René Descartes - Cartas A ELISABETH Egmond-du-Hoef, 21 de maio de 1643 Minha Senhora, O favor com que Vossa Alteza me honrou, fazendo-me receber suas ordens por escrito, é maior do que jamais ousaria esperar e ele alivia melhor as minhas faltas do que aquele que eu almejara com paixão, que era o de recebê-las de viva voz, se me fosse dada a honra de prestar-lhe reverência e oferecer-lhe os meus mui humildes préstimos, quando estive ultimamente em Haia. Pois eu teria maravilhas em demasia para admirar ao mesmo tempo; e, vendo emanar discursos mais do que humanos de um corpo tão semelhante ao que os pintores concedem aos anjos, ficaria extasiado da mesma maneira que me parecem dever ficar os que, vindos da terra, entram de novo no céu. E isso me teria tornado menos capaz de responder a Vossa Alteza, que sem dúvida já observou em mim este defeito, quando tive anteriormente a honra de lhe falar; e a clemência de V. A. quis consolá-la, confiando-me os traços de seus pensamentos sobre um papel, onde, relendo-os muitas vezes e acostumando-me a considerá-los, deixam-me verdadeiramente menos deslumbrado, porém com tanto maior admiração, ao observar que não parecem somente engenhosos à primeira vista, mas tanto mais judiciosos e sólidos quanto mais são examinados. E posso dizer, com verdade, que a questão proposta por Vossa Alteza parece-me ser a que me podem formular com mais razão, em virtude dos escritos que publiquei. Pois, havendo duas coisas na alma humana, das quais depende todo conhecimento que podemos ter de sua natureza, uma das quais é que ela pensa e a outra, que, estando unida ao corpo, pode agir e padecer com ele, quase nada disse da última e empenhei-me apenas em aclarar bem a primeira, porque o meu principal intuito era provar a distinção que há entre a alma e o corpo; para o que, somente esta podia servir e a outra seria nociva. Mas, como Vossa Alteza vê tão claro que não se poderia dissimular-lhe qualquer coisa, esforçar-me-ei aqui por explicar a maneira pela qual concebo a união da alma com o corpo e como tem ela a força de movê-lo. Primeiramente, considero haver em nós certas noções primitivas, as quais são como originais, sob cujo padrão formamos todos os nossos outros conhecimentos. E não há senão muito poucas dessas noções; pois, após as mais gerais, do ser, do número, da duração, etc., que convêm a tudo quanto possamos conceber, possuímos, em relação ao corpo em particular, apenas a noção da extensão, da qual decorrem as da figura e do movimento; e, quanto à alma somente, temos apenas a do pensamento, em que se acham compreendidas as percepções do entendimento e as inclinações da vontade; enfim, quanto à alma e ao corpo em conjunto, temos apenas a de sua união, da qual depende a noção da força de que dispõe a alma para mover o corpo, e o corpo para atuar sobre a alma, causando seus sentimentos e suas paixões. Considero também que toda a ciência dos homens consiste tão somente em bem distinguir essas noções e não atribuir cada qual senão às coisas a que pertencem. Pois, ao querer explicar alguma dificuldade por uma noção que não lhe pertence, não podemos deixar de nos equivocar, assim como ao querer explicar uma dessas noções por outra; pois, sendo primitivas, cada uma delas só pode ser entendida por si mesma. E já que a prática dos sentidos nos tornou as noções da extensão, das figuras e dos movimentos muito mais familiares do que as outras, a principal causa de nossos erros está em que pretendemos comumente nos servir dessas noções para explicar as coisas a que não pertencem, como quando se quer utilizar a imaginação para conceber a natureza da alma, ou então, quando se quer conceber a maneira pela qual a alma move o corpo, mediante aquela pela qual um corpo é movido por outro corpo. Por isso, visto que, nas Meditações que Vossa Alteza se dignou ler, procurei fazer conceber as noções que só pertencem à alma, distinguindo-as das que pertencem só ao corpo, a primeira coisa que devo explicar em seguida é a maneira de conceber as que pertencem à união da alma com o corpo, sem as que pertencem só ao corpo, ou só à alma. A isso me parece que pode servir o que escrevi no fim da minha Resposta às Sextas Objeções; pois não podemos buscar essas noções simples em outra parte exceto em nossa alma que, por sua natureza, as tem todas em si, mas que nem sempre as distingue suficientemente umas das outras, ou não as atribui aos objetos aos quais devemos atribuí-las. Assim, creio que confundimos até agora a noção da força com que a alma atua no corpo e aquela com que um corpo atua em outro; e que atribuímos ambas não à alma, pois não a conhecíamos ainda, porém às diversas qualidades dos corpos, como a gravidade, o calor e as outras, que imaginamos serem reais, isto é, possuírem uma existência distinta da do corpo e, por conseguinte, serem substâncias, embora as denominássemos qualidades. E nos servimos, para concebê-las, ora de noções que se encontram em nós para conhecer o corpo, ora das que aí se encontram para conhecer a alma, conforme o que lhes atribuímos fosse material ou imaterial. Por exemplo, supondo que a gravidade é uma qualidade real, da qual não possuímos qualquer outro conhecimento, exceto que tem a força de mover o corpo, no qual se acha, para o centro da terra, não nos é difícil conceber como ela move esse corpo, nem como está unida a ele; e não pensamos que isso se realiza pelo contato real de uma superfície com outra, pois experimentamos, em nós próprios, que não dispomos de uma noção particular para conceber tal coisa; e creio que usamos mal essa noção, aplicando-a à gravidade, que não é algo realmente diferenciado do corpo, como espero mostrar na Física, mas que nos foi dada para conceber a maneira pela qual a alma move o corpo. Não testemunharia conhecer assaz o incomparável espírito de Vossa Alteza, se empregasse mais palavras para explicar-me, e seria demasiado presunçoso se ousasse pensar que minha resposta deve satisfazê-la inteiramente; mas procurarei evitar uma e outra, nada mais acrescentando aqui, exceto que, se sou capaz de escrever ou de dizer algo que lhe possa agradar, terei sempre por mui grande favor tomar a pena, ou ir a Haia, para tal fim, e que nada há no mundo que me seja tão caro como poder obedecer a seus ditames. Mas não consigo achar aqui lugar para a observância do juramento de Hipócrates que ela me impõe, pois que ela nada me comunicou que não mereça ser visto e admirado por todos os homens. Só posso dizer, a este respeito, que, apreciando infinitamente a carta que recebi de Vossa Alteza, usá-la-ei como os avaros usam seus tesouros, os quais escondem quanto mais os estimam, e, recusando sua vista ao resto do mundo, aplicam seu soberano contentamento em contemplá-los. Assim, estarei à vontade para desfrutar sozinho do bem de vê-la; e minha maior ambição é poder dizer-me, e ser verdadeiramente, etc. A ELISABETH Egmond-du-Hoef, 28 de junho de 1643. Minha Senhora, Sinto-me grandemente obrigado para com Vossa Alteza pelo fato de, após haver suportado que eu me tenha mal explicado em minhas [cartas] precedentes, no tocante à questão que lhe aprouve propor-me, se dignar ainda de ter a paciência de me ouvir sobre o mesmo assunto e me dar ocasião de advertir as coisas que omitira. Delas, as principais me parecem ser que, depois de haver distinguido três gêneros de ideias ou de noções primitivas que conhecemos cada qual de uma maneira particular e não pela comparação de uma com a outra, a saber, a noção que temos da alma, a do corpo e a da união que há entre a alma e o corpo, devia explicar a diferença existente entre essas três espécies de noções e entre as operações da alma pelas quais nós as obtemos, e dizer os meios de tornar cada uma delas familiar e fácil para nós; em seguida, tendo dito por que eu me servia da comparação da gravidade, mostrar que, embora se queira conceber a alma como material (o que é propriamente conceber sua união com o corpo), não se deixa de conhecer, depois, que é separável deste. O que é, como o julgo, toda a matéria que Vossa Alteza aqui me prescreveu. Primeiramente, portanto, noto grande diferença entre essas três espécies de noções, pelo fato de só concebermos a alma através do entendimento puro; o corpo, isto é, a extensão, as figuras e os movimentos também podem ser conhecidos só pelo entendimento, porém será melhor ainda pelo entendimento com a ajuda da imaginação; e, enfim, as coisas que pertencem à união da alma e do corpo não são conhecidas senão obscuramente pelo entendimento só, ou mesmo pelo entendimento com a ajuda da imaginação; mas são conhecidas mui claramente pelos sentidos. Daí resulta que aqueles que jamais filosofam e que se servem apenas de seus sentidos nunca duvidam de que a alma move o corpo e de que o corpo não atua sobre a alma; mas consideram ambos como uma única coisa, isto é, concebem sua união; pois conceber a união que há entre duas coisas é concebê-las como uma só. E os pensamentos metafísicos, que exercitam o entendimento puro, servem para nos tornar familiar a noção da alma; e o estudo das Matemáticas, que exercita principalmente a imaginação na consideração das figuras e dos movimentos, nos acostuma a formar noções do corpo bem distintas; e, enfim, usando somente a vida e as conversações comuns, e abstendo-se de meditar e estudar as coisas que exercitam a imaginação, é que se aprende a conceber a união da alma e do corpo. Tenho quase medo de que Vossa Alteza vá pensar que não falo aqui seriamente; mas isso seria contrário ao respeito que lhe devo e que não deixarei jamais de lhe render. E posso dizer, com verdade, que a principal regra que sempre observei em meus estudos, aquela que julgo me ter mais servido para adquirir algum conhecimento, foi que nunca empreguei senão mui poucas horas, por dia, nos pensamentos que ocupam a imaginação, e mui poucas horas, por ano, nos que ocupam o entendimento só, e que dediquei todo o resto de meu tempo ao relaxamento dos sentidos e ao repouso do espírito; conto mesmo, entre os exercícios da imaginação, todas as conversações sérias e tudo aquilo a que se precisa dar atenção. É o que me levou a retirar-me para o campo; pois, ainda que na cidade mais ocupada do mundo eu pudesse dispor de tantas horas para mim quanto eu emprego agora no estudo não poderia entretanto empregá-las tão utilmente, uma vez que meu espírito estaria fatigado pela tensão requerida pela azáfama da vida. É isso que tomo a liberdade de escrever aqui a Vossa Alteza, para testemunhar-lhe que admiro verdadeiramente que, dentre as ocupações e os cuidados que nunca faltam às pessoas que são ao mesmo tempo de elevado espírito e de elevado nascimento, ela pudesse aplicar-se às meditações exigidas para conhecer bem a distinção existente entre a alma e o corpo. Mas julguei que foram essas meditações, mais do que os pensamentos que requerem menos atenção, que a levaram a encontrar obscuridade na noção que temos da união deles, não me parecendo que o espírito humano seja capaz de conceber bem distintamente, e ao mesmo tempo, a distinção entre o corpo e a alma e a sua união; isto porque é necessário, para tanto, concebê-los como uma única coisa, e conjuntamente concebê-los como duas, o que se contraria. E, para tal efeito (supondo que Vossa Alteza mantivesse ainda as razões que provam a distinção da alma e do corpo fortemente presentes em seu espírito, e não querendo de modo algum suplicar-lhe para se desfazer delas, a fim de se representar a noção da união que cada qual experimenta sempre em si mesmo sem filosofar; a saber, que é uma só pessoa, que tem em conjunto um corpo e um pensamento, os quais são de tal natureza que este pensamento pode mover o corpo e sentir os acidentes que lhe sobrevêm), servi-me anteriormente da comparação da gravidade e de outras qualidades que imaginamos comumente estarem unidas a alguns corpos, assim como o pensamento está unido ao nosso; e não me preocupei em que essa comparação claudicasse pelo fato de não serem reais essas qualidades, assim como é costume imaginá-las, porque acreditei que Vossa Alteza já se achasse inteiramente persuadida de que a alma é uma substância distinta do corpo. Mas, visto que Vossa Alteza nota que é mais fácil atribuir matéria e extensão à alma do que atribuir-lhe capacidade de mover um corpo e de ser movida por ele, sem possuir matéria, suplico-lhe que queira livremente atribuir esta matéria e esta extensão à alma; pois isto não é mais do que concebê-la unida ao corpo. E, depois de haver bem concebido tal coisa e tê-la experimentado em si própria, ser-lhe-á fácil considerar que a matéria que Vossa Alteza terá atribuído a esse pensamento não é o pensamento mesmo; e que a extensão dessa matéria é de natureza diferente da extensão desse pensamento, pelo fato de ser a primeira determinada em certo lugar, do qual exclui qualquer outra extensão de corpo, o que não faz a segunda. E assim Vossa Alteza não deixará de voltar facilmente ao conhecimento da distinção entre a alma e o corpo, não obstante tenha concebido a sua união. Enfim, como creio ser necessário compreender bem, uma vez na vida, os princípios da Metafísica, porque são eles que nos fornecem o conhecimento de Deus e de nossa alma, creio também que seria muito prejudicial ocupar amiúde o entendimento para meditar neles, porque ele não poderia aplicar-se tão bem às funções da imaginação e dos sentidos; mas que o melhor é contentar-se em reter na memória e na crença as conclusões que foram alguma vez tiradas e depois empregar o tempo restante para o estudo, nos pensamentos em que o entendimento atua com a imaginação e os sentidos. A extrema devoção que dedico ao serviço de Vossa Alteza me faz esperar que minha franqueza não lhe será desagradável e ter-me-ia empenhado aqui num discurso mais longo, onde tentaria esclarecer dessa vez todas as dificuldades da questão proposta; mas uma deplorável nova que acabo de receber de Utrecht, onde o Magistrado me intimou, para verificar o que escrevi de um de seus ministros, conquanto seja um homem que me caluniou mui indignamente, e o que escrevi sobre ele, para minha justa defesa, não seja senão demasiado notório a todo mundo, compele-me a terminar aqui, para ir consultar os meios de me livrar, o mais cedo que eu possa, dessas chicanices. Sou, etc. A ELISABETH Egmond, 4 de agosto de 1645. Minha Senhora, Quando escolhi o livro de Sêneca, De Vita Beata, para propô-lo a Vossa Alteza como assunto que lhe poderia ser agradável, só tive em vista a reputação do autor e a dignidade da matéria, sem pensar na maneira como ele a trata, a qual, havendo-a depois considerado, não achei bastante exata para que merecesse ser seguida. Mas, a fim de que Vossa Alteza possa julgar mais facilmente, procurarei explicar aqui de que modo me parece que esta matéria deveria ser tratada por um filósofo como ele, que, não estando iluminado pela fé, só possuía a razão natural como guia. Ele diz muito bem, no começo, que vivere omnes beate volunt, sed ad pervidendum quid sit quod beatam vitam efficiat, caligant. Mas é preciso saber o que é vivere beate; diria em francês vivre heureusement (viver felizmente), não fosse a diferença que há entre heur (boa sorte) e beatitude que consiste no fato de a heur depender apenas das coisas que se acham fora de nós, donde resulta que são considerados mais felizes do que sábios aqueles aos quais sobreveio algum bem que não procuraram, ao passo que a beatitude consiste, parece-me, no perfeito contentamento de espírito e numa satisfação interior, que os que são mais favorecidos pela fortuna não possuem ordinariamente e que os sábios adquirem sem ela. Assim, vivere beate, viver em beatitude, não é outra coisa senão ter o espírito perfeitamente contente e satisfeito. Considerando, depois disso, o que é quod beatam vitam efficiat, isto é, quais são as coisas que nos podem dar esse soberano contentamento, observo existirem duas espécies: a saber, as que dependem de nós, como a virtude e a sabedoria, e as que não dependem de modo algum, como as honras, as riquezas e a saúde. Pois é certo que um homem bem nascido, que não está doente, que não carece de nada e que, além disso, é tão sábio e tão virtuoso quanto outro que é pobre, malsão e contrafeito, pode gozar de um contentamento mais perfeito do que ele. Todavia, como um vaso pequeno pode ficar tão cheio como outro maior, ainda que contenha menos líquido, assim, tomando o contentamento de cada qual pela plenitude e pela realização de seus desejos regrados segundo a razão, não duvido que os mais pobres e os mais desgraçados pela fortuna ou pela natureza possam estar inteiramente contentes e satisfeitos, assim como os outros, embora não desfrutem de tantos bens. E não é senão desta espécie de contentamento que se trata aqui, pois a outra não está de nenhum modo em nosso poder e sua busca seria supérflua. Ora, parece-me que cada um pode ficar contente consigo mesmo, sem nada esperar de outras partes, contanto que observe apenas três coisas, às quais se relacionam as três regras da Moral, que estabeleci no Discurso do Método. A primeira é que nos esforcemos sempre por servir-nos, da melhor maneira possível, de nosso espírito, para conhecer o que devemos ou não fazer em todas as circunstâncias da vida. A segunda, que mantenhamos a firme e constante resolução de executar tudo quanto a razão nos aconselhar, sem que nossas paixões ou nossos apetites nos desviem; e é a firmeza desta resolução, que creio dever ser tomada pela virtude, embora eu não saiba de alguém mais que a tenha alguma vez explicado assim; mas dividiram-na em muitas espécies, a que foram dados diversos nomes, por causa dos diversos objetos aos quais se estendem. A terceira, que consideremos, enquanto nos conduzimos assim, o quanto pudermos, segundo a razão, que todos os bens que não possuímos encontram-se também inteiramente fora de nosso poder tanto uns como outros, e que, por este meio, nos acostumemos a não desejá-los; pois nada há, como o desejo, o pesar ou o arrependimento, que nos possa impedir de estar contentes: mas se fizermos sempre tudo o que nos dita a nossa razão, nunca teremos qualquer motivo de nos arrependermos, ainda que os acontecimentos nos levassem a ver, em seguida, que nos havíamos enganado, porque isso não se deu por culpa nossa. E o que faz com que não desejemos ter, por exemplo, mais braços ou mais línguas do que temos, mas que desejemos realmente ter mais saúde ou mais riquezas, é apenas porque imaginamos que tais coisas poderiam ser adquiridas por nossa conduta, ou, então, que são devidas à nossa natureza, e que esta não é a mesma das outras: opinião de que podemos nos desfazer, considerando que, como seguimos sempre o conselho de nossa razão, nada omitimos do que estava em nosso poder, e que as moléstias e os infortúnios não são menos naturais no homem do que a prosperidade e a saúde. De resto, nem todas as espécies de desejos são incompatíveis com a beatitude; a não ser os que são acompanhados de impaciência e tristeza. Não é também necessário que nossa razão jamais se engane; basta que nossa consciência nos testemunhe que nunca carecemos de resolução e virtude, para executar todas as coisas que julgamos as melhores, e assim a virtude só é suficiente para nos deixar contentes nesta vida. Mas, não obstante, dado que, quando ela não é iluminada pelo entendimento, pode ser falsa, isto é, a vontade e a resolução de praticar o bem podem levar-nos a coisas más, quando as cremos boas, o contentamento que delas resulta não é sólido; e dado que se opõe comumente esta virtude aos prazeres, aos apetites e às paixões, ela é muito difícil de pôr em prática, ao passo que o reto uso da razão, proporcionando um verdadeiro conhecimento do bem, impede que a virtude seja falsa e mesmo, acordando-a com os prazeres lícitos, toma o seu uso tão fácil, e fazendo-nos conhecer a condição de nossa natureza, limita de tal modo nossos desejos que cumpre confessar que a maior felicidade do homem depende deste reto uso da razão e por conseguinte, que o estudo que serve para adquiri-lo é a mais útil ocupação que se possa ter, como é, sem dúvida, a mais agradável e a mais doce. Em consequência disso, parece-me que Sêneca deveria ter nos ensinado todas as principais verdades, cujo conhecimento é requerido para facilitar a prática da virtude, e regrar nossos desejos e nossas paixões, e assim desfrutar da beatitude natural; o que teria tomado o seu livro o melhor e o mais útil de quantos um filósofo pagão soubera escrever. Todavia essa é apenas a minha opinião, que submeto ao julgamento de Vossa Alteza; e se me fizer tanto favor que me advirta no que estou falhando, dever-lhe-ia mui grande obrigação e testemunharia, corrigindo-me, que sou, Minha Senhora, de Vossa Alteza o mui humilde e mui obediente servidor, DESCARTES A ELISABETH Egmond, 18 de agosto de 1645. Minha Senhora, Embora eu não saiba se minhas últimas [cartas] foram entregues a Vossa Alteza, e nada possa escrever, no tocante ao tema que tomei para ter a honra de entretê-la, que não deva pensar que saiba melhor do que eu, não deixo, todavia, de continuar na crença de que minhas cartas não serão para Vossa Alteza mais importunas do que os livros que se acham em sua biblioteca; pois, na medida em que não contêm quaisquer novidades que tenha o interesse de conhecer prontamente, nada a convidará a lê-las nas horas em que tiver quaisquer negócios, e eu consideraria o tempo que despendi em escrevê-las como bem empregado, se Vossa Alteza lhes der apenas o tempo que tiver desejo de perder. Disse anteriormente o que me parecia que Sêneca devia ter tratado em seu livro; examinarei agora o que ele trata. Não notei aí, em geral, senão três coisas: a primeira é que se esforça por explicar o que é o soberano bem, e que dá a seu respeito diversas definições; a segunda, que disputa contra a opinião de Epicuro; e a terceira, que responde aos que objetam aos filósofos que eles não vivem segundo as regras que prescrevem. Mas, a fim de ver mais particularmente de que maneira ele trata dessas coisas, deter-me-ei um pouco em cada capítulo. No primeiro, repreende os que seguem o costume e o exemplo mais do que a razão. Nunquam de vila judicatur, diz ele, semper creditur. No entanto, aprova realmente que tomemos conselhos daqueles que cremos serem os mais sábios; mas quer que usemos também o próprio juízo para examinar-lhes as opiniões. E nisso sou fortemente do seu parecer; pois, embora muitos não sejam capazes de encontrar por si mesmos o caminho reto, há uns poucos, todavia, que não o podem reconhecer suficientemente, quando ele lhes é claramente mostrado por algum outro; e, seja como for, há motivo para estarmos satisfeitos em nossa consciência, e para assegurar-nos de que as opiniões que temos, com respeito a Moral, são as melhores que se possam ter, quando, em vez de nos deixarmos conduzir cegamente pelo exemplo, tomamos o cuidado de procurar o conselho dos mais hábeis, e quando empregamos todas as forças de nosso espírito em examinar o que se devia seguir. Mas, enquanto Sêneca se aplica aqui a ornar sua elocução, não é sempre assaz exato na expressão de seu pensamento; como, ao dizer: Sanabimur, si modo separemur a coetu , parece ensinar que basta ser extravagante para ser sábio, o que, todavia, não é sua intenção. No segundo capítulo, não sabe senão repetir, em outros termos, o que disse no primeiro; e acrescenta somente que aquilo que se estima comumente ser o bem não o é. Depois, no terceiro, após haver usado ainda muitas palavras supérfluas, diz enfim a sua opinião sobre o soberano bem: a saber, que rerum naturae assentitur e que ad illius legem exemplumque formari sapientia est, e que beata vila est conveniens naturae suae. Todas essas explicações me parecem muito obscuras; pois não resta dúvida de que, pela natureza, não pretende entender nossas inclinações naturais, visto que elas nos levam comumente a seguir a voluptuosidade, contra a qual discute; mas a sequência de seu discurso faz julgar que, por rerum naturam, entende a ordem estabelecida por Deus em todas as coisas existentes no mundo, e que, considerando essa ordem como infalível e independente de nossa vontade, diz que: rerum naturae assentiri et ad illius legem exemplumque formari, sapientia est, isto é, que é sabedoria aquiescer à ordem das coisas e fazer aquilo para o qual acreditamos ter nascido; ou então, para falar como cristão, que é sabedoria submeter-se à vontade de Deus e segui-la em todas as nossas ações; e que beata vila est conveniens naturae suae, isto é, que a beatitude consiste em seguir assim a ordem do mundo e tomar de boa parte todas as coisas que nos acontecem. O que não explica quase nada, e não se vê bem a conexão disso com o que acrescenta logo em seguida, que esta beatitude não pode sobrevir, nisi sana mens est, etc., a não ser que entenda também que secundum naturam vivere é viver segundo a verdadeira razão. No quarto e quinto capítulos, dá outras definições do soberano bem, das quais todas têm alguma relação com o sentido da primeira, mas nenhuma o explica suficientemente; e elas fazem parecer, por sua diversidade, que Sêneca não compreendeu claramente o que queria dizer; pois, na medida em que se concebe melhor uma coisa, fica-se mais determinado a expressá-la apenas de uma só maneira. A que me parece melhor achada está no quinto capítulo onde diz que beatus est qui nec cupit nec timet beneficio rationis, e que beata vila est in recto certoque judicio stabílita. Mas enquanto não nos ensinar as razões pelas quais nada devemos temer nem desejar, tudo isso nos ajudará muito pouco. Começa, nesses mesmos capítulos, a discutir contra os que colocam a beatitude na voluptuosidade, e continua nos seguintes. Eis por que, antes de examiná-los, expressarei aqui meu sentimento sobre esta questão. Noto, primeiramente, que há diferença entre a beatitude, o soberano bem e o fim último ou o alvo a que devem tender nossas ações: pois a beatitude não é o soberano bem; mas o pressupõe, e ela é o contentamento ou a satisfação de espírito que vem do fato de o possuirmos. Mas, pelo fim de nossas ações, pode-se entender um e outro; pois o soberano bem é, sem dúvida, a coisa que devemos propor-nos como escopo em todas as nossas ações, e o contentamento de espírito que daí resulta, sendo o atrativo que nos incita a procurá-lo, é também a bom título chamado nosso fim. Noto, ademais, que Epicuro tomou a palavra voluptuosidade numa acepção diferente da que tomaram aqueles que disputaram contra ele. Pois todos os seus adversários restringiram a significação do termo aos prazeres dos sentidos; e ele, ao contrário, a estendeu a todos os contentamentos do espírito, como se pode facilmente julgar pelo que Sêneca e alguns outros escreveram a seu respeito. Ora, houve três opiniões principais, entre os filósofos pagãos, sobre o soberano bem e o fim de nossas ações, a saber: a de Epicuro, que disse que era a voluptuosidade; a de Zenão, que pretendeu que fosse a virtude; e a de Aristóteles que a compôs de todas as perfeições, quer do corpo quer do espírito. Essas três opiniões podem, parece-me, ser acolhidas como verdadeiras e acordadas entre si, desde que sejam favoravelmente interpretadas. Pois, tendo Aristóteles considerado soberano bem de toda a natureza humana em geral, isto é, o que pode possuir o mais completo de todos os homens, teve razão de compô-lo de todas as perfeições de que é capaz a natureza humana; mas isto de nada serve para o nosso uso. Zenão, ao contrário, considerou aquele que cada homem em seu particular pode possuir; eis por que lhe assistiu boníssima razão ao dizer que consiste apenas na virtude, porque não há, entre os bens que podemos ter, outro, exceto ela, que dependa inteiramente de nosso livre arbítrio. Mas representou esta virtude tão severa e tão inimiga da voluptuosidade, tornando todos os vícios iguais, que só houve, parece-me, melancólicos, ou espíritos inteiramente separados do corpo, que pudessem ser seus sectários. Enfim, Epicuro não cometeu erro, ao considerar no que consiste a beatitude, e qual o motivo, ou o fim a que tendem nossas ações, ao dizer que é a voluptuosidade em geral, isto é, o contentamento do espírito; pois ainda que o exclusivo conhecimento de nosso dever nos pudesse obrigar a praticar boas ações, isto não nos faria, entretanto, gozar de qualquer beatitude, se daí não nos adviesse nenhum prazer. Mas como se atribui amiúde o nome de voluptuosidade a falsos prazeres, que são acompanhados ou seguidos de inquietude, aborrecimentos e arrependimentos, muitos acreditaram que esta opinião de Epicuro ensinava o vício; e, com efeito, ela não ensina virtude. Mas como, quando existe em alguma parte um prêmio para atirar ao alvo, suscita-se o desejo de atirar àqueles a quem se mostra este prêmio, sem que por isso possam ganhá-lo, se não veem o alvo, e os que o veem não são por isso induzidos a atirar, se não sabem que há um prêmio a ganhar, assim a virtude, que é o alvo, não se faz desejar muito, quando a vemos totalmente só; e o contentamento, que é o prêmio, não pode ser adquirido, a não ser que a sigamos. Eis por que julgo poder concluir aqui que a beatitude não consiste senão no contentamento do espírito, isto é, no contentamento em geral; pois, embora haja contentamentos que dependem do corpo, e outros que dele não dependem de modo algum, não há todavia qualquer outro, exceto no espírito: mas, para haver um contentamento que seja sólido, é preciso seguir a virtude, isto é, ter uma vontade firme e constante de executar tudo o que julgarmos ser o melhor e empregar toda a força de nosso entendimento em bem julgar. Reservo para outra vez o considerar o que Sêneca escreveu a este respeito; pois minha carta já está demasiado longa, e só me resta o espaço necessário para escrever que sou, Minha Senhora, de Vossa Alteza o mui humilde e mui obediente servidor, DESCARTES A ELISABETH Egmond, 1º de setembro de 1645. Minha Senhora, Como reinasse ultimamente incerteza se Vossa Alteza estava em Haia ou em Rhenen, enderecei minha carta por Leyde, e a que me fez a honra de escrever só me foi entregue depois que o mensageiro, que a levara a Alckmar, daí partiu. O que me impediu de poder testemunhar mais cedo quão orgulhoso me sinto do fato de o julgamento, que fiz do livro que Vossa Alteza se deu ao trabalho de ler, não ser diferente do seu, e de minha maneira de raciocinar lhe parecer bastante natural. Convenço-me de que, se V. A. tivesse o lazer de pensar, tanto quanto eu o fiz, nas coisas de que ele trata, nada poderia escrever que já não houvesse melhor observado do que eu; mas como a idade, o nascimento e as ocupações de V. A. não o puderam permitir, talvez o que escrevo possa servir para poupar-lhe um pouco o tempo e minhas falhas mesmas forneçam-lhe ocasião de notar a verdade. Como, quando falei de uma beatitude que depende inteiramente de nosso livre arbítrio e que todos os homens podem adquirir sem nenhuma assistência de alhures, V. A. observou muito bem que há moléstias que, tirando o poder de raciocinar, tiram também o de gozar de uma satisfação de espírito racional; e isto me informa que aquilo que disse em geral de todos os homens só deve ser entendido quanto aos que possuem o livre uso de sua razão, e com isso que sabem o caminho que é preciso trilhar para chegar a esta beatitude. Pois não há quem não deseje tomar-se feliz; muitos, porém, não conhecem o meio; e amiúde a indisposição que há no corpo impede que a vontade seja livre. Como acontece também quando dormimos; pois o maior filósofo do mundo não poderia impedir-se de ter maus sonhos, quando seu temperamento a tanto o dispõe. Todavia a experiência mostra que, se se concebeu muitas vezes um pensamento quando se teve o espírito em liberdade, este reaparece em seguida, qualquer que seja a indisposição que sinta o corpo; assim, posso dizer que meus sonhos jamais me representam algo de incômodo, e sem dúvida tira-se grande vantagem do fato de haver-se, desde há muito, acostumado a não nutrir pensamentos tristes. Mas não podemos responder absolutamente por nós mesmos, a não ser enquanto nos pertencemos, e significa menos perder a vida do que perder o uso da razão; pois, mesmo sem os ensinamentos da fé, só a Filosofia natural leva nossa alma a esperar um estado mais feliz, após a morte, do que aquele em que se encontra presentemente; não há coisa que ela lhe faça temer como mais deplorável do que estar ligada a um corpo que lhe rouba inteiramente a liberdade. Quanto às outras indisposições, que não perturbam totalmente o senso, mas alteram apenas os humores, e fazem com que a gente se sinta extraordinariamente inclinada à tristeza, à cólera ou a alguma outra paixão, dão sem dúvida pena, mas podem ser sobrepujadas, e até proporcionam à alma motivo de uma satisfação tanto maior quanto foram mais difíceis de vencer. E creio também o mesmo de todos os impedimentos exteriores, como do brilho de um grande nascimento, dos galanteios da corte, das adversidades da fortuna e também de suas grandes prosperidades, as quais ordinariamente obstam que se possa desempenhar o papel de filósofo mais do que o fazem as desgraças. Pois, quando temos tudo quanto desejamos, esquecemos de pensar em nós, e quando, em seguida, a sorte muda, vemo-nos tanto mais surpresos quanto mais nos fiávamos nela. Enfim, pode-se dizer em geral que não há coisa capaz de nos subtrair inteiramente o meio de nos tornarmos felizes, desde que ela não perturbe nossa razão; e que nem sempre as que parecem mais aborrecidas são as que mais prejudicam. Mas, a fim de saber exatamente o quanto cada coisa pode contribuir para o nosso contentamento, cumpre considerar quais são as causas que o produzem, e isso constitui também um dos principais conhecimentos que podem servir para facilitar o uso da virtudes; pois todas as ações de nossa alma que nos conseguem alguma perfeição são virtuosas, e todo o nosso contentamento consiste apenas no nosso testemunho interior de possuirmos alguma perfeição. Assim, jamais poderíamos praticar qualquer virtude (isto é, fazer o que nossa razão nos persuade que devemos fazer), se daí não recebêssemos satisfação e prazer. Mas há duas espécies de prazer: uns que pertencem ao espírito só e outros ,que pertencem ao homem, isto é, ao espírito enquanto unido ao corpo; e esses últimos, apresentando-se confusamente à imaginação, parecem muitas vezes maiores do que são, principalmente antes de os possuirmos, o que é fonte de todos os males e de todos os erros da vida. Pois, segundo a regra da razão, cada prazer dever-se-ia medir pela grandeza da perfeição que o produz, e é assim que medimos aqueles cujas causas nos são claramente conhecidas. Mas amiúde a paixão nos faz julgar certas coisas melhores e mais desejáveis do que o são; pois, quando nos demos muito trabalho em adquiri-las e perdemos, entretanto, a ocasião de possuir outros bens mais verdadeiros, o gozo nos faz conhecer seus defeitos, e daí provêm os desdéns, os pesares e os arrependimentos. Eis por que o verdadeiro ofício da razão é examinar o justo valor de todos os bens cuja aquisição pareça depender de alguma maneira de nossa conduta, a fim de que nunca deixemos de envidar todos os nossos cuidados no esforço de obter aqueles que são, com efeito, os mais desejáveis; no que, se a fortuna se opõe a nossos desígnios e impede seu bom êxito, teremos ao menos a satisfação de nada haver perdido por nossa falta, e não deixaremos de desfrutar de toda a beatitude natural cuja aquisição haja estado ao nosso alcance. Assim, por exemplo, a cólera pode às vezes excitar em nós desejos de vingança tão violentos que nos levará a imaginar maior prazer em castigar nosso inimigo do que em conservar nossa honra ou nossa vida, induzindo-nos a expor imprudentemente uma e outra por esse motivo. Ao passo que, se a razão examina qual o bem ou a perfeição em que se baseia este prazer que tiramos da vingança, não encontrará nenhum outro (ao menos quando tal vingança não serve para impedir que nos ofendam de novo), exceto que isso nos faz imaginar que dispomos de alguma sorte de superioridade e alguma vantagem sobre aquele de quem nos desafrontamos. O que constitui amiúde apenas vã imaginação, que não merece ser estimada em comparação com a honra ou a vida, nem sequer em comparação com a satisfação que teríamos de ver-nos senhores de nossa cólera, abstendo-nos de nos vingar. E algo semelhante acontece em todas as outras paixões; pois não há uma única que não nos represente o bem ao qual ela tende com mais brilho do que merece, e que não nos leve a imaginar prazeres bem maiores antes que os possuamos, os quais não encontramos em seguida, quando os temos. O que faz comumente reprovar a voluptuosidade, porque nos servimos desta palavra apenas para significar prazeres que nos enganam muitas vezes por sua aparência, e nos fazem negligenciar outros muito mais sólidos, mas cuja expectativa não toca tanto, como são comumente os do espírito apenas. Digo comumente; pois nem todos os do espírito são louváveis, porque podem ser fundados em alguma falsa opinião, como o prazer que se sente em maldizer, que se funda apenas em que alguém pensa dever ser tanto mais estimado quanto menos o forem os outros; e eles podem também enganar-nos por sua aparência, quando alguma forte paixão os acompanha, como ocorre no que dá a ambição. Mas a principal diferença existente entre os prazeres do corpo e os do espírito consiste em que, sendo o corpo sujeito a mudança perpétua e dependendo mesmo sua conservação e seu bem-estar desta mudança, todos os prazeres que lhe concernem quase não duram; pois procedem apenas da aquisição de algo que é útil ao corpo, no momento em que os recebe; e, tão logo cessa de lhe ser útil, eles também cessam, ao passo que os da alma podem ser imortais como ela, contanto que tenham um fundamento tão sólido que nem o conhecimento da verdade ou qualquer falsa persuasão os destruam. De resto, o verdadeiro uso de nossa razão para a conduta da vida consiste apenas em examinar e considerar sem paixão o valor de todas as perfeições, tanto do corpo como do espírito, que podem ser adquiridas por nossa conduta, a fim de que, sendo de ordinário obrigados a nos privar de algumas, escolhamos sempre as melhores. E, como as do corpo são as menores, pode-se dizer em geral que, sem elas, há meio de se tomar felizes. Todavia, não sou, de modo algum, de opinião que devamos desprezá-las inteiramente, ou mesmo que devamos isentar-nos de ter paixões; basta que as sujeitemos à razão e, uma vez assim domesticadas, algumas são tanto mais úteis quanto mais pendem para o excesso. E jamais terei outra mais excessiva do que aquela que me leva ao respeito e à veneração que vos devo e me faz ser, Minha Senhora, de Vossa Alteza o mui humilde e mui obediente servidor, DESCARTES A CHANUT [Egmond], 1º de fevereiro de 1647. Senhor, A amável carta que acabo de receber de vossa parte não me permite repousar enquanto não lhe houver dado resposta; e, embora proponhais nela questões que outros mais eruditos do que eu teriam muito trabalho para examinar em pouco tempo, todavia, porque sei que, mesmo se eu empregasse muito tempo nisso, não poderia resolvê-las inteiramente, prefiro pôr prontamente sobre o papel aquilo que o zelo, que me incita, me ditará do que pensar com mais vagar e não escrever em seguida nada melhor. Quereis saber minha opinião no tocante a três coisas: 1 - o que é o amor; 2 - se só a luz natural nos ensina a amar a Deus; 3 - qual dos dois desregramentos e maus usos é pior, o do amor ou o do ódio? Para responder ao primeiro ponto, distingo entre o amor que é puramente intelectual ou racional e o que é uma paixão. O primeiro consiste, parece-me, apenas em que, quando nossa alma percebe algum bem, seja presente, seja ausente, que julga lhe ser conveniente, ela se lhe junta voluntariamente, isto é, considera-se a si própria, com este bem, qual um todo, de que ele é uma parte e ela a outra. Em seguimento do que, se ele está presente, isto é, se ela o possui, ou é por ele possuída, ou, enfim, caso se lhe una não somente por sua vontade mas também realmente e de fato, na maneira que lhe convém estar unida, o movimento de sua vontade, que acompanha o conhecimento que ela tem de ser-lhe um bem, é sua alegria; e se está ausente, o movimento de sua vontade que acompanha o conhecimento que ela tem de ser dele privado, é sua tristeza; mas aquele que acompanha o conhecimento que ela tem de que seria bom adquiri-lo é seu desejo. E todos estes movimentos da vontade nos quais consistem o amor, a alegria e a tristeza, e o desejo, na medida em que são pensamentos racionais, e não paixões, poder-se-iam achar em nossa alma, ainda que esta não tivesse corpo algum. Pois, por exemplo, se ela percebesse que há na natureza muitas coisas a conhecer, que são muito belas, sua vontade dirigir-se-ia infalivelmente a amar o conhecimento destas coisas, isto é, a considerá-lo como lhe pertencendo. E se notasse, ademais, possuir este conhecimento, isso dar-lhe-ia alegria; se considerasse que não o possuía, isso dar-lhe-ia tristeza; se pensasse que lhe seria bom adquiri-lo, isso dar-lhe-ia desejo. E nada haveria em todos esses movimentos de sua vontade que lhe fosse obscuro, nem do que ela não dispusesse de um mui perfeito conhecimento, desde que refletisse sobre os seus pensamentos. Mas, enquanto nossa alma está unida ao corpo, este amor racional é ordinariamente acompanhado do outro, que se pode chamar sensual ou sensitivo, e que, como disse sumariamente de todas as paixões, apetites e sentimentos, na página 461 de meus Principes em francês, não é mais do que um pensamento confuso provocado na alma por algum movimento dos nervos, pensamento que a dispõe a este outro pensamento mais claro em que consiste o amor racional. Pois, como na sede, o sentimento que se tem da secura da garganta é um pensamento confuso que dispõe ao desejo de beber, mas não é este desejo mesmo; assim, no amor sente-se não sei que calor em tomo do coração e uma grande abundância de sangue no pulmão, que nos fazem abrir até os braços como para abraçar algo, e isto toma a alma inclinada a juntar a si voluntariamente o objeto que se lhe apresenta. Mas o pensamento pelo qual a alma sente este calor é diferente daquele que a une ao referido objeto; e acontece mesmo às vezes que tal sentimento de amor se acha em nós, sem que nossa vontade se aplique a amar algo, porque não encontramos objeto que julguemos digno disso. Pode acontecer também, ao contrário, que conheçamos um bem que merece muito e que nos juntemos a ele voluntariamente, sem alimentar, por isso, qualquer paixão, porque o corpo não está a isso disposto. Mas, de ordinário, esses dois amores acham-se juntos: pois há tal ligação entre um e outro que, quando a alma julga que um objeto é digno dela, isto dispõe incontinenti o coração aos movimentos que excitam a paixão de amor e, quando o coração se acha assim disposto por outras causas, isto leva a alma a imaginar qualidades amáveis em objetos em que ela veria só defeitos em outros tempos. E não é maravilha que certos movimentos do coração estejam assim naturalmente unidos a certos pensamentos, com os quais não têm qualquer semelhança; pois, pelo fato de nossa alma ser de tal natureza que pode estar unida a um corpo, possui também a propriedade de que cada um de seus pensamentos pode associar-se de tal modo a alguns movimentos ou outras disposições deste corpo, que, quando as mesmas disposições nele se encontram outra vez, induzem a alma ao mesmo pensamento; e, reciprocamente, quando o mesmo pensamento retoma, a alma prepara o corpo para receber a mesma disposição. Assim, ao aprendermos uma língua, juntamos as letras ou a pronúncia de certas palavras, que são coisas materiais, às suas significações, que são pensamentos; de sorte que, ao ouvirmos novamente as mesmas palavras, concebemos as mesmas coisas; e, ao concebermos as mesmas coisas, recordamo-nos das mesmas palavras. Mas as primeiras disposições do corpo que acompanham assim os nossos pensamentos, ao ingressarmos no mundo, juntaram-se sem dúvida mais estreitamente com eles do que os que os acompanham mais tarde. E, para examinar a origem do calor que se sente em torno do coração e a das outras disposições do corpo que acompanham o amor, considero que, desde o primeiro momento em que nossa alma se uniu ao corpo, é verossímil que tenha sentido alegria e logo depois amor, seguido talvez do ódio e da tristeza; e que as mesmas disposições do corpo, que então causaram nela estas paixões, tenham acompanhado depois, naturalmente, seus pensamentos. Julgo que sua primeira paixão foi a alegria, porque não é crível que a alma fosse posta no corpo, a não ser quando ele estivesse bem disposto, e quando está assim bem disposto isto nos dá, naturalmente, alegria. Digo também que o amor veio após porque, escoando-se incessantemente a matéria de nosso corpo, como a água de um rio, e sendo necessário que venha outra em seu lugar, é pouco verossímil que o corpo estivesse assim bem disposto, se não houvesse também perto dele alguma matéria muito própria a servir-lhe de alimento, e que a alma, unindo-se voluntariamente a esta nova matéria, tivesse amor por ela; assim como, mais tarde, se aconteceu faltar este alimento, a alma teve daí a tristeza. E se veio outro em seu lugar, que não fosse próprio para nutrir o corpo, teve ódio por ele. Eis as quatro paixões que creio haverem estado em nós como primeiras e as únicas que possuímos antes de nosso nascimento; e creio também que eram então apenas sentimentos ou pensamentos muito confusos; porque a alma se achava de tal forma presa à matéria que não podia ainda aplicar-se a outra coisa salvo a receber dela as diversas impressões; e embora, alguns anos depois, começasse a obter outras alegrias e outros amores, além dos que dependem apenas da boa constituição e conveniente nutrição do corpo, todavia, o que houve de intelectual em suas alegrias ou amores veio sempre acompanhado dos primeiros sentimentos que teve deles, e mesmo também dos movimentos ou funções naturais que estavam então no corpo; de modo que, na medida em que o amor era causado, antes do nascimento, somente por um alimento conveniente que, entrando abundantemente no fígado, no coração e no pulmão, excitava neles mais calor que de costume, resulta daí que agora este calor acompanha sempre o amor, embora provenha de outras causas muito diferentes. E se eu não temesse estender-me demasiado, poderia mostrar, por miúdo, que todas as outras disposições do corpo, que se encontraram no começo de nossa vida com estas quatro paixões, ainda as acompanham. Mas direi apenas que se trata de sentimentos confusos de nossa infância, que, permanecendo unidos aos pensamentos racionais pelos quais amamos aquilo que julgamos digno, são causa de que a natureza do amor nos seja difícil de conhecer. Acrescento a isso que muitas outras paixões, como a alegria, a tristeza, o desejo, o temor, a esperança, etc., se mesclam diversamente ao amor, impedindo que se reconheça no que ele consiste propriamente. O que é principalmente notável no tocante ao desejo; pois é tomado tão comumente pelo amor que isso leva a distinguir duas espécies de amores: uma que se chama amor de benevolência, no qual este desejo não aparece tanto, e a outra que se chama amor de concupiscência, o qual não é senão um desejo muito violento, baseado num amor amiúde fraco. Mas seria preciso escrever um alentado volume para tratar de todas as coisas que pertencem a esta paixão; e, embora sua índole seja a de fazer com que nos comuniquemos o mais possível, de modo que me incita a tentar aqui dizer-vos mais coisas do que sei, quero no entanto conter-me, no temor de que a longura desta carta vos enfade Assim, passo à vossa segunda questão, a saber: se só a luz natural nos ensina a amar a Deus e se se pode amá-la pela força desta luz. Vejo que há duas fortes razões para duvidar disso; a primeira é que os atributos de Deus que consideramos mais comumente acham-se elevados tão acima de nós que não concebemos de maneira alguma que nos possam ser convenientes, o que é causa de não nos unirmos a eles voluntariamente; a segunda é que em Deus nada há que seja imaginável, o que faz com que, mesmo se tivéssemos por ele algum amor intelectual, não pareça possível dedicar-lhe qualquer amor sensitivo, porque deveria passar pela imaginação para vir do entendimento ao sentido. Eis por que não me espanto se alguns filósofos se persuadem de que só há a religião cristã que, ensinando-nos o mistério da encarnação, pelo qual Deus se abaixou até tomar-se semelhante a nós, nos toma capazes de amá-lo; e que aqueles que, sem o conhecimento deste mistério, parecem nutrir paixão por alguma divindade, não a nutrem, por isso, pelo verdadeiro Deus, mas somente por alguns ídolos que chamam com seu nome; do mesmo modo que Ixíon, no dizer dos poetas, abraçava uma nuvem em vez da Rainha dos Deuses. Todavia, não alimento a menor dúvida de que possamos amar verdadeiramente Deus pela exclusiva força de nossa natureza. Não asseguro, de forma alguma, que tal amor seja meritório sem a graça e deixo o desenredar disso aos teólogos; mas ouso dizer que, com respeito a esta vida, é a mais arrebatadora e a mais útil paixão que possamos ter; e, mesmo, que ela pode ser a mais forte, embora haja necessidade, para tanto, de meditação mui atenta, porque somos continuamente distraídos pela presença de outros objetos. Ora, o caminho que julgo devermos seguir, para chegar ao amor a Deus, é o de considera-lo um espírito, ou uma coisa pensante, donde, como a natureza de nossa alma possui alguma semelhança com a sua, acabamos persuadindo-nos de que é uma emanação de sua soberana inteligência et divinae quasi particula aurae. Do mesmo modo, como nosso conhecimento parece poder aumentar gradativamente até o infinito, e como, sendo o de Deus infinito, está ele no alvo a que visa o nosso, se não considerarmos nada mais, podemos chegar à extravagância de desejarmos ser deuses e assim, por um erro mui grande, amar somente a divindade em vez de amar a Deus. Mas se, além disso, advertimos a infinidade de seu poder, pela qual ele criou tantas coisas, de que somos apenas a menor parte; a extensão de sua providência, que o faz ver com um só pensamento tudo o que foi, é, será e poderia ser; a infalibilidade de seus decretos, que, embora não perturbem nosso livre arbítrio, não podem de forma alguma ser mudados; e enfim, de um lado, a nossa pequeneza e, de outro, a grandeza de todas as coisas criadas, reparando de que modo elas dependem de Deus e considerando-as de maneira que tenham relação com sua onipotência, sem encerrá-las numa esfera, como procedem os que pretendem que o mundo seja finito: a meditação de todas essas coisas enche um homem que as entende bem de uma alegria tão extrema que, longe de ser injurioso e ingrato com Deus a ponto de desejar ocupar-lhe o lugar, pensa já ter vivido o bastante por haver Deus lhe feito a graça de leva-lo a tais conhecimentos; e, unindo-se-lhe total e voluntariamente, ama-o tão perfeitamente que nada mais deseja no mundo, exceto que seja feita a vontade de Deus. E isso é causa para ele não mais temer a morte, nem as dores, nem as desgraças, porquanto sabe que nada pode acontecer-lhe, salvo o que Deus houver decretado; e ele ama de tal forma este divino decreto, estima-o tão justo e tão necessário, sabe que deve depender tão inteiramente dele, que, mesmo na expectativa da morte ou de algum outro mal, se pudesse, por impossível que seja, muda-lo, não teria vontade de fazê-lo, Mas, se não recusa os males ou as aflições, porque lhe vêm da providência divina, recusa ainda menos todos os bens ou prazeres lícitos de que pode gozar nesta vida, porque também vêm dele; e, recebendo-os com júbilo, sem ter qualquer receio pelos males, seu amor o toma perfeitamente feliz. É certo ser necessário que a alma se aparte muito do comércio dos sentidos, para se representar as verdades que nela provocam este amor; daí resulta que não parece que ela possa comunica-lo à faculdade imaginativa para torná-lo uma paixão. Mas, apesar disso, não duvido de que ela lha comunique. Pois, embora nada possamos imaginar do que existe em Deus, o qual é o objeto de nosso amor, podemos imaginar o nosso amor mesmo, que consiste em querermos unir-nos a algum objeto, isto é, à vista de Deus, considerar-nos pequeníssima parte de toda a imensidade das coisas que ele criou; porque, conforme sejam objetos diversos, podemos unir-nos a eles ou juntá-los a nós, de diversas maneiras; e a simples ideia desta união basta para excitar o calor em tomo do coração e causar violentíssima paixão. É verdade também que o uso de nossa língua e a civilidade dos cumprimentos não permitem que digamos, aos que pertencem a uma condição muito acima da nossa, que os amamos, mas somente que os respeitamos, honramos, estimamos e que empregamos zelo e devoção no serviço deles; e a razão disso parece-me ser que a amizade de homem para homem toma de certa maneira iguais aqueles em quem ela é recíproca; e, assim, que, enquanto nos esforçamos por nos fazer amar por algum grande, se lhe disséssemos que o amamos, poderia pensar que o tratamos de igual e que lhe fazemos mal. Mas, como os filósofos não costumam dar diversos nomes às coisas convenientes a uma mesma definição, e como não sei de outra definição de amor, exceto que é uma paixão que nos leva a juntar-nos voluntariamente a algum objeto, sem distinguir se este objeto é igual a nós, ou maior, ou menor do que nós, parece-me que, para falar a linguagem deles, devo dizer que se pode amar a Deus. E se eu vos perguntasse, em sã consciência, se não amais de modo algum a esta grande Rainha, junto à qual estais presentemente, em vão poderíeis afirmar que lhe devotais respeito, veneração e admiração, e eu não deixaria de julgar que lhe dedicais também mui ardente afeição. Pois o vosso estilo corre tão bem, quando falais dela, que, embora eu creia em tudo o que dizeis a respeito, porque sei que sois muito sincero e o ouvi também dizer de outros, não acredito entretanto que pudésseis descrevê-la como o fazeis, se não tivésseis muito zelo, nem que pudésseis estar junto de tão grande luz sem dela receber calor. E muito menos é verdade que o nosso amor pelos objetos que se acham acima de nós seja menor do que o que temos pelos outros; creio que, por sua natureza, é mais perfeito, e que leva a abraçar com mais ardor os interesses daquilo que se ama. Pois pertence à natureza do amor fazer com que nos consideremos com o objeto amado como um todo de que somos apenas uma parte, e que transfiramos de tal modo os cuidados que habitualmente temos por nós mesmos à conservação deste todo, que dele não retemos para nós em particular senão uma parte tão grande ou tão pequena quanto cremos ser uma parte grande ou pequena do todo ao qual demos o afeto: de sorte que, se nos unimos voluntariamente a um objeto que estimamos menor do que nós, por exemplo, se amamos uma flor, um pássaro, um edifício, ou coisa semelhante, a mais alta perfeição a que possa atingir este amor, segundo seu verdadeiro uso, não pode levar-nos a pôr nossa vida em qualquer risco para a conservação destas coisas, porque elas não são partes mais nobres do todo que compõem conosco, assim como nossas unhas e nossos cabelos quanto ao nosso corpo; e seria uma extravagância pôr o corpo todo em risco para a conservação dos cabelos. Mas quando dois homens amam-se mutuamente, a caridade quer que cada um dele estime seu amigo mais do que a si próprio; eis por que sua amizade não será de modo algum perfeita, se não estiverem prontos a dizer, um em favor do outro: Me me adsum qui feci, in me convertite ferrum, etc.. Da mesma maneira, quando um particular se une voluntariamente a seu príncipe, ou a seu país, se o seu amor é perfeito, ele deve estimar-se apenas como parte muito pequena do todo que compõe com eles, e assim não temer ir de encontro a uma morte certa a seu serviço, mais do que se teme tirar um pouco de sangue do braço para fazer que o resto do corpo se porte melhor. E vemos todos os dias exemplos deste amor, mesmo em pessoas de baixa condição, que dão as vidas de bom grado para o bem do seu país, ou para a defesa de um grande pelo qual se afeiçoam. Em consequência disso, é evidente que nosso amor para com Deus deve ser incomparavelmente o maior e o mais perfeito de todos. Não receio que esses pensamentos metafísicos deem demasiado labor a vosso espírito; pois sei que ele é muito capaz em tudo; mas confesso que cansam o meu, e que a presença dos objetos sensíveis não permite que eu me detenha aí por muito tempo. Eis por que passo à terceira questão, a saber: qual dos dois desregramentos é pior, o do amor, ou o do ódio? Mas acho-me mais impedido a respondê-la do que às duas outras, porque haveis explicado muito menos a vossa intenção e porque esta dificuldade pode entender-se em diversos sentidos, que me parecem dever ser examinados separadamente. Pode-se dizer que uma paixão é pior do que outra, porque ela nos toma menos virtuosos; ou porque ela repugna mais ao nosso contentamento; ou, enfim, porque nos arrasta a excessos maiores e nos dispõe a infligir maior mal aos outros homens. Quanto ao primeiro ponto, acho-o duvidoso. Pois, considerando as definições dessas duas paixões, julgo que o amor que temos por um objeto que não merece nos pode tomar piores do que ódio que temos por outro que deveríamos amar; porque há mais perigo em estar unido a uma coisa que é má, e de ser como que transformado nela, do que em estar separado voluntariamente de uma coisa que é boa. Mas, quando tomo em conta as inclinações ou hábitos que nascem dessas paixões, mudo de parecer: pois, vendo que o amor, por mais desregrado que seja, tem sempre o bem por objeto, não me parece que possa corromper tanto nossos costumes como o ódio, que se propõe apenas o mal. E vemos, por experiência, que a gente de mais bem toma-se pouco a pouco maliciosa quando se vê obrigada a odiar alguém; pois, ainda que seu ódio seja justo, representam-se tão amiudadamente os males que recebem de seus inimigos e também os que desejam a eles, que isto os acostuma pouco a pouco à malícia. Ao contrário, os que se entregam a amar, mesmo que seu amor seja desregrado e frívolo, não deixam de se tomar amiudadamente gente mais honesta e mais virtuosa do que se ocupassem o espírito com outros pensamentos. Quanto ao segundo ponto, não encontro nele qualquer dificuldade: pois o ódio é sempre acompanhado de tristeza e pesar; e, qualquer que seja o prazer que algumas pessoas sintam em fazer mal aos outros, creio que a voluptuosidade delas é semelhante à dos demônios, que, segundo a nossa religião, não deixam de estar danados, embora imaginem continuamente vingar-se de Deus, atormentando os homens nos infernos. Ao contrário, o amor, por mais desregrado que seja, proporciona prazer e, embora os poetas dele se queixem muitas vezes em seus versos, creio, não obstante, que os homens se absteriam naturalmente de amar se não encontrassem nele mais doçura do que amargura; e que todas as aflições, cuja causa se atribui ao amor, provêm apenas das outras paixões que o acompanham, a saber, desejos temerários e esperanças mal fundadas. Mas se se pergunta qual dessas duas paixões nos arrasta a maiores excessos e nos toma capazes de infligir maior mal ao resto dos homens, parece-me que devo dizer que é o amor; posto que possui naturalmente mais força e mais vigor do que o ódio; e que amiúde a afeição que se tem por um objeto de pouca importância causa incomparavelmente maiores males do que poderia fazê-lo o ódio a outro de mais valor. Provo que o ódio tem menos vigor do que o amor pela origem de um e de outro. Pois, se é verdade que os nossos primeiros sentimentos de amor vieram do fato de nosso coração receber abundância da nutrição que lhe era conveniente e, ao contrário, que nossos primeiros sentimentos de ódio foram causados por um alimento nocivo que vinha ao coração e que agora os mesmos movimentos acompanham ainda as mesmas paixões, assim, como foi há pouco dito, é evidente que, quando amamos, o mais puro sangue de nossas veias corre abundantemente para o coração, o que envia uma porção de espíritos animais ao cérebro e assim nos dá mais força, mais vigor e mais coragem; ao passo que, se alimentamos ódio, a amargura do fel e a agrura do baço, misturando-se com o nosso sangue, é causa de que ele não aflua tanto, nem tais espíritos venham ao cérebro, e assim que se permaneça mais fraco, mais frio e mais tímido. E a experiência confirma meu dizer; pois os Hércules, os Rolando e, em geral, os que apresentam mais coragem amam mais ardentemente do que os outros; e, ao contrário, os que são fracos e covardes são mais inclinados ao ódio. A cólera pode, na realidade, tornar os homens ousados, mas ela toma seu vigor do amor que se tem por si próprio, o qual lhe serve sempre de fundamento, e não do ódio que se limita apenas a acompanhá-lo. O desespero também leva a efetuar grandes esforços de coragem e o medo leva a exercer grandes crueldades; mas há diferença entre essas paixões e o ódio. Resta-me ainda provar que o amor que se tem por um objeto de pouca importância pode causar maior mal, sendo desregrado, do que o ódio a outro de maior valor. E a razão que dou para isso é que o mal que vem do ódio se estende somente ao objeto odiado, ao passo que o amor desregrado nada poupa, salvo o seu objeto, o qual tem, de ordinário, tão somente pouca extensão, em comparação com todas as outras coisas, cuja perda e ruína está pronto a provocar, a fim de que isso sirva de ceva à extravagância de seu furor. Dir-se-á talvez que o ódio é a causa mais próxima, dos males que se atribuem ao amor, porque, se amamos alguma coisa, odiamos, pelo mesmo meio, tudo o que lhe é contrário. Mas o amor é sempre mais culpado do que o ódio dos males que se produzem dessa maneira, tanto mais que é a primeira causa deles, e que o amor a um só objeto pode assim engendrar o ódio a muitos outros. Depois, além disso, os maiores males do amor não são os que ele comete dessa maneira por intermédio do ódio; os principais e os mais perigosos são os que ele produz, ou deixa produzir, para o exclusivo prazer do objeto amado, ou para o seu próprio. Lembro-me de uma tirada de Théophile, que pode ser aqui apresentada como exemplo; ele faz com que uma pessoa perdida de amor diga: Dieux, que le beau Pâris eut une belle proie! Que cet amant fit bien, A lors qu’il alluma l'embrasemenl de Troie, Pour amortir le sien! O que demonstra que mesmo os maiores e mais funestos desastres podem constituir às vezes a ceva a um amor mal regrado e servir a torná-lo mais agradável quanto mais lhe aumentam o preço. Não sei se meus pensamentos concordam nisso com os vossos; mas asseguro-vos realmente que concordam em que, como me prometestes muita benevolência, assim sou com forte paixão, etc. Carta de René Descartes a Marin Mersenne Reverendo Padre, Apesar de ter recebido três de vossas cartas desde a minha última, não encontro aí matéria suficiente para preencher esta folha. Pois a primeira, de quatro de março, contém apenas a observação das declinações do ímã, que variam na Inglaterra, com o raciocínio que um matemático, que vós não nomeais, fez a respeito desse assunto; raciocínio este que é muito bom para descobrir a causa daqui para frente. Mas se vós esperais que eu vos diga, provisoriamente, minha conjectura, como eu não creio que as declinações do ímã venham de outro lugar que não das desigualdades da Terra, também não creio de forma alguma que a variação dessas declinações tenha outra causa que não sejam as alterações que ocorrem na massa da Terra: seja porque o mar ganha de um lado e perde de outro, da mesma forma que vemos claramente o que ele faz com este país; seja porque de um lado se formam minas de ferro ou porque esgotam-se de outro; ou seja, somente, porque foi transportada alguma quantidade de ferro ou de tijolo ou de argila de um lado da cidade de Londres para outro. Pois eu me lembro que, querendo ver a hora no quadrante onde havia uma agulha imantada, e estando próximo de uma casa na qual havia grandes grades de ferro nas janelas, encontrei muita variação na agulha, mesmo distanciando-me mais de cem passos dessa construção, e passando de sua parte ocidental para a oriental, para melhor observar a diferença. Para o céu, não é crível que tenha advindo tanta mudança em tão poucos anos para causar essa variação, pois os astrônomos a teriam observado. Eu vos agradeço, pela segunda vez, pela semente da sensitiva que encontrei nesta carta, depois de tê-la recebido, oito dias antes, numa outra. Eu recebi, também, o ensaio a respeito das cônicas, do filho de senhor Pascal e, antes de ter lido a metade, julguei que ele havia aprendido com o senhor des-Argues, o que me foi confirmado, imediatamente depois, pela confissão que ele mesmo fez. Vossa segunda carta, de dez de março, continha outra do senhor Meyssonnier, à qual responderei, se pensar que esta vos deve ainda encontrar em Paris; mas se deve ser enviada para mais longe, não há necessidade de carregá-la tanto, e eu posso colocar aqui, em poucas palavras, tudo o que tenho para fazê-lo saber, e isso será, se vos agrada, para quando vós lhe escreverdes. E depois de meus agradecimentos pela benevolência que ele me testemunha no que diz respeito às espécies que servem à memória, eu não nego absolutamente que elas não possam estar em parte na glândula denominada conarium, principalmente nos animais e naqueles que têm o espírito grosseiro; pois, quanto aos outros, não teriam, parece-me, tanta facilidade em imaginar uma infinidade de coisas que eles nunca viram, se a alma deles não estivesse junta a alguma parte do cérebro que fosse muito própria para receber todo tipo de novas impressões, e, por consequência, muito imprópria para conservá-las. Ora, só há essa glândula à qual a alma possa estar assim tão junta, pois não há senão ela, em toda a cabeça, que não seja dupla. Mas eu creio que é todo o resto do cérebro que serve mais à memória, principalmente suas partes internas e, ainda, que todos os nervos e músculos podem servir para isso; de forma que, por exemplo, um tocador de alaúde tem uma parte de sua memória em suas mãos, pois a facilidade de dobrar e de dispor seus dedos de diversas maneiras, que ele adquiriu pelo hábito, ajuda a fazê-lo lembrar de passagens para a execução das quais ele deve assim dispô-los. Vós acreditareis facilmente nisso, se vos dispuserdes a considerar que tudo aquilo a que se chama memória local está fora de nós; de forma que, quando lemos algum livro, todas as espécies que podem servir a nos fazer lembrar daquilo que está dentro não estão em nosso cérebro, mas há também várias no papel do exemplar que nós lemos. E não importa que essas espécies não tenham semelhança com as coisas das quais elas nos fazem lembrar, pois muitas vezes aquelas que estão no cérebro não a têm mais, como eu disse no quarto Discurso de minha Dióptrica. Mas, além dessa memória, que depende do corpo, eu reconheço outra, totalmente intelectual, que só depende da alma. Não estranharia que a Glândula Conarium se encontrasse corrompida na dissecação dos letárgicos, pois ela se corrompe tão prontamente em todos os outros; e querendo vê-la, em Leiden, há três anos, em uma mulher que estava sendo anatomizada, ainda que eu a procurasse com muita curiosidade, e soubesse muito bem onde ela devia estar, como estando acostumado a encontrá-la nos animais recém abatidos sem nenhuma dificuldade, todavia me foi impossível reconhecê-la. E um velho professor que fazia essa anatomia, chamado Valcher, confessou-me que jamais havia podido vê-la em nenhum corpo humano; creio que isso vem do fato de serem consumidos, comumente, alguns dias para ver os intestinos e outras partes, antes de abrir a cabeça. No que diz respeito à mobilidade dessa glândula, não quero outra prova além de sua localização: pois estando sustentada apenas por pequenas artérias que a cercam, é certo que é preciso pouca coisa para movê-la, mas eu não creio, por isso, que possa se afastar muito, nem daqui nem de lá. Quanto aos sinais de nascença, o que faz com que vós acreditais que eles se assemelham tão perfeitamente aos objetos vem do fato de que estranhais que eles se possam assemelhar tanto quanto se assemelham, mas se os comparardes com os retratos dos piores pintores, vós os encontrareis ainda muito mais defeituosos. Quanto à urina dos hidrófobos é uma questão de fato, na qual nada vejo de impossível; não mais do que naquilo que me haveis escrito sobre a fecundidade de um grão de cereal, depois de haver sido imerso em sangue ou em esterco. No que diz respeito àquilo que o senhor N. vos disse sobre o magneto, basta que tenhais nomeado vosso autor para me impedir de dar crédito a isso. Chego à vossa última carta, de vinte de março, na qual vós me fizestes saber que reenviastes o pequeno Catálogo de Plantas que vos enviei, e que, no entanto, não encontro com essa carta; mas também não me preocupei com isso, não mais do que com aquele das plantas do Jardim Real que tivestes o cuidado de enviar-me, sem que eu o tenha ainda recebido, mas fui informado que eles estão em Leiden. Nada ouvi dizer a respeito do que me avisastes que vos escreveram da Inglaterra informando que eu estava a ponto de ir para lá; mas eu vos direi, cá entre nós, que se trata de um país no qual eu preferiria morar a muitos outros países; e quanto à religião, dizem que o rei é católico por vontade: por isso, eu vos peço para não desviar suas boas intenções. Eu não saberia, agora, remeter às matemáticas para procurar o corpo sólido da roldana, mas não o creio impossível. Eu vos mandei, em minha carta precedente, a única razão que eu saiba que possa impedir que um mosquete tenha tanto efeito próximo quanto de um pouco longe, e não há nenhuma aparência de verdade naquilo que vós me enviastes do senhor Mydorge. Eu sou. 1 de abril de 1640 René Descartes