René Descartes – Objeções e Respostas SEGUNDAS OBJEÇÕES RECOLHIDAS PELO R. P. MERSENNE DA BOCA DE DIVERSOS TEÓLOGOS E FILÓSOFOS. Senhor, Visto que, para confundir os novos gigantes do século, que ousam atacar o Autor de todas as coisas, empreendestes firmar-lhe o trono demonstrando sua existência, e que vosso intento parece tão bem conduzido, que as pessoas de bem podem esperar que doravante não haverá quem, depois de ler atentamente vossas Meditações, não confesse haver uma divindade eterna de que dependem todas as coisas, julgamos oportuno vos advertir, e solicitar, ao mesmo tempo, que difundais ainda sobre certas passagens, que assinalaremos mais abaixo, uma tal luz, que nada reste em toda a vossa obra que não seja, se possível, mui clara e mui manifestamente demonstrado. Pois, já que desde muitos anos, por contínuas meditações, exercitastes de tal modo vosso espírito que as coisas que se afiguram a outrem obscuras e incertas podem parecer-vos mais claras, e que as concebeis, talvez, por uma simples inspeção do espírito, sem vos aperceberdes da obscuridade que os outros nelas encontram, convém que sejais advertido daquelas que precisam ser mais clara e mais amplamente explicadas e demonstradas; e, quando nos tiverdes satisfeito nisso, não cremos que alguém mais possa negar que as razões, cuja dedução começastes para a glória de Deus e a utilidade pública, não devem ser tomadas por demonstrações. Primeiramente, haveis de recordar-vos que não foi atualmente e em verdade, mas apenas por uma ficção do espírito, que rejeitastes, tanto quanto vos foi possível, as ideias de todos os corpos, como coisas simuladas ou fantasmas enganadores, para concluir que sois somente uma coisa pensante; de medo que talvez, assim sendo, vós considereis que se possa concluir que de fato e sem ficção não sois nada mais senão um espírito, ou uma coisa que pensa; foi só o que achamos digno de observação no tocante às vossas duas primeiras Meditações, onde mostrais claramente ser certo ao menos que vós, que pensais, sois algo. Mas detenhamo-nos um pouco nesse ponto. Até aí sabeis que sois uma coisa pensante, mas não conheceis ainda o que é essa coisa pensante. E como sabeis que não é um corpo que, por seus diversos movimentos e choques, efetua essa ação que denominamos pensamento? Pois, embora acrediteis haverdes rejeitado todas as espécies de corpos, podia acontecer que vos enganásseis, não tendo rejeitado a vós próprio, que sois um corpo. Pois, como provais que um corpo não pode pensar? Ou que movimentos corporais não são o próprio pensamento? E por que o sistema todo de vosso corpo, que credes haver rejeitado, ou partes dele, as do cérebro, por exemplo, não podem concorrer para formar esses movimentos que chamamos pensamentos? Eu sou, dizeis, uma coisa pensante; mas como sabeis que não sois, igualmente, um movimento corpóreo, ou um corpo movido? Segundamente, da ideia de um ser soberano, que, sustentais, vós mesmo não podeis produzir, ousais concluir a existência de um soberano ser, de quem somente pode proceder a ideia que se acha em vosso espírito. Mas encontramos em nós próprios um fundamento suficiente, em que basta estarmos apoiados para poder formar essa ideia, embora não haja nenhum soberano ser, ou não saibamos se existe algum e sua existência não nos venha mesmo ao pensamento; pois não vejo que, tendo a faculdade de pensar, tenho em mim algum grau de perfeição? E não vejo também que outros, além de mim, possuem grau semelhante? E isso me serve de base para pensar em qualquer número que seja e para juntar também um grau de perfeição ao outro, até o infinito; da mesma maneira que, mesmo se houvesse no mundo um único grau de calor ou de luz, poderia, não obstante, juntá-los e supor sempre outros novos até o infinito. Por que, analogamente, não poderia acrescentar a qualquer grau de ser que percebo existir em mim outro grau qualquer, e, de todos os graus capazes de serem adicionados, constituir a ideia de um ser perfeito? Mas, dizeis, o efeito não pode apresentar nenhum grau de perfeição, ou de realidade, que não tenha estado anteriormente na sua causa. Mas (além de verificarmos todos os dias que as moscas e inúmeros outros animais, assim como as plantas, são produzidos pelo sol, pela chuva e pela terra, nos quais não há nenhuma vida, como há nesses animais, vida que é mais nobre do que qualquer outro grau puramente corpóreo, de onde resulta que o efeito cobra, de sua causa, alguma realidade, que no entanto não existia na causa); mas, digo eu, essa ideia nada mais é que um ente de razão, que não é mais nobre do que vosso espírito, que a concebe. Além disso, como sabeis que esta ideia jamais se vos ofereceria ao espírito, se tivésseis passado toda a vida num deserto, e nunca em companhia de pessoas sapientes? E não se poderia alegar que a hauristes dos pensamentos que vos haviam ocorrido anteriormente, dos ensinamentos dos livros, dos discursos e conversações de vossos amigos, etc., e não de vosso exclusivo espírito, ou de um soberano ser existente? Portanto, cumpre provar mais claramente que essa ideia não poderia estar em vós, se não houvesse nenhum soberano ser; e então seremos os primeiros a nos render a vosso raciocínio, e dar-nos-emos todos as mãos. Ora, que tal ideia procede dessas noções antecipadas, patenteia-se, parece, assaz claramente do fato de os canadenses, os hurões e os outros homens selvagens não possuírem neles tal ideia, a qual podeis até formar do conhecimento que tendes das coisas corporais; de sorte que vossa ideia nada mais representa senão esse mundo corporal, que abrange todas as perfeições que poderíeis imaginar; de sorte que não podeis concluir outra coisa, exceto que há um ente corpóreo muito perfeito; a não ser que junteis algo mais, que eleve vosso espírito ao conhecimento das coisas espirituais ou incorpóreas. Ainda aqui é possível afirmar que a ideia de um anjo pode existir em vós, tanto quanto a de um ser mais perfeito, sem que haja necessidade, para tanto, de que seja formada em vós por um anjo realmente existente, embora o anjo seja mais perfeito do que vós. Mas não tendes a ideia de Deus, assim como a de um número ou a de uma linha infinita; e, ainda que pudésseis tê-la, este número é inteiramente impossível. Adicionai a isto que a ideia de unidade e simplicidade de uma única perfeição que envolva e contenha todas as outras constitui-se unicamente pela operação do entendimento que raciocina, assim como se constituem as unidades universais, que não estão nas coisas, mas somente no entendimento, como é visível pela unidade genérica, transcendental, etc. Em terceiro lugar, como ainda não estais certo da existência de Deus e dizeis, no entanto, que não podeis estar seguro de coisa alguma, ou conhecer coisa alguma clara e distintamente, se primeiro não conheceis certa e claramente que Deus existe, segue-se que não sabeis ainda que sois uma coisa pensante, porquanto, segundo vós, tal conhecimento depende do conhecimento claro de um Deus existente, que ainda não demonstrastes, nos lugares onde concluís que conheceis claramente o que sois. Adicionai a isso que um ateu conhece clara e distintamente que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos, embora esteja muito longe de crer na existência de Deus, posto que a negou completamente: porque, diz ele, se Deus existisse, haveria um soberano ser e um soberano bem, isto é, um infinito; ora, o que é infinito, em todo gênero de perfeição, exclui toda outra coisa que seja não somente toda espécie de ser e de bem mas, outrossim, toda espécie de não ser e de mal; no entanto, há muitos seres e muitos bens, assim como muitos não seres e muitos males; objeção à qual julgamos ser oportuno que vós respondais, de modo que aos ímpios nada mais reste a objetar, e que possa servir de pretexto à sua impiedade. Em quarto lugar, negais que Deus possa mentir ou enganar; conquanto se encontrem escolásticos que sustentam o contrário, como Gabriel, Ariminensis e alguns outros, os quais pensam que Deus mente, falando absolutamente, isto é, que ele significa algo aos homens contra sua intenção, e contra o que decretou e resolveu, como quando, sem acrescentar condição, diz aos ninivitas por seu profeta: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida, e ao dizer muitas outras coisas que não aconteceram, porque não pretendeu que tais palavras correspondessem à sua intenção ou a seu decreto. Por que se empederniu e cegou o Faraó, e, se pôs nos profetas um espírito de mentira, como podeis afirmar que não podemos ser enganados por ele? Não pode Deus comportar-se com os homens como um médico com seus doentes, e um pai com seus filhos, que tanto um como outro enganam tão amiúde, mas sempre com prudência e utilidade? Pois se Deus nos mostrasse a verdade inteira e nua, que olho ou, antes, que espírito possuiria bastante força para suportá-la? Ainda que, a bem dizer, não seja necessário supor um Deus enganador, para que sejais decepcionados nas coisas que pensais conhecer clara e distintamente, visto que a causa dessa decepção pode estar em vós, embora nem sequer o sonheis. Pois como sabeis que vossa natureza não é tal que ela se engana sempre, ou ao menos com muita frequência? E onde vos informaram que, no tocante às coisas que pensais conhecer clara e distintamente, é certo que nunca estivestes enganado, e que não o podeis estar? Pois quantas vezes verificamos que as pessoas se enganam em coisas que pensavam ver mais claramente do que o sol! Portanto, esse princípio do conhecimento claro e distinto deve ser explicado tão clara e distintamente que, doravante, ninguém dotado de espírito razoável possa ficar decepcionado nas coisas que julgar conhecer clara e distintamente; de outro modo, ainda não vemos nada que possamos responder com certeza sobre a verdade de qualquer coisa. Em quinto lugar, se a vontade nunca pode falhar, ou não peca de maneira alguma, quando segue e se deixa conduzir pelas luzes claras e distintas do espírito que a governa e, se, ao contrário, expõe-se ao perigo, quando persegue e abrange os conhecimentos obscuros e confusos do entendimento, notai que daí parece possível inferir que os turcos e os outros infiéis não só não pecam quando não abraçam a religião cristã e católica mas até mesmo pecam quando a abraçam, pois não conhecem sua verdade nem clara nem distintamente. Ainda mais, se for verdadeira essa regra que estabeleceis, não será dado à vontade abranger senão pouquíssimas coisas, visto que não conhecemos quase nada com a clareza e distinção que exigis, para constituir uma certeza que não esteja sujeita a nenhuma dúvida. Tomai pois, cuidado, se vos apraz, para que, pretendendo firmar o partido da verdade, não proveis mais do que o necessário, e para que, em vez de apoiá-lo, não o derrubeis. Em sexto lugar, nas vossas respostas às objeções precedentes, parece que deixastes de tirar a devida conclusão do seguinte argumento: O que entendemos pertencer clara e distintamente à natureza, ou à essência, ou à forma imutável e verdadeira de qualquer coisa, pode ser dito ou afirmado com verdade desta coisa; mas (depois de observar assaz cuidadosamente o que é Deus) entendemos clara e distintamente que pertence à sua verdadeira e imutável natureza, que ele existe. Cumpriria concluir: logo (após observar assaz cuidadosamente o que é Deus), podemos dizer ou afirmar com verdade que pertence à natureza de Deus que ele exista. Daí não decorre que Deus existe de fato, mas somente que deve existir, caso sua natureza seja possível, ou não repugne em nada; isto é, que a natureza ou a essência de Deus é inconcebível sem existência, de tal sorte que, se esta essência é, ele existe realmente. Isso se relaciona com o argumento que outros propõem da seguinte forma: se não implica que Deus seja, é certo que ele existe; ora, não implica que ele exista; portanto, etc. Mas o que está em discussão é a menor, a saber, que não implica que ele existe cuja verdade alguns de nossos adversários põem em dúvida e outros negam. Demais, esta cláusula de vosso raciocínio (após termos assaz claramente reconhecido e observado o que é Deus) é suposta como verdadeira, no que nem todo mundo está ainda de acordo, já que vós próprio confessais que não compreendeis o infinito senão imperfeitamente; o mesmo se deve dizer de todos os seus outros atributos: pois, sendo tudo o que é em Deus inteiramente infinito, qual o espírito capaz de compreender a menor coisa que seja em Deus, se não mui imperfeitamente? Como podeis, portanto, ter observado bastante clara e distintamente o que é Deus? Em sétimo lugar, não encontramos uma só palavra em vossas Meditações sobre a imortalidade da alma humana, que, no entanto, devíeis principalmente provar, dando-lhe mui exata demonstração para confundir essas pessoas indignas da imortalidade, pois a negam, e talvez, a detestem. Mas, além disso, tememos que não haveis ainda provado suficientemente a distinção que existe entre a alma e o corpo do homem, como já notamos na primeira de nossas observações, à qual acrescentamos que não parece seguir-se, dessa distinção da alma com o corpo, que ela seja incorruptível ou imortal; pois quem sabe se sua natureza não é limitada pela duração da vida corporal, e se Deus não mediu de tal maneira suas forças e sua existência, que ela finde com o corpo? Eis, Senhor, as coisas a que desejamos que forneçais maior luz para que a leitura de vossas mui sutis, e, como estimamos mui verdadeiras Meditações seja proveitosa a todo mundo. Daí por que seria muito útil, se, ao fim de vossas soluções, após terdes primeiramente adiantado algumas definições, postulados e axiomas, concluirdes o todo, segundo o método dos geômetras, em que sois tão bem versado, para que de uma só vez, e como de um só relance, vossos leitores possam encontrar com o que se satisfazer, e para que preenchais seus espíritos com o conhecimento da divindade. RESPOSTAS DO AUTOR ÀS SEGUNDAS OBJEÇÕES. RECOLHIDAS DE MUITOS TEÓLOGOS E FILÓSOFOS PELO R. P. MERSENNE. Senhores, Foi com muita satisfação que li as vossas observações sobre o meu pequeno tratado da Filosofia primeira; pois me deram a conhecer a benevolência que tivestes para comigo, a vossa piedade para com Deus e o cuidado que tomais para o avanço de sua glória; e só posso me regozijar, não apenas porque julgastes minhas razões dignas de vossa censura, mas também porque nada adiantais contra elas que não me pareça poder responder bastante comodamente. Em primeiro lugar, vós me advertis para que eu me recorde: Que não foi atualmente e em verdade, mas apenas por uma ficção do espírito, que rejeitei as ideias ou os fantasmas dos corpos, para concluir que sou uma coisa pensante, de medo que talvez eu considere que daí se segue que eu não sou senão uma coisa que pensa. Mas já mostrei, na minha Meditação Segunda, que me lembrava suficientemente disso, visto haver colocado aí essas palavras: Mas também pode acontecer que essas mesmas coisas que suponho não existirem de modo algum, porque me são desconhecidas, não difiram efetivamente de mim que conheço: nada sei a respeito, não discuto agora sobre isso, etc., pelas quais pretendi expressamente advertir o leitor de que, naquele ponto, não procurava ainda saber se o espírito era diferente do corpo, mas examinava somente aquelas de suas propriedades de que posso ter claro e seguro conhecimento. E, posto que o observei aí muitas vezes, não posso admitir sem distinção o que acrescentais em seguida: Que não sei, no entanto, o que é uma coisa que pensa. Pois, embora confesse que não sabia ainda se essa coisa pensante não era diferente do corpo, ou se o era, não confesso com isso que não a conhecia de modo algum, pois quem jamais conheceu de tal maneira alguma coisa que soubesse nada haver nela exceto aquilo mesmo que conhecia? Mas pensamos conhecer tanto melhor uma coisa quanto mais particularidades dela conhecemos; assim, temos mais conhecimento daqueles com quem conversamos todos os dias do que daqueles de que só conhecemos o nome ou o rosto; e todavia não julgamos que esses nos sejam inteiramente desconhecidos; nesse sentido penso ter suficientemente demonstrado que o espírito, considerado sem as coisas que se costumam atribuir ao corpo, é mais conhecido que o corpo considerado sem o espírito. E é tudo o que pretendia provar nessa Meditação Segunda. Mas bem vejo o que pretendeis dizer, a saber, que, havendo eu escrito apenas seis Meditações sobre a Filosofia primeira, os leitores se espantarão de que, nas duas primeiras, não conclua nada mais senão o que acabo de declarar nesse instante, e pôr isso hão de achá-las demasiado estéreis e indignas de terem sido trazidas à luz. A isso respondo somente não temer que aqueles que houverem lido com discernimento o restante do que escrevi tenham ocasião de suspeitar que eu haja malogrado no trato da matéria; mas que me pareceu muito razoável que as coisas que exigem particular atenção, e devem ser consideradas separadamente das outras, fossem postas em Meditações separadas. Eis por que, não conhecendo nada mais útil para alcançar um firme e seguro conhecimento das coisas do que acostumar-se, antes de estabelecer algo, a duvidar de tudo e principalmente das coisas corporais, embora houvesse visto há longo tempo muitos livros escritos pelos céticos e acadêmicos sobre a matéria e não fosse sem certo fastio que ruminava um alimento tão comum, não pude todavia dispensar-me de lhe conceder uma Meditação inteira; e gostaria que os leitores empregassem não apenas o pouco tempo necessário para lê-la, mas alguns meses, ou ao menos algumas semanas, em considerar as coisas de que ela trata, antes de passar além; pois assim não duvido que aufiram lucro bem melhor da leitura do restante. Ademais, por não termos tido até agora quaisquer ideias das coisas pertencentes ao espírito que não fossem muito confusas e misturadas às ideias das coisas sensíveis, e por ter sido esta a primeira e principal razão pela qual não se pôde entender assaz claramente nenhuma das coisas que se diziam de Deus e da alma, pensei que não faria pouco se mostrasse como é preciso distinguir as propriedades ou qualidades do espírito das propriedades ou qualidades do corpo, e como é preciso reconhecê-las; pois, embora muitos já tenham dito que, para bem entender as coisas imateriais ou metafísicas, é necessário distanciar o nosso espírito dos sentidos, não obstante ninguém, que eu saiba, mostrou ainda por que meio é possível realizá-lo. Ora, o verdadeiro, e a meu juízo, o único meio para isso está contido na minha Meditação Segunda; mas é de tal ordem que não basta tê-lo encarado uma vez, cumpre examiná-lo amiúde e considerá-lo durante muito tempo, a fim de que o hábito de confundir as coisas intelectuais com as corporais, que se enraizou em nós no curso de toda a nossa vida, possa ser expungido por um hábito contrário, o de distingui-las, adquirido pelo exercício de alguns dias. E isso me pareceu uma causa bastante justa para que não versasse outra matéria na Meditação Segunda. Perguntais aqui como demonstro que o corpo não pode pensar; mas perdoai-me se respondo que ainda não dei lugar a tal questão, tendo apenas começado a tratá-la na Meditação Sexta, pelas seguintes palavras: É suficiente que eu possa clara e distintamente conceber uma coisa sem outra, para ser certo que uma é distinta ou diferente da outra, etc. E pouco depois: Ainda que eu tenha um corpo que me seja mui estreitamente ligado, no entanto, porque, de um lado, possuo uma ideia clara e distinta de mim próprio, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, e não extensa, e que, de outro, possuo uma ideia clara e distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa, e que não pensa, é certo que eu, isto é, meu espírito, ou minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo, e que pode ser ou existir sem ele. Ao que é fácil adicionar: Tudo o que pode pensar é espírito, ou se chama espírito. Mas como o corpo e o espírito são realmente distintos, nenhum corpo é espírito. Logo, nenhum corpo pode pensar. E certamente nada vejo nisso que possais negar; pois negareis vós que basta concebermos claramente uma coisa sem outra, para sabermos que são realmente distintas? Dai-nos, portanto, algum signo mais certo da distinção real, se é que se pode dar algum. Pois, o que direis vós? Que essas coisas são realmente distintas, podendo cada qual existir sem a outra? Mas eu tornaria a perguntar-vos de onde sabeis que uma coisa pode existir sem a outra. Pois, para que isso constitua um signo de distinção, é necessário que seja conhecido. Alegareis talvez que os sentidos volo fazem conhecer, por que vedes uma coisa na ausência de outra, ou porque a tocais, etc. Mas a fé dos sentidos é mais incerta que a do entendimento; e pode acontecer de muitas maneiras que uma só e mesma coisa se apresente a nossos sentidos sob diversas formas, ou em diversos lugares e maneiras, sendo assim tomada por duas. E enfim, se vos recordais do que foi dito da cera ao termo da Meditação Segunda, sabeis que os corpos mesmos não são propriamente conhecidos pelos sentidos, mas só pelo entendimento; de tal modo que sentir uma coisa sem outra nada é senão ter a ideia de uma coisa, e entender que essa ideia não é a mesma que a ideia de outra: ora, isso só é cognoscível pelo fato de que uma coisa é concebida sem a outra; o que não pode ser certamente conhecido, se não se tem a ideia clara e distinta dessas duas coisas: e assim esse signo de real distinção deve reduzir-se ao meu para tornar-se certo. Porque, se há os que negam haver ideias distintas do espírito e do corpo, nada posso fazer, exceto pedir-lhes que considerem assaz atentamente as coisas contidas nessa Meditação Segunda, e notem que a opinião, por eles adotada, de que as partes do cérebro concorrem com o espírito para formar nossos pensamentos não se baseia em nenhuma razão positiva, mas apenas em que jamais experimentaram ter existido sem corpo, e que com muita frequência foram impedidos por ele em suas operações; e isso é o mesmo que se alguém, pelo fato de levar desde a infância ferros nos pés, julgasse que tais ferros constituíam parte de seu corpo, e lhe eram necessários para andar. Em segundo lugar, quando dizeis: Que temos em nós próprios um fundamento suficiente para formar a ideia de Deus, nada dizeis em contrário à minha opinião. Pois eu mesmo afirmei em termos expressos, ao fim da Meditação Terceira: Que esta ideia nasceu comigo, e ela não me vem de outra parte senão de mim mesmo. Confesso também que poderíamos formá-la, embora não soubéssemos que há um soberano ser, mas não se efetivamente não existisse um ente assim; pois, ao invés, adverti que toda força de meu argumento consiste em que não poderia ocorrer que a faculdade deformar essa ideia existisse em mim, se eu não tivesse sido criado por Deus. E o que dizeis das moscas, das plantas, etc., não prova, de maneira alguma, que algum grau de perfeição possa estar num efeito, não tendo estado antes na causa. Pois é certo não haver perfeição nos animais destituídos de razão que não se encontre também nos corpos inanimados, ou, se há alguma perfeição, esta lhes provém de outra parte, não sendo o sol, a chuva e a terra as causas totais desses animais. E seria algo bem afastado da razão se alguém, pelo simples fato de não conhecer a causa que concorra para a geração de uma mosca e que possua tantos graus de perfeição quantos há numa mosca, não estando todavia seguro de que haja outras além das que conhece, aproveitasse a ocasião para duvidar de uma coisa, a qual, como logo direi mais amplamente, é manifesta pela luz natural. A isso acrescento que tudo quanto objetais aqui acerca das moscas, sendo tirado da consideração das coisas materiais, não pode vir ao espírito daqueles que, seguindo a ordem de minhas Meditações, desviam seus pensamentos das coisas sensíveis, para começar a filosofar. Não me parece tampouco que provais algo contra mim, afirmando que a ideia de Deus que está em nós é apenas um ser de razão. Pois isso não é verdade, se por um ser de razão se compreende uma coisa que não existe, mas somente se todas as operações do entendimento são tomadas por seres de razão, isto é, por seres que partem da razão; nesse sentido, todo esse mundo pode também chamar-se um ser de razão divina, isto é, um ser criado por um simples ato do entendimento divino. E já adverti suficientemente, em vários lugares, que falava apenas da perfeição ou realidade objetiva dessa ideia de Deus, a qual não requer menos uma causa, onde esteja contido de fato tudo o que não está contido nela senão objetivamente ou por representação, do que a requer o artifício objetivo ou representado, existente na ideia que qualquer artesão tem de uma máquina muito artificial. E por certo não vejo como se possa acrescentar algo para explicar mais claramente que esta ideia não pode estar em nós, se um soberano ser não existe, a menos que o leitor, notando mais de perto as coisas que já escrevi, se livre a si mesmo dos prejuízos que lhe ofuscam talvez a luz natural, e se acostume a dar crédito às primeiras noções, cujos conhecimentos são tão verdadeiros e tão evidentes, como nada mais pode sê-lo, de preferência às opiniões obscuras e falsas, mas que um longo uso gravou profundamente em nossos espíritos. Pois que nada exista em um efeito que não tenha existido de forma semelhante ou mais excelente na causa é uma primeira noção, e tão evidente, que não há nada mais claro; e esta outra noção comum, que de nada nada se faz, a compreende em si, porque, se se concorda que exista algo no efeito que não existiu na sua causa, cumpre concordar também que isso procede do nada; e se é evidente que o nada não pode ser a causa de algo, é somente porque, nesta causa, não haveria a mesma coisa do que no efeito. Constitui também uma primeira noção que toda a realidade, ou toda a perfeição, que só está objetivamente nas ideias, deve estar formal ou eminentemente nas suas causas; e toda opinião que jamais nutrimos sobre a existência das coisas fora de nós apoia-se tão somente nela. Pois de onde nos poderia advir a suspeita de que existissem, se não do simples fato de suas ideias virem pelos sentidos ferir nosso espírito? Ora, que há em nós alguma ideia de um ente soberanamente poderoso e perfeito, e também que a realidade objetiva desta ideia não se encontra em nós, nem formal, nem eminentemente, isto tornar-se-á manifesto aos que pensarem seriamente no assunto, e quiserem dar-se ao trabalho de meditá-lo comigo; mas não poderia enfiá-lo à força no espírito dos que lerem as minhas Meditações apenas como um romance, para se desenfadar, e sem lhes prestar grande atenção. Ora, de tudo isso, conclui-se mui manifestamente que Deus existe. E todavia, em favor daqueles cuja luz natural é tão fraca, que não veem que constitui uma primeira noção que toda a perfeição que está objetivamente numa ideia deve estar realmente em alguma de suas causas, ainda a demonstrei de maneira fácil de conceber, mostrando que o espírito que tem esta ideia não pode existir por si próprio; e, portanto, não vejo o que podeis desejar mais para me dardes as mãos, como haveis prometido. Não vejo tampouco que tenhais provado algo contra mim, dizendo que talvez eu tenha recebido a ideia que me representa Deus dos pensamentos que concebi anteriormente, dos ensinamentos dos livros, dos discursos de meus amigos, etc., e não somente de meu espírito. Pois meu argumento terá sempre a mesma força, se, dirigindo-me àqueles de quem se diz que eu a recebi, eu lhes perguntar se a têm por si mesmos, ou por outrem, em vez de perguntá-lo a mim próprio; e eu concluirei sempre que este outro é Deus, de quem ela é primeiramente derivada. Quanto ao que acrescentais neste ponto, de que ela pode ser formada da consideração das coisas corporais, não me parece mais verossímil do que se disserdes que não dispomos de qualquer faculdade auditiva, mas que, pela simples visão das cores, chegamos ao conhecimento dos sons. Pois pode-se afirmar que há mais analogia ou relação entre as cores e os sons do que entre as coisas corporais e Deus. E quando pedis que eu adicione alguma coisa que nos eleve até o conhecimento do ser imaterial ou espiritual, o melhor que posso fazer é remeter-vos à minha Meditação Segunda, a fim de ao menos saberdes que ela não é totalmente inútil; pois o que poderia fazer eu aqui com um ou dois períodos, se nada consegui adiantar com um longo discurso preparado unicamente para tal assunto, e ao qual me parece não haver dispensado menos diligência do que a qualquer outro escrito por mim publicado? E ainda que esta Meditação haja tratado somente do espírito humano, nem por isso é menos útil para explicar a diferença que há entre a natureza divina e a das coisas materiais. Pois, na realidade, quero confessar aqui francamente que a ideia que temos, por exemplo, do entendimento divino não me parece diferir da que temos de nosso próprio entendimento, senão apenas como a ideia de um número infinito difere da do número binário ou do ternário; e acontece o mesmo com todos os atributos de Deus, de que reconhecemos em nós algum vestígio. Mas, além disso, concebemos em Deus uma imensidade, simplicidade, ou unidade absoluta, que abrange e contém todos os seus outros atributos, e da qual não encontramos em nós, ou alhures, nenhum exemplo; mas ela é (assim como já disse antes) como que a marca do obreiro impressa em sua obra. E, por seu intermédio, sabemos que nenhuma das coisas que concebemos estar em Deus e em nós, e que consideramos nele por partes e como se fossem distintas, por causa da fraqueza de nosso entendimento, e que experimentamos como tais em nós, não convém a Deus e a nós na forma denominada unívoca nas Escolas. Assim também sabemos que, das muitas coisas particulares que não têm fim, cujas ideias possuímos, tais como as de um conhecimento sem fim, de uma potência, de um número, de um comprimento, etc., que também são sem fim, há algumas que se acham contidas formalmente na ideia que temos de Deus, como o conhecimento e a potência, e outras que aí se encontram apenas eminentemente, como o número e o comprimento; o que por certo não seria assim, se tal ideia não fosse outra coisa em nós senão uma ficção. E ela não seria tampouco concebida tão exatamente da mesma maneira por todo o mundo; pois é notável que todos os metafísicos concordem unanimemente na descrição dos atributos de Deus (ao menos dos que a simples razão humana pode conhecer), de tal sorte que não há coisa física nem sensível, nada de que tenhamos uma ideia tão expressa e tão palpável, a respeito de cuja natureza não haja entre os filósofos maior diversidade de opiniões, do que se verifica no tocante à de Deus. E, indubitavelmente, os homens jamais poderiam distanciar-se do verdadeiro conhecimento desta natureza divina, se quisessem somente voltar a atenção para a ideia que têm do ser soberanamente perfeito. Mas aqueles que misturam a esta algumas outras ideias compõem por tal meio um Deus quimérico em cuja natureza existem coisas que se contrariam; e, após tê-lo assim composto, não é de espantar que neguem que tal Deus, que lhes é representado por uma falsa ideia, existe. Assim, quando vós falais aqui de um ser corporal mui perfeito, se tomais a denominação mui perfeito de modo absoluto, de maneira que entendais que o corpo é um ser onde se encontram todas as perfeições, dizeis coisas que se contrariam, posto que a natureza do corpo encerra muitas imperfeições, por exemplo, a que o corpo seja divisível em partes, que cada uma de suas partes não seja a outra, e outras semelhantes; pois é algo evidente por si que constitui maior perfeição não poder ser dividido do que poder sê-lo. Pois se entendeis apenas o que é mui perfeito no gênero do corpo, isto não é de modo algum o verdadeiro Deus. O que acrescentais da ideia de um anjo, o qual é mais perfeito do que nós, a saber, que não é necessário que tenha sido posta em nós por um anjo, estou facilmente de acordo; pois eu próprio declarei, na Meditação Terceira, que ela pode compor-se das ideias que temos de Deus e do homem. E isso não me é de forma alguma, contrário. Quanto aos que negam possuir em si a ideia de Deus e em seu lugar forjam algum ídolo, etc., esses, digo eu, negam o nome e concedem a coisa. Pois certamente não penso que tal ideia seja da mesma natureza que as imagens das coisas materiais pintadas na fantasia; mas, ao contrário, creio que ela só pode ser concebida pelo exclusivo entendimento e que, de fato, não é outra coisa senão aquilo que ele nos faz conhecer, seja pela primeira, seja pela segunda, seja pela terceira de suas operações. E pretendo manter que, do simples fato de alguma perfeição, que está acima de mim, tornar-se o objeto de meu entendimento, de qualquer forma que se lhe apresente — por exemplo, do simples fato de eu perceber que nunca posso, enumerando, chegar ao maior de todos os números, e daí eu conhecer que existe algo, em matéria de números, que ultrapassa minhas forças —, posso concluir necessariamente não que existe na verdade um número infinito, nem tampouco que sua existência implica contradição, como dizeis, mas que este poder que tenho de compreender que há sempre alguma coisa a mais a conceber no maior dos números, que eu jamais posso conceber, não provém de mim mesmo, e que eu o recebi de algum outro ser que é mais perfeito do que sou. E importa muito pouco que se dê o nome de ideia a esse conceito de um número indefinido, ou que não lho deem. Mas, para entender qual é esse ente mais perfeito do que eu e saber se não é esse mesmo número, cujo fim não posso encontrar, que é realmente existente e infinito, ou se é outra coisa qualquer, cumpre considerar todas as outras perfeições, as quais, além do poder de me dar esta ideia, podem existir na mesma coisa em que existe este poder; e assim verificamos que esta coisa é Deus. Enfim, quando Deus é dito inconcebível, por isso se entende uma plena e inteira concepção, que compreende e abrange perfeitamente tudo quanto há nele, e não essa concepção medíocre e imperfeita que há em nós, a qual no entanto basta para conhecer que ele existe. E nada provais contra mim, dizendo que a ideia da unidade de todas as perfeições que há em Deus é formada da mesma maneira que a unidade genérica e a dos outros universais. Mas, não obstante, ela é muito diferente; pois denota uma particular e positiva perfeição em Deus, ao passo que a unidade genérica nada acrescenta de real à natureza de cada indivíduo. Em terceiro lugar, onde afirmei que nada podemos saber de certo, se não conhecermos primeiramente que Deus existe, afirmei, em termos expressos, que falava apenas da ciência dessas conclusões, cuja lembrança nos pode retornar ao espírito, quando não mais pensamos nas razões de onde as tiramos. Pois o conhecimento dos primeiros princípios ou axiomas não costuma ser chamado ciência pelos dialéticos. Mas, quando percebemos que somos coisas pensantes, trata-se de uma primeira noção que não é extraída de nenhum silogismo; e quando alguém diz: Penso, logo sou, ou existo, ele não conclui sua existência de seu pensamento como pela força de algum silogismo, mas como uma coisa conhecida por si; ele a vê por simples inspeção do espírito. Como se evidencia do fato de que, se a deduzisse por meio do silogismo, deveria antes conhecer esta premissa maior: Tudo o que pensa é ou existe. Mas, ao contrário, esta lhe é ensinada por ele sentir em si próprio que não pode se dar que ele pense, caso não exista. Pois é próprio de nosso espírito formar as proposições gerais pelo conhecimento das particulares. Ora, que um ateu possa conhecer claramente que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos, não o nego; mas sustento apenas que não conhece isso por uma ciência verdadeira e certa, porque todo conhecimento que se pode tornar duvidoso não deve ser denominado ciência, e uma vez que se supõe tratar-se de um ateu, não pode ele ter certeza de não ser enganado nas coisas que lhe parecem muito evidentes, como já foi mostrado mais acima; e, embora essa dúvida talvez não lhe ocorra ao pensamento, pode no entanto ocorrer-lhe, se a examinar, ou se lhe for proposta por outrem; e nunca estará fora do perigo de concebê-la, caso não reconheça primeiramente um Deus. E não importa que talvez julgue haver demonstrações para provar que Deus não existe; pois, como essas pretensas demonstrações são falsas, é sempre possível dar-lhe a conhecer a sua falsidade; e levá-lo, então, a mudar de opinião. O que na verdade não será difícil, se por todas as razões ele apresentar somente a que acrescentais aqui, a saber, que o infinito em todo gênero de perfeição exclui toda outra espécie de ser, etc. Pois, primeiramente, se se lhe pergunta de onde ficou sabendo que esta exclusão de todos os outros seres pertence à natureza do infinito, nada terá para responder pertinentemente, posto que, pelo nome infinito, não se costuma entender aquilo que exclui a existência das coisas finitas, e que ele nada pode saber da natureza de uma coisa que ele pensa não ser absolutamente nada, e por conseguinte não ter nenhuma natureza, exceto a que está contida na simples e ordinária significação do nome dessa coisa. Ademais, para que serviria o infinito poder desse infinito imaginário, se não pudesse jamais criar algo? E enfim, por experimentarmos haver em nós mesmos certo poder de pensar, concebemos facilmente que tal poder possa existir em alguém mais, e até maior do que em nós; mas, ainda que pensemos que aquele cresce ao infinito, não tememos por isso que o nosso se torne menor. O mesmo sucede com todos os outros atributos de Deus, inclusive o do poder de produzir alguns efeitos fora de si, desde que suponhamos que nada há em nós sem que esteja submetido à vontade de Deus; portanto, é possível entendê-lo como totalmente infinito sem qualquer exclusão das coisas criadas. Em quarto lugar, quando digo que Deus não pode mentir, nem ser enganador, penso convir com todos os teólogos que alguma vez existiram e hão de existir no futuro. E tudo quanto alegais em contrário não possui mais força do que se, tendo negado que Deus se encoleriza, ou que esteja sujeito às outras paixões da alma, me objetardes as passagens da Escritura onde parece que lhe são atribuídas algumas paixões humanas. Pois todos conhecem suficientemente a distinção que há entre essas maneiras de falar de Deus, de que a Escritura se serve comumente, que se acomodam à capacidade do vulgo e contêm de fato alguma verdade, mas apenas na medida em que esta se relaciona aos homens, e as que expressam uma verdade mais simples e mais pura e que não muda de natureza, embora não se lhes relacione de modo algum; destas é que cada qual deve usar ao filosofar e foi delas que precisei utilizar-me principalmente nas minhas Meditações, visto que mesmo aí eu não supunha ainda que algum homem me fosse conhecido, e não me considerava tampouco composto de corpo e espírito, mas um espírito somente. De onde se torna evidente que não falei nesse ponto da mentira que se exprime por palavras, mas apenas da malícia interna e formal contida no engano: se bem que, no entanto, essas palavras que citais do profeta: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida, não constituam mesmo uma mentira verbal, porém uma simples ameaça, cuja ocorrência dependia de uma condição; e quando é dito que Deus empederniu o coração do Faraó, ou algo semelhante, não cumpre pensar que o tenha feito positivamente, mas apenas negativamente, a saber, não dando ao Faraó uma graça eficaz para que se convertesse. Não desejaria, apesar de tudo, condenar aqueles que afirmam que Deus pode proferir por seus profetas alguma mentira verbal, tais como o são aquelas de que se servem os médicos quando iludem seus doentes para curá-los, isto é, que fosse isenta de toda malícia que se encontra comumente no engano. Mas, bem ao contrário, vemos às vezes que somos realmente enganados por este instinto natural que nos foi dado por Deus, como quando um hidrópico sente sede; pois então é realmente incitado a beber pela natureza que lhe foi concedida por Deus para a conservação do corpo, se bem que, não obstante, essa natureza o engane, pois que o beber lhe deve ser prejudicial; mas expliquei, na minha Meditação Sexta, como isso é compatível com a vontade e a verdade de Deus. Mas nas coisas que não podem assim explicar-se, a saber, nos nossos juízos muito claros e muito exatos, os quais, se fossem falsos, não seriam corrigíveis por outros mais claros, nem mediante qualquer outra faculdade natural, sustento ousadamente que não podemos ser enganados. Pois, sendo Deus o soberano ser, cumpre que seja necessariamente também o soberano bem e a soberana verdade, e, portanto, repugna que venha dele qualquer coisa que tenda positivamente para a falsidade. Mas, como em nós nada pode haver de real que ele não nos tenha dado (como foi demonstrado na prova de sua existência), e como temos em nós uma faculdade real para conhecer o verdadeiro e distingui-lo do falso (como é possível provar pelo simples fato de possuirmos em nós as ideias do verdadeiro e do falso), se esta faculdade não tendesse ao verdadeiro, ao menos quando dela nos servimos como se deve (isto é, quando damos nosso consenso apenas às coisas que concebemos clara e distintamente, pois não se pode supor outro bom uso dessa faculdade), não seria sem razão que Deus, que no-la concedeu, seria, tido por enganador. E assim vedes que, depois de se conhecer que Deus existe, é mister supor que seja enganador, se quisermos pôr em dúvida as coisas que concebemos clara e distintamente; e, como isso não se pode sequer supor, deve-se necessariamente admitir tais coisas como mui verdadeiras e mui certas. Mas, posto que observo a esta altura que ainda vos deteis nas dúvidas que propus na minha Primeira Meditação e que pensei haver solucionado assaz exatamente nas seguintes, explicarei aqui de novo o fundamento em que me parece possível apoiar toda a certeza humana. Primeiramente, tão logo pensamos claramente qualquer verdade somos naturalmente levados a crer nela. E, se tal crença for tão forte que jamais possamos alimentar qualquer razão de duvidar daquilo que acreditamos desta forma, nada mais há que procurar: temos, no tocante a isso, toda a certeza que se possa razoavelmente desejar. Pois, o que nos importa, se talvez alguém fingir que mesmo aquilo, de cuja verdade nos sentimos tão fortemente persuadidos, parece falso aos olhos de Deus ou dos anjos, e que, portanto, em termos absolutos, é falso? Por que devemos ficar inquietos com essa falsidade absoluta, se não cremos nela de modo algum e se dela não temos a menor suspeita? Pois pressupomos uma crença ou uma persuasão tão firme que não possa ser suprimida; a qual, por conseguinte, é em tudo o mesmo que uma perfeita certeza. Mas é realmente dubitável que tenhamos qualquer certeza dessa natureza, ou qualquer persuasão firme e imutável. E, por certo, é patente que não se possa tê-la das coisas obscuras e confusas, por pouca obscuridade ou confusão que nelas observemos; pois tal obscuridade, qualquer que seja, é causa assaz suficiente para nos fazer duvidar dessas coisas. Tampouco podemos tê-la das coisas percebidas apenas pelos sentidos, não importa a clareza que ocorra em sua percepção, porque muitas vezes já notamos que no sentido pode haver erro, como quando um hidrópico sente sede, ou a neve parece amarela a quem sofre de icterícia; pois este último não a vê menos clara e distintamente desta forma do que nós a quem ela parece branca. Resta, portanto, que, se podemos tê-la, é somente das coisas que o espírito concebe clara e distintamente. Ora, entre tais coisas, algumas há tão claras e ao mesmo tempo tão simples que nos é impossível pensar nelas sem que as julguemos verdadeiras: por exemplo, que existo quando penso, que as coisas que foram alguma vez feitas não podem não ter sido feitas e outras semelhantes, das quais é manifesto que possuímos perfeita certeza. Pois não podemos duvidar dessas coisas sem pensar nelas; mas não podemos jamais pensá-las sem acreditar que sejam verdadeiras, como acabo de dizer; logo, não podemos duvidar delas sem as crermos verdadeiras, isto é, nunca podemos duvidar delas. E de nada serve alegar que verificamos muitas vezes que pessoas se enganavam em coisas que pensavam ver mais claramente que o sol. Pois nunca vimos, nós nem ninguém, que isso tenha acontecido aos que tiraram tão só do entendimento toda a clareza de suas percepções, mas antes aos que a tomaram dos sentidos ou de algum falso preconceito. De nada vale, igualmente, que alguém suponha que tais coisas parecem falsas a Deus ou aos anjos, porque a evidência de nossa percepção não permitirá que ouçamos a quem o tenha suposto e nos queira persuadir. Há outras coisas que nosso entendimento também concebe muito claramente, quando observamos de perto as razões de que depende seu conhecimento; e, por isso, não podemos, então, duvidar dele. Mas, dado que podemos esquecer as razões, e no entanto recordar as conclusões daí extraídas, pergunta-se se é possível ter uma firme e imutável persuasão sobre essas conclusões, ao passo que nos lembramos de que foram deduzidas de princípios mui evidentes; pois esta lembrança deve pressupor-se para que possam chamar-se conclusões. E eu respondo que só podem tê-la os que conhecem de tal modo Deus a ponto de saberem que não pode acontecer que a faculdade de entender, que lhes foi dada por ele, tenha por objeto outra coisa se não a verdade; mas que os outros não a têm. E isso foi tão claramente explicado ao fim da Meditação Quinta que não penso dever aqui acrescentar-lhe algo. Em quinto lugar, surpreendo-me de que negueis que a vontade corre o perigo de falhar, quando persegue e envolve os conhecimentos obscuros e confusos do entendimento. Pois, o que é que pode torná-la certa, se o que ela segue não é claramente conhecido? E qual foi o filósofo, ou o teólogo, ou o simples homem no uso da razão, que não haja alguma vez confessado que o perigo de falhar a que nos expomos é tanto menor quanto mais clara a coisa que concebemos antes de lhe dar nosso consenso? E que pecam os que, sem conhecimento de causa, pronunciam algum julgamento? Ora, nenhuma concepção é dita obscura ou confusa, exceto porque nela está contido algo que não é conhecido. Portanto, aquilo que objetais no tocante à fé que se deve abraçar, não tem maior força contra mim do que contra todos os que alguma vez cultivaram a razão humana; e, a bem dizer, não tem força alguma contra ninguém. Pois, embora se diga que a fé tem por objeto coisas obscuras, não obstante aquilo pelo qual cremos nela não é obscuro; é mais claro do que qualquer luz natural. Tanto mais quanto cumpre distinguir entre a matéria, ou a coisa à qual concedemos nossa crença, e a razão formal que move nossa vontade a concedê-la. Pois só nessa razão formal é que queremos que haja clareza e evidência. Quanto à matéria, ninguém jamais negou que pode ser obscura, e até mesmo a própria obscuridade; pois, quando julgo que a obscuridade deve ser subtraída de nossos pensamentos para poder dar-lhes nosso consentimento sem nenhum perigo de falhar, é a obscuridade mesma que me serve de matéria para formar um juízo claro e distinto. Além disso, cabe notar que a clareza ou a evidência pela qual nossa vontade pode ser incitada a crer é de duas espécies: uma que parte da luz natural, e outra que provém da graça divina. Ora, conquanto se afirme comumente que a fé pertence às coisas obscuras, todavia isso se refere apenas à sua matéria e não à razão formal pela qual cremos; pois, ao contrário, esta razão formal consiste em certa luz interior, pela qual, tendo Deus nos aclarado sobrenaturalmente, possuímos confiança certa de que as coisas propostas à nossa crença foram por ele reveladas, e de que é inteiramente impossível que ele seja mentiroso e nos engane: e isso é mais seguro do que qualquer outra luz natural, e amiúde até mais evidente, por cauda da luz da graça. E por certo os turcos e os outros infiéis, quando não abraçam a religião cristã, não pecam por não quererem dar fé às coisas obscuras, como sendo obscuras; mas pecam, ou porque resistem à graça divina que os adverte interiormente, ou porque, pecando em outras coisas, tornam-se indignos dessa graça. E direi atrevidamente que um infiel que, destituído de toda graça sobrenatural e totalmente ignorante de que as coisas que nós outros cristãos acreditamos foram reveladas por Deus, e, não obstante, atraído por alguns falsos raciocínios, se entregasse à crença dessas mesmas coisas que lhe fossem obscuras, não seria por isso fiel, mas antes pecaria porque não se serviria como se deve de sua razão. E penso que jamais qualquer teólogo ortodoxo alimentou outros sentimentos a esse respeito; e também aqueles que lerem minhas Meditações não terão motivo de crer que eu não haja conhecido esta luz sobrenatural, porquanto, na Quarta, em que busquei cuidadosamente a causa do erro ou falsidade, declarei, em palavras expressas, que ela dispõe o interior de nosso pensamento a querer, e que, no entanto, não diminui de modo algum a liberdade. De resto, peço-vos aqui que lembreis de que, no tocante às coisas que a vontade pode abranger, sempre estabeleci grande distinção entre a prática da vida e a contemplação da verdade. Pois, no que concerne à prática da vida, tanto faz que eu pense ser preciso seguir apenas as coisas que conhecemos mui claramente, como, ao contrário, que eu sustente que nem sempre se deve contar com o mais verossímil, sendo preciso algumas vezes, entre muitas coisas completamente desconhecidas e incertas, escolher uma e se lhe apegar, e em seguida crer nela não menos firmemente, enquanto não virmos razões em contrário, do que se a tivéssemos escolhido por razões certas e mui evidentes, como já expliquei no Discurso do Método. Mas, onde se trata tão somente da contemplação da verdade, quem jamais negou que é preciso suspender o julgamento em relação às coisas obscuras e que não sejam assaz distintamente conhecidas? Ora, que em minhas Meditações só se verifica essa contemplação da verdade, além de se reconhecer este fato bastante claramente por elas próprias, eu o declarei em palavras expressas no fim da Primeira, ao dizer que nunca seria demais duvidar, nem haveria demasiada desconfiança naquele ponto, tanto mais que não me aplicava então às coisas concernentes à prática da vida, mas apenas à busca da verdade. Em sexto lugar, onde censurais a conclusão de um silogismo por mim formulado, parece-me que vós próprios pecais na forma; pois, para concluir o que pretendeis, a premissa maior devia ser assim: Aquilo que concebemos clara e distintamente pertencer à natureza de alguma coisa pode ser dito ou afirmado com verdade pertencer à natureza dessa coisa. E assim não conteria senão uma inútil e supérflua repetição. Mas a premissa maior do meu argumento foi a seguinte: Aquilo que concebemos clara e distintamente pertencer à natureza de alguma coisa pode ser dito ou afirmado com verdade dessa coisa. Isto é, se ser animal pertence à essência ou à natureza do homem, pode-se assegurar que o homem é animal; se ter os três ângulos iguais a dois retos pertence à natureza do triângulo retilíneo, pode-se assegurar que o triângulo retilíneo tem seus três ângulos iguais a dois retos; se existir pertence à natureza de Deus, pode-se assegurar que Deus existe, etc. E a premissa menor foi a seguinte: Ora, é certo que pertence à natureza de Deus existir. Daí é evidente que se deva concluir como eu o fiz, a saber: Logo, pode-se com verdade assegurar, quanto a Deus, que ele existe; e não como desejais: Logo, podemos assegurar com verdade que pertence à natureza de Deus o existir. Portanto, para usar da exceção que apresentais em seguida, deveríeis negar a premissa maior e dizer que aquilo que concebemos clara e distintamente pertencer à natureza de alguma coisa não pode por isso ser dito ou afirmado dessa coisa, a não ser que sua natureza seja possível, ou não repugne de modo algum. Mas notai, peço-vos, a fraqueza dessa exceção. Pois, ou pelo termo possível entendeis, como se faz ordinariamente, tudo o que não repugna ao pensamento humano, acepção em que é manifesto que a natureza de Deus, da forma como a descrevi, é possível, porque nada supus nela, exceto o que concebemos clara e distintamente dever pertencer-lhe, e assim não supus nada que repugne ao pensamento ou ao conceito humano; ou então, supondes alguma outra possibilidade de parte do próprio objeto, a qual, se não concorda com a precedente, nunca pode ser conhecida pelo entendimento humano; e, portanto, não possui maior força para nos obrigar a negar a natureza de Deus ou sua existência do que para derrubar todas as outras coisas que caem sob o conhecimento dos homens. Pois, pela mesma razão que se nega que a natureza de Deus é possível, ainda que não se encontre qualquer impossibilidade da parte do conceito ou do pensamento, mas que, ao contrário, todas as coisas contidas neste conceito da natureza divina sejam de tal modo conexas entre si que nos pareça haver contradição em afirmar a existência de alguma que não pertença à natureza de Deus, poder-se-á negar também que seja possível que os três ângulos de um triangulo sejam iguais a dois retos, ou que aquele que pensa atualmente existe; e com maior razão ainda se poderá denegar que haja algo de verdadeiro em todas as coisas que percebemos pelos sentidos; e assim todo o conhecimento humano será derrubado, mas não o será com qualquer razão ou fundamento. E pelo que toca a esse argumento que comparais com o meu, a saber: Se não implica que Deus seja, é certo que ele existe; mas não implica de modo algum; logo, etc., materialmente é verdadeiro, mas formalmente constitui um sofisma. Pois, na premissa maior, o termo implica concerne ao conceito da causa pela qual Deus pode ser, e, na menor, concerne apenas ao conceito da existência e da natureza de Deus, como se manifesta do fato de que, se negarmos a maior, dever-se-á prová-la assim: Se Deus não existe ainda, implica que existe, porque não se poderia consignar causa suficiente para produzi-lo; mas não implica que existe, como foi acordado na menor; logo, etc. E se negarmos a menor, dever-se-á prová-la assim: Não implica, de modo algum, esta coisa em cujo conceito formal nada há que encerre contradição; mas, no conceito formal da existência ou da natureza divina, nada há que encerre contradição; logo, etc. E assim a palavra implica é tomada em dois sentidos diversos. Pois pode acontecer que não se conceba na própria coisa nada que impeça que ela possa existir, e no entanto se conceba algo da parte de sua causa que impeça que seja produzida. Ora, ainda que concebamos Deus só mui imperfeitamente, isso não impede a certeza de que sua natureza é possível, ou que ela não implica de modo algum; nem, igualmente, que não possamos assegurar com verdade que a examinamos assaz cuidadosamente e a conhecemos assaz claramente (a saber, tanto quanto basta para conhecer que ela é possível, e também que lhe pertence a existência necessária). Pois toda a impossibilidade, ou, se me é permitido servir-me aqui do termo da Escola, toda a implicação consiste somente em nosso conceito ou pensamento, que não pode conjuntar as ideias que se contrariam umas às outras; e não pode consistir em qualquer coisa que esteja fora do entendimento, porque, pelo próprio fato de uma coisa estar fora do entendimento, se torna manifesto que ela não implica de modo algum, mas que é possível. Ora, a impossibilidade com que nos deparamos em nossos pensamentos provém apenas de serem eles confusos e obscuros, e não pode haver nenhuma impossibilidade nos que são claros e distintos; por conseguinte, a fim de podermos estar seguros de que conhecemos bastante a natureza de Deus para sabermos que não há qualquer repugnância em que ela exista, é suficiente que entendamos clara e distintamente todas as coisas que percebemos haver nela, embora tais coisas sejam apenas em pequeno número em relação às que não percebemos, posto que estas também estejam nela; e que com isso notemos que a existência necessária é uma das coisas que percebemos, assim, existir em Deus. Em sétimo lugar, já dei a razão, no resumo de minhas Meditações, pela qual nada disse aqui sobre a imortalidade da alma; já mostrei também mais acima como provara suficientemente a distinção que há entre o espírito e toda espécie de corpo. Quanto ao que acrescentais, que da distinção da alma com o corpo não se segue que ela seja imortal, porque, apesar disso, se pode dizer que Deus afez de tal natureza que sua duração finda com a da vida do corpo, confesso que nada tenho a responder; pois não alimento tanta presunção a ponto de tentar determinar, pela força do raciocínio humano, algo que depende apenas da pura vontade de Deus. O conhecimento natural nos ensina que o espírito é diferente do corpo, e que é uma substância; e também que o corpo humano, na medida em que difere dos outros corpos, compõe-se somente de certa configuração de membros, e outros acidentes semelhantes; e, enfim, que a morte do corpo depende somente de alguma divisão ou mudança de figura. Ora, não temos nenhum argumento, ou qualquer exemplo, que nos persuada de que a morte ou o aniquilamento de uma substância tal como é o espírito deva decorrer de uma causa tão ligeira como o é uma mudança de figura, que não é senão um modo, e ainda um modo, não do espírito, mas do corpo, que é realmente distinto do espírito. E não dispomos mesmo de qualquer argumento nem exemplo que nos possa convencer de que há substâncias sujeitas ao aniquilamento. O que basta para concluir que o espírito, ou a alma do homem, na medida em que isso pode ser conhecido pela Filosofia natural, é imortal. Mas caso se pergunte se Deus, por seu absoluto poder, não determinou talvez que as almas humanas cessem de existir, ao mesmo tempo que são destruídos os corpos a que estão unidas, só a Deus compete respondê-lo. E como agora ele nos revelou que isso nunca ocorrerá, não deve subsistir a respeito nenhuma dúvida. De resto, devo agradecer-vos muito por vos terdes dignado tão obsequiosamente, e com tanta franqueza, advertir-me não só das coisas que vos pareceram dignas de explicação mas também das dificuldades que me podiam ser opostas pelos ateus, ou por alguns aborrecedores e maldizentes. Pois, ainda que não veja nada, entre as coisas que me propusestes, que não houvesse de antemão rejeitado ou explicado em minhas Meditações — como, por exemplo, o que alegais quanto às moscas produzidas pelo sol, quanto aos canadenses, aos ninivitas, aos turcos e outras coisas parecidas, não pode vir ao espírito de quem, seguindo a ordem dessas Meditações, colocar à parte por algum tempo tudo o que haja recebido dos sentidos para cuidar do que lhe dita a mais pura e sã razão; daí por que pensava já ter rejeitado todas essas coisas —, ainda, digo, que assim seja, julgo, no entanto, que tais objeções serão muito úteis a meu desígnio, posto que não espero contar com muitos leitores dispostos a dedicar tanta atenção às coisas que escrevi, a ponto de, chegando ao fim, se recordarem de tudo quanto leram anteriormente; e os que o não fizerem cairão facilmente em dificuldades, às quais, como verão em seguida, eu teria satisfeito por essa resposta, ou ao menos aproveitarão o ensejo de examinar mais cuidadosamente a verdade. No que concerne ao conselho que me dais, de dispor minhas razões segundo o método dos geômetras, a fim de que de uma só vez os leitores possam compreendê-las, dir-vos-ei aqui de que forma já tentei precedentemente segui-lo, e como procurarei fazê-lo ainda posteriormente. No modo de escrever dos geômetras, distingo duas coisas, a saber, a ordem e a maneira de demonstrar. A ordem consiste apenas em que as coisas propostas primeiro devem ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem. E certamente empenhei-me, tanto quanto pude, em seguir esta ordem em minhas Meditações. E foi o que me levou a não tratar na Segunda da distinção entre o espírito e o corpo, mas apenas na Sexta, e a omitir muitas coisas em todo esse tratado, porque pressupunham a explicação de muitas outras. A maneira de demonstrar é dupla: uma se faz pela análise ou resolução, e a outra pela síntese ou composição. A análise mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta e revela como os efeitos dependem das causas; de sorte que, se o leitor quiser segui-la e lançar cuidadosamente os olhos sobre tudo o que contém, não entenderá menos perfeitamente a coisa assim demonstrada e não a tornará menos sua do que se ele próprio a houvesse descoberto. Mas tal espécie de demonstração não é capaz de convencer os leitores teimosos ou pouco atentos: pois se se deixa escapar, sem reparar, a menor das coisas que ela propõe, a necessidade de suas conclusões não surgirá de modo algum; e não se costuma expressar nela mui amplamente as coisas que são bastante claras por si mesmas, embora sejam comumente as que cumpre tomar mais em conta. A síntese, ao contrário, por um caminho todo diverso, e como que examinando as causas por seus efeitos (embora a prova que contém seja amiúde também dos efeitos pelas causas), demonstra, na verdade, claramente o que está contido em suas conclusões, e serve-se de uma longa série de definições, postulados, axiomas, teoremas e problemas, para que, caso lhe neguem algumas consequências, mostre como elas se contêm nos antecedentes, de modo a arrancar o consentimento do leitor, por mais obstinado e opiniático que seja; mas não dá como a outra, inteira satisfação aos espíritos dos que desejam aprender, porque não ensina o método pelo qual a coisa foi descoberta. Os antigos geômetras costumavam utilizar-se apenas dessa síntese em seus escritos, não porque ignorassem inteiramente a analise, mas, em meu parecer, porque lhe atribuíam tal posição que a reservavam para eles próprios, como um segredo de importância. Quanto a mim, segui somente a via analítica em minhas Meditações, porque me parece ser a mais verdadeira e a mais própria ao ensino; mas, quanto à síntese, que é sem dúvida a que desejais aqui de mim, ainda que no tocante às coisas tratadas na Geometria ela possa ser utilmente colocada após a análise, não convém, todavia, tão bem às matérias que pertencem à Metafísica. Pois há essa diferença, que as primeiras noções supostas para demonstrar as proposições geométricas, estando de acordo com os sentidos, são facilmente aceitas por cada qual; eis por que não apresenta qualquer dificuldade, exceto a de tirar bem as consequências, o que pode ser feito por pessoas de toda espécie, mesmo pelas menos atentas, desde que se recordem apenas das coisas precedentes; e é fácil obrigá-las a se recordarem, distinguindo tantas proposições diversas quantas coisas haja a observar na dificuldade proposta, a fim de que se detenham separadamente em cada uma, e que se lhes possam citar em seguida, para adverti-las daquelas em que devem pensar. Mas, ao contrário, no atinente às questões que pertencem à Metafísica, a principal dificuldade é conceber clara e distintamente as noções primeiras. Pois, ainda que por sua natureza não sejam menos claras, sendo mesmo muitas vezes mais claras do que as consideradas pelos geômetras, não obstante, posto que parecem não acordar com muitos prejuízos que recebemos através dos sentidos, e aos quais nos habituamos desde a infância, são perfeitamente compreendidas apenas pelos que são muito atentos e se empenham em apartar, tanto quanto podem, o espírito do comércio dos sentidos; eis por que, se as propuséssemos totalmente sós, seriam facilmente negadas por aqueles cujo espírito é propenso à contradição. Esta foi a causa pela qual preferi escrever meditações e não disputas ou questões, como fazem os filósofos, ou teoremas ou problemas, como os geômetras, a fim de testemunhar com isso que as escrevi tão somente para os que quiserem dar-se ao trabalho de meditar seriamente comigo e considerar as coisas com atenção. Pois, pelo fato mesmo de que alguém se prepare a fim de impugnar a verdade, ele se torna menos capaz de compreendê-la, porquanto desvia o espírito da consideração das razões que o persuadem dela para aplicá-lo à busca das que a destroem. Mas, não obstante, para testemunhar o quanto condescendo com vosso conselho, procurarei aqui imitar a síntese dos geômetras e efetuarei um resumo das principais razões que usei para demonstrar a existência de Deus e a distinção que há entre o espírito e o corpo humano: o que não servirá pouco, talvez, para aliviar a atenção dos leitores. RAZÕES QUE PROVAM A EXISTÊNCIA DE DEUS E A DISTINÇÃO QUE HÁ ENTRE O ESPÍRITO E O CORPO HUMANO DISPOSTAS DE UMA FORMA GEOMÉTRICA. Definições I. Pelo nome de pensamento, compreendo tudo quanto está de tal modo em nós que somos imediatamente seus conhecedores. Assim, todas as operações da vontade, do entendimento, da imaginação e dos sentidos são pensamentos. Mas acrescentei imediatamente, para excluir as coisas que seguem e dependem de nossos pensamentos: por exemplo, o movimento voluntário tem, verdadeiramente, à vontade como princípio, mas ele próprio, no entanto, não é um pensamento. II. Pelo nome de ideia, entendo esta forma de cada um de nossos pensamentos por cuja percepção imediata temos conhecimento desses mesmos pensamentos. De tal modo que nada posso exprimir por palavras, ao compreender o que digo, sem que daí mesmo seja certo que possuo em mim a ideia da coisa que é significada por minhas palavras. E assim não dou o nome de ideia às simples imagens que são pintadas na fantasia; ao contrário, não lhes dou aqui esse nome, na medida em que se encontram na fantasia corporal, isto é, na medida em que são pintadas em algumas partes do cérebro, mas somente na medida em que dão forma ao próprio espírito, que se aplica a esta parte do cérebro. III. Pela realidade objetiva de uma ideia, entendo a entidade ou o ser da coisa representada pela ideia, na medida em que tal entidade está na ideia; e, da mesma maneira, pode-se dizer uma perfeição objetiva, ou um artifício objetivo, etc. Pois, tudo quanto concebemos como estando nos objetos das ideias, tudo isso está objetivamente, ou por representações, nas próprias ideias. IV. As mesmas coisas são ditas estarem formalmente nos objetos das ideias, quando estão neles tais como as concebemos; e são ditas estarem neles eminentemente, quando, na verdade, não estão aí, como tais, mas são tão grandes, que podem suprir essa carência com a excelência delas. V. Toda coisa em que reside imediatamente como em seu sujeito, ou pela qual existe, algo que concebemos, isto é, qualquer propriedade, qualidade, ou atributo, de que temos em nós real ideia, chama-se substância. Pois não possuímos outra ideia da substância precisamente tomada, salvo que é uma coisa na qual existe formal, ou eminentemente, aquilo que concebemos, ou aquilo que está objetivamente em alguma de nossas ideias, posto que a luz natural nos ensina que o nada não pode ter nenhum atributo real. VI. A substância, em que reside imediatamente o pensamento, é aqui chamada espírito. Todavia, tal nome é equívoco, pelo fato de o atribuírem também às vezes ao vento e aos licores muito sutis; mas não sei de outro mais próprio. VII. A substância, que é o sujeito imediato da extensão e dos acidentes que pressupõem a extensão, assim como da figura, da situação, do movimento local, etc., chama-se corpo. Mas saber se a substância chamada espírito é a mesma que chamamos corpo, ou se se trata de duas substâncias diversas e separadas, eis o que será examinado em seguida. VIII. A substância que entendemos ser soberanamente perfeita, e na qual não concebemos nada que encerre qualquer falha, ou limitação de perfeição, chama-se Deus. IX. Quando dizemos que algum atributo está contido na natureza ou no conceito de uma coisa, é o mesmo que se disséssemos que tal atributo é verdadeiramente dessa coisa e que se pode assegurar que se encontra nela. X. Duas substâncias são ditas realmente distintas quando cada uma pode existir sem a outra. Postulados. Postulo, primeiramente, que os leitores considerem quão fracas são as razões que até agora os levaram a dar fé a seus sentidos, e quão incertos são todos os juízos que depois apoiaram neles; e que revejam tão longamente e tão amiúde esta consideração em seus espíritos, até que por fim adquiram o hábito de não mais fiar-se tão fortemente nos sentidos; pois julgo isso necessário para tornar-se capaz de conhecer a verdade das coisas metafísicas, as quais não dependem em nada dos sentidos. Em segundo lugar, postulo que considerem o próprio espírito, e todos aqueles de seus atributos de que reconhecerem não poder de alguma forma duvidar, ainda que supusessem inteiramente falso tudo quanto jamais receberam pelos sentidos; e que não cessem de considerá-lo, sem que primeiramente tenham adquirido a prática de concebê-lo distintamente, e de crer que é mais fácil conhecê-lo do que todas as coisas corporais. Em terceiro lugar, que examinem diligentemente as proposições que não precisam de prova para serem conhecidas, e cujas noções cada qual encontra em si mesmo, como as de que uma mesma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo; que o nada não pode ser a causa eficiente de algo, e outras semelhantes; e que assim exercitem essa clareza do entendimento que lhes foi dada pela natureza, mas que as percepções dos sentidos acostumaram a perturbar e obscurecer, que a exercitem, digo eu, totalmente pura e liberta de seus prejuízos; pois, por este meio, a verdade dos axiomas seguintes lhes será fortemente evidente. Em quarto lugar, que examinem as ideias dessas naturezas que contêm em si um conjunto de muitos atributos, como a natureza do triângulo, a do quadrado ou de qualquer outra figura; bem como a natureza do espírito, a natureza do corpo e, acima de todas, a natureza de Deus ou de um ser soberanamente perfeito. E que tomem nota de que se pode assegurar, com verdade, que existem em si próprias todas essas coisas que concebemos claramente estarem aí contidas. Por exemplo, porque na natureza do triângulo retilíneo está contido que seus três ângulos são iguais a dois retos, e porque na natureza do corpo ou de uma coisa extensa a divisibilidade acha-se compreendida (pois não concebemos a coisa extensa tão pequena que não possamos dividi-la ao menos pelo pensamento), é certo dizer que os três ângulos de todo triângulo retilíneo são iguais a dois retos, e que todo corpo é divisível. Em quinto lugar, postulo que se detenham longamente em contemplar a natureza do ser soberanamente perfeito; e, entre outras coisas, que considerem que, nas ideias de todas as outras naturezas, a existência possível encontra-se de fato contida, mas que, na ideia de Deus, não só a existência possível está contida, mas, além disso, a necessária. Pois, daí só, e sem qualquer raciocínio, conhecerão que Deus existe; e não lhes será menos claro e evidente, sem outra prova, que lhes é manifesto que dois é um número par, e três um número ímpar, e coisas semelhantes. Pois há coisas que são assim conhecidas sem provas por alguns, enquanto outros só as entendem por um longo discurso e raciocínio. Em sexto lugar, que, considerando com cuidado todos os exemplos de que falei nas minhas Meditações, de uma clara e distinta percepção, e todos cuja percepção é obscura e confusa, habituem-se a distinguir as coisas claramente conhecidas das obscuras; pois isso se aprende melhor por exemplos do que por regras, e penso que disso não se pode dar um exemplo, sem que eu já não o haja aflorado um pouco. Em sétimo lugar, postulo que os leitores, levando em conta que nunca reconheceram qualquer falsidade nas coisas que conceberam claramente e que, ao contrário, nunca encontraram, senão por acaso, qualquer verdade nas coisas que conceberam apenas com obscuridade, considerem que seria algo inteiramente desarrazoado se, por alguns prejuízos dos sentidos, ou por algumas suposições feitas à vontade, e fundadas em algo obscuro e desconhecido, pusessem em dúvida as coisas que o entendimento concebe clara e distintamente. Mediante isso, admitirão facilmente os seguintes axiomas como verdadeiros e indubitáveis, embora eu confesse que muitos deles pudessem ser melhor explicados e devessem ser propostos mais como teoremas do que como axiomas, se eu quisesse ser mais exato. Axiomas ou Noções Comuns I. Não há coisa existente da qual não se possa perguntar qual a causa pela qual ela existe. Pois isso se pode perguntar até mesmo de Deus: não que tenha necessidade de alguma causa para existir, mas porque a própria imensidade de sua natureza é a causa ou a razão pela qual não precisa de qualquer causa para existir. II. O tempo presente não depende daquele que imediatamente o precedeu; eis por que não é necessária uma menor causa para conservar uma coisa, do que para produzi-la pela primeira vez. III. Nenhuma coisa, ou perfeição alguma dessa coisa atualmente existente, não pode ter o Nada, ou uma coisa não existente, como a causa de sua existência. IV. Toda a realidade ou perfeição que existe numa coisa encontra-se formal, ou eminentemente, na sua causa primeira e total. V. Daí se segue também que a realidade objetiva de nossas ideias requer uma causa, em que esta mesma realidade seja contida, não só objetiva, mas também formal, ou eminentemente. E cumpre notar que este axioma deve ser tão necessariamente admitido, que só dele depende o conhecimento de todas as coisas, tanto sensíveis como insensíveis. Pois, como sabemos, por exemplo, que o céu existe? Será por que o vemos? Mas essa visão não afeta de modo algum o espírito, a não ser na medida em que é uma ideia: uma ideia, digo, inerente ao próprio espírito, e não uma imagem pintada na fantasia; e, por ocasião dessa ideia, não podemos julgar que o céu existe, a não ser que suponhamos que toda ideia deve ter uma causa de sua realidade objetiva que seja realmente existente; causa que julgamos ser o céu mesmo; e assim por diante. VI. Há diversos graus de realidade ou de entidade: pois a substância tem mais realidade do que o acidente ou o modo, e a substância infinita mais do que a finita. Eis por que também há mais realidade objetiva na ideia de substância do que na de acidente, e mais na ideia de substância infinita do que na de substância finitas. VII. A vontade se dirige voluntária e livremente (pois isto é de sua essência), mas no entanto de modo infalível, ao bem que lhe é claramente conhecido. Daí por que, se ela chega a conhecer quaisquer perfeições que não possua, entregar-se-lhes-á imediatamente, caso estejam ao seu alcance; pois reconhecerá que lhe é um maior bem possuí-las do que não as possuir. VIII. O que pode fazer o mais, ou o mais difícil, também pode fazer o menos, ou o mais fácil. IX. É algo maior e mais difícil criar ou conservar uma substância do que criar ou conservar seus atributos ou propriedades; mas não é algo maior ou mais difícil criar uma coisa do que conservá-la, como já foi dito. X. Na ideia ou no conceito de cada coisa, a existência está contida, porque nada podemos conceber sem que seja sob a forma de uma coisa existente; mas com a diferença de que no conceito de uma coisa limitada, a existência possível ou contingente acha-se apenas contida, e no conceito de um ser soberanamente perfeito está compreendida a perfeita e necessária existência. PROPOSIÇÃO PRIMEIRA A EXISTÊNCIA DE DEUS É CONHECIDA PELA SIMPLES CONSIDERAÇÃO DE SUA NATUREZA. Demonstração Dizer que qualquer atributo está contido na natureza ou no conceito de uma coisa é o mesmo que dizer que tal atributo é verdadeiramente dessa coisa, e que se pode assegurar que ele está nela (pela nona definição). Ora, é certo que a existência necessária está contida na natureza ou no conceito de Deus (pelo décimo axioma). Logo, é verdadeiro dizer que a existência necessária está em Deus, ou, então, que Deus existe. E esse silogismo é o mesmo de que me servi em resposta ao artigo sexto dessas objeções; e sua conclusão pode ser conhecida sem prova pelos que se acham isentos de todos os prejuízos, como foi afirmado no quinto postulado. Mas, como não é fácil chegar a tão grande clareza de espírito, procuraremos provar a mesma coisa por outras vias. PROPOSIÇÃO SEGUNDA A EXISTÊNCIA DE DEUS É DEMONSTRADA POR SEUS EFEITOS, PELO SIMPLES FATO DE SUA IDEIA ESTAR EM NÓS. Demonstração A realidade objetiva de cada uma de nossas ideias requer uma causa na qual esta mesma realidade esteja contida, não objetiva, mas formal ou eminentemente (pelo quinto axioma). Ora, é certo que temos em nós a ideia de Deus (pela segunda e oitava definições), e que a realidade objetiva dessa ideia não está contida em nós, nem formal, nem eminentemente (pelo sexto axioma), e que ela não pode estar contida em ninguém mais exceto em Deus mesmo (pela oitava definição). Logo, a ideia de Deus, que há em nós, exige Deus como causa: por conseguinte, Deus existe (pelo terceiro axioma). PROPOSIÇÃO TERCEIRA A EXISTÊNCIA DE DEUS É AINDA DEMONSTRADA PELO FATO DE NÓS PRÓPRIOS, QUE TEMOS EM NÓS A IDEIA DE DEUS, EXISTIRMOS. Demonstração Se eu tivesse o poder de me conservar por mim mesmo, teria, com maior razão ainda, o poder de me atribuir todas as perfeições que me faltam (pelos axiomas 8 e 9); pois tais perfeições não são mais do que atributos da substância, e eu sou uma substância. Mas não tenho o poder de me conceder todas essas perfeições, pois de outra maneira já as possuiria (pelo axioma 7). Logo, não disponho do poder de me conservar por mim mesmo. Além disso, não posso existir sem ser conservado enquanto existo, quer por mim mesmo, supondo-se que eu tenha o poder disso, quer por outrem que tenha este poder (pelos axiomas 1e 2). Ora, é certo que existo, e todavia não disponho do poder de me conservar por mim próprio, como acabo de provar. Logo, sou conservado por outrem. Além disso, aquele por quem sou conservado tem em si formal, ou eminentemente, tudo o que há em mim (pelo axioma 4). Ora, é certo que possuo em mim a ideia ou a noção de muitas perfeições que me faltam e, ao mesmo tempo, a ideia de um Deus (pelas definições 2 e 8). Logo, a noção dessas mesmas perfeições encontra-se também naquele por quem sou conservado. Enfim, aquele mesmo por quem sou conservado não pode ter a noção de quaisquer perfeições que lhe faltem, isto é, que ele não tenha em si formal ou eminentemente (pelo axioma 7); pois, dispondo do poder de me conservar, como foi dito agora, disporia com maior razão do poder de se dar ele próprio tais perfeições, se não as tivesse (pelos axiomas 8 e 9). Ora, é certo que tem a noção de todas as perfeições que reconheço me faltarem, e que concebo existirem apenas em Deus, como acabo de provar. Logo, ele já as tem em si todas formalmente, ou eminentemente; e assim ele é Deus. RESULTADO: DEUS CRIOU O CÉU E A TERRA, E TUDO O QUE NELES ESTÁ CONTIDO. E, ALÉM DISSO, PODE FAZER TODAS AS COISAS QUE CONCEBEMOS CLARAMENTE, DA MANEIRA COMO NÓS AS CONCEBEMOS. Demonstração Todas essas coisas seguem-se claramente da proposição precedente. Pois provamos aí a existência de Deus, por ser necessário que haja um ser existente, no qual todas as perfeições, de que há em nós alguma ideia, estejam contidas formal ou eminentemente. Ora, é certo que temos em nós a ideia de um poder tão grande, que, só por aquele em quem ela se encontra, não só o céu e a terra, etc., devem ter sido criados, mas também todas as outras coisas que conhecemos como possíveis. Logo, provando a existência de Deus, provamos também a seu respeito todas essas coisas. PROPOSIÇÃO QUARTA O ESPÍRITO E O CORPO SÃO REALMENTE DISTINTOS. Demonstração Tudo o que concebemos claramente pode ser feito por Deus da maneira como nós o concebemos (pelo corolário precedente). Mas concebemos claramente o espírito, isto é, uma substância que pensa, sem o corpo, isto é, sem uma substância extensa (pelo postulado 2); e, de outra parte, concebemos também claramente o corpo sem o espírito (como cada um concorda facilmente). Logo, ao menos pela onipotência de Deus, o espírito pode existir sem o corpo, e o corpo sem o espírito. Pois bem, as substâncias que podem existir uma sem a outra são realmente distintas (pela definição 10). Ora, é certo que o espírito e o corpo são substâncias (pelas definições 5, 6 e 7) que podem existir uma sem a outra (como acabo de provar). Logo, o espírito e o corpo são realmente distintos. E é preciso observar que me servi aqui da onipotência de Deus para tirar dela a minha prova; não que seja necessário qualquer poder extraordinário para separar o espírito do corpo, mas porque, não tendo tratado senão de Deus nas proposições anteriores, não podia tirá-la de outro lugar exceto dele. E não importa de modo algum por qual poder duas coisas sejam separadas, para sabermos que são realmente distintas. RESPOSTAS DO AUTOR ÀS QUINTAS OBJEÇÕES FORMULADAS PELO SENHOR GASSENDI Do Senhor Descartes ao Senhor Gassendi Senhor, Impugnastes minhas Meditações com um discurso tão elegante e tão cuidadosamente elaborado e que me pareceu tão útil para esclarecer mais a verdade delas, que julgo muito vos dever por vos terdes dado ao trabalho de nisto se empenhar e não ficar pouco obrigado ao Reverendo Padre Mersenne por vos ter induzido a empreender tal trabalho. Pois ele reconheceu muito bem, ele que sempre foi muito ávido na busca da verdade, principalmente quando esta pode servir para aumentar a glória de Deus, que não havia maneira mais própria para julgar a verdade de minhas demonstrações do que submetê-las ao exame e à censura de algumas pessoas reconhecidas como doutas acima das outras, a fim de ver se eu poderia responder pertinentemente a todas as dificuldades que poderiam ser por elas propostas. Para este fim, provocou muitas destas, obteve-as de alguns, e eu me rejubilo por terdes também acedido a seu pedido. Pois, embora não tenhais empregado tanto nas razões de um filósofo para refutar minhas opiniões quanto os artifícios de um orador para eludi-las, isto não deixa de me ser muito agradável, e tanto mais que infiro daí ser difícil apresentar contra mim razões diferentes daquelas que estão contidas nas precedentes objeções que haveis lido. Pois certamente, se houvesse algumas, elas não vos teriam escapado; e imagino que todo o vosso desígnio nisto não foi senão advertir-me dos meios de que essas pessoas, cujo espírito é de tal maneira mergulhado nos sentidos e a eles atado, que nada podem conceber senão imaginando e que, portanto, não são capazes de especulações metafísicas, poderiam servir-se para eludir minhas razões, e, ao mesmo tempo, dar-me oportunidade de preveni-las. Por isso, não penseis que, respondendo-vos aqui, eu considere responder a um perfeito e sutil filósofo, tal como sei que sois; mas, como se fôsseis um destes homens de carne dos quais tomais de empréstimo o rosto, dirigir-vos-ei somente a resposta que eu gostaria de dar-lhes. DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS CONTRA Â PRIMEIRA MEDITAÇÃO. Dizeis que aprovais o desígnio que tive de libertar o espírito de seus antigos prejuízos que é tal que ninguém poderia encontrar algo nele passível de reformulação; mas desejáveis que o realizasse simplesmente e com poucas palavras, isto é, em suma, negligentemente e sem tantas precauções; como se fosse uma coisa tão fácil libertar-se de todos os erros dos quais estamos imbuídos desde nossa infância, e se pudesse fazer demasiado exatamente o que não se duvida de modo algum que é preciso fazer. Mas, certamente, vejo bem que quisestes indicar-me que há muitos que dizem somente da boca para fora que cumpre evitar cuidadosamente a prevenção, mas que entretanto nunca a evitam, porque não se esforçam de maneira nenhuma para se desfazer dela e se persuadem de que não se deve ter por prejuízo o que receberam uma vez como verdadeiro. Sem dúvida alguma, desempenhais aqui perfeitamente o papel deles e nada omitis do que eles me poderiam objetar, mas entretanto nada dizeis que revele, por pouco que seja, qual o seu filósofo. Pois, onde dizeis que não havia necessidade de fingir um Deus enganador, nem que eu dormia, um filósofo julgar-se-ia obrigado a acrescentar a razão pela qual isso não pode ser posto em dúvida, ou, caso não dispusesse dela como de fato não dispõe, ter-se-ia abstido de dizê-lo. E não teria também acrescentado que seria suficiente neste ponto alegar, como causa de nossa desconfiança, o pouco de luz do espírito humano ou a fraqueza de nossa natureza; pois de nada serve, para corrigir nossos erros, dizer que nos enganamos porque nosso espírito não é bastante clarividente ou nossa natureza é falível; pois é o mesmo que dizer que erramos porque somos sujeitos ao erro. E, certamente, não se pode negar que não seja mais útil levar em conta, como fiz, todas as coisas onde pode ocorrer que erremos, temendo dar-lhes muito levianamente nosso crédito. Um filósofo não teria dito também que tomando todas as coisas como falsas não me despojo tanto dos meus antigos prejuízos quanto me revisto de outro inteiramente novo; ou, antes, empenhar-se-ia primeiramente em demonstrar que tal suposição nos poderia induzir em erro; mas, pelo contrário, afirmais um pouco depois que não é possível que eu possa obter isto de mim, ou seja, duvidar da verdade e da certeza destas coisas que supus serem falsas; isto é, que possa revestir-me deste novo prejuízo pelo qual temeis que eu me deixe envolver. E um filósofo não se espantaria mais com esta suposição do que ver alguma vez uma pessoa que, para endireitar um bastão que é curvo, curva-o do outro lado; pois não ignora que muitas vezes tomamos assim coisas falsas por verdadeiras, a fim de esclarecer ainda mais a verdade, como quando os astrônomos imaginam no céu um equador, um zodíaco e outros círculos, ou quando os geômetras acrescentam novas linhas às figuras dadas e, assim também, os filósofos em muitas ocasiões; e aquele que chama isto recorrer a uma máquina, forjar ilusões, procurar desvios e novidades e que diz que isto é indigno da candura de um filósofo e do zelo da verdade, bem mostra que ele próprio não quer servir-se desta candura filosófica, nem pôr em uso as razões, mas atribuir somente às coisas os disfarces e as cores da retórica. DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS CONTRA A MEDITAÇÃO SEGUNDA. I. Continuais aqui a divertir-nos com fingimentos e disfarces de retórica em lugar de nos contrapor boas e sólidas razões; pois fingis que brinco quando falo gravemente, e tomais por uma coisa dita seriamente e com alguma segurança de verdade o que propus apenas em forma de interrogação e segundo a opinião do vulgo, para fazer, a propósito disso, em seguida, uma investigação mais exata. Pois, quando disse que era preciso tomar como incertos ou mesmo como falsos todos os testemunhos que recebemos dos sentidos, disse-o seriamente; e isto é tão necessário para entender minhas Meditações, que aquele que não pode, ou não quer admitir isto, não é capaz de objetar coisa alguma que possa merecer resposta. Mas, entretanto, é preciso advertir a diferença que existe entre as ações da vida e a pesquisa da verdade, a qual inculquei tantas vezes; pois, quando se trata da conduta da vida, seria algo inteiramente ridículo não se referir aos sentidos; razão pela qual sempre foram ridicularizados aqueles céticos que negligenciavam a tal ponto todas as coisas do mundo que, para impedir que eles próprios se lançassem em precipícios, deviam ser guardados pelos seus amigos; e é por isso que disse em algum lugar: que uma pessoa de bom senso não podia duvidar seriamente dessas coisas; mas, quando se trata da pesquisa da verdade e de saber que coisas podem ser certamente conhecidas pelo espírito humano, é sem dúvida inteiramente contrário à razão não querer rejeitar seriamente estas coisas como incertas, ou mesmo também como falsas, a fim de observar que aquelas que não podem ser assim rejeitadas são, por isso mesmo, mais seguras e, quanto a nós, mais conhecidas e mais evidentes. Quanto ao fato de eu ter dito que não conhecia ainda suficientemente o que é uma coisa pensante, não é verdade, como afirmais, que o tenha dito deveras, pois eu o expliquei no devido lugar; nem mesmo que eu tenha dito que não duvidava de maneira alguma daquilo em que consistia a natureza do corpo e que não lhe atribuía a faculdade de se mover a si mesmo; nem também que eu imaginava a alma como um vento ou um fogo e outras coisas semelhantes que somente referi nessa passagem, segundo a opinião do vulgo, para mostrar em seguida que elas eram falsas. Mas com que fidelidade afirmais que eu atribuo à alma as faculdades de andar, de sentir, de ser alimentada, etc., para que acrescenteis imediatamente após estas palavras: Eu vos concedo tudo isto, desde que nos abstenhamos de vossa distinção entre o espírito e o corpo? Pois, nesse mesmo momento, disse expressamente que a nutrição deveria ser referida apenas ao corpo; e, no que se refere ao sentimento e ao andar, refiro-os também, na maior parte, ao corpo e nada atribuo à alma do que lhes diz respeito, exceto, apenas, que é um pensamento. Ademais, que razão tendes de dizer que não havia necessidade de tão grande aparelhamento para provar minha existencial Certamente penso ter muita razão em inferir de vossas próprias palavras que o aparelhamento do qual me servi não foi ainda suficientemente grande, posto que não pude fazer ainda com que compreendêsseis bem a questão; pois, quando dizeis que poderia concluir a mesma coisa de cada uma de minhas ações indiferentemente, vós vos enganais bastante, já que não há nenhuma entre elas de que eu esteja inteiramente certo — refiro-me àquela certeza metafísica, única certeza de que aqui se trata — exceto o pensamento. Pois, por exemplo, não seria boa a seguinte consequência: eu passeio, logo existo, senão na medida em que o conhecimento interior que tenho disto é um pensamento, do qual somente esta conclusão é certa, não do movimento do corpo, o qual às vezes pode ser falso, como nos nossos sonhos, embora nos pareça então que passeamos; de maneira que, do fato de que eu penso passear, posso muito bem inferir a existência de meu espírito, que tem este pensamento, mas não a do meu corpo que passeia. O mesmo acontece com todos os outros. II. Começais, em seguida, por uma figura de retórica bastante agradável que se chama prosopopeia, a me interrogar, não mais como um homem inteiro, mas como uma alma separada do corpo; no que parece que tenhais querido advertir-me de que essas objeções não partem do espírito do sutil filósofo, mas de um homem preso aos sentidos e à carne. Dizei-me, portanto, suplico-vos, ó carne, ou quem quer que sejais, e qualquer que seja o nome pelo qual desejais ser chamado, tendes tão pouco comércio com o espírito que não pudestes notar a passagem em que corrigi esta imaginação do vulgo pela qual fingimos que a coisa que pensa é semelhante ao vento ou a algum outro corpo dessa espécie? Pois corrigi-o, sem dúvida, quando mostrei que se pode supor que não há vento, nem fogo, nem qualquer outro corpo no mundo, e que, entretanto, sem mudar essa suposição, todas as coisas pelas quais conheço que sou uma coisa que pensa não deixam de permanecer em sua totalidade. E, portanto, todas as perguntas que me fazeis em seguida, por exemplo: Por que não poderia eu, pois, ser um vento? Por que não poderia preencher um espaço? Por que não poderia ser movido de várias maneiras? E outras semelhantes, são tão vãs e tão inúteis que não necessitam de resposta. III. O que em seguida acrescentais não é mais sólido, a saber: se eu sou um corpo sutil e tênue, por que não poderia ser alimentado? E o resto. Pois nego absolutamente que eu seja um corpo. E, para acabar de uma vez por todas com essas dificuldades, porque me objetais quase sempre a mesma coisa, e não combateis minhas razões, mas, dissimulando-as como se fossem de pouco valor ou apresentando-as defeituosas e imperfeitas, aproveitais a ocasião para me fazer várias objeções que as pessoas pouco versadas em Filosofia costumam opor às minhas conclusões ou a outras que se lhes assemelham ou mesmo que nada têm em comum com elas, as quais, ou são afastadas do tema, ou já foram no devido lugar refutadas e resolvidas, não é necessário que eu responda a cada uma de vossas perguntas, pois de outra maneira seria preciso repetir cem vezes as mesmas coisas que escrevi acima. Mas, satisfarei apenas em poucas palavras àquelas que me parecem poder deter pessoas um pouco entendidas. E quanto àqueles que não se prendem tanto à força das razões quanto à multidão das palavras, não faço tanto caso de sua aprovação que queira perder o tempo em discursos inúteis para conquistá-la. Primeiramente, portanto, notaria aqui que não se acredita em vós quando adiantais, tão audazmente e sem qualquer prova, que o espírito cresce e se enfraquece com o corpo; pois do fato de não agir tão perfeitamente no corpo de uma criança quanto no de um homem perfeito e de muitas vezes suas ações poderem ser impedidas pelo vinho e por outras coisas corpóreas, segue-se somente que, enquanto está unido ao corpo, dele se serve como de um instrumento para fazer estas espécies de operações com as quais se ocupa ordinariamente, mas não que o corpo o torne mais ou menos perfeito do que ele é em si; é a consequência que tirais daí não é melhor do que se, do fato de um artesão não trabalhar bem todas as vezes que se serve de um mau utensílio, inferísseis que ele tira sua perícia e a ciência de sua arte da bondade de seu instrumento. Cumpre também notar que não parece, ó carne, que saibais de alguma forma o que é usar de razão, posto que, para provar que a informação e a fé de meus sentidos não me devem ser suspeitas, dizeis que, "embora sem me servir do olho, tenha me parecido algumas vezes que sentia coisa que não se pode sentir sem ele, não experimentei, entretanto, sempre a mesma falsidade"; como se não houvesse fundamento suficiente para duvidar de alguma coisa, no fato de termos nela alguma vez reconhecido erro, e como se pudesse acontecer que, todas as vezes que nos enganamos, pudéssemos nos aperceber disso; visto que, ao contrário, o erro consiste apenas no fato de ele não se revelar como tal. Enfim, uma vez que me pedis frequentemente razões quando vós mesmos não tendes nenhuma e, entretanto, cabe a vós tê-las, sou obrigado a vos advertir de que, para bem filosofar, não há necessidade de provar que todas aquelas coisas, que não recebemos como verdadeiras, são falsas, porque sua verdade não nos é conhecida; mas é somente necessário cuidar muito seriamente de nada receber como verdadeiro que não possamos demonstrar ser tal. E assim, quando percebo que sou uma substância pensante e formo um conceito claro e distinto dessa substância, no qual nada está contido que pertença ao da substância corporal, isso me basta plenamente para assegurar que, enquanto eu me conheço, nada sou senão uma coisa que pensa; e isso é tudo o que assegurei na Meditação Segunda, da qual se trata nesse momento; e não deveria admitir que esta substância pensante fosse um corpo sutil, puro, tênue, etc., na medida em que não tive nenhuma razão que disso me persuadisse; se tendes alguma, a vós cabe no-la ensinar e não exigir de mim que prove que algo é falso quando não tive outra razão para não admiti-lo senão o fato de me ser desconhecida essa razão. Pois fazeis o mesmo que se, dizendo que estou atualmente na Holanda, dissésseis que não devo ser acreditado se não provar ao mesmo tempo em que não estou na China ou em qualquer outra parte do mundo; visto que talvez possa ocorrer que um mesmo corpo, pela onipotência de Deus, esteja em muitos lugares. E quando acrescentais que devo também provar que as almas dos animais não são corpóreas e que o corpo em nada contribui para o pensamento, fazeis ver não somente que ignorais a quem pertence a obrigação de provar uma coisa mas também que não sabeis o que cada um deve provar; pois, quanto a mim, não creio nem que as almas dos animais não sejam corpóreas nem que o corpo em nada contribua para o pensamento; mas somente digo que não é este o lugar de examinar essas coisas. IV. Buscais aqui a obscuridade por causa do equívoco que reside na palavra alma, mas eu a esclareci nitidamente tantas vezes que me envergonho de repeti-lo aqui; e é por isso que direi apenas que os nomes foram ordinariamente impostos por pessoas ignorantes, o que faz com que não convenham sempre propriamente às coisas que significam; no entanto, desde que foram aceitos, não temos liberdade de mudá-los, mas podemos apenas corrigir suas significações quando vemos que não são bem compreendidas. Assim, visto que os primeiros autores dos nomes talvez não distinguiram em nós aquele princípio pelo qual somos alimentados, crescemos e realizamos, sem o pensamento, todas as outras funções que partilhamos com os animais, daquele outro pelo qual nós pensamos, eles denominaram ambos os princípios com o mesmo nome de alma; e, vendo pouco depois que o pensamento era diferente da nutrição, deram o nome de espírito a esta coisa que em nós tem a faculdade de pensar e acreditaram que era a parte principal da alma. Mas eu, tendo cuidado que o princípio pelo qual somos alimentados é inteiramente diferente daquele pelo qual pensamos, disse que o nome alma, quando se refere ao mesmo tempo a um e a outro, é equívoco, e que, para tomá-lo precisamente como esse primeiro ato ou essa forma principal do homem, ele deve ser somente entendido como aquele princípio pelo qual pensamos; dessa maneira, chamei-o o mais das vezes pelo nome de espírito, para evitar esse equívoco e essa ambiguidade. Pois não considero o espírito como uma parte da alma, mas como toda a alma pensante. Mas, dizeis, sentis dificuldade em saber se eu não considero, portanto, que a alma pensa sempre. Mas por que não pensaria ela sempre, uma vez que é uma substância pensante? E que maravilha há em que não nos lembremos dos pensamentos que ela teve no ventre de nossas mães, ou durante a letargia, já que não nos lembramos, mesmo, de muitos pensamentos que sabemos muito bem que tivemos quando adultos, sãos e despertos, pela razão de, para nos lembrarmos de pensamentos que o espírito concebeu uma vez, enquanto conjugado ao corpo, ser necessário que restem deles alguns vestígios impressos no cérebro, para os quais o espírito se volta e aplica-lhes seu pensamento, a fim de lembrar-se; ora, que há de maravilhoso se o cérebro de uma criança ou de um letárgico não é próprio para receber tais impressões? Enfim, onde eu disse que talvez possa ocorrer que aquilo que eu não conheço ainda (a saber, meu corpo) não seja diferente de mim que conheço (a saber, de meu espírito), que nada sei disso, que não o discuto, etc., vós me objetais: Se vós não o sabeis, se não o discutis, por que dizeis que não sois nada disso? Ora, não é verdade que eu tenha adiantado algo que não soubesse; pois, exatamente ao contrário, posto que não sabia então se o corpo era uma e mesma coisa que o espírito ou se não o era, eu nada queria adiantar, mas somente considerei o espírito até que, enfim, na Meditação Sexta, não somente adiantei mas demonstrei mui claramente que ele era realmente distinto do corpo. Mas vos enganais nisto a vós mesmo, e muito, pois, não tendo a menor razão para mostrar que o espírito não é distinto do corpo, não deixais de afirmá-lo sem prova alguma. V. O que eu disse da imaginação é bastante claro, desde que se queira examiná-lo cuidadosamente, mas não é estranho se parecer obscuro àqueles que jamais meditam e que não fazem reflexão alguma sobre o que pensam. Mas devo adverti-los de que as coisas que asseverei não pertencerem ao conhecimento que tenho de mim mesmo não são, de modo algum, incompatíveis com aquelas que anteriormente disse não saber se pertenciam à minha essência, na medida em que pertencer à minha essência e pertencer ao conhecimento que tenho de mim mesmo são duas coisas inteiramente diferentes. VI. Tudo o que aqui alegais, ó boníssima carne, não me parece tanto objeções quanto algumas murmurações que não têm necessidade de réplica. VII. Continuais ainda aqui vossas murmurações, mas não é necessário que me detenha neste momento mais do que fiz em outros. Pois todas as questões que formulais a respeito dos animais são fora de propósito e não é aqui o lugar de examiná-las; posto que o espírito, meditando em si mesmo e refletindo sobre o que ele é, pode perfeitamente experimentar que pensa, mas não experimentar se os animais têm pensamentos ou se os não têm; e nada disto pode descobrir senão quando, examinando as operações dos animais, remonta dos efeitos às causas. Não me detenho tampouco em refutar as passagens em que me fazeis falar impertinentemente, posto que me baste ter uma vez advertido o leitor de que não guardais toda a fidelidade que é devida ao relato das palavras de outrem. Mas apresentei muitas vezes a verdadeira marca pela qual podemos conhecer que o espírito é diferente do corpo, a qual é que toda a essência ou toda a natureza do espírito consiste somente em pensar, quando toda a natureza do corpo consiste somente no seguinte ponto, que o corpo é uma coisa extensa, e também que nada há de comum entre o pensamento e a extensão. Mostrei também, inúmeras vezes, mui claramente, que o espírito pode agir independentemente do cérebro; pois é certo que o cérebro é de nenhum uso quando se trata de formar atos de intelecção pura, e só o é de algum quando se trata de sentir ou de imaginar algo; e, embora, quando o sentimento ou a imaginação está fortemente agitado, como ocorre quando o cérebro está perturbado, o espírito não possa aplicar-se facilmente a conceber outras coisas, experimentamos todavia que, quando nossa imaginação não é tão forte, não deixamos amiúde de conceber algo de inteiramente diferente daquilo que imaginamos, como quando, em meio aos nossos sonhos, percebemos que sonhamos; pois então é bem um efeito de nossa imaginação o fato de sonharmos, mas o fato de nos apercebermos de nossos sonhos é obra que pertence tão somente ao entendimento. VIII. Aqui, como muitas vezes alhures, mostrais apenas que não entendeis aquilo que vos empenhais em repreender; pois não fiz abstração do conceito de cera do conceito de seus acidentes, mas, antes, quis mostrar como sua substância é manifestada pelos acidentes e o quanto a sua percepção, quando é clara e distinta, e quando uma reflexão exata no-la tornou manifesta, difere da percepção vulgar e confusa. E não vejo, ó carne, sobre qual argumento vos fundais para assegurar com tanta certeza que um cão discerne e julga da mesma maneira que nós, a não ser que, vendo que é também composto de carne, vós vos persuadais de que as mesmas coisas que se acham em vós encontram-se também nele. Quanto a mim, que não reconheço no cão espírito nenhum, não penso que haja nele coisa alguma semelhante às coisas que pertencem ao espírito. IX. Espanto-me por confessardes que todas as coisas que considero na cera provam que conheço distintamente que eu sou, mas não de que modo sou ou qual é minha natureza, visto que um não se demonstra sem outro. E não vejo o que podeis desejar de mais, no que se refere a isto, a não ser que se vos diga qual é o odor e qual é o sabor do espírito humano, ou de que sal, enxofre e mercúrio é ele composto; pois quereis que, como por uma espécie de operação química, a exemplo do vinho, nós o passemos pelo alambique, a fim de saber o que entra na composição de sua essência. O que certamente é digno de vós, ó carne, e de todos aqueles que, nada concebendo senão mui confusamente, não sabem o que se deve pesquisar de cada coisa. Mas, quanto a mim, jamais pensei que, para tornar uma substância manifesta, fosse necessária outra coisa além de descobrir-lhe os diversos atributos; de sorte que, quanto mais atributos conhecemos de alguma substância, mais perfeitamente também conhecemos-lhe a natureza; e, do mesmo modo, podemos distinguir mui diversos atributos na cera: um que ela é branca, outro que é dura, outro que, de dura, torna-se líquida, etc.; do mesmo modo, há tantos atributos no espírito: um que ele tem a virtude de conhecer a brancura da cera, outro que tem a virtude de conhecer-lhe a dureza, outro que pode conhecer a modificação dessa dureza ou a liquefação, etc., pois alguém pode conhecer a dureza sem por isso conhecer a brancura, como é o caso de um cego de nascença e assim por diante. Donde se vê claramente que não há coisa alguma de que se conheçam tantos atributos quanto os de nosso espírito, pois, na medida em que os conhecemos nas outras coisas, podemos contar tantos outros no espírito, pelo fato de que ele os conhece; e, portanto, sua natureza é mais conhecida do que a de qualquer outra coisa. Enfim, vós me arguis aqui de passagem pelo fato de que, nada tendo admitido em mim a não ser o espírito, eu fale todavia da cerca que vejo e que toco, o que no entanto não se pode fazer sem olhos ou sem mãos; mas deveis haver notado que adverti expressamente que não se tratava aqui da visão ou do tato, que se fazem por intermédio dos órgãos corpóreos, mas somente do pensamento de ver e de tocar, que não necessita desses órgãos, como experimentamos todas as noites em nossos sonhos; e certamente vós o notastes muito bem, mas quisestes apenas mostrar quantos absurdos e injustas cavilações são capazes de inventar aqueles que não se empenham tanto em bem conceber uma coisa quanto em impugná-la e contradizê-la. DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS CONTRA A MEDITAÇÃO TERCEIRA. I. Coragem; enfim apresentais aqui contra mim alguma razão, o que não notei tivésseis feito até este momento; pois, para provar que não é uma regra certa que "as coisas que concebemos mui clara e distintamente são todas verdadeiras", dizeis que uma porção de grandes espíritos, que parecem dever ter conhecido várias coisas mui clara e distintamente, consideraram que a verdade estava oculta no seio do próprio Deus, ou no profundo dos abismos; no que confesso que é argumentar bastante bem com a autoridade de outrem; mas deveríeis lembrar-vos, ó carne, que aqui falais a um espírito de tal modo desligado das coisas corpóreas que não sabe mesmo se houve jamais homens antes dele e que, portanto, não se comove muito com a autoridade deles. O que alegais em seguida a respeito dos céticos é um lugar-comum que não é mau, mas que nada prova; não prova mais do que aquilo que dizeis ao afirmar que há pessoas que morreriam pela defesa de suas falsas opiniões, porque não se poderia provar que concebem clara e distintamente o que afirmam com tanta obstinação. Enfim, é muito verdadeiro o que acrescentais, afirmando que não é preciso tanto trabalhar em confirmar a verdade dessa regra quanto em fornecer um bom método para conhecer se nos enganamos ou não, quando pensamos conceber claramente alguma coisa; mas, igualmente, afirmo tê-lo feito exatamente no seu lugar, primeiramente afastando os preconceitos e, em seguida, explicando as principais ideias e, enfim, distinguindo as claras e distintas das que são obscuras e confusas. II. Certamente admiro vosso raciocínio pelo qual desejais provar que todas as nossas ideias são estranhas ou provêm de fora e que não há nenhuma que tenhamos formado, pois, dizeis vós, o espírito não tem somente a faculdade de conceber as ideias estranhas; mas também a de ajuntá-las, dividi-las, estendê-las, abreviá-las, compô-las, etc., de muitas maneiras; donde concluís que a ideia de uma quimera que o espírito formula compondo, dividindo, etc., não é feita por ele, mas provém de fora ou é estranha. Mas poderíeis também, da mesma maneira, provar que Praxiteles não fez nenhuma estátua, na medida em que não retirou dele próprio o mármore sobre o qual pôde talhá-las; poder-se-ia também dizer que não fizestes estas objeções, pois as compusestes com palavras que não inventastes mas que tomastes de empréstimo de outrem. Mas, certamente, nem a forma de uma quimera não consiste nas partes de uma cabra ou de um leão, nem a de vossas objeções em cada uma das palavras de que vos servistes, mas somente na composição e no arranjo dessas coisas. Admiro-me também de afirmardes que a ideia daquilo que em geral se denomina uma coisa não pode existir no espírito, se as ideias de um animal, de uma planta, de uma pedra e de todos os universais não estiverem ai ao mesmo tempo; como se, para conhecer que sou uma coisa que pensa, eu devesse conhecer os animais e as plantas, porque devo conhecer aquilo que se chama uma coisa, ou melhor, o que é em geral uma coisa. Não sois, também, mais verdadeiro em tudo o que dizeis a respeito da verdade. E enfim, já que impugnais apenas as coisas de que nada afirmei, vós vos armais em vão contra fantasmas. III. Para refutar as razões pelas quais estimei que se poderia duvidar da existência das coisas materiais, perguntais aqui por que, então, eu caminho sobre a terra, etc.; no que é evidente que reincidis na primeira dificuldade; pois tomais para fundamento o que está em controvérsia, e que precisa de prova, que é tão certo que caminhais sobre a terra que não se pode, de maneira alguma, duvidar disso. E quanto às objeções que formulei a mim mesmo e às quais dei solução, quereis acrescentar esta outra, a saber, por que, pois, em um cego de nascença não há ideia alguma da cor, ou no surdo dos sons e da voz? Mostrais que não tendes nenhuma objeção consequente; pois, como sabeis que em um cego de nascença não há nenhuma ideia das cores, visto que às vezes experimentamos que, embora tenhamos os olhos fechados, excitam-se em nós sentimentos de cor e de luz? E, ainda que se vos concedesse o que dizeis, aquele que negasse a existência das coisas materiais não teria também boa razão para dizer que o cego de nascença não tem as ideias das cores porque seu espírito está privado da faculdade de formá-las, como tendes razão de dizer que ele não tem essas ideias porque está privado da visão? O que acrescentais sobre as duas ideias do sol nada prova, mas quando tomais ambas as ideias por uma só, porque se relacionam ao mesmo sol, é o mesmo que se dissesse que o verdadeiro e o falso não diferem quando se referem a uma mesma coisa; e, quando negais que se deva dar o nome de ideia àquela que inferimos das razões da astronomia, restringis o nome de ideia somente às imagens pintadas na fantasia, contra o que estabeleci expressamente. IV. Fazeis o mesmo quando negais que se possa ter uma verdadeira ideia da substância, pelo fato de que, dizeis vós, a substância não é percebida pela imaginação, mas pelo tão só entendimento. Mas eu já protestei múltiplas vezes, ó carne, que não queria ter comércio com aqueles que só se querem servir da imaginação e não do entendimento. Mas, onde dizeis que a ideia da substância não tem realidade alguma que não haja tomado das ideias dos acidentes segundo os quais ou à maneira dos quais ela é concebida, mostrais claramente que não tendes ideia alguma da substância que seja distinta, pois esta não pode jamais ser concebida à maneira dos acidentes, nem tomar-lhes de empréstimo sua realidade; mas, ao contrário, os acidentes são comumente concebidos pelos filósofos como substâncias, a saber, quando eles os concebem como reais; pois não se pode atribuir aos acidentes realidade alguma (isto é, entidade alguma mais do que modal) que não seja tomada à ideia da substância. Enfim, onde dizeis que não formamos a ideia de Deus senão sobre aquilo que aprendemos e ouvimos dos outros, atribuindo-lhe, a exemplo deles, as mesmas perfeições que vimos os outros atribuírem-lhe, eu desejaria que tivésseis também acrescentado de onde é, pois, que esses primeiros homens, de quem aprendemos e ouvimos essas coisas, obtiveram essa mesma ideia de Deus. Pois, se a obtiveram de si mesmos, por que não poderíamos nós obtê-la de nós mesmos? Porque, se Deus lhas revelou, Deus existe consequentemente. E, quando acrescentais que aquele que chama uma coisa infinita dá a uma coisa que não compreende um nome que tampouco entende, não fazeis a distinção entre a intelecção conforme ao alcance de nosso espírito, tal como cada um reconhece suficientemente em si mesmo ter do infinito, e a concepção inteira e perfeita das coisas, isto é, que compreende tudo o que há de inteligível nelas, que é de tal ordem que ninguém a teve jamais não só do infinito como também talvez de qualquer outra coisa que exista no mundo, por pequena que seja; e não é verdade que concebemos o infinito pela negação do finito, visto que, ao contrário, toda limitação contém em si a negação do infinito. Não é verdade também que a ideia que nos representa todas as perfeições que atribuímos a Deus não tem mais realidade objetiva do que têm as coisas finitas. Pois confessais, vós mesmo, que todas essas perfeições são ampliadas por nosso espírito, a fim de que possam ser atribuídas a Deus; pensais, portanto, que as coisas assim ampliadas não são maiores do que as que não o foram; e de onde nos pode vir essa faculdade de ampliar todas as perfeições criadas, isto é, de conceber algo de maior e de mais perfeito do que elas são, se não do simples fato de que temos em nós a ideia de uma coisa maior, a saber, do próprio Deus? E, enfim, não é verdade também que Deus seria pouca coisa se não fosse maior do que o concebemos; pois concebemos que ele é infinito e nada pode haver de maior do que o infinito. Mas confundis intelecção com imaginação e supondes que imaginamos Deus como algum grande e poderoso gigante, como o faria aquele que, jamais tendo visto um elefante, o imaginasse semelhante a um ácaro de altura e de largura desmesuradas, o que concordo convosco ser muito impertinente. V. Dizeis aqui muitas coisas para fazer de conta que me contradizeis e entretanto nada dizeis contra mim, posto que concluís a mesma coisa que eu. Mas, todavia, mesclais aqui e acolá várias coisas com as quais não estou de acordo; por exemplo, que este axioma, nada há num efeito que não tenha estado primeiramente em sua causa, se deve entender mais da causa material do que da eficiente; pois é impossível conceber que a perfeição da forma preexista na causa material, mas tão somente na causa eficiente, e também que a realidade formal de uma ideia seja uma substância, e muitas outras coisas semelhantes. VI. Se tivésseis algumas razões para provar a existência das coisas materiais, sem dúvida tê-las-íeis aqui relatado. Mas, uma vez que perguntais somente se é, então, verdadeiro que eu não esteja certo de que haja alguma coisa diferente de mim que exista no mundo, e que supondes que não há necessidade de procurar as razões de uma coisa tão evidente, e assim vos referis somente aos vossos antigos prejuízos, mostrais bem mais claramente que não tendes mais qualquer razão para provar o que afirmais do que se não houvésseis dito coisa alguma. No que dizeis a respeito das ideias, isto não tem necessidade de resposta, porque restringis o nome de ideia apenas às imagens pintadas na fantasia; e eu estendo-o a tudo o que concebemos com o pensamento. Mas, pergunto-vos, de passagem, por que argumento provais que nada age sobre si mesmo. Pois não é vosso costume usar argumentos e provar o que dizeis. Provais isto com o exemplo do dedo que não pode bater em si mesmo e do olho que não pode ver-se a si mesmo a não ser num espelho: ao que é fácil responder que não é o olho que se vê a si mesmo, nem o espelho, mas antes o espírito, o qual somente conhece não só o espelho como o olho e a si mesmo. Podemos mesmo, também, dar outros exemplos, entre as coisas corpóreas, da ação que uma coisa exerce sobre si, como quando um tamanco se vira sobre si mesmo; esta conversão não será uma ação que ele exerce sobre si? Enfim, é mister observar que eu não afirmei que as ideias das coisas materiais derivavam do espírito, como quereis aqui fazer crer; pois demonstrei expressamente depois que elas procediam muitas vezes dos corpos, e que é com isso que se prova a existência das coisas corpóreas; mas somente apontei nessa passagem que não há nelas tanta realidade que, por causa da seguinte máxima: Nada há num efeito que não tenha estado em sua causa, formal ou eminentemente, se deva concluir que elas não puderam derivar do tão só espírito; o que não impugnais de maneira nenhuma. VII. Não dizeis nada aqui que não tenhais dito anteriormente e que eu não haja refutado inteiramente. Advertir-vos-ei aqui apenas, no tocante à ideia do infinito (a qual dizeis não poder ser verdadeira a não ser que compreenda o infinito, e que o que dele conheço é, quando muito, apenas uma parte do infinito e mesmo uma parte minúscula, que não representa melhor o infinito que o retrato de um simples cabelo representa um homem inteiro), advertir-vos-ei, digo, que repugna que eu compreenda alguma coisa e que o que eu compreendo seja infinito; pois, para ter uma ideia verdadeira do infinito, ele não deve ser de maneira alguma compreendido, tanto mais que a incompreensibilidade mesma está contida na razão formal do infinito; e entretanto é coisa manifesta que a ideia que temos do infinito não representa somente uma de suas partes mas o infinito em sua totalidade, conforme deve ser representado por uma ideia humana; embora seja certo que Deus ou alguma outra natureza inteligente dele possa ter outra ideia muito mais perfeita, isto é, muito mais exata e mais distinta do que aquela que os homens têm, da mesma maneira que dizemos que aquele que não é versado na Geometria não deixa de possuir a ideia de todo o triângulo, quando o concebe como uma figura composta de três linhas, embora os geômetras possam conhecer várias outras propriedades do triângulo e notar muitas coisas em sua ideia que o não versado na Geometria não observa. Pois, como é suficiente conceber uma figura composta de três linhas para ter a ideia de todo o triângulo, assim é suficiente conceber uma coisa que não está encerrada em limites alguns para ter uma verdadeira e inteira ideia de todo o infinito. VIII. Incorreis aqui no mesmo erro quando negais que possamos ter uma verdadeira ideia de Deus: pois, ainda que não conheçamos todas as coisas que existem em Deus, todavia, tudo o que conhecemos existir nele é inteiramente verdadeiro. Quanto ao que dizeis, que o pão não é mais perfeito do que aquele que o deseja, e que, do fato de eu conceber que algo está atualmente contido numa ideia, não se segue que ela esteja atualmente na coisa da qual é ideia, e também que formulo juízo sobre aquilo que ignoro, e outras coisas semelhantes, tudo isso, digo, nos demonstra apenas que pretendeis temerariamente impugnar várias coisas das quais não compreendeis o sentido; pois, do fato de alguém desejar pão, não se infere que o pão seja mais perfeito do que ele, mas somente que aquele que necessita de pão é menos perfeito do que quando não necessita dele. E, do fato de alguma coisa estar contida numa ideia, não concluo que essa coisa exista atualmente, a não ser quando não se pode designar nenhuma outra causa para essa ideia exceto a própria coisa que ela representa como existente atualmente; o que demonstrei que não se pode dizer de muitos mundos, nem de qualquer outra coisa que seja, exceto de Deus, apenas. E não julgo tampouco do que ignoro, pois apresentei as razões do juízo que formulava, razões que são tais que não pudestes até agora refutar nem a mais frágil. IX. Quando negais que tenhamos necessidade do concurso e da influência contínua da causa primeira para sermos conservados, negais algo que todos os metafísicos afirmam como muito manifesto, mas em que as pessoas pouco letradas não pensam amiúde, porque dirigem seus pensamentos apenas às causas que se chama na Escola secundum fieri, isto é, das quais os efeitos dependem quanto à sua produção e não às que se chama secundum esse, isto é, das quais os efeitos dependem quanto à sua subsistência e sua continuação no ser. Assim, o arquiteto é a causa da casa, e o pai a causa de seu filho, quanto à tão só produção; eis por que, uma vez estando a obra acabada, ela pode subsistir e permanecer sem essa causa; mas o sol é a causa da luz que procede dele e Deus é a causa de todas as coisas criadas, não somente no que depende de sua produção, mas mesmo no que concerne à sua conservação ou à sua duração no ser. Eis por que ele deve sempre agir sobre seu efeito de uma mesma maneira para conservá-lo no primeiro ser que lhe deu. E isto se demonstra mui claramente pelo que expliquei a respeito da independência das partes do tempo, e que procurais em vão eludir, propondo a necessidade da sequência que existe entre as partes do tempo considerado em abstrato, a respeito da qual não se discute aqui, mas somente a respeito do tempo ou da duração da própria coisa, da qual não podeis negar que todos os momentos não possam ser separados daqueles que os seguem imediatamente, isto é, que ela não possa deixar de ser em cada momento de sua duração. E quando dizeis que há em nós bastante virtude para nos fazer perseverar no caso de que qualquer causa corruptiva sobrevenha, não cuidais que atribuís à criatura a perfeição do criador, na medida em que ela persevera no ser independentemente de outrem; e, ao mesmo tempo que atribuís ao criador a imperfeição da criatura, na medida em que, se alguma vez ele quisesse que deixássemos de ser, seria necessário que ele tivesse o nada como o termo de uma ação positiva. O que dizeis, após isso, no que concerne ao progresso ao infinito, a saber, que não há discordância alguma em que haja tal progresso, desdizeis imediatamente depois; pois confessais, vós mesmo, que é impossível que possa haver tal nessas espécies de causas, que são de tal modo conexas e subordinadas entre si, que o inferior não possa agir se a tanto não o impulsione o superior. Ora, trata-se aqui apenas dessas formas de causas, a saber, daquelas que dão e conservam o ser de seus efeitos e não daquelas cujos efeitos dependem delas apenas no momento da produção, como são os pais; e, portanto, a autoridade de Aristóteles não me é de modo algum contrária neste momento, assim como não o é aquilo que dizeis sobre Pandora; pois vós mesmo confessais que posso de tal forma acrescer e aumentar todas as perfeições que reconheço existirem no homem que me será fácil reconhecer que são tais que não poderiam convir à natureza humana; o que me basta inteiramente para demonstrar a existência de Deus; pois sustento que tal virtude, de aumentar e de acrescer as perfeições humanas até o ponto de não mais serem humanas, mas infinitamente elevadas acima do estado e da condição humanos, não poderia existir em nós se não tivéssemos um Deus como o autor de nosso ser. Mas, para não mentir, espanto-me muito pouco de que não vos pareça que eu o tenha demonstrado bastante claramente; pois até aqui não percebi que tivésseis compreendido bem qualquer de minhas razões. X. Quando retomais aquilo que eu disse, a saber, que nada se pode acrescentar nem diminuir à ideia de Deus, parece que não cuidastes bem do que dizem comumente os filósofos, ou seja, que as essências das coisas são indivisíveis; pois a ideia representa a essência da coisa, a qual se torna imediatamente a ideia de outra coisa se se lhe acrescenta ou se lhe diminui algo: assim se figurou outrora a ideia de uma Pandora; assim foram elaboradas as ideias dos falsos deuses por aqueles que não concebiam como é necessária a ideia do verdadeiro Deus. Mas, desde que se concebeu uma vez a ideia do verdadeiro Deus, ainda que nele se possam descobrir novas perfeições que até então não se haviam percebido, sua ideia não foi, entretanto, acrescida ou aumentada, mas apenas tornada mais distinta e mais expressa, visto que essas novas perfeições deveriam estar todas contidas nesta mesma ideia que se tinha anteriormente, já que se supõe que era verdadeira; da mesma maneira que a ideia do triângulo não é aumentada quando se notam nele muitas propriedades que até então se ignoravam. Pois não penseis que a ideia que temos de Deus forma-se sucessivamente do aumento das perfeições das criaturas; ela se forma inteiramente e de uma vez pelo fato de concebermos por nosso espírito o ser infinito, incapaz de qualquer espécie de aumento. E, quando perguntais como provo que a ideia de Deus existe em nós como a marca do operário impressa sobre sua obra, qual é a maneira dessa impressão e qual a forma dessa marca, é o mesmo que se, reconhecendo em qualquer quadro tanto artifício que eu não julgasse possível que esta obra saísse de outras mãos senão as de Apeles, e que chegasse a dizer que tal artifício inimitável é como que determinada marca que Apeles imprimiu em todas as suas obras para distingui-las de todas as outras, me perguntásseis qual é a forma dessa marca e qual a maneira de sua impressão. Certamente, parece que seríeis então mais digno de riso do que de resposta. E quando prosseguis, se esta marca não é diferente da obra, sois pois, vós mesmo, uma ideia, não sois nada além do que uma maneira de pensar, sois tanto a marca impressa quanto o sujeito da impressão, o que dizeis não será tão sutil quanto se, tendo eu dito que o artifício pelo qual os quadros de Apeles são distintos dos outros não é diferente dos próprios quadros, objetásseis que tais quadros não passam, portanto, de um artifício, que não são compostos de matéria alguma e que são apenas uma maneira de pintar, etc.? E quando, para negar que tenhamos sido feitos à imagem e semelhança de Deus, dizeis que Deus tem, pois, a forma de um homem e em seguida relacionais todas as coisas nas quais a natureza humana é diferente da divina, sois nisto mais sutil do que se, para negar que quaisquer quadros de Apeles tenham sido feitos à semelhança de Alexandre, dissésseis que Alexandre se assemelha, portanto, a um quadro e, todavia, que os quadros são compostos de madeira e de cores e não de carne como Alexandre? Pois não é da essência de uma imagem ser em tudo semelhante à coisa de que ela é imagem, mas basta que se lhe assemelhe em alguma coisa. E é mui evidente que essa virtude admirável e mui perfeita de pensar que concebemos existir em Deus é representada por aquela que existe em nós, ainda que muito menos perfeita. E, quando preferis comparar a criação de Deus com a operação de um arquiteto a fazê-lo com a geração de um pai, vós o fazeis sem nenhuma razão; pois, embora essas três maneiras de agir sejam totalmente diferentes, a distância não é tão grande entre a produção natural e a divina quanto entre a artificial e a mesma produção divina. Mas não penseis nem que digo que há a mesma relação entre Deus e nós que a que existe entre o pai e seus filhos; nem que é verdadeiro também que jamais haja qualquer relação entre o operário e sua obra, como parece quando um pintor faz um quadro que se lhe assemelha. Mas, com quão pouca fidelidade apresentais minhas palavras quando fingis que eu disse que não concebo essa semelhança que tenho com Deus na medida em que conheço ser uma coisa incompleta e dependente, visto que, ao contrário, só disse isso para mostrar a diferença existente entre Deus e nós, de medo que se acreditasse que eu queria igualar os homens a Deus e as criaturas ao criador! Pois, nesse mesmo lugar, disse que não concebia somente que eu era nisso muito inferior a Deus, e que aspirava, no entanto, a essas maiores coisas que eu não possuía, mas também que essas coisas maiores a que eu aspirava encontravam-se em Deus atualmente e de maneira infinita, às quais no entanto encontrava em mim alguma coisa de semelhante, já que ousava de algum modo aspirar a elas. Enfim, quando dizeis que há motivo de espantar porque todo o resto dos homens não tem os mesmos pensamentos de Deus que eu tenho, já que ele imprimiu neles sua ideia do mesmo modo que em mim, é como se vos espantásseis do fato de que, tendo todo mundo a noção do triângulo, cada um, entretanto, não notasse a mesma quantidade de propriedades, e que haja talvez mesmo alguns que lhe atribuam falsamente muitas coisas. DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS CONTRA A MEDITAÇÃO QUARTA. I. Já expliquei suficientemente qual é a ideia que temos do nada e como participamos do não ser, chamando esta ideia de negativa e dizendo que isso nada significa senão que não somos o soberano ser e que nos faltam muitas coisas; mas vós sempre procurais dificuldades onde não as há de modo algum. E, quando dizeis que entre as obras de Deus vejo algumas que não estão inteiramente acabadas, inventais uma coisa que não escrevi em parte alguma e em que jamais pensei; mas apenas disse que se certas coisas fossem consideradas, não como fazendo parte de todo este Universo, mas como totalidades destacadas e coisas singulares, então elas poderiam parecer imperfeitas. Tudo o que dizeis em seguida a respeito da causa final pode ser relacionado à causa eficiente; assim, do uso admirável de cada parte nas plantas e nos animais, etc., é justo admirar a mão de Deus que as fez e conhecer e glorificar o artesão pela inspeção de suas obras, mas não para adivinhar para que fim foram criadas todas as coisas. E, ainda que em matéria de Moral, onde é amiúde permitido utilizar conjeturas, seja algumas vezes piedoso e útil considerar o fim que Deus se propôs para a conduta do Universo, certamente na Física, onde todas as coisas devem ser apoiadas em sólidas razões, é uma coisa inteiramente ridícula. E não se pode supor que haja alguns fins mais fáceis de descobrir do que outros; pois estão todos igualmente escondidos no abismo imperscrutável de sua sabedoria. E não deveis também supor que não haja homem algum que possa compreender as outras causas; pois não há nenhuma que não seja muito mais fácil de conhecer do que aquela do fim que Deus se propôs na criação do Universo; e mesmo aquelas que aduzis para servir de exemplo da dificuldade que há em conhecê-las, são tão notórias que há poucas pessoas que não se per- suadam de bem conhecê-las. Enfim, já que me perguntais tão engenhosamente quais ideias considero que meu espírito teria recebido de Deus e de si mesmo se, desde o momento em que tivesse sido infundido dentro do corpo, permanecesse até agora de olhos fechados, orelhas tampadas e sem uso nenhum dos outros sentidos, respondo-vos também ingênua e sinceramente que (desde que suponhamos que não tenha sido impedido nem auxiliado pelo corpo a pensar e a meditar) não duvido de que teria tido as mesmas ideias que tenho presentemente, ou mesmo que as tivesse tido mais claras e mais puras; pois os sentidos impedem-me em muitas ocasiões e em nada me auxiliam a concebê-las. E, de fato, nada há que impeça todos os homens de reconhecer igualmente que têm neles essas mesmas e semelhantes ideias senão porque são ordinariamente ocupados demais pela consideração das coisas corpóreas. II. Em toda esta parte, interpretais mal o ser sujeito ao erro como uma imperfeição positiva, embora isto seja apenas (principalmente no que se refere a Deus) a negação de uma maior perfeição nas criaturas. E a comparação dos cidadãos de uma república não se enquadra com as partes do Universo; pois a malícia dos cidadãos, enquanto relacionada à república, é algo de positivo; porém, o mesmo não se dá pelo fato de ser o homem sujeito a erro, isto é, de não possuir ele todas as formas de perfeição, considerando-se o bem do Universo. Mas a comparação pode ser melhor estabelecida entre aquele que desejaria que o corpo fosse coberto de olhos a fim de que parecesse mais belo, posto que não há nele parte mais bela do que o olho, e aquele que pensa que não deveria haver criaturas no mundo que não fossem isentas de erro, isto é, que não fossem inteiramente perfeitas. Demais, o que supondes em seguida não é de modo algum verdadeiro, a saber, que Deus nos destina a más obras e que nos dá imperfeições e outras coisas semelhantes. Como também não é verdadeiro que Deus tenha dado ao homem uma faculdade de julgar incerta, confusa e insuficiente para essas poucas coisas que ele quis submeter a seu juízo. III. Quereis que vos diga, em poucas palavras, ao que pode a vontade estender-se que ultrapasse os limites do entendimento? É, numa palavra, a todas as coisas nas quais erramos. Assim, quando julgais que o espírito é um corpo sutil e tênue, podeis, na verdade, conceber que ele é um espírito, isto é, uma coisa que pensa, e também que um corpo tênue é uma coisa extensa; mas que a coisa pensante e a extensa sejam apenas uma mesma coisa, isto certamente vós não o concebeis, mas somente quereis acreditá-lo, porque já acreditastes nisto anteriormente e não vos apartais facilmente de vossas opiniões, nem abandonais de bom grado vossos juízos. Assim, quando julgais que uma maçã ocasionalmente envenenada será boa para vosso alimento, concebeis, na verdade, muito bem que seu odor, sua cor e mesmo seu gosto são agradáveis, mas não concebeis por isso que essa maçã vos deva ser útil se dela fizerdes vosso alimento; mas, porque assim o desejais, vós a julgais dessa maneira. E assim confesso realmente que não queremos coisa alguma da qual, de algum modo, não concebamos algo, mas nego que nosso entender e nosso querer sejam de igual extensão; pois é certo que podemos ter muitas vontades de uma mesma coisa, e no entanto podemos conhecer dela muito pouca coisa; e quando não julgamos bem, não desejamos mal por causa disso, mas talvez alguma coisa de mal; e pode-se mesmo dizer, que nada concebemos de mal, mas somente que se diz que concebemos mal quando julgamos que concebemos algo além daquilo que efetivamente concebemos. Ainda que negueis, em seguida, que a indiferença da vontade seja de si mui manifesta, não quero entretanto tentar prová-lo a vós, pois isto é tal que cada um deve senti-lo e experimentá-lo em si mesmo mais do que persuadir-se disto pela razão; e certamente não é uma maravilha se, no papel que interpretais, e dada a natural desproporção existente entre a carne e o espírito, pareça que não cuidais e não notais a maneira pela qual o espírito age no interior de si mesmo. Não sejais portanto livre, se a tanto vos apraz; quanto a mim gozarei de minha liberdade, pois não só a sinto em mim mesmo como também vejo que, tendo o desígnio de combatê-la, em lugar de opor-lhe boas e sólidas razões, vós vos contentais simplesmente em negá-la. E talvez eu encontrasse mais crédito no espírito dos outros afirmando o que experimentei, e que cada um pode também experimentar em si mesmo, do que vós, que negais uma coisa pelo simples fato de que jamais talvez a haveis experimentado. E, no entanto, é fácil julgar por vossas próprias palavras que algumas vezes a experimentastes: pois, quando negais que possamos impedir-nos de cair em erro, porque não quereis que a vontade se dirija a coisa alguma sem que a tanto seja determinada pelo entendimento, vós estais de acordo que podemos proceder de maneira a não perseverarmos nisto, o que não se pode fazer de modo algum sem a liberdade que tem a vontade de se dirigir a isto ou aquilo sem esperar a determinação do entendimento; liberdade que, todavia, não quereis reconhecer. Pois, se o entendimento determinou uma vez a vontade a fazer um falso juízo, eu vos pergunto, quando ela começa pela primeira vez a querer cuidar de não perseverar no erro, o que é que a determina a tanto? Se for ela própria, poderá, portanto, voltar-se para coisas às quais o entendimento não a dirige, e no entanto era isto o que negáveis há pouco e no que consiste presentemente o tema de nossa discussão; se ela é determinada pelo entendimento, não é ela, portanto, que se mantém sob sua guarda; mas somente ocorre que, como ela se voltava anteriormente em direção ao falso que lhe era por ele proposto, da mesma maneira por acaso ela se volta agora para o verdadeiro, porque o entendimento lho propõe. Mas, além disso, eu desejaria saber qual é a natureza do falso que concebeis e como pensais que pode ser objeto do entendimento. Pois, para mim, que não entendo pelo falso nada que não seja a privação do verdadeiro, julgo haver uma inteira repugnância que o entendimento apreenda o falso sob a forma ou a aparência do verdadeiro, o que seria todavia necessário se ele jamais determinasse a vontade a abraçar a falsidade. IV. No que concerne ao fruto destas Meditações, parece-me ter advertido suficientemente no prefácio, o que penso que lestes, que ele não será grande para aqueles que, não se dando ao trabalho de compreender a ordem e o nexo de minhas razões, cuidarem apenas de procurar em todas as ocasiões motivos de disputas. E quanto ao método pelo qual poderíamos discernir as coisas que concebemos de fato claramente das coisas de que apenas nos persuadimos conceber clara e distintamente, embora eu pense tê-lo ensinado de maneira bastante exata, como já o disse, não ousaria prometer que seria facilmente compreensível aos que trabalham tão pouco em se despojar de seus prejuízos, a ponto de se queixar de que fui demasiado longo e exato no mostrar o meio de se desfazer de tais prejuízos. DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS CONTRA A MEDITAÇÃO QUINTA. I. Na medida em que, após haver aqui apresentado algumas de minhas palavras, acrescentais que é tudo quanto disse no que se refere à questão proposta, sou obrigado a advertir o leitor de que não cuidastes suficientemente da sequência e da conexão daquilo que escrevi; pois creio que ela é tal, para a prova de cada questão, que todas as coisas que a precedem para isso contribuem e grande parte das que a seguem: de sorte que não poderíeis relatar fielmente tudo quanto disse de alguma questão se não apresentásseis ao mesmo tempo tudo o que escrevi a respeito das outras. Quanto ao que dizeis, afirmando que vos parece duro ver estabelecer algo de imutável e de eterno além de Deus, teríeis razão se se tratasse de uma coisa existente, ou apenas se eu estabelecesse algo de tal modo imutável que sua imutabilidade mesma não dependesse de Deus. Mas, assim como os poetas fingem que os destinos foram na verdade feitos e ordenados por Júpiter, mas que, uma vez por ele estabelecidos, ele próprio é obrigado a guardá-los, da mesma maneira não penso, na verdade, que as essências das coisas e essas verdades matemáticas que se podem conhecer sejam independentes de Deus, mas penso todavia que, como Deus assim o quis e dispôs, elas são imutáveis e eternas. Ora, que isto vos pareça duro ou não, pouco me importa; para mim, basta que seja verdadeiro. O que alegais em seguida contra os universais dos dialéticos em nada me atinge, pois os concebo de maneira bem diferente da deles. Mas, no que concerne às essências que conhecemos clara e distintamente, como a do triângulo ou de alguma outra figura de Geometria, far-vos-ei facilmente confessar que as ideias das essências que existem em nós foram tiradas das ideias das coisas singulares; pois o que vos leva a dizer que elas são falsas é apenas que elas não se acordam com a opinião que concebestes a respeito da natureza das coisas. E mesmo um pouco depois dizeis que o objeto das Matemáticas puras, como o ponto, a linha, a superfície e os indivisíveis que deles são compostos, não pode ter nenhuma existência fora do entendimento; donde se segue necessariamente que jamais houve um triângulo no mundo, nem coisa alguma de tudo quanto concebemos pertencer à natureza do triângulo, ou à de alguma outra figura de Geometria, e portanto que as essências dessas coisas não foram tiradas de quaisquer coisas existentes. Mas, dizeis vós, elas são falsas. Sim, segundo vossa opinião, uma vez que supondes que a natureza das coisas é tal que elas não lhe podem ser conformes. Mas, se não sustentais também que toda a Geometria é falsa, não poderíeis negar que nela se demonstram muitas verdades, que, não mudando e sendo sempre as mesmas, não é sem razão que são chamadas imutáveis e eternas. Mas o fato de elas não serem talvez conformes à opinião que tendes da natureza das coisas, nem mesmo àquela que Demócrito e Epicuro construíram e compuseram de átomos, não é em relação a elas senão uma denominação exterior, que não lhes causa nenhuma transformação; e, todavia, não se pode duvidar que elas sejam conformes a esta verdadeira natureza das coisas que foi feita e construída pelo verdadeiro Deus: não que haja no mundo substâncias que tenham comprimento sem largura, ou largura sem profundidade; mas porque as figuras geométricas não são consideradas como substâncias, mas somente como os limites nos quais a substância está contida. No entanto, não concordo com que as ideias dessas figuras nos tenham jamais caído sob os sentidos, como cada um se persuade ordinariamente; pois, ainda que não haja dúvida que possam existir no mundo, tal como os geômetras as consideram, nego, no entanto, que existam quaisquer em torno de nós, a não ser que sejam tão pequenas que não nos impressionem os sentidos: pois são ordinariamente compostas de linhas retas, e não penso que jamais tenha tocado nossos sentidos parte alguma de uma linha que fosse verdadeiramente reta. Por isso, quando chegamos a olhar através de uma luneta aquelas que nos haviam parecido as mais retas, vemo-las inteiramente irregulares e curvadas em todas as partes, como ondas. E, portanto, quando percebemos pela primeira vez em nossa infância uma figura triangular traçada sobre o papel, tal figura não nos pôde ensinar como era necessário conceber o triângulo geométrico, posto que não representava melhor do que um mau desenho representa uma imagem perfeita. Mas, na medida em que a ideia verdadeira do triângulo já estava em nós, e que nosso espírito podia concebê-la mais facilmente do que a figura menos simples ou mais composta de um triângulo pintado, daí decorre que, tendo visto essa figura composta, não a tenhamos concebido ela própria, mas antes o verdadeiro triângulo. Da mesma maneira que, quando lançamos o olhar sobre um papel onde há alguns traços dispostos e arranjados de tal modo que representam o rosto de um homem, a visão não excita tanto em nós a ideia dos próprios traços quanto a ideia de um homem: o que não ocorreria, se o rosto de um homem não nos fosse conhecido de outro lugar, e se não estivéssemos mais acostumados a pensar nele do que em seus traços, os quais mui amiúde não poderíamos distinguir uns dos outros se estivéssemos um pouco distanciados. Assim, certamente, não poderíamos jamais conhecer o triângulo geométrico através daquele que vemos traçado sobre o papel, se nosso espírito não recebesse a sua ideia de outra parte. II. Não vejo aqui a que gênero de coisas quereis que a existência pertença, nem por que ela não pode ser denominada uma propriedade, como a onipotência, tomando o nome de propriedade para toda espécie de atributo ou para tudo o que pode ser atribuído a uma coisa, como efetivamente deve ser aqui entendido. Mas, antes, a existência necessária é verdadeiramente em Deus uma propriedade tomada no sentido menos amplo, porque apenas a ele convém, e porque só nele faz parte de sua essência. Eis por que também a existência do triângulo não deve ser comparada com a existência de Deus, porque ela tem em Deus lima relação manifestamente diferente com a essência, que não tem no triângulo; e não cometo mais aqui o erro que os lógicos chamam de petição de princípio, quando coloco a existência entre as coisas que pertencem à existência de Deus, do que quando, entre as propriedades do triângulo, coloco a igualdade da grandeza de seus três ângulos com dois retos. Não é verdade também que a essência e a existência em Deus, tanto quanto no triângulo, podem ser concebida uma sem a outra, porque Deus é seu próprio ser e o triângulo não. E, todavia, não nego que a existência possível seja uma perfeição na ideia do triângulo, como a existência necessária é uma perfeição na ideia de Deus, pois isso a torna mais perfeita do que o são as ideias de todas essas quimeras que supomos não poderem ser produzidas. E, portanto, não diminuístes em nada a força de meu argumento e permaneceis sempre enganado por este sofisma que dizeis ter sido tão fácil de resolver. No que concerne ao que acrescentais em seguida, já respondi suficientemente; e enganai-vos grandemente quando dizeis que não se demonstra a existência de Deus como se demonstra que todo triângulo retilíneo tem seus três ângulos iguais a dois retos; pois a razão é semelhante nos dois casos, exceto que a demonstração que prova a existência de Deus é muito mais simples e evidente do que a outra. E enfim, silencio sobre o restante do que prosseguis, porque, quando dizeis que não explico bastante as coisas e que minhas provas não são convincentes, penso que a melhor título poder-se-ia dizer o mesmo de vós e das vossas. III. Contra tudo o que apresentais aqui de Diágoras, de Teodoro, de Pitágoras e de vários outros, oponho-vos os céticos, que colocavam em dúvida as próprias demonstrações de Geometria, e sustento que eles não o teriam feito se tivessem tido o conhecimento certo da verdade de um Deus; e mesmo se uma coisa parecer verdadeira a mais pessoas, isto não provará que essa coisa seja mais notória e mais manifesta do que outra; prová-lo-á antes o fato de que aqueles que têm um conhecimento suficiente de uma e de outra reconhecem que uma é primeiramente conhecida, mais evidente e mais segura do que a outra. DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS CONTRA A MEDITAÇÃO SEXTA. I. Já refutei acima o que negais aqui, a saber, que as coisas materiais, enquanto objeto das Matemáticas puras, possam ter qualquer existência. No que se refere à intelecção de um quiliógono, não é de maneira alguma verdadeiro que seja confusa, pois dele pode-se mui clara e mui distintamente demonstrar várias coisas, o que não se poderia de maneira nenhuma fazer se o conhecêssemos apenas confusamente, ou, como dizeis, se lhe conhecêssemos apenas o nome; mas é mui certo que o concebemos mui claramente na sua totalidade e num só momento, embora não o possamos assim claramente imaginar; donde é evidente que as faculdades de entender e de imaginar não diferem apenas segundo o mais e o menos, mas também como maneiras de agir totalmente diferentes. Pois na intelecção o espírito não se serve senão de si mesmo, ao passo que na imaginação ele contempla alguma forma corpórea; e, ainda que as figuras geométricas sejam inteiramente corpóreas, todavia não é preciso que nos persuadamos de que essas ideias que servem para no-las fazer conceber sejam também corpóreas quando não se apresentem à imaginação; e, enfim, isto não pode ser senão digno de vós, ó carne, pensar que as ideias de Deus, do anjo e da alma do homem sejam corpóreas ou quase corpóreas, por terem sido tiradas da forma do corpo humano e de algumas outras coisas muito simples, muito leves e imperceptíveis. Pois quem quer que se represente Deus desta maneira, ou mesmo o espírito humano, tenta imaginar uma coisa que não é absolutamente imaginável, e apenas figura uma ideia a que atribui falsamente o nome de Deus ou de espírito; pois na verdadeira ideia de espírito nada há contido senão o tão só pensamento com todos os seus atributos, entre os quais não há nenhum que seja corpóreo. II. Mostrais aqui claramente que vos apoiais somente em vossos prejuízos, sem nunca vos desfazer deles, posto que não quereis que tenhamos a menor suspeita de falsidade em relação às coisas em que jamais notamos alguma; é por isso que dizeis que quando olhamos de perto e tocamos quase com a mão uma torre, estamos certos de que ela é quadrada, se assim ela nos parece; e que, quando estamos de fato acordados, não podemos estar em dúvida se estamos despertos ou se sonhamos, e outras coisas semelhantes; pois não tendes nenhuma razão de acreditar que tenhais alguma vez examinado e observado bastante cuidadosamente todas as coisas em que pode acontecer que erreis; e talvez não fosse penoso demonstrar que vos enganais algumas vezes em coisas que admitis como verdadeiras e como seguras. Mas, quando voltais a falar que pelo menos não se pode duvidar de que as coisas nos pareçam como elas são, voltais ao que eu disse; pois isto mesmo está em termos expressos na minha Meditação Segunda; mas aqui se tratava da verdade das coisas que existem fora de nós, no que não vejo que tenhais dito coisa alguma de verdadeiro. III. Não me detenho aqui em coisas que tantas vezes repisastes e que ainda nesta passagem repetis tão em vão; por exemplo, que há muitas coisas que adiantei sem prova, as quais afirmo, não obstante, ter demonstrado mui evidentemente; como também que somente quis falar do corpo grosseiro e palpável quando excluí o corpo de minha essência; ainda que, todavia, meu desígnio tenha sido excluir de minha essência toda espécie de corpo, por pequeno e sutil que possa ser, e outras coisas semelhantes; pois, que se poderá aqui responder a tantas palavras ditas e adiantadas, sem qualquer fundamento razoável, se não negá-las mui simplesmente? Contudo, direi de passagem que gostaria de saber sobre o que vos fundamentais para dizer que falei mais do corpo maciço e grosseiro do que do corpo sutil e tênue. É, declarais, porque eu disse que tenho um corpo ao qual estou conjugado e também que é certo que eu, isto é, minha alma, é distinta de meu corpo, onde confesso que não vejo por que tais palavras não poderiam também ser relacionadas ao corpo sutil e imperceptível, assim como àquele que é mais grosseiro e palpável; e não creio que tal pensamento possa ocorrer ao espírito de outrem além de vós. De resto, mostrei claramente, na Meditação Segunda, que o espírito poderia ser concebido como uma substância existente, antes mesmo que soubéssemos se há no mundo algum vento, algum fogo, algum vapor, algum ar, ou qualquer corpo que seja, por sutil e tênue que possa ser; mas, quanto a saber se efetivamente era diferente do corpo, disse nessa ocasião que não era o momento de discuti-lo. Tendo-o reservado para esta Meditação Sexta, foi nela que tratei amplamente de tal tema e onde decidi esta questão por uma demonstração mui forte e verdadeira. Mas vós, ao contrário, confundindo a questão que concerne a como pode o espírito ser concebido com aquela que se refere ao que ele é efetivamente, não dais a entender outra coisa senão que nada compreendestes distintamente de todas estas coisas. IV. Perguntais aqui como considero que a espécie ou a ideia do corpo, que é extenso, pode ser recebida em mim que sou uma coisa inextensa. Respondo que nenhuma espécie corporal é recebida no espírito, mas que a concepção ou intelecção pura das coisas, corpóreas ou espirituais, é feita sem qualquer imagem ou espécie corpórea; e quanto à imaginação, que não pode ser senão das coisas corpóreas, é verdade que para elaborar uma é necessário uma espécie que seja um verdadeiro corpo e à qual o espírito se aplique, mas não que seja recebida no espírito. O que dizeis da ideia do sol, que um cego de nascença forma pelo simples conhecimento que tem de seu calor, é facilmente refutável; pois esse cego pode perfeitamente ter uma ideia clara e distinta do sol como de uma coisa que aquece, embora não a tenha como a ideia de uma coisa que aclara e ilumina. E é sem razão que me comparais a esse cego; primeiramente porque o conhecimento de uma coisa que pensa se estende muito mais longe do que aquele de uma coisa que aquece, e mesmo é muito mais amplo do que qualquer conhecimento que tenhamos de qualquer outra coisa que seja, como mostrei no devido lugar, è também porque não há ninguém que possa mostrar que essa ideia do sol que o cego elabora não contenha tudo o que se possa conhecer dele, exceto aquele que, sendo dotado do sentido da vista, conhece, além disso, sua figura e sua luz; mas, quanto a vós, não só não conheceis mais do que eu no tocante ao espírito como também não percebeis aí tudo o que vejo, de sorte que nisto seja antes vós que pareceis um cego, e posso no máximo, do vosso ponto de vista, ser chamado de vesgo ou pouco clarividente, com todos os demais homens. De resto, não acrescentei que o espírito não era extenso para explicar como ele é e dar a conhecer sua natureza, mas somente para advertir que se enganam aqueles que pensam que ele é extenso. Da mesma maneira que, se houvesse alguém que quisesse dizer que Bucéfalo é uma música, não seria em vão e sem razão que tal coisa seria negada por outrem. E certamente em todo o resto que acrescentais aqui para provar que o espírito tem extensão, na medida, dizeis vós, em que ele se serve do corpo que é extenso, não me parece que raciocinais melhor do que se, pelo fato de Bucéfalo relinchar e assim emitir sons que podem ser relacionados com a música, tirásseis a consequência de que Bucéfalo é, portanto, uma música. Pois, ainda que o espírito seja unido a todo o corpo, não se segue daí que ele seja extenso por todo o corpo, pois não é próprio do espírito ser extenso, mas somente pensar. E ele não concebe a extensão por uma espécie extensa que exista nele, embora imagine voltando-se e aplicando-se a uma espécie corpórea que é extensa, como o disse anteriormente. E, enfim, não é necessário que o espírito seja da ordem e da natureza do corpo, conquanto tenha a força ou a virtude de movê-lo. V. O que dizeis nessa passagem, no que se refere à união entre o espírito e o corpo, é semelhante às dificuldades precedentes. Nada objetais contra minhas razões, mas colocais somente dúvidas que vos parecem derivar de minhas conclusões, embora efetivamente não vos ocorram ao espírito senão porque desejais submeter ao exame da imaginação coisas que de sua própria natureza não estão sujeitas a tal jurisdição. Assim, quando quereis comparar aqui a mistura que se faz entre o corpo e o espírito com a de dois corpos misturados, basta-me responder que não se deve fazer entre essas coisas comparação alguma, pois que são de dois gêneros totalmente diferentes, e não se deve imaginar que o espírito tenha partes, ainda que conceba partes no corpo. Pois, quem vos ensinou que tudo aquilo que o espírito concebe deve existir realmente nele? Certamente, se isto acontecesse, quando ele concebe a grandeza do Universo, teria também em si essa grandeza e assim não somente seria extenso mas seria também maior do que o mundo inteiro. VI. Não dizeis nada aqui que me seja contrário, e no entanto falais muito; donde o leitor pode descobrir que não se deve julgar da força de vossas razões pela prolixidade de vossas palavras. Até aqui o espírito discorreu com a carne e, como era razoável, em muitas coisas não seguiu seus sentimentos. Mas agora eu levanto a máscara e reconheço que verdadeiramente falo ao Sr. Gassendi, personagem tanto recomendável pela integridade de seus costumes e pela candura de seu espírito quanto pela profundeza e pela sutileza de sua doutrina, e cuja amizade me será sempre muito cara; por isso protesto, e ele próprio o pode saber, que procurarei sempre, tanto quanto me for possível, as ocasiões de adquiri-la. E por isso que lhe suplico não ver mal se, refutando suas objeções, usei da liberdade comum aos filósofos; como também de minha parte asseguro-lhe que nelas nada encontrei que me não fosse mui agradável; mas sobretudo fiquei maravilhado com o fato de um homem de seu mérito, num discurso tão longo e tão cuidadosamente elaborado, não ter apresentado nenhuma razão que destruísse e derrubasse as minhas, e igualmente nada ter oposto contra minhas conclusões a que não me tenha sido muito fácil responder. CARTA DO SENHOR DESCARTES AO SENHOR CLERSELIER, SERVINDO DE RESPOSTA A UMA COLETÂNEA DAS PRINCIPAIS INSTÂNCIAS FEITAS PELO SENHOR GASSENDI CONTRA AS PRECEDENTES RESPOSTAS. Senhor, Devo-vos muita obrigação pelo fato de, vendo que negligenciei responder ao grosso livro de instâncias que o autor das Quintas Objeções elaborou contra minhas respostas, que tenhais pedido a alguns de vossos amigos que recolhessem as mais fortes razões desse livro e que me tenhais enviado o extrato que dele fizeram. Tivestes nisso mais cuidado pela minha reputação do que eu mesmo; pois eu vos asseguro que me é indiferente ser estimado ou desprezado por aqueles que semelhantes razões poderiam persuadir. Os melhores espíritos de meu conhecimento que leram o livro dele me testemunharam que nada nele encontraram que os detivesse; é a eles somente que desejo satisfazer. Sei que a maioria dos homens repara melhor nas aparências do que na verdade e julga antes mal do que bem; eis por que não creio que a sua aprovação valha a pena que eu faça tudo o que seria útil para adquiri-la. Mas não deixo de me sentir à vontade em face da coletânea que me enviastes, e sinto-me obrigado a respondê-la mais por reconhecimento do trabalho de vossos amigos do que por necessidade de minha defesa; pois creio que aqueles que se deram ao trabalho de fazê-lo devem agora julgar, como eu, que todas as objeções que esse livro contém são apenas fundamentadas em algumas palavras mal compreendidas ou algumas suposições falsas; visto que todas aquelas que eles notaram são de tal sorte e todavia foram tão diligentes que mesmo acrescentaram algumas que não me lembro de ter lido. Eles notam três objeções contra a Primeira Meditação, a saber: 1. Que eu peço uma coisa impossível ao pretender que sejam abandonadas todas as formas de prejuízo; 2. Que, pensando abandoná-los, revestimo-nos de outros que são mais danosos; 3. E que o método de duvidar de tudo, que propus, não pode servir para encontrar qualquer verdade. A primeira das objeções funda-se no fato de que o autor desse livro não considerou que a palavra prejuízo não se estende a todas as noções que existem em nosso espírito, das quais confesso ser impossível nos desfazermos, mas somente a todas as opiniões que os juízos que fizemos anteriormente deixaram em nossa crença; e, já que julgar ou não julgar é uma ação da vontade, como expliquei no devido lugar, é evidente que ela está a nosso alcance; pois, enfim, para se desfazer de toda espécie de prejuízo, nada mais é preciso do que se resolver a nada afirmar ou negar de tudo o que anteriormente se afirmou ou negou, senão após havê-lo novamente examinado, ainda que não se deixe de reter todas as mesmas noções na memória. Disse, todavia, que seria difícil expulsar assim de nossa crença tudo o que aí anteriormente se havia colocado, em parte porque é necessário ter alguma razão de duvidar antes de se determinar a tanto (e foi por isso que propus as principais dessas razões em minha Primeira Meditação), e em parte também porque, qualquer que seja a resolução que tomemos de nada afirmar ou negar, esquecemo-nos facilmente dela em seguida se não a imprimirmos fortemente na memória; eis por que desejei que se pensasse nisso cuidadosamente. A segunda objeção é apenas uma suposição manifestamente falsa; pois, embora eu houvesse dito ser mesmo necessário esforçar-se por negar as coisas que anteriormente eram tidas por demasiado asseguradas, limitei expressamente que isto só se deveria fazer durante o tempo em que se dirigisse toda a atenção à procura de algo mais certo do que tudo quanto assim se poderia negar, tempo em cujo transcurso é evidente que não se poderia deixar de se revestir de algum prejuízo que fosse danoso. A terceira também nada contém senão uma cavilação; pois, embora seja verdadeiro que a dúvida apenas não basta para estabelecer qualquer verdade, ela não deixa de ser útil para preparar o espírito a estabelecê-la após, e é somente nisto que eu a empreguei. Contra a Meditação Segunda, vossos amigos notam seis coisas. A primeira é que dizendo: penso, logo existo, o autor das Instâncias quer que eu suponha esta premissa maior: aquele que pensa é; e, assim, que tenha já esposado um prejuízo. No que ele se engana novamente quanto ao uso da palavra prejuízo: pois, embora se possa dar esse nome a tal proposição quando a proferimos sem atenção, e quando somente acreditamos que ela é verdadeira porque recordamos já tê-la assim julgado anteriormente, não se pode dizer, todavia, que ela seja um prejuízo quando a examinamos, porque parece tão evidente ao entendimento que este não poderia impedir-se de crer nela, ainda que seja a primeira vez em sua vida que nela pense e que por conseguinte não tenha quanto a isso qualquer prejuízo. Mas o erro que é aqui mais considerável é que esse autor supõe que o conhecimento das proposições particulares deve sempre ser deduzido das universais, segundo a ordem dos silogismos da dialética, no que mostra saber bem pouco de que maneira se deve procurar a verdade; pois é certo que para encontrá-la cumpre sempre começar pelas noções particulares, para em seguida chegar às gerais, embora seja possível também, reciprocamente, tendo-se encontrado as gerais, deduzir delas outras particulares. Assim, quando se ensina a uma criança os elementos da Geometria, não a faremos entender em geral que, quando, de duas quantidades iguais, tiramos partes iguais, os restos permanecem iguais, ou que o todo é maior do que suas partes, se não lhes mostrarmos exemplos em casos particulares. E foi por não ter cuidado disso que nosso autor enganou-se em tantos falsos raciocínios, com os quais engrossou seu livro; pois ele nada fez senão compor falsas premissas maiores à sua fantasia, como se eu tivesse delas deduzido as verdades que expliquei. A segunda objeção que anotam aqui vossos amigos é que, para saber que se pensa, é preciso saber o que é o pensamento; o que não sei de modo algum, dizem eles, porque tudo neguei. Mas eu apenas neguei os prejuízos e nunca as noções, como estas, que se conhecem sem qualquer afirmação ou negação. A terceira é que o pensamento não pode existir sem objeto; por exemplo, sem o corpo. Onde é preciso evitar o equívoco da palavra pensamento, que se pode tomar como a coisa pensante e também como a ação dessa coisa; ora, nego que a coisa pensante tenha necessidade de outro objeto além de si mesma para exercer sua ação, embora ela possa também estendê-la às coisas materiais quando as examina. A quarta é que, embora eu tenha um pensamento de mim mesmo, não sei se este pensamento é mais uma ação corporal ou um átomo que se move do que uma substância imaterial; no que o equívoco do nome pensamento é repetido, e não vejo aqui nada afora uma questão sem fundamento e que é semelhante à seguinte: julgais que sois um homem porque percebeis em vós todas as coisas na ocorrência das quais chamais de homens aqueles em que elas se encontram; mas, como sabeis se não sois um elefante e não um homem, por algumas outras razões que não podeis perceber? Pois, após a substância pensante haver julgado que é intelectual, porque notou em si todas as propriedades das substâncias intelectuais, e não pôde advertir aí nenhuma das pertencentes ao corpo, pergunta-se-lhe ainda como sabe se não é um corpo mais do que uma substância imaterial. A quinta objeção é semelhante: Embora eu não encontre extensão em meu pensamento, não se segue que ele não seja extenso, já que meu pensamento não é a regra da verdade das coisas. E também a sexta: Pode acontecer que a distinção que descubro por meu pensamento entre o pensamento e o corpo seja falsa. Mas cumpre notar aqui particularmente o equívoco que existe nestas palavras: meu pensamento não é a regra da verdade das coisas; pois se quer dizer que meu pensamento não deve ser a regra dos outros para obrigá-los a crer em uma coisa que penso verdadeira, estou de pleno acordo; mas isto não vem aqui a propósito, pois não quis obrigar ninguém a seguir minha autoridade; ao contrário, adverti em diversos lugares que não nos devemos deixar persuadir apenas pela evidência das razões. Ademais, se tomamos indiferentemente a palavra pensamento por todas as espécies de operações da alma, é certo que podemos ter muitos pensamentos dos quais nada se pode inferir no referente às coisas existentes fora de nós; mas isso também não vem a propósito nesse lugar, quando se trata apenas de pensamentos que são percepções claras e distintas e de juízos que cada um deve fazer consigo em seguida a essas percepções. Eis por que, no sentido em que essas palavras devem ser entendidas aqui, digo que o pensamento de cada um, isto é, a percepção ou conhecimento que tem de uma coisa, deve ser para ele a regra da verdade dessa coisa, isto é, que todos os juízos que sobre ela tiver feito devem ser conformes a essa percepção para serem bons; mesmo no tocante às verdades da fé, devemos perceber alguma razão que nos persuada de que elas foram reveladas por Deus, antes de nos determinarmos a crer nelas; e, ainda que os ignorantes façam bem em seguir o juízo dos mais capazes quanto às coisas de difícil conhecimento, é preciso todavia que seja a sua percepção que lhes ensine que são ignorantes e que aqueles cujos juízos querem seguir não o são tanto, talvez; de outra maneira, fariam mal em segui-los e agiriam mais como autômatos ou como animais do que como homens. Assim, é o erro mais absurdo e mais exorbitante que um filósofo possa admitir o querer fazer juízos que não se relacionem às percepções que ele tem das coisas; e todavia, não vejo como nosso autor poderia escusar-se de ter caído nesse erro na maioria de suas objeções; pois ele não quer que cada um se detenha em sua própria percepção, mas pretende que se deva crer nas opiniões ou nas fantasias que lhe apraz propor-nos, embora não as perceba de modo algum. Contra a Meditação Terceira, vossos amigos notaram: 1. Que todo mundo não experimenta em si a ideia de Deus; 2. Que, se eu tivesse essa ideia, eu a compreenderia; 3. Que muitos leram minhas razões e não se persuadiram delas; 4. E que, do fato de que me reconheço imperfeito, não se segue que Deus exista. Mas, se se toma a palavra ideia da maneira pela qual eu disse expressamente que a tomava, sem se escusar pelo equívoco daqueles que a restringem às imagens das coisas materiais que se formam na imaginação, não se poderia negar que temos alguma ideia de Deus, a não ser que não se entenda o que significam estas palavras: a coisa mais perfeita que possamos conceber; pois é isto que todos os homens chamam de Deus. E é chegar a estranhos extremos, para querer levantar objeções, dizer que não se entende o que significam as palavras que são mais comuns na boca dos homens; além do que, a confissão mais ímpia que alguém possa fazer é dizer de si mesmo, no sentido em que tomei a palavra ideia, que não tem nenhuma ideia de Deus: pois não consiste somente em dizer que não o conhece pela razão natural, mas também que, nem pela fé ou qualquer outro meio, poderia saber coisa alguma dele, porque se não se possui qualquer ideia dele, isto é, qualquer percepção que corresponda à significação dessa palavra Deus, em vão se dirá crer que Deus é, pois equivale a afirmar que se crê que nada é e assim se permanece no abismo da impiedade e no extremo da ignorância. O que acrescentam, dizendo que, se eu tivesse essa ideia, eu a compreenderia, é afirmado sem qualquer fundamento: pois, já que a palavra compreender significa alguma limitação, um espírito finito não poderia compreender Deus, que é infinito; mas isto não impede que ele o perceba, assim como se pode tocar uma montanha, ainda que não se possa abraçá-la. Aquilo que dizem também de minhas razões, afirmando que muitos as leram sem por elas serem persuadidos, pode facilmente ser refutado, pois há alguns outros que as compreenderam e ficaram com elas satisfeitos; pois deve-se crer mais em um só que diz, sem intenção de mentir, que viu ou que compreendeu alguma coisa, do que em mil outros que a negam pelo simples fato de que não puderam vê-la ou compreendê-la: assim como na descoberta dos antípodas acreditou-se muito mais no relato feito por alguns marinheiros que fizeram a volta da terra do que em milhares de filósofos que não acreditaram que ela fosse redonda. E já que alegam aqui os Elementos de Euclides, como se fossem fáceis para todo mundo, peço a eles que considerem que entre aqueles que se estima serem os mais sábios na Filosofia da Escola não há um entre cem que os compreenda e que não há um em dez mil que entenda todas as demonstrações de Apolônio ou de Arquimedes, embora elas sejam tão evidentes e tão certas quanto as de Euclides. Enfim, quando afirmam que do fato de que reconheço em mim alguma imperfeição não se segue que Deus exista, com isso nada provam; pois eu não a deduzi imediatamente disso sem acrescentar-lhe algo mais; e apenas me fazem recordar o artifício desse autor que costuma truncar minhas razões e não apresentar delas senão algumas partes para fazê-las parecer imperfeitas. Nada vejo em tudo o que notaram a respeito das três outras Meditações a que não tenha já amplamente respondido alhures, como àquilo que objetam: 1. Que cometi um círculo provando a existência de Deus por certas noções que existem em nós, dizendo em seguida que não se pode estar certo de coisa alguma sem saber antes que Deus existe; 2. E que o conhecimento de Deus de nada serve para adquirir o das verdades matemáticas; 3. E que ele pode ser enganador. Vede a respeito minha resposta às Segundas Objeções e o fim da segunda parte da Resposta às Quartas. Mas eles acrescentam no fim um pensamento que não sei se nosso autor escreveu em seu livro de Instâncias, embora seja um pensamento bastante semelhante aos seus: Muitos excelsos espíritos, dizem eles, acreditam ver claramente que a extensão matemática, a qual estabeleço como princípio de minha Física, não é outra coisa senão meu pensamento, e que ela não tem nem pode ter nenhuma subsistência fora de meu espírito, sendo apenas uma abstração que faço do corpo físico; e portanto que toda a minha Física só pode ser imaginária e fictícia, como o são todas as Matemáticas puras; e que, na Física real das coisas que Deus criou, é preciso uma matéria real sólida e não imaginária. Eis a objeção das objeções, e a suma de toda a doutrina dos excelsos espíritos, que aqui são alegados. Todas as coisas que podemos entender e conceber não são para eles senão imaginações e ficções de nosso espírito e que não podem ter qualquer subsistência: donde se segue que nada há, exceto o que não se pode de modo algum entender, conceber ou imaginar, que se deva admitir como verdadeiro: isto é, que é preciso fechar inteiramente a porta à razão e contentar-se em ser macaco ou papagaio e não mais homem, para merecer ser colocado ao nível desses excelsos espíritos. Pois, se as coisas que podemos conceber devem ser consideradas falsas pelo simples fato de podermos concebê-las, que restará se não que devemos apenas receber como verdadeiras aquelas que não concebemos, e compor com elas nossa doutrina imitando os outros sem saber por que os imitamos, como procedem os macacos, e proferindo apenas palavras cujo sentido não entendemos, como fazem os papagaios? Mas tenho muito com o que me consolar, porque eles associam aqui minha Física às Matemáticas puras, às quais desejo antes de qualquer coisa que ela se assemelhe. Quanto às duas questões que eles acrescentam também ao fim, a saber, como a alma move o corpo se não é material, e como pode dele receber as espécies dos objetos corporais, somente me proporcionam aqui ocasião de advertir que nosso autor não teve razão quando, a pretexto de me opor objeções, propôs-me muitas questões semelhantes cuja solução não era necessária para a prova das coisas que escrevi e que os mais ignorantes podem formular mais objeções em um quarto de hora do que as que todos os mais sábios poderiam resolver durante toda a sua vida; razão pela qual não me dei ao trabalho de responder a nenhuma delas. E estas, entre outras, pressupõem a explicação da união existente entre o corpo e a alma, da qual ainda não tratei. Mas dir-vos-ei que toda a dificuldade nelas contida procede apenas de uma suposição que é falsa e que de modo algum pode ser provada, a saber, que, se a alma e o corpo são duas substâncias de natureza diversa, isto as impede de poder agir uma sobre a outra; pois, ao contrário, aqueles que admitem acidentes reais, como o calor, a gravidade e semelhantes, não duvidam que esses acidentes possam agir sobre o corpo; e todavia há mais diferença entre eles e o corpo, isto é, entre os acidentes e uma substância do que entre duas substâncias. De resto, já que estou com a pena na mão, notarei ainda aqui dois dos equívocos que encontrei neste livro de Instâncias, porque são aqueles que me parecem poder mais facilmente surpreender os leitores menos atentos; e desejo assim testemunhar-vos que, se aí tivesse encontrado algo mais que acreditasse merecer resposta, não o teria negligenciado. O primeiro encontra-se onde, no concernente ao que eu disse em certo lugar que, enquanto a alma duvida da existência de todas as coisas materiais, ela só se conhece precisamente, praecise tantum, como uma substância imaterial; e, sete ou oito linhas abaixo, para mostrar que por estas palavras, praecise tantum, não entendo de modo algum uma total exclusão ou negação, mas apenas uma abstração das coisas materiais, eu disse que, não obstante isso, não se estava seguro de que nada houvesse na alma que fosse corpóreo; embora nada se conheça a respeito disso, tratam-me tão injustamente a ponto de querer persuadir o leitor de que, dizendo praecise tantum, eu quis excluir o corpo e, assim, de que me contradisse, em seguida, afirmando que não o pretendia excluir. Nada respondo à acusação que me é feita a seguir, segundo a qual eu teria suposto algo na Meditação Sexta sem tê-lo provado anteriormente, cometendo assim um paralogismo; pois é fácil reconhecer a falsidade dessa acusação, que não é senão muito comum em todo este livro, e que poderia fazer-me suspeitar que seu autor não teria agido de boa-fé, se não conhecesse seu espírito e não acreditasse que foi ele o primeiro a ser surpreendido por uma crença tão falsa. O outro equívoco está onde ele pretende que distinguere e abstrahere sejam a mesma coisa; e todavia há uma grande diferença, pois distinguindo uma substância de seus acidentes deve-se considerar a ambos, o que é de muita utilidade para conhecê-la; ao passo que, se apenas separarmos por abstração essa substância de seus acidentes, isto é, se a consideramos sozinha sem pensar em seus acidentes, isto impede que a possamos conhecer tão bem, devido ao fato de ser pelos acidentes que se manifesta a natureza da substância. Eis, Senhor, tudo o que creio dever responder ao alentado livro das Instâncias; pois, embora satisfizesse talvez mais aos amigos do autor se refutasse todas as suas instâncias, uma após outra, creio que não satisfaria tanto aos meus, que teriam ocasião de me repreender por ter despendido tempo em uma coisa tão pouco necessária e por assim tornar senhores de meu lazer todos os que quisessem perder o seu em propor-me questões inúteis. Mas agradeço-vos pelos vossos cuidados. Adeus.