Gottfried Wilhelm Leibniz – Correspondência com Clarke Primeira carta de Leibniz Excertos de uma missiva a Sua Alteza Real Princesa de Gales, de novembro de 1715 1. Parece-me que a própria religião natural se enfraquece extremamente (na Inglaterra). Muitos julgam as almas corporais, outros acham que o próprio Deus é corporal. 2. Locke e seus sequazes põem em dúvida, pelo menos, se as almas não são materiais e perecíveis por natureza. 3. Newton diz que o espaço é o órgão de que Deus se serve para sentir as coisas. Mas se ele tem necessidade de algum meio para as sentir, elas não dependem inteiramente dele e não são sua produção. Newton e seus asseclas têm ainda uma divertidíssima opinião sobre a obra de Deus. Conforme eles, Deus de vez em quando precisa dar corda em seu relógio, porque senão ele deixaria de andar. O cientista não teve visão suficiente para imaginar um movimento perpétuo. Essa máquina de Deus é até tão imperfeita, segundo eles, que o Criador se vê obrigado de quando em quando a desengraxa-la por um concurso extraordinário, e mesmo arranjá-la, como um relojoeiro faz com sua obra, o qual será tanto pior oficial quanto mais vezes se vir obrigado a retocar e corrigir seu trabalho. Na minha opinião, a mesma força e vigor subsiste sempre, passando somente de matéria em matéria, conforme as leis da natureza e a bela ordem preestabelecida. E creio que, quando Deus faz milagres, não é para suprir as necessidades da natureza, mas sim as da graça. Julgar diferentemente seria ter uma ideia muito baixa da sabedoria e do poder de Deus. Primeira réplica de Clarke 1. É verdade, e é uma coisa deplorável que haja na Inglaterra, como em outros países, pessoas que negam até a religião natural, ou que a corrompem extremamente; mas, depois de apontar o desregramento dos costumes, cumpre atribuir isso principalmente à falsa filosofia dos materialistas, combatida diretamente pelos princípios matemáticos da filosofia. É verdade também que existem pessoas que julgam a alma material e o próprio Deus corporal; mas esses indivíduos se declaram abertamente contra os princípios matemáticos da filosofia, que são os únicos princípios que provam ser a matéria a menor e menos considerável parte do universo. 2. Nos escritos de Locke, há algumas passagens que poderiam fazer suspeitar, com razão, que ele duvidava da imaterialidade da alma; mas nisso não foi seguido senão por alguns materialistas inimigos dos princípios matemáticos da filosofia e que somente aprovam, nas obras de Locke, os seus erros. 3. O Cavaleiro Newton não diz que o espaço é o órgão de que Deus se serve para perceber as coisas; não diz tampouco que Deus precisa de qualquer meio para as perceber. Pelo contrário, afirma que Deus, estando presente em toda parte, percebe as coisas por sua presença imediata, em qualquer espaço em que estão, sem a intervenção ou o socorro de nenhum órgão ou de nenhum meio. Para tornar isso inteligível, ilustra-o mediante uma comparação, a saber: estando imediatamente presente às imagens que se formam no cérebro graças aos órgãos dos sentidos, a alma vê essas imagens como se fossem as próprias coisas que elas representam; assim também Deus vê tudo por sua presença imediata, estando atualmente presente às próprias coisas, a todas as coisas que estão no universo, como a alma está presente a todas as imagens que se formam no cérebro. Newton considera o cérebro e os órgãos dos sentidos como o meio pelo qual essas imagens são formadas, e não como o meio pelo qual a alma vê ou percebe essas imagens quando assim formadas. E no universo, não considera as coisas como se fossem imagens formadas por certo meio ou por órgãos, mas como coisas reais que o próprio Deus formou e que ele vê em todos os lugares em que se acham, sem á intervenção de nenhum meio. Eis tudo o que Newton quis dizer com a comparação de que se serviu ao supor que o espaço infinito é, por assim dizer, o sensório do Ser presente em toda parte. 4. Se, entre os homens, um trabalhador passa a ser tido como tanto mais hábil quanto mais tempo continue a máquina que ele construiu a ter um movimento regulado, sem necessidade de ser retocada, é porque a habilidade dos artífices humanos não consiste senão em compor e juntar certas peças, dotadas de um movimento cujos princípios são totalmente independentes do trabalhador, como os pesos, as molas, etc., com forças que não são produzidas pelo artífice, o qual não faz mais que ajustá-las e juntá-las. Mas é completamente diverso o que se passa com Deus, que não apenas compõe e ordena as coisas, mas também é o autor de seus poderes primitivos, ou de suas forças motoras, conservando-as perpetuamente. E, por conseguinte, dizer que nada acontece sem sua providência e sua inspeção não é depreciar sua obra, mas antes fazer conhecer a grandeza e a excelência dela. A ideia dos que sustentam que o mundo é uma grande máquina que se move sem a intervenção de Deus, como um relógio continua a andar sem o socorro do relojoeiro, essa ideia, digo, introduz o materialismo e a fatalidade, tendendo, de fato, sob pretexto de fazer de Deus uma Inteligência supramundana, a banir do mundo a providência e o governo de Deus. Acrescento que, pelo mesmo motivo pelo qual um filósofo pode imaginar que tudo se passa no mundo, desde que foi criado, sem nenhuma intervenção da Providência, não será difícil a um pirrônico levar mais longe o raciocínio e supor que as coisas se passaram desde toda eternidade como se passam agora, sem a necessidade de admitir uma criação ou outro autor do mundo senão o que esses raciocinadores chamam a sapientíssima e eterna natureza. Se um rei tivesse um reino onde tudo ocorresse sem sua intervenção e sem que ele ordenasse de que maneira as coisas deveriam ser feitas, não se trataria de um reino senão nominal em relação a ele, que não mereceria o título de rei ou governante. E assim como se poderia suspeitar com razão que os que pretendem que num reino as coisas podem andar perfeitamente bem sem que o rei intervenha; assim como se poderia, digo, suspeitar que não se importariam de ficar sem rei; também se pode dizer que aqueles, segundo os quais o universo não precisa de que Deus o dirija e o governe continuamente, adiantam uma doutrina que tende a bani-lo do mundo. Segunda carta de Leibniz, ou resposta à primeira réplica de Clarke 1. É com razão que se diz no escrito dado à Senhora Princesa de Gales, e que Sua Alteza Real me fez a graça de enviar-me, que, depois das paixões viciosas, os princípios dos materialistas contribuem muito para sustentar a impiedade. Mas não creio que se esteja autorizado a acrescentar que os princípios matemáticos da filosofia são opostos aos dos materialistas. Pelo contrário, são os mesmos, com a exceção de que os materialistas, a exemplo de Demócrito, de Epicuro e de Hobbes se limitam somente aos princípios matemáticos, não admitindo senão corpos, ao passo que os matemáticos cristãos admitem ainda substâncias imateriais. Dessa forma, não são os princípios matemáticos, na acepção comum desse termo, mas os princípios metafísicos que devemos opor aos dos materialistas. Pitágoras, Platão e em parte Aristóteles tiveram algum conhecimento disso, mas pretendo tê-los estabelecido demonstrativamente, ainda que numa exposição popular, em minha Teodiceia. O grande fundamento dos matemáticos é o princípio da contradição ou da identidade, isto é, que um enunciado não poderia ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo, e que assim A é A, e não poderia ser não A. E esse único princípio basta para demonstrar toda a aritmética e toda a geometria, ou seja, todos os princípios matemáticos. Mas, se desejamos passar da matemática à física, precisamos de outro princípio ainda; como observei na minha Teodiceia, quer dizer, o princípio da razão suficiente: que nada acontece sem que haja uma razão por que isso seja assim antes do que de outro modo. Eis por que Arquimedes, querendo passar da matemática à física em seu livro do Equilíbrio, se viu obrigado a empregar um caso particular do grande princípio da razão suficiente. Toma como admitido que, se há uma balança em que tudo seja igual de ambas as partes, suspendendo-se também pesos iguais nas extremidades dessa balança, ela ficará em repouso. O motivo é por não haver razão para um lado descer e outro não. Ora, por esse único princípio, a saber, que é preciso haver uma razão suficiente pela qual as coisas são antes assim que de outro modo, demonstra-se a divindade e o resto da metafísica ou da teologia natural, e mesmo de certa maneira os princípios físicos independentes da matemática, isto é, os princípios dinâmicos, ou da força. 2. Diz-se, em seguida, que, segundo os princípios matemáticos, ou seja, de acordo com a filosofia de Newton (porque os princípios matemáticos não são decisivos), a matéria é a parte menos considerável do universo. E que ele admite, além da matéria, um espaço vazio, e que, a seu ver, a matéria não ocupa senão uma parte muito pequena do espaço. Mas Demócrito e Epicuro sustentaram a mesma coisa, diferindo de Newton apenas no mais e menos, ou seja, que haveria talvez, conforme eles, mais matéria no mundo do que na opinião de Newton. No que, creio, seriam preferíveis, porque, quanto mais matéria existir, mais Deus terá ocasião de exercer sua sabedoria e seu poder, razão pela qual, entre outras, não admito absolutamente vácuo. 3. Encontra-se expressamente no apêndice da óptica de Newton que o espaço é o sensório de Deus. Ora, a palavra "sensório" sempre significou o órgão da sensação. Podem ele e seus amigos explicar-se agora de modo completamente diverso; nada tenho a opor. 4. Supõe-se que a presença da alma basta para que ela perceba o que se passa no cérebro, mas é justamente o que o Padre Malebranche e toda a escola cartesiana negam, e com razão. É preciso algo bem diferente da simples presença, para que uma coisa represente o que se passa na outra. Necessita-se para isso de alguma comunicação explicável, de uma espécie de influência. O espaço, segundo Newton, é intimamente presente ao corpo que ele contém e que é comensurado com ele. Seguir-se-á daí que o espaço percebe o que se passa no corpo e se lembra quando o corpo tiver saído? Além disso, sendo a alma indivisível, sua presença imediata que se poderia imaginar no corpo não se faria senão num ponto. Como então perceberia o que se realiza fora desse ponto? Pretendo ter sido o primeiro a mostrar como a alma percebe o que se passa no corpo. 5. A razão pela qual Deus percebe tudo não é sua simples presença, mas ainda sua operação; é porque conserva as coisas por uma ação que produz continuamente o que há de bondade e perfeição nelas. Mas não tendo as almas influência imediata sobre os corpos, nem os corpos sobre as almas, sua correspondência mútua não poderia ser explicada pela presença. 6. A verdadeira razão que faz principalmente louvar uma máquina provém antes de seu efeito que de sua causa. Não se cuida tanto do poder do maquinista quanto de seu artefato. Assim o motivo que se aduz para elogiar a máquina de Deus, a saber, que ele a fez inteiramente, sem recorrer a matéria estranha, não é suficiente. É uma pequena volta, à qual a gente foi forçada a recorrer. E a razão que faz preferirmos Deus a qualquer outro maquinista não é somente porque ele fez tudo, ao passo que o artífice precisa procurar alhures sua matéria: essa preferência viria apenas do poder; mas existe outra razão da excelência de Deus, que vem ainda da sabedoria. E que sua máquina dura também muito mais tempo e anda mais certo que a de qualquer outro maquinista. Quem compra um relógio não se preocupa em saber se o oficial o fez inteiro, ou se mandou fazer as peças por outro, e apenas as ajustou, contanto que ele ande como deve. E se o oficial tivesse recebido de Deus até o dom de criar a matéria das rodas, não nos sentiríamos satisfeitos se ele não tivesse recebido também o dom de bem ajustá-las. Assim também, quem quisesse estar contente com a obra de Deus não o estaria pela única razão que nos apregoam. 7. Cumpre, pois, que o artefato de Deus não seja inferior ao de um trabalhador; é preciso, até, que vá infinitamente além. A simples produção de tudo seria bem um indício do poder de Deus, mas não mostraria suficientemente sua sabedoria. Os que defenderem o contrário cairão justamente no defeito dos materialistas e de Espinosa, de que dizem se afastar. Reconheceriam o poder, mas não o bastante a sabedoria no princípio das coisas. 8. Não digo que o mundo corporal é uma máquina ou um relógio que anda sem a intervenção de Deus, e professo absolutamente que as criaturas têm necessidade de sua influência contínua; mas sustento que se trata de um relógio que anda sem ter necessidade de ser regulado, porque senão se deveria dizer que Deus volta atrás. Deus previu tudo e cuidou de tudo de antemão. Em suas obras há uma harmonia, uma beleza já preestabelecida. 9. Essa opinião não exclui a providência ou o governo de Deus: pelo contrário, isso o torna perfeito. Uma verdadeira providência de Deus exige uma previsão perfeita, mas requer, além disso, que ele não somente tenha previsto tudo, mas também tenha provido a tudo por meio de convenientes remédios preordenados; caso contrário, ou lhe faltaria sabedoria para prevê-lo, ou poder para prover a isso. Pareceria um Deus sociniano, que vive despreocupado com o amanhã, como dizia Jurieu. É verdade que Deus, segundo os socinianos, não prevê nem os inconvenientes, ao passo que, conforme esses senhores que o obrigam a se corrigir, o que lhe falta é prover. Parece-me, entretanto, que se trata de uma falta muito grande: falta-lhe poder ou boa vontade. 10. Não creio que me possam repreender com razão por ter afirmado que Deus é Inteligência supramundana. Dirão que ele é Inteligência mundana, ou seja, a alma do mundo? Espero que não. Contudo, fariam bem em tomar cuidado para não acabar, sem o querer, pensando assim. 11. A comparação de um rei em cujas terras tudo andaria sem que ele interviesse não vem a propósito; pois que Deus conserva sempre as coisas e elas não poderiam subsistir sem ele: assim seu reino não é nominal. É justamente como se disséssemos ser um rei só de nome aquele que tivesse educado tão bem os seus súditos e os mantivesse tão bem em sua capacidade e boa vontade, não tendo necessidade de os endireitar, devido ao cuidado que tivesse tido para com eles. 12. Enfim, se Deus é obrigado de quando em quando a corrigir as coisas naturais, isso se fará ou sobrenaturalmente ou naturalmente. Se for sobrenaturalmente, cumpre recorrer ao milagre para explicar as coisas naturais, o que é, com efeito, redução de uma hipótese ad absurdum, pois que com os milagres tudo pode ser explicado sem dificuldade. Mas se isso se faz naturalmente, Deus não será Inteligência supramundana: estará abrangido sob a natureza das coisas, isto é, será a alma do mundo. Segunda réplica de Clarke 1. Quando afirmei que os princípios matemáticos da filosofia são contrários aos dos materialistas, quis dizer que, enquanto os materialistas supõem que a estrutura do universo pode ter sido produzida unicamente pelos princípios mecânicos da matéria e do movimento, da necessidade e da fatalidade, os princípios matemáticos da filosofia fazem ver, pelo contrário, que o estado das coisas, bem como a constituição do sol e dos planetas, somente pôde ser produzido por uma causa inteligente e livre. A respeito dos termos "matemático" ou "metafísico", pode uma pessoa chamar, se assim o quiser, os princípios matemáticos de metafísicos visto que as consequências metafísicas nascem demonstrativamente dos princípios matemáticos. É verdade que nada existe sem uma razão suficiente, e que nada existe antes de um modo que do outro, sem que também para isso haja uma razão suficiente; e por conseguinte quando não há nenhuma causa não pode haver efeito algum. Mas essa razão suficiente é muitas vezes a simples vontade de Deus. Por exemplo, se se considera por que certa porção ou sistema de matéria foi criada em certo lugar, e outra em outra parte, pois que sendo toda matéria absolutamente indiferente a qualquer matéria e, portanto, sendo precisamente a mesma coisa no caso inverso (suposto que as duas partes da matéria ou suas partículas sejam semelhantes); se, digo, se considera isso, não se pode aduzir outra razão senão a simples vontade de Deus. E se essa vontade não pudesse jamais atuar sem ser predeterminada por alguma causa, como uma balança não poderia mover-se sem o peso que a faz inclinar-se, Deus não teria a liberdade de escolha, o que seria introduzir a fatalidade. 2. Muitos antigos filósofos gregos, que haviam tirado sua filosofia dos fenícios e cuja doutrina foi corrompida por Epicuro, admitiam em geral a matéria e o vácuo. Mas eles não souberam se servir desses princípios para explicar os fenômenos da natureza mediante a matemática. Por menor que seja a quantidade da matéria, não falta a Deus objeto sobre o qual possa exercer seu poder e sua sabedoria, porque há outras coisas, além da matéria, que constituem também objetos sobre os quais Deus exerce seu poder e sua sabedoria. Poder-se-ia provar, pela mesma razão, que os homens ou qualquer outra espécie de criaturas devem ser infinitos em número, a fim de que não falte a Deus objeto para exercer seu poder e sua sabedoria. 3. O termo "sensório" não significa propriamente o órgão, mas o lugar da sensação. O olho, a orelha, etc., são órgãos, mas não são sensórios. Aliás, o Cavaleiro Newton não diz que o espaço é um sensório, mas que é comparativamente e por assim dizer o sensório, etc. 4. Jamais se supôs que a presença da alma basta para a percepção: somente se disse que essa presença é necessária a fim de que a alma perceba. Se não estivesse presente às imagens das coisas percebidas, a alma não poderia percebê-las; mas sua presença não basta, sendo preciso que essa alma seja também uma substância viva. Com efeito, as substâncias inanimadas, ainda que presentes, não percebem nada. Por seu lado, uma substância viva não é capaz de percepção senão no lugar em que está presente, seja presente às próprias coisas, como Deus em relação a todo o universo, seja presente às imagens das coisas, como a alma lhes está presente no sensório. É impossível que uma coisa opere, ou que algum objeto atue sobre ela, num lugar em que ela não está presente, como é impossível que ela esteja num lugar em que não está. Conquanto a alma seja indivisível, não se segue que não esteja presente senão em um único ponto. O espaço finito ou infinito é absolutamente indivisível, mesmo pelo pensamento, porque não se pode imaginar que suas partes se separam uma da outra, sem imaginar que saem por assim, dizer fora de si mesmas; e, entretanto. o espaço não é um simples ponto. 5. Deus não percebe as coisas por sua simples presença, nem porque age sobre elas, mas porque, além de presente em toda parte, é também um ser vivo e inteligente. Deve dizer-se a mesma coisa da alma em sua pequena esfera. Não é por sua simples presença. e sim por ser uma substância viva que ela percebe as imagens às quais está presente, e que não poderia perceber sem lhes estar presente. 6 e 7. É verdade que a excelência da obra de Deus não consiste somente em fazer ver, nessa obra, o poder de seu autor mas também em mostrar sua sabedoria. Mas Deus não faz aparecer essa sabedoria tornando a natureza capaz de se mover sem ele, como um relojoeiro faz mover-se um relógio. Isso é impossível, visto que não há forças na natureza que sejam independentes de Deus como as forças dos pesos e das molas são independentes dos homens. A sabedoria de Deus consiste, pois, em que tenha formado, desde o começo, uma ideia perfeita e completa de uma obra que ele começou e que subsiste sempre de acordo com essa ideia, pelo exercício perpétuo do poder e do governo de seu autor. 8. A palavra "correção" ou "reforma" não deve ser entendida em relação a Deus, mas unicamente em relação a nós. O estado presente do sistema solar, p. ex., segundo as leis do movimento agora estabelecidas, entrará um dia em confusão e em seguida será talvez emendado ou então receberá uma nova forma. Essa mudança, porém, é apenas relativa, de- acordo com nosso modo de conhecer as coisas. O estado presente do mundo, a desordem em que ele cairá e a renovação que se lhe seguirá entram igualmente no desígnio de Deus. Com a formação do mundo passa-se o mesmo que com a formação do corpo humano. A sabedoria de Deus não consiste em torná-los eternos, mas em fazê-los durar o tempo que julga apropriado. 9. A sabedoria e a presciência de Deus não consistem em preparar de antemão remédios que curem por si mesmos as desordens da natureza, porque, propriamente falando, não acontece no mundo desordem alguma em relação a Deus, e, por consequência, não existem remédios, não existem mesmo forças naturais agindo por si, como os pesos e as molas atuam sozinhos em relação aos homens. A sabedoria e a presciência de Deus, porém, consistem, como acima ficou dito, em formar desde o princípio um desígnio que seu poder executa continuamente. 10. Deus não é uma Inteligência mundana nem uma Inteligência supramundana, mas uma Inteligência que está em toda parte no mundo e fora do mundo. Está em tudo, por toda a parte e acima de tudo. 11. Quando se diz que Deus conserva as coisas, se se pretende afirmar com isso que ele age atualmente sobre elas e as governa, conservando e continuando os seres, as forças, os arranjos e os movimentos delas, é precisamente o que sustento. Mas se se quer dizer simplesmente que Deus, ao conservar as coisas, parece um rei que criasse os súditos capazes de operar sem que ele tivesse parte alguma no que se passasse entre eles; se é isso, digo, o que se quer dizer, Deus será um verdadeiro criador, mas não terá o título de governador. 12. O raciocínio que aí se encontra supõe que tudo o que Deus faz é sobrenatural e miraculoso. Tende, por conseguinte, a excluir Deus do governo atual do mundo. Mas é certo que o natural e o sobrenatural não diferem em nada um do outro em relação a Deus: são somente distinções segundo nossa maneira de conceber as coisas. Dar um movimento regulado ao sol (ou à terra) é uma coisa que chamamos natural; fazer parar esse movimento durante um dia, é uma coisa sobrenatural conforme nossas ideias. Mas esta última coisa não é o efeito de uma potência maior que a outra; e, com relação a Deus, ambas são igualmente naturais ou sobrenaturais. Embora Deus esteja presente em todo o universo, não se segue que ele seja a alma do mundo. A alma humana é uma parte de um composto de que o corpo é a outra parte; e essas duas partes atuam mutuamente uma sobre a outra, como sendo as partes de um mesmo todo. Deus, porém, está no mundo, não como uma parte do universo, mas como um governante. Age sobre tudo, e nada age sobre ele. Não está longe de cada um de nós, porque nele nós (e todas as coisas que existem) temos a vida, o movimento e o ser. Terceira carta de Leibniz, ou resposta à segunda réplica de Clarke 1. De acordo com o modo ordinário de falar, os princípios matemáticos são aqueles que consistem na matemática pura, como números, aritmética, geometria. Mas os princípios metafísicos dizem respeito a noções mais gerais, como a causa e o efeito. 2. Concedem-me esse princípio importante que nada acontece sem que haja uma razão suficiente para que seja antes assim que de outra maneira. Concedem-mo, porém, em palavras, e recusam-mo na realidade; o que faz ver que não compreenderam bem toda sua força. E para isso se servem de uma de minhas demonstrações contra o espaço real absoluto, ídolo de alguns ingleses modernos. Digo ídolo, não no sentido teológico, mas filosófico, como o Chanceler Bacon dizia outrora que existem ídolos da tribo e ídolos da caverna (idola tribus, idola specus). 3. Esses senhores asseveram, pois, que o espaço é um ser real absoluto; mas isso os leva a grandes dificuldades, porque, nesse caso, parece que esse ente deve ser eterno e infinito. Eis por que houve os que acreditaram ser ele o próprio Deus, ou então seu atributo, i. e., sua imensidade. Mas, como o espaço tem partes, não é uma coisa que possa convir a Deus. 4. Quanto a mim, deixei assentado mais de uma vez que, a meu ver, o espaço é algo puramente relativo, como o tempo; a saber, na ordem das coexistências, como o tempo na ordem das sucessões. De fato, o espaço assinala em termos de possibilidade uma ordem das coisas que existem ao mesmo tempo, enquanto existem junto, sem entrar em seu modo de existir. E quando se veem muitas coisas junto, percebe-se essa ordem das coisas entre si. 5. Para refutar a imaginação dos que julgam o espaço uma substância, ou ao menos algum ser absoluto, tenho várias demonstrações, mas não quero me servir aqui senão daquela de que me fornecem ocasião. Digo, portanto, que, se o espaço fosse um ser absoluto, sucederia alguma coisa de que seria impossível possuir uma razão suficiente, o que é ainda nosso axioma. Eis como o provo. O espaço é algo absolutamente uniforme; e, sem as coisas postas nele, um ponto do espaço não difere absolutamente nada de outro ponto. Ora, disso se segue (suposto que o espaço seja alguma coisa em si mesmo fora da ordem dos corpos entre si) ser impossível que haja uma razão por que Deus, conservando as mesmas situações dos corpos entre si, os tenha colocado assim e não de outro modo, e por que tudo não se fez ao contrário (por exemplo), trocando-se o Oriente e o Ocidente. Mas, se o espaço não é mais que essa ordem ou relação, e não é, sem os corpos, senão a possibilidade de aí os pôr, esses dois estados, tal como é, e o outro suposto ao contrário, não difeririam entre si. A diferença deles não se encontra, pois, senão em nossa suposição quimérica da realidade do espaço em si mesmo. Mas, na verdade, um seria justamente a mesma coisa que o outro, como são absolutamente indiscerníveis; e, por conseguinte, não se poderá perguntar a razão de se preferir um ao outro. 6. O mesmo se dá com o tempo. Supondo-se que alguém pergunte por que Deus não criou um ano antes, e que essa mesma pessoa queira inferir daí que Deus fez alguma coisa de que não é possível haver uma razão pela qual a fez assim antes que de outra maneira, responder-lhe-íamos que sua inferência seria verdadeira se o tempo fosse algo fora das coisas temporais. De fato, seria impossível haver razões pelas quais as coisas tivessem sido aplicadas antes a tais instantes que a outros, ficando igual sua sucessão. Isso mesmo, entretanto, prova que os instantes não são nada fora das coisas, e não consistem senão em sua ordem sucessiva. Ficando essa igual, um dos dois estados, como o da antecipação imaginada, não diferiria em nada e não poderia ser discernido daquele que existe agora. 7. Por tudo o que acabo de dizer, vê-se que meu axioma não foi bem compreendido, e que, parecendo concedê-lo, recusam-no. É verdade, diz-se, que não há nada sem uma razão suficiente pela qual é, e pela qual é assim antes que de outro modo, mas acrescenta-se que essa razão suficiente é muitas vezes a simples vontade de Deus, como quando se pergunta por que a matéria não foi posta de outra forma no espaço, guardadas as mesmas situações entre os corpos. Mas isso é precisamente afirmar que Deus quer alguma coisa sem que haja nenhuma razão suficiente de sua vontade, contra o axioma ou a regra geral de tudo o que acontece. É recair na indiferença vaga, que demonstrei absolutamente quimérica, até nas criaturas, e contrária à sabedoria de Deus, como se ele pudesse operar sem ser pela razão. 8. Objetam-me que não admitir essa simples vontade equivaleria a tirar a Deus o poder de escolha e cair na fatalidade. Mas, muito pelo contrário, afirma-se em Deus o poder de escolher, pois que se funda esse poder na razão da escolha conforme sua sabedoria. E não é essa fatalidade (ou seja, a ordem mais sábia da Providência), mas uma fatalidade ou necessidade bruta, onde não há nem sabedoria nem escolha, que se deve evitar. 9. Eu observara que, ao diminuir a quantidade da matéria, a gente diminui a quantidade dos objetos em que Deus pode exercer sua bondade. Respondem-me que em lugar da matéria existem outras coisas no vácuo, onde Deus não deixa de exercê-la. Seja, conquanto eu não esteja de acordo, porque sou de opinião que toda substância criada é acompanhada de matéria; seja, digo: respondo que mais matéria seria compatível com essas mesmas coisas, e, por conseguinte, é sempre diminuir o citado objeto. A objeção de um maior número de homens ou de animais não vem a propósito, pois tirariam o lugar de outras coisas. 10. Será difícil fazer-nos crer que no uso comum "sensório" não significa o órgão da sensação. Eis as palavras de Rodolfo Goclênio, em seu Dicionário Filosófico, no verbete sensitorium: "Os bárbaros escolásticos, que às vezes macaqueiam os gregos..., fizeram sensitório de sensório, i. e., órgão da sensação". 11. A simples presença de uma substância, ainda que animada, não basta para a percepção. Um cego, e até um distraído não vê. É preciso explicar como a alma percebe o que está fora dela. 12. Deus não está presente às coisas por situação, mas por essência; sua presença manifesta-se por sua operação imediata. A presença da alma é de uma natureza completamente diversa. Dizer que ela se difunde pelo corpo é torná-la extensa e divisível; dizer que está toda inteira em cada parte de algum corpo é torná-la divisível por si mesma. Ligá-la a um ponto, estendê-la por vários pontos são todas expressões abusivas, ídolos da tribo (idola tribus). 13. Se a força ativa se perdesse no universo pelas leis naturais estabeleci das por Deus, de sorte que ele tivesse necessidade de uma nova impressão para restituir essa força, como um operário que repara a imperfeição de sua máquina, a desordem não vigoraria apenas a nosso respeito, mas também em relação ao próprio Deus. Ele poderia preveni-la e tomar as medidas adequadas para evitar semelhante inconveniente: foi o que fez de fato. 14. Quando eu disse que Deus opôs antecipadamente remédios a tais desordens, não afirmei que deixa acontecer as desordens e depois os remédios, mas que, de antemão, achou o meio de impedir que as desgraças aconteçam. 15. Em vão se esforçam por criticar minha expressão: Deus é Inteligência supramundana. Ao dizer que está acima do mundo, não negamos que está no mundo. 16. Jamais dei pretexto a se duvidar de que a conservação divina é uma preservação e continuação atual dos seres, poderes, ordens, disposições e noções; e creio tê-lo talvez explicado melhor que muitos outros. Mas, dirão, This is ali that I contended for: é nisso que consiste toda a discussão. Ao que, humílimo servidor, respondo que nossa disputa consiste em muitas outras coisas. A questão é: não opera Deus do modo mais regular e mais perfeito? Sua máquina é capaz de cair nas desordens, que ele se vê obrigado a consertar por vias extraordinárias? A vontade de Deus é capaz de agir sem razão? O espaço é um ser absoluto? Qual a natureza do milagre, e muitas outras questões semelhantes, que estabelecem uma grande separação. 17. Os teólogos não estarão de acordo com a tese que enunciam contra mim, a saber, que não há diferença, quanto a Deus, entre o natural e o sobrenatural. A maioria dos filósofos a aprovarão ainda menos. Existe uma diferença infinita, mas parece que não a consideraram. O sobrenatural supera todas as forças das criaturas. É preciso dar um exemplo. Eis um que empreguei muitas vezes com bom resultado: se Deus quisesse fazer que um corpo livre andasse no éter em linha circular, ao redor de certo centro fixo, sem que nenhuma outra criatura agisse sobre ele, digo que isso não seria possível senão por milagre, não sendo explicável pelas naturezas dos corpos. Com efeito, um corpo livre se afasta naturalmente da linha curva pela tangente. É assim que sustento que a atração, propriamente dita, dos corpos é uma coisa milagrosa, não podendo ser explicada pela natureza. Terceira réplica de Clarke 1. O que se assevera aqui não diz respeito senão à significação de certas palavras. Podem admitir-se as definições que se encontram aqui, mas isso não impedirá que se possam aplicar os raciocínios matemáticos a assuntos físicos e metafísicos. 2. É indubitável que nada existe sem que haja uma razão suficiente de sua existência; e que nada existe de um modo antes que do outro, sem haver também uma razão suficiente desse modo de existir. Mas, em relação às coisas que são indiferentes em si mesmas, a simples vontade é uma razão suficiente para lhes dar a existência, ou para as fazer existir de certo modo; e essa vontade não precisa ser determinada por uma causa estranha. Vejamos exemplos do que acabo de dizer. Quando Deus criou ou colocou uma partícula de matéria num lugar antes que em outro, embora todos os lugares sejam semelhantes, não teve nenhuma outra razão senão sua vontade. E, supondo-se que o espaço não seja nada de real, mas somente uma simples ordem dos corpos, a vontade de Deus não deixaria de ser a única razão possível pela qual três partículas iguais tivessem sido postas ou arrumadas na ordem A, B, C, antes que numa ordem contrária. Não se poderia, pois, tirar dessa indiferença dos lugares nenhum argumento que provasse que não há espaço real, porque os diferentes espaços são realmente distintos um do outro, ainda que perfeitamente semelhantes. De resto, supondo-se que o espaço não é real, mas simplesmente a ordem e o arranjo dos corpos, seguir-se-á um absurdo palpável. De fato, segundo essa ideia, se a terra, o sol e a lua tivessem sido colocados onde se acham presentemente as mais afastadas estrelas fixas (contanto que fossem colocados na mesma ordem e com a mesma distância um do outro), não somente teria sido a mesma coisa (como o diz muito bem o sábio autor), mas ainda seguir-se-ia que a terra, o sol e a lua estariam nesse caso no mesmo lugar em que estão atualmente, o que é uma contradição manifesta. Os antigos não disseram que todo espaço destituído de corpo é um espaço imaginário: somente deram esse nome ao espaço que está além do mundo. E não quiseram dizer com isso que esse espaço não é real, mas apenas que ignoramos inteiramente que espécies de coisas existem nesse espaço. Acrescento que os autores que às vezes empregaram a palavra "imaginário" para indicar que o espaço não é real não provaram o que afirmavam pelo simples uso desse termo. 3. O espaço não é uma substância, um ser eterno e infinito, mas uma propriedade, ou uma sequela de existência de um ser infinito e eterno. O espaço infinito é a imensidade; ora, a imensidade não é Deus; logo, o espaço infinito não é Deus. O que neste ponto se diz das partes do espaço não é uma dificuldade. O espaço infinito é absoluta e essencialmente indivisível: e é uma contradição nos termos que seja dividido, porque seria necessário haver um espaço entre as partes que se supõem divididas, o que é supor que é e não é dividido ao mesmo tempo. Ainda que Deus seja imenso ou presente em todo lugar, sua substância não é, entretanto, mais dividida em partes que sua existência o é pela duração. A dificuldade que se levanta aqui vem unicamente do abuso da palavra "parte". 4. Se o espaço não fosse senão a ordem das coisas que coexistem, seguir-se-ia que, se Deus fizesse o mundo inteiro mover-se em linha reta, com qualquer grau de velocidade, este não deixaria de estar sempre no mesmo lugar, e que nada sofreria algum choque, ainda que esse movimento fosse sustado de repente. E se o tempo não fosse mais que uma ordem de sucessão nas criaturas, seguir-se-ia, que, se Deus tivesse criado o mundo alguns milhões de anos antes, este não teria, entretanto, sido criado antes. Ademais, o espaço e o tempo são quantidades que não se podem atribuir à situação e à ordem. 5. Aqui se pretende que, sendo o espaço uniforme ou perfeitamente semelhante, e não diferindo nenhuma de suas partes da outra, segue-se que, se os corpos que foram criados em certo lugar tivessem sido criados em outro (dado que conservassem a mesma situação entre si), não deixariam de ter sido criados no mesmo lugar. Mas é uma contradição manifesta. É verdade que a uniformidade do espaço prova que Deus não pôde ter nenhuma razão externa para criar as coisas num lugar, de preferência a outro: isso, porém, não impede que sua vontade tenha sido uma razão suficiente para agir no lugar que for; pois que todos os lugares são indiferentes ou semelhantes, e que há uma boa razão para agir em algum lugar. 6. O mesmo raciocínio de que me servi no número precedente, tem cabimento aqui. 7 e 8. Quando existe alguma diferença na natureza das coisas, a consideração dessa diferença determina sempre um agente inteligente e sapientíssimo. Mas, quando dois modos de atuar são igualmente bons, como nos casos acima citados, dizer que Deus não poderia operar de modo algum e que não é uma imperfeição não poder agir num caso assim, porque Deus não pode ter nenhuma razão externa para atuar de certa maneira mais que de outra, dizer tal coisa é insinuar que Deus não possui em si mesmo um princípio de ação, sendo sempre, por assim dizer, maquinalmente determinado pelas coisas de fora. 9. Suponho que a quantidade determinada de matéria que existe atualmente no mundo é a mais conveniente ao estado presente das coisas, e que uma quantidade maior (bem como uma menor) teria sido menos conveniente ao estado atual do mundo, e, por conseguinte, não teria sido um maior objeto da bondade de Deus. 10. Não se trata de saber o que Goclênio entende pelo termo "sensório", mas em que sentido o Cavaleiro Newton se serviu dele em seu livro. Se Goclênio crê que o olho, a orelha ou algum outro órgão dos sentidos é o sensório, engana-se. Mas quando um autor usa um termo técnico e declara em que sentido o toma, não há razão para investigar como outros escritores entenderam o mesmo vocábulo. Escápula traduziu a palavra de que se trata aqui como "domicilium ", ou seja, o lugar em que a alma reside. 11. A alma de um cego não vê, porque certas obstruções impedem as imagens de serem levadas ao sensório, onde ela está presente. Não sabemos como a alma de um homem que vê percebe as imagens a que não está presente, porque um ser não poderia agir nem receber impressões num lugar em que ele não se encontra. 12. Estando em toda parte, Deus está agora presente a todos, essencial e substancialmente. É verdade que a presença de Deus se manifesta por sua operação, mas essa operação seria impossível sem a presença atual de Deus. A alma não está presente a cada parte do corpo, não agindo, portanto, e não podendo agir por si mesma sobre todas as partes do corpo, mas somente sobre o cérebro ou sobre certos nervos e sobre os espíritos que atuam sobre todo o corpo, em virtude das leis do movimento estabelecidas por Deus. 13 e 14. Conquanto as forças ativas que estão no universo diminuam e tenham necessidade de uma nova impressão, não se trata de uma desordem nem de uma imperfeição na obra de Deus; é apenas uma consequência da natureza das criaturas, que estão na dependência. Essa dependência não é uma coisa que precise ser retificada. O exemplo que se dá de um homem que faz uma máquina não tem nenhuma relação com o assunto de que se trata aqui, porque as forças em virtude das quais essa máquina continua a se mover são inteiramente independentes do trabalhador. 15. Podem admitir-se as palavras Inteligência supramundana da maneira como o autor as explica aqui. Sem essa explicação, porém, poderiam facilmente fazer nascer uma falsa ideia, como se Deus não estivesse real e substancialmente presente em toda parte. 16. Respondo às questões aqui propostas: que Deus age sempre do modo mais regular e mais perfeito, que não há desordem alguma em sua obra, que as transformações feitas por ele no estado presente da natureza não são mais extraordinárias que o cuidado em conservar esse estado, que, quando as coisas são em si mesmas absolutamente iguais e indiferentes, a vontade de Deus pode determinar-se livremente quanto à escolha sem que nenhuma causa estranha: o faça agir, e que o poder que Deus tem de agir dessa maneira é uma verdadeira perfeição. Enfim, respondo que o espaço não depende da ordem, da situação ou da existência dos corpos. 17. A respeito dos milagres, não se trata de saber o que os teólogos ou os filósofos costumam dizer sobre esse ponto, mas sim sobre que razões apoiam seus pareceres. Se um milagre é sempre uma ação que ultrapassa o poder de todas as criaturas, temos que, se um homem anda sobre a água e se o movimento do sol (ou da terra) é detido, não estamos diante de um milagre, visto que essas duas coisas podem ser feitas sem a intervenção de um poder infinito. Se um corpo se move ao redor de um centro no vácuo, se esse movimento é uma coisa comum, como o dos planetas ao redor do sol, não haverá milagres, quer esse movimento seja produzido imediatamente pelo próprio Deus, quer seja produzido por alguma criatura. Mas, se esse movimento ao redor de um centro é raro e extraordinário, como seria o de um corpo pesado, suspenso no ar, será igualmente um milagre, quer esse movimento seja produzido pelo próprio Deus, quer por uma criatura invisível. Enfim, se tudo o que não é o efeito das forças naturais dos corpos e que não se poderia explicar por essas forças é um milagre, seguir-se-á que todos os movimentos dos animais são milagres. Isso parece provar demonstrativamente que o sábio autor tem uma falsa ideia da natureza do milagre. Quarta carta de Leibniz, ou resposta à terceira réplica de Clarke 1. Nas coisas absolutamente indiferentes, não há escolha e por conseguinte nem eleição nem vontade, pois que a escolha deve ter alguma razão ou princípio. 2. Uma simples vontade sem nenhum motivo (a mere will) é uma ficção não somente contrária à perfeição de Deus, mas ainda quimérica, contraditória, incompatível com a definição da vontade e assaz refutada na Teodiceia. 3. É indiferente dispor três corpos iguais, e em tudo semelhantes, em qualquer ordem que se queira, e por conseguinte não serão jamais dispostos por aquele que nada faz senão com sabedoria. Mas também, sendo ele o autor das coisas, não os produzirá, e portanto não existem na natureza. 4. Não há dois indivíduos indiscerníveis. Um engenhoso gentil-homem de minhas relações, falando comigo na presença de Mme. a Eleitora no jardim de Herrenhausen, achou que seria fácil encontrar duas folhas totalmente semelhantes. Mme. a Eleitora desafiou-o a que o provasse, e ele em vão andou por muito tempo à procura. Duas gotas de água ou de leite, vistas no microscópio, mostrar-se-ão discerníveis. É um argumento contra os átomos, não menos impugnados que o vácuo pelos princípios da verdadeira metafísica. 5. Esses grandes princípios da razão suficiente e da identidade dos indiscerníveis mudam o estado da metafísica, que por meio deles se torna real e demonstrativa, ao passo que outrora consistia quase que só em termos vazios. 6. Por duas coisas indiscerníveis é admitir a mesma coisa sob dois nomes. Assim a hipótese de que o universo poderia ter tido primeiro outra posição temporal e local do que a que aconteceu efetivamente, e que entretanto todas as suas partes teriam a mesma posição relativa que a recebida com efeito, é uma ficção impossível. 7. A mesma razão que faz com que o espaço fora do mundo seja imaginário prova que todo espaço vazio é uma coisa imaginária, porque entre eles a única diferença é a que vai entre o grande e o pequeno. 8. Se o espaço é uma propriedade ou um atributo, deve ser a propriedade de alguma substância. Ora, o espaço vazio limitado, que seus partidários admitem entre dois corpos, de que substância seria a propriedade ou afecção? 9. Se o espaço infinito é a imensidade, o espaço finito será o oposto da imensidade, ou seja, a mensurabilidade ou a extensão limitada. Ora, a extensão deve ser a afecção de um ser extenso. Mas se esse espaço é vazio, tratar-se-á de um atributo sem sujeito, uma extensão de nenhum extenso. Eis por que, fazendo do espaço uma propriedade, recai-se na minha opinião, que o faz uma ordem das coisas e não alguma coisa absoluta. 10. Se o espaço é uma realidade absoluta, longe de ser uma propriedade ou acidentalidade oposta à substância, será mais subsistente do que as substâncias. Deus não o poderia destruir, nem mesmo mudá-lo em nada. Ele é não somente imenso no todo, mas ainda imutável e eterno em cada parte. Haverá uma infinidade de coisas eternas fora de Deus. 11. Dizer que o espaço infinito não tem partes equivale à afirmação de que os espaços finitos não o compõem. E dizer que o espaço infinito poderia subsistir quando todos os espaços finitos fossem reduzidos a nada, seria como se se asseverasse (na suposição cartesiana de um universo corporal extenso sem limites) que esse universo poderia subsistir ainda que todos os corpos que o compõem fossem reduzidos a nada. 12. Atribuem-se partes ao espaço, à pág. 19, 3ª ed. da Défense de l'Argument contre M. Dodwell, e fazem-nas inseparáveis uma da outra. Mas à pág. 30 da segunda Défense são consideradas partes impropriamente ditas; isso se pode entender num bom sentido. 13. Dizer que Deus faz adiantar-se o universo em linha reta ou outra qualquer sem nada mudar nele é ainda uma suposição quimérica. De fato, dois estados indiscerníveis são o mesmo estado, e por conseguinte é uma mudança que não muda nada. Além disso, é uma coisa sem pé nem cabeça (sem nenhuma razão). Ora, Deus não faz nada sem razão, e é impossível que aqui haja alguma. De resto, seria agendo nihil agere (agindo, não fazer nada), como acabo de dizer, por causa da indiscernibilidade. 14. Trata-se de idola tribus (ídolos da tribo), puríssimas quimeras e superficiais imaginações. Tudo isso somente se funda na suposição de que o espaço imaginário é real. 15. É uma ficção semelhante, i. e., impossível supor que Deus tenha criado o mundo alguns milhões de anos antes. Os que se perdem em semelhantes ficções não saberiam responder aos que argumentassem a favor da eternidade do mundo. Com efeito, não fazendo Deus nada sem razão e não se podendo apontar nenhuma por que não criou o mundo antes, concluir-se-á que, ou ele não criou nada absolutamente, ou produziu o mundo antes de qualquer tempo assinalável, a saber, o mundo é eterno. Mas quando se mostra que o começo, qualquer que seja, é sempre a mesma coisa, cessa a questão de saber por que não foi de outro modo. 16. Se o espaço e o tempo fossem absolutos, isto é, se não fossem senão certa ordem das coisas, o que afirmo seria contraditório. Não sendo, porém, assim, a hipótese é contraditória, ou seja, é uma ficção impossível. 17. E é como na geometria, onde se prova às vezes pela própria suposição que uma figura é maior. É uma contradição, mas que está na hipótese, a qual por isso mesmo se verifica ser falsa. 18. A uniformidade do espaço faz com que não haja razão alguma, nem interna, nem externa, para discutir suas partes e fazer uma escolha entre elas. De fato, essa razão externa de discernir não poderia fundar-se senão na interna: caso contrário, seria escolher sem discernir. A vontade sem razões seria o acaso dos epicuristas. Um Deus que operasse por meio de uma vontade dessa seria um Deus só de nome. A fonte destes erros está em que não se tem o cuidado de evitar o que derroga às perfeições divinas. 19. Quando duas coisas incompatíveis são igualmente boas, e tanto nelas como em sua combinação com outras, uma não sobrepuja em valor a outra, Deus não produzirá nenhuma. 20. Deus não é jamais determinado pelas coisas externas, mas sempre por aquilo que está nele, por seus conhecimentos, antes da existência de qualquer coisa fora dele. 21. Não há razão possível que possa limitar a quantidade da matéria. Por isso, essa limitação não poderia efetuar-se. 22. Mesmo supondo-se essa limitação arbitrária, poder-se-ia sempre adicionar algo sem suprimir a perfeição das coisas que já existem: e por conseguinte dever-se-á juntar sempre alguma coisa para agir conforme o princípio da perfeição das operações divinas. 23. Assim não se poderia dizer que a presente quantidade de matéria é a mais conveniente para sua atual constituição. E mesmo que tal fosse, seguir-se-ia que essa atual constituição das coisas não seria absolutamente a mais conveniente, se impedisse empregar mais matéria; seria então preciso escolher outra, capaz de alguma coisa mais. 24. Eu gostaria de ver a passagem de um filósofo que tome "sensório" de outro modo do que o faz Goclênio; 25. Se Escápula diz que sensório é o lugar em que reside o entendimento, tomá-lo-á como órgão da sensação interna. Assim não se afastará de Goclênio. 26. Sensório foi sempre o órgão da sensação. A glândula pineal seria, segundo Descartes, o sensório no sentido que se atribui a Escápula. 27. Quase não há expressão menos conveniente sobre esse assunto que a que dá a Deus um sensório. Parece que ela faz dele a alma do mundo. E seria bem difícil dar ao uso que Newton faz do vocabulário um sentido que o possa justificar. 28. Embora se tratando do significado de Newton e não do de Goclênio, não me devem censurar por ter citado o Dicionário Filosófico deste autor, porque o intuito dos dicionários é anotar o uso dos termos. 29. Deus percebe as coisas em si mesmo. O espaço é o lugar das coisas e não o lugar das ideias de Deus: a menos que se considere o espaço como algo que faça a união entre Deus e as coisas, imitando a união, tal como se imagina, entre a alma e o corpo; o que faria ainda de Deus a alma do mundo. 30. Por isso mesmo não se tem razão em comparar o conhecimento e a operação de Deus com a das almas. As almas conhecem as coisas, porque Deus colocou nelas um princípio representativo do que está fora delas, ao passo que Deus conhece as coisas por produzi-las continuamente. 31. A meu ver, as almas não operam sobre as coisas senão porque os corpos se acomodam a seus desejos em virtude da harmonia preestabelecida por Deus. 32. Mas aqueles que imaginam que as almas podem dar uma nova forma ao corpo, e que Deus faz o mesmo no mundo a fim de reparar os defeitos da máquina, aproximam excessivamente Deus da alma, dando demais à alma e muito pouco a Deus. 33. Com efeito, só Deus, pode dar à natureza novas forças; mas ele não o faz senão sobrenaturalmente. Se tivesse necessidade de fazê-lo no curso natural, ele teria produzido uma obra muito imperfeita. Pareceria no mundo ao que o vulgo atribui à alma no corpo. 34. Querendo sustentar essa opinião vulgar da influência da alma sobre o corpo mediante o exemplo de Deus operando para fora, faz-se ainda com que Deus pareça com a alma no mundo. Até a ideia de censurar minha expressão Inteligência supramundana parece tender a isso. 35. As imagens que afetam a alma imediatamente estão nela mesma, mas correspondem às do corpo. A presença da alma é imperfeita, e não pode ser explicada senão por essa correspondência, mas a de Deus é perfeita, e se manifesta por sua operação. 36. Erradamente supõem contra mim que a presença da alma está ligada à sua influência sobre o corpo, pois é sabido que rejeito essa influência. 37. É tão inexplicável dizer que a alma se difunde pelo cérebro, como afirmar que se difunde pelo corpo inteiro. A diferença consiste apenas no mais e no menos. 38. Os que imaginam que as forças ativas diminuem por si mesmas no mundo não conhecem bem as principais leis da natureza e da beleza das obras de Deus. 39. Como é que provarão que esse defeito é um resultado da dependência das coisas? 40. Esse defeito de nossas máquinas, que faz com que precisem ser reparadas, provém do fato de não serem bastante dependentes do trabalhador. Assim a dependência de Deus que existe na natureza, longe de produzir esse defeito, é antes causa de que não exista, visto que é tão dependente de um trabalhador perfeitíssimo, incapaz de produzir uma obra necessitada de reparos. É verdade que toda máquina particular da natureza está sujeita de algum modo a estragos, mas não o universo inteiro, que não poderia diminuir em perfeição. 41. Afirma-se que o espaço não depende da situação dos corpos. Respondo ser verdade que ele não depende de tal situação dos corpos, mas que é essa ordem que faz com que os corpos sejam situáveis e pela qual eles têm uma situação entre si ao existirem juntos, como o tempo é essa ordem com referência à posição sucessiva dos mesmos. Se não houvesse, porém, criaturas, o espaço e o tempo não existiriam senão nas ideias de Deus. 42. Aqui se confessa, ao que parece, que a ideia que se faz do milagre não é a que os teólogos e os filósofos comumente têm. Basta-me, pois, que meus adversários se vejam obrigados a recorrer ao que se chama milagre no uso corrente. 43. Receio que, querendo-se mudar o sentido tradicional de milagre, se caia num sentimento incômodo. A natureza do milagre não consiste de forma alguma em ser ele usual ou inusitado; caso contrário, os monstros seriam milagres. 44. Há milagres de uma espécie inferior, que um anjo pode produzir, porque pode, por exemplo, fazer com que um homem ande sobre a água sem afundar. Mas existem milagres reservados a Deus e que ultrapassam todas as forças naturais, como o de criar ou de aniquilar. 45. É também sobrenatural o fato de se atraírem os corpos de longe, sem intermédio algum, e de ir um corpo em círculo, sem se afastar pela tangente, ainda que nada o impedisse. De fato, esses efeitos não são de modo algum explicáveis pela natureza das coisas. 46. Por que a noção dos animais não seria explicável pelas forças naturais? É verdade que o começo dos animais é tão inexplicável por meio delas quanto o começo do mundo. Anexo Todos os que são a favor do vácuo se deixam levar mais pela imaginação que pela razão. Quando eu era rapazinho, admitia também o vácuo e os átomos, mas a razão me fez ver o erro. A imaginação era encantadora. Limitam-se a ela as investigações; fixa-se a meditação como com um prego; crê-se ter achado os primeiros elementos, um non plus ultra (não além). Quereríamos que a natureza não passasse além, que fosse finita com o nosso espírito; mas é ignorar a grandeza e a majestade do Autor das coisas. O menor corpúsculo é atualmente subdividido ao infinito, contendo um mundo de novas criaturas, que faltariam ao universo se esse corpúsculo fosse um átomo, isto é, um corpo todo sem subdivisão. Da mesma forma, afirmar o vácuo na natureza é atribuir a Deus uma produção muito imperfeita; é violar o grande princípio da necessidade de uma razão suficiente, que muitos tiveram na boca, mas sem reconhecer-lhe a força. Foi o que demonstrei ultimamente, fazendo ver por esse princípio que o espaço não é senão uma ordem das coisas, como o tempo, e de modo algum um ser absoluto. Sem falar de muitas outras razões contra o vácuo e os átomos, eis as que tiro da perfeição de Deus e da razão suficiente. Ponho como princípio que toda perfeição que Deus pode introduzir nas coisas, sem prejuízo das outras perfeições existentes nelas, foi causada. Ora, imaginemos um espaço inteiramente vazio. Deus podia pôr nele alguma matéria, sem derrogar em nada a todas as outras coisas; portanto, ele o fez: logo, não existe espaço inteiramente vazio e, por conseguinte, o espaço todo está cheio. O mesmo raciocínio prova que não há corpúsculo que não seja subdividido. Eis ainda outro raciocínio tirado da necessidade de uma razão suficiente. Não é possível haver um princípio que determine a proporção da matéria, quer do pleno ao vazio, quer do vazio ao pleno. Dir-se-ia talvez que um deve ser igual ao outro; mas, como a matéria é mais perfeita que o vácuo, a razão exige que se observe a proporção geométrica, e que haja tanto mais pleno quanto mereça ser preferido. Mas, sendo assim, não haverá vácuo em absoluto, porque a perfeição da matéria está para a do vácuo como alguma coisa para nada. O mesmo se diga dos átomos. Com efeito, que razão se poderia aduzir para limitar a natureza no progresso da subdivisão? Ficções puramente arbitrárias e indignas da verdadeira filosofia. As razões proferidas a favor do vácuo são meros sofismas. Quarta réplica de Clarke 1 e 2. A doutrina que se encontra aqui leva à necessidade e à fatalidade, supondo-se que os motivos são os mesmos em relação à vontade de um agente inteligente que os pesos em relação a uma balança; de sorte que, quando duas coisas são absolutamente indiferentes, um agente dotado de inteligência não pode escolher uma ou outra, como uma balança não pode se mover quando os pesos são iguais dos dois lados. Eis, porém, em que consiste a diferença. Uma balança não é um agente: é inteiramente passiva, e os pesos agem sobre ela de tal forma que, quando são iguais, nada há que a possa mover. Mas os seres inteligentes são agentes: não são simplesmente passivos, e os motivos não atuam sobre eles como os pesos sobre uma balança. São seres que têm forças ativas, agindo às vezes por motivos poderosos, outras vezes por motivos fracos, e outras vezes ainda quando as coisas são absolutamente indiferentes. Neste último caso, pode haver muito boas razões para agir, ainda que duas ou mais maneiras de agir possam ser em absoluto indiferentes. O sábio autor supõe sempre o contrário, com um princípio, mas nunca apresenta nenhuma prova tirada da natureza das coisas ou das perfeições de Deus. 3 e 4. Se o raciocínio que se acha aqui estivesse bem fundamentado, provaria que Deus não criou nenhuma matéria, ou até que é impossível que a pudesse criar. De fato, as partes de matéria (qualquer que seja) que são perfeitamente sólidas são também perfeitamente semelhantes, se forem figuras de dimensões iguais, o que se pode sempre supor como uma coisa possível. Essas partes de matéria bem poderiam, portanto, ocupar igualmente outro lugar que aquele que ocupam, e por consequência seria impossível, segundo o raciocínio do sábio autor, que Deus as colocasse onde as pôs atualmente, porque teria podido com a mesma facilidade colocá-las ao contrário. É verdade que não se poderiam achar duas folhas, nem talvez duas gotas de água, perfeitamente semelhantes, visto serem corpos muito compostos. Mas não se dá o mesmo com as partes da matéria simples e sólida. E, mesmo nos compostos, não é impossível que Deus faça duas gotas de água semelhantes em tudo; e não obstante essa perfeita semelhança não poderiam ser uma só e mesma gota de água. Acrescento que o lugar de uma dessas gotas não seria o da outra, embora a situação delas fosse uma coisa absolutamente indiferente. O mesmo raciocínio terá também cabimento em relação à primeira determinação do movimento de certo lado ou do lado oposto. 5 e 6. Ainda que duas coisas sejam perfeitamente semelhantes, não cessam de ser duas coisas. As partes do tempo não são perfeitamente semelhantes quanto as do espaço, e contudo dois instantes não são o mesmo instante: não são tampouco dois nomes de um só e mesmo instante. Se Deus não tivesse criado o mundo senão neste momento, o mundo não teria sido criado no tempo em que foi. E se Deus deu (ou pôde dar) uma extensão limitada ao universo, segue-se que o universo deve naturalmente ser capaz de movimento, porque o que é limitado não pode ser imóvel. Pelo que acabo de dizer parece, pois, que os que sustentam que Deus não podia criar o mundo em outro tempo ou em outro lugar tomam a matéria necessariamente infinita e eterna, reduzindo tudo à necessidade e ao destino. 7. Se o universo tem uma extensão limitada, o espaço que está para lá do mundo não é imaginário, mas real. E no próprio mundo os espaços vazios não são imaginários. Ainda que haja raios de luz e talvez alguma outra matéria em quantidade muito pequena num recipiente, a falta de resistência faz ver claramente que a maior parte desse espaço é desprovida de matéria. Realmente, a sutilidade da matéria não pode ser a causa da falta de resistência. O mercúrio se compõe de partes que não são menos sutis e fluidas que as da água, e entretanto opõe mais de dez vezes resistência que ela. Essa resistência provém, pois, da quantidade, e não da espessura da matéria. 8. O espaço sem corpos é uma propriedade de uma substância imaterial. O espaço não é limitado pelos corpos, mas existe igualmente neles e fora deles. O espaço não se acha encerrado entre os corpos, mas estes, estando no espaço imenso, são limitados em si mesmos por suas próprias dimensões. 9. O espaço vazio não é um atributo sem sujeito, porque por esse espaço não entendemos um espaço onde não há nada, mas um espaço sem seus corpos. Deus está certamente presente em todo espaço vazio, e talvez existam também nesse espaço muitas outras substâncias, que não são materiais, não podendo por conseguinte ser tangíveis ou percebidas por nenhum de nossos sentidos. 10. O espaço não é uma substância, mas um atributo; e, se é um atributo de um ser necessário, deve (como todos os outros atributos de um ser necessário) existir mais necessariamente que as próprias substâncias, que não são necessárias. O espaço é imenso, imutável e eterno, o mesmo se dizendo da duração. Mas daí não se segue que haja alguma coisa eterna fora de Deus. Com efeito, o espaço e a duração não existem fora de Deus; são consequências imediatas e necessárias de sua existência, sem as quais ele não seria eterno e presente em toda parte. 11 e 12. Os infinitos não se compõem de finitos senão como os finitos são compostos de infinitésimos. Acima fiz ver em que sentido se pode dizer que o espaço tem partes ou não as tem. As partes, no sentido que se dá a esse termo quando aplicado aos corpos, são separáveis, compostas, desunidas, independentes umas das outras e capazes de movimento. Mas, ainda que a imaginação possa de algum modo conceber partes no espaço infinito, conclui-se, como essas partes (impropriamente assim chamadas) são essencialmente imóveis e inseparáveis umas das outras, que esse espaço é essencialmente simples e absolutamente indivisível. 13. Se o mundo tem uma extensão limitada, pode ser movido pelo poder de Deus; e por conseguinte o argumento que baseio nessa mobilidade é uma prova concludente, Embora dois lugares sejam perfeitamente semelhantes, não são um só e mesmo lugar. O movimento ou o repouso do universo não são o mesmo estado; como não o são tampouco o movimento ou o repouso de um navio, pouco importando que um homem fechado num beliche não consiga perceber se o barco vai à vela ou não, enquanto seu movimento é uniforme. Ainda que esse homem não perceba o movimento da embarcação, esse movimento não deixa de ser um estado real e diferente, produzindo efeitos reais e diferentes; e se ele parasse de repente, haveria outros efeitos reais. O mesmo se passaria com um movimento imperceptível do universo, Não se respondeu a esse argumento, em que o Cavaleiro. Newton insiste muito em seus Princípios Matemáticos. Após ter considerado as propriedades, as causas e os efeitos do movimento, essa consideração lhe serve para fazer ver a diferença que há entre o movimento real ou o transporte de um corpo que passa de uma parte do espaço a outra, e o movimento relativo, que é somente uma troca da ordem ou da situação dos corpos entre si. É um argumento matemático que prova por efeitos reais que pode existir um movimento real onde não há o relativo, e pode existir um movimento relativo onde não há o real: é, digo, um argumento matemático, ao qual não se responde quando a gente se contenta com asseverar o contrário. 14. A realidade do espaço não é uma simples suposição, provada que foi pelos argumentos acima expostos, aos quais não se respondeu. O autor não respondeu tampouco a outro argumento, a saber, que o espaço e o tempo são quantidades, o que não se pode dizer da situação e da ordem. 15. Não há impossibilidade em que Deus tivesse feito o mundo mais cedo ou mais tarde que o fez. Não é impossível tampouco que o destrua mais cedo ou mais tarde do que o fará conforme o plano atual. Quanto à doutrina da eternidade do mundo, os que supõem que a matéria e o espaço são a mesma coisa hão de achar não só que o mundo é infinito e eterno, mas ainda que sua imensidade e sua eternidade são necessárias, e mesmo tão necessárias quanto o espaço e a duração, que não dependem da vontade de Deus, mas de sua existência. Pelo contrário, os que julgam que Deus criou a matéria em tal quantidade, em tal tempo e em tais espaços que lhe aprouveram não se acham presos por nenhuma dificuldade, porque a sabedoria de Deus pode ter tido muitas boas razões para criar o mundo num determinado tempo: ela pode ter feito outras coisas antes que o mundo tenha sido criado, como as pode fazer após a destruição do mundo. 16 e 17. Provei acima que o espaço e o tempo não são a ordem das coisas, mas quantidades reais, o que não se pode dizer da ordem e da situação. O sábio autor ainda não respondeu a essas provas, e, a menos que o faça, o que diz é uma contradição, como ele mesmo confessa aqui. 18. A uniformidade de todas as partes do espaço não prova que Deus não possa agir em qualquer parte do espaço como quiser. Deus pode ter boas razões para criar seres finitos, e seres finitos não podem existir senão em lugares particulares. E, como todos os lugares são originariamente semelhantes (embora o lugar fosse apenas a situação dos corpos), se Deus colocasse um cubo de matéria atrás de outro cubo igual de matéria, e não ao contrário, essa escolha não é indigna da perfeição de Deus, ainda que essas duas situações sejam perfeitamente semelhantes, porque pode haver muito boas razões para a existência desses dois cubos, os quais não poderiam existir senão numa ou noutra dessas duas situações igualmente razoáveis. O acaso de Epicuro não é uma escolha, mas uma necessidade cega. 19. Se o argumento que se acha aqui prova alguma coisa, prova (como já ficou dito no § 3) que Deus não criou, e até não poderia criar, nenhuma matéria. De fato, a situação das partes iguais e similares da matéria era necessariamente indiferente desde o começo, bem como a primeira determinação de que o movimento delas se fizesse de um lado ou do oposto. 20. Não compreendo nada do que o autor deseja provar aqui com relação ao assunto de que se trata. 21. Dizer que Deus não pode impor limites à quantidade da matéria é adiantar uma coisa de uma importância grande demais para admiti-la sem prova. E, se Deus também não pode limitar a duração da matéria, concluir-se-á que o mundo é necessariamente infinito e eterno, independentemente de Deus. 22 e 23. Se o argumento que se encontra aqui estivesse bem fundamentado, provaria que Deus não seria capaz de deixar de fazer tudo quanto pode realizar, e por conseguinte não saberia ficar sem fazer com que todas as criaturas se tornassem infinitas e eternas. Mas, conforme essa doutrina, Deus não seria o governador do mundo: seria um agente necessário, isto é, não seria nem sequer um agente, mas o destino, a natureza e a necessidade. 24 a 28. Volta-se ainda uma vez ao uso do termo "sensório", conquanto Newton, ao empregar essa palavra, se tenha servido de um corretivo. Não é preciso acrescentar alguma coisa ao que eu já disse sobre isso. 29. O espaço é o lugar de todas as coisas e de todas as ideias, como a duração é a duração de todas as coisas e de todas as ideias. Fiz ver acima que essa doutrina não tende a tornar Deus a alma do mundo. Não há união entre Deus e o mundo. Com mais razão poder-se-ia dizer que o espírito do homem é a alma das imagens das coisas percebidas por ele, do que afirmar que Deus é a alma do mundo, no qual ele está presente em toda parte, e sobre o qual opera como quer, sem que o mundo atue sobre ele. Apesar dessa resposta, que já acima formulamos, o autor não cessa de repetir a mesma objeção mais de uma vez, com se não tivéssemos respondido a ela. 30. Não compreendo o que o autor quer dizer quando fala de um princípio representativo. A alma percebe as coisas porque as imagens delas lhe são levadas pelos órgãos dos sentidos. Deus as percebe porque está presente nas substâncias das próprias coisas. Não as percebe produzindo-as continuamente (porque descansa da obra da criação); mas percebe-as por estar continuamente presente em todas as coisas que criou. 31. Se a alma não atuasse sobre o corpo, e se o corpo, por um simples movimento mecânico da matéria, se conformasse entretanto à vontade da alma numa variedade infinita de movimentos espontâneos, teríamos um milagre perpétuo. A harmonia preestabelecida é apenas uma palavra ou um termo técnico, mas sem serventia alguma para explicar a causa de um efeito tão miraculoso. 32. Supor que, num movimento espontâneo do corpo, a alma não dá um movimento novo ou uma nova impressão à matéria, e que todos os movimentos espontâneos são produzidos por um impulso mecânico da matéria, é reduzir tudo ao destino e à necessidade. Quando se diz, porém, que Deus age no mundo sobre todas as criaturas como quer, sem nenhuma união e sem que nenhuma coisa atue sobre ele, vemos evidentemente a diferença que há entre um governador que está presente em toda parte e uma alma imaginária do mundo. 33. Toda ação consiste em dar uma nova força às coisas sobre as quais se exerce. Sem isso, não se trataria de uma ação real, mas de uma simples paixão, como em todas as leis mecânicas do movimento. Donde se segue que, se a comunicação de uma nova força é sobrenatural, todas as ações de Deus serão sobrenaturais, e ele será inteiramente excluído do governo do mundo. Conclui-se também daí que todas as ações dos homens são sobrenaturais, ou que o homem é uma máquina como um relógio. 34 e 35. Fizemos ver acima a diferença que vigora entre a verdadeira ideia de Deus e a de uma alma do mundo. 36. Respondi acima ao que vem aqui. 37. A alma não se acha espalhada pelo cérebro, mas está presente no lugar que é o sensório. 38. O que se diz aqui é uma simples afirmação sem prova. Dois corpos destituídos de elasticidade, encontrando-se com forças contrárias e iguais, perdem seu movimento. E o Cavaleiro Newton deu um exemplo matemático, pelo qual parece que o movimento diminui e aumenta continuamente em quantidade, sem que seja comunicado a outros corpos. 39. O assunto de que se fala aqui não é um defeito, como o supõe o autor: é a verdadeira natureza da matéria inativa. 40. Se o argumento que se acha aqui está bem fundamentado, prova que o universo deve ser infinito, que existiu desde toda eternidade e que não poderia cessar de existir; que Deus sempre criou tantos homens e outros seres quantos lhe era possível criar, e que os criou para os fazer existir por todo o tempo possível. 41. Não compreendo o que querem dizer estas palavras: uma ordem ou uma situação que torna os corpos situáveis. Parece-me que isso significa que a situação é a causa da situação. Deixei provado que o espaço não é a ordem dos corpos, e fiz ver nesta quarta réplica que o autor não respondeu aos argumentos propostos por mim. Não é menos evidente não ser o tempo a ordem das coisas que se sucedem uma à outra, pois que a quantidade do tempo pode ser maior ou menor, e entretanto essa ordem não deixa de ser a mesma. A ordem das coisas que se sucedem uma à outra no tempo não é o próprio tempo, pois elas podem suceder-se uma à outra mais depressa ou mais lentamente na mesma ordem de sucessão, mas não no mesmo tempo. Suposto que não existissem de forma alguma criaturas, a ubiquidade de Deus e a continuação de sua existência fariam com que o espaço e a duração fossem precisamente os mesmos que agora. 42. Faz-se aqui apelo da razão à opinião vulgar; mas, visto que a opinião vulgar não é a regra da verdade, não convém que os filósofos recorram a ela. 43. A ideia de um milagre inclui necessariamente a ideia de uma coisa rara e extraordinária. Com efeito, nada há mais maravilhoso e que exige um maior poder do que certas coisas que chamamos naturais, como, p. ex., os movimentos dos corpos celestes, a geração e a formação das plantas e dos animais, etc. Entretanto, não são milagres, por se tratar de coisas comuns. Daí não se segue, contudo, que tudo o que é raro e extraordinário seja um milagre. Efetivamente, muitas coisas dessa natureza podem ser efeitos irregulares e menos comuns das causas ordinárias, como os eclipses, os monstros, a loucura nos homens e uma infinidade de outras coisas que o vulgo denomina prodígios. 44. Concede-se aqui o que eu disse. De fato, sustenta-se uma coisa contrária à opinião comum dos teólogos ao supor-se que um anjo possa operar milagre. 45. É verdade que, se um corpo atraísse outro, sem a intervenção de qualquer meio, não teríamos um milagre, mas uma contradição, pois seria supor que uma coisa agisse onde não está. Mas o meio pelo qual dois corpos se atraem pode ser invisível e intangível, e de uma natureza diversa da de um mecanismo: o que não impede que uma ação regular e constante possa ser chamada natural, pois que é muito menos maravilhosa que o movimento dos animais, o qual entretanto não é julgado um milagre. 46. Se pela expressão "forças naturais" se entende aqui forças mecânicas, todos os animais, sem excetuar os homens, serão puras máquinas, como um relógio. Mas, se essa expressão não significa forças mecânicas, a gravitação pode ser produzida por forças regulares e naturais, embora não mecânicas. N.B. Já se respondeu acima aos argumentos que Leibniz inseriu num anexo à sua quarta epístola. A única coisa necessária a ser observada aqui é que o autor, afirmando a impossibilidade dos átomos físicos (não se trata entre nós dos pontos matemáticos), sustenta um absurdo manifesto. De fato, ou há partes perfeitamente sólidas na matéria, ou não. Caso afirmativo, e supondo-se que ao subdividi-las se obtenham novas partículas que possuam todas a mesma figura e as mesmas dimensões (o que é sempre possível), essas novas partículas serão átomos físicos perfeitamente semelhantes. Na hipótese negativa, não há matéria no universo; com efeito, quanto mais se divide e subdivide um corpo para chegar enfim a partes perfeitamente sólidas e sem poros, mais aumenta a proporção entre os poros e a matéria sólida desse corpo. Se, pois, levando a divisão e a subdivisão ao infinito, é impossível chegar a partes perfeitamente sólidas e sem poros, seguir-se-á que os corpos são unicamente compostos de poros (com o aumento incessante da relação entre estes e as partes sólidas), e por consequência que não há em absoluto a matéria; o que é um absurdo manifesto. E o raciocínio será o mesmo em relação à matéria de que se compõem as espécies particulares dos corpos, quer se suponha que os poros são vazios, quer o julguemos cheios de uma matéria de fora. Quinta carta de Leibniz, ou resposta à quarta réplica de Clarke Sobre os §§ 1 e 2 da réplica precedente 1. Responderei agora mais amplamente a fim de esclarecer as dificuldades e para experimentar se o adversário está disposto a se contentar com a razão, dando provas de amor da verdade, ou se apenas deseja chicanar sem nada esclarecer. 2. Esforçam-se muitas vezes por me imputar a necessidade e a fatalidade, ainda que talvez ninguém tenha melhor explicado, e mais a fundo do que fiz na Teodiceia, a verdadeira diferença entre liberdade, contingência, espontaneidade, de um lado, e necessidade absoluta, acaso, coação, do outro. Não sei ainda se o fazem porque o querem, seja o que for que eu possa dizer, ou se essas imputações são de boa-fé, do fato de não haverem pesado ainda minhas afirmações. Experimentarei em breve o que devo julgar a respeito, procedendo de acordo com isso. 3. É verdade que as razões fazem no espírito do sábio, e os motivos no espírito de quem quer que seja, o que corresponde ao efeito que os pesos produzem em uma balança. Objetam que essa noção leva à necessidade e à fatalidade, mas dizem-no sem o provar e sem tomar conhecimento das explicações que dei outrora para tirar todas as dificuldades que se poderiam fazer a respeito. 4. Parece também que se divertem com equívocos. Há necessidades que se precisam admitir. Com efeito, cumpre distinguir também uma necessidade absoluta e uma necessidade hipotética. É preciso ainda fazer distinção entre uma necessidade que existe porque o oposto implica contradição, e que se chama lógica, metafísica ou matemática, e uma necessidade que é moral, que faz o sábio escolher o melhor, e na qual todos os outros seguem a inclinação maior. 5. A necessidade hipotética é a que a suposição ou hipótese da previsão de Deus impõe aos futuros contingentes. E é preciso admiti-la, se, com os socinianos, não se recusa a Deus a presciência dos contingentes futuros e a providência que regula e governa todas as coisas em particular. 6. Mas nem essa presciência nem essa preordenação atentam contra a liberdade. De fato, Deus, levado pela suprema razão a fazer a escolha, entre muitas sequências de coisas ou mundos possíveis, daquele em que as criaturas livres tomassem tais ou tais resoluções, ainda que não sem seu concurso, tornou assim todo acontecimento certo e determinado uma vez por todas, sem derrogar com isso à liberdade das criaturas, pois esse simples decreto da escolha não muda, mas apenas atualiza as suas naturezas, vistas por ele em suas ideias. 7. Quanto à necessidade moral, ela também não diminui a liberdade. Com efeito, quando o sábio, e sobretudo Deus, o sábio supremo, escolhe o melhor, não é menos livre; pelo contrário, é a mais perfeita liberdade não ser impedido de fazer o melhor. E quando o outro escolhe segundo o bem mais aparente e para o qual tem maior inclinação, imita nisso a liberdade do sábio proporcionalmente à sua disposição, sem o que a escolha seria um acaso cego. 8. Mas o bem, tanto o verdadeiro como o aparente, numa palavra, o motivo, inclina sem necessidade, isto é, sem impor uma necessidade absoluta. Assim, quando Deus, p. ex., escolhe o melhor, o que ele não escolhe, e é inferior em perfeição, não deixa de ser possível. Mas, se o que Deus escolhe fosse absolutamente necessário, tudo o mais seria impossível, contra a hipótese, porque Deus faz sua escolha entre os possíveis, ou seja, entre muitas partes, onde uma não implica contradição com outra. 9. Mas dizer que Deus não pode escolher senão o melhor, e querer inferir daí que aquilo que ele não escolhe é impossível, equivale a confundir os termos: o poder e a vontade, a necessidade metafísica e a necessidade moral, as essências e as existências. De fato, o que é necessário é tal por sua essência, pois que o oposto implica contradição, mas o contingente que existe deve sua existência ao princípio do melhor, razão suficiente das coisas. E é por isso que afirmo que os motivos inclinam sem necessidade e que há uma certeza e infalibilidade, mas não uma necessidade absoluta nas coisas contingentes. Junte-se a isso o que se dirá depois, nos §§ 73 e 76. 10. E bem mostrei na minha Teodiceia que essa necessidade moral é feliz, conforme à perfeição divina, conforme ao grande princípio das existências, que é o da necessidade de uma razão suficiente; ao passo que a necessidade absoluta e metafísica depende do outro grande princípio de nossos raciocínios, que é o das essências, isto é, o da identidade ou da contradição, pois o que é absolutamente necessário só é possível entre os partidos, e sem contradição. 11. Fiz ver também que nossa vontade não segue sempre precisamente o entendimento prático, dado que pode ter ou achar razões para suspender sua resolução até uma ulterior discussão. 12. Imputar-me depois disso uma necessidade absoluta, sem ter nada a opor às considerações que acabo de aduzir e que vão até o fundo das coisas, e talvez além do que se vê alhures, será uma obstinação irracional. 13. Quanto à fatalidade, que também me imputam, é ainda um equívoco. Há o fatum mahometanum, o fatum stoicum e o fatum christianum. O destino à moda turca pretende que os efeitos aconteceriam mesmo que se evitasse a causa, como se existisse uma necessidade absoluta. O destino estoico pretende que se esteja tranquilo, porque forçosamente é preciso ter paciência, dado que não se poderia resistir a sequencia das coisas. Mas concorda-se em que haja um fatum christianum, um destino certo de todas as coisas, regulado pela presciência e pela providência de Deus. Fatum deriva de fari, ou seja, pronunciar, discernir e, no bom sentido, significa o decreto da Providência. E os que se submetem a ele pelo conhecimento das perfeições divinas, do qual o amor de Deus é consequência (pois consiste no prazer que esse conhecimento dá), não somente têm paciência como os filósofos pagãos, mas até ficam contentes com o que Deus ordene, sabendo que ele faz tudo pelo melhor, e não somente pelo maior bem em geral, mas ainda pelo maior bem particular dos que o amam. 14. Fui obrigado a alongar-me, para destruir de uma vez por todas as imputações mal fundadas, como espero poder fazer por essas explicações, no espírito das pessoas sensatas. Agora chego a uma objeção que me levantam aqui contra a comparação dos pesos de uma balança com os motivos da vontade. Objetam que a balança é puramente passiva, impeli da que é pelos pesos, ao passo que os agentes inteligentes e dotados de vontade são ativos. A isso respondo que o princípio da necessidade de uma razão suficiente é comum aos agentes e pacientes: precisam de uma razão suficiente para sua ação, do mesmo modo que para sua paixão. Não somente a balança não age quando impelida igualmente de um lado e de outro, mas também não agem os pesos iguais, quando estão em equilíbrio, de modo que um não pode descer sem que o outro suba na mesma medida. 15. Cumpre ainda considerar que os motivos não atuam propriamente sobre o espírito como os pesos sobre a balança, mas antes é o espírito que opera em virtude dos motivos, que são suas disposições a agir. Pretender assim, como é o caso aqui, que o espírito prefere às vezes os motivos fracos aos mais fortes, e até o indiferente aos motivos, é separar o espírito dos motivos como se estivessem fora dele, da mesma forma que o peso se distingue da balança; é como se no espírito houvesse outras disposições para agir que não os motivos, disposições em virtude das quais o espírito rejeitaria os motivos. Em vez disso, os motivos, em verdade, abrangem todas as disposições que o espírito pode ter para operar voluntariamente, porque eles não contêm somente as razões, mas também as inclinações oriundas das paixões ou de outras impressões precedentes. Assim sendo, se o espírito preferisse a inclinação fraca à forte, agiria contra si mesmo e de um modo diverso do que está disposto a agir. Isso faz ver que as ideias que contrariam as minhas são superficiais e não têm nada de sólido, quando bem consideradas. 16. Também dizer que o espírito pode ter boas razões para agir quando não tem motivo algum, e quando as coisas são absolutamente indiferentes, como se diz aqui, é uma contradição manifesta, porque se ele tem boas razões para a decisão as coisas não lhe são indiferentes. 17. E dizer que a gente atuará quando tem razões para atuar, ainda que as vias de ação fossem absolutamente indiferentes, é ainda falar muito superficialmente e de uma forma muito insustentável. Realmente, não se tem jamais uma razão suficiente para agir, quando não se possui também uma razão suficiente para agir deste modo determinado, pois que toda ação é individual e não geral, nem abstraída de suas circunstâncias, tendo necessidade de alguma via para ser efetuada. Logo, quando há uma razão suficiente para agir desta maneira, também há razão para agir por esta ou aquela via; e por conseguinte as vias não são indiferentes. Todas as vezes que se têm razões suficientes para uma ação singular, a gente as tem para seus requisitos. Veja-se ainda o que se dirá abaixo, § 66. 18. Esses raciocínios saltam aos olhos, e é bem estranho que me acusem de adiantar meu princípio da necessidade de uma razão suficiente, sem nenhuma prova tirada da natureza das coisas ou das perfeições divinas. Com efeito, a natureza das coisas acarreta que todo acontecimento tenha anteriormente suas condições, requisitos e disposições convenientes, cuja existência constitui sua razão suficiente. 19. A perfeição de Deus exige que todas as suas ações concordem com sua sabedoria, e que não se possa censura-lo por ter agido sem razões, ou mesmo por ter preferido uma razão mais fraca a uma razão mais forte. 20. No fim desta carta falarei, porém, mais amplamente da solidez e da importância do grande princípio da necessidade de uma razão suficiente para todo acontecimento, cuja impugnação derribaria a melhor parte de toda a filosofia. Portanto, é bem estranho que se pretenda afirmar aqui que nisso cometo uma petição de princípio; e bem que parece que querem adotar opiniões insustentáveis, pois se veem reduzidos a recusar-me esse grande princípio, um dos mais essenciais da razão. Sobre os § § 3 e 4 21. Cumpre confessar que esse grande princípio, embora reconhecido, não foi suficientemente empregado. Eis em grande parte a razão pela qual até agora a filosofia primeira tem sido tão pouco fecunda e tão pouco demonstrativa. Dele infiro, entre outras consequências, que não há na natureza dois seres reais absolutos que sejam indiscerníveis, porque, se existissem, Deus e a natureza agiriam sem razão, tratando a um de outro jeito que a outro. Assim, pois, Deus não produz duas porções de matéria perfeitamente iguais e semelhantes. Respondem a essa conclusão, sem lhe refutar a razão, e respondem mediante uma objeção assaz fraca: "Este argumento", dizem, "se fosse bom, provaria ser impossível a Deus criar qualquer matéria, porque, tomando-se as partes da matéria perfeitamente sólidas como iguais e da mesma figura (o que é uma suposição possível), seriam feitas exatamente uma como a outra". Mas é uma evidente petição de princípio supor essa perfeita conveniência, que, a meu ver, não poderia ser admitida. Esta suposição de dois indiscerníveis (como, digamos, de duas porções de matéria que convêm perfeitamente entre si) parece possível em termos abstratos, mas não é compatível com a ordem das coisas, nem com a sabedoria divina, na qual nada se admite sem razão. O vulgo imagina tais coisas, porque se contenta com noções incompletas. E é um dos defeitos dos atomistas. 22. Além disso, não admito na matéria porções perfeitamente sólidas, que sejam integrais, sem nenhuma variedade ou movimento particular em suas partes, como são concebidos os pretensos átomos. Aceitar semelhantes corpos é ainda uma opinião popular infundada. Segundo minhas demonstrações, cada porção de matéria é atualmente subdividida em partes movidas de modo diferente, e nenhuma parece inteiramente com a outra. 23. Eu havia alegado que nas coisas sensíveis não se encontram nunca dois indiscerníveis, e que, p. ex., não se acharão duas folhas num jardim nem duas gotas de água perfeitamente semelhantes. Poder-se-ia admitir isso em relação às folhas e talvez (perhaps) com respeito às gotas de água; mas poder-se-ia admitir ainda sem perhaps (senza forse, diria um italiano) nas gotas de água. 24. Creio que essas observações gerais que se acham nas coisas sensíveis encontram-se também proporcionalmente nas insensíveis, e que a esse propósito se pode dizer, como dizia Arlequim em O Imperador da Lua, que é tudo como aqui. E é uma grande presunção contra os indiscerníveis o fato de não se achar nenhum exemplo deles. Mas os adversários se opõem a essa consequência, dizendo que os corpos sensíveis são compostos, ao passo que, ao que se afirma, há insensíveis que são simples. Respondo, ainda, que não o concedo. Para mim, nada existe simples senão as verdadeiras mônadas, que não têm partes nem extensão. Os corpos simples e até os perfeitamente semelhantes são uma consequência da falsa posição do vácuo e dos átomos, ou, de resto, da filosofia preguiçosa, que não leva suficientemente longe a análise das coisas, e imagina poder chegar aos primeiros elementos corporais da natureza, porque isso contentaria a nossa imaginação. 25. Quando nego que haja duas gotas de água inteiramente semelhantes ou dois outros corpos indiscerníveis, não digo que seja absolutamente impossível afirma-los, mas que é uma coisa contrária à sabedoria divina e que por conseguinte não existe. Sobre os §§ 5 e 6 26. Confesso que se existissem duas coisas perfeitamente indiscerníveis, seriam duas. Mas a suposição é falsa, e contrária ao grande princípio da razão. Os filósofos vulgares se enganaram ao acreditar na existência de coisas que diferem solo numero (apenas numericamente), pelo simples fato de serem duas; e é desse erro que provieram suas perplexidades a respeito do que chamavam o princípio de individuação. A metafísica foi tratada ordinariamente como simples doutrina dos termos, como um dicionário filosófico, sem chegar à discussão das coisas. A filosofia superficial, como a dos ato mistas e dos vacuístas, forja coisas que as razões superiores não admitem. Espero que minhas demonstrações farão a filosofia mudar de aspecto, apesar das fracas contradições como as que me opõem aqui. 27. As partes do tempo e do lugar, tomadas em si mesmas, são coisas ideais, parecendo-se assim perfeitamente, como duas unidades abstratas. Mas não se dá o mesmo com dois "unos" concretos, ou com dois tempos efetivos ou dois espaços cheios, isto é, verdadeiramente atuais. 28. Não digo que dois pontos do espaço sejam um mesmo ponto, nem que dois instantes do tempo sejam um mesmo instante, como parece que me atribuem, mas pode-se imaginar, por falta de conhecimento, que há dois instantes diferentes onde não há senão um, como notei no § 17 da resposta precedente, que se supõem muitas vezes na geometria dois, para representar o erro de uma contraditória, e só se encontra um. Se alguém supusesse que uma linha reta corta a outra em dois pontos, verificaria, por fim de contas, que esses dois pretensos pontos devem coincidir e não formar senão um. 29. Demonstrei que o espaço não é mais que uma ordem da existência das coisas notada na simultaneidade delas. Assim a ficção de um universo material finito que passeia todo inteiro num espaço infinito não poderia ser admitida. É totalmente irracional e impraticável. De fato, além de não haver espaço real fora do universo material, semelhante ação seria sem finalidade: seria trabalhar sem fazer nada, agendo nihil agere. Não se produziria nenhuma mudança observável fosse por quem fosse. São imaginações dos filósofos de noções incompletas, que fazem do espaço uma realidade absoluta. Os simples matemáticos, que só se ocupam com coisas imaginárias, são capazes de forjar tais noções, destruí das, entretanto, pelas razões superiores. 30. Absolutamente falando, parece que Deus pode fazer o universo material finito em extensão, mas o contrário parece mais de acordo com a sua sabedoria. 31. Não concedo que todo finito seja móvel. Conforme a própria hipótese dos adversários, uma parte do espaço, ainda que finita, não é móvel. É preciso que aquilo que é móvel possa mudar de situação em relação a alguma outra coisa e chegar a um estado novo discernível do primeiro, caso contrário o movimento é uma ficção. Assim cumpre que um finito móvel faça parte de outro, a fim de que possa ocorrer uma mudança observável. 32. Descartes sustentou que a matéria não tem limites, e não creio que o tenham suficientemente refutado. E, conquanto lho tivessem concedido, daí não se segue que a matéria seria necessária, nem que existiria desde toda eternidade, dado que essa difusão da matéria sem limites não seria mais que um efeito da escolha de Deus, que a teria achado melhor assim. Sobre o § 7 33. Visto que o espaço em si é uma coisa ideal como o tempo, é inevitável que o espaço fora do mundo seja imaginário, como os próprios escolásticos bem o reconheceram. O mesmo se diga do espaço vazio no mundo, que julgo ainda ser imaginário, pelas razões que apresentei. 34. Objetam-me o vácuo inventado por Guericke, de Magdeburgo, que se faz bombeando o ar de um recipiente; e pretende-se que há verdadeiramente vazio perfeito, ou espaço sem matéria, ao menos em parte, nesse recipiente. Os aristotélicos e os cartesianos, que não admitem o verdadeiro vácuo, responderam a essa experiência de Guericke, bem como à de Torricelli, de Florença (que esvaziava o ar de um tubo de vidro por meio de mercúrio), que não há de modo algum vazio no tubo ou no recipiente, pois que o vidro tem poros sutis, através dos quais os raios da luz, os do ímã e outras matérias muito finas podem passar. E sou dessa opinião, achando que se pode comparar o recipiente a uma caixa cheia de buracos, que estaria na água e na qual houvesse peixes ou outros corpos tão volumosos; tirados estes, o lugar não deixaria de ficar cheio de água. A única diferença é que a água, embora seja fluida e mais dúctil que esses corpos volumosos, é entretanto tão pesada e tão maciça, ou até mais, ao passo que a matéria que entra no recipiente em vez do ar é bem mais delgada. Os novos partidários do vácuo respondem a essa alegação que não é a grossura que faz a resistência, e por conseguinte que há necessariamente mais vazio onde existe menos resistência; acrescenta-se que a sutileza nada representa, e que as partes do mercúrio são tão sutis e tão finas como as da água, e que no entanto o mercúrio tem uma resistência mais de dez vezes superior. A isso replico que não é tanto a quantidade da matéria, quanto a dificuldade que ela apresenta de ceder, que constitui a resistência. A madeira flutuante, p. ex., contém menos matéria pesada que a água de volume igual, e apesar disso resiste mais ao barco que a água. 35. E quanto ao mercúrio, ele contém na verdade cerca de catorze vezes mais matéria pesada que a água, num volume igual, mas daí não se segue que contenha catorze vezes mais matéria absolutamente. Pelo contrário, a água contém igual quantidade, desde que se tome junto tanto sua própria matéria, que é pesada, quanto uma matéria estranha não pesada, que passa através de seus poros. Com efeito, tanto o mercúrio como a água são massas de matéria pesada, perfuradas, através das quais passa muita matéria não pesada e que não resiste sensivelmente, como é aparentemente a dos raios de luz e de outros fluidos insensíveis, tais como sobretudo aquele que propriamente causa o peso dos corpos volumosos, desviando-se do centro onde ele os faz ir. Realmente é uma estranha ficção imaginar toda a matéria pesada ou mesmo tendendo a outra matéria qualquer, como se todo corpo atraísse igualmente qualquer outro corpo conforme as massas e as distâncias, e isso por uma atração propriamente dita, que não derive de um impulso oculto dos corpos, ao passo que o peso dos corpos sensíveis em demanda do centro da terra deve ser produzido pelo movimento de algum fluido. O mesmo acontece com outros pesos, como os das plantas rumo ao sol ou delas entre si. Um corpo nunca é naturalmente movido senão por outro que o impele, tocando-o; e após isso continua até que seja impedido por outro corpo que o toca. Qualquer outra operação sobre o corpo será ou milagrosa ou imaginária. Sobre os §§ 8 e 9 36. Como objetei que o espaço, tomado por alguma coisa real e absoluta, sem o corpos, seria algo eterno, impassível e independente de Deus, procurou-se fugir a essa dificuldade, dizendo que o espaço é uma propriedade de Deus. A isso opus, na minha carta precedente, que a propriedade de Deus é a imensidade, mas que o espaço, muitas vezes comensurado com os corpos, e a imensidade de Deus não são a mesma coisa. 37. Ainda objetei que, se o espaço é uma propriedade, e se o espaço infinito é a imensidade de Deus, o espaço finito será a extensão ou a mensurabilidade de alguma coisa finita. Assim sendo, o espaço ocupado por um corpo será a extensão desse corpo, coisa absurda, pois um corpo pode mudar de espaço, mas não pode deixar sua extensão. 38. Perguntei ainda: se o espaço é uma propriedade, de que pois será propriedade um espaço vazio limitado, tal como o que se imagina no recipiente esvaziado de ar? Não parece razoável dizer que esse espaço vazio, redondo ou quadrado, seja uma propriedade de Deus. Será então talvez a propriedade de algumas substâncias imateriais, extensas, imaginárias, que se representam, ao que parece, nos espaços imaginários? 39. Se o espaço é a propriedade ou a afecção da substância que está no espaço, ele será ora a afecção de um corpo, ora de outro corpo; ora de uma substância imaterial, ora, quando vazio de toda outra substância material ou imaterial, talvez do próprio Deus. Mas que estranha propriedade ou afecção, que passa de sujeito para sujeito! Assim sendo, os sujeitos deixarão seus acidentes como se fossem um hábito, a fim de que outros sujeitos possam se revestir com eles? Como, pois, se distinguirão os acidentes e as substâncias? 40. Mas, se os espaços limitados existentes [são as afecções das substâncias] e se o espaço infinito é a propriedade de Deus, cumpre (coisa estranha!) que a propriedade de Deus se componha das afecções das criaturas, porque todos os espaços finitos, tomados em conjunto, compõem o espaço infinito. 41. Mas, se alguém negar que o espaço limitado seja uma afecção das coisas limitadas, também não será razoável que o espaço infinito seja a afecção ou a propriedade de uma coisa infinita. Insinuei todas essas dificuldades na minha carta precedente, mas não me parece que se tenha procurado satisfazer a elas. 42. Tenho ainda outras razões contra a estranha imaginação de que o espaço é uma propriedade de Deus. Neste caso, o espaço entra na essência de Deus. Ora, o espaço tem partes; logo, haveria partes na essência de Deus, afirmação inconcebível. 43. Além disso, os espaços ora são vazios, ora cheios, e portanto haveria na essência de Deus partes ora vazias, ora cheias, sujeitas consequentemente a uma mudança perpétua. Os corpos que enchem o espaço encheriam uma parte da essência de Deus, sendo comensurados com ela; e, na hipótese do vácuo, uma parte da essência de Deus estaria no recipiente. Esse Deus com partes parecer-se-ia muito com o Deus estoico, que era o universo inteiro, considerado como um animal divino. 44. Se o espaço infinito é a imensidade de Deus, o tempo infinito será a eternidade de Deus. Ter-se-á pois de dizer que o que se encontra no espaço está na imensidade de Deus, e por conseguinte na sua essência; e que o que se acha no tempo está na eternidade de Deus. Frases estranhas e que bem fazem ver que a gente está abusando dos termos. 45. Eis ainda um reforço. A imensidade de Deus faz com que Deus esteja em todos os espaços. Mas, se Deus está no espaço, como se pode dizer que o espaço está em Deus e que é sua propriedade? Já se ouviu dizer que a propriedade está no sujeito, mas nunca se escutou a afirmação de que o sujeito está em sua propriedade. Da mesma forma, Deus existe em todo tempo; como pois o tempo está em Deus, e como pode ser uma propriedade de Deus? Essas são perpétuas angloglossias. 46. Parece que se confunde a imensidade ou extensão das coisas com o espaço segundo o qual se toma essa extensão. O espaço infinito não é a imensidade de Deus; o espaço finito não é a extensão dos corpos, como o tempo não é a duração. As coisas conservam sua extensão, mas nem sempre o seu espaço. Toda coisa tem sua própria extensão, sua própria duração, mas não seu próprio tempo, e não conserva seu próprio espaço. 47. Eis como os homens chegam a formar a noção do espaço. Consideram que muitas coisas existem simultaneamente, e acham nelas certa ordem de coexistência, segundo a qual a relação entre umas e outras é mais ou menos simples: é sua situação ou distância. Quando acontece que um desses coexistentes modifica essa relação a uma multidão de outros, sem que estes mudem entre si, e que um recém-vindo adquire a relação que o primeiro tivera com os outros, diz-se que veio ocupar seu lugar, e chama-se essa transformação um movimento que se acha naquele em que está a causa imediata da transformação. E quando muitos, ou mesmo todos, mudassem conforme certas regras conhecidas de direção e velocidade, poder-se-ia sempre determinar a relação de situação que cada um adquiriria para com o outro, e mesmo a relação que qualquer outro teria ou que ele teria para com outro qualquer, se não tivesse mudado ou o tivesse feito de outro modo. Supondo e fingindo que entre esses coexistentes haja um número suficiente de alguns que não tenham tido transformação em si, dir-se-á que os que têm uma relação com esses existentes fixos, como outros anteriormente, ocupam o mesmo lugar que estes últimos tinham tido. Ora, o que abrange todos esses lugares é que se chama espaço. Isso demonstra que para ter a ideia do lugar, e por consequência do espaço, basta considerar essas relações e as regras de suas transformações, sem necessidade de imaginar aqui nenhuma realidade absoluta fora das coisas cuja situação se considera. E, para dar uma espécie de definição, lugar é aquilo que se diz ser o mesmo em relação a A e a B, quando a relação de coexistência de B com C, E, F, G, etc., convêm inteiramente com a relação de coexistência que A tivera com os mesmos, supondo-se que não tenha havido nenhuma causa de mudança em C, E, F, G, etc. Poder-se-ia dizer também, sem "ectese", que lugar é aquilo que é o mesmo em momentos diferentes de dois existentes, embora diferentes, quando suas relações de coexistência com certos existentes, que desde um desses momentos até outro são supostos fixos, convêm inteiramente. E existentes fixos são aqueles nos quais não houve causa da mudança da ordem de coexistência com outros, ou (o que dá na mesma) nos quais não houve movimento. Enfim, espaço é o que resulta dos lugares tomados conjuntamente. E é bom considerar aqui a diferença entre o lugar e a relação de situação que há no corpo que ocupa o lugar. Com efeito, o lugar de A e de B é o mesmo, ao passo que a relação de A com os corpos fixos não é precisa e individualmente a mesma que aquela que B (que tomará seu lugar) terá com esses corpos fixos, e as duas relações somente convêm uma com outra, pois que dois sujeitos diferentes, como A e B, não poderiam ter precisamente a mesma situação individual, não podendo um mesmo acidente individual encontrar-se em dois sujeitos, nem passar de sujeito para sujeito. O espírito, porém, não satisfeito com a conveniência, busca uma identidade, uma coisa que seja verdadeiramente a mesma, e a concebe como estando fora desses sujeitos: é o que se chama aqui lugar e espaço. Entretanto, isso não poderia ser senão ideal, contendo certa ordem em que o espírito concebe a aplicação das relações, como o espírito pode imaginar uma ordem que consiste em linhas genealógicas, cujas grandezas estivessem somente no número das gerações em que cada pessoa tivesse seu lugar. E se se juntasse a noção da metempsicose, fazendo-se voltar as mesmas almas humanas, as pessoas poderiam então mudar de lugar. Quem tinha sido pai ou avô poderia tornar-se filho ou neto, etc. Contudo, esses lugares, linhas e espaços genealógicos, conquanto exprimissem verdades reais, não passariam de coisas ideais. Darei mais um exemplo do costume que o espírito tem de imaginar, por ocasião dos acidentes que estão nos sujeitos, alguma coisa que lhes corresponde fora dos sujeitos. A razão ou proporção entre duas linhas, L e M, pode ser concebida de três modos: como razão do maior L ao menor M; como razão do menor M; como razão do menor M ao maior L; e enfim como algo que abstrai dos dois, isto é, como a razão entre L e M, sem considerar qual é o anterior ou o posterior, o sujeito ou o objeto. Assim é que são consideradas as proporções na música. Na primeira consideração, L, o maior, é o sujeito; na segunda, M, o menor, é o sujeito desse acidente que os filósofos chamam relação. Mas qual será o sujeito no terceiro caso? Não se poderia dizer que ambos, L e M juntos, sejam o sujeito desse acidente, pois assim teríamos um acidente em dois sujeitos, com uma perna num e outra noutro, o que contraria a noção dos acidentes. Portanto, devemos dizer que essa relação, nesse terceiro caso, está fora dos sujeitos, mas que, não se tratando nem de substância nem de acidente, será, por força, uma coisa puramente ideal, cuja consideração não deixa de ser útil. De resto, procedi aqui mais ou menos como Euclides, que, não podendo bem fazer entender absolutamente o que é razão tomada no sentido dos geômetras, define bem o que são as próprias razões. Assim é que, para explicar o que é o lugar, eu quis definir o próprio lugar. Noto por fim que os vestígios dos móveis, que eles deixam às vezes nos imóveis sobre os quais exercem seu movimento, deram à imaginação dos homens a ocasião de conceber essa ideia, como se restasse ainda algum vestígio mesmo sem a existência de qualquer coisa imóvel; mas isso não é senão ideal, e traz somente como consequência que, se existisse algum imóvel, a gente o poderia designar. E é essa analogia que faz com que se imaginem lugares, vestígios e espaços, ainda que essas coisas não passem na verdade de relações e, de forma alguma, não sejam uma realidade absoluta. 48. De resto, se o espaço vazio de corpos (como se imagina) não está completamente vazio, de que pois se acha cheio? Existem talvez espíritos extensos ou substâncias imateriais, capazes de se estender ou de se encolher, que passeiam por esse espaço e que se compenetram sem se incomodar, como as sombras de dois corpos se misturam na superfície de uma muralha? Vejo voltarem as divertidas imaginações de Henrique Morus (sábio e bem intencionado, aliás) e de alguns outros, que acreditaram que esses espíritos se podem tornar impenetráveis quando bem lhes parece. Houve até os que imaginaram que o homem, no estado de integridade, tinha também o dom da penetração, mas que se tornou sólido, opaco e impenetrável por sua queda. Não é uma inversão das noções das coisas atribuir partes a Deus e dar a extensão aos espíritos? Basta o princípio da necessidade da razão suficiente para fazer com que desapareçam todos esses espectros de imaginação. Os homens facilmente criam ficções, quando não empregam bem esse grande princípio. Sobre o § 10 49. Não se pode afirmar que determinada duração é eterna, mas se pode dizer que as coisas que duram sempre são eternas, ganhando sempre uma duração nova. Tudo quanto existe do tempo e da duração, sendo como é, sucessivo, perece continuamente: e como poderia existir por toda eternidade uma coisa que, para falar com exatidão, não existe jamais? Com efeito, como poderia existir uma coisa de que jamais nenhuma parte existe? Ora, do tempo não existem jamais senão instantes, e estes não são nem sequer uma parte do tempo. Quem considerar essas observações, compreenderá bem que o tempo não poderia ser senão uma coisa ideal, e a analogia do tempo e do espaço logo fará ver que um é tão ideal quanto o outro. Entretanto, se ao afirmar-se a duração eterna de uma coisa se entende apenas que a coisa dura eternamente, nada tenho contra isso. 50. Se a realidade do espaço e do tempo é necessária para a imensidade e a eternidade de Deus, se é preciso que Deus esteja nos espaços, se estar no espaço é uma propriedade de Deus, Deus será de algum modo dependente do tempo e do espaço, e necessitará deles. De fato, a escapatória de que o espaço e o tempo estão em Deus, e fazem o papel de propriedades, já está fechada. Poder-se-ia suportar a opinião que sustentasse que os corpos andam pelas partes da essência divina? Sobre os §§ 11 e 12 51. Como eu havia objetado que o espaço tem partes, o adversário procura outra escapatória, afastando-se do sentido comum dos termos e sustentando que o espaço não tem partes, porque suas partes não são separáveis e não poderiam distanciar-se umas das outras por separação. Mas basta que o espaço tenha partes, sejam separáveis ou não; e podemos indicá-las no espaço pelas linhas ou pelas superfícies que nele se podem traçar. Sobre o § 13 52. Para provar que o espaço, sem os corpos, é uma realidade absoluta, tinham-me objetado que o universo material finito poderia andar no espaço. Respondi que não parece razoável que o universo material seja finito, e, ainda que o supuséssemos, seria irracional que fosse dotado de movimento, o que não se dá na hipótese de mudarem suas partes de situação entre si, porque o primeiro, o movimento, não produziria nenhuma mudança observável, e seria sem finalidade. Outra coisa é quando as suas partes mudam de situação entre si, porque então se reconhece um movimento no espaço, mas consistindo na ordem das relações, que mudaram. Replica-se, agora, que a verdade do movimento é independente da observação, e que um navio pode andar sem que aquele que está dentro perceba. Respondo que o movimento é independente da observação, mas não da observabilidade. Não há movimento, quando não existe mudança observável. E mesmo quando não há mudança observável, não há mudança de modo algum. O contrário funda-se na suposição de um espaço real absoluto, que refutei demonstrativamente pelo princípio da necessidade de uma razão suficiente das coisas. 53. Não encontro nada na oitava definição dos Princípios Matemáticos da Natureza, nem no escólio dessa definição, que prove que se possa demonstrar a realidade do espaço em si. Contudo, concedo que há diferença entre um verdadeiro movimento absoluto de um corpo, e uma simples mudança relativa da situação relativamente a um outro corpo. Com efeito, quando a causa imediata da mudança está no corpo, este está verdadeiramente em movimento, e nesse caso a situação dos outros, com relação a ele, estará, por consequência, mudada, ainda que a causa desta mudança não resida neles. É verdade que, falando com exatidão, não há corpo que esteja perfeita e inteiramente em repouso; mas é disso que se faz abstração ao considerar a coisa matematicamente. Assim não deixei nada sem resposta, de tudo quanto alegaram a favor da realidade absoluta do espaço. E demonstrei a falsidade dessa realidade, por um princípio fundamental dos mais razoáveis e mais provados, contra o qual não se poderia achar nenhuma exceção ou reparo. De resto, pode-se ver, por tudo o que acabo de dizer, que não devo admitir um universo móvel, nem lugar algum fora do universo material. Sobre o § 14 54. Não conheço nenhuma objeção a que, penso eu, não tenha respondido suficientemente. E, quanto a esta objeção, que o espaço e o tempo são quantidade, ou antes, coisas dotadas de quantidade, e que a situação e a ordem não o são, respondo que a ordem possui também sua quantidade, ou seja, o que precede e o que segue, a distância ou intervalo. As coisas relativas têm sua quantidade, assim como as absolutas. Por exemplo, as razões ou proporções na matemática têm sua quantidade e se medem pelos logaritmos, entretanto são relações. Assim, embora o tempo e o espaço consistam em relações, não deixam de ter sua quantidade. Sobre o § 15 55. Quanto à questão de saber se Deus podia criar o mundo mais cedo, é preciso entender bem os termos. Como demonstrei que o tempo sem as coisas não passa de uma simples possibilidade ideal, é manifesto que, se alguém dissesse que esse mesmo mundo que foi criado efetivamente teria podido, sem nenhuma outra mudança, ter sido criado mais cedo, não diria nada de inteligível, pois não há nenhum sinal ou diferença pela qual seria possível conhecer que ele tivesse sido criado mais cedo. Assim, como já deixei dito, supor que Deus tenha criado o mesmo mundo mais cedo é supor algo de quimérico. É fazer do tempo uma coisa absoluta, independente de Deus, ao passo que o tempo deve coexistir com as criaturas. e não se concebe senão pela ordem e quantidade de suas mudanças. 56. Mas, absolutamente falando, podemos conceber que um universo tenha começado mais cedo do que efetivamente se iniciou. Suponhamos que o nosso universo, ou qualquer outro, seja representado pela figura AF, que a ordenada AB represente seu primeiro estado, e que as ordenadas CDEF representem os estados seguintes. Digo que se pode pensar que ele tenha começado mais cedo, concebendo a figura prolongada para trás e juntando-lhe RS, AR, BS, porque assim, aumentando-se as coisas, o tempo também será aumentado. Mas se tal aumento é razoável e concorde com a sabedoria de Deus, é uma outra questão; e deveria dizer-se que não, caso contrário, Deus o teria feito. Seria como Humano capiti cervicem pictor equinam Iungere si velit. (Se quiser o pintor juntar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo.) O mesmo se diga da destruição. Como se poderia conceber uma coisa acrescentada ao começo, poder-se-ia imaginar também alguma coisa diminuída no fim. Mas da mesma forma isso seria disparatado. 57. Vê-se, pois, como se imagina entender que Deus criou as coisas no tempo em que quis, pois isso depende das coisas que resolveu criar. Uma vez, porém, tendo resolvido criar tais ou tais coisas com suas relações, não lhe resta mais escolha acerca do tempo nem acerca do lugar, que não têm nada de real quando tomados isoladamente, e nada de determinante ou mesmo nada de discernível. 58. Não é possível, portanto, dizer, como se faz aqui, que a sabedoria de Deus pode ter tido boas razões para criar este mundo em certo tempo particular, pois esse tempo particular tomado sem as coisas é uma ficção impossível, nem se pode falar em boas razões de uma escolha numa coisa em que tudo é indiscernível. 59. Quando falo deste mundo, penso em todo o universo das criaturas materiais e imateriais tomadas em conjunto, desde o início das coisas. Mas se se pensasse apenas no começo do mundo material, e supondo-se antes dele criaturas imateriais, a gente se aproximaria um pouco mais da solução certa. Com efeito, o tempo então, estando determinado pelas coisas já existentes, deixaria de ser indiferente, e poderia haver uma escolha. É verdade que não se faria mais que adiar a dificuldade, porque, supondo-se o começo do universo todo das criaturas imateriais e materiais em conjunto, não há mais escolha divina quanto ao tempo desse mesmo universo. 60. Dessa forma não se deve dizer, como se faz aqui, que Deus criou as coisas num espaço ou num tempo particular que lhe aprouve. De fato, sendo todos os tempos e todos os espaços, em si mesmos, perfeitamente uniformes e indiscerníveis, um não poderia agradar mais que outro. 61. Não quero demorar-me aqui a respeito da minha opinião, que expus alhures e que pretende não haver substâncias criadas inteiramente destituídas de matéria. Realmente, creio com os antigos e com a razão que os anjos ou as inteligências, e as almas separadas do corpo grosseiro, têm sempre corpos sutis, ainda que por si sejam incorporais. A filosofia vulgar admite facilmente toda espécie de ficções; a minha é mais severa. 62. Não digo que a matéria e o espaço são a mesma coisa; somente afirmo que não há espaço onde não existe matéria, e que o espaço em si mesmo não é uma realidade absoluta. O espaço e a matéria diferem como o tempo e o movimento. Essas coisas, entretanto, embora diferentes, são inseparáveis. 63. De forma alguma se segue, porém, que a matéria seja eterna e necessária, senão supondo-se que o espaço é eterno e necessário, suposição absolutamente infundada. Sobre os §§ 16 e 17 64. Creio ter respondido a tudo, e particularmente à objeção conforme a qual o espaço e o tempo possuem uma quantidade, mas a ordem não (cf. acima, nº 54). 65. Fiz ver claramente que a contradição está na hipótese da opinião oposta, que procura uma diferença onde não há. Seria uma injustiça manifesta querer inferir disso que reconheci contradição no meu próprio parecer. Sobre o § 18 66. Volta aqui um raciocínio que já refutei no nº 17. Diz-se que Deus pode ter boas razões para colocar dois cubos perfeitamente iguais e semelhantes. Nesse caso, ao que se diz, é preciso que ele lhes designe lugares, ainda que tudo seja perfeitamente igual; mas a coisa não deve ser desligada de suas circunstâncias. Esse raciocínio consta de noções incompletas. As resoluções de Deus não são nunca abstratas e imperfeitas, como se Deus decretasse primeiramente criar os dois cubos, e depois resolvesse onde colocá-los. Os homens, por serem limitados, são capazes de proceder assim: resolverão uma coisa, e depois se acharão embaraçados quanto aos meios, às vias, os lugares e as circunstâncias. Deus não toma jamais uma resolução quanto aos fins, sem ao mesmo tempo tomá-la com relação aos meios e a todas as circunstâncias. E até mostrei, na Teodiceia, que, falando com rigor, não houve senão um único decreto no universo inteiro, pelo qual ele resolveu fazê-lo passar da possibilidade à existência. Assim Deus não escolherá um cubo, sem ao mesmo tempo escolher seu lugar, e ele não estabelecerá nunca uma escolha entre indiscerníveis. 67. As partes do espaço não são determinadas e distintas senão pelas coisas que nele estão: a diversidade das coisas no espaço determina Deus a operar de modo diferente sobre diferentes partes do espaço. Mas o espaço tomado sem as coisas nada tem de determinante, e até não é coisa alguma atual. 68. Se Deus resolveu colocar certo cubo de matéria, determinou-se também a respeito do lugar desse cubo, mas isso com relação a outras porções de matéria, e não relativamente ao espaço separado, onde não há nada de determinante. 69. Sua sabedoria, porém, não permite que ele coloque ao mesmo tempo dois cubos perfeitamente iguais e semelhantes, pois não há meio de achar uma razão para lhes designar lugares diferentes: seria uma vontade sem motivo. 70. Eu tinha comparado uma vontade sem motivo (tal aquela que raciocínios superficiais atribuem a Deus) ao acaso de Epicuro. Objeta-se a isso que o acaso de Epicuro é uma necessidade cega, e não uma escolha voluntária. Replico que esse acaso não é uma necessidade, mas algo de indiferente. Epicuro expressamente o introduzia para evitar a necessidade. É verdade que o acaso é cego; mas uma vontade sem motivo não seria menos cega e menos devida ao simples acaso. Sobre o § 19 71. Repete-se aqui o que já ficou refutado acima, no n.? 21, a saber, que a matéria não poderia ser criada, se Deus não escolhesse entre os indiscerníveis. Ter-se-ia razão, se a matéria consistisse em átomos, em corpos parecidos ou outras ficções semelhantes da filosofia superficial; mas esse mesmo grande princípio, que combate a escolha entre os indiscerníveis, destrói também essas ficções mal construídas. Sobre o § 20 72. Tinham-se objetado na terceira réplica (nº 7 e 8) que Deus não teria dentro de si um princípio de agir, se fosse determinado pelas coisas externas. Respondi que as ideias das coisas externas estão nele, e que assim está determinado por razões internas, isto é, por sua sabedoria. Agora não se quer compreender a propósito de que eu o disse. Sobre o § 21 73. Confunde-se muitas vezes, nas objeções que me fazem, o que Deus não quer e o que não pode. (Ver, acima, o nº 9, e abaixo, o nº 76.) P. ex., Deus pode fazer tudo o que é possível, mas não quer senão o melhor. Assim não digo, como me imputam aqui, que Deus não pode impor limites à extensão da matéria, mas existe a aparência de que ele não o quer e que achou melhor não lhos dar. 74. Não se pode concluir da extensão para a duração (non valet consequentia). Ainda que a extensão da matéria não tivesse limites, não se concluiria que sua duração também não os tivesse, até mesmo para trás, ou seja, que não tivesse tido começo. Se a natureza das coisas, no conjunto, é de crescer uniformemente em perfeição, o universo das criaturas deve ter começado. Assim haverá razões para limitar a duração das coisas, ainda mesmo que não existissem para limitar sua extensão. Ademais, o começo do mundo não vai contra a infinidade da duração a parte post ou posteriormente; mas os limites do universo iriam contra a infinidade de sua duração. Assim é mais racional pôr-lhes um começo que admitir limites para elas, a fim de conservar num caso e no outro o caráter de um autor infinito. 75. Entretanto os que admitiram a eternidade do mundo, ou ao menos, como o fizeram teólogos célebres, a sua possibilidade, nem por isso negaram a dependência do mundo em relação a Deus, como se lhes imputa aqui sem fundamento. Sobre os §§ 22 e 23 76. Objetam-me ainda aqui, sem fundamento, que, a meu ver, tudo o que Deus pode fazer deve ser feito necessariamente. É como se ignorassem que refutei isso solidamente na Teodiceia, e que rebati a opinião dos que sustentam que nenhuma coisa é possível senão o que acontece efetivamente, como acreditaram já alguns filósofos antigos, entre outros Diodoro, conforme narra Cícero. Confunde-se a necessidade moral, oriunda da escolha do melhor, com a necessidade absoluta; confunde-se a vontade com o poder de Deus. Ele pode produzir tudo o que é possível ou que não implica contradição: mas quer efetuar o melhor entre os possíveis. Veja-se o que eu disse acima, nos nº 9 e 74. 77. Deus não é, pois, um agente necessário ao produzir as criaturas, visto que atua por escolha. Entretanto o que se acrescenta aqui é mal fundado, quando se afirma que um agente necessário não seria um agente. Fala-se amiúde com ousadia e sem fundamento, ao atribuir-me teses que não se poderiam provar. Sobre os §§ 24 a 28 78. Alega-se a desculpa de não se ter dito que o espaço é o sensório de Deus, mas somente que é como o seu sensório. Uma coisa é tão pouco conveniente e tão pouco inteligível quanto à outra. Sobre o § 29 79. O espaço não é o lugar de todas as coisas, porque não é o lugar de Deus; do contrário, tratar-se-ia de uma coisa coeterna com Deus e independente dele, e até de uma coisa da qual ele dependeria se tivesse necessidade de lugar. 80. Também não vejo como se poderia dizer que o espaço é o lugar das ideias, pois estas estão no entendimento. 81. É também assaz estranho dizer que a alma do homem é a alma das imagens. As imagens, que são o entendimento, estão no espírito; mas se este fosse a alma das imagens, elas estariam fora dele. Dizendo-se isso, porém, das imagens corporais, como se pretenderá que nosso espírito delas seja a alma, pois que essas imagens não são mais que impressões passageiras nos corpos de que ele é a alma? 82. Se Deus sente o que se passa no mundo, por intermédio de um sensório, parece que as coisas agem sobre ele, e ele é, como se concebe, a alma do mundo. Acusam-me de repetir as objeções, sem tomar conhecimento das respostas; mas não vejo que tenham satisfeito a esta dificuldade. Seria melhor renunciar-se completamente a esse pretenso sensório. Sobre o § 30 83. Fala-se como se não se entendesse a doutrina segundo a qual, a meu ver, a alma é um princípio representativo, isto é, como se não se houvesse jamais ouvido nada acerca de minha harmonia preestabelecida. 84. Não concordo com as noções vulgares, como se as imagens das coisas fossem transportadas (conduzidas) até a alma. Com efeito, não se pode imaginar por que abertura ou por que veículo se pode fazer o transporte das imagens desde o órgão até a alma. Essa noção da filosofia vulgar não é inteligível, como os novos cartesianos bem o mostraram. Não se saberia explicar como a substância imaterial é afetada pela matéria: e recorrer à quimérica noção escolástica de não sei que espécies intencionais inexplicáveis, que passam dos órgãos para a alma, é sustentar uma coisa ininteligível. Esses cartesianos viram a dificuldade, mas não a resolveram: recorreram a um concurso tão particular de Deus que seria de fato milagroso. Eu, porém, acredito ter dado a verdadeira solução desse enigma. 85. Dizer que Deus discerne as coisas que se passam, porque está presente nas substâncias, e não pela dependência da continuação da existência delas, consistindo no que se poderia dizer uma produção contínua, é dizer coisas ininteligíveis. A simples presença, ou a proximidade de coexistência, não basta para entender como o que se passa em um ser deve corresponder ao que se passa em outro. 86. Além disso, é incorrer justamente na doutrina que torna Deus a alma do mundo, pois faz com que ele sinta as coisas não pela dependência que têm dele, ou seja, produção contínua do que há de bom e de perfeito nelas, mas por uma espécie de sentimento, como se imagina que nossa alma sente o que se passa no corpo. E realmente degradar o conhecimento divino. 87. Na realidade das coisas, esse modo de pensar é inteiramente quimérico e nem sequer se realiza nas almas. Estas sentem o que se passa fora delas pelo que se passa nelas, correspondendo às coisas exteriores em virtude da harmonia que Deus preestabeleceu pela mais bela e mais admirável de todas as suas produções, que faz com que cada substância simples, em virtude de sua natureza, seja, por assim dizer, uma concentração e um espelho vivo de todo o universo, conforme seu ponto de vista. Nisso, ademais, consiste uma das mais belas e mais incontestáveis provas da existência de Deus, dado que não há senão Deus, isto é, a causa comum, que possa instituir essa harmonia das coisas. Mas o próprio Deus não pode sentir as coisas por meio daquilo com que elas sentem as outras. Ele as sente, porque é capaz de produzir esse meio, e não as faria sentir as outras, se ele mesmo não as produzisse todas consentidoras, e se não tivesse assim em si a representação delas, não como provindo delas, mas porque elas é que vêm dele e porque ele é a sua causa eficiente e exemplar. Ele as sente porque vêm dele, se é permitido dizer que ele as sente, o que não se deve dizer senão tirando ao termo sua imperfeição, pois parece significar que as coisas atuam sobre ele. Elas existem e lhe são conhecidas porque ele as entende e quer, e porque o que ele quer equivale ao que existe. Isso aparece tanto mais porque ele as faz sentirem-se umas às outras, e as faz conhecerem-se mutuamente como consequência das naturezas que lhes deu de uma vez por todas, e muitas vezes não faz senão manter as leis que regem cada uma, as quais, embora diferentes, terminam numa correspondência exata dos resultados. Eis o que ultrapassa todas as ideias que vulgarmente se conceberam sobre a perfeição divina e as obras de Deus, elevando-as ao mais alto grau, como bem reconheceu Bayle, ainda que crendo sem motivo que isso supera o possível. 88. Seria um grande abuso do texto da Sagrada Escritura, segundo o qual Deus descansa de suas obras, inferir que não há mais produção contínua. É verdade que não há produção de novas substâncias simples, mas não se tem razão ao concluir que Deus está agora no mundo como se imagina que a alma está no corpo, governando-o somente por sua presença, sem um concurso necessário para, fazê-lo continuar sua existência. Sobre o § 31 89. A harmonia ou correspondência entre a alma e o corpo não é um milagre perpétuo, mas o efeito ou a sequência de um milagre primordial feito na criação das coisas, como são todas as coisas naturais. Sem dúvida, é uma maravilha perpétua como são muitas coisas naturais. 90. A expressão "harmonia preestabelecida" é um termo técnico, confesso, mas não um termo que não explica nada, pois é explicado muito inteligivelmente, e a ele nada se objeta indicando alguma dificuldade. 91. Como a natureza de cada substância simples, alma ou verdadeira mônada, é tal que seu estado seguinte é uma consequência de seu estado precedente, eis a causa da harmonia já encontrada de todo. Com efeito, Deus precisa apenas fazer, uma vez e primeiramente, que a substância simples seja uma representação do universo, •conforme seu ponto de vista: pois que só disso se segue que ela o será perpetuamente, e que todas as substâncias simples terão sempre uma harmonia entre si, uma vez que representam sempre o mesmo universo. Sobre o § 32 92. É verdade que, a meu ver, a alma não perturba as leis do corpo, nem o corpo as da alma, e que somente entram em acordo, uma agindo livremente, segundo as regras das causas finais, e o outro maquinalmente, conforme as leis das causas eficientes. Isso porém, não derroga à liberdade de nossas almas, como se pretende aqui. De fato, todo agente que opera segundo as causas finais é livre, embora aconteça concordar com aquele que atua apenas por causas eficientes, sem conhecimento ou por máquina, porque Deus, prevendo o que a causa livre faria, regulou antes sua máquina de maneira a não poder deixar de concordar com ela. Jaquelot resolveu muito bem essa dificuldade em um de seus livros contra Bayle. Citei a passagem na Teodiceia, parte 1, § 63. Tornarei a falar dessa questão no nº 124. Sobre o § 33 93. Não admito que toda ação dê uma nova força ao paciente. Sucede muitas vezes no encontro dos corpos que cada um guarda sua força, como quando dois corpos duros iguais se encontram diretamente. Nesse caso, só a direção se modifica, sem que haja transformação na força, tomando cada um dos corpos a direção do outro, e voltando atrás com a mesma velocidade que tivera. 94. Entretanto não posso dizer que seja sobrenatural dar uma nova força a um corpo, pois reconheço que um corpo recebe muitas vezes uma nova força de outro corpo, que perde outro tanto da sua. Digo, não obstante, somente, ser sobrenatural que todo o universo dos corpos receba uma nova força, e assim, que um corpo ganhe força sem que outros a percam em quantidade igual. Eis por que digo também ser insustentável que a alma dê força ao corpo, porque então todo o universo dos corpos receberia uma nova força. 95. O dilema que se faz aqui está mal fundado, porque, na minha opinião, é preciso que ou o homem atue sobrenaturalmente, ou o homem seja uma pura máquina como um relógio. Ora, o homem não opera sobrenaturalmente, e seu corpo é na verdade uma máquina, e não age senão maquinalmente, mas sua alma não deixa de ser uma causa livre. Sobre os §§ 34 e 35 96. Remeto também ao que foi ou será dito na presente carta (nº 86 e 111) a propósito da comparação entre Deus e a alma do mundo, e como o parecer que opõem ao meu faz se aproximar demais um do outro. Sobre o § 36 97. Refiro-me, de novo, ao que acabo de dizer quanto à harmonia entre a alma e o corpo, nº 89 e seguinte. Sobre o § 37 98. Dizem-me que a alma não está no cérebro, mas no sensório, sem explicar o que é esse sensório. Mas supondo-se que esse sensório seja extenso, como julgo que pensam, é sempre a mesma dificuldade; e continua de pé a questão se a alma está difundida por toda essa extensão, por maior ou menor que seja, desde que o mais ou menos de grandeza não influi em nada. Sobre o § 38 99. Não empreenderei estabelecer aqui minha dinâmica, ou minha doutrina das forças; não seria o lugar adequado. Entretanto, posso muito bem responder à objeção que aqui levantam contra mim. Eu havia sustentado que as forças ativas se conservam neste mundo. Objetam-me que dois corpos moles, ou não elásticos, batendo um contra o outro, perdem sua força. Respondo que não. É verdade que, em conjunto, a perdem em relação a seu movimento total, mas as partes a recebem, sendo agitadas interiormente pela força do encontro. Assim sendo, esse defeito não ocorre senão na aparência. As forças não são destruídas, mas dissipadas entre as partes menores. Não se trata de perdê-las, mas fazer como os que trocam a moeda graúda em miúda. Estou de acordo, contudo, com o fato de que a quantidade do movimento não perdura a mesma, aprovando nisso o que se diz na pág. 341 da Óptica de Newton, citada aqui. Mostrei, porém, alhures que existe diferença entre a quantidade do movimento e a quantidade da força. Sobre o § 39 100. Haviam sustentado contra mim que a força decresce naturalmente no universo corporal, e que isso provém da dependência das coisas (terceira réplica aos §§ 13 e 14). Na minha terceira resposta, eu pedira que se provasse que esse defeito é resultado da dependência das coisas. Esquivam-se de satisfazer o meu pedido, atirando-se sobre um incidente e negando que se trate de um defeito. Mas, seja um defeito ou não, seria necessário provar que é uma consequência da dependência das coisas. 101. Entretanto não há dúvida de que aquilo que tornasse a máquina do mundo tão imperfeita como a de um mau relojoeiro fosse um defeito. 102. Diz-se agora que é uma consequência da inércia da matéria; mas é o que tampouco se provará. Essa inércia, preconizada e designada por Kepler, e repetida por Descartes em suas Cartas, e que empreguei na Teodiceia para dar uma imagem e ao mesmo tempo uma amostra da imperfeição natural das criaturas, faz somente com que as velocidades diminuam quando as matérias aumentam, mas isso sem nenhuma diminuição das forças. Sobre o § 40 103. Eu tinha sustentado que a dependência da máquina do mundo em relação a um autor divino é antes causa de que esse defeito não exista; que a obra não precisa ser refeita; que não está sujeita a estragos; e enfim que não poderia diminuir em perfeição. Adivinhem agora como se pode inferir contra mim, tal como se faz aqui, ser preciso, nesse caso, que o mundo material seja infinito e eterno, sem nenhum começo, e que Deus deva sempre ter criado tantos homens e outras espécies quantos seja possível criar. Sobre o § 41 104. Não digo que o espaço é uma ordem ou uma situação que torna as coisas situáveis; isso seria falar coisas sem nexo. Basta considerar minhas próprias palavras, e juntá-las ao que disse no nº 47, para mostrar como o espírito chega a formar a ideia do espaço, sem que seja necessário haver um ser real e absoluto que lhe corresponda fora do espírito e fora das relações. Não digo, pois, que o espaço é uma ordem ou uma situação, mas uma ordem das situações, ou uma ordem segundo a qual as situações são ordenadas, e afirmo que o espaço abstrato é essa ordem das situações, concebidas como possíveis. Logo, é alguma coisa ideal. Parece, porém, que não querem entender-me. Já respondi aqui, no nº 54, à objeção que pretende não ser a ordem capaz de quantidade. 105. Objetam aqui que o tempo não poderia ser uma ordem das coisas sucessivas porque a quantidade do tempo pode tornar-se maior ou menor, permanecendo a mesma ordem das sucessões. Respondo que isso não se dá, pois se o tempo é maior, haverá mais espaços sucessivos interpostos, e menos se é menor, dado que não há vácuo nem condensação ou penetração, por assim dizer, nos tempos, como tampouco nos lugares. 106. Creio que, sem as criaturas, a imensidade e a eternidade de Deus não deixariam de subsistir, mas sem nenhuma dependência dos tempos nem dos lugares. Se não existissem criaturas, não haveria nem tempos nem lugares, e por conseguinte nada de espaço atual. A imensidade de Deus é independente do espaço, como sua eternidade não depende do tempo. Quanto a essas duas ordens de coisas, elas significam somente que Deus estaria presente a todas as coisas que existissem e coexistiria com elas. Assim sendo, não admito o que ensinam aqui, que, se só Deus existisse, haveria tempo e espaço como agora. Em vez disso, penso que não existiriam senão nas ideias, como simples possibilidades. A imensidade e a eternidade de Deus são algo mais eminente que a duração e a extensão das criaturas, não somente quanto à grandeza, mas ainda com relação à natureza da coisa. Esses atributos divinos não precisam de coisas fora de Deus, como são os lugares e os tempos atuais. Tais verdades foram bem reconhecidas pelos teólogos e pelos filósofos. Sobre o § 42 107. Eu sustentara que a operação de Deus, pela qual repararia a máquina do mundo corporal, prestes por sua natureza (ao que pretendem) a cair no repouso, seria um milagre. Foi respondido que não se trataria de uma operação milagrosa, visto que seria ordinária e deveria acontecer muitíssimas vezes. Repliquei que não é o usual ou o não usual que faz o milagre propriamente dito, ou o de categoria, mas o fato de superar as forças das criaturas, o que é a opinião dos teólogos e dos filósofos. E assim concedem-me, pelo menos, que aquilo que introduzem, e que desaprovo, é um milagre da maior categoria conforme a ideia comum, isto é, que ultrapassa as forças criadas, e que é justamente o que todos procuram evitar na filosofia. Respondem-me agora que é fazer apelo da razão para a opinião vulgar. Mas replico ainda que essa opinião vulgar, segundo a qual se precisa evitar na filosofia, quanto possível, o que transcende as naturezas das criaturas, é muito razoável. Caso contrário, nada seria mais fácil que explicar tudo fazendo sobrevir uma divindade, Deum ex ma china, sem preocupação com as naturezas das coisas. 108. De resto, a opinião comum dos teólogos não deve ser tratada simplesmente como opinião vulgar. É necessário haver razões ponderosas para que a gente ouse se opor a ela, o que ocorre aqui. 109. Parece que o adversário se afasta de sua própria ideia, que exige que o milagre seja raro, ao censurar-me, ainda que sem fundamento (ver sobre o § 31), porque a harmonia preestabelecida seria um milagre perpétuo, a não ser que tenha querido raciocinar contra mim ad hominem. Sobre o § 43 110. Se o milagre não difere do natural senão na aparência e em relação a nós, de sorte que denominássemos milagre somente o que observamos raramente, não haverá diferença interna real entre o milagre e o natural, e, no fundo, tudo será igualmente natural, ou tudo será igualmente miraculoso. Os teólogos terão razão em concordar com o primeiro ponto, e os filósofos com o segundo? 111. A conclusão disso não seria ainda fazer de Deus a alma do mundo, se todas as suas operações são naturais, como as que a alma exerce no corpo? Nesse caso Deus será uma parte da natureza. 112. Numa boa filosofia e numa sã teologia, cumpre fazer distinção entre o que é explicável pelas naturezas e forças das criaturas, e o que apenas se pode explicar pelas forças da substância infinita. Urge colocar uma distância infinita entre a operação de Deus, que vai além das forças das naturezas, e as operações das coisas, que seguem as leis que Deus lhes deu, e que ele tornou capazes de seguir por suas naturezas, ainda que com sua assistência. 113. É aqui que entram as atrações propriamente ditas, e outras operações inexplicáveis pelas naturezas das criaturas, que ou são atribuídas a um milagre, ou se deve recorrer a absurdos, isto é, às qualidades ocultas dos escolásticos, que começam a nos impor sob o especioso nome de forças, mas que nos levam ao reino das trevas. Isso é inventa fruge, glandibus vesci (descoberta a seara, alimentar-se de bolotas). 114. No tempo de Boyle e de outros excelentes homens que floresciam na Inglaterra quando começava a reinar Carlos II, não se teria ousado impor-nos noções tão vazias. Espero que essa esplêndida época voltará sob um governo tão bom quanto o atual, e que os espíritos um pouco desviados demais pela desgraça dos tempos voltarão a melhor cultivar os conhecimentos sólidos. O essencial em Boyle era inculcar que tudo se fazia mecanicamente na física. Mas é a infelicidade dos homens desgostar enfim da própria razão, enjoando da luz. As quimeras começam a voltar e agradam, porque possuem algo de maravilhoso. Acontece no campo filosófico o que ocorre na poesia. A gente se cansou dos romances racionais, como a Clélia Francesa ou a Armêmia Alemã, retomando-se há algum tempo aos contos de fadas. 115. Quanto aos movimentos dos corpos celestes, e, mais ainda, quanto à formação das plantas e dos animais, não há milagre algum, exceto o início dessas coisas. O organismo dos animais é um mecanismo que supõe uma preformação divina; o que se segue é puramente natural e completamente mecânico. 116. Tudo o que se passa no corpo do homem e de qualquer animal é tão mecânico como o que se passa em um relógio. A única diferença é a que deve existir entre uma máquina duma invenção divina e a produção de um operário tão limitado quanto o homem. Sobre o § 44 117. Não há dificuldade entre os teólogos a respeito dos milagres dos anjos; trata-se somente do uso do termo. Poder-se-á dizer que os anjos fazem milagres, mas não propriamente ditos, ou seja, milagres de uma ordem inferior. Disputar sobre isso seria uma querela sobre palavra. Poder-se-á dizer que o anjo que transportava Habacuc pelos ares, que movia a piscina de Betsaida, fazia um milagre, mas não era um milagre de primeira categoria, por ser explicável pelas forças naturais dos anjos, superiores às nossas. Sobre o § 45 118. Eu objetara que uma atração propriamente dita, ou à moda escolástica, seria uma operação à distância, sem meio. Responde-me aqui que uma atração sem meio seria uma contradição. Muito bem: como entendê-la, então, quando se pretende que o sol, através de um espaço vazio, atrai o globo da terra? É Deus que serve de meio? Mas isso seria um milagre como nunca houve; superaria as forças das criaturas. 119. Ou são talvez algumas substâncias imateriais, ou alguns raios espirituais, ou algum acidente sem substância, alguma espécie, como a intencional ou qualquer outra que não sei qual seja, que devem fazer esse pretenso meio? Eis coisas de que parece estar cheia a cabeça de muitos, que não as sabem explicar. 120. Esse meio de comunicação é, dizem, invisível, intangível, não mecânico. Poder-se-ia acrescentar, com o mesmo direito: inexplicável, ininteligível, precário, sem fundamento, sem exemplo. 121. Mas ele é regular, dizem, constante e por consequência natural. Respondo que ele não poderia ser regular sem ser racional, e não poderia ser natural sem ser explicável pelas naturezas das criaturas. 122. Se esse meio, que exerce uma verdadeira atração, é constante e ao mesmo tempo inexplicável pelas forças das criaturas, mas também verdadeiro, é um milagre perpétuo, e, se não é milagroso, é falso. É uma coisa quimérica, uma qualidade oculta dos escolásticos. 123. Seria como o caso de um corpo que anda em volta, sem se afastar pela tangente, ainda que nada capaz de explicação o impedisse. Trata-se de um exemplo que já aduzi, e que não se julgou digno de resposta, porque mostra muito claramente a diferença entre o verdadeiro natural, de um lado, e, do outro, a quimérica qualidade oculta das escolas. Sobre o § 46 124. As forças naturais dos corpos acham-se todas submetidas às leis mecânicas, e as dos espíritos estão todas submetidas às leis morais. As primeiras seguem a ordem das causas eficientes, as segundas seguem a das finais. As primeiras operam sem liberdade, como um relógio; as segundas são exercidas com liberdade, que outra causa livre superior acertou com elas de antemão. Já falei disso no nº 92. 125. Termino por um ponto que o adversário me tinha oposto no começo desta quarta réplica e já respondido acima, nos nº 18, 19 e 20. Mas resolvi dizer mais alguma coisa sobre isso, ao concluir. Pretenderam, primeiramente, que cometo uma petição de princípio, mas de que princípio, digam-me por favor? Prouvera a Deus que nunca se tivessem suposto princípios menos claros! Esse princípio é o da necessidade de uma razão suficiente, a fim de que uma coisa exista, um acontecimento ocorra ou uma verdade se realize. Será um princípio que precise - de provas? Tinham-no concedido, ou feito como se o tivessem concedido, no nº 2 da terceira réplica, talvez porque parecesse chocante demais negá-lo, mas ou isso se fez só em palavras, ou o adversário se contradisse, ou se retratou. 126. Ouso dizer que, sem esse grande princípio, não se poderia chegar à prova da existência de Deus, nem dar a razão de muitas outras verdades importantes. 127. Não se serviram todos desse princípio em mil ocasiões? É verdade que o esqueceram por negligência em muitas outras, mas foi essa justamente a origem das quimeras, como, p. ex., de um tempo ou de um espaço real absoluto, do vácuo, dos átomos, de uma atração à escolástica, da influência física entre a alma e o corpo, e de mil outras ficções, tanto das que restaram da falsa persuasão dos antigos, como das que se inventaram há pouco. 128. Não foi por causa da violação desse grande princípio que os antigos já zombavam da declinação sem motivo dos átomos de Epicuro? E ouso dizer que a atração à escolástica, que se renova hoje e da qual não zombavam menos há uns trinta anos, nada tem de mais razoável. 129. Desafiei muitas vezes os autores a levantarem uma objeção contra esse grande princípio, citando um exemplo não contestado em que ele falta, mas nunca o fizera, nem o farão. Entretanto há uma infinidade de exemplos em que o princípio dá bons resultados; ou antes dá bons resultados em todos os casos conhecidos em que é empregado. Isso deve fazer julgar racionalmente que irá bem da mesma maneira nos casos desconhecidos, ou que só se tornarão conhecidos por meio dele, conforme a máxima da filosofia experimental, que procede a posteriori, mesmo que ele não fosse, de resto, justificado pela pura razão ou a priori. 130. Negar-me esse grande princípio é, aliás, fazer ainda como Epicuro, reduzido a negar o outro grande princípio, que é o da contradição, a saber, que toda enunciação inteligível deve ser verdadeira ou falsa. Crisipo gostava de prova-lo contra Epicuro, mas não creio ter que imita-lo, ainda que eu já tenha dito acima o que pode justificar meu princípio, e conseguisse ainda dizer alguma coisa a respeito, mas que seria talvez profundo demais para convir à presente contestação. E creio que pessoas racionais e imparciais concederão que o simples fato de ter reduzido o adversário a negar esse princípio é tê-lo ad absurdum. Quinta réplica de Clarke Como um palavreado difuso não caracteriza um espírito claro nem constitui um meio próprio de fornecer ideias claras aos leitores, esforçar-me-ei por responder a esta quinta carta de um modo distinto, e em tão poucas palavras quantas me for possível. 1-20. Não há semelhança alguma entre uma balança posta em movimento por pesos ou por um impulso e um espírito que se move, ou age, pela consideração de certos motivos. Eis em que consiste a diferença. A balança é inteiramente passiva, e por conseguinte sujeita a uma necessidade absoluta, ao passo que o espírito não somente recebe uma impressão, mas também age, o que faz a essência da liberdade. Supor que diferentes modos de agir, quando parecem igualmente bons, tiram inteiramente ao espírito o poder de agir, como os pesos iguais impedem necessariamente uma balança de se mover, significa negar que um espírito tenha em si mesmo um princípio de ação, e confundir o poder de atuar com a impressão que os motivos exercem sobre o espírito, no que ele é totalmente passivo. O motivo, ou o objeto que o espírito considera, e que ele tem em vista, é alguma coisa externa. A impressão que esse motivo causa sobre o espírito é a qualidade perceptiva na qual o espírito é passivo. Fazer alguma coisa depois, ou em virtude dessa percepção, é a faculdade de se mover por si mesmo ou de agir. Em todos os agentes animados é a espontaneidade, e nos agentes dotados de inteligência é propriamente o que chamamos liberdade. O erro em que se incorre neste ponto vem de não se distinguirem cuidadosamente essas duas coisas, de se confundirem o motivo e o princípio de ação, pretendendo-se que o espírito não tem outro princípio de ação senão o motivo, ainda que, ao receber a impressão do motivo, o espírito seja de todo passivo. Essa doutrina faz crer que o espírito não é mais ativo do que o seria uma balança, se ela, de resto, tivesse a faculdade de perceber as coisas: o que não se pode afirmar sem transtornar inteiramente a ideia da liberdade. Uma balança impelida dos dois lados por uma força igual, ou premida dos dois lados por pesos iguais, não pode ter nenhuma movimento. E supondo-se que esta balança receba a faculdade de perceber, de modo que saiba que lhe é impossível mover-se, ou que ela se iluda imaginando que se move por si mesma, embora não tenha senão um movimento comunicado, ela se encontraria no mesmo preciso estado em que o sábio autor supõe que se acha um agente livre, sempre que se trate de uma indiferença absoluta. Eis em que consiste a falsidade do argumento em tela. A balança, por não ter em si mesma um principio de ação, não se pode mover quando os pesos são iguais; mas um agente livre, quando se apresentam duas ou mais maneiras de agir igualmente razoáveis e perfeitamente semelhantes, conserva ainda em si mesmo o poder de agir, porque tem a faculdade de mover-se. Além disso, este agente livre pode ter muito boas e bem fortes razões para não se abster inteiramente de agir, ainda que talvez não haja nenhuma razão que possa determinar que certo modo de agir valha mais que outro. Não se pode pois sustentar que, suposto que duas diferentes maneiras de colocar certas partículas de matéria fossem igualmente boas e racionais, Deus não poderia absolutamente, nem de acordo com sua sabedoria, pô-las de nenhuma dessas duas formas, por falta de uma razão suficiente que pudesse determiná-lo a escolher uma de preferência à outra: não se pode, digo, propor tal coisa, sem fazer de Deus um ser puramente passivo, e por conseguinte ele não seria Deus ou o governador do mundo. Mas quando se nega a possibilidade desta suposição, a saber, que podem existir duas partes iguais de matéria, cuja situação pode ser igualmente bem transposta, não se poderá aduzir outra razão senão essa petição de princípio, ou seja, que nesse caso o que o sábio autor diz de uma razão suficiente não estaria bem fundamentado. Com efeito, sem isso, como se pode dizer que é impossível que Deus possa ter boas razões para criar muitas partículas de matéria perfeitamente semelhantes em diferentes lugares do universo? E nesse caso, pois que as partes do espaço são semelhantes, se Deus não deu a essas partes de matéria situações diferentes desde o começo, não pôde ter outra razão senão apenas sua vontade. Contudo não se pode dizer com razão que essa vontade é uma vontade sem nenhum motivo, porque as boas razões que Deus pode ter para criar muitas partículas de matéria perfeitamente semelhantes devem consequentemente servir-lhe de motivo para escolher (o que uma balança não poderia fazer) uma das duas coisas de todo indiferentes, ou seja, pôr essas partículas numa dada situação, embora uma situação completamente contrária tivesse sido do mesmo modo boa. A necessidade, nas questões filosóficas, significa sempre uma necessidade absoluta. A necessidade hipotética e a necessidade moral são simples maneiras figuradas de dizer; e, falando com um rigor filosófico, não são uma necessidade. Não se trata de saber se uma coisa deve ser, quando se supõe que ela é ou será: eis o que se chama uma necessidade hipotética. Não se trata tampouco de saber se é verdade que um ser bom, e que continua sendo bom, não poderia fazer o mal; ou se um ser sábio não poderia agir de uma maneira contrária à sabedoria; ou se uma pessoa que ama a verdade, e continua a amá-la, pode proferir uma mentira: é o que se chama uma necessidade moral. Mas a verdadeira e única questão filosófica a respeito da liberdade consiste em saber se a causa ou o princípio imediato e físico da ação está realmente naquele que chamamos o agente, ou se é alguma outra razão suficiente a verdadeira causa da ação, agindo sobre o agente e fazendo com que ele não seja um verdadeiro agente, mas sim um simples paciente. Note-se aqui, de passagem, que o sábio autor contradiz sua própria hipótese, quando afirma que a vontade não segue sempre exatamente o entendimento prático, pois pode às vezes encontrar-razões exatamente para suspender sua resolução. Com efeito, não constituem essas razões o último juízo do entendimento prático? 21-25. Será possível que Deus produza ou que tenha produzido duas porções de matéria perfeitamente semelhantes, de modo que a mudança da situação delas fosse uma coisa indiferente? O que o sábio autor diz de uma razão suficiente não prova nada. Respondendo a isso, ele não diz, como devia, ser impossível que Deus faça duas porções de matéria totalmente semelhantes, mas sim que sua sabedoria não lho permite fazer. Como assim? Poderia ele provar ser impossível que Deus possa ter boas razões para criar muitas partes de matéria perfeitamente semelhantes em diferentes lugares do universo? A única prova que ele alega é que não haveria nenhuma razão suficiente que pudesse determinar a vontade de Deus a pôr uma dessas partes de matéria numa situação antes que noutra. Mas se Deus pode ter várias boas razões (não se poderia provar o contrário), se Deus, digo, pode ter várias boas razões para criar muitas partes de matéria totalmente semelhantes, bastará a indiferença da situação delas para tornar impossível sua criação ou contrária à sabedoria divina? Parece-me que é formalmente supor o que está em questão. Não se respondeu a outro argumento da mesma natureza que baseei ria indiferença absoluta da primeira determinação particular do movimento no início do mundo. 26-32. Parece que existem aqui várias contradições. Reconhece-se que duas coisas de todo semelhantes seriam verdadeiramente duas coisas, e, não obstante essa opinião, continua-se a dizer que não teriam o princípio de individuação, e na quarta carta, § 6, garante-se positivamente que não passariam de uma só coisa sob dois nomes. Ainda que se reconheça ser possível minha suposição, não querem me permitir fazer essa suposição. Confessa-se que as partes do tempo e do espaço são perfeitamente semelhantes em si mesmas, mas nega-se essa semelhança quando há corpos nessas partes. Comparam-se as diferentes partes do espaço que coexistem e as diferentes partes sucessivas do tempo com uma linha reta, que corta outra linha reta em dois pontos coincidentes, que não formam senão um só ponto. Sustenta-se que o espaço é apenas a ordem das coisas que coexistem, e entretanto confessa-se que o mundo material pode ser limitado, donde se segue que deve necessariamente existir um espaço vazio além do mundo. Reconhece-se que Deus podia impor limites ao universo, e, depois dessa confissão, o autor não cansa de dizer que essa suposição é não somente irracional e sem finalidade, mas ainda uma ficção impossível, e garante que não há nenhuma razão possível que possa limitar a quantidade da matéria. Sustenta-se que o movimento do universo inteiro não produziria nenhuma modificação, e entretanto não se responde ao que eu dissera que um aumento ou uma cessação súbita do movimento do todo causaria um choque sensível a todas as partes. E não é menos evidente que um movimento circular do todo produziria uma força centrífuga em todas as partes. Eu disse que o mundo material deve ser móvel, se o todo é limitado; o autor nega-o porque as partes do espaço cujo todo é infinito e existe necessariamente, são imóveis. Afirma-se que o movimento encerra necessariamente uma mudança relativa de situação num corpo com relação a outros corpos, e entretanto não se fornece nenhum meio para evitar esta consequência absurda, como seja, que a mobilidade de um corpo depende da existência de outros, de modo que, se um corpo existisse sozinho, seria incapaz de movimento, ou que as partes de um corpo que circula (ao redor do sol, p. ex.) perderiam a força centrífuga que nasce de seu movimento circular, se toda a matéria exterior que as cerca fosse aniquilada. Por último, sustenta-se que a infinidade da matéria é o efeito da vontade de Deus; e entretanto aprova-se a doutrina de Descartes, como se fosse incontestável, ainda que todos saibam que a única base sobre a qual esse filósofo a estabeleceu é esta suposição: que a matéria é necessariamente infinita, visto que não se poderia supô-la finita sem contradição. Eis suas próprias palavras: Puta implicare contradictionem, ut mundus si! finitus ("julgo implicar contradição a assertiva de que o mundo é finito"). Sendo isso verdade, Deus nunca pôde limitar a quantidade da matéria, e por conseguinte ele não é o criador, nem pode destruir o mundo. Parece-me que o sábio autor não concorda jamais consigo mesmo em tudo o que diz a respeito da matéria e do espaço. De fato, às vezes combate o vácuo, ou o espaço destituído de matéria, como se fosse absolutamente impossível (sendo inseparáveis o espaço e a matéria), e entretanto reconhece frequentem ente que a quantidade da matéria no universo depende da vontade de Deus. 33-35. Para provar que existe o vácuo, eu disse que certos espaços não apresentam resistência. O sábio autor responde que esses espaços estão cheios de uma matéria que não tem peso. Mas o argumento não se baseava no peso; fundamentava-se na resistência, que deve ser proporcional à quantidade da matéria, tenha ela peso ou não. A fim de prevenir essa réplica, o autor diz que a resistência não vem tanto da quantidade da matéria quanto da dificuldade de ceder; mas este argumento vem completamente fora de propósito, porque a questão de que se trata não diz respeito senão aos corpos fluidos que têm pouca tenacidade, ou que não a têm de todo, como a água e o mercúrio, cujas partes não cedem senão à proporção da quantidade de matéria que contêm. O exemplo tirado da madeira flutuante, que contém menos matéria pesada que igual volume de água e que não deixa de oferecer uma maior resistência, esse exemplo, digo, é bem pouco filosófico. Com efeito, um volume igual de água encerrada em um navio, ou fendida e flutuante, apresenta uma resistência maior que a madeira flutuante, porque então a resistência é causada pelo volume todo da água. Mas, quando a água se acha em liberdade e em seu estado de fluidez, a resistência não é causada por toda a massa do volume igual de água, e sim unicamente por uma parte dessa massa; de forma que não é surpreendente que nesse caso a água pareça oferecer menos resistência que a madeira. 36-38. O autor não parece raciocinar seriamente nesta parte de sua carta. Contenta-se com dar uma falsa aparência à ideia da imensidade de Deus, que não é uma Inteligência supramundana (semota a nostris rebus seiunctaque longe: separada dos negócios terrenos e muito afastada), e que não está longe de cada um de nós, porque nele temos a vida, o movimento e o ser. O espaço ocupado por um corpo não é a extensão do mesmo, mas o corpo extenso existe nesse espaço. Não existe nenhum espaço limitado, mas nossa imaginação considera no espaço, que não tem limites e não os pode ter, tal parte ou tal quantidade que julga conveniente considerar. 39. O espaço não é uma afecção de um ou vários corpos, ou de nenhum ser limitado, e não passa de um sujeito para outro, mas ele é sempre e sem variação a imensidade de um ser imenso, que não cessa nunca de ser o mesmo. 40. Os espaços limitados não são propriedades das substâncias limitadas; não são senão partes do espaço infinito no qual as substâncias limitadas existem. 41. Se a matéria fosse infinita, o espaço infinito não seria uma propriedade desse corpo infinito mais que os espaços finitos são propriedades dos corpos finitos. Mas, nesse caso, a matéria infinita estaria no espaço infinito, como os corpos finitos nele se acham atualmente. 42. A imensidade não é menos essencial a Deus que sua eternidade. Sendo de todo diferentes as partes da imensidade das partes materiais, separáveis, divisíveis e móveis, donde nasce a corruptibilidade, não impedem a imensidade do ser essencialmente simples; assim como as partes da duração não impedem que a mesma simplicidade seja essencial à eternidade. 43-44. O próprio. Deus não está sujeito a nenhuma transformação pela diversidade e mudanças das coisas, que têm nele a vida, o movimento e o ser. Essa doutrina, que parece tão estranha para o autor, é a doutrina formal de São Paulo e a voz da natureza e da razão, 45. Deus não existe no espaço nem no tempo, mas sua existência é a causa deles. E quando dizemos, de acordo com a linguagem vulgar, que Deus existe em todo o espaço e todo o tempo, queremos apenas dizer que está em toda a parte e que é eterno, isto é, que o espaço infinito e o tempo são consequências necessárias de sua existência, e não que o espaço e o tempo são seres distintos dele, nos quais existisse. 46. Fiz ver acima, no. § 40, que o espaço limitado não é a extensão dos corpos. E basta comparar as duas seções seguintes (47 e 48) com o que eu já disse. 47-51. Parece-me que o que se encontra aqui não passa de um jogo de palavras. Quanto à questão relativa às partes do espaço, vejam-se acima Réplica III, § 3, e Réplica IV, § 11. 52-53. O argumento de que me servi neste ponto para fazer ver que o espaço é realmente independente dos corpos fundamenta-se no fato da possibilidade de ser o mundo material limitado e móvel. O sábio autor não devia pois se contentar com a réplica de que não crê que a sabedoria de Deus lhe pudesse permitir impor limites ao universo, tornando-o capaz de movimento. Cumpre que o autor sustente ser impossível que Deus criasse um mundo limitado e móvel, ou que reconheça a força de meu argumento, baseado na possibilidade de um mundo limitado e móvel. O autor não devia tampouco se contentar com a repetição do que afirmara, a saber, que o movimento de um mundo limitado não seria nada, e que, na falta de outros corpos com os quais se pudessem comparar (os corpos em movimento), ele não produziria nenhuma mudança sensível. Digo que o autor não devia se contentar com repetir isso, a menos que fosse capaz de refutar o que eu dissera acerca de uma bem grande transformação que ocorreria no caso proposto, ou seja, que as partes receberiam um choque sensível com um repentino aumento do movimento do todo, ou com a cessação desse mesmo movimento. Não se empreendeu responder a isso. 53. Como o sábio autor é obrigado a reconhecer aqui que há diferença entre o movimento absoluto e o movimento relativo, parece-me que daí se segue necessariamente que o espaço difere totalmente da situação ou da ordem dos corpos. É o que os leitores poderão decidir comparando o que o autor diz aqui com o que se acha nos Princípios do Cavaleiro Newton, livro I, definição 8. 54. Eu tinha dito que o tempo e o espaço são quantidades, o que não se pode dizer da situação e da ordem. Replica-se a isso que a ordem tem sua quantidade, que há na ordem alguma coisa que precede e alguma coisa que segue, que existe uma distância ou um intervalo. Respondo que o que precede ou o que segue constituem a situação ou a ordem, mas a distância, o intervalo ou a quantidade do tempo e do espaço no qual uma coisa segue outra são algo totalmente distinto da situação ou da ordem, não constituindo nenhuma quantidade de situação ou de ordem. A situação ou a ordem podem ser as mesmas, sendo a quantidade do tempo e do espaço, que intervém, assaz diferente. O sábio autor acrescenta que as razões e as proporções têm sua quantidade, e que, por conseguinte, o tempo e o espaço podem ter também a sua, ainda que não passem de relações. Respondo primeiramente que, embora fosse verdade que algumas espécies de relações (como, p. ex., as razões ou as proporções) fossem quantidades, não se seguiria que a situação e a ordem, que são relações de uma natureza completamente diversa, fossem também quantidades. Em segundo lugar, as proporções não são quantidades, mas proporções de quantidades. Se fossem quantidades, seriam quantidades de quantidades, o que é absurdo. Acrescento que, se fossem quantidade, aumentariam sempre graças à adição, como todas as outras quantidades. Mas a adição da proporção de 1 para 1 à proporção de 1 para 1 não produz mais que a proporção de 1 para 1, e a adição da proporção de 1/2 para 1 à proporção de 1 para 1 não produz a proporção de 1 e 1/2 para 1, mas somente a proporção de 1/2 para 1. O que os matemáticos denominam por vezes, com pouca exatidão, a quantidade da proporção não é, propriamente falando, mais que a quantidade da grandeza relativa ou comparativa de uma coisa em relação a outra; e a proporção não é a própria grandeza comparativa, mas a comparação ou a relação de uma grandeza com outra. A proporção de 6 para 1, em relação à de 3 para 1, não é uma, dupla quantidade de proporção, mas a proporção de uma dupla quantidade. E, em geral, o que se diz ter uma maior ou menor proporção não é ter uma maior ou menor quantidade de proporção ou de relação, mas ter uma maior ou menor quantidade em comparação com outro. Não é uma maior ou menor comparação, mas a comparação de uma maior ou menor quantidade. A expressão logarítmica de uma proporção não é (como o sábio autor o diz) a medida, mas somente o Índice ou o sinal artificial da proporção. Esse Índice não designa uma quantidade da proporção: marca somente quantas vezes uma proporção é repetida ou complicada. O logaritmo da proporção de igualdade é 0, o que não impede que seja uma proporção tão real quanto qualquer outra; e quando o logaritmo é negativo, como -1, a proporção de que ele é sinal ou índice não deixa de ser afirmativa. A proporção duplicada ou triplicada não designa uma quantidade dupla ou tripla de proporção: marca apenas quantas vezes a proporção está repetida. Triplicando-se uma vez alguma grandeza ou alguma quantidade, obtém-se uma grandeza ou quantidade que, com relação à primeira, tem a proporção de 3 para 1. Triplicando-se uma segunda vez, não se obtém uma dupla quantidade de proporção, mas uma grandeza ou quantidade que, com relação à primeira, tem a proporção (que se chama dupla) de 9 para 1. Triplicando-se uma terceira vez, não se obtém uma tripla quantidade de proporção, mas uma grandeza ou quantidade que, com relação à primeira, tem a proporção (que se chama tripla) de 27 para 1, e assim por diante. Em terceiro lugar, o tempo e o espaço não têm em absoluto a natureza das proporções, mas a natureza das quantidades absolutas, com as quais convêm as proporções. P. ex., a proporção de 12 para 1 é uma proporção muito maior que a de 2 para 1, e entretanto uma só e mesma quantidade pode ter a proporção de 12 para 1 relativamente a uma grandeza, e de 2 para 1 com relação a uma outra. Assim é que o espaço de um dia tem muito maior proporção com uma hora que com a metade de um dia, e entretanto, não obstante essas duas proporções, continua a ser a mesma quantidade de tempo, sem nenhuma variação. É pois certo que o tempo (e o espaço também, pela mesma razão) não é da natureza das proporções, mas da natureza das quantidades absolutas e invariáveis, que têm proporções diferentes. Portanto, a opinião do sábio autor será ainda, como ele mesmo confessa, uma contradição, a menos que faça ver a falsidade deste raciocínio. 55-63. Parece-me que tudo o que se encontra aqui é uma contradição manifesta. Os sábios o julgarão. Supõe-se formalmente, numa passagem, que Deus teria podido criar o universo mais cedo ou mais tarde. E, em outro lugar, declara-se que esses mesmos termos (mais cedo e mais tarde) são expressões ininteligíveis e suposições impossíveis. Acham-se semelhantes contradições naquilo que o autor diz a respeito do espaço em que a matéria subsiste. Veja-se acima, sobre os §§ 26-32. 64 e 65. Ver acima §54. 66-70. Vejam-se acima §§ 1-20 e 21-25. Acrescentarei somente aqui que o autor, comparando a vontade de Deus com o acaso de Epicuro quando entre vários modos de agir igualmente bons escolhe um, compara entre si duas coisas que são tão diferentes quanto se possa imaginar, pois que Epicuro não reconhecia nenhuma vontade, nenhuma inteligência, nenhum princípio ativo na formação do universo. Cf. acima, §§ 21-25. Supra. §§ 1-20. 73-75. Quando se considera se o espaço é independente da matéria, e se o universo pode ser limitado e móvel (ver acima §§ 1-20 e 26-32, não se trata da sabedoria ou da vontade de Deus, mas da natureza absoluta e necessária das coisas. Se o universo pode ser limitado e móvel pela vontade de Deus o que o sábio autor vê-se obrigado a conceder aqui, conquanto diga continuamente que é uma suposição impossível, segue-se com evidência que o espaço no qual esse movimento se realiza é independente da matéria. Mas se, pelo contrário, o universo não pode ser limitado e móvel, e se o espaço não pode ser independente da matéria, segue-se evidentemente que Deus não pode nem podia impor limites à matéria, e por conseguinte o universo deve ser não somente sem limites, mas também eterno, tanto a parte ante como a parte post, necessariamente e independentemente da vontade de Deus. Quanto à opinião dos que sustentam que o mundo poderia ter existido desde toda eternidade, pela vontade de Deus, que exerceria assim sua potência eterna; essa opinião, digo, não se refere de modo algum à matéria de que se trata aqui. 76 e 77. Vejam-se acima §§ 73-75 e 1-20; e abaixo, § 103. 78. Não se encontra aqui nenhuma nova objeção. Fiz ver amplamente, nas réplicas precedentes, que a comparação de que o Cavaleiro Newton se serviu, e que aqui se ataca, é justa e inteligível. 79-82. Tudo quanto se objeta aqui na seção 79 e na seguinte é um mero jogo de palavras. A existência de Deus, como já o disse várias vezes, é a causa do espaço, e todas as outras coisas existem nesse espaço. Segue-se portanto que o espaço é também o lugar das ideias, por ser o lugar das próprias substâncias que têm em seu entendimento as ideias. Eu dissera, como comparação, que a ideia do autor era tão pouco razoável como se alguém sustentasse que a alma humana é a alma das imagens das coisas que ela percebe. O sábio autor raciocina brincando sobre isso, como se eu tivesse garantido tratar-se da minha própria opinião. Deus percebe tudo, não por intermédio de um órgão, mas por estar atualmente presente em toda parte. O espaço universal é pois o lugar em que ele percebe as coisas. Fiz ver amplamente acima o que se deve entender pela palavra "sensório" e o que é a alma do mundo. Será demais pedir que se abandone a consequência de um argumento, não se fazendo nenhuma objeção nova contra as premissas? 83-88 e 89-91. Confesso não entender nada do que o autor diz quando afirma que a alma é um princípio representativo, que cada substância simples é por sua própria natureza uma concentração e um espelho vivo de todo o universo, que ela é uma representação do universo, de seu ponto de vista, e que todas as substâncias simples terão sempre o mesmo universo. Quanto à harmonia preestabelecida, em virtude da qual se pretende que as afecções da alma e os movimentos mecânicos do corpo se conciliam sem nenhuma influência mútua, veja-se infra sobre os § § 110-116. Supus que as imagens das coisas são levadas através dos órgãos sensoriais ao sensório, onde a alma as percebe. O adversário sustenta que é uma coisa ininteligível, mas sem apresentar prova alguma. A respeito desta questão, a saber, se uma substância imaterial age sobre uma substância material, ou esta sobre aquela, ver abaixo §§ 110-116. Dizer que Deus percebe e conhece todas as coisas, não por sua presença atual, mas por produzi-las continuamente de novo, eis uma pura ficção dos escolásticos, sem nenhum fundamento. Quanto à objeção segundo a qual Deus seria a alma do mundo, veja-se minha ampla resposta na Réplica II, § 12, e Réplica IV, § 32. 92. O autor supõe que todos os movimentos de nossos corpos são necessários e produzidos por um simples impulso mecânico da matéria, a qual é totalmente independente da alma; mas não posso deixar de crer que essa doutrina conduz à necessidade e ao destino. Ela tende a fazer julgar que os homens são apenas puras máquinas (como Descartes imaginara que os animais não têm alma), destruindo todos os argumentos baseados nos fenômenos, ou seja, nas ações dos homens, e que usamos para provar que estes têm alma e não são seres puramente materiais. Veja-se abaixo, sobre os §§ 110-116. 93-95. Eu dissera que cada ação consiste em dar uma nova força às coisas, que recebem uma impressão. A isso se responde que dois corpos duros e iguais, lançados um contra o outro, retomam com a mesma força, e que por conseguinte sua ação recíproca não dá uma nova força. Bastaria replicar que nenhum desses dois corpos retoma com sua própria força; que cada um deles perde sua própria força, e é repelido com uma nova força comunicada pela elasticidade do outro. Com efeito, se esses dois corpos não tiverem elasticidade, não retomarão. Mas o certo é que todas as comunicações de movimento puramente mecânicas não são uma ação, propriamente; são uma simples paixão, tanto nos corpos que impelem como nos que são impelidos. A ação é o começo de um movimento que não existia antes, produzido por um princípio de vida ou de atividade: e se Deus ou o homem, ou algum agente vivente ou ativo, age sobre alguma parte do mundo material, não sendo tudo um simples mecanismo, urge que haja um aumento e uma diminuição contínua de toda a quantidade do movimento que existe no universo. Mas é o que o sábio autor nega em diversas passagens. 96 e 97. Aqui ele se contenta com remeter ao que disse em outra parte. Farei também a mesma coisa. 98. A alma é uma substância que enche o sensório, ou o lugar no qual percebe as imagens das coisas, que são levadas para lá. Daí não se infere que deve ser composta de partes semelhantes às da matéria (porque as partes da matéria são substâncias distintas e independentes uma da outra); mas a alma inteira vê, ouve e pensa, como sendo essencialmente um só ser individual. 99. Para fazer ver que as forças ativas que estão no mundo, isto é, a quantidade do movimento ou a força impulsiva comunicada aos corpos; para fazer ver, digo, que essas forças ativas não diminuem naturalmente, o sábio autor sustenta que dois corpos moles e sem elasticidade, ao se encontrar com forças iguais e contrárias, perdem cada um todo o seu movimento, porque este é comunicado às pequenas partes de que se compõem. Mas, quando dois corpos inteiramente duros e sem elasticidade perdem seu movimento ao se encontrarem, trata-se de saber o que se toma esse movimento, ou essa força ativa e impulsiva. Não poderia dispersar-se entre as partes desses corpos, porque essas partes não são suscetíveis de nenhum tremor, por falta de elasticidade. E, se se nega que esses corpos devem perder seu movimento total, respondo que então se seguirá que os corpos duros e elásticos retomarão com uma dupla força, a saber, com a força que resulta da elasticidade e ainda com toda a força direta e primitiva, ou pelo menos com uma parte dessa força, o que é contrário à experiência. Enfim, o autor, tendo considerado a demonstração de Newton, que acima citei, vê-se obrigado a reconhecer que a quantidade do movimento no mundo não é sempre a mesma, mas recorre a outro subterfúgio, dizendo que o movimento e a força não são sempre os mesmos em quantidade. Mas isto também é contrário à experiência. Com efeito, a força de que se trata não é a força da matéria, que se chama vis inertiae, a qual continua efetivamente a ser sempre a mesma enquanto a quantidade da matéria for a mesma, mas a força de que falamos aqui é a força ativa, impulsiva e relativa sempre proporcionada à quantidade do movimento relativo. É o que se vê constantemente pela experiência, a menos que se caia em algum erro, por falta de saber calcular e de deduzir a força contrária, que nasce da resistência que os fluidos exercem sobre o corpo, da maneira como estes se possam mover, e da ação contrária e contínua da gravitação sobre os corpos lançados para cima. 100-102. Na última seção fiz ver que a força ativa, segundo a definição que dela dei, diminui contínua e naturalmente no mundo material. É evidente que isso não constitui um defeito, por não ser senão uma consequência da inatividade da matéria. De fato, essa inatividade não é somente a causa, como o observa o autor, da diminuição da velocidade à medida que a quantidade da matéria aumenta (o que na verdade não significa uma diminuição da quantidade do movimento), mas é também a causa de que os corpos sólidos, perfeitamente duros e sem elasticidade, encontrando-se com forças iguais e contrárias, percam todo seu movimento e toda sua força ativa, como o mostrei acima, e por consequência tenham necessidade de alguma outra causa para receber um novo movimento. 103. Fiz ver amplamente, em minhas réplicas anteriores, que não há defeito algum nas coisas de que se fala aqui. Com efeito, por que Deus não teria tido a liberdade de fazer um mundo que continuasse, no estado em que está atualmente, por tanto tempo ou tão pouco quanto o julgasse conveniente, e que em seguida mudasse, recebendo a forma que ele lhe quisesse dar, por uma transformação sábia e conveniente, mas que talvez estivesse totalmente acima das leis do mecanismo? O autor sustenta que o universo não pode diminuir em perfeição; que não existe nenhuma razão que possa limitar a quantidade da matéria; que as perfeições de Deus o obrigam a produzir sempre tanta matéria quanto lhe for possível, e que um mundo limitado é uma ficção inviável. Dessa doutrina inferi que o mundo deve necessariamente ser infinito e eterno: que os sábios julguem se essa consequência foi bem fundada. 104-105. O autor diz agora que o espaço não é uma ordem ou uma situação, mas uma ordem de situações. Isso não impede que a mesma objeção subsista sempre, a saber, que uma ordem de situações não é uma quantidade, como o espaço o é. O autor, por sua vez, remete à seção 54, onde crê ter provado que a ordem é uma quantidade. Também o que o autor diz a respeito do tempo encerra um absurdo, ou seja, que o tempo não é senão a ordem das coisas sucessivas, e entretanto não deixa de ser uma verdadeira quantidade, visto que é não somente a ordem das coisas sucessivas, mas também a quantidade da duração que intervém entre cada uma das coisas particulares que se sucedem nessa ordem, o que é uma contradição manifesta. 106. Dizer que a imensidade não significa um espaço sem limites, e que a eternidade não significa uma duração ou um tempo sem começo nem fim, é (ao que me parece) sustentar que as palavras não têm significação alguma. Em vez de raciocinar sobre este assunto, o autor nos remete ao que certos teólogos e filósofos (que eram de seu parecer) pensaram a respeito da matéria. Mas não é disso que se trata entre ele e mim. 107-109. Eu disse que entre as coisas possíveis não há nenhuma que seja mais milagrosa que outra com relação a Deus, e que por conseguinte o milagre não consiste em nenhuma dificuldade que se encontre na natureza de uma coisa que deve ser feita, mas consiste simplesmente em que Deus o faça raramente. A palavra "natureza" e as designações "forças da natureza", "curso da natureza", etc., são termos que significam simplesmente que uma coisa ocorre de ordinário ou frequentemente. Quando um corpo humano reduzido a pó é ressuscitado, dizemos que é um milagre: quando um corpo humano é engendrado de forma comum, dizemos que é uma coisa natural. Essa distinção se funda unicamente no fato de que a potência de Deus produz uma dessas duas coisas ordinariamente, e a outra raramente. Se o sol (ou a terra) parar subitamente, dizemos que é um milagre; mas o movimento contínuo do sol (ou da terra) parece-nos uma coisa ordinária, e não extraordinária como a outra. Se os homens saíssem ordinariamente do túmulo, como o trigo sai da semente, diríamos por certo que isso seria também uma coisa natural; e se o sol (ou a terra) fosse sempre imóvel, isso nos pareceria natural; e nesse caso consideraríamos o movimento do sol (ou da terra) como uma coisa milagrosa. O sábio autor não diz nada contra essas razões (essas grandes razões, como as denomina), que são tão evidentes. Contenta-se com remeter-nos aos modos de falar ordinários de certos filósofos e certos teólogos; mas, como já observei acima, não é disso que se trata entre o autor e mim. 110-116. É surpreendente que, numa questão que deve ser decidida pela razão e não pela autoridade, o adversário nos remeta ainda à opinião de certos filósofos e teólogos. Mas, para não insistir nisso, que quer dizer o sábio autor ao falar de uma diferença real e interna entre o que é milagroso e o que não o é, ou entre as operações naturais e as não naturais, absolutamente e com referência a Deus? Será que ele acredita que há em Deus dois princípios de ação diferentes e realmente distintos, ou que uma coisa é mais difícil que outra para Deus? Se ele não acredita, seguir-se-à uma das duas coisas. Primeiramente, ou os termos "ação de Deus natural" e "sobrenatural" têm uma significação apenas relativa aos homens, porque nos acostumamos a dizer que um efeito ordinário do poder de Deus é uma coisa natural, e um efeito extraordinário desse mesmo poder é uma coisa sobrenatural (não sendo o que se chama forças da natureza senão, em verdade, uma expressão sem nenhum sentido). Ou então, em segundo lugar, conclui-se que, por uma ação sobrenatural de Deus, é preciso entender o que o próprio Deus faz imediatamente, e por uma ação natural de Deus, o que faz por intermédio das causas segundas. Nesta parte de sua carta, o autor se declara abertamente contra a primeira dessas duas distinções, e rejeita formalmente a segunda na seção 117, onde reconhece que os anjos podem realizar verdadeiros milagres. Não creio entretanto que se possa inventar uma terceira distinção na matéria de que se trata aqui. É inteiramente irracional chamar a atração um milagre, e dizer que é um termo que não deve entrar na filosofia, ainda que tenhamos tantas vezes declarado, de um modo distinto e formal, que ao servir-nos dessa palavra não pretendemos exprimir a causa que faz com que os corpos tendam um ao outro, mas somente o efeito dessa causa, ou o fenômeno em si, e as leis ou proporções segundo as quais os corpos tendem um ao outro, como se verifica pela experiência, qualquer que possa ser sua causa. É ainda mais irracional não querer admitir a gravitação ou a atração no sentido que lhe damos, segundo o qual ela é por certo um fenômeno da natureza, e pretender ao mesmo tempo que admitamos uma hipótese tão estranha quanto a da harmonia preestabelecida, segundo a qual a alma e o corpo de um homem não influem mais, um sobre o outro, que dois relógios bem ajustados, por mais afastados que estejam um do outro, e sem que haja entre ambos nenhuma ação recíproca. É verdade que o autor diz que Deus, prevendo as inclinações de cada alma, formou desde o começo a grande máquina do universo de tal maneira que, em virtude das simples leis do mecanismo, os corpos humanos recebem movimentos convenientes, como sendo partes dessa grande máquina. É, porém, possível que semelhantes movimentos, e tão diversificados como o são os dos corpos humanos, sejam produzidos por um puro mecanismo, sem que a vontade e o espírito ajam sobre esses corpos? Acreditar-se-á que, quando um homem toma uma resolução, e sabe com antecedência de um mês o que fará certo dia ou certa hora, seu corpo, graças a um simples mecanismo produzido no mundo material desde o começo da criação, se conformará pontualmente, no tempo exato, com todas as resoluções do espírito desse homem? Consoante essa hipótese, todos os raciocínios filosóficos, baseados nos fenômenos e nas experiências, tornam-se inúteis. Com efeito, se a harmonia preestabelecida é verdadeira, um homem não vê, não ouve e não sente nada, nem move de maneira alguma seu corpo: imagina somente ver, ouvir, sentir e mover seu corpo. E se os homens se persuadissem de que o corpo humano não passa de uma pura máquina, e de que todos os seus movimentos, que parecem voluntários, são produzidos pelas leis necessárias de um mecanismo material, sem nenhuma influência ou operação da alma sobre o corpo, concluiriam logo que essa máquina é o homem todo, e que a alma harmônica, na hipótese de uma harmonia preestabelecida, é apenas uma pura ficção e uma vã imaginação. Além disso, que dificuldade se evita por meio de uma tão estranha hipótese? Não se evita senão a seguinte: que não é possível conceber como uma substância imaterial pode agir sobre a matéria. Mas Deus não é uma substância imaterial, e não atua sobre a matéria? De resto, será mais difícil conceber a ação de uma substância imaterial sobre a matéria, do que a da matéria sobre a própria matéria? Não é tão fácil conceber que certas partes da matéria possam ser obrigadas a seguir os movimentos e as inclinações da alma, sem nenhuma impressão corporal, quanto conceber que certas porções de matéria sejam obrigadas a seguir seus movimentos recíprocos, devido à união ou adesão de suas partes, que não se poderia explicar por nenhum mecanismo; ou que os raios de luz sejam refletidos regularmente por uma superfície que nunca tocam? É do que o Cavaleiro Newton nos deu diversas experiências oculares em sua Óptica. Não é menos surpreendente que o autor repita ainda, em termos formais, que, desde que o mundo foi criado, a continuação do movimento dos corpos celestes, a formação das plantas e dos animais, e todos os movimentos dos corpos humanos e dos outros animais não são menos mecânicos que os movimentos de um relógio. Parece-me que os que seguem essa opinião deveriam explicar pormenorizadamente por que leis de mecanismo os planetas e os cometas continuam a se mover nas órbitas em que se movem, através de um espaço que não oferece resistência; por que leis mecânicas as plantas e os animais se formam, e qual é a causa dos movimentos espontâneos dos animais e dos homens, cuja variedade é quase infinita. Mas estou grande mente persuadido de que não é menos impossível explicar todas essas coisas do que o seria fazer ver que uma casa ou uma cidade fosse construída por um simples mecanismo ou que o próprio mundo tivesse sido formado desde o começo sem nenhuma causa inteligente e ativa. O autor reconhece formalmente que as coisas não podiam ser produzidas por um puro mecanismo. Após essa confissão, não consigo compreender por que ele parece tão interessado em banir Deus do governo atual do mundo, sustentando que sua providência não consiste senão num simples concurso, como se diz, pelo qual todas as criaturas só fazem o que fariam por si mesmas, graças a um simples mecanismo. Afinal, eu não saberia conceber por que o autor imagina que Deus é obrigado, por sua natureza ou por sua sabedoria, a nada produzir e a deixar a máquina do mundo ser regida por simples leis mecânicas, uma vez posta em movimento. 117. O que o sábio autor confessa aqui, ou seja, que há o mais e o menos nos verdadeiros milagres, e que os anjos podem operar alguns milagres, é uma coisa diretamente contrária ao que ele dissera acima, em todas as cartas, sobre a natureza do milagre. 118-123. Se dizemos que o sol atrai a terra através de um espaço vazio, isto é, que a terra e o sol tendem um ao outro (qualquer que possa ser a causa disso), com uma força que está em proporção direta de suas massas ou de suas grandezas e densidades tomadas em conjunto, e em proporção dupla inversa de suas distâncias, e que o espaço entre esses dois corpos é vazio, ou seja, que não existe nada que resista sensivelmente ao movimento dos corpos que o atravessam, temos aí simplesmente um fenômeno ou um fato atual, descoberto pela experiência. É verdade sem dúvida que esse fenômeno não se produz sem meio, isto é, sem uma causa capaz de produzir tal efeito. Os filósofos, pois, podem procurar essa causa e tratar de descobri-la, se lhes for possível, quer ela seja mecânica, quer não. Mas se eles não puderem descobrir essa causa, seguir-se-á que o próprio efeito ou o fenômeno descoberto pela experiência (eis tudo o que se quer dizer com as palavras "atração" e "gravitação") seja menos certo e menos incontestável? Deverá uma qualidade evidente chamar-se oculta só porque sua causa imediata talvez seja oculta ou não descoberta ainda? Quando um corpo se move em círculo sem se afastar pela tangente, existe por certo alguma coisa que impede essa fuga; mas se em alguns casos não é possível explicar mecanicamente a causa desse efeito, ou se isso ainda não foi descoberto, seguir-se-á que o fenômeno seja falso? Seria um modo bastante singular de raciocinar. 124-130. O próprio fenômeno - a atração, a gravitação ou o esforço (não importa que nome se lhe dê) - pelo qual os corpos tendem um ao outro, e as leis ou as proporções dessa força são bastante conhecidos pelas observações e experiências. Se Leibniz, ou qualquer outro filósofo, pode explicar esses fenômenos pelas leis do mecanismo, bem longe de ser impugnado, todos os sábios lho agradecerão. Ao contrário, eu não poderia deixar de dizer que o autor raciocina de uma maneira totalmente extraordinária ao comparar a gravitação, que é um fenômeno ou um fato atual, com a declinação dos átomos, segundo a doutrina de Epicuro. Este, tendo corrompido, no intuito de introduzir o ateísmo, uma filosofia mais sã, chegou à ideia de estabelecer essa hipótese, que não passa de uma pura ficção, e que, de resto, é impossível num mundo em que se supõe não haver nenhuma inteligência. No que se refere ao grande princípio de uma razão suficiente, tudo o que o sábio autor acrescenta aqui acerca dessa matéria não consiste senão em sustentar sua conclusão, sem prová-la, e por conseguinte não é necessário dar resposta. Observarei tão somente que essa expressão é equívoca, podendo-se entendê-la como se não contivesse senão a necessidade, ou como se pudesse significar também uma vontade e uma escolha. É certíssimo, e todos concordarão, que em geral há uma razão suficiente para cada coisa. Trata-se, porém, de saber se, em certos casos, quando é razoável agir, diferentes modos possíveis de atuar não podem ser igualmente razoáveis, e se, nesses casos, a simples vontade de Deus não é uma razão suficiente para operar de certa maneira antes que de outra, ou se, quando as mais fortes razões se acham de um só lado, os agentes inteligentes e livres não têm um princípio de ação (em que consiste, ao que creio, a essência da liberdade) inteiramente distinto do motivo ou da razão que o agente tem em vista? O sábio autor nega tudo isso. E como ele estabelece seu grande princípio de uma razão suficiente num sentido que exclui tudo o que acabo de dizer, pedindo que lhe concedam esse princípio nesse sentido, conquanto não tenha empreendido prova-lo, chamo isso uma petição de princípio, o que é de todo indigno de um filósofo. N. B. A morte de Leibniz impediu-o de responder a esta quinta réplica.