto, ao contrário, é possível nos compostos, onde acontecem mudanças entre as partes. As mônadas não têm janelas, mediante as quais alguma possa entrar ou sair. Os acidentes não podem destacar-se das substâncias e passear fora delas como faziam uma vez as “espécies sensíveis” dos Escolásticos. Portanto, nem substância nem acidente podem entrar de fora em uma mônada. 2. O princípio de identidade dos indiscerníveis. 8. Por outro lado, é necessário que as mônadas tenham qualidades, de outra forma não seriam sequer seres. Com efeito, se as substâncias simples não diferissem por suas qualidades, não se poderia distinguir nenhuma mudança nas coisas, porque aquilo que está no composto pode derivar apenas de seus componentes simples. Portanto, se as mônadas fossem privadas de qualidades, seriam indistinguíveis uma da outra, dado que elas não diferem de modo nenhum entre si pela quantidade; por conseguinte, admitida a hipótese do pleno, todo lugar receberia no movimento sempre e apenas o equivalente daquilo que aí havia anteriormente, e um estado de coisas seria indiscernível em relação a outro. 9. Além disso, é necessário que cada mônada seja diferente de toda outra. Na Natureza, com efeito, não existem dois seres que sejam perfeitamente iguais, e nos quais não seja possível encontrar uma diferença interna, isto é, uma diferença fundada sobre uma denominação intrínseca. 3. Os princípios internos da mônada: percepção e apercepção. 10. Considero também como comprovado que cada ser criado está sujeito a mudança – e portanto o mesmo acontece com a mônada criada –, e que esta mudança é contínua em cada uma das mônadas. 11. Do que dissemos até aqui resulta que as mudanças naturais das mônadas dependem de um princípio interno, dado que nenhuma causa externa poderia influenciar sobre seu interior. 12. Todavia, além do princípio da mudança, deve também haver um detalhe daquilo que muda, um aspecto particular que determine por assim dizer a especificação e a variedade das substâncias simples. 13. Este detalhe deve implicar uma multiplicidade na unidade, isto é, no simples. Com efeito, uma vez que cada mudança natural acontece por graus, algo muda e algo permanece; por conseguinte, é necessário que na substância simples, embora desprovida de partes, haja uma pluralidade de afecções e de relações. 14. O estado transitório que implica e representa uma multiplicidade na unidade, isto é, na substância simples, é propriamente aquilo que se chama percepção, a qual, como veremos a seguir, deve ser distinguida da apercepção ou consciência. Sobre este ponto os Cartesianos cometeram um grave erro, pois transcuraram completamente as percepções de que não se tem consciência. E é justamente este o motivo que os levou a crer que apenas os espíritos fossem mônadas, e que não existiriam almas de animais nem outras enteléquias. Assim, eles confundiram, como o vulgo, um longo aturdimento com a morte propriamente dita, o que os fez cair no preconceito escolástico das almas inteiramente separadas [dos corpos], e até consolidaram nas mentes mal dispostas a opinião da mortalidade das almas. 15. A ação do princípio interno que determina a mudança, ou seja, a passagem de uma percepção para outra, pode ser chamada apetição. O “apetite”, é verdade, nem sempre consegue alcançar a plena percepção à qual tende; todavia, dela obtém sempre alguma coisa e chega assim a novas percepções. 16. Nós mesmos experimentamos uma multiplicidade na substância simples, quando constatamos que até mesmo o menor pensamento de que temos consciência implica uma variedade em seu objeto. Assim, todos aqueles que admitem que a alma é uma substância simples devem reconhecer essa multiplicidade na mônada. 4. Autossuficiência e finalismo das mônadas ou enteléquias. 17. Por outro lado, deve-se reconhecer que a percepção, e aquilo que dela depende, é inexplicável mediante razões mecânicas, isto é, mediante as figuras e os movimentos. Imaginemos uma máquina estruturada de modo tal que seja capaz de pensar, de sentir e de ter percepções; suponhamo-la agora aumentada, com as mesmas proporções, de modo que nela se possa entrar como em um moinho. Feito isso, visitando a máquina em seu interior, encontraremos sempre e apenas peças que se impulsionam mutuamente, mas nada que esteja em grau de explicar uma percepção. Portanto, a razão da percepção deve ser procurada na substância simples, e não no composto ou na máquina. Assim, é unicamente na substância simples que se podem encontrar as percepções e suas mudanças: apenas nisso, portanto, podem consistir todas as ações internas das substâncias simples. 18. A todas as substâncias simples, as mônadas, criadas, se poderia dar o nome de enteléquias: elas, com efeito, têm em si uma determinada perfeição, gozam de uma autossuficiência graças à qual constituem as fontes de suas ações internas e se apresentam, por assim dizer, como autômatos incorpóreos. 5. A hierarquia das mônadas. 19. Se quisermos designar com o nome de alma tudo aquilo que tem percepções e apetições no significado geral que acabamos de explicar, então todas as substâncias simples, as mônadas, criadas poderiam ser chamadas de almas. Todavia, como o sentimento é algo a mais que uma simples percepção, penso que o nome geral de mônadas e de enteléquias seja suficiente para as substâncias simples que têm apenas a percepção. Portanto, penso que se devam chamar almas apenas as mônadas em que a percepção é mais distinta e acompanhada pela memória. 20. Nós, com efeito, experimentamos em nós mesmos certos estados no qual não recordamos nada e não temos nenhuma percepção distinta; assim acontece quando desmaiamos ou quando estamos imersos em um profundo sono sem sonhos. Em tal estado a alma não difere sensivelmente de uma simples mônada; como se trata, porém, de um estado de modo nenhum duradouro, do qual a alma se livra bem depressa, ela é algo mais que uma simples mônada. 21. Além disso, não é preciso crer que em tal estado a substância simples esteja totalmente privada de percepções. Isso é impossível já apenas pelas razões aduzidas, pois sem afecções – e isso significa propriamente: sem suas percepções – a substância simples não poderia perecer; ou melhor, não poderia sequer subsistir. Em segundo lugar, também quando nos encontramos em um estado de aturdimento temos na realidade muitas pequenas percepções, nas quais porém não há nada distinto; assim como acontece quando se gira sem parar sempre no mesmo sentido e se está preso em uma vertigem tal que pode fazer-nos desmaiar e não nos permite distinguir nada. A própria morte pode temporariamente determinar nos animais um estado semelhante a este. 22. Ora, cada estado presente de uma substância simples é uma consequência natural de seu estado precedente, motivo pelo qual nela o presente está grávido do futuro. 23. Portanto, dado que ao colocarmo-nos de pé depois de um aturdimento nos apercebemos das próprias percepções, é igualmente necessário que as tenhamos tido imediatamente antes, embora não as tenhamos advertido: com efeito, uma percepção pode ser unicamente a derivação natural de outra percepção, assim como um movimento pode derivar naturalmente apenas de outro movimento. 24. É, portanto, evidente que, se em nossas percepções não tivéssemos nada de distinto – e, por assim dizer, nada de aguçado e de tom mais elevado –, nós nos encontraríamos sempre em um estado de aturdimento. E este é justamente o estado das mônadas inferiores. 25. Por outro lado, a Natureza deu percepções aguçadas também aos animais, e isso é evidente pelo cuidado que ela teve em fornecer-lhes órgãos que recolhem diversos raios de luz ou diversas vibrações do ar, aumentando sua eficácia com a união. Algo de semelhante está presente no odor, no gosto, no tato e em quem sabe quantos outros sentidos a nós desconhecidos. E em pouco explicarei de que modo isso que acontece na alma representa aquilo que se produz nos órgãos de sentido. 26. A memória faz com que em cada alma haja uma espécie de concatenação que imita a razão, mas da qual deve ser bem distinta. Com efeito, quando os animais percebem algo que os atinge e de que tiveram anteriormente uma percepção análoga, então eles, por força da representação de sua memória, esperam também aquilo que a ela estava unido na percepção precedente, e são induzidos a sentimentos análogos aos que haviam então sido provados. Por exemplo, se mostramos o bastão aos cães, estes se lembram da dor que ele lhes causou, põem-se a latir e fogem. 27. E a forte imaginação que atinge e comove os animais deriva ou da intensidade ou do número das percepções anteriores: frequentemente, com efeito, uma forte impressão provoca em uma só vez o mesmo efeito de um longo hábito, ou de muitas percepções repetidas mas de mediana intensidade. 28. O comportamento dos homens, à medida que a concatenação de suas percepções se produz apenas em base ao princípio da memória, é análogo ao dos animais. Nisto se assemelham aos médicos empíricos, que têm certa prática, porém, não acompanhada de conhecimentos teóricos; e somos efetivamente empíricos nos três quartos de nossas ações. Comportamo-nos de modo empírico, por exemplo, quando esperamos que amanhã haja dia pelo fato de que até hoje sempre foi assim. Apenas o astrônomo, ao contrário, julga a este respeito de modo racional. 29. Mas é o conhecimento das verdades necessárias e eternas que nos diferencia dos outros animais, e que nos propicia a razão e as ciências, pois nos eleva ao conhecimento de nós mesmos e de Deus. Nisto consiste aquilo que em nós se chama de alma racional ou espírito. 30. É, portanto, mediante o conhecimento das verdades necessárias e mediante suas abstrações que somos elevados aos atos reflexivos, os quais nos permitem justamente pensar aquilo que se chama Eu, e de considerar tudo aquilo que existe em nós. E é assim que, pensando a si mesmos, se pensa o ser, a substância, o simples e o composto, o imaterial e o próprio Deus: e isso que em nós é limitado é concebido como ilimitado em Deus. Tais atos reflexivos fornecem os objetos principais de nossos raciocínios. 6. Os princípios do conhecimento e os tipos de verdade. 31. Nossos raciocínios se fundam sobre dois grandes princípios: a) O princípio de contradição, em virtude do qual julgamos falso aquilo que implica contradição, e verdadeiro aquilo que é oposto ou contraditório ao falso. 32. b) O princípio de razão suficiente, em virtude do qual consideramos que qualquer fato não poderia ser verdadeiro ou existente, e qualquer enunciado não poderia ser verídico, se não houvesse uma razão suficiente do por que a coisa é assim e não de outra forma – por mais que as razões suficientes sejam para nós no mais das vezes ignoradas. 33. Há também duas espécies de verdade: as racionais e as factuais: a) as verdades racionais são necessárias, e seu oposto é impossível; b) as verdades factuais são contingentes, e seu oposto é possível. Quando uma verdade é necessária podemos encontrar sua razão suficiente mediante a análise, resolvendo-a em ideias e verdades mais simples até chegar às verdades originárias. 34. E é justamente mediante a análise que os matemáticos reduzem os teoremas especulativos e os cânones práticos a definições, axiomas e postulados. 35. Há por fim ideias simples das quais não se pode dar nenhuma definição. Há também axiomas e postulados – ou, em poucas palavras, princípios originários – que não podem ser demonstrados, e que por outro lado não têm necessidade de demonstração: trata-se dos enunciados idênticos, cujo oposto contém uma contradição evidente. 36. Mas a razão suficiente deve ser encontrada também nas verdades contingentes ou factuais, ou seja, na série das coisas esparsas pelo universo das criaturas. Aqui a decomposição em razões particulares poderia prosseguir indefinidamente de detalhe em detalhe, por via da imensa variedade das coisas naturais e da divisão dos corpos ao infinito. Há, com efeito, uma infinidade de figuras e de movimentos presentes e passados que confluem na causa eficiente de meu escrever atual, e há uma infinidade de pequenas inclinações e disposições de minha alma, presentes e passadas, que confluem na causa final deste ato. 37. Ora, uma vez que todos estes detalhes implicam unicamente outras contingências anteriores ou então mais detalhadas – cada uma das quais tem por sua vez necessidade de ser analisada para que delas se possa dar razão –, por esta via não se obtém de fato um verdadeiro progresso. É necessário, portanto, que a razão suficiente ou última esteja fora da concatenação ou série de tais detalhes das contingências, por mais infinita que possa ser tal série. 7. Deus e as provas de sua existência. 38. E, assim, a razão última das coisas deve estar em uma Substância necessária, na qual o detalhe das mudanças se encontre de modo eminente, como na própria fonte: e é esta Substância aquilo que chamamos de Deus. 39. E como tal Substância é razão suficiente de todos os detalhes – os quais, portanto, estão ligados entre si de modo universal –, deve-se dizer necessariamente: existe um só Deus e este Deus é suficiente. 40. Esta Substância suprema é consequência simples do Ser possível, e é única, universal e necessária; além disso, fora dela não há nenhuma realidade independente. Pode-se, portanto, depreender que tal Substância seja também necessariamente não suscetível de limitações, e que deva conter totalmente a realidade possível. 41. Disso segue que Deus é absolutamente perfeito. A perfeição, com efeito, é a grandeza exata da realidade positiva, captada prescindindo dos limites ou confins das coisas finitas. Ora, onde não há limites, isto é, em Deus, a perfeição é de fato absolutamente infinita. 42. Além disso, daí segue que as criaturas têm suas perfeições graças ao influxo de Deus, enquanto suas imperfeições derivam de sua própria natureza, incapaz de ser sem limites. Justamente por esta incapacidade as criaturas se distinguem de Deus. 43. É verdadeiro também que Deus é a fonte não só das existências, mas também das essências enquanto reais, ou seja: é também a fonte do real que está contido no possível. O intelecto de Deus é, com efeito, a região das verdades eternas, ou seja, das ideias das quais tais verdades dependem. Sem o intelecto divino, portanto, nenhum real estaria contido no possível, e não só nada existiria, mas nada poderia jamais existir. 44. Com efeito, se existe realidade nas essências – isto é, nos possíveis, ou ainda, nas verdades eternas –, é igualmente necessário que esta realidade se fundamente sobre algo existente e atual e, portanto, sobre a existência do Ser necessário, no qual a essência implica a existência. Em outras palavras, ao Ser necessário é suficiente ser possível para existir em ato. 45. Assim, apenas Deus, ou seja, o Ser necessário tem este privilégio: posto que seu Ser seja possível, Ele não pode não existir. Ora, isto já é suficiente para conhecer a priori a existência de Deus; nada pode, com efeito, impedir a possibilidade daquilo que não comporta nenhuma limitação, nenhuma negação e, por conseguinte, nenhuma contradição. Demonstramos, portanto, a priori a existência de Deus mediante a realidade das verdades eternas. Mas também a demonstramos a posteriori, partindo da existência dos seres contingentes, os quais podem, com efeito, ter sua razão última ou suficiente apenas no Ser necessário, isto é, no Ser que tem em si próprio a razão de sua existência. 46. Embora as verdades eternas dependam de Deus, não é preciso, todavia, crer que elas sejam arbitrárias e que dependam de sua Vontade. Isso vale apenas para as verdades contingentes, cujo princípio é a conveniência, ou seja, a escolha do melhor. Não vale, ao contrário, para as verdades necessárias, que dependem unicamente do intelecto de Deus e constituem seu objeto interno. 47. Somente Deus, portanto, é a Unidade primitiva, ou seja, a Substância simples originária. Todas as mônadas criadas ou derivadas são produções de tal Substância, e nascem, por assim dizer, em virtude de fulgurações instantâneas e contínuas da Divindade – fulgurações que encontram um limite na receptividade da criatura, à qual é essencial o fato de ser limitada. 48. Em Deus existe: a) a Potência, que é a fonte de tudo; b) o Conhecimento, que contém as ideias cada uma com seu detalhe; c) a Vontade, que determina as mudanças, ou produções, segundo o princípio do melhor. Isso corresponde àquilo que nas mônadas criadas constitui, respectivamente, a) o sujeito ou base, b) a faculdade perceptiva e c) a faculdade apetitiva. Todavia, em Deus estes atributos são absolutamente infinitos, isto é, perfeitos; ao invés, nas mônadas criadas ou enteléquias encontram-se unicamente imitações de tais atributos, em proporção ao grau de sua perfeição. 8. Ação e paixão: as relações entre as mônadas. 49. Dizemos justamente que a criatura age em seu exterior à medida que é perfeita, e que sofre por parte de outra, à medida que é imperfeita. Por isso, à mônada é atribuída a ação, enquanto tem percepções distintas, e a paixão, enquanto tem percepções confusas. 50. E o maior grau de perfeição de uma criatura em relação a outra consiste nisto: na criatura mais perfeita encontra-se a razão suficiente, o fundamento a priori daquilo que acontece na mais imperfeita. E é este o sentido pelo qual se diz que uma age sobre a outra. 51. Mas entre as substâncias simples a influência de uma mônada sobre outra é apenas ideal. Esta influência pode, com efeito, ter sua eficácia apenas mediante a intervenção de Deus, enquanto nas ideias divinas cada mônada exige justamente que Deus, ao regular as outras desde o início das coisas, a leve em consideração. Com efeito, dado que uma mônada criada não está em grau de influir fisicamente sobre o interior de outra, é apenas por esta via divina que se pode verificar a dependência de uma em relação à outra. 52. Por este motivo, portanto, as ações e as paixões entre as criaturas são recíprocas. Deus, com efeito, pondo em confronto duas substâncias simples, encontra em cada uma motivos que o obrigam a adequá-la à outra. E, por conseguinte, aquilo que é ativo sob certos aspectos, é passivo de outro ponto de vista: a) é ativo à medida que aquilo que nele se conhece distintamente serve para dar razão daquilo que acontece em outro; b) é passivo à medida que a razão daquilo que nele acontece se encontra naquilo que se conhece distintamente em outro. 9. A escolha divina do melhor dos mundos possíveis. 53. Ora, uma vez que nas ideias de Deus há uma infinidade de universos possíveis, e todavia um só deles pode existir, deve haver uma razão suficiente que determine Deus a escolher um de preferência a outro. 54. E esta razão se pode encontrar apenas na conveniência, isto é, no grau de perfeição implicado por cada um destes mundos possíveis. Cada possível, com efeito, tem direito de pretender a existência em proporção à perfeição que contém. 55. E esta é justamente a causa da existência do melhor dos mundos possíveis, que a Sabedoria de Deus lhe faz conhecer, sua Bondade lhe faz escolher e sua Potência lhe faz produzir. 10. A harmonia universal e a mônada como microcosmo. 56. Ora, esta ligação, esta adaptação de todas as coisas criadas a cada uma e de cada uma com todas, faz com que toda substância simples tenha relações que exprimem todas as outras e seja consequentemente um espelho vivo perpétuo do universo. 57. E assim como uma mesma cidade, se olhada de pontos de vista diferentes, aparece sempre diversa e como que multiplicada prospectivamente, do mesmo modo, por via da multidão infinita das substâncias simples, há como que outros universos diferentes, os quais todavia são apenas as perspectivas de um único universo segundo o diferente ponto de vista de cada mônada. 58. É desse modo que se obtém a máxima variedade possível com a suprema ordem possível: em outras palavras, este é o modo para obter a máxima perfeição possível. 59. Apenas esta hipótese, que ouso dizer já demonstrada, exprime, portanto, adequadamente a grandeza de Deus. E é justamente isto que Bayle reconheceu quando, em seu Dicionário, no verbete “Rosarius”, levantou algumas objeções a tal hipótese, e foi inclinado a crer que eu concedesse demasiado a Deus, mais do que aquilo que seja possível conceder-lhe. Mas ele não pôde aduzir nenhuma razão para demonstrar a impossibilidade desta Harmonia universal, em virtude da qual toda substância exprime exatamente todas as outras mediante as relações que tem com elas. 60. No que eu disse estão de resto evidentes as razões a priori pelas quais as coisas não poderiam caminhar diversamente de como as acabamos de descrever. Dissemos, com efeito, que Deus, ao regulamentar o todo, levou em consideração cada parte singular e especialmente cada mônada, pois a natureza desta última é representativa. Por conseguinte, a mônada não poderia de modo nenhum ser circunscrita a representar apenas uma parte das coisas. Todavia, esta representação é apesar de tudo confusa em relação ao conjunto dos detalhes do universo, e pode distinguir apenas uma pequena parte das coisas, isto é, das coisas que são ou mais vizinhas ou maiores em relação a cada mônada: se houvesse apenas representações distintas, cada mônada seria uma Divindade. As mônadas são, portanto, limitadas não no objeto, mas no modo de conhecer o objeto: elas tendem sim ao infinito, ao todo, mas confusamente, exatamente porque são limitadas e diferenciadas conforme o grau de distinção das percepções. 11. A organicidade dos viventes e a relação entre alma e corpo. 61. E nisto os compostos se assemelham aos simples. Com efeito, uma vez que tudo está pleno – o que torna concatenada toda a matéria –, e uma vez que no pleno todo movimento produz um efeito sobre corpos distantes na proporção de sua distância – motivo pelo qual todo corpo não apenas sofre a ação dos corpos que o tocam, ressentindo-se de algum modo de tudo aquilo que a eles acontece, mas com isso ressente-se também da ação dos outros corpos que tocam os primeiros com os quais ele está em contacto imediato –, daí resulta que tal conexão das coisas está em grau de estender-se a qualquer distância. Todo corpo, portanto, ressente-se de tudo aquilo que acontece no universo, tanto que Aquele que tudo vê pode ler em cada um deles aquilo que acontece em todo lugar, e também aquilo que já aconteceu ou que acontecerá, perscrutando no presente aquilo que está distante, tanto no tempo como no espaço. Mas uma alma pode ler em si mesma apenas aquilo que nela está representado distintamente: a alma, com efeito, não poderia desdobrar em apenas um momento todas as suas dobras, porque elas vão ao infinito. 62. Assim, embora cada mônada criada represente todo o universo, ela representa mais distintamente o corpo que lhe é particularmente atribuído e do qual constitui a enteléquia; e como este corpo exprime todo o universo em virtude da conexão de toda a matéria no Pleno, também a alma, enquanto representa este corpo que lhe pertence de modo particular, representa todo o universo. 63. O corpo que pertence a uma mônada, a qual é sua enteléquia ou alma, forma com a enteléquia aquilo que se pode chamar um vivente, e com a alma aquilo que chamamos um animal. Ora, tanto o corpo de um vivente quanto o de um animal é sempre orgânico: com efeito, uma vez que cada mônada é a seu modo um espelho do universo, e uma vez que o universo é regulado segundo uma ordem perfeita, é necessário que haja uma ordem também naquilo que o representa, ou seja, nas percepções da alma e, por conseguinte, no corpo: é, com efeito, em conformidade com seu corpo peculiar que a alma representa o universo para si mesma. 64. Portanto, o corpo orgânico de todo ser vivo é uma espécie de máquina divina, ou de autômato natural, que supera grandemente qualquer autômato artificial. Com efeito, uma máquina construída pela arte do homem não é máquina em cada uma de suas partes: por exemplo, o dente de uma roda de latão apresenta partes ou fragmentos que para nós não são mais algo de artificial e que, em relação ao uso à que a roda estava destinada, não conservam mais nenhum traço mecânico. A máquina da Natureza, ao contrário, isto é, os corpos viventes, são sempre máquinas até em suas partes mais diminutas, ao infinito. Eis, portanto, a diferença entre a Natureza e a Arte, ou seja, entre a Arte divina e a arte humana. 65. E o Autor da Natureza pôde pôr em prática tal artifício divino e infinitamente maravilhoso, porque qualquer porção da matéria não só é divisível ao infinito, como reconheceram os antigos, mas também é subdividida atualmente ao infinito – cada parte sua em outras partes, cada uma das quais tem algum movimento próprio –: de outro modo seria impossível para cada porção da matéria exprimir todo o universo. 66. Disso vemos que existe um mundo de criaturas – de seres vivos e de animais, de enteléquias e de almas – também na menor porção da matéria. 67. Toda porção de matéria pode ser concebida como um jardim cheio de plantas, ou como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo das plantas, cada membro do animal, cada gota de seus humores, é por sua vez tal jardim ou tal lago. 68. E embora a terra e o ar interpostos entre as plantas do jardim, ou a água interposta entre os peixes do lado, não sejam nem plantas nem peixes, eles todavia contêm ainda outras plantas e outros peixes, mas, na maioria das vezes, de uma forma tão sutil que foge à nossa percepção. 69. De modo que não há nada de não cultivado, de estéril, de morto no universo. E há caos e confusão apenas em aparência; quase como se, olhando de certa distância em um lago, aí percebamos um movimento confuso e, por assim dizer, um fervilhar de peixes, sem que distingamos os próprios peixes. 70. Disso vemos que todo corpo vivente tem uma enteléquia dominante, que no animal é a alma. Mas os membros deste corpo vivente estão cheios de outros seres vivos, plantas, animais, cada um dos quais tem por sua vez sua enteléquia, ou sua alma dominante. 71. Todavia, não devemos, por isso, crer – como o fizeram alguns, mal entendendo meu pensamento – que toda alma tenha uma massa ou porção de matéria que lhe é própria ou atribuída para sempre, e que, por conseguinte, possua outros seres vivos inferiores destinados para sempre a seu serviço. Mais que isso, todos os corpos estão em perpétuo fluxo, como rios, e continuamente neles entram e saem partes. 72. A alma muda, portanto, de corpo apenas um pouco por vez e por graus, motivo pelo qual jamais se encontra repentinamente despida de todos os seus órgãos: nos animais há frequentemente metamorfoses, mas não há jamais metempsicose ou transmigração de almas. Também não existem almas totalmente separadas, nem gênios sem corpo. Apenas Deus é absolutamente sem corpo. 73. Isto faz com que jamais haja geração absoluta, nem morte perfeita no sentido rigoroso do termo, isto é, entendida como separação da alma em relação ao corpo. O que chamamos de geração é desenvolvimento e aumento, enquanto aquilo que chamamos de morte é involução e diminuição. 74. Os filósofos sempre encontraram graves dificuldades para explicar a origem das formas, enteléquias ou almas. Hoje, porém, mediante pesquisas exatas realizadas com plantas, insetos e animais, viu-se que os corpos orgânicos da natureza jamais se originam de um caos ou de uma putrefação, mas sempre de germes nos quais já havia certamente alguma pré-formação. Chegou-se, assim, à conclusão de que já antes da concepção existia não só o corpo orgânico, mas também uma alma nesse corpo: em poucas palavras, existia já o próprio animal. Além disso, concluiu-se que, em virtude da concepção, esse animal foi apenas predisposto a uma grande transformação para se tornar um animal de espécie diversa. Algo de semelhante se pode observar também fora da geração, por exemplo, quando os vermes se transformam em moscas e as crisálidas em borboletas. 75. Alguns animais, mediante a concepção, são elevados ao grau dos animais maiores, e podemos chamá-los de espermáticos. Aqueles que, ao contrário, permanecem em sua espécie – e são a maior parte – nascem, se multiplicam e são destruídos do mesmo modo que os grandes animais, e apenas um pequeno número de eleitos passa para um teatro mais vasto. 76. Todavia, esta era apenas a metade da verdade. Pensei que se o animal jamais tem um início natural, não pode haver sequer um fim natural; e que não só jamais haverá geração, mas sequer destruição absoluta, nem morte entendida no sentido rigoroso do termo. Estes raciocínios, feitos a posteriori e por via experimental, concordam perfeitamente com meus princípios deduzidos a priori e acima expostos. 77. Podemos, portanto, afirmar que não somente a alma, espelho de um universo indestrutível, é indestrutível, mas também o próprio animal o é, embora sua máquina frequentemente pereça em parte, e perca ou tome despojos orgânicos. 12. A harmonia preestabelecida entre alma e corpo. 78. Estes princípios me permitiram explicar naturalmente a união, ou melhor, o acordo da alma e do corpo orgânico. A alma e o corpo seguem com efeito cada um suas próprias leis, mas ambos concordam em virtude da Harmonia preestabelecida entre todas as substâncias, as quais na realidade são representações de um único e mesmo universo. 79. As almas agem segundo as leis das causas finais e mediante apetições, fins e meios. Os corpos agem segundo as leis das causas eficientes, isto é, dos movimentos. E os dois reinos, o das causas eficientes e o das causas finais, estão em harmonia entre si. 80. Descartes reconheceu que as almas não podem absolutamente imprimir força aos corpos: na matéria, com efeito, a quantidade de força é sempre a mesma. Ele, porém, errou ao crer que a alma estivesse em grau de mudar a direção dos corpos. Ora, esta sua convicção era devida ao fato de que em seu tempo não se conhecia em nada a lei natural: na matéria se conserva também a mesma direção total. Se Descartes tivesse conhecido tal lei, teria sem dúvida chegado ao meu sistema da Harmonia preestabelecida. 81. O sistema da Harmonia preestabelecida faz com que: a) os corpos ajam como se – por absurdo – não existissem almas; b) as almas ajam como se não existissem corpos; c) a alma e o corpo ajam como se se influenciassem mutuamente. 13. Os espíritos ou almas racionais. 82. Passemos agora aos espíritos, ou almas racionais. Eu já disse que todos os seres viventes, compreendendo os animais, obedecem no fundo ao mesmo princípio segundo o qual o início do animal e da alma coincide com o início do mundo e seu fim coincide com o fim do mundo. Nos animais racionais, todavia, há o seguinte particular: seus pequenos animais espermáticos, enquanto permanecem nesse estado, têm apenas almas comuns ou sensitivas, mas logo que os eleitos, por assim dizer, chegam à natureza humana mediante uma efetiva concepção, suas almas sensitivas são elevadas ao grau da razão e à prerrogativa dos espíritos. 83. Às diferenças já salientadas entre os animais comuns e os espíritos, acrescenta-se também esta: a) as almas em geral são espelhos viventes ou imagens do universo das criaturas; b) os espíritos, ao contrário, são também imagens viventes da própria Divindade, isto é, do Autor da Natureza: eles têm a capacidade de conhecer o sistema do universo e de imitar algum aspecto dele com empresas arquitetônicas, uma vez que todo espírito é como uma pequena divindade em seu âmbito. 84. Justamente por isso os espíritos são capazes de entrar em uma espécie de sociedade com Deus. Em relação a eles, portanto, Deus age não simplesmente como um inventor sobre sua máquina (e Deus opera assim sobre criaturas [não racionais]), mas também como um príncipe para com seus súditos e como um pai em relação a seus filhos. 14. A Cidade de Deus. 85. Daqui, portanto, é fácil concluir que o conjunto de todos os espíritos deve constituir a Cidade de Deus, isto é, o Estado mais perfeito possível governado pelo Monarca mais perfeito. 86. Esta Cidade de Deus, esta Monarquia verdadeiramente universal, é um mundo moral no mundo natural, e é a mais elevada e divina entre as obras de Deus. É neste mundo moral que consiste verdadeiramente a glória de Deus, a qual, com efeito, não poderia existir se a grandeza e a bondade divinas não fossem conhecidas e admiradas pelos espíritos. Além disso, é em relação a esta Cidade divina que Deus manifesta sua Bondade, enquanto sua Sabedoria e sua Potência se mostram em todo lugar. 87. Ora, mais acima individuamos uma perfeita Harmonia entre os dois reinos da Natureza, um das causas eficientes e outro das causas finais. A este ponto devemos pôr em relevo ainda outra Harmonia, a que existe entre o reino físico da Natureza e o reino moral da Graça. Em outros termos, se trata da Harmonia entre Deus, considerado como Arquiteto da Máquina do universo, e Deus, considerado como Monarca da Cidade divina dos espíritos. 88. Em virtude desta Harmonia, aquilo que leva à Graça percorre os mesmos caminhos da Natureza. Por exemplo, este globo deverá ser destruído e restaurado por vias naturais quando o exigir o governo dos espíritos, e isso acontecerá para o castigo de uns e a recompensa de outros. 89. Devemos, além disso, dizer que Deus como Arquiteto agrada em tudo Deus como Legislador. Portanto, os pecados, em base à ordem natural e própria em virtude da estrutura mecânica das coisas, devem acarretar consigo seu castigo; e, analogamente, as belas ações atrairão suas recompensas por vias mecânicas em relação aos corpos, embora isso não possa nem deva acontecer sempre de modo imediato. 90. Por fim, sob este governo perfeito jamais haverá uma boa ação sem recompensa, nem uma ação má sem castigo. E tudo deve concluir no bem dos bons, isto é, daqueles que de modo nenhum estão descontentes neste grande Estado. Depois de terem realizado o próprio dever, os bons se confiam à Providência, e amam e imitam como convém o Autor de todo bem, comprazendo-se em considerar as perfeições dele segundo a natureza do verdadeiro amor puro que leva a alegrar-se com a felicidade do amado. E é justamente isso que impele as pessoas sábias e virtuosas em prodigalizar-se em direção daquilo que se mostra conforme a vontade divina presumível ou antecedente, induzindo-as, todavia, a contentar-se com aquilo que Deus efetivamente faz acontecer com sua vontade secreta, consequente ou decisiva. Com efeito, elas reconhecem que, se pudéssemos entender suficientemente a ordem do universo, perceberíamos então que tal ordem supera todos os desejos dos homens mais sábios e que é impossível torná-lo melhor do que ele é. Ora, esta impossibilidade é tal não somente em relação ao todo em geral, mas também em relação a nós mesmos em particular. Estamos, com efeito, necessariamente ligados ao Autor do todo não apenas como ao Arquiteto e Causa eficiente de nosso ser, mas também como ao nosso Senhor e Causa final que deve constituir o escopo total de nossa vontade e do qual unicamente depende nossa felicidade.