René Descartes – As Paixões da Alma PRIMEIRA PARTE DAS PAIXÕES EM GERAL E OCASIONALMENTE DE TODA A NATUREZA DO HOMEM Art. 1 O que é paixão em relação a um sujeito é sempre ação a qualquer outro respeito. Nada há em que melhor apareça quão defeituosas são as ciências que recebemos dos antigos do que naquilo que escreveram sobre as paixões; pois, embora seja esta uma matéria cujo conhecimento foi sempre muito procurado, e ainda que não pareça ser das mais difíceis, porquanto cada qual, sentindo-as em si próprio, não necessita tomar alhures qualquer observação para lhes descobrir a natureza, todavia o que os antigos delas ensinaram é tão pouco, e na maior parte tão pouco crível, que não posso alimentar qualquer esperança de me aproximar da verdade, senão distanciando-me dos caminhos que eles trilharam. Eis por que serei obrigado a escrever aqui do mesmo modo como se tratasse de uma matéria que ninguém antes de mim houvesse tocado; e, para começar, considero que tudo quanto se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos filósofos uma paixão em relação ao sujeito a quem acontece, e uma ação com respeito àquele que faz com que aconteça; de sorte que, embora o agente e o paciente sejam amiúde muito diferentes, a ação e a paixão não deixam de ser sempre uma mesma coisa com dois nomes, devido aos dois sujeitos diversos aos quais podemos relacioná-la. Art. 2 Que para conhecer as paixões da alma cumpre distinguir entre as suas funções e as do corpo. Depois, também considero que não notamos que haja algum sujeito que atue mais imediatamente contra nossa alma do que o corpo ao qual está unida, e que, por conseguinte, devemos pensar que aquilo que nela é uma paixão é comumente nele uma ação; de modo que não existe melhor caminho para chegar ao conhecimento de nossas paixões do que examinar a diferença que há entre a alma e o corpo, a fim de saber a qual dos dois se deve atribuir cada uma das funções existentes em nós. Art. 3 Que regra se deve seguir para esse efeito. E nisso não se encontrará grande dificuldade, se se tomar em conta que tudo o que sentimos existir em nós, e que vemos existir também nos corpos inteiramente inanimados, só deve ser atribuído ao nosso corpo; e, ao contrario, que tudo o que existe em nós, e que não concebemos de modo algum como passível de pertencer a um corpo, deve ser atribuído à nossa alma. Art. 4 Que o calor e o movimento dos membros procedem do corpo, e os pensamentos, da alma. Assim, por não concebermos que o corpo pense de alguma forma, temos razão de crer que toda espécie de pensamento em nós existente pertence à alma; e, por não duvidarmos de que haja corpos inanimados que podem mover-se de tantas diversas maneiras que as nossas, ou mais do que elas, e que possuem tanto ou mais calor (o que a experiência mostra na chama, que possui, ela só, muito mais calor e movimento do que qualquer de nossos membros), devemos crer que todo o calor e todos os movimentos em nós existentes, na medida em que não dependem do pensamento, pertencem apenas ao corpo. Art. 5 Que é erro acreditar que a alma dá o movimento e o calor ao corpo. Por esse meio, evitaremos um erro considerável em que muitos caíram, de sorte que o reputo a principal causa que até agora impediu que se pudessem explicar bem as paixões e as outras coisas pertencentes à alma. Consiste em ter-se imaginado, vendo-se que todos os corpos mortos são privados de calor e depois de movimento, que era a ausência da alma que fazia cessar esses movimentos e esse calor; e assim se julgou, sem razão, que o nosso calor natural e todos os movimentos de nossos corpos dependem da alma, ao passo que se devia pensar, ao contrário, que a alma só se ausenta, quando se morre, porque esse calor cessa, porque os órgãos que servem para mover o corpo se corrompem. Art. 6 Que diferença há entre um corpo vivo e um corpo morto. A fim de evitarmos, portanto, esse erro, consideremos que a morte nunca sobrevém por culpa da alma, mas somente porque alguma das principais partes do corpo se corrompe; e julguemos que o corpo de um homem vivo difere do de um morto como um relógio, ou outro autômato (isto é, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi instituído, com tudo o que se requer para a sua ação, difere do mesmo relógio, ou outra máquina, quando está quebrado e o princípio de seu movimento para de agir. Art. 7 Breve explicação das partes do corpo e de algumas de suas funções. Para tornar isso mais inteligível, explicarei, em poucas palavras, a forma toda de que se compõe a máquina de nosso corpo5. Não há quem já não saiba que existem em nós um coração, um cérebro, um estômago, músculos, nervos, artérias, veias e coisas semelhantes; sabe-se também que os alimentos ingeridos descem ao estômago e às tripas, de onde o seu suco, correndo para o fígado e para todas as veias, se mistura com o sangue que elas contêm, aumentando, por esse meio, a sua quantidade. Aqueles que ouviram falar, por pouco que seja da medicina sabem, além disso, como se compõe o coração e como todo o sangue das veias pode facilmente correr da veia cava para seu lado direito, e daí passar ao pulmão pelo vaso que denominamos veia arteriosa, depois retornar do pulmão ao lado esquerdo do coração pelo vaso denominado artéria venosa, e, enfim, passar daí para a grande artéria, cujos ramos se espalham pelo corpo inteiro. E mesmo todos os que não foram cegados inteiramente pela autoridade dos antigos, e que quiseram abrir os olhos para examinar a opinião de Harvey no tocante à circulação do sangue, não duvidam de que todas as veias e artérias do corpo sejam como regatos por onde o sangue não para de correr muito rapidamente, começando seu curso na cavidade direita do coração pela veia arteriosa, cujos ramos se espalham por todo o pulmão e se juntam aos da artéria venosa, pelo qual ele passa do pulmão ao lado esquerdo do coração; depois segue daí para a grande artéria, cujos ramos, esparsos pelo resto do corpo, se unem aos ramos da veia que levam de novo o mesmo sangue à cavidade direita do coração, de sorte que essas duas cavidades são como eclusas, através de cada uma das quais passa todo o sangue em cada volta que faz pelo corpo. Demais, sabe-se que todos os movimentos dos membros dependem dos músculos e que estes músculos se opõem uns aos outros, de tal modo que, quando um deles se encolhe, atrai para si a parte do corpo a que está ligado, o que provoca ao mesmo tempo o alongamento do músculo que lhe é oposto; depois, se acontece numa outra vez que este último se encolha, leva o primeiro a alongar-se e puxa para si a parte a que eles estão ligados. Enfim, sabe-se que todos esses movimentos dos músculos, assim como todos os sentidos, dependem dos nervos, que são como pequenos fios ou como pequenos tubos que procedem, todos, do cérebro, e contêm, como ele, certo ar ou vento muito sutil que chamamos espíritos animais. Art. 8 Qual é o princípio de todas essas funções. Mas não se sabe comumente de que forma esses espíritos animais e nervos contribuem para os movimentos e os sentidos, nem qual é o princípio corporal que os faz agir; eis por que, embora já tenha tratado algo do assunto em outros escritos, não deixarei de dizer aqui sucintamente que, enquanto vivemos, há um contínuo calor em nosso coração, que é uma espécie de fogo aí mantido pelo sangue das veias, e que esse fogo é o princípio corporal de todos os movimentos de nossos membros. Art. 9 Como se faz o movimento do coração. O seu primeiro efeito é dilatar o sangue que enche as cavidades do coração; e isso é causa de que esse sangue, tendo necessidade de ocupar maior espaço, passe com impetuosidade da cavidade direita para a veia arterial, e da esquerda para a grande artéria; depois, cessando essa dilatação, torne incontinenti a entrar da veia cava para a cavidade direita do coração, e da artéria venosa para a esquerda; pois há pequenas peles nas entradas desses quatro vasos, dispostas de tal modo que fazem com que o sangue não possa penetrar no coração senão pelas duas últimas, nem sair dele exceto pelas duas outras. O novo sangue que entra no coração é aí imediatamente rarefeito, do mesmo modo que o precedente; é só nisso que consiste a pulsação ou o batimento do coração e das artérias; de sorte que esse batimento se reitera tantas vezes quantas entra sangue novo no coração. É também só isso que dá ao sangue o seu movimento, e o faz correr, muito rápida e incessantemente, em todas as artérias e veias, mediante o que leva o calor que adquire no coração a todas as outras partes do corpo e lhes serve de alimento. Art. 10 Como se produzem no cérebro os espíritos animais. Mas o que há nisso de mais notável é que todas as partes mais vivas e mais sutis do sangue que o calor rarefez no coração entram incessantemente em grande quantidade nas cavidades do cérebro. E a causa que as conduz para aí, de preferência a qualquer outro lugar, é que todo sangue saído do coração pela grande artéria toma seu curso em linha reta para esse sítio, e que, não podendo entrar todo, porque o lugar possui apenas passagens muito estreitas, só passam as suas partes mais agitadas e mais sutis, enquanto o resto se espalha por todos os outros locais do corpo. Ora, tais partes do sangue muito sutis compõem os espíritos animais; e não precisam, para tal efeito, receber qualquer modificação no cérebro, exceto a de serem separadas das outras partes do sangue menos sutis; pois o que denomino aqui espíritos não são mais do que corpos e não têm qualquer outra propriedade, exceto a de serem corpos muito pequenos e se moverem muito depressa, assim como as partes da chama que sai de uma tocha; de sorte que não se detêm em nenhum lugar e, à medida que entram alguns nas cavidades do cérebro, também saem outros pelos poros existentes na sua substância, poros que os conduzem aos nervos e daí aos músculos, por meio dos quais movem o corpo em todas as diversas maneiras pelas quais esse pode ser movido. Art. 11 Como se fazem os movimentos dos músculos. Pois a única causa de todos os movimentos dos membros é que os músculos se encolhem e seus opostos se alongam, como já foi dito; e a única causa que faz um músculo encolher-se mais do que seu oposto é que recebe, por pouco que seja, mais espírito do cérebro do que o outro. Não que os espíritos que vêm imediatamente do cérebro bastem por si sós para moverem tais músculos, mas determinam os outros espíritos que já existem nesses dois músculos a saírem todos mui prontamente de um deles e a passarem ao outro; dessa maneira, aquele de onde saem torna-se mais longo e mais lasso e aquele no qual entram, sendo rapidamente inflado por eles, se encolhe e atrai o membro a ele ligado. E isso é fácil de conceber, desde que se saiba que pouquíssimos espíritos animais vêm continuamente do cérebro para cada músculo, mas que em cada um há sempre grande quantidade de outros encerrados no mesmo músculo que nele se movem muito depressa, às vezes girando apenas no lugar onde se acham, a saber, quando não encontram passagens abertas para sair, e às vezes correndo para o músculo oposto. Tanto mais que há pequenas aberturas em cada um desses músculos por onde tais espíritos podem correr de um para o outro e que estão de tal modo dispostas que — quando os espíritos vindos do cérebro para um deles possuem, por pouco que seja, mais força do que os que vão para o outro — abrem todas as entradas por onde os espíritos do outro músculo podem passar para ele e fecham, ao mesmo tempo, todas por onde os espíritos desse podem passar ao outro; dessa maneira, todos os espíritos antes contidos nesses dois músculos se reúnem num deles mui prontamente e assim o inflam e o encolhem, enquanto o outro se alonga e se distende. Art. 12 Como os objetos de fora atuam sobre os órgãos dos sentidos. Resta ainda saber as causas que levam os espíritos a não correrem sempre da mesma forma do cérebro para os músculos e a se dirigirem às vezes mais a uns do que a outros. Pois, afora a ação da alma, que é verdadeiramente em nós uma dessas causas, como direi mais abaixo, há ainda duas outras que não dependem senão do corpo e que é preciso observar. A primeira consiste na diversidade dos movimentos excitados nos órgãos dos sentidos por seus objetos, a qual já foi por mim assaz amplamente explicada na Dióptrica; mas, para que os que virem o presente escrito não tenham necessidade de ler outros, repetirei aqui que há três coisas a considerar nos nervos, a saber: a sua medula, ou substância interior, que se estende na forma de pequenos filetes a partir do cérebro, onde toma origem, até as extremidades dos outros membros aos quais esses filetes estão ligados; depois as peles que os envolvem e que, sendo contíguas com as que envolvem o cérebro, compõem pequenos condutos em que ficam encerrados esses pequenos filetes; depois, enfim, os espíritos animais que, levados por esses mesmos condutos do cérebro até os músculos, são a causa de tais filetes permanecerem aí inteiramente livres e estendidos, de tal modo que a menor coisa que mova a parte do corpo à qual se liga a extremidade de algum deles leva a mover, pelo mesmo meio, a parte do cérebro de onde vem, tal como ao se puxar uma das pontas de uma corda move-se a outra. Art. 13 Que esta ação dos objetos de fora pode conduzir diversamente os espíritos aos músculos. Expliquei também na Dióptrica como todos os objetos da visão comunicam-se conosco apenas porque movem localmente, por intermédio dos corpos transparentes que existem entre eles e nós, os pequenos filetes dos nervos ópticos que se acham no fundo de nossos olhos, e em seguida os lugares do cérebro de onde provêm esses nervos; que os movem, digo eu, de tantas maneiras diversas que nos fazem ver diversidades nas coisas, e que não são imediatamente os movimentos que se efetuam no olho, mas sim os que se efetuam no cérebro, que representam para a alma esses objetos. A exemplo disso, é fácil conceber que os sons, os odores, os sabores, o calor, a dor, a fome, a sede e, em geral, todos os objetos, tanto dos nossos demais sentidos externos como dos nossos apetites internos, excitam também alguns movimentos em nossos nervos, que se transmitem por meio deles até o cérebro; e além de esses diversos movimentos do cérebro fazerem com que a alma tenha diversos sentimentos, podem também fazer, sem ela, que os espíritos sigam mais para certos músculos do que para outros, e, assim, que movam nossos membros, o que provarei aqui somente através de um exemplo. Se alguém avança rapidamente a mão contra os nossos olhos, como para nos bater, embora saibamos tratar-se de nosso amigo, que faz isso só por brincadeira e tomará muito cuida do para não nos causar nenhum mal, temos todavia muita dificuldade em impedir que se fechem; isso mostra que não é por intermédio de nossa alma que eles se fecham, pois é contra a nossa vontade, a qual é, se não a única, ao menos a sua principal ação; assim porque a máquina de nosso corpo é de tal modo composta que o movimento dessa mão contra os nossos olhos excita outro movimento em nosso cérebro, o qual conduz aos músculos os espíritos animais que fazem baixar as pálpebras. Art. 14 Que a diversidade existente entre os espíritos também pode diversificar-lhes o curso. A outra causa que serve para conduzir diversamente os espíritos animais aos músculos é a agitação desigual desses espíritos e a diversidade de suas partes. Pois, quando algumas de suas partes são mais grossas e mais agitadas do que as outras, passam mais à frente em linha reta nas cavidades e nos poros do cérebro, e por esse meio são levadas a músculos diferentes daqueles para onde iriam se tivessem menos força. Art. 15 Quais são as causas de sua diversidade. E essa desigualdade pode proceder das diversas matérias de que se compõem, como se vê nos que beberam muito vinho cujos vapores, entrando prontamente no sangue, sobem do coração ao cérebro, onde se convertem em espíritos que, sendo mais fortes e mais abundantes do que aqueles que aí se encontram comumente, são capazes de mover o corpo de muitas maneiras estranhas. Esta desigualdade dos espíritos pode também proceder das diversas disposições do coração, do fígado, do estômago, do baço e de todas as outras partes que contribuem para a sua produção; pois cumpre principalmente observar aqui certos pequenos nervos insertos na base do coração, que servem para alargar e estreitar as entradas dessas concavidades, por meio do que o sangue, dilatando-se nelas mais ou menos fortemente, produz espíritos diversamente dispostos. É preciso notar também que, embora o sangue que penetra no coração provenha de todos os outros lugares do corpo, todavia acontece muitas vezes ser ele impelido mais de certas partes do que de outras, porque os nervos e os músculos que respondem a essas partes o pressionam ou agitam mais, e porque, conforme a diversidade das partes de onde vem mais, dilata-se diversamente no coração, e em seguida produz espíritos dotados de qualidades diferentes. Assim, por exemplo, o que provém da parte inferior do fígado, onde está o fel, dilata-se no coração de maneira diferente da do sangue oriundo do baço, e este de modo diferente do proveniente das veias dos braços ou das pernas, e enfim este diferentemente do suco dos alimentos, quando, tendo de novo saído do estômago e dos intestinos, passa rapidamente pelo fígado até o coração. Art. 16 Como todos os membros podem ser movidos pelos objetos dos sentidos e pelos espíritos sem a ajuda da alma. Enfim, é preciso notar que a máquina de nosso corpo é de tal modo composta que todas as mudanças que ocorrem no movimento dos espíritos podem levá-los a abrir alguns poros do cérebro mais do que outros, e reciprocamente que, quando algum desses poros está pouco mais ou menos aberto que de costume pela ação dos nervos que servem aos sentidos, isso altera algo no movimento dos espíritos e determina que sejam conduzidos aos músculos destinados a mover o corpo da forma como ele é comumente movido por ocasião de tal ação; de sorte que todos os movimentos que fazemos sem que para isso a nossa vontade contribua (como acontece muitas vezes quando respiramos, andamos, comemos e, enfim, quando praticamos todas as ações que são comuns a nós e aos animais) não dependem senão da conformação de nossos membros e do curso que os espíritos, excitados pelo calor do coração, seguem naturalmente no cérebro, nos nervos e nos músculos, tal como o movimento de um relógio é produzido para exclusiva força de sua mola e pela forma de suas rodas. Art. 17 Quais são as funções da alma. Depois de ter assim considerado todas as funções que pertencem somente ao corpo, é fácil reconhecer que nada resta em nós que devemos atribuir à nossa alma, exceto nossos pensamentos, que são principalmente de dois gêneros, a saber: uns são as ações da alma, outros as suas paixões. Aquelas que chamam suas ações são todas as nossas vontades, porque sentimos que vêm diretamente da alma e parecem depender apenas dela; do mesmo modo, ao contrário, pode-se em geral chamar suas paixões toda espécie de percepções ou conhecimentos existentes em nós, porque muitas vezes não é nossa alma que os faz tais como são, e porque sempre os recebe das coisas por elas representadas. Art. 18 Da vontade. Nossas vontades são, novamente, de duas espécies; pois umas são ações da alma que terminam na própria alma, como quando queremos amar a Deus ou, em geral, aplicar nosso pensamento a qualquer objeto que não é material; as outras são ações que terminam em nosso corpo, como quando, pelo simples fato de termos vontade de passear, resulta que nossas pernas se mexam e nós caminhemos. Art. 19 Da percepção. Nossas percepções também são de duas espécies: umas têm a alma como causa, outras o corpo. As que têm a alma como causa são as percepções de nossas vontades e de todas as imaginações ou outros pensamentos que dela dependem; pois é certo que não poderíamos querer qualquer coisa que não percebêssemos pelo mesmo meio que a queremos; e, embora com respeito à nossa alma seja uma ação o querer alguma coisa, pode-se dizer que é também nela uma paixão o perceber que ela quer; todavia, dado que essa percepção e essa vontade são efetivamente uma mesma coisa, a sua denominação faz-se sempre pelo que é mais nobre, e por isso não se costuma chamá-la paixão, mas apenas ação. Art. 20 Das imaginações e outros pensamentos que são formados pela alma. Quando nossa alma se aplica a imaginar alguma coisa que não existe, como a representar um palácio encantado ou uma quimera, e também quando se aplica a considerar algo que é somente inteligível e não imaginável, por exemplo a sua própria natureza, as percepções que tem dessas coisas dependem principalmente da vontade que a leva a percebê-las; eis por que se costuma considerá-las como ações mais do que como paixões. Art. 21 Das imaginações que só têm por causa o corpo. Entre as percepções que são causadas pelo corpo, a maior parte depende dos nervos; mas há também algumas que deles não dependem, e que se chamam imaginações, como essas de que acabo de falar, das quais, não obstante, diferem pelo fato de nossa vontade não se empenhar em formá-las, o que faz com que não possam ser incluídas no número das ações da alma, e procedam apenas de que, sendo os espíritos diversamente agitados, e encontrando os traços de diversas impressões que precederam no cérebro, tomem aí seu curso fortuitamente por certos poros mais do que por outros. Tais são as ilusões de nossos sonhos e também os devaneios a que nos entregamos muitas vezes estando despertos, quando nosso pensamento erra negligentemente sem se aplicar por si mesmo a nada. Ora, ainda que algumas dessas imaginações sejam paixões da alma, tomando a palavra na sua mais própria e mais perfeita significação, e ainda que possam ser todas assim denominadas, se se tomar o termo em uma acepção mais geral, todavia, posto que não tenha uma causa tão notável e tão determinada como as percepções que a alma recebe por intermédio dos nervos, e parecem ser apenas a sombra e a pintura destas, antes que as possamos distinguir bem cumpre considerar a diferença que há entre estas outras. Art. 22 Da diferença que existe entre as outras percepções. Todas as percepções que ainda não expliquei vêm à alma por intermédio dos nervos, e existe entre elas essa diferença pelo fato de relacionarmos umas aos objetos de fora, que ferem nossos sentidos, e as outras ao nosso corpo ou a algumas de suas partes, e outras enfim à nossa alma. Art. 23 Das percepções que relacionamos com os objetos que existem fora de nós. As que referimos a coisas situadas fora de nós, a saber, aos objetos de nossos sentidos, são causadas, ao menos quando nossa opinião não é falsa, por esses objetos que, provocando alguns movimentos nos órgãos dos sentidos externos, os provocam também no cérebro por intermédio dos nervos, os quais levam a alma a senti-los. Assim, quando vemos a luz de um facho e ouvimos o som de um sino, esse som e essa luz são duas ações diversas que, somente por excitarem dois movimentos diversos em alguns de nossos nervos, e por meio deles no cérebro, dão à alma dois sentimentos diferentes, os quais relacionamos de tal modo aos objetos que supomos serem sua causa, que pensamos ver o próprio facho e ouvir o sino, e não sentir unicamente movimentos que procedem deles. Art. 24 Das percepções que relacionamos com o nosso corpo. As percepções que relacionamos com o nosso corpo ou com qualquer de suas partes são as que temos da fome, da sede e de nossos demais apetites naturais, aos quais podemos juntar a dor, o calor e as outras afecções que sentimos como nos nossos membros, e não como nos objetos que existem fora de nós: assim, podemos sentir ao mesmo tempo, e por intermédio dos mesmos nervos, a frieza da nossa mão e o calor da chama de que ela se aproxima, ou então, ao contrário, o calor da mão e o frio do ar a que está exposta, sem que haja qualquer diferença entre as ações que nos fazem sentir o quente ou o frio que existe em nossa mão e as que nos fazem sentir aquele que está fora de nós, a não ser que, sucedendo uma dessas ações à outra, julguemos que a primeira já existe em nós e que a outra, a seguinte, não está ainda em nós, mas no objeto que a causa. Art. 25 Das percepções que relacionamos com a nossa alma. As percepções que se referem somente à alma são aquelas cujos efeitos se sentem como na alma mesma e de que não se conhece comumente nenhuma causa próxima à qual possamos relacioná-las: tais são os sentimentos de alegria, de cólera e outros semelhantes, que são às vezes excitados em nós pelos objetos que movem nossos nervos, e outras vezes também por outras causas. Ora, ainda que todas as nossas percepções, tanto as que se referem aos objetos que estão fora de nós como as que se referem às diversas afecções de nosso corpo, sejam verdadeiramente paixões com respeito à nossa alma, quando tomamos esse termo em sua significação mais geral, todavia costuma-se restringi-lo a fim de significar somente as que se relacionam com a própria alma, e apenas essas últimas é que me propus explicar aqui sob o nome de paixões da alma. Art. 26 Que as imaginações que dependem apenas do movimento fortuito dos espíritos podem ser também paixões tão verdadeiras quanto às percepções que dependem dos nervos. Resta notar aqui que exatamente as mesmas coisas que a alma percebe por intermédio dos nervos lhe podem ser também representadas pelo curso fortuito dos espíritos, sem que haja outra diferença exceto que as impressões vindas ao cérebro por meio dos nervos costumam ser mais vivas e mais expressas do que as excitadas nele pelos espíritos; o que me levou a dizer no art. 21 que as últimas são como a sombra e a pintura das outras. É preciso também notar que ocorre algumas vezes ser essa pintura tão semelhante à coisa representada, que podemos enganar-nos no tocante às percepções que se relacionam aos objetos fora de nós, ou então quanto às que se relacionam a algumas partes de nosso corpo, mas não podemos equivocar-nos do mesmo modo no tocante às paixões, porquanto são tão próximas e tão interiores à nossa alma que lhe é impossível senti-las sem que sejam verdadeiramente tais como ela as sente. Assim, muitas vezes quando dormimos, e mesmo algumas vezes estando acordados, imaginamos tão fortemente certas coisas que pensamos vê-las diante de nós, ou senti-las no corpo, embora aí não estejam de modo algum; mas, ainda que estejamos adormecidos e sonhemos, não podemos sentir-nos tristes ou comovidos por qualquer outra paixão, sem que na verdade a alma tenha em si esta paixão. Art. 27 A definição das paixões da alma. Depois de haver considerado no que as paixões da alma diferem de todos os seus outros pensamentos, parece-me que podemos em geral defini-las por percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que referimos particularmente a ela, e que são causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos. Art. 28 Explicação da primeira parte dessa definição. Podemos chamá-las percepções quando nos servimos em geral desse termo para significar todos os pensamentos que não constituem ações da alma ou vontades, mas não quando o empregamos apenas para significar conhecimentos evidentes; pois a experiência mostra que os mais agitados por suas paixões não são aqueles que melhor as conhecem, e que elas pertencem ao rol das percepções que a estreita aliança entre a alma e o corpo torna confusas e obscuras. Podemos também chamá-las sentimentos, porque são recebidas na alma do mesmo modo que os objetos dos sentidos exteriores, e não são de outra maneira conhecidos por ela; mas podemos chamá-las melhor ainda emoções da alma, não só porque esse nome pode ser atribuído a todas as mudanças que nela sobrevêm, isto é, a todos os diversos pensamentos que lhe ocorrem, mas particularmente porque, de todas as espécies de pensamentos que ela pode ter, não há outros que a agitem e a abalem tão fortemente como essas paixões. Art. 29 Explicações de sua outra parte. Acrescento que elas se relacionam particularmente com a alma, para distingui-las dos outros sentimentos que referimos, uns aos objetos exteriores, como os odores, os sons, as cores, e os outros ao nosso corpo, como a fome, a sede, a dor. Acrescento, igualmente, que são causadas, sustentadas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos, a fim de distingui-las de nossas vontades, que podemos denominar emoções da alma que se relacionam com ela, mas que são causadas por ela própria, e também a fim de explicar sua derradeira e mais próxima causa, que as distingue novamente dos outros sentimentos. Art. 30 Que a alma está unida a todas as partes do corpo conjuntamente. Mas, para compreender mais perfeitamente todas essas coisas, é necessário saber que a alma está verdadeiramente unida ao corpo todo, e que não se pode propriamente dizer que ela esteja em qualquer de suas partes com exclusão de outras, porque o corpo é uno e de alguma forma indivisível, em virtude da disposição de seus órgãos, que se relacionam de tal modo uns com os outros que, quando algum deles é retirado, isso torna o corpo todo defeituoso; e porque ela é de uma natureza que não tem qualquer relação com a extensão nem com as dimensões ou outras propriedades da matéria de que o corpo se compõe, mas apenas com o conjunto dos seus órgãos, como transparece pelo fato de não podermos de maneira alguma conceber a metade ou um terço de uma alma, nem qual extensão ocupa, e por não se tornar ela menor ao se cortar qualquer parte do corpo, mas separar-se inteiramente dele quando se dissolve o conjunto de seus órgãos. Art. 31 Que há uma pequena glândula no cérebro, na qual a alma exerce suas funções mais particularmente do que nas outras partes. É necessário também saber que, embora a alma esteja unida a todo o corpo, não obstante há nele alguma parte em que ela exerce suas funções mais particularmente do que em todas as outras; e crê-se comumente que esta parte é o cérebro, ou talvez o coração: o cérebro, porque é com ele que se relacionam os órgãos dos sentidos; e o coração, porque é nele que parece sentirem-se as paixões. Mas, examinando o caso com cuidado, parece-me ter reconhecido com evidência que a parte do corpo em que a alma exerce imediatamente suas funções não é de modo algum o coração, nem o cérebro todo, mas somente a mais interior de suas partes, que é certa glândula muito pequena, situada no meio de sua substância, e de tal modo suspensa por cima do conduto por onde os espíritos de suas cavidades anteriores mantêm comunicação com os da posterior, que os menores movimentos que nela existem podem contribuir muito para modificar o curso desses espíritos, e, reciprocamente, as menores modificações que sobrevêm ao curso dos espíritos podem contribuir muito para alterar os movimentos dessa glândula. Art. 32 Como se conhece que essa glândula é a principal sede da alma. A razão que me persuade de que a alma não pode ter, em todo o corpo, nenhum outro lugar, exceto essa glândula, onde exerce imediatamente suas funções é que considero que as outras partes do nosso cérebro são todas duplas, assim como tempos dois olhos, duas mãos, duas orelhas, e enfim todos os órgãos de nossos sentidos externos são duplos; e que, dado que não temos senão um único e simples pensamento de uma mesma coisa ao mesmo tempo, cumpre necessariamente que haja algum lugar aonde as duas imagens que nos vêm pelos dois olhos, onde as duas outras impressões que recebemos de um só objeto pelos duplos órgãos dos outros sentidos, se possam reunir em uma antes que cheguem à alma, a fim de que não lhe representem dois objetos em vez de um só. E pode-se conceber facilmente que essas imagens ou outras impressões se reúnem nessa glândula, por intermédio dos espíritos que preenchem as cavidades do cérebro, mas não há qualquer outro local no corpo onde possam assim unir-se, senão depois de reunidas nessa glândula. Art. 33 Que a sede das paixões não fica no coração. Quanto à opinião dos que pensam que a alma recebe as suas paixões no coração, não pode ser de modo algum considerável, pois se funda apenas no fato de que as paixões nos fazem sentir aí alguma alteração; e é fácil notar que essa alteração só é sentida, como que no coração, por intermédio de um pequeno nervo que desce do cérebro para ele, assim como a dor é sentida como que no pé, por intermédio dos nervos do pé, e os astros são percebidos como que no céu por intermédio de sua luz e dos nervos ópticos; de sorte que não é mais necessário que nossa alma exerça imediatamente as suas funções no coração para nele sentir as suas paixões do que é necessário que ela esteja no céu para nele ver os astros. Art. 34 Como agem a alma e o corpo um contra o outro. Concebamos, pois, que a alma tem a sua sede principal na pequena glândula que existe no meio do cérebro, de onde irradia para todo o resto do corpo, por intermédio dos espíritos, dos nervos e mesmo do sangue, que, participando das impressões dos espíritos, podem levá-los pelas artérias a todos os membros; e, lembrando-nos do que já foi dito acima com respeito à máquina de nosso corpo, a saber, que os pequenos filetes de nossos nervos acham-se de tal modo distribuídos em todas as suas partes que, por ocasião dos diversos movimentos aí provocados pelos objetos sensíveis, abrem diversamente os poros do cérebro, o que faz com que os espíritos animais contidos nessas cavidades entrem diversamente nos músculos, por meio do que podem mover os membros de todas as diversas maneiras que esses são capazes de ser movidos, e também que todas as outras causas que podem mover diversamente os espíritos bastam para conduzi-los a diversos músculos; juntemos aqui que a pequena glândula, que é a principal sede da alma, está de tal forma suspensa entre as cavidades que contêm esses espíritos que pode ser movida por eles de tantos modos diversos quantas as diversidades sensíveis nos objetos; mas que pode também ser diversamente movida pela alma, a qual é de tal natureza que recebe em si tantas impressões diversas, isto é, que ela tem tantas percepções diversas quantos diferentes movimentos sobrevêm nessa glândula; como também, reciprocamente, a máquina do corpo é de tal forma composta que, pelo simples fato de ser essa glândula diversamente movida pela alma ou por qualquer outra causa que possa existir, impele os espíritos animais que a circundam para os poros do cérebro, que os conduzem pelos nervos aos músculos, mediante o que ela os leva a mover os membros. Art. 35 Exemplo da maneira como as impressões dos objetos se unem na glândula que fica no meio do cérebro. Assim, por exemplo, se vemos algum animal vir em nossa direção, a luz refletida de seu corpo pinta duas imagens dele, uma em cada um de nossos olhos, e essas duas imagens formam duas outras, por intermédio dos nervos ópticos, na superfície interior do cérebro defronte às suas concavidades; daí, em seguida, por intermédio dos espíritos que enchem suas cavidades, essas imagens irradiam de tal sorte para a pequena glândula envolvida por esses espíritos, que o movimento componente de cada ponto de uma das imagens tende para o mesmo ponto da glândula para o qual tende o movimento que forma o ponto da outra imagem, a qual representa a mesma parte desse animal, por meio do que as duas imagens existentes no cérebro compõem apenas uma única na glândula, que, agindo imediatamente contra a alma, lhe faz ver a figura desse animal. Art. 36 Exemplo da maneira como as paixões são excitadas na alma. E, além disso, se essa figura é muito estranha e muito apavorante, isto é, se ela tem muita relação com as coisas que foram anteriormente nocivas ao corpo, isto excita na alma a paixão do medo e, em seguida, a da ousadia, ou então a do temor e a do terror, conforme o diverso temperamento do corpo ou a força da alma, e conforme nos tenhamos precedentemente garantido pela defesa ou pela fuga contra as coisas prejudiciais com as quais se relaciona a presente impressão; pois isso dispõe o cérebro de tal modo, em certos homens, que os espíritos refletidos da imagem assim formada na glândula seguem, daí, parte para os nervos que servem para voltar as costas e mexer as pernas para a fuga, e parte para os que alargam ou encolhem de tal modo os orifícios do coração, ou então que agitam de tal maneira as outras partes de onde o sangue lhe é enviado, que este sangue, rarefazendo-se aí de forma diferente da comum, envia espíritos ao cérebro que são próprios para manter e fortificar a paixão do medo, isto é, que são próprios para manter abertos ou então abrir de novo os poros do cérebro que os conduzem aos mesmos nervos; pois, pelo simples fato de esses espíritos entrarem nesses poros, excitam um movimento particular nessa glândula, o qual é instituído pela natureza para fazer sentir à alma essa paixão, e, como esses poros se relacionam principalmente com os pequenos nervos que servem para apertar ou alargar os orifícios do coração, isso faz que a alma a sinta principalmente como que no coração. Art. 37 Como todas parecem causadas por qualquer movimento dos espíritos. E como acontece coisa semelhante com todas as outras paixões, a saber, que são principalmente causadas pelos espíritos que estão contidos nas cavidades do cérebro, enquanto tomam seu curso para os nervos que servem para alargar ou estreitar os orifícios do coração, ou para impelir diversamente em sua direção o sangue que se encontra nas outras partes, ou, de qualquer outra maneira que seja, para sustentar a mesma paixão, pode-se claramente compreender, de tudo isso, por que afirmei acima, ao defini-las, que são causadas por algum movimento particular dos espíritos. Art. 38 Exemplo dos movimentos do corpo que acompanham as paixões e não dependem da alma. De resto, assim como o curso seguido por esses espíritos para os nervos do coração basta para imprimir movimento à glândula pela qual o medo é posto na alma, do mesmo modo, pelo simples fato de alguns espíritos irem ao mesmo tempo para os nervos que servem para mexer as pernas na fuga, causam eles outro movimento na mesma glândula por meio do qual a alma sente e percebe tal fuga, que dessa forma pode ser excitada no corpo pela simples disposição dos órgãos e sem que a alma para tanto contribua. Art. 39 Como a mesma causa pode excitar diversas paixões em diversos homens. A mesma impressão que exerce sobre a glândula a presença de um objeto pavoroso, e que causa o medo em alguns homens, pode excitar, em outros, a coragem e a audácia, isto porque nem todos os cérebros estão dispostos da mesma maneira, e o mesmo movimento da glândula que em alguns excita o medo faz com que, em outros, os espíritos entrem nos poros do cérebro que os conduzem, parte aos nervos que servem para mexer as mãos na defesa e parte nos que agitam e impelem o sangue ao coração, da maneira requerida a produzir espíritos próprios para continuar esta defesa e manter a vontade de prossegui-la. Art. 40 Qual é o principal efeito das paixões. Pois cumpre notar que o principal efeito de todas as paixões nos homens é que incitam e dispõem a sua alma a querer as coisas para as quais elas lhes preparam os corpos; de sorte que o sentimento de medo incita a fugir, o da audácia a querer combater e assim por diante. Art. 41 Qual é o poder da alma com respeito ao corpo. Mas a vontade é, por natureza, de tal modo livre que nunca pode ser compelida; e, das duas espécies de pensamentos que distingui na alma, das quais uns são suas ações, isto é, suas vontades, e os outros as suas paixões, tomando-se esta palavra em sua significação mais geral, que compreende todas as espécies de percepções, os primeiros estão absolutamente em seu poder e só indiretamente o corpo pode modificá-los, assim como, ao contrário, os últimos dependem absolutamente das ações que os produzem, e a alma só pode modificá-los indiretamente, exceto quando ela própria é sua causa. E toda a ação da alma consiste em que, simplesmente por querer alguma coisa, leva a pequena glândula, à qual está estreitamente unida, a mover-se da maneira necessária a fim de produzir o efeito que se relaciona com esta vontade. Art. 42 Como encontramos em nossa memória as coisas de que nos queremos lembrar. Assim, quando a alma quer lembrar-se de algo, essa vontade faz com que a glândula, inclinando-se sucessivamente para diversos lados, impila os espíritos para diversos lugares do cérebro, até que encontrem aquele onde estão os traços deixados pelo objeto de que queremos nos lembrar; pois esses traços não são outra coisa senão os poros do cérebro, por onde os espíritos tomaram anteriormente seu curso devido à presença desse objeto, e adquiriram, assim, maior facilidade que os outros, para serem de novo abertos da mesma maneira pelos espíritos que para eles se dirigem; de sorte que tais espíritos, encontrando esses poros, entram neles mais facilmente do que nos outros, excitando, por esse meio, um movimento particular na glândula, que representa à alma o mesmo objeto e lhe faz saber que se trata daquele do qual queria lembrar-se. Art. 43 Como a alma pode imaginar estar atenta e mover o corpo. Assim, quando se quer imaginar algo que nunca se viu, essa vontade tem o poder de levar a glândula a mover-se da maneira necessária para impelir os espíritos aos poros do cérebro por cuja abertura essa coisa pode ser representada; assim, quando se pretende fixar a atenção para considerar por algum tempo um mesmo objeto, tal vontade retém a glândula, durante esse tempo, inclinada para um mesmo lado; assim, enfim, quando se quer andar ou mover o próprio corpo de alguma maneira, essa vontade faz com que a glândula impila os espíritos para os músculos que servem para tal efeito. Art. 44 Que cada vontade é naturalmente unida a algum movimento da glândula; mas que, por engenho ou por hábito, se pode uni-la a outros. Todavia, nem sempre é a vontade de provocar em nós algum movimento ou algum outro efeito que pode levar-nos a excitá-lo; mas isso muda conforme a natureza ou o hábito tenham diversamente unido cada movimento da glândula a cada pensamento. Assim, por exemplo, se se quer dispor os olhos para olhar um objeto muito distanciado, essa vontade faz com que a pupila se dilate; e se se quer dispô-los a olhar um objeto muito próximo, essa vontade faz com que a pupila se contraia; mas se se pensa apenas em alargar a pupila, em vão teremos tal vontade, pois nem por isso conseguiremos alargá-la, já que a natureza não uniu o movimento da glândula que serve para impelir os espíritos ao nervo óptico da maneira necessária a dilatar ou a contrair a pupila com a vontade de dilatar ou contrair, mas antes com a de olhar objetos afastados ou próximos. E quando, ao falar, pensamos apenas no sentido do que queremos dizer, isto faz com que mexamos a língua e os lábios muito mais rapidamente e muito melhor do que se pensássemos em mexê-los de todas as formas necessárias para proferir as mesmas palavras, dado que o hábito que adquirimos de aprender a falar fez com que juntássemos a ação da alma, que, por intermédio da glândula, pode mover a língua e os lábios, mais com a significação das palavras que resultam desses movimentos do que com os próprios movimentos. Art. 45 Qual é o poder da alma com respeito às suas paixões. Nossas paixões também não podem ser diretamente excitadas nem suprimidas pela ação de nossa vontade, mas podem sê-lo, indiretamente, pela representação das coisas que costumam estar unidas às paixões que queremos ter, e que são contrárias às que queremos rejeitar. Assim, para excitarmos em nós a audácia e suprimirmos o medo, não basta ter a vontade de fazê-lo, mas é preciso aplicar-nos a considerar as razões, os objetos ou os exemplos que persuadem de que o perigo não é grande; de que há sempre mais segurança na defesa do que na fuga; de que teremos a glória e a alegria de havermos vencido, ao passo que não podemos esperar da fuga senão o pesar e a vergonha de termos fugido, e coisas semelhantes. Art. 46 Qual é a razão que impede a alma de dispor inteiramente de suas paixões. Há uma razão particular que impede a alma de poder alterar ou estancar rapidamente suas paixões, a qual me deu motivo de pôr mais acima, em sua definição, que elas não são apenas causadas, mas também mantidas e fortalecidas por algum movimento particular dos espíritos. Esta razão é que elas são quase todas acompanhadas de alguma emoção que se produz no coração, e, por conseguinte, também em todo o sangue e nos espíritos, de modo que, enquanto essa emoção não cessar, elas continuam presentes em nosso pensamento da mesma maneira que os objetos sensíveis aí permanecem presentes, enquanto agem contra os órgãos de nossos sentidos. E como a alma, tornando-se muito atenta a qualquer outra coisa, pode impedir-se de ouvir um pequeno ruído ou de sentir uma pequena dor, mas não pode impedir-se, do mesmo modo, de ouvir o trovão ou de sentir o fogo que queima a mão, assim pode sobrepujar facilmente as paixões menores, mas não as mais violentas e as mais fortes, a não ser depois que se apaziguou a emoção do sangue e dos espíritos. O máximo que pode fazer a vontade, enquanto essa emoção está em vigor, é não consentir em seus efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente retê-la; se o medo incita as pessoas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim por diante. Art. 47 Em que consistem os combates que se costuma imaginar entre a parte inferior e a superior da alma. E tão somente na repugnância que existe entre os movimentos que o corpo por seus espíritos e a alma por sua vontade tendem a excitar ao mesmo tempo na glândula é que consistem todos os combates que se costuma imaginar entre a parte inferior da alma, denominada sensitiva, e a superior, que é racional, ou então entre os apetites naturais e a vontade; pois não há em nós senão uma alma, e esta alma não tem em si nenhuma diversidade de partes: a mesma que é sensitiva é racional e todos os seus apetites são suas vontades. O erro que se cometeu em fazê-la desempenhar diversas personagens que são comumente contrárias umas às outras provém apenas de não se haver distinguido bem suas funções das do corpo, ao qual unicamente se deve atribuir tudo quanto pode ser advertido em nós que repugne a nossa razão; de modo que não há nisso outro combate exceto que, como a pequena glândula que fica no meio do cérebro pode ser impelida, de um lado, pela alma, e, de outro, pelos espíritos animais, que são apenas corpos, como já disse acima, acontece às vezes que esses dois impulsos sejam contrários e que o mais forte impeça o efeito do outro. Ora, podemos distinguir duas espécies de movimentos excitados pelos espíritos na glândula: uns representam à alma os objetos que movem os sentidos, ou as impressões que se encontram no cérebro e não efetuam qualquer esforço sobre a vontade; outros efetuam algum esforço sobre ela, a saber, os que causam as paixões ou os movimentos dos corpos que as acompanham; e, quanto aos primeiros, embora impeçam amiúde as ações da alma, ou sejam impedidos por ela, todavia, por não serem diretamente contrários, não se verifica neles nenhum combate. Só os observamos entre os últimos e as vontades que lhes repugnam: por exemplo, entre o esforço com que os espíritos impelem a glândula a causar na alma o desejo de alguma coisa e aquele com que a alma a repele, pela vontade que tem de fugir da mesma coisa; e o que faz principalmente surgir esse combate é que, não tendo a vontade o poder de excitar diretamente as paixões, como já foi dito, é obrigada a usar de engenho e aplicar-se a considerar sucessivamente diversas coisas, das quais, se acontece que uma tenha a força de modificar por um momento o curso dos espíritos, pode acontecer que a seguinte não a tenha e que os espíritos retomem o curso logo depois, porque a disposição precedente nos nervos, no coração e no sangue não mudou, o que leva a alma a sentir-se impelida quase ao mesmo tempo a desejar e a não desejar uma mesma coisa; e daí é que se teve ocasião de imaginar nela duas potências que se combatem. Todavia, ainda se pode conceber algum combate, pelo fato de muitas vezes a mesma causa que excita na alma alguma paixão excitar também certos movimentos no corpo, para os quais a alma em nada contribui, e os quais detém ou procura deter tão logo os apercebe, como sentimos quando aquilo que excita o medo faz também com que os espíritos entrem nos músculos que servem para mexer as pernas na fuga, e com que sejam sustados pela vontade que temos de ser audazes. Art. 48 Em que se conhece a força ou a fraqueza das almas, e qual é o mal das mais fracas. Ora, é pela sorte desses combates que cada qual pode conhecer a força ou a fraqueza de sua alma; pois aqueles em quem a vontade pode, naturalmente, com maior facilidade, vencer as paixões e sustar os movimentos do corpo que os acompanham têm, sem dúvida, as almas mais fortes; mas há os que não podem comprovar a própria força porque nunca levam a combate a sua vontade juntamente com suas armas próprias, mas apenas com as que lhes fornecem algumas paixões para resistir a algumas outras. O que denomino as armas próprias são juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal, consoante os quais ela resolveu conduzir as ações de sua vida; e as almas mais fracas de todas são aquelas cuja vontade não se decide assim a seguir certos juízos, mas se deixa arrastar continuamente pelas paixões presentes, as quais, sendo muitas vezes contrárias umas às outras, a puxam, ora umas, ora outras, para seu partido e, empregando-a para combater contra si mesma, põem a alma no estado mais deplorável possível. Assim, quando o medo representa a morte como um extremo mal, que só pode ser evitado pela fuga, se a ambição, de outro lado, representa a infâmia dessa fuga como um mal pior que a morte, essas duas paixões agitam diversamente a vontade, que, obedecendo ora a uma, ora a outra, se opõe continuamente a si própria, e assim torna a alma escrava e infeliz. Art. 49 Que a força da alma não basta sem o conhecimento da verdade. Na verdade, há pouquíssimos homens tão fracos e irresolutos que nada queiram senão o que suas paixões lhes ditam. A maioria tem juízos determinados, segundo os quais regula parte de suas ações; e, embora muitas vezes tais juízos sejam falsos e fundados mesmo em algumas paixões pelas quais a vontade se deixou anteriormente vencer ou seduzir, todavia, como ela continua seguindo-os quando a paixão que os causou está ausente, podemos considerá-los como suas armas próprias, e pensar que as almas são mais fortes ou mais fracas em virtude de poderem seguir mais ou menos esses juízos e resistir às paixões presentes que lhes são contrárias. Mas há, entretanto, grande diferença entre as resoluções que procedem de alguma falsa opinião e as que se apoiam tão somente no conhecimento da verdade; visto que, se seguirmos as últimas, estamos certos de não ter jamais do que nos lamentar nem arrepender, ao passo que o teremos sempre, se seguirmos as primeiras, quando lhes descobrimos o erro. Art. 50 Que não existe alma tão fraca que não possa, sendo bem conduzida, adquirir poder absoluto sobre as suas paixões. E é útil aqui lembrar que, como já foi dito mais acima, embora cada movimento da glândula pareça ter sido unido pela natureza a cada um de nossos pensamentos desde o começo de nossa vida, é possível todavia juntá-los a outros por hábito, assim como a experiência mostra nas palavras que excitam movimentos na glândula, os quais, segundo a instituição da natureza, representam à alma apenas os seus sons, quando proferidas pela voz, ou a figura de suas letras, quando escritas, e que, não obstante, pelo hábito adquirido em pensar no que significam quando ouvimos o som delas, ou então, quando vemos suas letras, costumam fazer conceber mais essa significação do que a figura de suas letras, ou então o som de suas sílabas. É útil também saber que, embora os movimentos, tanto da glândula como dos espíritos e do cérebro, que representam à alma certos objetos sejam naturalmente unidos aos que provocam nela certas paixões, podem todavia, por hábito, ser separados destes e unidos a outros muito diferentes, e, mesmo, que esse hábito pode ser adquirido por uma única ação e não requer longa prática. Assim, quando encontramos inopinadamente uma coisa muito suja num alimento que comemos com apetite, a surpresa do achado pode mudar de tal forma a disposição do cérebro que, em seguida, não possamos mais ver esse alimento exceto com horror, ao passo que até então o comíamos com prazer. É pode-se notar a mesma coisa nos animais; pois, embora não possuam a menor razão, nem talvez nenhum pensamento, todos os movimentos dos espíritos e da glândula que provocam em nós as paixões não deixam de existir neles também e servem-lhes para manter e fortalecer, não como em nós, as paixões, mas os movimentos dos nervos e dos músculos que costumam acompanhá-las. Assim, quando um cão vê uma perdiz, é naturalmente levado a correr em sua direção, e, quando ouve um tiro de um fuzil, tal ruído o incita naturalmente a fugir; mas, não obstante, adestram-se comumente de tal maneira os cães perdigueiros que a vista de uma perdiz os leva a deter-se e o ruído que ouvem depois, quando alguém atira à perdiz, os leva a correr para ela. Ora, essas coisas são úteis de saber para encorajar cada um de nós a aprender a observar suas paixões; pois, dado que se pode, com um pouco de engenho, mudar os movimentos do cérebro nos animais desprovidos de razão, é evidente que se pode fazê-lo melhor ainda nos homens, e que mesmo aqueles que possuem as almas mais fracas poderiam adquirir um império absoluto sobre todas as suas paixões, se empregassem bastante engenho em domá-las e conduzi-las. SEGUNDA PARTE DO NÚMERO E DA ORDEM DAS PAIXÕES E A EXPLICAÇÃO DAS SEIS PRIMITIVAS Art. 51 Quais as primeiras causas das paixões. Já se sabe, pelo que se disse mais acima, que a última e mais próxima causa das paixões da alma não é outra senão a agitação com que os espíritos movem a pequena glândula situada no meio do cérebro. Mas isso não basta para podermos distingui-las umas das outras; é mister procurar suas fontes e examinar suas primeiras causas; ora, ainda que possam algumas vezes ser causadas pela ação da alma, que se determina a conceber estes ou aqueles objetos, e também pelo exclusivo temperamento do corpo ou pelas impressões que se encontram fortuitamente no cérebro, como acontece quando nos sentimos tristes ou alegres sem que possamos dizer o motivo, parece, no entanto, pelo que foi dito, que todas elas podem também ser excitadas pelos objetos que afetam os sentidos e que tais objetos são suas causas mais comuns e principais; daí se segue que, para encontrar todas, basta considerar todos os efeitos desses objetos. Art. 52 Qual o seu emprego e como podemos enumerá-las. Observo, além disso, que os objetos que movem os nossos sentidos não provocam em nós diversas paixões devido a todas as diversidades que existem neles, mas somente devido às diversas formas pelas quais nos podem prejudicar ou beneficiar, ou então, em geral, ser importantes; e que o emprego de todas as paixões consiste apenas no fato de disporem a alma a querer coisas que a natureza dita serem úteis a nós, e a persistir nessa vontade, assim como a mesma agitação dos espíritos que costuma causá-las dispõe o corpo aos movimentos que servem à execução dessas coisas; eis por que, a fim de enumerá-las, cumpre apenas examinar, por ordem, de quantas maneiras diferentes que nos importam podem os nossos sentidos ser movidos por seus objetos; e farei aqui a enumeração de todas as principais paixões, segundo a ordem pela qual podem ser encontradas. A ORDEM E A ENUMERAÇÃO DAS PAIXÕES Art. 53 A admiração. Quando o primeiro contato com algum objeto nos surpreende, e quando nós o julgamos novo, ou muito diferente do que até então conhecíamos ou do que supúnhamos que deveria ser, isso nos leva a admirá-lo e a nos espantarmos com ele; e, como isso pode acontecer antes de sabermos de algum modo se esse objeto nos é conveniente ou não, parece-me que a admiração é a primeira de todas as paixões; e ela não tem contrário, porquanto, se o objeto que se apresenta nada tem em si que nos surpreenda, não somos de maneira nenhuma afetados por ele e nós o consideramos sem paixão. Art. 54 A estima ou o desprezo, a generosidade ou o orgulho, e a humildade ou a baixeza. A admiração está unida a estima ou o desprezo, conforme seja a grandeza de um objeto ou sua pequenez que admiremos. E podemos assim nos estimar ou nos desprezar a nós próprios; daí provém as paixões e, em seguida, os hábitos de magnanimidade ou de orgulho e de humildade ou de baixeza. Art. 55 A veneração e o desdém. Mas, quando estimamos ou desprezamos outros objetos que consideramos como causas livres, capazes de fazer o bem ou o mal, da estima procede a veneração, e do simples desprezo, o desdém. Art. 56 O amor e o ódio. Ora, todas as paixões precedentes podem ser excitadas em nós sem que percebamos de modo algum se o objeto que os provoca é bom ou mau. Mas, quando uma coisa se nos apresenta como boa em relação a nós, isto é, como nos sendo conveniente, isso nos leva a ter amor por ela; e, quando se nos apresenta como má ou nociva, isso nos incita ao ódio. Art. 57 O desejo. Da mesma consideração do bem e do mal nascem todas as outras paixões; mas, a fim de colocá-las por ordem, distingo os tempos e, considerando que elas nos levam a olhar o futuro muito mais do que o presente, ou o passado, começo pelo desejo. Pois, não somente quando se deseja adquirir um bem que ainda não se possui, ou evitar um mal que se julga passível de sobrevir, mas também quando se deseja apenas a conservação de um bem ou a ausência de um mal, que é tudo aquilo a que essa paixão pode estender-se, é evidente que ela encara sempre o futuro. Art. 58 A esperança, o temor, o ciúme, a segurança e o desespero. Basta pensar que a aquisição de um bem ou a fuga de um mal é possível para sermos incitados a desejá-la. Mas, quando consideramos, além disso, se há muita ou pouca probabilidade de se obter o que se deseja, aquilo que nos representa haver muita excita em nós a esperança, e aquilo que nos representa haver pouca excita o temor, de que o ciúme constitui uma espécie. Quando a esperança é extrema, muda de natureza e chama-se segurança ou confiança, assim como, ao contrário, o extremo temor torna-se desespero. Art. 59 A irresolução, a coragem, a ousadia, a emulação, a covardia e o pavor. E podemos assim esperar e temer, ainda que a realização do que aguardamos não dependa de modo algum de nós; mas, quando nos é representado como dependente, pode haver dificuldade na escolha dos meios ou na execução. Da primeira deriva a irresolução, que nos dispõe a deliberar e tomar conselho. À última opõe-se a coragem ou a ousadia, de que a emulação constitui uma espécie. E a covardia é contrária à coragem, tal como o medo ou o pavor à ousadia. Art. 60 O remorso. E, se estamos determinados a alguma ação, antes que seja suprimida a irresolução, isso engendra o remorso de consciência, o qual não considera o tempo vindouro, como as paixões precedentes, mas o presente ou o passado. Art. 61 A alegria e a tristeza. E a consideração do bem presente excita em nós a alegria, a do mal, a tristeza, quando é um bem ou um mal que nos é representado como nosso. Art. 62 A zombaria, a inveja, a piedade. Mas, quando nos é representado como pertencente a outros homens, podemos considerá-los dignos ou indignos disso; e, quando os consideramos dignos, isso não provoca em nós outra paixão além da alegria, posto que para nós é algum bem ver que as coisas acontecem como devem. Há apenas a diferença de que a alegria procedente do bem é séria, ao passo que a procedente do mal é acompanhada de riso e zombaria. Mas, se nós os considerarmos indignos deles, o bem excita a inveja, e o mal, a piedade, que são espécies de tristeza, E deve-se notar que as mesmas paixões relacionadas aos bens ou aos males presentes podem amiúde referir-se aos que estão por vir, enquanto a opinião que se tem de que hão de advir os representa como presentes. Art. 63 A satisfação de si mesmo e o arrependimento. Podemos também considerar a causa do bem ou do mal, tanto presente como passado. E o bem que foi feito por nós mesmos nos dá uma satisfação interior, que é a mais doce de todas as paixões, ao passo que o mal provoca o arrependimento, que é a mais amarga. Art. 64 O favor e o reconhecimento. Mas o bem praticado por outros é causa de que os tenhamos em favor, ainda que não seja feito a nós; e, quando o é, ao favor juntamos o reconhecimento. Art. 65 A indignação e a cólera. Do mesmo modo, o mal praticado por outros, não se relacionando a nós, faz somente com que desperte a nossa indignação para com eles; e, quando se relaciona conosco, suscita também a cólera. Art. 66 A glória e a vergonha. Além disso, o bem que existe ou existiu em nós, quando relacionado com a opinião que os outros podem ter a seu respeito, excita em nós a glória, e o mal, a vergonha. Art. 67 O fastio, o pesar e a alegria. E às vezes a duração do bem provoca o tédio ou o fastio, ao passo que a do mal diminui a tristeza. Enfim, do bem passado resulta o pesar, que é uma espécie de tristeza, e do mal passado resulta o júbilo, que é uma espécie de alegria. Art. 68 Por que essa enumeração das paixões é diferente da comumente aceita. Eis a ordem que me parece melhor para enumerar as paixões. Sei muito bem que nisso me afasto da opinião de todos os que até agora escreveram sobre elas, mas não o faço sem grande razão. Pois os outros tiram suas enumerações do fato de distinguirem na parte sensitiva da alma dois apetites, que chamam um concupiscível e o outro irascível. E, como não conheço na alma nenhuma distinção de partes, o que já disse acima, isto não me parece significar outra coisa senão que ela tem duas faculdades, uma de desejar e a outra de se irritar; e, posto que ela tem da mesma forma as faculdades de admirar, amar, esperar, temer e, assim, de receber em si cada uma das outras paixões:, ou de praticar as ações a que essas paixões a impelem, não vejo por que quiseram relacionar todas com a concupiscência ou a cólera. Além do que, tal enumeração não compreende todas as principais paixões, como creio que esta o faz. Falo apenas das principais, porque se poderiam ainda distinguir muitas outras mais particulares, pois seu número é indefinido. Art. 69 Que há somente seis paixões primitivas. Mas o número das que são simples e primitivas não é muito grande. Pois, passando em revista todas as que enumerei, pode-se facilmente notar que há apenas seis que são tais, a saber: a admiração, o amor, o ódio, o desejo, á alegria e a tristeza; e todas as outras compõem-se de algumas dessas seis, ou então são suas espécies. Por isso, para que sua multidão não embarace nossos leitores, tratarei aqui separadamente das seis primitivas; e, em seguida, mostrarei de que forma todas as outras tiram daí sua origem. Art. 70 Da admiração; sua definição e causa. A admiração é uma súbita surpresa da alma, que a leva a considerar com atenção os objetos que lhe parecem raros e extraordinários. Assim, é causada primeiramente pela impressão que se tem no cérebro, que representa o objeto como raro e, por conseguinte, digno de ser muito considerado; em seguida, pelo movimento dos espíritos, que são dispostos por essa impressão a tender com grande força ao lugar do cérebro onde ela se encontra, a fim de fortalecê-la e conservá-la aí; como também são dispostas por ela a passar daí aos músculos destinados a reter os órgãos dos sentidos na mesma situação em que se encontram, a fim de que seja ainda mantida por eles, se por eles foi formada. Art. 71 Que nesta paixão não ocorre qualquer mudança no coração nem no sangue. E esta paixão tem a particularidade de não notarmos de modo algum que seja acompanhada de qualquer mudança no coração e no sangue, como acontece com outras paixões. A razão é que, não tendo nem o bem nem o mal por objeto, mas só o conhecimento da coisa que se admira, ela não se relaciona ao coração e ao sangue, dos quais depende todo o bem do corpo, mas apenas ao cérebro, onde ficam os órgãos dos sentidos que servem a esse conhecimento. Art. 72 No que consiste a força da admiração. O que não a impede de ter muita força por causa da surpresa, isto é, da súbita e inopinada ocorrência da impressão que modifica o movimento dos espíritos, surpresa que é própria e articular a esta paixão; de sorte que, quando se encontra em outras, como costuma encontrar-se em quase todas e aumentá-las, é porque a admiração está unida a elas. E a sua força depende de duas coisas, a saber, da novidade e do fato de o movimento que a causa possuir, desde o começo, toda a sua força. Pois é certo que tal movimento produz mais efeito do que aqueles que, sendo de início fracos e só crescendo pouco a pouco, podem ser facilmente desviados. É certo também que os objetos dos sentidos que são novos afetam o cérebro em certas partes que não costumam ser afetadas; e, sendo estas partes mais tenras ou menos firmes que as endurecidas por uma agitação frequente, isso aumenta o efeito dos movimentos que esses objetos aí provocam. O que não se julgará incrível, se se considerar que uma razão análoga faz com que, estando a planta de nossos pés habituada a um contato bastante rude, devido ao peso do corpo que sustenta, sintamos muito pouco esse contato quando andamos; ao passo que outro muito menor e mais suave, como o das cócegas, nos é quase insuportável, por não nos ser comum. Art. 73 O que é o espanto. E essa surpresa tem tanto poder para levar os espíritos localizados nas cavidades do cérebro ao lugar onde está a impressão do objeto admirado que, por vezes, impele todos para lá e os deixa de tal modo ocupados em conservar essa impressão que nenhum deles passa ao cérebro, nem mesmo se desvia de alguma forma das primeiras pegadas que seguiu no cérebro: o que faz que o corpo inteiro permaneça imóvel como uma estátua e que só percebamos do objeto a primeira face que se apresentou, e por conseguinte não possamos adquirir dele um conhecimento mais particular. É isso o que se chama comumente estar espantado; e o espanto é um excesso de admiração que só pode ser mau. Art. 74 Para que servem todas as paixões e no que elas prejudicam. Ora, é fácil saber, pelo que foi dito acima, que a utilidade de todas as paixões consiste apenas em fortalecer e fazer durar na alma pensamentos, os quais é bom que ela conserve, e que poderiam facilmente, sem isso, ser obliterados. Assim como todo o mal que podem causar consiste em fortalecer e conservar esses pensamentos mais do que o necessário, ou então em fortalecer e conservar outros nos quais não vale a pena deter-se. Art. 75 Para que serve particularmente a admiração. E pode-se dizer particularmente da admiração que ela é útil porque nos leva a aprender e a reter em nossa memória coisas que dantes ignorávamos; pois só admiramos o que nos parece raro e extraordinário; e coisa alguma pode parecer-nos assim senão porque nós a ignorávamos, ou também porque é diferente das coisas que conhecíamos; pois é essa diferença que nos leva a chamá-la extraordinária. Ora, ainda que uma coisa que nos era desconhecida se apresente de novo ao nosso entendimento ou aos nossos sentidos, não a retemos por isso em nossa memória, se a ideia que dela temos não for fortalecida em nosso cérebro por alguma paixão, ou pela aplicação de nosso entendimento, que a nossa vontade determina a uma atenção e reflexão particulares. E as outras paixões podem servir-nos para notar as coisas que parecem boas ou más, mas só dispomos da admiração para as que parecem tão somente raras. Por isso, vemos que os que não possuem qualquer inclinação natural para essa paixão são ordinariamente muito ignorantes. Art. 76 No que ela pode prejudicar e como se pode suprir sua falta e corrigir seu excesso. Mas acontece muito mais admirarmos em demasia e nos espantarmos ao perceber coisas que merecem pouca ou nenhuma consideração, do que admirarmos demasiado pouco. E isso pode subtrair inteiramente ou perverter o uso da razão. Daí por que, embora seja bom ter nascido com alguma inclinação para esta paixão, porque isso nos dispõe para a aquisição das ciências, devemos todavia esforçar-nos em seguida para nos libertar dela o mais possível. Pois é fácil suprir a sua falta por uma reflexão e atenção particulares, a que a nossa vontade sempre pode obrigar nosso entendimento quando julgamos que a coisa que se apresenta vale a pena; mas não há outro remédio para impedir o admirar excessivo senão adquirir o conhecimento de muitas coisas e exercitar-nos na consideração de todas as que possam parecer mais raras e mais estranhas. Art. 77 Que não são nem os mais estúpidos nem os mais hábeis os mais propensos à admiração. De resto, embora só os embrutecidos e estúpidos não sejam levados naturalmente à admiração, isto não significa dizer que os mais dotados de espírito sejam os mais inclinados a ela; mas são principalmente os que, embora possuam um senso comum assaz bom, não têm, todavia, em grande conta sua própria suficiência. Art. 78 Que o seu excesso pode converter-se em hábito quando se deixa de corrigi-lo. E, conquanto essa paixão pareça diminuir com o uso, pois, quanto mais encontramos coisas raras que admiramos, mais nos acostumamos a cessar de admirá-las e a pensar que todas as que podem apresentar-se depois são vulgares, todavia, quando é excessiva e nos leva somente a deter a atenção na primeira imagem dos objetos que se apresentarem, sem adquirir deles outro conhecimento, deixa atrás de si um hábito que dispõe a alma a deter-se do mesmo modo em todos os outros objetos que se apresentem, desde que lhe pareçam, por pouco que seja, novos. E é isso que faz durar a moléstia dos que são cegamente curiosos, isto é, que procuram as raridades somente para admirá-las e não para conhecê-las: pois tornam-se pouco a pouco tão admirativos, que coisas de importância nula não são menos capazes de retê-los do que aquelas cuja pesquisa é mais útil. Art. 79 As definições do amor e do ódio. O amor é uma emoção da alma causada pelo movimento dos espíritos que a incita a unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes. E o ódio é uma emoção causada pelos espíritos que incita a alma a querer estar separada dos objetos que se lhe apresentam como nocivos. Eu digo que tais emoções são causadas pelos espíritos a fim de distinguir o amor e o ódio, que são paixões e dependem do corpo, tanto dos juízos que levam também a alma a se unir voluntariamente às coisas que ela considera boas e a se separar daquelas que considera más como das emoções que só esses juízos excitam na alma. Art. 80 O que significa unir-se ou separar-se voluntariamente. De resto, pela palavra voluntariamente, não pretendo falar aqui do desejo, que é uma paixão à parte e se relaciona com o porvir; mas do consentimento pelo qual nos consideramos presentemente unidos com o que amamos, de sorte que imaginamos um todo do qual pensamos constituir apenas uma parte, e do qual a coisa amada é a outra. Como, ao contrário, no ódio nos consideramos como um todo só inteiramente separado da coisa pela qual se tem aversão. Art. 81 Da distinção que se costuma fazer entre o amor de concupiscência e o de benevolência. Ora, distinguem-se comumente duas espécies de amor, uma das quais é chamada amor de benevolência, isto é, que incita a querer o bem para o que se ama; a outra é chamada amor de concupiscência, isto é, que leva a desejar a coisa que se ama. Mas me parece que essa distinção considera apenas os efeitos do amor, e não a sua essência; pois, tão logo nos unimos voluntariamente a algum objeto, de qualquer natureza que seja, temos por ele benevolência, isto é, unimos-lhe também voluntariamente as coisas que cremos lhe serem convenientes: o que é um dos principais efeitos do amor. E se julgarmos que é um bem possui-lo ou lhe estar associado de outra forma que não a voluntária, desejamo-lo: o que é também um dos mais comuns efeitos do amor. Art. 82 Como paixões muito diferentes combinam na medida em que participam do amor. Não é necessário também distinguir tantas espécies de amor quantos os diversos objetos que se podem amar; pois, por exemplo, embora a paixão que um ambicioso nutre pela glória, um avarento pelo dinheiro, um bêbado pelo vinho, um bruto pela mulher que deseja violar, um homem de honra por seu amigo ou por sua amante e um bom pai por seus Filhos, sejam muito diferentes entre si, todavia, por participarem do amor, são semelhantes. Mas os quatro primeiros têm amor apenas pela posse dos objetos aos quais se refere sua paixão, e não o têm pelos objetos mesmos, pelos quais nutrem somente desejo misturado com outras paixões particulares, ao passo que o amor de um bom pai por seus filhos é tão puro que nada deseja deles e não quer possuí-los de outra maneira senão como o faz, nem estar unido a eles mais estreitamente do que já o está; mas, considerando-os como outros tantos ele próprio, procura o bem deles como o seu próprio, ou mesmo com mais cuidado, porque, representando-se formar com eles um todo, do qual não é a melhor parte, prefere muitas vezes os interesses deles aos próprios e não teme perder-se para salvá-los. A afeição que as pessoas de honra sentem por seus amigos é dessa natureza, embora raramente seja tão perfeita; e a que sentem pela amada participa muito dela, mas também participa um pouco da outra. Art. 83 Da diferença entre a simples afeição, a amizade e a devoção. Pode-se, parece-me, com melhor razão ainda distinguir o amor pela estima que se dedica ao que amamos em comparação com nós próprios; pois, quando estimamos o objeto de nosso amor menos que a nós mesmos, sentimos por ele simples afeição; quando o estimamos tal como a nós próprios, isso se chama amizade; e, quando o estimamos mais, a paixão que alimentamos pode ser chamada devoção. Assim, pode-se ter afeição por uma flor, por um pássaro, por um cavalo; porém, a não ser que se tenha o espírito muito desregrado, não se pode nutrir amizade senão pelos homens. E eles são de tal modo objeto dessa paixão, que não há homem tão imperfeito que não se lhe possa dedicar amizade muito perfeita, quando se pensa ser amado por ele e se tem a alma verdadeiramente nobre e generosa, conforme o que será explicado mais adiante nos artigos 154 e 156. No que concerne à devoção, seu principal objeto é, sem dúvida, a soberana Divindade, em relação à qual não podemos deixar de ser devotos quando a conhecemos como se deve; mas podemos também sentir devoção por nosso príncipe, pelo nosso país ou nossa cidade, e mesmo por um homem particular, quando o estimamos mais do que a nós próprios. Ora, a diferença que existe entre essas três espécies de amor aparece principalmente através de seus efeitos; pois, posto que em todas nos consideramos unidos e juntos à coisa amada, estamos sempre prontos a abandonar a parte menor do todo que se compõe com ela para conservar a outra; o que faz com que, na simples afeição, se prefira sempre a si próprio ao que se ama e que, ao contrário, na devoção se prefira de tal modo a coisa amada ao eu próprio que não se receia morrer para conservá-la. Viram-se muitas vezes exemplos disso nos que se expuseram à morte certa em defesa de seu príncipe ou de sua cidade, e até, algumas vezes, de pessoas particulares às quais se haviam devotado. Art. 84 Que não há tantas espécies de ódio como de amor. De resto, ainda que o ódio seja diretamente oposto ao amor, não se distinguem nele todavia tantas espécies, porque não se nota tanto à diferença que existe entre os males de que se está separado voluntariamente como a que existe entre os bens a que se está unido. Art. 85 Do agrado e do horror. E não encontro senão uma única distinção considerável que seja análoga num e noutro. Consiste em que os objetos, tanto do amor como do ódio, podem ser representados à alma pelos sentidos exteriores, ou então pelos interiores e por sua própria razão; pois denominamos comumente bem ou mal aquilo que nossos sentidos interiores ou nossa razão nos levam a julgar conveniente ou contrário à nossa natureza; mas denominamos belo ou feio aquilo que nos é assim representado por nossos sentidos exteriores, principalmente pelo da visão, o qual por si só é mais considerado que todos os outros; daí nascem duas espécies de amor, a saber, o que se tem pelas coisas boas e o que se tem pelas belas, ao qual se pode dar o nome de agrado a fim de não o confundir com o outro, nem tampouco com o desejo, a que muitas vezes se atribui o nome de amor; e daí nascem, da mesma forma, duas espécies de ódio, uma das quais se relaciona com as coisas más e a outra com as feias; e esta última pode ser chamada horror ou aversão, para distingui-la da outra. Mas o que há nisto de mais notável é que essas paixões de agrado e horror costumam ser mais violentas que as outras espécies de amor ou de ódio, visto que o que chega à alma pelos sentidos toca mais fortemente do que aquilo que lhe é representado pela razão, e que, no entanto, elas contêm comumente' menos verdade; de sorte que, de todas as paixões, são as que mais enganam e das quais é preciso mais cuidadosamente se guardar. Art. 86 A definição do desejo. A paixão do desejo é uma agitação da alma causada pelos espíritos que a dispõem a querer para o futuro as coisas que se lhe representam como convenientes. Assim, não se deseja apenas a presença do bem ausente mas também a conservação do presente, e demais a ausência do mal, tanto daquele que já se tem como daquele que se julga poder ainda colher no futuro. Art. 87 Que é uma paixão que não tem contrário. Sei muito bem que comumente na Escola se opõe a paixão que tende à procura do bem, a única que se denomina desejo, àquela que tende à fuga do mal, a qual se denomina aversão. Mas, desde que não há qualquer bem cuja privação não seja um mal, nem qualquer mal considerado como coisa positiva cuja privação não seja um bem, e que, buscando, por exemplo, as riquezas, foge-se necessariamente da pobreza e, ao fugir das doenças, procura-se a saúde e assim por diante, parece-me que é sempre um mesmo movimento que leva à busca do bem e conjuntamente à fuga do mal que lhe é contrário. Observo nisto apenas a diferença de que o desejo alimentado, quando se tende a algum bem, é acompanhado de amor e em seguida de esperança e alegria; ao passo que o mesmo desejo, quando se tende a distanciar-se do mal contrário a esse bem, é acompanhado de ódio, de temor e tristeza; o que é causa de o julgarem contrário a si mesmo. Mas, se se quer considerá-lo quando ele se refere igual e simultaneamente a algum bem para procurá-lo e ao mal oposto para evitá-lo, pode-se ver mui evidentemente que um e outro constituem apenas uma única paixão. Art. 88 Quais são as suas diversas espécies. Haveria mais razão de distinguir o desejo em tantas espécies diversas quão diversos os objetos que se procuram; pois, por exemplo, a curiosidade, que não é senão um desejo de conhecer, difere muito do desejo de glória, e este do desejo de vingança, e assim por diante. Mas aqui basta saber que há tantos desejos quantas espécies de amor ou de ódio e que os mais consideráveis e os mais fortes são os que nascem do agrado e do horror. Art. 89 Qual é o desejo que nasce do horror. Ora, conquanto seja apenas um mesmo desejo que tende à busca de um bem e à fuga do mal que lhe é contrário, assim como já foi dito, o desejo que nasce do agrado não deixa de ser muito diferente daquele que nasce do horror; pois este agrado e este horror, que verdadeiramente são contrários, não são o bem e o mal que servem de objetos a tais desejos, mas somente duas emoções da alma que a predispõem a buscar duas coisas muito diferentes, a saber: o horror é instituído pela natureza para representar à alma uma morte súbita e inopinada, de sorte que, embora seja às vezes apenas o contato de um vermezinho, ou o rumor de uma folha tremulante, ou a sua sombra, que provoque o horror, sente-se primeiramente tanta emoção como se um perigo de morte mui evidente se oferecesse aos sentidos, o que engendra repentinamente a agitação que leva a alma a empregar todas as suas forças para evitar um mal tão presente; e é essa mesma espécie de desejo que se chama comumente de fuga ou aversão. Art. 90 Qual é o que nasce do agrado. Ao contrário, o agrado foi particularmente instituído pela natureza para representar o gozo do que agrada como o maior de todos os bens pertencentes ao homem, o que faz desejar ardentemente esse gozo. É verdade que há diversas espécies de agrados e que os desejos daí oriundos não são todos igualmente poderosos; pois, por exemplo, a beleza das flores nos incita somente a mirá-las, e a dos frutos, a comê-los. Mas o principal é o proveniente das perfeições que imaginamos numa pessoa que pensamos capaz de tornar-se outro nós mesmos; pois, com a diferença do sexo, que a natureza estabeleceu nos homens bem como nos animais destituídos de razão, ela estabeleceu também certas impressões no cérebro que fazem com que, em certa idade e em certo tempo, nos consideremos como defeituosos e como se não fôssemos senão a metade de um todo, do qual uma pessoa do outro sexo deve constituir a outra metade, de sorte que a aquisição dessa metade é confusamente representada pela natureza como o maior de todos os bens imagináveis. E, ainda que se veja muitas pessoas desse outro sexo, nem por isso se deseja muitas ao mesmo tempo, posto que a natureza não leva a imaginar que se necessite de mais de uma metade. Mas, quando numa se observa algo que agrada mais do que aquilo que se observa ao mesmo tempo nas outras, isso determina a alma a sentir somente por ela todo o pendor que a natureza lhe dá para procurar o bem que ela lhe representa como o maior que se possa possuir; e esta inclinação ou este desejo que nasce assim do agrado leva mais comumente o nome de amor do que a paixão de amor acima descrita. Por isso, produz os mais estranhos efeitos e é ele que serve de principal matéria aos fazedores de romances e aos poetas. Art. 91 A definição da alegria. A alegria é uma agradável emoção da alma, na qual consiste o gozo que ela frui do bem que as impressões do cérebro lhe representam como seu. Digo que é nessa emoção que consiste o gozo do bem; pois, com efeito, a alma não recebe nenhum outro fruto de todos os bens que possui; e, enquanto não extrai deles nenhuma alegria, pode-se dizer que não os desfruta mais do que se não os possuísse de modo algum. Acrescento também que se trata do bem que as impressões do cérebro lhe representam como seu, a fim de não confundir esta alegria, que é uma paixão, com a alegria puramente intelectual, que chega à alma pela exclusiva ação da alma, e que se pode considerar uma agradável emoção excitada em si própria, na qual consiste o gozo que ela frui do bem que seu entendimento lhe representa como seu. É verdade que, enquanto a alma está unida ao corpo, essa alegria intelectual não pode deixar de ser acompanhada da outra, que é uma paixão; pois, tão logo o nosso entendimento percebe que possuímos algum bem, embora este bem possa ser tão diferente de tudo quanto pertence ao corpo que não seja de modo algum imaginável, a imaginação não deixa de provocar incontinenti alguma impressão no cérebro, da qual se segue o movimento dos espíritos que excita a paixão da alegria. Art. 92. A definição da tristeza. A tristeza é um langor desagradável no qual consiste a incomodidade que a alma recebe do mal, ou do defeito que as impressões do cérebro lhe representam como lhe pertencendo. E há também uma tristeza intelectual que não é a paixão, mas que quase nunca deixa de acompanhá-la. Art. 93 Quais são as causas dessas duas paixões. Ora, quando a alegria ou a tristeza intelectual excitam assim aquela que é uma paixão, sua causa é assaz evidente; e vê-se, por suas definições, que a alegria provém da opinião que se tem de possuir algum bem, e a tristeza da opinião que se tem de encerrar algum ma! Ou algum defeito. Mas acontece amiúde que nos sentimos tristes ou alegres sem que possamos tão distintamente advertir o bem ou o mal que são suas causas, a saber, quando este bem ou este mal provocam suas impressões no cérebro sem o intermédio da alma, às vezes porque pertencem apenas ao corpo, e outras vezes também, ainda que pertençam à alma, porque ela não os considera como bem ou mal, mas sob outra forma qualquer, cuja impressão está unida à do bem e do mal no cérebro. Art. 94 Como essas paixões são excitadas por bens e males que se referem apenas ao corpo, e no que consistem o prazer físico e a dor. Assim, quando gozamos de plena saúde e o tempo é mais sereno do que de costume, sentimos em nós um contentamento que não provém de nenhuma função do entendimento, mas somente das impressões que o movimento dos espíritos provoca no cérebro; e sentimo-nos igualmente tristes como quando o corpo está indisposto, embora não saibamos que ele o esteja. Assim, o prazer dos sentidos é seguido de tão perto pela alegria, e a dor pela tristeza, que a maioria dos homens não os distingue de modo algum. Todavia, diferem tanto que podemos algumas vezes sofrer dores com alegria e receber prazeres que desagradam. Mas a causa de ser a alegria de ordinário seguida pelo prazer é que tudo o que se chama prazer ou sentimento agradável consiste em que os objetos dos sentidos excitam nos nervos algum movimento que seria capaz de prejudicá-los se não tivessem bastante força para lhe resistir, ou se o corpo não estivesse bem disposto; o que provoca uma impressão no cérebro, a qual, sendo instituída pela natureza a fim de testemunhar esta boa disposição e esta força, a representa à alma como um bem que lhe pertence, na medida em que está unida ao corpo, e assim excita nela a alegria. E quase a mesma razão que nos leva a obter naturalmente prazer em nos sentirmos comovidos por todas as espécies de paixões, mesmo com a tristeza e o ódio, quando essas paixões são causadas apenas pelas estranhas aventuras a cuja representação assistimos num teatro, ou por outros meios semelhantes, que, não podendo nos prejudicar de maneira alguma, parecem aprazer nossa alma, tocando-a. E a causa de que a dor produz de ordinário a tristeza é que o sentimento chamado dor provém sempre de alguma ação tão violenta que ofende os nervos; de sorte que, sendo instituído pela natureza para significar à alma o dano que o corpo recebe por essa ação, e a sua fraqueza no fato de não lhe ter podido resistir, representa-lhe um e outro como males que lhe são sempre desagradáveis, exceto quando causam alguns bens que ela aprecia mais do que a eles. Art. 95 Como podem também ser excitados por bens e males que a alma não nota, ainda que lhe pertençam; como são os prazeres que tiramos do aventurar-se ou do lembrar-se do mal passado. Assim, o prazer que sentem muitas vezes as pessoas jovens em empreender coisas difíceis e em expor-se a grandes perigos, embora não esperem daí qualquer proveito ou qualquer glória, surge neles porque o pensamento de que é difícil aquilo que empreendem provoca em seus cérebros uma impressão que, unida àquela que poderiam formar se pensassem que é um bem sentir-se bastante corajoso, bastante feliz, bastante destro ou bastante forte, para se arriscar a tal ponto, é causa de que obtenham prazer disso. E o contentamento que sentem os velhos quando se lembram dos males que sofreram provém de que eles se representam ser um bem o fato de terem podido, apesar de tudo, subsistir. Art. 96 Quais são os movimentos do sangue e dos espíritos que causam as cinco paixões precedentes. As cinco paixões que comecei a explicar aqui se acham de tal modo unidas ou opostas umas às outras que é mais fácil considerá-las todas em conjunto do que tratar de cada uma separadamente, assim como se tratou da admiração; e diferentemente dessa, a causa dessas paixões não reside unicamente no cérebro, mas também no coração, no baço, no fígado e em todas as outras partes do corpo, na medida em que servem à produção do sangue e depois dos espíritos; pois, embora todas as veias conduzam o sangue que elas contêm para o coração, acontece, no entanto, às vezes, que o de algumas é impelido para ele com mais força do que o de outras; e acontece também que as aberturas por onde entra no coração, ou, então, aquelas por onde sai, são às vezes mais largas ou mais apertadas umas que as outras. Art. 97 As principais experiências que servem para conhecer esses movimentos no amor. Ora, considerando as diversas alterações que a experiência mostra em nosso corpo enquanto nossa alma é agitada por diversas paixões, observo no amor, quando está só, isto é, quando não se acha acompanhado de qualquer intensa alegria, ou desejo, ou tristeza, que o batimento do pulso é igual e muito maior e mais forte que de costume; que se sente um doce calor no peito, e que a digestão dos alimentos se faz mui prontamente no estômago, de modo que essa paixão é útil para a saúde. Art. 98 No ódio. Observo, ao contrário, no ódio, que o pulso é desigual e mais fraco, e amiúde mais rápido; que se sentem frialdades entremescladas de certo calor áspero e picante no peito; que o estômago deixa de cumprir sua função e tende a vomitar e rejeitar os alimentos ingeridos, ou ao menos a corrompê-los e a convertê-los em maus humores. Art. 99 Na alegria. Na alegria, que o pulso é igual e mais rápido que de ordinário, mas que não é tão forte ou tão grande como no amor; e que se sente um calor agradável que não fica apenas no peito, mas se espalha também por todas as partes externas do corpo, com o sangue que para lá aflui em abundância; e que no entanto se perde às vezes o apetite, porque a digestão se faz pior do que de costume. Art. 100 Na tristeza. Na tristeza, que o pulso é fraco e lento, e que sentimos em torno do coração como laços, que o apertam, e pedaços de gelo que o gelam e comunicam sua frialdade ao resto do corpo; e que, apesar disso, não se deixa de ter por vezes bom apetite e sentir que o estômago não deixa de cumprir o seu dever, contanto que não haja ódio misturado à tristeza. Art. 101 No desejo. Enfim, noto, de particular, no desejo, que este agita o coração mais violentamente do que quaisquer das outras paixões, e fornece ao cérebro mais espíritos, os quais, passando daí aos músculos, tornam todos os sentidos mais agudos e todas as partes do corpo mais móveis. Art. 102 O movimento do sangue e dos espíritos no amor. Essas observações, e muitas outras que seria demasiado longo relacionar, deram-me motivo para julgar que, quando o entendimento se representa qualquer objeto de amor, a impressão que tal pensamento efetua no cérebro conduz os espíritos animais, pelos nervos do sexto par, aos músculos situados em torno dos intestinos e do estômago, da forma requerida a levar o suco dos alimentos, que se converteu em sangue novo, a passar prontamente ao coração sem se deter no fígado, e, sendo aí impelido com mais força do que o é em outras partes do corpo, a entrar no coração com maior abundância e excitar nele um calor maior, por ser mais grosso do que aquele que já foi rarefeito muitas vezes ao passar e repassar pelo coração; o que o faz enviar também espíritos ao cérebro cujas partes são mais grossas e mais agitadas que de ordinário; e esses espíritos, fortalecendo a impressão que o primeiro pensamento do objeto amável nele ocasionou, obrigam a alma a deter-se nesse pensamento; e é nisso que consiste a paixão do amor. Art. 103 No ódio. Ao contrário, no ódio, o primeiro pensamento do objeto que produz aversão conduz de tal modo os espíritos existentes no cérebro para os músculos do estômago e dos intestinos que impedem o suco dos alimentos de se misturar com o sangue, apertando todas as aberturas por onde costuma correr; e condu-los também de tal modo aos pequenos nervos do baço e da parte inferior do fígado, onde fica o receptáculo da bile, que as partes do sangue que costumam ser rejeitadas para esses lugares deles saem e correm, com o sangue que está nos ramos da veia cava, para o coração; o que causa muitas desigualdades em seu calor, tanto mais que o sangue proveniente do baço não se aquece e não se rarefaz senão a custo, e que, ao contrário, o procedente da parte inferior do fígado, onde há sempre fel, se abrasa e dilata mui rapidamente; daí se segue que os espíritos que vão para o cérebro também têm partes muito desiguais e movimentos muito extraordinários; donde resulta que fortalecem nele as ideias de ódio que já encontram aí impressas, e dispõem a alma a pensamentos cheios de acritude e amargura. Art. 104 Na alegria. Na alegria não são tanto os nervos do baço, do fígado, do estômago ou dos intestinos que atuam, mas os que existem em todo o resto do corpo, e particularmente aquele que fica em torno dos orifícios do coração, o qual, abrindo e alargando tais orifícios, permite ao sangue, que os outros nervos expulsam das veias para o coração, entrar e sair em maior quantidade que de costume; e, como o sangue que então penetra no coração já passou e repassou aí muitas vezes, vindo das artérias para as veias, ele se dilata mui facilmente e produz espíritos cujas partes, sendo muito iguais e sutis, são próprias para formar e fortalecer as impressões do cérebro que dão à alma pensamentos alegres e tranquilos. Art. 105 Na tristeza. Ao contrário, na tristeza, as aberturas do coração são fortemente contraídas pelo pequeno nervo que as envolve, e o sangue das veias não é de modo algum agitado, o que determina que vá muito pouco para o coração; e, no entanto, as passagens por onde o suco dos alimentos corre do estômago e dos intestinos ao fígado permanecem abertas, o que faz com que o apetite não diminua, exceto quando o ódio, o qual muitas vezes está junto à tristeza, os fecha. Art. 106 No desejo. Enfim, a paixão do desejo tem isto de próprio, que a vontade de obter algum bem ou de fugir de algum mal envia prontamente os espíritos do cérebro a todas as partes do corpo capazes de servir às ações requeridas para tal efeito, e particularmente ao coração e às partes que lhe fornecem mais sangue, a fim de que, recebendo-o em maior abundância do que de costume, envie maior quantidade de espíritos ao cérebro, tanto para entreter e fortalecer nele a ideia dessa vontade, como para passar daí a todos os órgãos dos sentidos e todos os músculos que podem ser empregados para obter o que se almeja. Art. 107 Qual é a causa desses movimentos no amor. E do que foi dito acima deduzo as razões de tudo isso, que há tal ligação entre nossa alma e nosso corpo que, uma vez unida uma ação corporal a um pensamento, nenhum dos dois pode apresentar-se-nos em seguida sem que o outro também não se apresente: como se vê nos que, tomando com grande aversão qualquer beberagem quando doentes, não podem comer ou beber depois nada que se aproxime do mesmo gosto sem sentir de novo a mesma aversão; e, analogamente, não podem pensar na aversão que nutrem pelos remédios sem que o mesmo gosto lhes volte ao pensamento. Pois me parece que as primeiras paixões que a nossa alma teve, quando começou a estar unida a nosso corpo, se devem a que algumas vezes o sangue, ou outro suco que entrava no coração, era um alimento mais conveniente que o comum para nele manter o calor, que é o princípio da vida; o que levava a alma ajuntar voluntariamente a si esse alimento, isto é, a amá-lo, e ao mesmo tempo os espíritos corriam do cérebro para os músculos, que podiam pressionar ou agitar as partes de onde viera ao coração, para fazer que estas lhe enviassem mais; e tais partes eram o estômago e os intestinos, cuja agitação aumenta o apetite, ou também o fígado e o pulmão, que os músculos do diafragma podem pressionar: eis por que desde então esse mesmo movimento dos espíritos sempre acompanhou a paixão do amor. Art. 108 No ódio. Algumas vezes, ao contrário, chegava ao coração algum suco estranho, que não era próprio para manter o calor, ou que podia mesmo extingui-lo; o que levava os espíritos que subiam do coração para o cérebro a provocar na alma a paixão do ódio; e ao mesmo tempo também esses espíritos iam do cérebro aos nervos que podiam impelir o sangue do baço e das pequenas veias do fígado para o coração, a fim de obstar que aí entrasse esse suco nocivo; e, demais, àqueles que podiam repelir esse mesmo suco para os intestinos e para o estômago, ou também às vezes obrigar o estômago a vomitá-lo: daí resulta que esses mesmos movimentos costumam acompanhar a paixão do ódio. E se pode ver a olho nu que há no fígado inúmeras veias ou condutos bastante largos, por onde o suco dos alimentos pode passar da veia porta para a veia cava, e daí para o coração, sem se deter de modo algum no fígado; mas há também uma infinidade de outras menores, onde ele pode deter-se, e que contêm sempre sangue de reserva, como faz também o baço; sangue esse que, sendo mais grosseiro do que aquele que se acha em outras partes do corpo, pode melhor servir de alimento ao fogo que há no coração, quando o estômago e os intestinos deixam de lho fornecer. Art. 109 Na alegria. Aconteceu também algumas vezes, no começo de nossa vida, que o sangue contido nas veias era um alimento bastante conveniente para manter o calor do corpo, e que elas o continham em tal quantidade que não havia a necessidade de buscar qualquer alimento alhures; o que excitou na alma a paixão da alegria e fez, ao mesmo tempo, com que os orifícios do coração se abrissem mais do que de costume e que os espíritos corressem, abundantemente, do cérebro, não só para os nervos que servem para abrir esses orifícios, mas também, em geral, para todos os outros que impelem o sangue das veias para o coração, e impedem que a ele venha de novo o do fígado, do baço, dos intestinos e do estômago; eis por que esses mesmos movimentos acompanham a alegria. Art. 110 Na tristeza. Às vezes, ao contrário, acontece que o corpo teve falta de alimento, e é o que deve ter feito sentir à alma a sua primeira tristeza, ao menos a que não foi unida ao ódio. Isso mesmo fez também com que os orifícios do coração se estreitassem, porque só recebem pouco sangue, e porque uma parte bem grande desse sangue veio do baço, pois este é como que o último reservatório que serve para fornecê-lo ao coração quando a ele não vem o suficiente de outras partes; eis por que os movimentos dos espíritos e dos nervos que servem para estreitar assim os orifícios do coração e para levar-lhe sangue do baço acompanham sempre a tristeza. Art. 111. No desejo. Enfim, todos os primeiros desejos que a alma pode ter nutrido, quando recém juntada ao corpo, consistiram em receber as coisas que lhe eram convenientes e repelir as que lhe eram nocivas; e foi para estes mesmos efeitos que os espíritos começaram desde então a mover todos os músculos e todos os órgãos dos sentidos em todas as formas que eles podem movê-los; esta é a causa de que agora, quando a alma deseja alguma coisa, todo o corpo se torna mais ágil e mais disposto a mover-se do que costuma ser sem isso. E quando acontece, além do mais, estar o corpo assim disposto, isso torna os desejos da alma mais fortes e mais ardentes. Art. 112 Quais são os sinais exteriores dessas paixões. O que estabeleci aqui faz entender suficientemente a causa das diferenças do pulso e de todas as outras propriedades que atribuí mais acima a essas paixões, sem que seja necessário que eu me detenha para explicá-las mais. Porém, como só notei em cada o que se pode observar quando ela está só, e que serve para conhecer os movimentos do sangue e dos espíritos que as produzem, resta-me ainda tratar de muitos sinais exteriores que costumam acompanhá-las, e que se percebem bem melhor quando muitas se acham misturadas em conjunto, como costumam estar, do que quando se acham separadas. Os principais destes signos são as ações dos olhos e do rosto, as mudanças de cor, os tremores, a languidez, o desmaio, os risos, as lágrimas, os gemidos e os suspiros. Art. 113 Das ações dos olhos e do rosto. Não há nenhuma paixão que alguma ação particular dos olhos não declare: e isso é tão manifesto em alguns, que mesmo os criados mais estúpidos podem notar nos olhos do amo se este está zangado com eles ou não está. Mas ainda que percebamos facilmente tais ações dos olhos e saibamos o que significam, nem por isso é fácil descrevê-las, porque cada uma se compõe de muitas mudanças que ocorrem no movimento e na figura do olho, as quais são tão particulares e tão pequenas que cada uma delas é imperceptível separadamente, embora o que resulta de sua conjunção seja bastante fácil de reparar. Pode-se dizer quase o mesmo das ações do rosto que também acompanham as paixões; pois, embora sejam maiores que as dos olhos, é todavia incomodo distingui-las, e são tão pouco diferentes que há homens que fazem quase a mesma expressão quando choram que outros quando riem. É verdade que existem algumas que são assaz notáveis, como as rugas da fronte, na cólera, e certos movimentos do nariz e dos lábios na indignação e na zombaria, mas não parecem ser tão naturais quanto voluntárias. E em geral todas as ações, tanto do rosto como dos olhos, podem ser modificadas pela alma, quando, querendo esconder sua paixão, ela imagina fortemente outra contrária; de sorte que podemos utilizá-las tanto para dissimular nossas paixões como para declará-las. Art. 114 Das mudanças de cor. Não podemos tão facilmente impedir-nos de ruborizar ou empalidecer quando alguma paixão nos dispõe a tanto, porque tais mudanças não dependem dos nervos e dos músculos, como as precedentes, e provêm mais imediatamente do coração, o qual se pode chamar a fonte das paixões, na medida em que prepara o sangue e os espíritos para produzi-las. Ora, é certo que a cor do rosto não vem senão do sangue, o qual, correndo continuamente do coração, através das artérias, para todas as veias, e de todas as veias para o coração, colore mais ou menos o rosto, conforme preencha mais ou menos as pequenas veias que se dirigem à sua superfície. Art. 115 Como a alegria faz ruborizar. Assim, a alegria torna a cor mais viva e mais vermelha porque, abrindo as comportas do coração, faz com que o sangue corra mais depressa em todas as veias e com que, tornando-se mais quente e mais sutil, infle moderadamente todas as partes do rosto, o que lhe dá um ar mais risonho e mais alegre. Art. 116 Como a tristeza faz empalidecer. A tristeza, ao contrário, estreitando os orifícios do coração, faz com que o sangue corra mais lentamente nas veias e com que, tornando-se mais frio e mais espesso, tenha necessidade de ocupar nelas menos lugar; de sorte que, retirando-se das mais largas, que são as mais próximas do coração, abandona as mais afastadas, e, sendo as do rosto as mais visíveis, isto o faz parecer pálido e descarnado, principalmente quando a tristeza é grande ou sobrevêm prontamente, como vemos no pavor, no qual a surpresa aumenta a ação que aperta o coração. Art. 117 Como se ruboriza muitas vezes estando-se triste. Mas acontece muitas vezes que não empalidecemos estando tristes, e que, ao contrário, ruborizamos; o que se deve atribuir às paixões que se juntam à tristeza, a saber, o amor ou o desejo, e às vezes também o ódio. Pois tais paixões aquecem ou agitam o sangue que vem do fígado, dos intestinos e de outras partes interiores, impelem-no para o coração, e daí, pela grande artéria, para as veias do rosto, sem que a tristeza que aperta de um e de outro lado os orifícios do coração possa impedir isso, exceto quando é excessiva. Mas, ainda que seja apenas moderada, impede facilmente que o sangue assim vindo às veias do rosto desça para o coração, enquanto o amor, o desejo ou o ódio para ele impelem outro sangue das partes interiores; eis por que este sangue, estando detido em torno da face, a torna rubra, e mesmo mais rubra do que durante a alegria, porque a cor do sangue parece tanto mais viva quanto corre menos rapidamente, e também porque assim se pode reunir mais nas veias da face do que quando os orifícios do coração estão mais abertos. Isto transparece principalmente na vergonha, que é composta de amor a si próprio e de um desejo premente de evitar a infâmia presente, o que faz vir o sangue das partes interiores para o coração, depois daí, através das artérias, para a face, e com isso uma moderada tristeza que impede esse sangue de voltar ao coração. O mesmo transparece tão comumente quando se chora; pois, como direi logo mais, é o amor unido à tristeza que causa a maioria dás lágrimas; e o mesmo surge na cólera, onde amiúde um rápido desejo de vingança se mistura ao amor, ao ódio e à tristeza. Art. 118 Dos tremores. Os tremores têm duas causas diversas: uma consiste no fato de chegarem às vezes muito poucos espíritos do cérebro para os nervos, e a outra de às vezes chegarem aí em demasia para poderem fechar bem as pequenas passagens dos músculos que, segundo foi dito no artigo 11, devem ser fechados para determinar os movimentos dos membros. A primeira causa aparece na tristeza e no medo, assim como quando trememos de frio, pois estas paixões podem, da mesma maneira que a frialdade do ar, espessar o sangue de tal forma que não forneça ao cérebro bastantes espíritos para enviá-los aos nervos. A outra causa aparece amiúde nos que desejam ardentemente algo, e nos que estão fortemente comovidos pela cólera, como também nos que estão ébrios: pois estas duas paixões, assim como o vinho, fazem ir às vezes tantos espíritos ao cérebro que não podem ser daí regularmente conduzidos para os músculos. Art. 119 Da languidez. A languidez é uma disposição para relaxar e ficar sem movimento, que é sentida em todos os membros; provém, tal como o tremor, do fato de não irem suficientes espíritos para os nervos, mas de uma forma diferente; pois a causa do tremor é que não os há bastantes no cérebro para obedecerem às determinações da glândula quando ela os impele para algum músculo, ao passo que o langor procede do fato de a glândula não os determinar a ir para alguns músculos de preferência a outros. Art. 120 Como ela é causada pelo amor e pelo desejo. E a paixão que causa mais comumente este efeito é o amor, unido ao desejo de uma coisa cuja aquisição não se imagina possível no momento presente; pois o amor ocupa de tal forma a alma em considerar o objeto amado, que emprega todos os espíritos que se encontram no cérebro em representar-lhe a imagem e detém todos os movimentos da glândula que não sirvam para tal efeito. E cumpre notar, no tocante ao desejo, que a propriedade que lhe atribuí de tornar o corpo mais móvel só lhe convém quando se imagina que o objeto desejado é tal que se pode desde esse momento fazer algo que sirva para adquiri-lo; pois se, ao contrário, se imagina que é impossível naquele momento fazer algo de útil para isso, toda a agitação do desejo permanece no cérebro, sem passar de modo algum aos nervos, e sendo aí inteiramente empregada em fortalecer a ideia do objeto desejado, deixa o resto do corpo languescente. Art. 121 Que também pode ser causada por outras paixões. É verdade que o ódio, a tristeza e mesmo a alegria também podem causar certo langor quando são muito violentos, porque ocupam inteiramente a alma em considerar seu objeto, principalmente quando se lhe junta o desejo de uma coisa para cuja aquisição em nada podemos contribuir no momento presente. Mas, como nos detemos muito mais a considerar os objetos que unimos a nós voluntariamente do que aqueles de que nos separamos ou quaisquer outros, e como a languidez não depende de uma surpresa, mas necessita de algum tempo para se formar, ela se encontra muito mais no amor do que em todas as outras paixões. Art. 122 Do desmaio. O desmaio não está muito afastado da morte, pois se morre quando o fogo que há no coração se extingue por completo, e só se cai em desmaio quando ele é de tal modo abafado que ainda permanecem alguns restos de calor que podem em seguida reacendê-lo. Ora, há muitas indisposições do corpo que nos podem levar assim a tombar em desfalecimento; mas entre as paixões apenas a extrema alegria, nota-se, dispõe desse poder; e creio que a forma para causar tal efeito é que, abrindo extraordinariamente os orifícios do coração, o sangue das veias entra nele tão de repente e em tão grande quantidade, que o calor não pode rarefazê-lo assaz prontamente para levantar as pequenas peles que fecham as entradas dessas veias: é por esse meio que ele abafa o fogo, o qual costuma manter quando entra no coração apenas com medida. Art. 123 Por que não se desmaia de tristeza. Parece que uma grande tristeza sobrevinda inopinadamente deve apertar de tal modo os orifícios do coração que pode também extinguir-lhe o fogo; mas, não obstante, não se observa que isso aconteça, ou, se acontece, é muito raramente; a razão disso, creio, é que não pode haver no coração tão pouco sangue que não baste para manter o calor, quando esses orifícios estão quase fechados. Art. 124 Do riso. O riso consiste em que o sangue que procede da cavidade direita do coração pela veia arteriosa, inflando de súbito e repetidas vezes os pulmões, faz com que o ar neles contido seja obrigado a sair daí com impetuosidade pela garganta, onde forma uma voz inarticulada e estrepitosa; e tanto os pulmões, ao se inflarem, quanto este ar, ao sair, impelem todos os músculos do diafragma, do peito e da garganta, mediante o que movem os do rosto que têm com eles qualquer conexão; e não é mais que essa ação do rosto, com essa voz inarticulada e estrepitosa, que chamamos riso. Art. 125 Por que ele não acompanha as maiores alegrias. Ora, ainda que pareça ser o riso um dos principais sinais da alegria, essa não pode todavia provocá-lo, exceto quando é apenas moderada e há alguma admiração ou algum ódio misturado com ela: pois verificamos por experiência que, quando estamos extraordinariamente alegres, nunca o motivo dessa alegria nos leva a estourar de riso, e não podemos mesmo ser a ele levados por qualquer outra causa, exceto quando estamos tristes; e a razão disso é que, nas grandes alegrias, o pulmão está sempre tão cheio de sangue que não pode encher-se mais repetidamente. Art. 126 Quais são as suas principais causas. E só posso notar duas causas que façam assim subitamente inflar o pulmão. A primeira é a surpresa da admiração, a qual, estando unida à alegria, pode abrir tão prontamente os orifícios do coração que grande abundância de sangue, entrando de repente em seu lado direito pela veia cava, aí se rarefaz e, passando daí à veia arteriosa, infla os pulmões. A outra é a mistura de algum líquido que aumenta a rarefação do sangue; e não encontro nada mais próprio para isso do que a parte mais fluida daquele que procede do baço, parte que, sendo impelida para o coração por alguma ligeira emoção de ódio, ajudada pela surpresa da admiração e misturando-se com o sangue que vem dos outros lugares do corpo, o qual a alegria faz entrar nele com abundância, pode levar este sangue a dilatar-se aí muito mais que de ordinário; da mesma maneira que vemos uma porção de outros líquidos se inflarem de repente, estando sobre o fogo, quando se lança um pouco de vinagre no vasilhame em que se acham; pois a mais fluida parte do sangue proveniente do baço é de natureza semelhante à do vinagre. A experiência também nos mostra que, em todas as circunstâncias que podem produzir este riso estrepitoso que vem do pulmão, há sempre algum pequeno motivo de ódio, ou ao menos de admiração. E aqueles cujo baço não é muito sadio estão sujeitos a ser não só mais tristes, mas também, por intervalos, mais alegres e mais dispostos a rir que os outros: posto que o baço envia duas espécies de sangue para o coração, uma muita espessa e grosseira, que causa a tristeza; a outra muito fluida e sutil, que causa a alegria. E amiúde, depois de rir muito, sentimo-nos naturalmente inclinados à tristeza, porque, estando esgotada a parte mais fluida do sangue do baço, a outra, mais grosseira, segue-a para o coração. Art. 127 Qual é sua causa na indignação. Quanto ao riso que acompanha algumas vezes a indignação, é comumente artificial e fingido; mas, quando natural, parece vir da alegria que sentimos ao verificar que o mal que nos indignou não pode ofender-nos e, com isso, que estamos surpresos com a novidade ou com o encontro inopinado deste mal; de modo que a alegria, o ódio e a admiração para ele contribuem. Todavia, quero crer que é possível também produzi-lo sem qualquer alegria, pelo simples movimento da aversão, que envia sangue do baço ao coração, onde é rarefeito e impelido para o pulmão ao qual infla facilmente se o encontra quase vazio; e em geral tudo o que pode inflar subitamente o pulmão desta maneira causa a ação exterior do riso, exceto quando a tristeza a transmuda na dos gemidos e dos gritos que acompanham as lágrimas. A esse propósito, Vives escreveu de si próprio que, estando uma vez muito tempo sem comer, os primeiros bocados que metia na boca o obrigavam a rir; o que podia provir do fato de seu pulmão, vazio de sangue devido à falta de alimento, se encher prontamente com o primeiro suco que passava do estômago para o coração, e que só a imaginação de comer podia levá-lo, antes mesmo que o dos alimentos ingeridos aí chegasse. Art. 128 Da origem das lágrimas. Assim como o riso jamais é causado pelas maiores alegrias, também as lágrimas nunca provêm de extrema tristeza, mas somente da que é moderada e acompanhada, ou seguida, de algum sentimento de amor, ou também de alegria. E, para compreender bem a sua origem, cumpre observar que, embora saia continuamente uma porção de vapores de todas as partes de nosso corpo, não há todavia nenhuma de onde saiam tantos como dos olhos, por causa da grandeza dos nervos ópticos e da multidão de pequenas artérias por onde eles lhes vêm; e que, assim como o suor se compõe apenas de vapores que, saindo das outras partes, se convertem em água em suas superfícies, do mesmo modo as lágrimas se tornam vapores que saem dos olhos. Art. 129 Da maneira como os vapores se transmudam em água. Ora, como já escrevi nos Meteoros, ao explicar de que forma os vapores do ar se convertem em chuva, que isso provém do fato de serem mais abundantes ou menos agitados que de ordinário, assim creio que, quando os que saem do corpo são muito menos agitados que de costume, ainda que não sejam tão abundantes, não deixam de se converter em água, o que provoca os suores frios que procedem algumas vezes da fraqueza, quando se está doente; e creio que, quando são muito mais abundantes, desde que não sejam com isso mais agitados, se convertem também em água, o que é causa do suor que surge quando se faz algum exercício. Mas então os olhos não suam, porque, durante os exercícios do corpo, como a maioria dos espíritos vai para os músculos que servem para movê-lo, vão menos para os olhos, através do nervo óptico. E é apenas uma e mesma matéria que compõe o sangue, enquanto está nas veias ou nas artérias, e os espíritos quando ele está no cérebro, nos nervos ou nos músculos, e os vapores quando sai em forma de ar, e enfim o suor ou as lágrimas quando se espessa em água sobre a superfície do corpo ou dos olhos. Art. 130 Como o que causa dor ao olho excita-o a chorar. E não consigo notar senão duas causas que façam os vapores que saem dos olhos se transmudarem em lágrimas. A primeira é quando a figura dos poros por onde passam é mudada por qualquer acidente que seja: pois isso, retardando o movimento desses vapores e modificando sua ordem, pode levá-los a se converterem em água. Assim, basta que um argueiro caia no olho para arrancar-lhe algumas lágrimas porque, excitando neles a dor, altera a disposição de seus poros; de sorte que, tornando-se alguns mais estreitos, as pequenas partes dos vapores passam neles menos depressa, e que, em vez de saírem como antes igualmente distantes umas das outras, e permanecerem assim separadas, acabam por encontrar-se, porque a ordem destes poros está perturbada, mediante o que elas se juntam e assim se convertem em lágrimas. Art. 131 Como se chora de tristeza. A outra causa é a tristeza seguida de amor ou de alegria, ou em geral de qualquer causa que leva o coração a impelir mais sangue pelas artérias. A tristeza é aí requerida porque, resfriando todo o sangue, estreita os poros dos olhos; mas, como à medida que os estreita diminui também a quantidade de vapores a que devem dar passagem, isto basta para produzir lágrimas se a quantidade desses vapores não for ao mesmo tempo aumentada por alguma outra causa; e nada a aumenta mais do que o sangue enviado ao coração, na paixão do amor. Por isso vemos que os que estão tristes não derramam continuamente lágrimas, mas apenas por intervalos, quando fazem alguma nova reflexão sobre os objetos pelos quais têm afeição. Art. 132 Dos gemidos que acompanham as lágrimas. E então os pulmões também se enchem às vezes de repente pela abundância do sangue que entra aí dentro e que expulsa o ar que costumam conter, o qual, saindo pela garganta, engendra os gemidos e os gritos que costumam acompanhar as lágrimas; e esses gritos são comumente mais agudos do que os que acompanham o riso, embora sejam produzidos quase da mesma maneira; a razão disso é que os nervos que servem para alargar ou estreitar os órgãos da voz, para torná-la mais grossa, ou mais aguda, estando unidos aos que abrem os orifícios do coração durante a alegria e os contraem durante a tristeza, fazem com que esses órgãos se alarguem ou se estreitem ao mesmo tempo. Art. 133 Por que choram facilmente os velhos e as crianças. As crianças e os velhos são mais inclinados a chorar do que os de meia-idade, mas é por razões diversas. Os velhos choram amiúde de afeição e de alegria; pois essas duas paixões unidas em conjunto enviam muito sangue ao coração e daí muitos vapores aos olhos; e a agitação desses vapores é de tal forma retardada pela frialdade de suas índoles que se convertem facilmente em lágrimas, conquanto nenhuma tristeza as precedesse. Porque se alguns velhos choram também mui facilmente por irritação, não é tanto o temperamento de seus corpos mas o de seus espíritos que os dispõe a tanto; e isso só acontece aos que são tão fracos que se deixam sobrepujar inteiramente por pequenos motivos de dor, medo ou piedade. O mesmo ocorre com as crianças, que não choram quase de alegria, mas muito mais de tristeza, mesmo quando ela não é acompanhada de amor; pois têm sempre bastante sangue para produzir muitos vapores, os quais, tendo seu movimento retardado pela tristeza, se convertem em lágrimas. Art. 134 Por que algumas crianças empalidecem em vez de chorar. Todavia, há algumas que empalidecem em vez de chorar quando estão zangadas; o que pode testemunhar haver nelas um juízo e uma coragem extraordinária, a saber, quando isso provém do fato de considerarem a grandeza do mal e se prepararem para forte resistência, tal como fazem os que são mais idosos; mas trata-se mais comumente de marca de má índole, a saber, quando isto provém do fato de serem propensas ao ódio ou ao medo; pois estas são paixões que diminuem a matéria das lágrimas, e vê-se, ao contrário, que as que choram mui facilmente são propensas ao amor e à piedade. Art. 135 Dos suspiros. A causa dos suspiros é muito diferente da causa das lágrimas, embora pressuponham, como essas, a tristeza; pois, ao passo que somos incitados a chorar quando os pulmões estão cheios de sangue, somos incitados a suspirar quando se acham quase vazios, e quando alguma imaginação de esperança ou de alegria abre o orifício da artéria venosa, que a tristeza estreitara, porque então, caindo o pouco sangue que resta nos pulmões de repente no lado esquerdo do coração por essa artéria venosa, e sendo para aí impelido pelo desejo de alcançar esta alegria, o qual agita ao mesmo tempo todos os músculos do diafragma e do peito, o ar é impelido prontamente pela boca para os pulmões, a fim de preencher neles o lugar deixado por esse sangue; e é isso que se chama suspiro. Art. 136 De onde provêm os efeitos das paixões que são particulares a certos homens. De resto, para suprir aqui em poucas palavras tudo quanto se poderia acrescentar no tocante aos diversos efeitos ou às diversas causas das paixões, contentar-me-ei em repetir o princípio em que se apoia tudo o que escrevi, a saber, que há tal ligação entre a nossa alma e o nosso corpo que, quando se uniu uma vez qualquer ação corporal com algum pensamento, nenhum dos dois torna a apresentar-se a nós sem que o outro também esteja presente, e que não são sempre as mesmas ações que unimos aos mesmos pensamentos; pois isso basta para dar a razão de tudo quanto cada um de nós pode advertir de particular em si ou em outrem, no tocante a esta matéria, e que não foi ainda explicado. E, por exemplo, é fácil pensar que as estranhas aversões de alguns, que os impedem de suportar o odor das rosas ou a presença de um gato, ou coisas semelhantes, provêm apenas do fato de terem sido no começo de suas vidas fortemente ofendidos por quaisquer objetos parecidos, ou então de terem compartilhado do sentimento de suas mães, que se viram por eles ofendidas quando grávidas; pois é certo que há relação entre todos os movimentos da mãe e os da criança que está em seu ventre, de modo que o que é contrário a uma prejudica a outra. E o odor das rosas pode ter causado grande dor de cabeça a uma criança quando ainda se achava no berço, ou então um gato pode tê-la amedrontado fortemente, sem que ninguém tivesse reparado nisso ou que em seguida restasse qualquer lembrança, embora a ideia da aversão que tivera então por estas rosas ou por este gato permaneça impressa em seu cérebro até o fim da vida. Art. 137 Do uso das cinco paixões aqui explicadas, na medida em que se relacionam ao corpo. Depois de ter dado as definições do amor, do ódio, do desejo, da alegria, da tristeza, e tratado de todos os movimentos corporais que as causam ou as acompanham, só nos resta considerar aqui o seu uso. No tocante a isso, cumpre observar que, segundo o que a natureza instituiu, elas se relacionam todas ao corpo e são dadas à alma apenas na medida em que a ele está unida; de sorte que o seu uso natural é incitar a alma a consentir e a contribuir nas ações que podem servir para conservar o corpo ou para torná-lo de alguma forma mais perfeito; e nesse sentido a tristeza e a alegria são as duas primeiras a serem empregadas. Pois a alma não é imediatamente advertida das coisas que prejudicam o corpo senão pelo sentimento que tem da dor, o qual produz nela primeiramente a paixão da tristeza, em seguida o ódio pelo que provoca esta dor, e em terceiro lugar o desejo de se livrar dela; do mesmo modo, a alma não é imediatamente advertida das coisas úteis ao corpo senão por uma espécie de prazer físico que, excitando nela a alegria, engendra em seguida o amor por aquilo que se crê ser a sua causa, e enfim o desejo de adquirir aquilo que pode fazer com que se continue nesta alegria ou então que se goze ainda, depois, de outra semelhante. O que mostra que todas as cinco são muito úteis com respeito ao corpo, e mesmo que a tristeza antecede de alguma forma e é mais necessária que a alegria, e o ódio mais que o amor, porque importa mais repelir as coisas que prejudicam e podem destruir do que adquirir as que acrescentam alguma perfeição sem a qual se pode subsistir. Art. 138 De seus defeitos e dos meios de corrigi-los. Mas embora este uso das paixões seja o mais natural que elas possam ter e embora todos os animais sem razão conduzam a sua vida apenas por movimentos corporais semelhantes aos que costumam em nós acompanhá-las, e nas quais elas incitam nossa alma a consentir, no entanto nem sempre tal uso é bom, posto que há muitas coisas nocivas ao corpo que não causam, no começo, nenhuma tristeza ou que proporcionam mesmo alegria, e outras que lhe são úteis, ainda que de início sejam incomodas. E, além disso, fazem parecer, quase sempre, tanto os bens como os males que representam, bem maiores e mais importantes do que são, de modo que nos incitam a procurar uns e a fugir de outros com mais ardor e mais cuidado do que é conveniente, como vemos também que os animais são muitas vezes enganados por meio de engodos, e que para evitar pequenos males precipitam-se em outros maiores; eis por que devemos servir-nos da experiência e da razão para distinguir o bem do mal e conhecer seu justo valor, a fim de não tomarmos um pelo outro e não nos entregarmos a nada com excesso. Art. 139 Do uso das mesmas paixões, na medida em que pertencem à alma, e primeiramente do amor. O que bastaria se tivéssemos em nós apenas o corpo, ou se este fosse a nossa melhor parte; mas, desde que é somente a menor, devemos principalmente considerar as paixões na medida em que pertencem à alma, em relação à qual o amor e o ódio provêm do conhecimento e precedem a alegria e a tristeza, exceto quando essas duas últimas tomam o lugar do conhecimento, de que são espécies. E, quando este conhecimento é verdadeiro, isto é, quando as coisas que ela nos leva a amar são verdadeiramente boas, e as que nos leva a odiar são verdadeiramente más, o amor é incomparavelmente melhor do que o ódio; ele não poderia ser demasiado grande e nunca deixa de produzir a alegria. Digo que este amor é extremamente bom porque, unindo a nós verdadeiros bens, nos aperfeiçoa outro tanto. Digo também que não poderia ser demasiado grande, pois tudo o que o mais excessivo pode fazer é nos unir tão perfeitamente a esses bens que o amor que temos particularmente por nós mesmos não introduza aí qualquer distinção, o que creio nunca poderá ser mau; e é necessariamente seguido de alegria, porque nos representa o que amamos como um bem que nos pertence. Art. 140 Do ódio. O ódio, ao contrário, não pode ser tão pequeno que não prejudique; e nunca existe sem tristeza. Digo que não pode ser demasiado pequeno porque não somos incitados a qualquer ação pelo ódio ao mal, que não pudéssemos sê-lo ainda mais pelo amor ao bem, ao qual é contrário, ao menos quando este bem e este mal são bastante conhecidos; pois confesso que o ódio ao mal, que só se manifesta pela dor, é necessário com respeito ao corpo; mas não falo aqui senão daquele que resulta de um conhecimento mais claro, e relaciono-o apenas com a alma. Digo também que nunca existe sem tristeza, porque, sendo o mal apenas uma privação, não pode ser concebido sem algum sujeito real em que exista; e nada há de real que não tenha em si alguma bondade, de modo que o ódio que nos afasta de algum mal afasta-nos, pelo mesmo meio, do bem a que está unido, e a privação desse bem, sendo representada à nossa alma como um defeito que é seu, excita nela a tristeza: por exemplo, o ódio que nos distancia dos maus costumes de alguém distancia-nos pelo mesmo meio de sua convivência, na qual poderíamos sem isso auferir algum bem cuja privação nos irrita. E assim em todos os outros ódios pode-se notar algum motivo de tristeza. Art. 141 Do desejo, da alegria e da tristeza. Quanto ao desejo, é evidente que, quando procede de um verdadeiro conhecimento, não pode ser mau, desde que não seja excessivo e esse conhecimento o regule. É evidente também que a alegria não pode deixar de ser boa, nem a tristeza de ser má, em relação à alma, porque é na tristeza que consiste toda incomodidade que a alma recebe do mal, e é na alegria que consiste todo gozo do bem que lhe pertence; de maneira que, se não tivéssemos corpo, eu ousaria dizer que não poderíamos nos abandonar demais ao amor e à alegria, nem evitar demais o ódio e a tristeza; mas os movimentos corporais que o acompanham podem ser todos nocivos à saúde, quando são muito violentos, e, ao contrário, ser-lhe úteis quando são apenas moderados. Art. 142 Da alegria e do amor, comparados com a tristeza e o ódio. De resto, posto que o ódio e a tristeza devem ser rejeitados pela alma, mesmo quando procedem de verdadeiro conhecimento, com maior razão devem sê-lo quando provêm de alguma falsa opinião. Mas é de duvidar que o amor e a alegria sejam bons ou não quando se acham tão mal fundados; e parece-me que, se os considerarmos precisamente naquilo que são em si próprios com respeito à alma, poderemos dizer que, embora a alegria seja menos sólida e o amor menos vantajoso do que quando possuem um melhor fundamento, não deixam de ser preferíveis à tristeza e ao ódio tão mal fundados: de modo que, nos encontros da vida em que não podemos evitar o azar de sermos enganados, agimos sempre melhor pendendo para as paixões que tendem para o bem do que para aquelas que dizem respeito ao mal, ainda que seja apenas para evitá-lo; e, muitas vezes, mesmo uma falsa alegria vale mais que uma tristeza cuja causa é verdadeira. Mas não ouso dizer o mesmo do amor em relação ao ódio; pois, quando o ódio é justo, afasta-nos apenas do objeto que contém o mal de que é bom estar separado, ao passo que o amor que é injusto nos une a coisas que podem prejudicar, ou, ao menos, que não merecem ser tão consideradas por nós como o são, o que nos avilta e nos rebaixa. Art. 143 Das mesmas paixões, na medida em que se referem ao desejo. E é mister notar exatamente que o que acabo de dizer dessas quatro paixões só se verifica quando são consideradas precisamente em si próprias e não nos levam a nenhuma ação; pois, na medida em que excitam em nós o desejo, por cujo intermédio regulam os nossos costumes, é certo que todas aquelas cuja causa é falsa podem prejudicar, e que, ao contrário, todas aquelas cuja causa é justa podem servir, e mesmo que, quando são igualmente mal fundadas, a alegria é comumente mais nociva que a tristeza, porque esta, infundindo retenção e receio, predispõe de alguma maneira à prudência, ao passo que a outra torna inconsiderados e temerários os que se lhe abandonam. Art. 144 Dos desejos cuja realização só depende de nós. Mas, dado que essas paixões não podem levar a nenhuma ação, exceto por intermédio do desejo que excitam, é particularmente esse desejo que devemos ter o cuidado de regular; e é nisso que consiste a principal utilidade da Moral: ora, como disse há pouco, esse desejo é sempre bom, quando segue um verdadeiro conhecimento, assim não pode deixar de ser mau, quando se funda em algum erro. E me parece que o erro mais comumente cometido no tocante aos desejos é o de não distinguirmos suficientemente as coisas que dependem inteiramente de nós das que não dependem de modo algum: pois, quanto às que dependem tão somente de nós, isto é, de nosso livre arbítrio, basta saber que são boas para não poder desejá-las com demasiado ardor, porque é seguir a virtude fazer as coisas boas que dependem de nós, e é certo que nunca se poderia ter um desejo ardente demais pela virtude, além de que, não podendo deixar de lograr o que desejamos dessa forma, porquanto só de nós é que depende, recebemos sempre a satisfação que daí esperávamos. Mas a falta que se costuma cometer nesse particular nunca é desejar demasiado, mas somente desejar demasiado pouco; e o soberano remédio contra isso é libertar o espírito, tanto quanto possível, de toda espécie de outros desejos menos úteis, e depois procurar conhecer muito claramente e considerar com atenção a bondade do que é de desejar. Art. 145 Dos que não dependem senão de outras causas, e o que é a fortuna. Quanto às coisas que não dependem de modo algum de nós, por boas que possam ser, jamais devemos desejá-las com paixão, não só porque podem não acontecer, e por isso nos afligir tanto mais quanto mais tivermos desejado, mas principalmente porque, ocupando nosso pensamento, elas nos desviam de dedicar nossa afeição a outras coisas cuja aquisição depende de nós. E há dois remédios gerais contra esses desejos vãos: o primeiro é a generosidade, de que falarei abaixo; o segundo é que devemos amiúde refletir sobre a providência divina, e nos representar que é impossível que alguma coisa aconteça de maneira diferente da determinada desde toda a eternidade por esta providência; de sorte que ela é como uma fatalidade ou uma necessidade imutável que cumpre opor à fortuna para destruí-la como uma quimera que provém apenas do erro de nosso entendimento. Pois não podemos desejar senão o que consideramos de uma maneira como possível, e não podemos considerar possíveis as coisas que só dependem de nós na medida em que pensamos que dependem da fortuna, isto é, que julgamos que possam acontecer, e que outrora aconteceram outras semelhantes. Ora, essa opinião baseia-se apenas no fato de não conhecermos todas as causas que contribuem para cada efeito; pois, quando uma coisa que estimamos depender da fortuna não ocorre, isso testemunha que alguma das causas necessárias para produzi-la falhou, e, por conseguinte, que era absolutamente impossível, e que jamais aconteceu outra semelhante, isto é, produção da qual houvesse faltado também uma causa semelhante: de modo que, se não tivéssemos ignorado isso de antemão, nunca a teríamos considerado como possível, nem, por conseguinte, a teríamos desejado. Art. 146 Dos que dependem de nós e de outrem. É mister, portanto, rejeitar inteiramente a opinião vulgar de que há fora de nós uma fortuna que faz com que as coisas sobrevenham ou não sobrevenham, a seu bel-prazer, e saber que tudo é conduzido pela providência divina, cujo decreto eterno é de tal modo infalível e imutável que, excetuando as coisas que este mesmo decreto quis pôr na dependência de nosso livre arbítrio, devemos pensar que, com respeito a nós, nada acontece que não seja necessário e como que fatal, de sorte que não podemos sem erro desejar que aconteça de outra forma. Mas, como a maioria de nossos desejos se estende a coisas que não dependem de nós nem todas de outrem, devemos exatamente distinguir nelas o que depende apenas de nós, a fim de estender nosso desejo tão somente a isso; e quanto ao mais, embora devamos considerar sua ocorrência inteiramente fatal e imutável, a fim de que nosso desejo não se ocupe de modo algum com isso, não devemos deixar de considerar as razões que levam mais ou menos a esperá-la, a fim de que essas razões sirvam para regular nossas ações: pois, por exemplo, se tivéssemos de tratar de algo em um lugar onde pudéssemos ir por dois caminhos diversos, um dos quais costuma ser muito mais seguro do que o outro, embora talvez o decreto da providência seja tal que, se formos pelo caminho considerado mais seguro, seremos certamente roubados, e que, ao contrário, poderemos passar pelo outro sem qualquer perigo, não devemos por isso ser indiferentes à escolha de um ou de outro, nem repousarmos sobre a fatalidade imutável desse decreto; mas a razão quer que escolhamos o caminho que costuma ser o mais seguro; e nosso desejo deve ser realizado nesse particular quando nós o seguimos, qualquer que seja o mal que daí nos sobrevenha, porque, sendo este mal em relação a nós inevitável, não temos nenhum motivo de aspirar a sermos dele isentos, mas somente executar da melhor forma o que nosso entendimento pode conhecer, assim como suponho que o executamos. E é certo que, quando nos exercitamos em distinguir assim a fatalidade da fortuna, habituamo-nos facilmente a regrar de tal modo nossos desejos, na medida em que sua realização não depende senão de nós, que eles podem sempre nos proporcionar inteira satisfação. Art. 147 Das emoções interiores da alma. Acrescentarei somente mais uma consideração que me parece servir muito para nos impedir de receber qualquer incomodidade das paixões; nosso bem e nosso mal dependem principalmente das emoções interiores que são excitadas na alma apenas pela própria alma, no que diferem dessas paixões, que dependem sempre de algum movimento dos espíritos; e, embora essas emoções da alma estejam muitas vezes unidas às paixões que se lhes assemelham, podem amiúde também encontrar-se com outras, e mesmo nascer das que lhe são contrárias. Por exemplo, quando um marido chora sua mulher morta, que (como acontece às vezes) ele ficaria irritado de vê-la ressuscitada, pode suceder que seu coração seja oprimido pela tristeza que nele provocam o aparato dos funerais e a ausência de uma pessoa a cujo convívio estava acostumado; e pode suceder que alguns restos de amor ou de piedade que se apresentam à sua imaginação arranquem verdadeiras lágrimas de seus olhos, não obstante sentir secreta alegria no mais íntimo da alma, emoção que possui tanto poder que a tristeza, e as lágrimas que a acompanham em nada podem diminuir sua força. E quando lemos aventuras estranhas num livro, ou quando as vemos representadas num teatro, isso excita às vezes em nós a tristeza, outras vezes a alegria, ou o amor, ou o ódio, e geralmente todas as paixões, segundo a diversidade dos objetos que se oferecem à nossa imaginação; mas com isso temos prazer de senti-las erguerem-se em nós, e esse prazer é uma alegria intelectual que pode tanto nascer da tristeza como de todas as outras paixões. Art. 148 Que o exercício da virtude é um soberano remédio contra as paixões. Ora, posto que essas emoções interiores nos tocam mais de perto e têm, por conseguinte, muito mais poder sobre nós do que as paixões que se encontram com elas, e das quais diferem, é certo que, contanto que a alma tenha sempre do que se contentar em seu íntimo, todas as perturbações que vêm de outras partes não dispõem de poder algum para prejudicá-la; mas antes servem para aumentar a sua alegria, pelo fato de, vendo que não pode ser por eles ofendida, conhecer com isso sua própria perfeição. E, para que a nossa alma tenha assim do que estar contente precisa apenas seguir estritamente a virtude. Pois, quem quer que haja vivido de tal maneira que sua consciência não possa censurá-lo de nunca ter deixado de fazer todas as coisas que julgou serem as melhores (que é o que chamo aqui seguir a virtude), recebe daí uma satisfação tão poderosa para torná-lo feliz que os mais violentos esforços da paixão nunca têm poder suficiente para perturbar a tranquilidade de sua alma. TERCEIRA PARTE DAS PAIXÕES PARTICULARES Art. 149 Da estima e do desprezo. Após haver explicado as seis paixões primitivas, que são como os gêneros de que todas as outras constituem espécies, observarei aqui sucintamente o que há de particular em cada uma dessas outras, e manterei a mesma ordem segundo a qual as enumerei mais acima. As duas primeiras são a estima e o desprezo; pois, embora esses nomes signifiquem ordinariamente apenas as opiniões desapaixonadas que se têm do valor de cada coisa, todavia, dado que dessas opiniões nascem às vezes paixões às quais não foram atribuídos nomes particulares, parece-me que esses possam ser-lhes atribuídos. E a estima, na medida em que é uma paixão, é uma inclinação da alma para representar a si o valor da coisa estimada, inclinação causada por movimento particular dos espíritos de tal modo conduzidos ao cérebro que fortalecem as impressões que servem para este efeito; como, ao contrário, a paixão do desprezo é uma inclinação da alma para considerar a baixeza ou a pequenez daquilo que despreza, causada pelo movimento dos espíritos que fortalecem a ideia desta pequenez. Art. 150 Que essas duas paixões são apenas espécies de admiração. Assim, essas duas paixões são apenas espécies de admiração, pois, quando não admiramos a grandeza nem a pequenez de um objeto, não lhe damos nem mais nem menos importância do que a razão nos dita que devemos dar, de forma que o estimamos ou o desprezamos então sem paixão; e, conquanto muitas vezes a estima seja excitada em nós pelo amor, e o desprezo pelo ódio, isso não é universal e provém apenas do fato de estarmos mais ou menos inclinados a considerar a grandeza ou a pequenez de um objeto em virtude de termos mais ou menos afeição por ele. Art. 151 Que podemos estimar-nos ou desprezar-nos a nós próprios. Ora, essas duas paixões podem em geral referir-se a todas as espécies de objetos; mas são principalmente notáveis quando as referimos a nós mesmos, isto é, quando é nosso próprio mérito que estimamos ou desprezamos; e o movimento dos espíritos que as causa é, então, de tal modo manifesto que muda mesmo a expressão, os gestos, o andar e em geral todas as ações dos que concebem uma melhor ou pior opinião de si próprios que de ordinário. Art. 152 Por que motivos podem estimar-nos. E, como uma das principais partes da sabedoria é saber de que forma e por que motivo cada qual deve estimar-se ou desprezar-se, procurarei aqui dizer minha opinião. Noto em nós apenas uma coisa que nos possa dar a justa razão de nos estimarmos, a saber, o uso de nosso livre arbítrio e o império que temos sobre as nossas vontades; pois só pelas ações que dependem desse livre arbítrio é que podemos com razão ser louvados ou censurados e ele nos faz de alguma maneira semelhante a Deus, tornando-nos senhores de nós próprios, contanto que não percamos, por covardia, os direitos que ele nos concede. Art. 153 No que consiste a generosidade. Assim creio que a verdadeira generosidade, que leva um homem a estimar-se ao mais alto ponto em que pode legitimamente estimar-se, consiste apenas, em parte, no fato de conhecer que nada há que verdadeiramente lhe pertença, exceto essa livre disposição de suas vontades, nem por que deva ser louvado ou censurado senão pelo seu bom ou mau uso, e, em parte, no fato de ele sentir em si próprio uma firme e constante resolução de bem usá-la, isto é, de nunca carecer de vontade para empreender e executar todas as coisas que julgue serem as melhores; o que é seguir perfeitamente a virtude. Art. 154 Que ela impede que se despreze os outros. Os que têm esse conhecimento e sentimento de si próprios persuadem-se facilmente de que cada um dos outros homens também os podem ter de si, porque nisso nada há que dependa de outrem. Daí por que nunca desprezam ninguém; e, embora vejam muitas vezes que os outros cometem faltas que fazem aparecer suas fraquezas, sentem-se todavia mais inclinados a desculpá-los do que a censurá-los e a crer que é mais por falta de conhecimento do que por falta de boa vontade que as cometem; e, como não pensam ser muito inferiores aos que possuem mais bens ou honras, ou mesmo mais espírito, mais saber, mais beleza, ou em geral que os superam em algumas outras perfeições, também não se julgam muito acima dos que superam, porque todas essas coisas lhes parecem muito pouco consideráveis em comparação com a boa vontade, pela qual tão somente eles se apreciam, e que supõem também existir, ou ao menos poder existir, em cada um dos outros homens. Art. 155 Em que consiste a humildade virtuosa. Assim, os mais generosos costumam ser os mais humildes; e a humildade virtuosa consiste apenas em que a reflexão que fazemos sobre a debilidade de nossa natureza e sobre as faltas que podemos ter cometido outrora, ou somos capazes de cometer agora, que não são menores do que as que podem ser cometidas por outros, é causa de não nos preferirmos a ninguém e de pensarmos que os outros, tendo seu livre arbítrio tanto quanto nós, também podem usá-lo bem. Art. 156 Quais são as propriedades da generosidade e como ela serve de remédio contra todos os desregramentos das paixões. Os que são generosos dessa forma são naturalmente levados a fazer grandes coisas, e todavia a nada empreender de que não se sintam capazes; e, como nada estimam mais do que fazer bem aos outros homens e desprezar o seu próprio interesse, por esse motivo são sempre perfeitamente corteses, afáveis e prestativos para com todos. E com isso são inteiramente senhores de suas paixões, particularmente dos desejos, do ciúme e da inveja, porque não há coisa cuja aquisição dependa deles que julguem valer bastante para ser muito desejada; e do ódio para com os homens, porque os estimam a todos; e do medo, porque a confiança que depositam na sua própria virtude os tranquiliza; e enfim da cólera, porque, apreciando muito pouco todas as coisas dependentes de outrem, nunca concedem tanta vantagem a seus inimigos a ponto de reconhecer que são por eles ofendidos. Art. 157 Do orgulho. Todos os que concebem boa opinião de si próprios por alguma outra causa, qualquer que seja, não têm verdadeira generosidade, mas somente orgulho, que é sempre muito vicioso, embora o seja tanto mais quanto a causa pela qual nós nos estimamos for mais injusta; e a mais injusta de todas é quando se é orgulhoso sem nenhum motivo; isto é, sem que se pense por isso haver em si qualquer mérito pelo qual se deva ser estimado, mas só porque não se faz caso do mérito, e porque, imaginando-se que a glória não passa de uma usurpação, crê-se que os que se atribuem mais glória são os que a têm mais. Esse vício é tão desarrazoado e absurdo, que eu teria dificuldade em acreditar que existem homens que se deixam levar por ele, se jamais alguém tivesse sido louvado injustamente; mas a lisonja é tão comum em toda parte que não há homem, por defeituoso que seja, que não se veja muitas vezes estimado por coisas que não merecem nenhum louvor, ou mesmo que merecem censura; o que dá ocasião aos mais ignorantes e aos mais estúpidos de incidirem nesta espécie de orgulho. Art. 158 Que os seus efeitos são contrários aos da generosidade. Mas, qualquer que seja a causa pela qual alguém se estima, se for diferente da vontade que se sente em si mesmo de usar sempre bem o próprio livre arbítrio, da qual eu disse que vem a generosidade, ela produz sempre um orgulho mui censurável, e que é tão diversa dessa verdadeira generosidade que produz efeitos inteiramente contrários; pois todos os outros bens, como o espírito, a beleza, as riquezas, as honras, etc., costumando ser tanto mais apreciados quanto em menos pessoas se encontrem, e sendo mesmo para a maioria de tal natureza que não podem ser comunicados a muitos, isso leva os orgulhosos a esforçarem-se por rebaixar todos os outros homens, e, sendo escravos de seus desejos, têm a alma incessantemente agitada pelo ódio, inveja, ciúme ou cólera. Art. 159 Da humildade viciosa. Quanto à baixeza ou humildade viciosa, consiste principalmente no fato de nos sentirmos fracos ou pouco resolutos, e, como se não dispuséssemos do uso inteiro de nosso livre arbítrio, de não podermos impedir-nos de fazer coisas das quais sabemos que nos arrependeremos depois; e também no fato de crermos que não podemos subsistir por nós próprios, nem passar sem muitas coisas cuja aquisição depende de outrem. Assim é diretamente oposta à generosidade; e acontece muitas vezes que os que possuem o espírito mais baixo são os mais arrogantes e soberbos, da mesma maneira como os mais generosos são os mais modestos e os mais humildes. Mas, enquanto os que têm o espírito forte e generoso não mudam de humor nas prosperidades ou adversidades que lhes ocorrem, os que o têm débil e abjeto são conduzidos apenas pela fortuna, e a prosperidade não os infla menos que a adversidade os torna humildes. Mesmo se vê amiúde que se rebaixam vergonhosamente perante aqueles de quem esperam algum proveito ou temem algum mal, e que ao mesmo tempo se elevam insolentemente acima daqueles de quem não esperam nem temem coisa alguma. Art. 160 Qual é o movimento dos espíritos nessas paixões. De resto, é fácil reconhecer que o orgulho e a baixeza não são somente vícios, mas também paixões, porque a sua emoção aparece fortemente no exterior dos que são subitamente inflados ou abatidos por alguma nova circunstância; mas é de duvidar que a generosidade e a humildade, que são virtudes, possam também ser paixões, porque seus movimentos aparecem menos, e porque se afigura que a virtude não concorda tanto com a paixão como o faz o vício. Todavia, não vejo razão que impeça que o mesmo movimento dos espíritos que serve para fortalecer um pensamento, quando tem um fundamento que é mau, não o possa fortalecer também, quando o seu fundamento é justo; e como o orgulho e a generosidade consistem apenas na boa opinião que temos de nós próprios, e só diferem em que esta opinião é injusta num e justa na outra, parece-me que podemos relacioná-los a uma mesma paixão, que é excitada por um movimento composto pelos da admiração, da alegria e do amor, tanto do que temos por nós próprios como do que temos pela coisa que leva alguém a se estimar: como, ao contrário, o movimento que excita a humildade, quer virtuosa, quer viciosa, é composto dos da admiração, da tristeza e do amor que se sente por si próprio, misturado com o ódio que se nutre pelos próprios defeitos, que fazem com que a gente se despreze; e toda a diferença que observo nesses movimentos é que o da admiração goza de duas propriedades: a primeira, que a surpresa a torna forte desde o começo, e a outra, que é igual em sua continuação, isto é, que os espíritos continuam movendo-se na mesma proporção no cérebro. Dessas propriedades a primeira encontra-se bem mais no orgulho e na baixeza do que na generosidade e na humildade virtuosa; e, ao contrário, a última se nota mais naquelas do que nessas duas outras; a razão disso é que o vício provem ordinariamente da ignorância, e que os que menos se conhecem são os mais sujeitos a se ensoberbecerem e a se humilharem mais do que devem, porque tudo quanto lhes acontece de novo os surpreende e faz com que, atribuindo-o a si próprios, se admirem e que se estimem ou se desprezem, conforme julguem que o que lhes sucede é ou não em seu proveito. Mas, como muitas vezes após uma coisa que os ensoberbeceu sobrevém outra que os humilha, o movimento de suas paixões é variável; ao contrário, nada há na generosidade que não seja compatível com a humildade virtuosa, nem aliás que as possa mudar, o que torna seus movimentos firmes, constantes e sempre muito semelhantes a si próprios. Mas não surgem tão de surpresa, porquanto os que se estimam dessa maneira conhecem suficientemente quais são as causas que os fazem estimarem-se; todavia, pode-se dizer que essas causas são tão maravilhosas (a saber, o poder de usar nosso livre arbítrio, que nos leva a nos apreciarmos a nós mesmos, e as imperfeições do sujeito em quem está esse poder, que nos levam a não nos estimarmos demais) que todas as vezes que no-las representamos de novo proporcionam sempre nova admiração. Art. 161 Como pode ser adquirida a generosidade. É mister notar que o que chamamos comumente virtudes são hábitos da alma que a dispõem a certos pensamentos, de modo que são diferentes destes pensamentos, mas podem produzi-los e reciprocamente serem por eles produzidas. É preciso notar também que tais pensamentos podem ser gerados somente pela alma, mas ocorre muitas vezes que algum movimento dos espíritos os fortaleça e, nesse caso, são ações de virtude e ao mesmo tempo paixões da alma; assim, embora não haja virtude à qual o bom nascimento pareça contribuir tanto como a que nos leva a nos apreciarmos apenas segundo o nosso justo valor, e ainda que seja fácil crer que todas as almas postas por Deus em nossos corpos não são igualmente nobres e fortes (o que me levou a chamar esta virtude de generosidade, segundo o uso de nossa língua, de preferência a magnanimidade, segundo o uso da Escola, onde não é muito conhecida), é certo, no entanto, que a boa formação muito serve para corrigir os defeitos do nascimento, e que, se nos ocuparmos muitas vezes em considerar o que é o livre arbítrio e quão grandes são as vantagens advindas do fato de se ter uma firme resolução de usá-lo bem, assim como, de outro lado, quão inúteis e vãos são todos os cuidados que afligem os ambiciosos, podemos excitar em nós a paixão e em seguida adquirir a virtude da generosidade, sendo esta como que a chave de todas as outras virtudes e um remédio geral contra todos os desregramentos das paixões; parece-me que tal consideração bem merece ser observada. Art. 162 Da veneração. A veneração ou o respeito é uma inclinação da alma não só para estimar o objeto que reverencia mas também para se lhe submeter com algum temor, a fim de procurar torná-lo favorável; de maneira que só alimentamos veneração pelas causas livres que julgamos capazes de nos fazerem bem ou mal, sem que saibamos qual dos dois hão de fazer; pois temos amor e devoção mais do que simples veneração por aquelas de quem não esperamos senão o bem e temos ódio por aquelas de quem não esperamos senão o mal; e, se não julgarmos que a causa deste bem ou deste mal seja livre, não nos submeteremos a ela para procurar torná-la favorável. Assim, quando os pagãos mostravam veneração pelos bosques, fontes ou montanhas, não eram propriamente essas coisas mortas que reverenciavam, mas as divindades que julgavam presidi-las. E o movimento dos espíritos que provoca esta paixão compõe-se daquele que excita a admiração e daquele que excita o medo, de que falarei adiante. Art. 163 Do desdém. Do mesmo modo, o que chamo desdém é a inclinação da alma para desprezar uma causa livre, julgando a seu respeito que, embora por sua natureza seja capaz de fazer bem ou mal, está, no entanto, tão abaixo de nós que não nos pode causar nem um nem outro. E o movimento dos espíritos que o excita é composto dos que provocam a admiração, a segurança ou a ousadia. Art. 164 Do uso dessas duas paixões. São a generosidade, a fraqueza do espírito ou a baixeza que determinam o bom e o mau uso dessas duas paixões: pois, quanto mais a alma é nobre e generosa, tanto maior é a inclinação para tributar a cada qual o que lhe pertence; e assim não se tem somente uma mui profunda humildade perante Deus, mas também se rende sem repugnância toda a honra e o respeito que é devido aos homens, a cada um segundo o grau e a autoridade que tem no mundo, e desprezam-se apenas os vícios. Ao contrário, os que possuem o espírito baixo e fraco estão sujeitos a pecar por excesso, às vezes por reverenciarem e temerem coisas que são dignas unicamente de desprezo, e outras vezes por desdenharem insolentemente as que mais merecem respeito; e passam amiúde mui prontamente da extrema impiedade à superstição, depois da superstição à impiedade, de sorte que não há vício nem desregramento de espírito de que não sejam capazes. Art. 165 Da esperança e do temor. A esperança é uma disposição da alma para se persuadir de que advirá o que deseja, a qual é causada por um movimento particular dos espíritos, a saber, pelo da alegria e do desejo misturados em conjunto; e o temor é outra disposição da alma que a persuade de que a coisa desejada não advirá; e é de notar que, embora essas duas paixões sejam contrárias, é possível tê-las as duas juntas, a saber, quando se representam ao mesmo tempo diversas razões, das quais umas fazem julgar que a realização do desejo é fácil e outras a fazem parecer difícil. Art. 166 Da segurança e do desespero. E nunca uma dessas paixões acompanha o desejo sem que não deixe algum lugar à outra: pois, quando a esperança é tão forte que expulsa inteiramente o temor, ela muda de natureza e se chama segurança ou confiança; e, quando estamos certos de que aquilo que desejamos advirá embora continuemos a querer que advenha, deixamos, no entanto, de ser agitados pela paixão do desejo, que levava a buscar com inquietação sua ocorrência; do mesmo modo, quando o receio é tão extremo que tira todo lugar à esperança, converte-se em desespero; e esse desespero, representando a coisa como impossível, extingue inteiramente o desejo, o qual só se dirige às coisas possíveis. Art. 167 Do ciúme. O ciúme é uma espécie de temor que se relaciona ao desejo de conservar a posse de algum bem; e não provém tanto da força das razões que fazem julgar que se pode perdê-lo como da grande estima que se lhe concede, a qual leva a examinar até os menores motivos de suspeita e a tomá-los por razões fortemente consideráveis. Art. 168 Em que essa paixão pode ser honesta. E, porque se deve ter mais cuidado em conservar os bens que são muito grandes do que os que são menores, essa paixão pode ser justa e honesta em certas ocasiões. Assim, por exemplo, um capitão que guarda uma praça de grande importância tem o direito de ser cioso, isto é, de desconfiar de todos os meios pelos quais seria possível surpreendê-la; e uma mulher honesta não é censurada de ser ciosa de sua honra, isto é, de preservar-se não só de proceder mal mas também de evitar até os menores motivos de maledicência. Art. 169 Em que é censurável. Mas rimos de um avarento quando é ciumento de seu tesouro, isto é, quando o come com os olhos e não se afasta dele com medo de que lho roubem; pois não vale a pena guardar o dinheiro com tanto zelo. E despreza-se um homem que sente ciúme de sua mulher, porque isso testemunha que não a ama seriamente e que alimenta má opinião de si ou dela: digo que não a ama seriamente; pois, se nutrisse um verdadeiro amor por ela, não teria a menor inclinação para dela desconfiar; mas não é a ela que propriamente ama, mas somente o bem que imagina consistir em sua posse exclusiva; e não temeria perder este bem, caso não julgasse que é indigno dele ou então que sua mulher é infiel. Além disso, esta paixão relaciona-se apenas a suspeitas e desconfianças, pois não é propriamente ser ciumento esforçar-se por evitar qualquer mal, quando se tem justo motivo de receá-lo. Art. 170 Da irresolução. A irresolução também é uma espécie de receio que, retendo a alma como suspensa entre várias ações possíveis, é causa de que não execute nenhuma, e assim que disponha de tempo para escolher antes de se decidir, no que verdadeiramente apresenta certa utilidade que é boa; mas, quando dura mais do que o necessário, e quando leva a empregar no deliberar o tempo requerido para agi-lo, é muito má. Ora, afirmo que é uma espécie de receio, conquanto possa acontecer, quando se deve escolher entre muitas coisas cuja bondade parece muito igual, que se permaneça incerto e irresoluto sem que se sinta por isso nenhum receio; pois esta espécie de irresolução provém somente daquilo que se apresenta, e não de qualquer emoção dos espíritos; eis por que não é uma paixão, a não ser que o temor de falhar na escolha aumente a incerteza. Mas este receio é tão comum e tão forte em alguns que muitas vezes, embora nada tenham a escolher e vejam apenas uma só coisa a tomar ou a deixar, ele os retém e faz com que se detenham inutilmente a procurar outras; e então é um excesso de irresolução que vem de um desejo demasiado grande de bem proceder e de uma fraqueza do entendimento, o qual, não tendo noções claras e distintas, as tem somente muito confusas: eis por que o remédio contra este excesso é o de acostumar-se a formar juízos certos e determinados no tocante a todas as coisas que se apresentem e a crer que se desempenha sempre o dever quando se faz o que se julga ser o melhor, ainda que talvez se julgue muito mal. Art. 171 Da coragem e da ousadia. A coragem, quando é uma paixão e não um hábito ou inclinação natural, é certo calor ou agitação que dispõe a alma a se entregar poderosamente à execução das coisas que ela quer fazer, de qualquer natureza que sejam; e a ousadia é uma espécie de coragem que dispõe a alma à execução das coisas que são as mais perigosas. Art. 172 Da emulação. E a emulação também é uma de suas espécies, mas em outro sentido; pois pode-se considerar a coragem como um gênero que se divide em tantas espécies quantos os objetos diferentes, e tantas outras quantas as suas causas: na primeira forma a ousadia é uma de suas espécies, na outra, a emulação; e esta última não é mais do que um calor que dispõe a alma a empreender coisas que espera lograr com êxito, porque as vê já logradas por outros; e assim trata-se de uma espécie de coragem, cuja causa externa é o exemplo. Digo causa externa porque deve haver, além desta, outra interna, que consiste em se ter o corpo de tal modo disposto que o desejo e a esperança possuam mais força para enviar grande quantidade de sangue ao coração do que o receio ou o desespero para impedi-lo. Art. 173 Como a ousadia depende da esperança. Porque é de notar que, embora o objeto da ousadia seja a dificuldade, da qual resulta comumente o temor ou mesmo o desespero, de modo que é nos assuntos mais perigosos e mais desesperados que mais se emprega ousadia e coragem, é preciso, não obstante, que se espere ou até que se tenha certeza que o fim proposto será logrado, para opor-se com vigor às dificuldades com que nos deparamos. Mas este fim é diferente desse objeto; pois não se poderia estar certo e desesperado de uma mesma coisa ao mesmo tempo. Assim, quando os Décios se atiravam ao meio dos inimigos e corriam de encontro a uma morte certa, o objeto de sua ousadia era a dificuldade de conservar-lhes a vida durante essa ação, dificuldade para a qual dispunham apenas do desespero, pois estavam certos de morrer; mas seu fim era animar os soldados com seu exemplo e fazê-los conquistar a vitória, em que depositavam esperança; ou então esse fim era também conquistar a glória após a morte, de que estavam seguros. Art. 174 Da covardia e do medo. A covardia é diretamente oposta à coragem, e é um langor ou uma frieza que impede que a alma se entregue à execução das coisas que efetuaria, se fosse isenta dessa paixão; e o medo ou o pavor, que é contrário à ousadia, não é apenas uma frieza mas também uma perturbação e um espanto da alma que lhe subtrai o poder de resistir aos males que ela pensa estarem próximos. Art. 175 Do uso da covardia. Ora, ainda que não possa persuadir-me de que a natureza haja dado aos homens qualquer paixão que seja sempre viciosa e não tenha nenhum uso bom e louvável, todavia é difícil para eu adivinhar em que essas duas podem servir. Parece-me apenas que a covardia tem certo emprego quando nos isenta de labores que poderíamos ser incitados a tomar por razões verossímeis, se outras razões mais certas, que os fizeram julgar inúteis, não houvessem provocado esta paixão; pois, além de isentar a alma desses labores, também serve então para o corpo, pelo fato de que, retardando o movimento dos espíritos, impede a dissipação de suas forças. Mas vulgarmente é muito nociva, porque desvia a vontade das ações úteis; e, como provém apenas do fato de não se ter suficiente esperança ou desejo, basta aumentar em si próprio essas duas paixões para corrigi-la. Art. 176 Do uso do medo. Pelo que concerne ao medo ou ao pavor, não vejo como possa jamais ser louvável e útil; por isso não constitui uma paixão particular, mas somente um excesso de covardia, de espanto e de receio, que é sempre vicioso, assim como a ousadia é um excesso de coragem que é sempre bom, contanto que seja bom o fim que se propõe; e, porque a principal causa do medo é a surpresa, nada há de melhor para se livrar dele do que usar de premeditação e preparar-se para todos os acontecimentos cujo temor possa causá-lo. Art. 177 Do remorso. O remorso de consciência é uma espécie de tristeza que vem da dúvida sobre se uma coisa que se faz ou se fez é boa e pressupõe necessariamente a dúvida: pois, se estivéssemos inteiramente seguros de que o que se faz é mau, abster-nos-íamos de fazê-lo, tanto mais que a vontade só se dirige às coisas que possuem alguma aparência de bondade; e, se tivéssemos certeza de que aquilo que já se fez é mau, deveríamos sentir arrependimento e não apenas remorso. Ora, o uso dessa paixão está em se examinar se a coisa de que se duvida é boa ou não, ou de se impedir que a façamos outra vez, enquanto não estivermos certos de que seja boa. Mas, porque pressupõe o mal, o melhor seria que jamais houvesse motivo de senti-la; e pode-se preveni-la através dos mesmos meios pelos quais é possível livrar-se da irresolução. Art. 178 Da zombaria. A derrisão ou zombaria é uma espécie de alegria mesclada de ódio que resulta do fato de se perceber algum pequeno mal numa pessoa que julgamos digna dele: temos ódio por esse mal e alegria por vê-lo em quem é digno dele; e, quando isto sobrevém inopinadamente, a surpresa da admiração é causa de cairmos na gargalhada, conforme o que já foi dito mais acima sobre a natureza do riso. Mas esse mal deve ser pequeno; pois, se for grande, não se pode crer que quem o tem o mereça, a não ser que sejamos de índole muito má ou lhe dediquemos muito ódio. Art. 179 Por que os mais imperfeitos costumam ser os mais zombeteiros. E vemos que os que possuem defeitos muito patentes, por exemplo, os que são coxos, caolhos, corcundas, ou que receberam alguma afronta em público, são particularmente inclinados à zombaria; pois, desejando ver todos os outros tão desgraçados como eles, estimam muito os males que lhes acontecem e consideram-nos dignos deles. Art. 180 Do uso da troça. Pelo que respeita à troça modesta, que repreende utilmente os vícios, fazendo-os parecer ridículos, sem que entretanto a gente mesma se ria disso nem testemunhe nenhum ódio contra as pessoas, não é uma paixão, mas uma qualidade de homem de bem, que patenteia a alegria de seu humor e a tranquilidade de sua alma, as quais constituem marcas de virtude e muitas vezes também a finura de seu espírito, por saber dar uma aparência agradável às coisas de que zomba. Art. 181 Da utilidade do riso na troça. E não é desonesto rir quando se ouvem as troças de outro; elas podem mesmo ser tais que significaria estar pesaroso não se rir delas; mas, quando troçamos nós próprios, é mais conveniente abstermo-nos disso, a fim de não parecermos surpresos com as coisas que dizemos, nem admirados com a finura que temos em inventá-los; e isto faz com que surpreendam tanto mais aos que as ouvem. Art. 182 Da inveja. O que se chama comumente inveja é um vício que consiste numa perversidade de natureza que leva certa gente a se desgostar com o bem que vê acontecer aos outros homens; mas sirvo-me aqui dessa palavra para significar uma paixão que nem sempre é viciosa. A inveja portanto, enquanto é uma paixão, é uma espécie de tristeza mesclada de ódio que nasce do fato de se ver acontecer o bem àqueles que julgamos indignos dele: o que só podemos pensar com razão apenas dos bens de fortuna; pois, quanto aos da alma ou mesmo do corpo, na medida em que os temos de nascença, é suficiente para sermos dignos deles tê-los recebido de Deus, antes de estarmos capacitados a cometer qualquer mal. Art. 183 Como pode ser justa ou injusta. Mas quando a fortuna envia bens a alguém que verdadeiramente não os merece, e quando a inveja não é provocada em nós senão porque, amando naturalmente a justiça, ficamos desgostosos pelo fato de ela não ser observada na distribuição desses bens, é um zelo que pode ser desculpável, mormente quando o bem que invejamos a outros é de tal natureza que pode converter-se em mal nas mãos deles; como é o caso de algum cargo ou serviço em cujo exercício eles possam comportar-se mal, e desejamos para nós o mesmo bem e somos impedidos de tê-lo, porque outros menos dignos o possuem, isso torna essa paixão mais violenta, e ela não deixa de ser desculpável, desde que o ódio nela contido se relacione apenas com a má distribuição do bem que se inveja e não com as pessoas que o possuem ou o distribuem. Mas há poucas que sejam tão justas e tão generosas a ponto de não alimentar ódio por aqueles que os impedem de adquirir um bem que não é comunicável a muitos, e que haviam desejado para eles próprios, embora os que o adquiriram sejam tanto ou mais dignos. E o que é ordinariamente mais invejado é a glória; pois, embora a dos outros não impeça que a ela possamos aspirar, ela torna, todavia, o seu acesso mais difícil e encarece o seu preço. Art. 184 De onde vem que os invejosos estejam sujeitos a ter a tez plúmbea. De resto, não há nenhum vício que prejudique tanto a felicidade dos homens como o da inveja: pois, os que trazem esta mácula, além de se afligirem a si próprios, perturbam também ao máximo de seu poder o prazer dos outros e têm ordinariamente a tez plúmbea, isto é, mesclada de amarelo e preto como que de sangue pisado: daí vem que a inveja seja chamada livor em latim; o que concorda muito bem com o que foi dito mais acima dos movimentos do sangue na tristeza e no ódio; pois este faz com que a bile amarela, proveniente da parte inferior do fígado, e a negra, proveniente do baço, espalhem-se do coração pelas artérias em todas as veias; e aquela faz com que o sangue das veias tenha menos calor e corra mais lentamente do que de ordinário, o que basta para tornar lívida a cor. Mas como a bile, tanto a amarela quanto a negra, pode também ser enviada às veias por muitas outras causas, e como a inveja não as impele para aí em quantidade bastante grande para mudar a cor da tez, a não ser que seja muito grande e de longa duração, não se deve pensar que todos os que apresentam essa cor sejam propensos a ela. Art. 185 Da compaixão. A compaixão é uma espécie de tristeza misturada de amor ou de boa vontade para com aqueles a quem vemos sofrer algum mal de que os julgamos indignos. Assim, é contrária à inveja em virtude de seu objeto, e à zombaria por considerá-los de outra maneira. Art. 186 Quais são os mais compassivos. Os que se sentem muito fracos e muito expostos às adversidades da fortuna parecem ser mais inclinados do que os outros a esta paixão, porque se representam o mal de outrem como podendo acontecer-lhes; e assim são comovidos à piedade mais pelo amor que dedicam a si próprios do que pelo que dedicam aos outros. Art. 187 Como os mais generosos são tocados por essa paixão. Entretanto, os que são mais generosos e têm o espírito mais forte, de modo que não temem nenhum mal em relação a si próprios e se mantêm para além do poder da fortuna, não estão isentos de compaixão quando veem a imperfeição dos outros homens e ouvem suas queixas; pois é uma parte da generosidade ter boa vontade para com todos. Mas a tristeza desta comiseração não é mais amarga; e, como a que é causada pelas ações funestas que se vê representarem num teatro, ela está mais no exterior e no sentido do que no interior da alma, a qual tem, entretanto, a satisfação de pensar que cumpre o seu dever, pelo fato de compadecer-se dos aflitos. E há nisto a diferença de que, ao passo que o vulgo tem compaixão dos que se lastimam, porque pensa que os males que sofrem são muito deploráveis, o principal objeto da compaixão dos maiores homens é a fraqueza dos que veem lastimar-se, porque não julgam que nenhum acidente que possa acontecer seja um mal tão grande quanto a covardia dos que não podem sofrer com constância; e, embora odeiem os vícios, nem por isso odeiam os que a eles estão sujeitos, e sentem por eles apenas compaixão. Art. 188 Quais são os que não são por ela tocados. Mas só os espíritos malignos e invejosos odeiam naturalmente todos os homens, ou então os que são tão brutais, e de tal forma estão cegados pela boa fortuna, ou desesperados pela má, que pensam que nenhum mal possa acontecer-lhes, são insensíveis à compaixão. Art. 189 Por que esta paixão excita a chorar. Além disso, chora-se mui facilmente nessa paixão, porque o amor, enviando muito sangue ao coração, faz com que saiam muitos vapores pelos olhos, e porque a frialdade da tristeza, retardando a agitação desses vapores, os faz transformarem-se em lágrimas, segundo o que foi dito acima. Art. 190 Da satisfação de si próprio. A satisfação que sempre têm os que seguem constantemente a virtude é um hábito de sua alma que se chama tranquilidade e descanso de consciência; mas a que se adquire de novo quando se praticou recentemente alguma ação que se julga boa é uma paixão, a saber, uma espécie de alegria, a qual creio ser a mais doce de todas, porquanto sua causa depende apenas de nós próprios. Todavia, quando essa causa não é justa, isto é, quando as ações de que se tira muita satisfação não são de grande importância, ou são mesmo viciosas, ela é ridícula e não serve senão para produzir um orgulho e uma arrogância impertinente: é o que se pode observar particularmente nos que, crendo-se devotos, são apenas carolas e supersticiosos; isto é, que, à sombra de irem amiudadamente à igreja, de recitarem muitas preces, de usarem cabelos curtos, de jejuarem, de darem esmola, pensam ser inteiramente perfeitos, e imaginam-se tão grandes amigos de Deus, que nada poderiam fazer que lhe desagradasse, e que tudo quanto lhes dita sua paixão é bom zelo, embora ela lhes dite às vezes os maiores crimes que os homens possam cometer, como trair cidades, matar príncipes, exterminar povos inteiros, só porque não seguem as suas opiniões. Art. 191 Do arrependimento. O arrependimento é diretamente contrário à satisfação de si próprio, e é uma espécie de tristeza proveniente de se julgar que se praticou qualquer má ação; e é muito amarga, porque sua causa procede apenas de nós; o que não impede, no entanto, que seja muito útil quando é verdade que a ação de que nos arrependemos é má e quando temos disso um conhecimento certo, visto que ela nos incita a proceder melhor outra vez. Mas acontece muitas vezes que os espíritos fracos se arrependem de coisas que praticaram sem saber seguramente que eram más; persuadem-se disso unicamente porque o temem; e se houvessem feito o contrário, arrepender-se-iam da mesma maneira: o que constitui neles uma imperfeição digna de compaixão; e os remédios contra esse defeito são os mesmos que servem para sanar a irresolução. Art. 192 Do favor. O favor é propriamente um desejo de que aconteça o bem a alguém para com o qual temos boa vontade; mas sirvo-me aqui dessa palavra para significar tal vontade na medida em que é provocada em nós por alguma boa ação daquele para com o qual temos boa vontade; pois somos naturalmente levados a amar os que fazem coisas que estimamos boas, ainda que daí não nos advenha nenhum bem. O favor, nesse sentido, é uma espécie de amor, e não de desejo, embora o desejo de que suceda o bem a quem favorecemos o acompanhe sempre; e está comumente unido à piedade, porque as desgraças que vemos ocorrer aos infelizes são causa de que efetuemos maior reflexão sobre seus méritos. Art. 193 Do reconhecimento. O reconhecimento também é uma espécie de amor excitado em nós por alguma ação daquele por quem o sentimos, e pela qual cremos que ele nos fez algum bem, ou ao menos que teve a intenção de fazê-lo. Assim, o reconhecimento contém tudo o que há no favor e mais o fato de se fundar numa ação que nos toca e que sentimos desejo de retribuir: eis por que possui muito mais força, principalmente nas almas, por pouco nobres e generosas que sejam. Art. 194 Da ingratidão. Quanto à ingratidão, não é uma paixão, pois a natureza não pôs em nós nenhum movimento dos espíritos que a excite; mas é apenas um vício diretamente oposto ao reconhecimento, na medida em que esse é sempre virtuoso e um dos principais laços da sociedade humana; eis por que tal vício só pertence aos homens brutais e tolamente arrogantes que pensam que todas as coisas lhes são devidas, ou aos estúpidos que não fazem nenhuma reflexão sobre os benefícios que recebem, ou aos fracos e abjetos que, sentindo a sua imperfeição e as suas necessidades, procuram baixamente o socorro dos outros, e, depois de havê-lo recebido, odeiam-nos, porque, não tendo vontade de lhes prestar outro semelhante, ou não tendo esperança de podê-lo, e imaginando que todo mundo é tão mercenário como eles e que não se pratica nenhum bem exceto com esperança de ser por ele recompensado, pensam que os enganaram. Art. 195 Da indignação. A indignação é uma espécie de ódio ou de aversão que se nutre naturalmente contra os que praticam algum mal, de qualquer natureza que seja; e muitas vezes está misturado com a inveja ou com a compaixão; mas seu objeto é totalmente diferente, pois só ficamos indignados contra os que fazem o bem ou o mal às pessoas que não o merecem, mas temos inveja dos que recebem esse bem, e sentimos compaixão pelos que recebem esse mal. É verdade que de alguma maneira representa praticar o mal possuir um bem de que não se é digno; o que foi talvez a causa pela qual Aristóteles e seus seguidores, supondo que a inveja é sempre um vício, deram o nome de indignação à que não é viciosa. Art. 196 Por que ela está às vezes unida à compaixão e outras vezes à zombaria. É também, de certo modo, receber o mal o fazê-lo: daí resulta que alguns juntam à sua indignação a compaixão, e outros a zombaria, conforme estejam dotados de boa ou má vontade com relação aos que veem cometer faltas, e é assim que o riso de Demócrito e os prantos de Heráclito podem ter procedido da mesma causa. Art. 197 Que ela é muitas vezes acompanhada da admiração e não é incompatível com a alegria. A indignação é também amiúde acompanhada de admiração: pois costumamos supor que todas as coisas serão feitas da maneira que julgamos boa. Eis por que, quando acontecem de outro modo, isso nos surpreende e nos admira. Ela tampouco é incompatível com a alegria, embora esteja mais ordinariamente unida à tristeza: pois, quando o mal que nos indigna não pode prejudicar-nos e consideramos que não queríamos fazer algo semelhante, isto nos proporciona certo prazer; e é talvez uma das causas do riso que acompanha às vezes tal paixão. Art. 198 De seu uso. De resto, a indignação se nota muito mais nos que querem parecer virtuosos do que nos que o são verdadeiramente; pois, embora os que amam a virtude não possam ver sem alguma aversão os vícios dos outros, não se apaixonam senão contra os maiores e extraordinários. É ser difícil e tristonho o sentir muita indignação por coisas de pouca importância; é ser injusto senti-las pelas que não são em nada censuráveis; e é ser impertinente e absurdo não restringir essa paixão às ações dos homens, e estendê-la às obras de Deus ou da natureza, como o fazem os que, não estando jamais contentes com a sua condição nem com a sua fortuna, ousam achar o que dizer da conduta do mundo e dos segredos da providência. Art. 199 Da cólera. A cólera também é uma espécie de ódio ou de aversão que alimentamos contra os que praticaram algum mal, ou procuraram prejudicar, não indiferentemente a quem quer que seja, mas particularmente a nós. Assim, contém tudo o que a indignação contém e ainda mais o fato de fundar-se numa ação que nos toca e de que desejamos nos vingar; pois esse desejo a acompanha quase sempre; e ela é diretamente oposta ao reconhecimento, como a indignação ao favor; mas é incomparavelmente mais violenta que essas três outras paixões, porque o desejo de repelir coisas nocivas e de se vingar é o mais imperativo de todos. O desejo unido ao amor que se tem por si próprio é que fornece à cólera toda a agitação do sangue que a coragem e a ousadia podem causar; e o ódio faz que seja principalmente o sangue bilioso, vindo do baço e das pequenas veias do fígado, que receba esta agitação e entre no coração, onde, devido à sua abundância e à natureza da bile a que está misturado, excita um calor mais áspero e mais ardente do que o que podem aí excitar o amor ou a alegria. Art. 200 Por que os que ela faz enrubescer são menos de recear do que os que ela faz empalidecer. E os sinais exteriores dessa paixão são diferentes, conforme os diversos temperamentos das pessoas e a diversidade das outras paixões que a compõem ou se lhe juntam. Assim, há os que empalidecem ou tremem quando se encolerizam e há os que enrubescem ou mesmo choram; e julga-se comumente que a cólera dos que empalidecem é mais de temer do que a cólera dos que enrubescem: a razão disso é que, quando não se quer, ou não se pode tirar vingança de outra forma, exceto pela expressão ou por palavras, emprega-se todo o calor e toda a força desde o início da comoção, o que é causa de enrubescer; além do que, às vezes, o pesar e a piedade que se tem por si próprio, porque a gente não pode vingar-se de outra maneira, são causas de chorar. E, ao contrário, os que se reservam e se decidem a uma maior vingança tornam-se tristes porque se julgam a isso obrigados pela ação que os põe em cólera; e sentem algumas vezes receio dos males que podem seguir-se da resolução por eles tomada, o que os torna primeiro pálidos, frios e trêmulos; mas, quando chegam em seguida a executar a sua vingança, esquentam-se tanto mais quanto mais frio sentiram no começo, tal como vemos que as febres que se iniciam pelo frio costumam ser as mais fortes. Art. 201 Que há duas espécies de cólera e os que têm mais bondade são os mais sujeitos à primeira. Isso nos adverte de que se podem distinguir duas espécies de cólera: uma que é muito rápida e se manifesta muito por fora, mas que no entanto tem pouco efeito e pode facilmente aplacar-se; outra que não aparece tanto no início, mas que rói mais o coração e tem efeitos mais perigosos. Os que possuem muita bondade e muito amor são os mais sujeitos à primeira; pois ela não nasce de um profundo ódio, mas de uma pronta aversão que os surpreende, porque, sendo propensos a imaginar que todas as coisas devem seguir segundo a maneira que julgam ser a melhor, tão logo acontecem de outra forma admiram-se e ofendem-se, amiúde, mesmo sem que a coisa os haja tocado em particular, visto que, tendo muita afeição, interessam-se por aqueles a quem amam tal como por si próprios. Assim, o que seria, para outro, motivo apenas de indignação, é para eles motivo de cólera; e porque a inclinação que têm para amar os leva a ter muito calor e muito sangue no coração, a aversão que os surpreende não pode enviar para ele tão pouca bile que não cause de início grande emoção neste sangue; mas esta emoção quase não dura, porque a força da surpresa não continua e porque, tão logo se apercebem de que o motivo que os irritou não devia emocioná-los tanto, arrependem-se. Art. 202 Que são as almas fracas e baixas que se deixam dominar pela outra. A outra espécie de cólera, em que predomina o ódio e a tristeza, não é de começo tão aparente, a não ser talvez porque faz empalidecer o rosto; mas sua força é aumentada pouco a pouco pela agitação de ardente desejo de se vingar excitado no sangue, o qual, estando misturado com a bile que é impelida para o coração da parte inferior do fígado e do baço, provoca nele um calor fortemente áspero e picante. E como são as almas mais generosas que sentem mais reconhecimento, assim são as mais orgulhosas, mais baixas e mais débeis que se deixam mais dominar por essa espécie de cólera; pois as injúrias parecem tanto maiores quanto mais o orgulho nos leva a nos estimarmos a nós próprios, e também tanto maiores quanto mais apreciamos os bens que elas tiram, os quais se estimam tanto mais quanto mais fraca e mais baixa é a alma, porque são bens que dependem de outrem. Art. 203 Que a generosidade serve de remédio contra seus excessos. Demais, ainda que essa paixão seja útil para nos dar vigor a fim de repelir as injúrias, não há, todavia, nenhuma de que se devam evitar os excessos com mais cuidado, porque, perturbando o juízo, levam muitas vezes a cometer faltas de que depois se tem arrependimento, e mesmo porque algumas vezes impedem que essas injúrias sejam tão bem repelidas como poderíamos fazer se sentíssemos menos emoção. Mas, como nada há que a torne mais excessiva do que o orgulho, creio que a generosidade é o melhor remédio que se possa encontrar contra seus excessos, porque, levando-nos a apreciar muito pouco todos os bens que podem ser arrebatados, e ao contrário, a estimar muito a liberdade e o império absoluto de nós próprios, e, ainda, a deixar de tê-lo quando qualquer pessoa nos pode ofender, ela faz com que tenhamos apenas desprezo ou quando muito indignação em face das injúrias com que os outros costumam ofender-se. Art. 204 Da glória. O que recebe aqui o nome de glória é uma espécie de alegria fundada no amor que se tem por si próprio e que provém da opinião ou da esperança de sermos louvados por alguns outros. Assim, é diferente da satisfação interior que nasce da opinião de se ter feito alguma boa ação; pois às vezes somos louvados por coisas que não cremos ser boas e censurados por outras que cremos ser melhores: mas uma e outra são espécies de estima que temos por nós próprios, bem como espécies de alegria; pois é motivo de nos apreciarmos o ver que somos apreciados pelos outros. Art. 205 Da vergonha. A vergonha, ao contrário, é uma espécie de tristeza também fundada no amor a si próprio e que provém da opinião ou do temor de sermos censurados; é, além do mais, uma espécie de modéstia ou de humildade e desconfiança de si próprio: pois, quando a gente se estima tanto que não pode imaginar-se desprezada por ninguém, não se pode facilmente ter vergonha. Art. 206 Do uso dessas duas paixões. Ora, a glória e a vergonha têm o mesmo uso pelo fato de nos incitarem à virtude, uma pela esperança e a outra pelo temor; é somente necessário instruir o juízo no tocante ao que é verdadeiramente digno de censura ou louvor, a fim de não ficarmos envergonhados de proceder bem e não auferirmos vaidade de nossos vícios, como acontece a muitos. Mas não é bom despojar-se inteiramente dessas paixões, tal como faziam outrora os cínicos; pois, ainda que o povo julgue muito mal, dado que não podemos viver sem ele, e que nos importa sermos estimados por ele, devemos muitas vezes seguir suas opiniões mais do que as nossas, no tocante ao exterior de nossas ações. Art. 207 Da impudência. A impudência ou o descaramento, que é um desprezo pela vergonha, e amiúde também pela glória, não é uma paixão, porque não há em nós nenhum movimento particular dos espíritos que a excite; mas é um vício oposto à vergonha, e também à glória, na medida em que uma e outra são boas, assim como a ingratidão se opõe ao reconhecimento e a crueldade à compaixão. E a principal causa do descaramento decorre de termos recebido muitas vezes grandes afrontas; pois não há pessoa que, quando jovem, não imagine que o louvor é um bem e a infâmia um mal muito mais importantes à vida do que se verifica por experiência mais tarde, quando, tendo-se recebido algumas afrontas assinaladas, a gente se vê inteiramente privada de honra e desprezada por todos. Eis por que se tornam descarados os que, não medindo o bem e o mal senão pelas comodidades do corpo, veem que continuam gozando destas, após tais afrontas, tanto quanto antes, ou mesmo às vezes bem mais, porque ficam desobrigados de muitas coerções que a honra lhes impunha e porque, se a perda de bens estiver unida à sua desgraça, encontram-se pessoas caridosas que lhos dão. Art. 208 Do fastio. O fastio é uma espécie de tristeza proveniente da mesma causa de que proveio antes a alegria; pois somos de tal forma compostos, que a maioria das coisas de que desfrutamos são boas em relação a nós apenas por certo tempo, e tornam-se em seguida incomodas: o que transparece principalmente no beber e no comer, que são úteis apenas enquanto temos apetite e são nocivos quando não mais o temos; e, porque cessam de ser então agradáveis ao gosto, chamou-se essa paixão fastio. Art. 209 Do pesar. O pesar é também uma espécie de tristeza, que é uma particular amargura, pelo fato de estar sempre unida a algum desespero e à memória do prazer que o gozo nos deu; pois nunca lamentamos senão os bens de que gozamos e que se acham de tal modo perdidos que não alimentamos nenhuma esperança de recuperá-los ao tempo e à maneira em que os lamentamos. Art. 210 Do júbilo. Enfim, o que chamo júbilo é uma espécie de alegria que apresenta de particular o fato de sua doçura ser aumentada com a lembrança dos males que sofremos e dos quais nos sentimos aliviados, da mesma maneira como nos sentimos livres de algum pesado fardo que tivéssemos carregado por longo tempo sobre nossos ombros. E nada vejo de muito notável nessas três paixões; por isso as coloquei aqui apenas para seguir a ordem da enumeração que fiz mais acima; mas parece-me que essa enumeração foi útil para mostrar que não omitimos nenhuma que fosse digna de alguma consideração particular. Art. 211 Um remédio geral contra as paixões. E agora que as conhecemos todas, temos muito menos motivo de as temer do que tínhamos antes; pois verificamos que são todas boas por natureza e que só devemos evitar o seu mau uso ou os seus excessos, contra os quais os remédios que expliquei poderiam bastar, se cada um tivesse cuidado bastante para praticá-los. Mas, como incluí entre esses remédios a premeditação e a indústria pela qual se podem corrigir os defeitos naturais, exercitando-nos em separar em nós os movimentos do sangue e dos espíritos dos pensamentos aos quais costumam estar unidos, confesso que há poucas pessoas que se tenham suficientemente preparado dessa maneira contra todas as espécies de encontros, e que esses movimentos excitados no sangue pelos objetos das paixões seguem primeiro tão prontamente das simples impressões que se fazem no cérebro e da disposição dos órgãos, ainda que a alma não contribua para tanto, de qualquer maneira, que não há nenhuma sabedoria humana capaz de resistir-lhes quando não estamos para isso bem preparados. Assim, muitos não poderiam abster-se de rir, quando lhes fazem cócegas, embora não colham daí nenhum prazer; pois a impressão da alegria e da surpresa que outrora os fez rir pelo mesmo motivo, estando desperta em sua fantasia, faz com que seus pulmões sejam subitamente inflados, contra a vontade, pelo sangue que o coração lhes envia. Assim, os que têm, por natureza, forte pendor para as emoções da alegria e da compaixão, ou do medo, ou da cólera, não podem impedir-se de desmaiar, ou de chorar, ou de tremer, ou de ter o sangue todo agitado como se tivessem febre, quando a sua fantasia é fortemente tocada pelo objeto de alguma dessas paixões. Mas o que se pode sempre fazer em tal ocasião, e que eu julgo poder apresentar aqui como o remédio mais geral e o mais fácil de praticar contra todos os excessos das paixões, é, sempre que se sinta o sangue assim agitado, ficar advertido e lembrar-se de que tudo quanto se apresenta à imaginação tende a enganar a alma e a fazer com que as razões empregadas em persuadir o objeto de sua paixão lhe pareçam muito mais fortes do que são, e as que servem para dissuadir muito mais fracas. E quando a paixão persuade apenas de coisas cuja execução sofre alguma delonga, cumpre abster-se de pronunciar na hora qualquer julgamento e distrair-se com outros pensamentos até que o tempo e o repouso tenham apaziguado inteiramente a emoção que se acha no sangue. E, enfim, quando ela incita a ações no tocante às quais é necessário tomar uma resolução imediata, é mister que a vontade se aplique principalmente a considerar e a seguir as razões contrárias àquelas que a paixão representa, ainda que pareçam menos fortes: como quando se é inopinadamente atacado por algum inimigo e a ocasião não permite que se empregue algum tempo em deliberar. Mas o que me parece que os que estão acostumados a refletir sobre as suas ações podem sempre fazer é, quando se sentirem tomados de medo, esforçarem-se por desviar o pensamento da consideração do perigo, representando-se as razões pelas quais há muito mais segurança e mais honra na resistência do que na fuga; e, ao contrário, quando sentirem que o desejo de vingança e a cólera os incitam a correr inconsideradamente para aqueles que os atacam, lembrar-se-ão de pensar que é uma imprudência o perder-se, quando é possível sem desonra salvar-se, e que, se a partida é muito desigual, vale mais efetuar uma honesta retirada ou tomar quartel do que expor-se brutalmente a uma morte certa. Art. 212 Que é somente delas que depende todo o bem e todo o mal desta vida. De resto, a alma pode ter os seus prazeres à parte; mas, quanto aos que lhe são comuns com o corpo, dependem inteiramente das paixões: de modo que os homens que elas podem mais emocionar são capazes de apreciar mais doçura nesta vida. É verdade que também podem encontrar nela mais amargura, quando não sabem bem empregá-las e quando a fortuna lhes é contrária; mas a sabedoria é principalmente útil neste ponto, porque ensina a gente a tornar-se de tal forma seu senhor e a manejá-las com tal destreza que os males que causam são muito suportáveis, tirando-se mesmo certa alegria de todos.