George Berkeley – Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano. PREFÁCIO DO AUTOR O que hoje publico pareceu-me depois de longo e minucioso estudo inteiramente exato, e de algum proveito, em especial aos já tocados de ceticismo ou desejosos de uma demonstração da existência e imaterialidade de Deus ou da natural imortalidade da alma. Seja assim ou não, basta-me que o leitor o examine imparcialmente, pois nenhum outro êxito quero para o que escrevi senão o acordo com a verdade. Para isso peço ao leitor que suspenda o juízo até ter lido tudo com a atenção e a reflexão que o assunto parece merecer. Alguns passos em separado podem levar (e o caso é inevitável), a graves erros de interpretação e a consequências absurdas, que uma leitura cuidada mostrará não derivarem deles. Mesmo uma leitura completa mas superficial trairá provavelmente o meu pensamento; mas para o leitor refletido confio que será claro e óbvio. Quanto à novidade e singularidade de algumas noções apresentadas, espero que seja desnecessário tecer a apologia. Muito fraco ou muito pouco dado ao saber será quem rejeite uma verdade demonstrável só por ela ser nova ou contrária a prejuízos da humanidade. Por isso tratei de prevenir, se for possível, a censura precipitada dos que são prontos em condenar uma opinião antes de tê-la verdadeiramente compreendido. INTRODUÇÃO 1. Não sendo a filosofia senão O desejo da sabedoria e da verdade, é de esperar dos que nela gastaram o melhor do seu tempo e do seu trabalho que fruam de maior calma e serenidade espiritual, maior clareza e evidência de conhecimento, e sejam menos assediados por dificuldades e dúvidas do que os outros homens. Apesar disso, vemos o grosso iletrado da humanidade percorrer o trilho do simples senso comum, governado por ditames da natureza, com facilidade e sem perturbação. Nada do que é familiar lhes parece inexplicável ou duro de entender. Não se queixam de falta de evidência nos sentidos, e o perigo do ceticismo não os ameaça. Mas apenas saímos dos sentidos e do instinto para a luz de um princípio superior, para meditar, pensar e refletir na natureza das coisas, mil escrúpulos surgem no espírito sobre o que antes parecia compreendermos claramente. De toda a parte se nos levantam preconceitos, e erros dos sentidos; e, ao tentar corrigi-los pela razão, insensivelmente caímos em singulares paradoxos, dificuldades, inconsistências, que se multiplicam ao progredir na especulação, até que depois de ter percorrido verdadeiros labirintos nos achamos onde estávamos; ou, o que é pior, entregues a um mísero ceticismo. 2. Dá-se como causa disto a obscuridade das coisas ou a natural fraqueza e imperfeição do nosso conhecer. Diz-se que as nossas faculdades são poucas, dadas pela natureza para conservação e comodidade da vida, não para penetrar a essência e constituição das coisas. Demais, quando o espírito finito do homem quer ocupar-se do que participa da infinidade, não admira vê-lo cair em absurdos e contradições de que não consegue desenredar-se, por ser da natureza do infinito a sua incompreensibilidade pelo finito. 3. Mas talvez sejamos injustos conosco situando o defeito originariamente nas nossas faculdades e não no mau uso delas. É difícil aceitar que deduções corretas de princípios verdadeiros aportem a consequências inaceitáveis ou inconsistentes. Devemos crer que Deus foi mais liberal com os homens, e não lhes deu um forte desejo de conhecimento colocado fora do seu alcance. Isto se oporia ao método indulgente da Providência, que a todos os apetites inspirados às suas criaturas forneceu ordinariamente meios - se justamente utilizados - de poder satisfazê-los. Além disso parece-me que a maior parte, se não todas as dificuldades que até agora detiveram os filósofos e barraram o caminho do conhecimento, nós as provocamos, levantando a poeira e depois queixando-nos de não ver. 4. Tentarei pois descobrir os princípios introdutores desta dúvida e incerteza, destes absurdos e contradições em várias escolas de filosofia, a ponto de os homens mais sábios terem julgado incurável a nossa ignorância, como fruto natural da fraqueza e limitação das nossas faculdades. Decerto vale bem a pena inquirir estritamente dos primeiros princípios do conhecimento humano, em especial se há motivo de suspeitar que as barreiras e dificuldades encontradas pelo espírito na busca da verdade não resultam de obscuridade e complexidade do objeto ou natural defeito de compreensão, tanto quanto de falsos princípios em que se tem insistido e devem rejeitar-se. 5. Bem parece tarefa difícil e desanimadora, se pensar quantos homens grandes e extraordinários me precederam nela; mas tenho alguma esperança considerando que nem sempre as vistas largas são as mais claras, e que um míope, obrigado a colocar o objeto mais perto, pode talvez por um exame próximo descobrir o que não viram muito melhores olhos. 6. Para preparar o leitor a mais fácil inteligência do que se segue, convém pôr como introdução alguma coisa sobre a natureza e o abuso da linguagem. Mas o deslindar deste tema de certo modo antecipa o meu plano, por tratar-se do que parece ter sido origem principal da dúvida e complexidade da especulação como de erros e dificuldades inúmeras em quase todos os domínios do conhecimento. E foi a opinião de que o espírito pode construir ideias abstratas ou noções de coisas. Quem não for de todo alheio a obras e discussões de filósofos reconhecerá que não pequena parte delas se trava acerca de ideias abstratas. Elas passam especialmente por objeto das ciências denominadas Lógica e Metafísica e de quanto se tem pelo mais abstrato e sublime estudo, onde entretanto raro se encontra uma questão posta de modo que não suponha a sua existência no espírito e que isso é bem conforme com elas. 7. Está assente que as qualidades ou modos das coisas nunca existem realmente cada uma por si e em separado, mas em conjunto, várias no mesmo objeto. Mas, como dissemos, o espírito é capaz de considerar cada uma separada ou abstraída das outras a que está ligada, formando assim ideias abstratas. Por exemplo, a vista apreende um objeto extenso, colorido, móvel; esta ideia compósita resolve-a o espírito nos seus elementos e isolando cada um forma as ideias abstratas de extensão, cor, movimento. Não podem cor e movimento existir sem extensão; mas o espírito pode formar por abstração a ideia de cor, excluindo a extensão, e a de movimento, excluindo as outras duas. 8. Depois, tendo observado nas extensões sensíveis particulares algo semelhante e comum e algo peculiar como a forma ou a grandeza que as distinguem, considera à parte o que é comum formando a ideia muito mais abstrata de extensão que não é linha, superfície ou volume nem forma ou grandeza mas uma ideia abstraída de todas elas. De igual modo, pospondo cores particulares sensíveis e distintas e conservando apenas o que lhes é comum, o espírito faz ideia da cor em abstrato, que não é vermelha, azul, branca ou qualquer cor determinada. Por idêntico processo, abstraindo o movimento não só do corpo móvel mas da trajetória, e de toda velocidade ou direção particular, forma a ideia abstrata de movimento, correspondente a qualquer espécie de movimento particular sensível. 9. E, assim como forma ideias abstratas de qualidades ou modos, o espírito, pela mesma separação mental, forma ideias abstratas de seres mais complexos que abrangem várias qualidades coexistentes. Por exemplo, tendo observado em Pedro, Jaime e João certas semelhanças de estatura e outras qualidades, põe de parte na ideia complexa ou composta de Pedro ou Jaime ou qualquer homem particular o que é peculiar a cada um, conservando apenas o que é comum a todos e assim forma a ideia abstrata, aplicável a todos os particulares, abstraindo e separando circunstâncias e diferenças determinantes de uma existência particular. Diz-se que desta forma se chega à ideia abstrata de homem ou, se preferirmos, humanidade ou natureza humana; onde de fato se inclui a cor, pois todo homem tem alguma, mas não branca nem preta nem qualquer cor particular, pois nenhuma existe em todos os homens. O mesmo para a estatura, não alta nem baixa nem média, mas algo abstraído de todas. E assim para tudo mais. Além disso, havendo grande variedade de criaturas com alguns mas não todos os caracteres da complexa ideia de homem, o espírito, rejeitando o peculiar ao homem e aproveitando só o que é comum aos seres vivos, forma a ideia de animal abstraída não só dos homens particulares mas também de todas as aves, quadrúpedes, peixes e insetos. Os elementos constitutivos da ideia abstrata de animal são corpo, vida, sentidos, movimento espontâneo. Por corpo entende-se corpo sem qualquer tamanho ou figura por não os haver comuns a todos os animais; sem cobertura de pelo, de penas, ou de escamas, nem sequer nus; pelo, penas, escamas, nudez são propriedades de animais particulares e por isso estranhos à ideia abstrata. Pela mesma razão o movimento espontâneo não pode ser andar nem voar nem rastejar. No entanto é movimento, mas não é fácil conceber o que seja. 10. Se outros têm esta maravilhosa faculdade de abstrair as suas ideias, eles melhor dirão; por mim tenho realmente a faculdade de imaginar ou representar-me ideias de coisas particulares e de variamente as compor e dividir. Posso imaginar um homem bicípite ou a parte superior de um homem ligada a um corpo de cavalo; posso considerar a mão, os olhos, o nariz separados do resto do corpo. Mas olho e mão imaginados terão forma e cor particulares. Igualmente a ideia de homem imaginada tem de ser de homem branco ou preto ou moreno, direito, curvado, alto, baixo ou mediano. Não consigo, por mais que pense, conceber a ideia abstrata acima descrita. Também me é impossível formar ideia abstrata de movimento diferente da de corpo móvel e que não é nem rápido nem lento, curvilíneo ou retilíneo. O mesmo se diga de quaisquer ideias abstratas. Em suma, sou capaz de abstrair em um sentido, como ao considerar partes ou qualidades separadas de outras com que estão unidas no mesmo objeto mas possam existir sem elas. Mas nego que possa abstrair e conceber separadamente qualidades que é impossível encontrar separadas; ou que possa formar uma noção geral, abstraindo de particularidades pelo modo referido - e são afinal os dois sentidos de "abstração". E há razão para supor que a maioria dos homens está no meu caso. A generalidade dos homens simples e iletrados nunca pretende abstrair noções. Diz-se que elas são difíceis e exigem trabalho e estudo. Se assim é, conclui-se que estão reservadas aos doutos. 11. Vou examinar o que pode alegar-se em defesa da doutrina da abstração, a ver se descubro o que leva os homens da especulação a aceitar um parecer tão remoto do senso comum. Um filósofo recente justamente apreciado deu-lhe sem dúvida grande apoio, parecendo pensar que as ideias abstratas marcavam a maior diferença de entendimento entre homens e animais. "As ideias gerais", diz ele, "são o que estabelece distinção perfeita entre animais e homens. As faculdades do animal nunca podem atingir esta excelência; é evidente que não observamos neles o uso de sinais para essas ideias; de onde temos razão de supor que não têm faculdade de abstrair ou formar ideias gerais, porque não empregam palavras ou quaisquer outros sinais genéricos”. E pouco adiante: "Por isso me parece que nisto os animais se diferenciam inteiramente dos homens e que esta diferença estabelece entre eles a maior distância. Porque, se eles têm algumas ideias e não são simples máquinas (como alguém já pensou), não pode negar-se-lhes algum uso de razão. Parece-me tão evidente que. em certos casos eles pensam como que têm sentidos; mas são apenas ideias particulares, como os sentidos lhes fornecem. Os melhores estão encerrados neste estreito limite e não têm - creio eu - faculdade de ampliá-la por qualquer forma de abstração". De pleno acordo com o sábio autor em que as faculdades dos animais não alcançam a abstração, receio que, se tal for a diferença, um grande número dos que passam por homens tenha de incluir-se no mesmo grupo. A razão alegada para negar aos animais ideias abstratas é a de não terem palavras ou outros sinais genéricos: isto assenta na hipótese de que usar palavras implica ter ideias gerais. De onde se segue: os homens que usam a linguagem podem abstrair ou generalizar as suas ideias. Que este é o sentido do autor mostra-o a sua resposta a esta pergunta em outro passo: "Se todas as coisas existentes são particulares, como chegamos a termos gerais?" A sua resposta é: "As palavras vêm a ser gerais por serem significativas de ideias gerais". Mas antes parece que não por ser sinal de uma ideia geral abstrata, e sim de muitas ideias particulares, cada uma sugerível indiferentemente ao espírito. Por exemplo, quando se diz: "A mudança de movimento é proporcional à força aplicada", ou "tudo que é extenso é divisível", estas expressões entendem-se do movimento e extensão em geral; entretanto não se conclui que me sugiram ideia de movimento sem corpo móvel e direção e velocidade determinadas, ou que eu deva conceber uma ideia abstrata e geral de extensão sem ser linha, superfície ou volume, nem grande nem pequena, branca, preta, vermelha ou de qualquer cor determinada. Apenas implica seja qual for o movimento considerado, rápido ou lento, vertical, horizontal ou oblíquo, e seja qual for o objeto, que o axioma será verdadeiro. Do mesmo modo para a extensão, não importa se é linha, superfície ou volume nem a sua grandeza ou forma. 12. Observando como as ideias vêm a ser gerais mais facilmente o entenderemos das palavras. Note-se que eu não nego em absoluto a existência de ideias gerais mas apenas a de ideias gerais abstratas; nos passos citados, quando se fala de ideias gerais, supõem-se sempre formadas por abstração, do modo indicado nos parágrafos 8 e 9. Ora, se quisermos atribuir sentido às nossas palavras e falar somente do que podemos conceber, concordaremos - creio eu - que uma ideia particular, quando considerada em si mesma, se toma geral quando representa todas as ideias particulares da mesma espécie. Suponhamos, para exemplificar, um geômetra que ensina a dividir uma linha em duas partes iguais. Traça, por exemplo, uma linha preta de uma polegada de comprimento; é uma linha particular; no entanto, pelo significado geral, representa todas as linhas possíveis; de modo que o demonstrado quanto a ela fica demonstrado para todas as linhas ou, por outras palavras, para a linha em geral. E assim como a linha particular fica geral por ser um símbolo, o nome "linha", que em absoluto é particular, como símbolo fica sendo geral. E, como para o caso anterior a generalidade não provém de ser sinal de uma linha geral abstrata, mas de todas as linhas particulares possíveis, também no segundo deve pensar-se que a generalidade provém da mesma causa, isto é, das várias linhas particulares indiferentemente denotadas. 13. Para dar ao leitor noção mais clara da natureza e emprego necessário das ideias abstratas, citarei mais um passo do Essay on Human Understanding: "As ideias abstratas não são tão óbvias e fáceis para as crianças e para espíritos não exercitados como as particulares. Se assim parecem a adultos é pelo uso constante e familiar. Refletindo cuidadosamente, achamos que as ideias gerais são ficções e artifícios do espírito, que encerram dificuldades e não se revelam tão simplesmente como imaginamos. Por exemplo, não se exige trabalho e saber para formar a ideia geral de triângulo (que não é do mais abstrato, complicado e difícil) porque ele não pode ser obliquângulo nem retângulo, nem equilátero, isósceles ou escaleno, mas todas estas coisas e nenhuma delas? É na verdade uma coisa imperfeita que não pode existir, uma ideia em que se conjugam partes de ideias diferentes e incompatíveis. É. verdade que o espírito, na sua imperfeição, necessita de tais ideias e serve-se delas como pode por conveniência de comunicação e alargamento do conhecer, seu objetivo natural e dileto. Mas há motivo de suspeitar serem tais ideias índices da nossa imperfeição. Enfim, basta mostrar que as ideias mais abstratas e gerais não são as que o espírito mais depressa adquire nem as com que o conhecimento mais cedo se familiariza". Se um homem tem a faculdade de formar a ideia de triângulo aqui descrita, é vão pretender contestar-lha, nem eu faria tal. Só desejo que o leitor reflita com precisão e segurança se tem ou não tal ideia; e isto não parece tarefa árdua para alguém. Nada mais fácil do que examinar alguém o pensamento próprio, procurando saber se tem ou pode chegar a ter ideia correspondente à descrição anterior da ideia geral de um triângulo não acutângulo nem retângulo, equilátero, isósceles ou escaleno, mas todas estas coisas e nenhuma delas. 14. Muito se disse já da dificuldade inerente às ideias abstratas e do esforço e trabalho de formá-las. E todos concordam na necessidade de grande labor e fadiga do espírito para emancipar o pensamento de objetos particulares e levá-lo às especulações sublimes, relativas às ideias abstratas. De onde parece concluir-se ser esta coisa tão difícil de formar ideias abstratas desnecessária à comunicação, tão simples e familiar a toda casta de homens. Mas, disse eu, se elas parecem óbvias e fáceis aos adultos é só pelo seu uso constante e familiar. Ora, eu gostaria de saber em que tempo os homens aprenderam a vencer a dificuldade e receberam o auxílio necessário para discorrer. Não pode ter sido depois de adultos, porque então parece não terem consciência de tal esforço; resta portanto que seja uma tarefa da infância. E na verdade o grande e múltiplo labor de formar noções abstratas seria tarefa rude para aquela tenra idade. Não é difícil imaginar que duas crianças não podem falar dos seus bombons, das suas matracas e pequenos brinquedos enquanto não tiverem ligado inconsequências inúmeras e formado no espírito ideias gerais abstratas, anexando-as ao nome comum de que usam? 15. Nem creio minimamente sejam mais necessárias à ampliação do conhecimento do que à comunicação. Bem sei que se insiste em que todo conhecimento e demonstração assentam em noções universais, e estou de acordo; mas não me parece que tais noções se formem por abstração do modo referido. Universalidade, tanto quanto compreendo, não consiste na absoluta, positiva natureza ou concepção de alguma coisa, mas na relação que significa entre particulares; por isso coisas, nomes e noções, por natureza particulares, tornam-se universais. Assim, quando demonstro um teorema sobre triângulos, supõe-se tenho em vista a ideia universal de triângulo, que não deve entender-se como ideia de um triângulo nem equilátero nem escaleno nem isósceles; mas o triângulo particular considerado, desta ou daquela forma, pouco importa, representa todos os triângulos retilíneos; e neste sentido é universal. Tudo isto parece simples e não envolver dificuldade. 16. Pode perguntar-se como reconhecer a verdade de uma proposição relativa a todos os triângulos particulares a não ser demonstrando-a da ideia abstrata de triângulo adequada a todos. Porque de demonstrar-se uma propriedade para um triângulo particular não se conclui que ela pertença a outro triângulo a todos os respeitos diferente. Por exemplo: demonstrado que os três ângulos de um isósceles retângulo são iguais a dois retos, não posso concluir a mesma propriedade em outros triângulos que nem são retângulos nem têm dois lados iguais. Parece pois necessário à verdade universal da proposição ou demonstrá-la para cada triângulo particular, o que é impossível, ou uma vez por todas demonstrá-la da ideia abstrata de triângulo onde se abrangem todos os particulares e onde todos estão igualmente representados. A isto respondo: Embora a minha ideia ao fazer a demonstração seja a de um isóscele retângulo, com determinada extensão de lados, eu posso generalizá-la a outros triângulos retilíneos quaisquer porque nem o ângulo reto nem a igualdade ou o comprimento dos lados entram na demonstração. É verdade que o meu diagrama inclui esses particulares mas não se aludem na prova da proposição. Não se diz que os três ângulos são iguais a dois retos por haver um ângulo reto ou por ele ser formado por lados iguais. Isto basta para mostrar que poderia o ângulo reto ser oblíquo e os lados desiguais sem invalidar a demonstração; por isso concluo ser verdadeira de um obliquângulo ou escaleno a relação demonstrada para um triângulo particular retângulo isóscele e não por ter demonstrado a proposição da ideia abstrata de triângulo. E aqui deve reconhecer-se a possibilidade de considerar-se apenas a forma triangular sem olhar a qualidades particulares dos ângulos ou relações entre os lados. Até aí pode abstrair, mas nunca isso prova poder formar uma ideia abstrata, geral, inconsequente, de triângulo. Semelhantemente podemos considerar Pedro como animal ou como homem sem formar a referida ideia abstrata. 17. Seria interminável e inútil seguir os escolásticos, grandes mestres da abstração, pelo inextricável labirinto de erros e discussões em que parece tê-los metido a sua doutrina de noções e naturezas abstratas. Disputas e controvérsias, poeira sábia levantada sobre tal matéria e a grande vantagem resultante para a humanidade, tudo isso é bem conhecido e não vale a pena insistir. E bom fora que os maus efeitos se confinassem nos que disto fazem profissão. Quando se considera o esforço, a indústria, a capacidade, por tão longo tempo consagrados à cultura e avanço da ciência, e que esta apesar disso continua na maior parte cheia de escuridão e incerteza; e que discussões ao parecer intermináveis, e até as apoiadas nas mais claras e convincentes demonstrações, contêm paradoxos incompreensíveis para o entendimento humano; e ainda que tomada em conjunto só uma bem pequena parte é útil à humanidade, e por outro lado apenas inocente diversão e recreio - parece-me que tudo isto pode levar à desilusão, e ao desprezo completo de qualquer estudo. Mas talvez isto possa findar pela revisão de falsos princípios adotados no mundo; e entre eles nenhum talvez exerceu maior império no pensamento especulativo do que o das ideias gerais abstratas. 18. Ora, a fome desta noção privilegiada parece-me ser a linguagem. Certamente nada menos do que a razão poderia ter dado origem a uma opinião universalmente aceita. Vê-se isto, além de outras razões, na clara confissão dos mais competentes defensores das ideias abstratas que as reconhecem devidas à necessidade de denominar; de onde a consequência clara: se não houvesse o discurso ou os sinais universais, não teria havido ideia de abstração. Vejamos como as palavras contribuíram para este erro. Primeiro, pensa-se que cada nome tem ou deve ter um só significado definido e preciso, que leva o homem a pensar que há certas ideias abstratas determinadas constitutivas da verdadeira e única significação de cada nome geral; e só por intermédio dessas ideias abstratas pode um nome geral significar uma coisa particular. Pelo contrário, não há significação precisa e definida ligada ao nome geral, todos eles próprios para significar indiferentemente grande número de ideias particulares. Isto decorre evidentemente do que ficou dito e uma breve reflexão o põe a claro. Pode objetar-se que cada nome definível está por isso mesmo restringido a certa significação. Por exemplo, o triângulo define-se "uma superfície limitada por três linhas retas" e por este nome denota-se certa ideia e não outra. A isto respondo que na definição não se diz se a superfície é grande ou pequena, branca ou preta, se os lados são longos ou curtos, iguais ou desiguais, nem os ângulos segundo os quais se inclinam; em tudo pode haver grande variedade, e portanto nenhuma ideia determinada limita a significação da palavra triângulo. Uma coisa é manter constante definição de um nome, outra fazer que ele represente sempre a mesma ideia; uma é necessária, outra inútil e impraticável. 19. Mas para esclarecer como as palavras produziram a doutrina das ideias abstratas, observe-se que na opinião geral a linguagem só tem por fim comunicar ideias, e cada palavra significativa representa uma ideia. Sendo assim e sendo também certo que nomes considerados não inteiramente insignificativos nem sempre indicam ideias particulares concebíveis, conclui-se imediatamente que eles representam noções abstratas. Ninguém negará que muitos nomes de uso corrente entre homens dados à especulação nem sempre sugerem ideias particulares determinadas ou até nada sugerem. Um pouco de atenção mostra não ser necessário (até nos raciocínios mais estritos) que os nomes significativos de ideias despertem na inteligência as ideias que devem representar; na leitura ou no discurso os nomes pela maior parte usam-se como as letras na álgebra, onde, embora cada quantidade particular seja representada por uma letra, não é preciso para proceder certo que em cada passo cada letra sugira ao pensamento a quantidade particular representada. 20. Além disso, a comunicação de ideias por palavras não é fim principal ou único da linguagem. Há outros fins, como exaltar uma paixão, excitar ou combater uma ação, dar ao espírito uma disposição particular. O primeiro em muitos casos é apenas secundário e às vezes inteiramente omitido quando os outros o dispensam, como suponho frequente na linguagem familiar. Convido o leitor a meditar se não lhe acontece, lendo ou ouvindo um discurso, os sentimentos de medo, de amor, repugnância, admiração, desdém, e outros, surgirem imediatamente no seu espírito com a percepção de certas palavras sem quaisquer ideias intercalares. Em primeiro lugar é certo as palavras deverem despertar ideias próprias para provocar aquelas emoções; mas, se não erro, vê-se que na linguagem familiar ouvir sons ou ver caracteres é seguido muitas vezes por aquelas paixões que a princípio eram produzidas por ação de ideias agora de todo suprimidas. Não podemos, por exemplo, ser afetados pela promessa de uma coisa boa, embora sem fazer ideia do que é? Não pode a ameaça de um perigo bastar para causar pavor, embora ignoremos o mal que nos ameace nem formemos ideia de perigo em abstrato? Se alguém refletir um pouco sobre o que fica dito, creio ser-lhe-á evidente usarem-Se muitas vezes nomes gerais na linguagem sem pensá-los como marcas de ideias de quem fala na intenção de levá-las ao espírito do ouvinte. Até os nomes próprios muitas vezes se pronunciam sem o intuito de chamar a nossa atenção- para os indivíduos por eles designados. Por exemplo, se um escolástico me diz: "Aristóteles disse isto", concebo que ele quer levar-me a aceitar a sua opinião pela deferência e respeito habitualmente ligados àquele nome. E esse efeito é com frequência tão instantâneo nos habituados a submeter o seu juízo à autoridade daquele filósofo como é impossível ter havido antes ideia da sua pessoa, obra ou reputação. Poderia dar inúmeros exemplos; mas para que insistir em coisas que a experiência de cada um pode sem dúvida sugerir-lhe claramente? 21. Julgo ter mostrado a impossibilidade das ideias abstratas. Considerei o que delas disseram os seus melhores defensores, e tentei mostrar a sua inutilidade para os fins em que se julgavam necessárias. Finalmente indiquei-lhes a origem, que é evidentemente a linguagem. Ninguém pode negar a excelência do uso de palavras, visto poder por elas o conhecimento adquirido à custa do trabalho de investigadores de todos os tempos e povos tornar-se propriedade de uma só pessoa. Mas ao mesmo tempo deve reconhecer-se que a maior parte do conhecimento foi perturbada e obscurecida pelo abuso das palavras e pelo caminho geral do discurso em que foi comunicado. Portanto, se as palavras podem impor-se ao entendimento, sejam quais forem as ideias que eu considere, tentarei empregá-las puras e simples, afastando do meu pensamento quanto possa aqueles nomes ligados com elas por uso longo e constante; e disso espero tirar a seguinte vantagem: 22. Primeiro, estar certo de evitar controvérsias puramente verbais, principal obstáculo em quase todas as ciências ao progresso do verdadeiro e profundo conhecimento. Segundo, parecer este o caminho mais firme para desenredar-me da fina sutileza das ideias abstratas que tão lastimavelmente têm confundido e embaraçado o espírito dos homens; acresce que, quanto mais sutil e inquiridora for a inteligência de um homem, mais profundamente poderá ser envolvido e persistir nisso. Terceiro, enquanto eu limitar os meus pensamentos às minhas próprias ideias despidas de palavras, não vejo como poderei enganar-me. Os objetos considerados, vejo-os clara e adequadamente. Não posso iludir-me pensando ter uma ideia que não tenho. Impossível imaginar que algumas ideias minhas são semelhantes ou dessemelhantes sem o serem. Para me aperceber do acordo ou desacordo entre as minhas ideias, ver quais se incluem ou não em uma ideia composta, nada mais preciso além de uma percepção atenta do que se passa no meu entendimento. 23. Mas obter esta vantagem pressupõe libertação completa da falácia de palavras, que ousadamente me prometi; é bem difícil quebrar união tão antiga, confirmada por tão longo hábito, como esta entre palavras e ideias; dificuldade ainda muito aumentada pela doutrina da abstração. Porque, enquanto o homem pensa que as ideias abstratas são inseparáveis dos seus nomes, não é de estranhar que use palavras por ideias; sendo impraticável pospor a palavra e reter no espírito a ideia abstrata, coisa perfeitamente inconcebível. Essa me parece a causa principal por que alguns homens que enfaticamente recomendaram a outros pôr de parte as palavras nas suas meditações e contemplar as ideias puras não o conseguiram eles mesmos. Depois muitos aceitaram opiniões absurdas e entraram em disputas frívolas, provindas do abuso de palavras. Para dar remédio a este mal aconselham se atenda às ideias significadas, não às palavras significativas. Conselho bom para dar a outrem, mas eles mesmos não puderam segui-lo enquanto pensaram ser único emprego imediato das palavras o significar ideias e atribuir como significado a cada nome geral uma ideia abstrata determinada. 24. Mas este erro devido às palavras pode um homem evitá-lo facilmente. Quem sabe que só tem ideias particulares não se esforçará em vão por achar e conceber a ideia abstrata ligada a qualquer nome; e quem sabe que os nomes nem sempre significam ideias poupa-se ao trabalho de perseguir ideias onde nada há. Bom seria que todos se esforçassem por obter visão clara das ideias consideradas, separando-as da vestidura e acúmulo da palavra que muito contribuem para cegar o juízo e dividir a atenção. Em vão alongamos os olhos ao céu ou espreitamos as entranhas da terra, em vão consultamos escritores ou sábios e seguimos as pegadas da antiguidade; só precisamos afastar a cortina das palavras para alcançar a mais bela árvore do conhecimento, produtora de excelentes frutos ao nosso alcance. 25. Se não libertarmos os primeiros princípios do conhecimento da confusão e miragem das palavras, podemos raciocinar ilimitadamente sem resultado, tirando consequências de consequências sem nunca adiantar no saber. Por mais longe que formos, apenas perderemos o irrecuperável, e mais fundo cairemos em dificuldades e erros. Peço por isso ao leitor das seguintes páginas que repense as minhas palavras e tente acompanhar, lendo, o pensamento que tive, escrevendo. Desse modo lhe será fácil descobrir a verdade ou falsidade do que digo. Não correrá perigo de as minhas palavras o iludirem e não sei como pode ser levado a errar considerando as suas próprias ideias, nuas e sem disfarce. DOS PRINCÍPIOS DO CONHECIMENTO HUMANO 1. É evidente a quem investiga o objeto do conhecimento humano haver ideias (1) atualmente impressas nos sentidos, ou (2) percebidas considerando as paixões e operações do espírito, ou finalmente (3) formadas com auxílio da memória e da imaginação, compondo, dividindo ou simplesmente representando as originariamente apreendidas pelo modo acima referido. Pela vista tenho ideias de luzes e cores, e respectivos tons e variantes. Pelo tato percebo o áspero e o macio, quente e frio, movimento e resistência e de todos estes a maior ou menor quantidade ou grau. O olfato fornece-me aromas, o paladar sabores, e o ouvido traz ao espírito os sons na variedade de tom e composição. E, como vários deles se observam em conjunto, indicam-se por um nome e consideram-se uma coisa. Por exemplo, certo sabor, cheiro, cor, forma e consistência observados juntamente são tidos como uma coisa, significada pelo nome "maçã". Outras coleções de ideias constituem uma pedra, uma árvore, um livro, etc., e, como são agradáveis ou desagradáveis, excitam as paixões de amor, alegria, repugnância, tristeza e assim por diante. 2. Mas ao lado da infinita variedade de ideias ou objetos do conhecimento há alguma coisa que os conhece ou percebe, e realiza diversas operações como querer, imaginar, recordar, a respeito deles. Este percipiente, ser ativo, é o que chamo mente, espírito, alma ou eu. Por estas palavras não designo alguma de minhas ideias mas alguma coisa distinta delas e onde elas existem, ou o que é o mesmo, por que são percebidas; porque a existência de uma ideia consiste em ser percebida. 3. Todos concordarão que nem os pensamentos, nem as paixões, nem as ideias formadas pela imaginação existem sem o espírito; e não parece menos evidente que as várias sensações ou ideias impressas nos sentidos, ligadas ou combinadas de qualquer modo (isto é, sejam quais forem os objetos que compõem), só podem existir em um espírito que as perceba. Qualquer um pode ter disto conhecimento intuitivo se notar o sentido do termo "existir", aplicado a coisas sensíveis. Digo que existe a mesa onde escrevo - quer dizer, vejo-a e sinto-a; e se estiver fora do meu gabinete digo que ela existe, significando assim que se lá estivesse vê-la-ia, ou que outro espírito atualmente a vê. Houve um odor, isto é, cheirava alguma coisa; houve um som, isto é, ouviu-se algo; uma cor ou uma forma, isto é, foi percebida pela vista ou pelo tato. É tudo o que posso entender por esta e outras expressões. O que se tem dito da existência absoluta de coisas impensáveis sem alguma relação com o seu ser-percebidas parece perfeitamente ininteligível. O seu ser é serem percebidas; nem é possível terem existência fora dos espíritos ou coisas pensantes que os percebem. 4. Entre os homens prevalece a opinião singular de que as casas, montanhas, rios, todos os objetos sensíveis têm uma existência natural ou real, distinta da sua perceptibilidade pelo espírito. Mas, por mais segura aquiescência que este princípio tenha tido no mundo, quem tiver coragem de discuti-Ia compreenderá, se não me engano, que envolve manifesta contradição. Pois que são os objetos mencionados senão coisas percebidas pelos sentidos? E que percebemos nós além das nossas próprias ideias ou sensações? E não repugna admitir que alguma ou um conjunto delas possa existir impercebido? 5. Se bem examinarmos esta asserção acharemos talvez que depende afinal da doutrina das ideias abstratas. Pode haver maior esforço de abstração do que separar a existência dos objetos sensíveis do fato de serem percebidos, assim como concebê-los existentes e impercebidos? Luz e cores, calor e frio, extensão e figuras, numa palavra, as coisas que vemos e sentimos, que são senão sensações, noções, ideias ou impressões nos sentidos? É possível separar alguma delas da percepção, mesmo em pensamento? Quanto a mim, o mesmo é separar uma coisa de si mesma. Posso na verdade dividir em pensamento ou conceber em separado coisas que talvez nunca tenha percebido pelos sentidos assim divididas. Assim imagino o tronco de um homem sem os membros ou concebo o cheiro de uma rosa sem pensar na rosa. Não nego poder abstrair, se pode chamar-se abstração o que apenas abrange a concepção separada de objetos realmente existentes ou atualmente perceptíveis separadamente. Mas a minha capacidade conceptiva ou imaginativa não vai além da possibilidade da real existência ou percepção. De onde, assim como me é impossível ver ou sentir alguma coisa sem uma sensação atual dessa coisa, assim me é impossível conceber no pensamento uma coisa sensível ou objeto distinto da sensação ou percepção dele. 6. Há verdades tão óbvias para o espírito que ao homem basta abrir os olhos para vê-las. Entre elas muito importante é a de saber que todo o firmamento e as coisas da terra, numa palavra, todos os corpos de que se compõe a poderosa máquina do mundo não subsistem sem um espírito, e o seu ser é serem percebidas ou conhecidas; consequentemente, enquanto eu ou qualquer outro espírito criado não temos delas percepção atual, não têm existência ou subsistem na mente de algum Espírito eterno; sendo perfeitamente ininteligível e abrangendo todo o absurdo da abstração atribuir a uma parte delas existência independente do espírito. Para ver isto bem claramente, o leitor só precisa refletir e tentar separar no pensamento o ser de um objeto sensível do seu ser percebido. 7. De tudo isto se segue que só há uma substância, o espírito, o percipiente. Mas para prová-lo considerem-se as qualidades sensíveis, cor, figura, movimento, cheiro, sabor, etc., isto é, as ideias, percebidas pelos sentidos. Ora, para uma ideia, existir em coisa não percipiente envolve contradição, porque ter uma ideia é o mesmo que percebê-la; portanto, aquilo onde cor, figura e qualidades análogas existem tem de percebê-las; de onde não poder haver substância não pensante ou substractum daquelas ideias. 8. Pode alegar-se que embora as ideias não existam sem o espírito talvez haja coisas semelhantes de que elas sejam cópia, existentes sem o espírito numa substância inconcebível. Respondo que uma ideia só pode ser semelhante a uma ideia; uma cor ou uma forma só pode assemelhar-se a outra cor ou forma. Se examinarmos um pouco o nosso pensamento acharemos a impossibilidade de conceber qualquer semelhança exceto entre as nossas ideias. Torno a perguntar se aqueles supostos originais ou coisas externas de que as nossas ideias seriam cópia ou representação são perceptíveis ou não. Se são, são ideias e esta ganha a causa; se me dizem que não são, convido quem quer que seja a achar sentido em afirmar a semelhança de uma cor com alguma coisa invisível; a do áspero ou macio com alguma coisa intangível, e assim por diante. 9. Houve quem fizesse distinção entre qualidades primárias e secundárias contando nas primeiras a extensão, forma, movimento, repouso, solidez ou impenetrabilidade e número; nas segundas, as qualidades sensíveis, como cor, som, sabor, etc. Destas concordam não terem semelhança com algo existente fora do espírito, ou impercebido, mas pretendem que as ideias de qualidades primárias sejam imagens de coisas existentes fora do espírito em uma substância impensante a que dão nome matéria. Por matéria há de entender-se uma substância inerte e não sensível em que subsistem atualmente extensão, figura e movimento. Mas, como vimos, é evidente que extensão, figura e movimento são apenas ideias existentes no espírito, e a ideia só pode assemelhar-se a outra ideia; portanto, nem elas nem os seus arquétipos podem existir em uma substância incapaz de perceber. De onde a verdadeira noção da chamada matéria ou substância corpórea envolver contradição. 10. Os que afirmam existirem as qualidades primárias - figura, movimento, etc. - fora do espírito em substância impensante, ao mesmo tempo o negam das secundárias: calor, som, frio, quente e outras, só existentes no espírito, dependentes e derivadas da diversa grandeza, textura e movimento das partículas da matéria; consideram isto uma verdade demonstrável sem exceção. Ora, se estas qualidades originais forem inseparáveis das outras qualidades sensíveis e incapazes de abstração mesmo em pensamento, segue-se que existem somente no espírito. Que alguém reflita e veja se pode abstrair e conceber a extensão e movimento de um corpo sem todas as outras qualidades sensíveis. Por mim, não consigo formar ideia de um corpo móvel e extenso sem dar-lhe alguma cor ou outra qualidade sensível das que se reconhece existirem só no espírito. Em resumo, extensão, figura, movimento são inconcebíveis separadas das outras qualidades. Onde existam portanto as outras qualidades sensíveis, essas devem existir também, isto é, no espírito e em nenhuma outra parte. 11. Repito: grande e pequeno, rápido e lento só existem no espírito, por serem inteiramente relativos, mudáveis com a posição e ordem dos órgãos dos sentidos. Portanto, a extensão existente fora do espírito não é grande nem pequena, o movimento nem rápido nem lento, isto é, não são nada. Pode alegar-se que se trata de extensão e movimento em geral; vemos assim quanto a doutrina das substâncias móveis extensas, existentes fora do espírito, depende da singular doutrina das ideias abstratas. E aqui não posso deixar de notar quanto a vaga e indeterminada descrição da matéria ou substância corpórea, introduzida pelos modernos filósofos nos seus princípios, se parece com a velha e ridiculizada de matéria prima, de Aristóteles e seus prosélitos. Sem extensão não se concebe a solidez; logo, demonstrado que a extensão não existe numa substância inconcebível, o mesmo será verdadeiro da solidez. 12. O número é total criação do espírito, e, ainda quando outras qualidades pudessem existir sem ele, basta considerar que a mesma coisa difere quanto ao número conforme o ponto de vista do espírito; assim a mesma extensão pode exprimir-se por um, três, ou trinta e seis, conforme referida à jarda, ao pé ou à polegada. "Número" é tão sensivelmente relativo, e dependente do entendimento humano, que espanta possa alguém pensar na sua existência absoluta, fora do espírito. Dizemos "um livro", "uma página", "uma linha", e todos são unidades embora contenham várias outras. E em cada exemplo, é evidente, a unidade refere-se a uma combinação particular de ideias arbitrariamente jungidas pelo espírito. 13. Unidade. Alguns a consideram, bem sei, uma ideia simples que acompanha todas as outras no espírito. Não acho em mim tal ideia correspondente à palavra "unidade" e se a tivesse talvez não pudesse deixar de encontrá-la; pelo contrário, seria a mais familiar do meu entendimento, pois se diz que acompanha todas as outras ideias, e é percebida por todos os modos da sensação e da reflexão. Para não dizer mais, é uma ideia abstrata. 14. Acrescentarei que, do modo como filósofos modernos provam a existência de certas qualidades na matéria ou fora do espírito, outro tanto poderia provar-se de quaisquer outras qualidades sensíveis. Assim, por exemplo, diz-se que o frio e o calor são afecções do espírito e não semelhanças de seres reais, existentes nas substâncias corpóreas que os excitam, porque o mesmo corpo pode parecer frio a uma mão e quente a outra. Por que não dizer o mesmo de figura e extensão, visto o mesmo olho em posições diferentes ou olhos de diversa contextura na mesma posição as verem diversamente, e por isso elas não poderem ser imagens de alguma coisa fixa e determinada fora do espírito? Repito: é certo que a doçura não está no objeto sápido, porque sem alteração do objeto o doce pode volver-se amargo, como durante a febre ou pelo paladar viciado de qualquer modo. Não será razoável dizer que o movimento não está fora do espírito, notando que, se a sucessão das ideias no espírito se torna mais rápida, o movimento, como se sabe, parece mais lento sem qualquer alteração de um objeto externo? 15. Em suma, considerando os argumentos aduzidos para provar que sabores e cores só existem no espírito, achar-se-á que provam o mesmo da extensão, figura e movimento - embora deva reconhecer-se que este método de argumentar não demonstra tanto a inexistência de extensão ou cor em um objeto externo quanto o fato de que nós não conhecemos pelos sentidos a verdadeira extensão e a cor do objeto. Mas os argumentos ulteriores mostram ser impossível existir a cor ou extensão ou qualquer qualidade sensível em um sujeito não pensante, fora do espírito, ou que na verdade algo exista como objeto exterior. 16. Examinemos a opinião comum. Diz-se "extensão" um modo ou acidente da matéria, e "matéria" o substractum que a suporta. Gostaria que me explicassem o que se entende por matéria, suporte da extensão. Direis: Não tenho ideia da matéria, por isso não posso explicá-la. Respondo: Se não tendes ideia positiva, entretanto se lhe ligais algum significado, deveis ter uma ideia relativa de matéria; se não sabeis o que ela é, deveis saber a relação em que ela está com os acidentes e o que se entende por ser "suporte" deles. Decerto, "suporte" não tem aqui o sentido usual e literal- como quando se diz que os pilares suportam a construção; em que sentido há de então entender-se? 17. Se interrogarmos sobre isto os melhores filósofos, vê-los-emos concordes em atribuir a "substância material" apenas o sentido do ser em geral, juntamente com a noção relativa de suporte de acidentes. A ideia geral do Ser parece-me a mais abstrata e incompreensível de todas; quanto ao suporte de acidentes, como já notamos, não pode entender-se no sentido comum das palavras; deve ser outro mas não nos dizem qual. Assim, quando considero as duas partes ou ramos do significado das palavras "substância material”: convenço-me de que não têm sentido distinto. Mas para que levar mais longe a laboriosa discussão do substractum material ou suporte da figura, movimento e outras qualidades sensíveis? Não se supõe que têm existência fora do espírito? E isto não repugna diretamente, além de ser inconcebível? 18. Mas supondo possível existirem fora do espírito substâncias sólidas, figuradas, móveis, correspondentes às nossas ideias de corpos, como nos é possível sabê-lo? Ou o sabemos pelos sentidos ou pela razão. Pelos sentidos só conhecemos as nossas sensações, ideias, ou as coisas imediatamente percebidas pelos sentidos, deem-lhes o nome que quiserem; mas não nos informam de coisas existentes fora do espírito ou impercebidas, semelhantes às percebidas. Nisto até os materialistas concordam. Resta, pois, se temos algum conhecimento de coisas exteriores, que tem de ser pela razão, inferindo a existência do imediatamente percebido pelos sentidos. Mas como pode a razão induzir-nos a crer na existência dos corpos fora do espírito, daquilo que percebemos, se até os defensores da matéria não pretendem haja conexão necessária entre eles e as nossas ideias? Todos afirmam (e o que respeita a sonhos, frenesis e coisas análogas põe o caso fora de discussão) que é possível sermos afetados por todas as ideias atuais, embora não houvesse corpos exteriores semelhantes a elas. É pois evidente a desnecessidade de corpos exteriores à produção das nossas ideias, desde que nos concedem que elas são produzidas às vezes e podem talvez sê-lo sempre na mesma ordem presente, sem o seu auxílio. 19. Mas, embora assim seja, pode talvez pensar-se mais fácil conceber e explicar o modo de produção das sensações supondo a semelhança de corpos externos, em vez de outro processo; assim pode ser provável haver corpos que excitem as suas ideias no nosso espírito. Mas nem isso; porque, ainda concedendo aos' materialistas os seus corpos externos, eles mesmos reconhecem nada adiantar quanto à produção das ideias, por não poderem compreender a ação de um corpo sobre um espírito ou como é possível ele imprimir no espírito uma ideia. De onde é evidente que nenhuma razão há de supor matéria ou substâncias corpóreas na produção de ideias e sensações nossas, dada a concordância em que ela continua inexplicável com ou sem essa hipótese. Portanto, se fosse possível existirem corpos fora do espírito, afirmá-lo seria uma opinião bastante precária; corresponderia a supor, sem razão alguma, que Deus criara inúmeros seres que não serviam absolutamente para nada. 20. Em suma, se houvesse corpos externos nunca poderíamos sabê-lo; e se não houvesse, devemos ter as mesmas razões de pensar que haveria o que temos agora. Supondo (possibilidade incontestável) uma inteligência sem o auxílio de corpos estranhos, afetada pela mesma série de sensações e ideias na mesma ordem e com a mesma intensidade das nossas, pergunto se essa inteligência não teria razão de crer na existência de substâncias corpóreas, representadas pelas suas ideias impressas no seu espírito, assim como nós temos para poder acreditar o mesmo. Não há dúvida. Consideração que bastaria a qualquer pessoa razoável para suspeitar da força dos seus mesmos argumentos a favor da existência de corpos fora do espírito. 21. Depois disto, se fosse necessário juntar alguma prova contra a existência da matéria, eu poderia exemplificar com muitos erros e dificuldades (não falando de impiedade) resultantes da doutrina; inúmeras controvérsias e discussões em filosofia e não poucas de grande importância em religião; mas não entrarei aqui em pormenores, tanto por serem inúteis argumentos a posteriori para confirmar o que, se não erro, ficou provado a priori; como por ter ocasião mais adiante de falar um pouco a esse respeito. 22. Receio ter dado razão de me acusarem de desnecessariamente prolixo ao tratar deste assunto. Em verdade, para que serve dilatar o que pode demonstrar-se em uma ou duas linhas a quem for capaz de breve reflexão? Basta examinar o pensamento próprio e tentar conceber a possibilidade de um som, figura, movimento ou cor existirem fora do espírito ou impercebidos. Esta simples tentativa pode talvez revelar que se defende uma contradição radical. De modo que me basta pôr assim a questão em conjunto: Se podeis conceber possível para uma substância móvel extensa, ou em geral para qualquer ideia ou coisa semelhante a uma ideia, existir fora do espírito percipiente, dar-vos-ei plena razão, e afirmarei a existência de todos esses corpos exteriores que pretenderdes, ainda que só possais dar-me como razão acreditar na sua existência ou indicar algum uso para o que se supõe existir. Isto é, a simples possibilidade da verdade da vossa opinião passará por argumento demonstrativo. 23. Mas - dir-me-eis - nada mais fácil do que imaginar por exemplo árvores em um parque, ou livros em uma estante e ninguém para percebê-los. Respondo que na verdade não é difícil; mas que é isso senão formardes no espírito certas ideias a que dais nome de livros e árvores, omitindo ao mesmo tempo formar ideia daquilo que os percebe? Mas não pensais vós mesmos neles durante esse tempo? Isto, portanto, nada importa ao caso. Só mostra que podeis formar ideias no vosso espírito, mas não que os objetos do vosso pensamento existam fora do espírito. Para contestá-lo é necessário que os concebais existentes e não pensados, o que evidentemente repugna. Ao esforçarmo-nos no máximo para conceber a existência de corpos externos, contemplamos sempre e somente as nossas próprias ideias. Mas como o espírito não se conhece a si mesmo, ilude-se crendo conceber corpos existentes e não pensados ou fora do espírito embora ao mesmo tempo sejam por ele apreendidos ou existam nele. Uma breve atenção mostra a verdade evidente do que fica dito e desnecessita a insistência em demonstrar a inexistência da substância material. 24. É muito simples depois disto saber se podemos compreender o significado de existência absoluta de objetos sensíveis em si mesmos ou fora do espírito. Para mim é evidente encerrarem estas palavras uma contradição direta ou não terem significado algum. Para disto convencer outros não conheço melhor e mais pronto caminho do que pedir-lhes que examinem cuidadosamente os seus pensamentos; assim aparecerá o vazio e a contradição, e basta para convencer. Neste ponto insisto: "existência absoluta de coisas não pensantes" são palavras contraditórias ou sem sentido. É o que repito e inculco e maximamente recomendo ao atento pensar do leitor. 25. Todas as nossas ideias, sensações, noções ou coisas percebidas, sob qualquer designação, são visivelmente inativas, sem poder ou agência alguma; uma ideia ou objeto do pensar não pode alterar outra; para ver que assim é basta uma simples observação das nossas ideias. Desde que elas no todo e em cada parte só existem no espírito, segue-se que nelas só há o que é percebido; mas por mais que alguém examine as suas ideias, dos sentidos ou da reflexão, não encontrará nelas qualquer força ou atividade; portanto, tal coisa não se contém nelas. Uma breve atenção nos mostrará que o ser de uma ideia implica a sua passividade e inércia, tal que é impossível a uma ideia fazer seja o que for, ou, estritamente, ser causa de alguma coisa; nem pode ser semelhança ou modelo de um ser ativo, como evidentemente resulta o parágrafo 8. De onde não poderem extensão, figura e movimento ser causa de sensações nossas. Dizer, portanto, que elas são efeito de forças resultantes de configuração, número, movimento e forma dos corpúsculos, é decerto falso. 26. Percebemos uma série contínua de ideias, algumas recentemente excitadas, outras mudadas ou desaparecidas. Há pois alguma causa destas ideias de que elas dependem, que as produz e transforma. Que esta causa não pode ser uma qualidade ou ideia ou combinação de ideias, mostra-o o parágrafo anterior. Deve portanto ser uma substância; mas já vimos que não há substância corpórea ou material; resta, portanto, que a causa das ideias seja uma substância ativa incorpórea ou Espírito. 27. Um espírito é um ser simples, indivíduo, ativo; quando percebe ideias chama-se entendimento e quando produz ou de outro modo opera com elas chama-se vontade; daqui não haver ideia de alma ou espírito; porque, sendo passivas e inertes, as ideias (v. § 25) não podem representar para nós, por meio de imagem ou semelhança, aquilo que age. Uma breve atenção mostra a impossibilidade de uma ideia semelhante a um princípio de movimento e mudança de ideias. Tal é a natureza do espírito, daquilo que atua, que não pode ser percebido de si mesmo e apenas pelos efeitos produzidos. Se alguém duvida desta verdade, reflita e tente fazer ideia de uma força ou ser ativo e se tem ideia de duas forças principais chamadas vontade e entendimento, distintas entre si, assim como de uma terceira ideia de substância ou ser em geral, com a noção relativa do seu suporte ou sujeito das referidas forças, que tem o nome de alma ou espírito. Isto é o que alguns defendem; mas, tanto quanto posso julgar, as palavras vontade, alma, espírito não significam ideias diferentes nem, na verdade, ideia alguma, senão algo diferente das ideias e que sendo agente não pode ser semelhante a ou representado por uma ideia qualquer. Embora deva dizer-se ao mesmo tempo que temos alguma noção de alma, espírito, e das operações do espírito, como querer, amar, odiar; assim como sabemos ou compreendemos o sentido destas palavras. 28. Posso excitar ideias no meu espírito, e variar e mudar a cena à minha vontade. Basta querer e logo qualquer ideia surge na minha imaginação; e por igual capacidade se oblitera e dá lugar a outra. Este fazer e desfazer de ideias é precisamente o espírito ativo. Isto é certo e assente na experiência; mas, quando pensamos em agentes não pensantes ou em excitar ideias exclusivas de volição, estamos a divertir-nos com palavras. 29. Mas, seja qual for o meu poder sobre os meus pensamentos, as ideias percebidas pelos sentidos não dependem por igual da minha vontade. Quando abro os olhos de dia não posso escolher se verei ou não, nem determinar os objetos particulares que se me apresentam à vista; como para o ouvido e para os outros sentidos as ideias neles impressas não são criaturas da minha vontade. Há, portanto, alguma outra vontade ou espírito que os produz. 30. As ideias dos sentidos são mais fortes, vivas e distintas do que as da imaginação; têm estabilidade, ordem e coerência e não são produzidas por acaso como frequentem ente as que são efeito da vontade humana, senão que formam cadeias ou séries de admirável conexão; prova suficiente da sabedoria e benevolência do Autor. Ora, as regras ou métodos estabelecidos segundo os quais o espírito excita em nós as ideias dos sentidos são as chamadas leis da natureza; conhecemos por experiência que tais ou tais ideias são acompanhadas de tais ou tais outras no curso ordinário das coisas. 31. Isto dá-nos uma espécie de antevisão que nos permite regular a nossa ação para utilidade da vida. De contrário estaríamos sempre perplexos; não saberíamos como proceder para conseguir o menor prazer ou evitar a menor dor dos sentidos; que o alimento nutre, o sono restaura e o fogo aquece; que semear no tempo próprio é o caminho para fazer a colheita; e em geral que certos meios são adequados para chegar a certos fins, sabemo-lo não por alguma conexão entre ideias mas por observações de leis regulares da natureza, sem o que tudo seria confusão, e o adulto não saberia conduzir-se melhor nos negócios do que um recém-nascido. 32. Este trabalho insistente e uniforme que tão claro mostra a bondade e sabedoria do Espírito soberano cuja vontade constitui as leis da natureza, está tão longe de conduzir para Ele os nossos pensamentos, que antes os leva a perseguir causas segundas. Quando vemos certas ideias dos sentidos constantemente seguidas por outras, sem o termos feito nós, atribuímos poder e atividade às ideias e julgamos ser uma coisa causa de outra, embora nada seja mais absurdo e ininteligível. Assim, por exemplo, tendo visto certa figura luminosa e redonda e ao mesmo tempo recebido a ideia ou sensação chamada calor, concluímos que o sol é a causa do calor. Do mesmo modo ao perceber o movimento e colisão de corpos acompanhada de som, pendemos a crer seja este o efeito daqueles. 33. As ideias impressas nos sentidos pelo Autor da natureza chamam-se objetos reais; e as excitadas na imaginação, por menos regulares, vivas e constantes, designam-se mais propriamente por ideias ou imagens de coisas que copiam ou representam. Mas as nossas sensações, embora nunca fossem vivas e claras, são no entanto ideias, isto é, existem no espírito ou são por ele percebidas como as que ele mesmo forma. Às ideias dos sentidos atribui-se realidade maior, por mais fortes, ordenadas e coerentes do que as criadas pelo espírito; isso não prova existam fora dele. São também menos dependentes do espírito ou substância pensante que as percebe porque as provoca a vontade de um espírito mais poderoso; mas são ideias e nenhuma ideia forte ou fraca pode existir senão no espírito que a percebe. 34. Antes de prosseguir, importa responder a objeções prováveis contra os princípios até aqui apresentados. Se parecer prolixo aos de apreensão rápida, espero me perdoem, pois nem todos compreendem igualmente estas coisas e eu desejo que todos me compreendam. Primeiro. Objetar-se-à que por estes princípios todo o real e substancial do mundo desaparece, ficando em seu lugar um esquema quimérico de ideias. Tudo que existe, existe só no espírito, quer dizer, é puramente nocional. Que são pois sol, lua, estrelas? Que pensar de casas, rios, montanhas, árvores, pedras? E do nosso próprio corpo? É tudo quimera e fantasia? A tudo que de igual modo pode objetar-se respondo que pelos princípios expostos não nos privamos de coisa alguma na natureza. Quanto vemos, sentimos, ouvimos, ou de qualquer modo concebemos ou entendemos, fica tão seguro e real como sempre. Há uma rerum natura e a distinção entre realidade e quimeras mantém a sua força total. Isto é evidente pelos parágrafos 29, 30 e 33, onde mostrei o que deve entender-se por objeto real em oposição a quimeras ou ideias de nossa própria criação; mas umas e outras existem no espírito e nesse sentido são ideias. 35. Não argumento contra a existência de alguma coisa que apreendo pelos sentidos ou pela reflexão. O que os olhos veem e as mãos tocam existe; existe realmente, não o nego. Só nego o que os filósofos chamam matéria ou substância corpórea; e fazendo-o não há prejuízo para o resto da humanidade, que, ouso dizer, nada perderá. O ateu precisa da cor de um nome vazio, para base da sua impiedade; e os filósofos acham talvez que perderam uma grande ocasião para fúteis discussões. 36. Se alguém pensa que isto não concorda com a existência e realidade das coisas, nada compreendeu das premissas que apresentei nos termos mais claros que pude. Vejamos um resumo do já dito. Há substâncias espirituais; espíritos ou almas humanas que em si mesmas excitam ideias à vontade; mas são fantasias, fracas e instáveis relativamente às dos sentidos, que sendo impressas neles por certas regras ou leis da natureza provocam efeitos da alma com maior força e amplitude do que os espíritos humanos. Diz-se que essas têm mais realidade do que as outras, entendendo-se que afetam mais, são mais ordenadas e distintas e não são ficções do espírito percipiente. Neste sentido, o sol que vejo de dia é o sol real e o que imagino de noite é a ideia do primeiro. No sentido de "realidade" aqui dado, é evidente que cada vegetal, estrela, mineral e em geral cada parte do sistema é um ser real tanto pelos nossos princípios como por outros quaisquer. Se outros entendem diferentemente o termo "realidade", convido-os a examinar bem o seu próprio pensamento. 37. Pode insistir-se em que rejeitamos as substâncias corpóreas. Respondo que tomada a palavra "substância" no sentido vulgar - combinação de qualidades sensíveis como extensão, solidez, peso e outras -, não podem acusar-me de negá-la. Mas, tomada no sentido filosófico - suporte de acidentes ou qualidades fora do espírito -, então concordo que a rejeitei, se pode falar-se em rejeitar o que nunca teve existência nem na imaginação. 38. Mas afinal - dir-se-á - parece bem singular dizer que comemos, bebemos ou vestimos ideias. Concordo. Não tendo a palavra "ideia" no uso vulgar o sentido de combinações de qualidades sensíveis chamadas "coisas", é certo que tal expressão na fala corrente seria estranha e ridícula, mas isso nada tem com a verdade da proposição, correspondente apenas a afirmar que comemos e vestimos coisas percebidas imediatamente pelos sentidos. A aspereza ou suavidade, a cor, o sabor, o calor, a figura e qualidades análogas que combinadas constituem as várias espécies de víveres e de vestuário, vimos que só existem no espírito percipiente; e isto é tudo que se entende ao chamar-lhes "ideias", palavra que, se fosse tão usada como "coisas", não seria mais singular ou ridícula do que ela. Não discuto a propriedade mas a verdade da expressão. Portanto, se concordardes comigo que comemos, bebemos e vestimos objetos dos sentidos, inexistentes se não percebidos ou fora do espírito, concederei logo que é mais próprio e acorde com o costume chamar-lhes coisas em vez de ideias. 39. Se se pergunta por que o termo "ideia" em vez do costumado termo "coisa", respondo que por duas razões: primeiro, porque a palavra "coisa" contraposta a "ideia" faz supor em geral algo existente fora do espírito; segundo, porque "coisa" é mais extensivo do que "ideia", porque abrange tanto o espírito pensante como as ideias. Ora, existindo os objetos dos sentidos apenas no espírito, e sendo impensantes e inertes, prefiro designá-los pela palavra "ideia", que implica essas propriedades. 40. Pode haver quem replique não aceitar os argumentos mais plausíveis contra a certeza dos seus sentidos. Pois seja. Por mais alto que eleve a certeza dos sentidos, estarei de acordo. O que vejo, ouço, sinto, existe, isto é, percebo-o e não duvido mais disso do que do meu próprio ser. Mas não vejo que o testemunho dos sentidos seja prova de alguma coisa não percebida por eles. Não pretendemos fazer céticos ou duvidar dos sentidos; pelo contrário, damos-lhes toda a força e importância imagináveis; nem há princípios mais opostos ao ceticismo do que os expostos, como vamos claramente mostrar. 41. Segundo. Pode objetar-se a grande diferença entre o fogo real, por exemplo, e a ideia do fogo, entre sonhar ou imaginar que alguma coisa está a arder, e estar de fato. Se suspeitais ver apenas a ideia de fogo, pondo lá a mão convencer-vos-eis com o testemunho. Isto e coisas semelhantes se alegam em oposição à nossa doutrina. Pelo que fica dito, a resposta é evidente. Só acrescentarei que, se o fogo real é diferente da ideia do fogo, também a dor por ele causada é diferente da ideia de dor e ninguém pretenderá que a dor real é ou pode ser em algo não percipiente ou fora do espírito mais do que a sua ideia. 42. Terceiro. Pode alegar-se que vemos coisas fora de nós ou a distância e portanto não existem no espírito; sendo absurdo estarem coisas à distância de muitas milhas tão próximas de nós domo os nossos pensamentos. Em resposta lembro que em sonho muita vez percebemos coisas a grande distância e por isso se reconhece que só têm existência no nosso espírito. 43. Mas, para melhor esclarecimento do ponto, considere-se como é que a vista percebe a distância e coisas colocadas a distância. Porque a nossa visão do espaço externo e dos corpos nele existentes, mais perto ou mais longe, parece implicar alguma oposição ao que ficou dito sobre a sua existência em parte alguma fora do espírito. Esta dificuldade deu origem ao meu Ensaio sobre uma Nova Teoria da Visão, publicado não há muito, onde se mostra que a distância ou exterioridade nem é percebida imediatamente pela vista, nem apreendida por meio de linhas e ângulos ou por qualquer coisa em necessária conexão com isso; é apenas sugerida ao pensamento por certas ideias visíveis e sensações ligadas à visão, que na sua natureza não têm relação ou semelhança nem com a distância nem com as coisas colocadas a distância; mas por uma conexão aprendida na experiência significam-nas e sugerem-no-las, do mesmo modo que as palavras de uma linguagem sugerem as ideias que significam; tanto que, um cego de nascença, adquirida a vista, não poderia a princípio pensar se as coisas que via estavam fora do seu espírito ou colocadas a alguma distância (v. § 41 desse tratado). 44. As ideias de vista e tato são espécies distintas e heterogêneas. As primeiras são marcas e prognósticos das segundas. Que os objetos da vista não existem fora do espírito nem são imagens de coisas externas já se mostrou nesse tratado; embora o contrário se suponha verdadeiro quanto aos objetos tangíveis; não que fosse necessário supor o erro vulgar para estabelecer a noção ali contestada, mas por ser intuito meu exprimi-la e refutá-lo em um discurso sobre a visão. Estritamente, as ideias da vista, quando por elas apreendemos a distância e coisas distantes, não nos sugerem estas; só nos advertem de que as ideias do tato estarão no nosso espírito a tal ou tal distância no tempo em consequência de tais e tais atos. É evidente, pelo já dito e no parágrafo 147 do Ensaio sobre a Visão, que as ideias visíveis são a linguagem em que o supremo Espírito nos informa das ideias táteis que vai imprimir em nós se excitarmos este ou aquele movimento no nosso corpo. Para maior informação neste ponto, reporto-me ao ensaio citado. 45. Quarto. Pode objetar-se que destes princípios se conclui serem as coisas a cada momento aniquiladas e recriadas. Os objetos dos sentidos só existem quando percebidos; as árvores no jardim, as cadeiras na sala só existem enquanto alguém as percebe. Fechando os olhos, desaparece todo o mobiliário, e simplesmente abrindo-os de novo é criado. Em resposta remeto o leitor aos parágrafos 3, 4, etc., e desejo que pense se a atual existência de uma ideia significa alguma coisa além do seu ser percebida. Por mim, depois da mais cuidadosa reflexão, não vejo outro sentido possível nestas palavras; e mais uma vez convido o leitor a examinar o seu pensamento e não se deixar levar por palavras. Se ele pode conceber que ideias ou seus arquétipos existam impercebidos, perco a causa; se não pode, concordará que é desarrazoado defender o que não conhece, e pretender censurar-me como absurdo o não assentir em proposições afinal destituídas de sentido. 46. Deve notar-se quanto os princípios aceitos da filosofia estão cheios destas pretensas absurdezas. Parece absurdo espantoso a aniquilação de todos os objetos quando fecho os olhos; mas não é o que os filósofos comumente aceitam, concordando que luz e cores (único objeto imediato da vista) são meras sensações só existentes enquanto percebidas? Mais: parece talvez incrível sejam as coisas criadas em cada momento, embora esta noção seja comumente ensinada nas escolas. Porque os escolásticos, apesar de aceitarem a existência da matéria, e que a máquina do mundo é constituída por ela, opinam que ela não pode subsistir sem a conservação divina, que expõem como criação contínua. 47. Além disso, uma breve reflexão nos mostrará que, mesmo concedida a existência da matéria ou substância material, seguir-se-á inevitavelmente dos princípios geralmente admitidos que nenhum corpo particular de qualquer espécie pode existir sem ser percebido. É evidente, pelos parágrafos 11 e seguintes, que a matéria defendida pelos filósofos é alguma coisa incompreensível, sem nenhuma qualidade particular das que distinguem um do outro os corpos percebidos pelos nossos sentidos. Para maior clareza deve notar-se que a divisibilidade infinita da matéria é agora universalmente aceita pelo menos pelos mais considerados filósofos, que a demonstram pelos princípios reconhecidos, sem exceção. Segue-se daqui um infinito número de partes de cada partícula de matéria que não são percebidas pelos sentidos. A razão, portanto, de um corpo parecer uma grandeza finita ou apresentar aos sentidos um número finito de partes, não é por não conter mais, visto elas serem em número infinito, mas não serem os sentidos bastante agudos para discerni-Ias. Na proporção em que os sentidos se tomam mais agudos, percebem maior número de partes do objeto, isto é, o objeto parece maior, a sua figura varia, aquelas extremidades antes imperceptíveis parece agora limitarem-se em linhas e ângulos diferentes dos percebidos por sentidos obtusos. Enfim, depois de várias mudanças de grandeza e forma, tomados os sentidos infinitamente agudos, o corpo parecerá infinito. Entretanto não houve alteração no corpo; Só nos sentidos. Todo o corpo é, portanto, se considerado em si mesmo, infinitamente extenso e em consequência sem forma ou figura. Donde se segue que, embora nós neguemos a existência da matéria, contudo é certo que os mesmos materialistas são forçados pelos seus princípios a reconhecer que nem os corpos particulares percebidos pelos sentidos nem alguma coisa semelhante existe fora do espírito. A matéria, digo, e cada sua partícula é, de acordo com eles, infinita e informe, e o espírito constrói toda a variedade de corpos constitutivos do mundo visível, onde nenhum existe senão enquanto percebido. 48. Sendo assim, a objeção do parágrafo 45 não pode racionalmente atacar os princípios postos nem opor-se às nossas noções. Porque de afirmarmos que os objetos são ideias e não podem existir impercebidos não se conclui só terem existência quando percebidos por nós, desde que pode outro espírito percebê-las e nós não. Dizer que os corpos não têm existência fora do espírito não quer dizer neste ou naquele espírito particular mas em todos. Não se segue, portanto, desses princípios que os corpos sejam aniquilados em cada instante ou não existam no intervalo das nossas percepções. 49. Quinto. Pode talvez objetar-se que, se extensão e forma SÓ existem no espírito, então o espírito é extenso e tem forma, pois a extensão é modo ou atributo (para falar com os escolásticos) predicado do sujeito em que existe. Respondo que tais qualidades estão no espírito apenas como percebidas por ele, não como modo ou atributo mas como ideia; donde não deriva que a alma ou espírito seja extenso, porque a extensão existe nele somente assim; como não se conclui ser ele vermelho ou azul, por estas cores, no acordo geral, existirem nele e não em outra parte. As opiniões dos filósofos sobre sujeito e modo parecem ininteligíveis e sem base. Por exemplo, nesta proposição - "um dado é duro, extenso e quadrado" - querem que a palavra "dado" designe um sujeito ou substância, diferente de dureza, extensão e forma, seus predicados, e em que elas existem. Eu não compreendo que um dado pareça algo distinto dos seus modos e acidentes; dizer que um dado é duro, extenso, quadrado, não é atribuir tais qualidades a um sujeito que os suporta e de que difere, mas apenas explicar o sentido da palavra "dado". 50. Sexto. Direis que tem havido muitas coisas explicadas por matéria e movimento; pondo-as de lado destruir-se-á toda a filosofia corpuscular e subverter-se-ão os princípios mecânicos aplicados com tanto êxito à interpretação dos fenômenos. Em suma, quaisquer que sejam os progressos no estado da natureza, todos os filósofos procedem na hipótese da existência real da matéria ou substância corpórea. Respondo que não há fenômeno algum explicado nessa hipótese que não possa explicar-se sem ela, como se vê pela indução de particulares. Explicar fenômenos é exatamente mostrar por que, em que ocasiões nos afetam tais ou tais ideias. Mas como pode a matéria operar no espírito ou produzir nele uma ideia, eis o que nenhum filósofo pode explicar; é, pois, evidente que a matéria de nada serve em filosofia natural. Demais, quem pretende explicar as coisas não o faz pela substância corpórea mas por figura, movimento, e outras qualidades que na verdade são meras ideias e, portanto, não podem ser causa de coisa alguma, como se mostrou (v. § 125). 51. Sétimo. Pode perguntar-se ainda se não é absurdo banir causas naturais e adstringir tudo a operação imediata de espíritos. Com tais princípios não devemos continuar a dizer que o fogo aquece e a água refresca mas que o espírito aquece e assim por diante. Não seria justamente ridicularizado quem assim falasse? Respondo que sim; nestas coisas devemos "pensar com os doutos, falar como o vulgo". Quem aceita por demonstração o sistema de Copérnico nem por isso deixa de dizer "o sol nasce", "o sol põe-se" ou "chega ao meridiano"; e decerto seria muito ridículo afetar um estilo contrário. Uma breve reflexão sobre o que ficou dito mostra que a linguagem nenhuma alteração recebe da admissão da nossa doutrina. 52. Nas circunstâncias ordinárias da vida conservam-se quaisquer frases, enquanto nos provocam sentimentos ou disposições para agir segundo o nosso bem-estar, mas errôneas se tomadas em sentido estrito e especulativo. Isto é inevitável porque, sendo a propriedade regulada pelo uso, a linguagem serve a opinião aceita, nem sempre a mais verdadeira. Daí ser impossível mesmo ao raciocínio mais rígido e filosófico alterar o caráter e o gênio da língua falada a ponto de nunca dar azo a sofistas de achar dificuldades e inconsistências; mas um leitor sério e simples buscará o sentido pelo fim e teor da conexão do discurso, perdoando os modos imperfeitos de falar, tornados inevitáveis pelo uso. 53. A opinião de que não há causas corpóreas foi já mantida noutro tempo por alguns escolásticos, e por outros dentre os filósofos modernos que, embora aceitando a existência da matéria, entendem que só Deus é causa eficiente imediata de todas as coisas. Viram que entre os objetos dos sentidos nenhum havia com atividade própria. Portanto, isto era igualmente verdadeiro de todos os corpos, por hipótese exteriores ao espírito, e dos objetos imediatos dos sentidos; mas então tinham de supor uma inumerável multidão de seres criados, que eles consideravam incapazes de qualquer efeito na natureza, portanto criados sem qualquer fim, pois Deus poderia ter feito tudo sem eles. Embora possamos aceitá-la como possível, a hipótese é singular e extravagante. 54. Oitavo. O consenso universal pode parecer a alguns argumento invencível em favor da matéria, ou da existência de coisas exteriores. Havemos de supor que o mundo todo se enganou? Respondo: primeiro, que uma investigação minuciosa mostrará não serem talvez tantos os que realmente creram na existência da matéria ou de coisas exteriores ao espírito. Estritamente falando, é impossível crer isso, que envolve contradição ou não tem sentido. Deixo ao exame imparcial do leitor averiguar se as expressões antecedentes não são dessa espécie. Em certo sentido, os homens dizem acreditar na existência da matéria, isto é, atuam como se a causa imediata das suas sensações nesse momento. e por isso tão presente, fosse um ser insensível e não pensante: mas não posso conceber que apreendam o verdadeiro sentido das palavras e formulem uma opinião especulativa. Não é o único exemplo de os homens se imporem a si mesmos, imaginando acreditar em proposições frequentemente ouvidas, embora afinal não pensem nelas. 55. Mas em segundo lugar a adesão pacífica e universal a uma noção é fraco argumento da sua verdade para quem considera o vasto número de preconceitos e opiniões falsas aceitos com a maior tenacidade pela parte irrefletida da humanidade, que é a mais numerosa. Tempo houve em que os antípodas e o movimento terrestre eram tidos por absurdos monstruosos até pelos homens cultos; e, dada a proporção destes com o resto da humanidade, acharemos que nesse tempo aquelas noções só tinham ganho no mundo um lugar desprezível. 56. Pergunta-se a causa deste preconceito e sua aceitação no mundo. Respondo que os homens, conhecendo que percebem muitas ideias de que não são autores (por não serem excitadas interiormente nem dependerem de operações da vontade), mantêm que essas ideias ou objetos de percepção existem independentes do espírito e fora dele, sem ao menos sonharem a contradição implícita nestas palavras; mas os filósofos, tendo visto claro que os objetos imediatos da percepção não existem fora do espírito, corrigiram de certo modo o erro do vulgo; mas ao mesmo tempo parece terem caído em não menor absurdo, o de que certos objetos existem fora do espírito, ou têm subsistência diferente de ser percebidos, e de que as nossas ideias são apenas imagens ou semelhanças, impressas no espírito por esses objetos. Esta noção dos filósofos tem a mesma causa da anterior, quer dizer, a consciência de não serem autores das suas sensações, que reconheceram provindas do exterior, e por isso deviam ter causa distinta do espírito em que estavam impressas. 57. Suporem as ideias dos sentidos provocadas em nós por coisas semelhantes a elas e não recorrerem ao espírito, que só ele pode atuar, pode explicar-se por não terem dado pela repugnância que há, quer em supor coisas exteriores semelhantes às nossas ideias, quer em atribuir-lhes poder ou atividade. Segundo, porque o Supremo Espírito que em nós excita aquelas ideias não é mostrado ou limitado à nossa vista por qualquer coleção particular finita de ideias sensíveis, como os agentes humanos são; pela figura, aspecto, membros e movimentos. Terceiro, porque as suas operações são regulares e uniformes. Se o curso da natureza é interrompido por um milagre, os homens reconhecem a presença de um agente superior; mas, se as coisas seguem o curso ordinário, não excitam a nossa reflexão. A sua ordem e concatenação, embora sejam argumento de grande sabedoria e bondade no seu criador, são tão constantes e familiares para nós, que não as pensamos como efeito imediato de um espírito livre; especialmente desde que inconsistência e mutabilidade na ação, conquanto sejam defeito, se considerem indício de liberdade. 58. Décimo. Pode objetar-se que estas noções são incompatíveis com verdades basilares da filosofia e da matemática. Por exemplo, o movimento terrestre é hoje admitido por todos os astrônomos como verdade claramente demonstrada. Mas pelos princípios anteriores, sendo o movimento uma ideia, segue-se que, não sendo percebido, não existe; mas esse movimento não é percebido pelos sentidos. Respondo: a afirmação, bem compreendida, concorda com os princípios anteriores; essa questão consiste apenas em saber se temos razão para concluir, pela observação dos astrônomos, que, uma vez colocados em certas circunstâncias, na posição e à distância conveniente da Terra e do Sol, veríamos a Terra mover-se no conjunto dos planetas, idêntica a qualquer deles; e isto, pelas leis da natureza de que não há razão de duvidar, conclui-se racionalmente dos fenômenos. 59. Podemos, pela sucessão de ideias no espírito, conhecida por experiência, formar, não digo conjeturas incertas, mas predições seguras e bem fundadas sobre as ideias que nos afetarão, em consequência de uma grande série de ações; e ajuizar do que nos pareceria, se postos em circunstâncias muito diversas das atuais. Nisto consiste o conhecimento da natureza, que pode conservar o uso e a veracidade de acordo com o que ficou dito. Fácil seria aplicar isto a quaisquer objeções da mesma espécie, sobre a grandeza das estrelas ou outras descobertas em astronomia ou na natureza. 60. Undécimo. Pode perguntar-se para que serve a curiosa organização das plantas, o mecanismo das partes do animal. Não podiam os vegetais crescer, enfolhar-se e florir, os animais mover-se com ou sem toda essa variedade de partes internas tão bem imaginadas e reunidas, que sendo ideias não têm poder operativo algum nem conexão com os efeitos correspondentes? Se há um Espírito que produz imediatamente cada efeito por um fiat ou ato da Sua vontade, devemos pensar de quanto é fino e artificial nas obras do homem ou da natureza que se faz em vão. Por esta doutrina, conquanto um artífice faça a mola e as rodas e todo o movimento de um relógio, ajustando-o para produzir o movimento desejado, deve pensar que tudo foi em vão, e há uma Inteligência que governa o mostrador e aponta as horas do dia. Então por que não o faz a Inteligência, sem haver o trabalho de regular e acertar os movimentos? Por que não há de servir igualmente uma caixa vazia? E como sucede que havendo um erro na marcha do relógio há desordem correspondente nos movimentos, e corrigido por mão hábil volta a estar certo? O mesmo se diga do relógio da natureza, em grande parte tão maravilhoso e sutil que mal pode ver-se pelo melhor microscópio. Em suma, pode perguntar-se como, segundo tais princípios, poderá explicar-se ou apresentar causa final dos inumeráveis corpos e máquinas, construídos com a arte mais sutil, que na filosofia comum têm uso adequado e servem para explicar grande número de fenômenos? 61. A tudo isto respondo: primeiro. que, embora haja dificuldade sobre a administração da Providência e o uso designado a várias partes da natureza, essa objeção nada vale contra coisas demonstradas a priori com evidência e rigor. Segundo, nem os princípios aceitos são isentos de dificuldades semelhantes; pode sempre perguntar-se com que fim Deus seguiu este método circum-agente de instrumentos e máquinas, podendo realizar tudo por simples decisão da Sua vontade, sem qualquer aparato; examinando bem a objeção, pode voltar-se com maior força contra os que creem na existência das máquinas fora do espírito; já vimos com evidências que solidez, espessura, forma, movimento, etc., não têm atividade ou eficácia em si mesmos nem podem produzir efeitos na natureza. (V. § 25.) Quem supõe que existem não percebidos (julgando possível a hipótese) fá-lo manifestamente sem objetivo; desde que o único fim indicado por existirem impercebidos é produzirem efeitos perceptíveis, em verdade só ordenáveis pelo Espírito. 62. Mas para acercarmo-nos da dificuldade deve notar-se que, embora a fabricação daquelas partes e órgãos não seja absolutamente necessária para produzir efeito, é necessária à produção de coisas por via regular e constante, de acordo com as leis da natureza. Há leis gerais que passam através de toda a cadeia de efeitos naturais; conhecem-se pela observação e estudo da natureza, e o homem aplica-as ora a fabricar objetos artificiais para uso e ornamento da vida, ou para explicar vários fenômenos - e a explicação consiste em mostrar a conformidade do fenômeno com as leis gerais da natureza, ora, o que é o mesmo, em descobrir a uniformidade na produção de efeitos naturais, como será evidente a quem meditar nos exemplos dados pelos filósofos para dar conta das aparências. Vimos no parágrafo 31 que há um grande e conspícuo uso neste método regular e constante de trabalho, observado pelo Supremo Agente. E é não menos visível que a grandeza particular, figura, movimento e disposição das partes são necessárias não absolutamente para produzir efeito mas para produzi-lo de acordo com as leis mecânicas da natureza. Assim, por exemplo, não pode negar-se que Deus ou a Inteligência que mantém e regula o curso ordinário das coisas poderia, se quisesse, produzir um milagre, causar todos os movimentos de um relógio ainda quando ninguém tivesse preparado nele esses movimentos; mas, se lhe agradou atuar segundo as leis do mecanismo, para sábios fins estabelecidos e mantidos na Criação, é necessária a ação do relojoeiro, que dispõe e ajusta esse movimento, anteriormente à sua produção; como também qualquer desordem nos movimentos e na percepção correspondente, uma vez corrigida, tudo volta a estar certo. 63. Pode acontecer às vezes ser necessário que o Autor da Natureza desenvolva o Seu poder superior às leis, produzindo aparências fora do curso ordinário das coisas. Tais exceções surpreendem o homem e impelem-no ao reconhecimento do Ser Divino; mas têm de ser raras, senão perderiam o efeito. Além disso, Deus, para convencer dos Seus atributos a nossa razão, parece preferir as obras da natureza, reveladoras da harmonia e plano na ação, e indício claro de sabedoria e benevolência do seu Autor, a maravilhar-nos para acreditar n'Ele por fatos anômalos e surpreendentes. 64. Para esclarecer bem esta matéria, observarei que a objeção do parágrafo 60 resume-se nisto: as ideias não são casuais e quaisquer, há nelas ordem e conexão, como de causa e efeito. Há também muitas combinações delas, feitas com regularidade e artifício, semelhantes a instrumentos na mão da natureza, que se diriam ocultas por trás da cena mas operam nas aparências reveladas no teatro do mundo, só visíveis ao olhar curioso do filósofo. Mas, se uma ideia não pode ser causa de outra, para que serve a conexão? E se aqueles instrumentos são puras percepções ineficazes no espírito e não produzem efeitos naturais, pergunta-se por que existem; ou, por outras palavras, que razão pode alegar-se de que Deus, depois de examinada a Sua obra, nos tenha mostrado tanta variedade de ideias tão habilmente reunidas e em acordo com a regra; não sendo crível que Ele gastasse (se é lícita a expressão) toda esta arte e regularidade sem objetivo algum. 65. Respondo: primeiro, a conexão das ideias não implica a relação de causa e efeito mas somente a de um sinal da coisa significada. O fogo que vejo não é causa da dor sentida se me aproximar mas o sinal para me acautelar dele. O ruído que ouço não é efeito de movimento ou colisão de corpos externos mas o sinal disso. Segundo, a razão por que as ideias se formam em máquinas, isto é, regulares e artificiais combinações, é a mesma que para combinar letras em palavras. Essa pluralidade combinatória é necessária para com poucas ideias originais exprimir grande número de efeitos e ações. E para o seu uso permanente e universal essas combinações devem fazer-se segundo regra e sábio plano. Assim obtemos informação abundante sobre o que devemos esperar de tal ou tal ação, qual o método adequado para provocar tal ou tal coisa; e isto é tudo que eu posso conceber distintamente quando se diz que pela figura, textura e mecanismo interno dos corpos, naturais ou artificiais, podemos conhecer os vários usos e propriedades deles dependentes ou a natureza do objeto. 66. Daqui o ser evidente que as coisas quando abrangidas na noção de causa cooperadora ou concorrente na produção dos efeitos são inexplicáveis e conduzem a absurdos grandes; e, quando vistas apenas como marcas ou sinais para informação nossa, se explicam simplesmente e têm uso próprio e óbvio; procurar entender esses sinais instituídos pelo Autor da Natureza, tal deve ser o esforço do filósofo natural; e não o pretender explicar coisas por causas corpóreas, doutrina que parece ter afastado a mente humana do seu princípio ativo, o Supremo e sábio Espírito "em quem vivemos, nos movemos e somos". 67. Duodécimo. Pode objetar-se talvez - apesar de não haver, como vimos, substância inerte, insensível, extensa, móvel, exterior ao espírito, tal qual os filósofos descrevem a matéria - que se alguém separar da ideia de matéria as ideias positivas de extensão, forma, solidez e movimento e disser que por aqueles termos só entende que existe fora do espírito e impercebida, e é ocasião das nossas ideias ou a presença com que a Deus apraz excitar-na-las, não parece que neste sentido a matéria não possa existir. Respondo: primeiro, não parece menos absurdo supor uma substância sem acidentes do que acidentes sem substância. Segundo, suposta a existência possível de tal substância, onde existe? No espírito sabemos que não; em qualquer lugar também não, pois que todo lugar ou extensão existe apenas no espírito, como ficou provado; logo, não existe em parte alguma. 68. Examinemos um pouco a descrição feita da matéria. Nem atua, nem percebe, nem é percebida; é o que significa substância inerte, insensível, desconhecida; definição inteiramente negativa, exceto a noção relativa de ser suporte; mas não suporta nada, e desejo considerá-la definição de um não ente. Mas, dir-me-eis, é a ocasião desconhecida que pela sua presença excita as nossas ideias segundo a vontade de Deus. Ora quereria eu saber como pode ser presente alguma coisa que não é perceptível aos sentidos ou à reflexão, não é capaz de produzir ideias no nosso espírito, não é extensa, não tem forma, nem existe em parte alguma. A expressão "ser presente", assim aplicada, tem de tomar-se em algum sentido singular e abstrato, incompreensível para mim. 69. Vejamos agora o que quer dizer ocasião. No uso comum da linguagem significa ou agente de algum efeito, ou alguma coisa que se viu acompanhá-la ou precedê-la no curso ordinário das coisas. Aplicada à matéria como ficou descrita, nenhum dos sentidos é válido; diz-se que ela é passiva e inerte, portanto não pode ser causa eficiente. É imperceptível, por privada de todas as qualidades sensíveis; logo, não pode ser ocasião de nossas percepções no segundo sentido; como quando o queimar um dedo se diz ser a ocasião da dor que se segue. Portanto, que pode pensar-se chamando a matéria uma ocasião? Ou o termo não tem sentido ou está muito longe da significação reconhecida. 70. Poderá dizer-se que esta matéria impercebida por nós é percebida por Deus a quem dá ocasião de excitar ideias no nosso espírito; porque, observando que as nossas sensações nos são impressas de modo ordenado e constante, é razoável supô-las produzidas em ocasiões regulares e constantes. Isto é, há certas parcelas de matéria constantes e distintas correspondentes às nossas ideias, que embora não as excitem no nosso espírito ou de algum modo nos afetem diretamente, por nos serem imperceptíveis e passivas, são para Deus que as percebe como ocasiões de lembrar-lhe quando e quais ideias convém imprimir no nosso espírito; assim as coisas seguem de modo constante e uniforme. 71. Respondo: Posta assim a questão da matéria, já não respeita à existência de uma coisa diferente de espírito e ideia entre percipiente e percebido; mas em saber se não há certas ideias de não sei que espécie no espírito de Deus, que são como sinais ou notas a dirigi-lo na produção de sensações em nós por um método constante e regular, à maneira de um músico dirigido pelas notas musicais para produzir a harmoniosa composição de sons chamada consonância, embora os ouvintes sejam inteiramente ignorantes das notas. Mas esta noção de matéria é extravagante demais para merecer refutação. Além de não se opor ao já dito, isto é, que não há substância impercebida. 72. À luz da razão, da uniformidade das nossas sensações concluiremos a bondade e sabedoria do Espírito que no-las provoca na mente; mas nada mais posso concluir. Para mim é evidente que o ser de um espírito infinitamente sábio, bom e poderoso basta para explicar as aparências da natureza; mas, por matéria inerte não sensível, nada sei capaz de conexão com ela, ou de levar a pensar nela. E gostaria de ver alguém explicar desse modo o mais insignificante fenômeno da natureza ou mostrar alguma razão, embora no mais baixo grau de probabilidade, para crer nessa existência ou indicar um sentido tolerável desta hipótese. Quanto a ser a ocasião, creio ter mostrado evidentemente a impossibilidade de sê-lo relativamente a nós. Quando muito pode ser ocasião de Deus provocar em nós ideias; e acabamos de ver o significado disto. 73. Vale a pena refletir um pouco sobre os motivos que induziram os homens a supor a existência da substância material. Tendo observado o fim gradual daqueles motivos ou razões, podemos agora tirar-lhe a base. Pensou-se primeiro que forma, cor, movimento e outras qualidades sensíveis ou acidentes existiam fora do espírito; e assim pareceu necessário supor um substractum não pensante onde eles existissem, visto não poderem existir por si mesmos. Depois, tendo visto que o som, a cor e outras qualidades secundárias não existem fora do espírito, deixaram apenas ao substractum as primárias, forma, movimento e análogas que conceberam existentes fora do espírito em um suporte material. Mas visto nenhuma poder existir senão em um espírito percipiente, não há razão de continuar a supor a existência da matéria. Ora, é impossível haja tal coisa, se pela palavra entendermos um substractum impensante de qualidades ou acidentes, existentes fora do espírito. 74. Mas, concedido pelos mesmos materialistas que a matéria só foi pensada para suporte de acidentes, e posta de parte essa razão, é de esperar que o espírito renuncie sem relutância alguma a uma crença sem outro fundamento; mas tão gravado está o preconceito no nosso pensamento, que é difícil dizer como afastá-lo, e inclinamo-nos, dada a indefensabilidade da coisa a conservar ao menos o nome, aplicando-o a abstrata e indefinida noção de ser ou ocasião, sem sombra de motivo, tanto quanto posso julgar. Pois que há da nossa parte ou que poderemos perceber entre as ideias, sensações, noções impressas no nosso espírito, de onde se infira a existência de uma ocasião inerte, impensante, impercebida? Por outro lado, da parte de um Espírito onipotente, que pode levar-nos a crê-lo ou sequer suspeitá-lo dirigido por uma ocasião inerte a provocar ideias no nosso espírito? 75. Extraordinário e lamentável exemplo da força do preconceito manter o espírito humano este empenho contra toda a evidência por um estúpido algo não pensante, interpondo assim um como anteparo à providência divina e afastando-a para longe dos negócios do mundo. Mas por mais esforços para manter a nossa crença na matéria e até, quando a razão nos desampara, para manter a opinião da simples possibilidade da coisa, e levar-nos a aceitar por efeito de uma imaginação não regrada pelo raciocínio esta mísera possibilidade, apesar de a conclusão de tudo isto ser a da existência de certas ideias desconhecidas no pensamento divino; só esta, se alguma há, posso conceber como ocasião relativamente a Deus. E isto afinal não é discutir a coisa, mas o nome. 76. Não discutirei, portanto, se há tais ideias no espírito de Deus e se podem chamar-se "matéria"; mas se insistirem na noção de uma substância impensante ou suporte de extensão, movimento e outras qualidades sensíveis, então julgo da maior evidência ser impossível a existência de tal coisa, visto repugnar claramente que tais qualidades existam em ou sejam suportadas por uma substância não percipiente. 77. Dir-se-á no entanto: Embora não exista suporte impensante da extensão ou outras qualidades percebidas, talvez haja alguma substância inerte, não pensante, ou substractum tào incompreensível para nós como as cores para um cego de nascença, por falta de sentido adequado; mas se tivéssemos um novo sentido poderíamos não duvidar da sua existência mais do que um cego da da luz e das cores. Respondo: primeiro, se por matéria se entende apenas o desconhecido suporte de desconhecidas qualidades, não importa se existe ou não, por nada termos com isso; e não vejo vantagem em discutir sobre o que não sabemos que é nem sabemos por que é. 78. Segundo: Se tivéssemos um sentido novo, só poderia fornecer-nos novas ideias ou sensações; e teríamos a mesma razão contra o seu existir em uma substancia impensante que já tivemos quanto à forma, cor, movimento e outras. Qualidades, como mostramos, são sensações ou ideias, só existentes em um espírito percipiente; isto é verdadeiro das ideias presentes como de todas as ideias possíveis. 79. Pode insistir-se em que, se não temos razão para crer na existência da matéria, indicar-lhe o uso ou explicar por meio dela alguma coisa, ou nem conceber o significado do termo, não há contradição em dizer que ela existe e é em geral uma substância ou ocasião de ideias, embora na verdade seja muito difícil explicar-lhe o sentido ou aderir a uma explicação particular destas palavras. Respondo: Quem use palavras sem sentido pode juntá-las à vontade sem perigo de contradição. Pode dizer-se, por exemplo, que duas vezes dois é igual a sete, se declararmos não tomar estas palavras no sentido usual mas como sinais de não sabemos o quê; igualmente podemos dizer que há uma substância impensante sem acidentes que é ocasião das nossas ideias; e tão compreensível é uma proposição como a outra. 80. Em último lugar dir-se-á: que será se perdermos a causa da substância material, mantendo que a matéria é algo - nem substância nem acidente, nem espírito nem ideia - inerte, impensante, indivisível, imóvel, inextenso, ilocalizado? Porque tudo quanto se diga contra substância ou ocasião, ou qualquer noção positiva ou relativa de matéria, é deslocado quanto a esta definição negativa. Respondo que é possível, se a alguém agradar, usar o termo "matéria" no mesmo sentido em que os homens usam o termo "nada", o que nesse estilo torna esses dois termos convertíveis. Por mim, como resultado dessa definição, atentamente considerada no todo e nas suas partes, só encontro a impressão produzida pelo termo "nada". 81. Replicar-se-á talvez que na definição se inclui a distinção suficiente de "nada": a ideia abstrata positiva de quididade, entidade ou existência. Reconheço que os que pensam terá faculdade de formar ideias abstratas gerais falam como se tivessem essa ideia, segundo dizem, a mais abstrata e geral de todas; e para mim a mais incompreensível. Não vejo razão para negar a existência de grande variedade de espíritos de diferente ordem e capacidade com faculdades em número e extensão muito superiores às que o Autor do meu ser me concedeu. Por mim, pretender determinar, com os meus limitados recursos percepcionais, que ideias o Supremo Espírito neles imprimiu seria louca presunção, pois pode haver, pelo que conheço, inúmeras espécies de ideias e sensações, tão diversas entre si e de quanto tenho percebido, como as cores diferem dos sons. Mas por mais disposto que esteja a reconhecer a estreiteza da minha compreensão relativamente à variedade infinita de espíritos e ideias possíveis, pretender alguém uma noção de entidade ou existência, abstraída de espírito e ideia, de percipiente e percebido, parece-me contradição e jogo de palavras. Resta considerar as objeções possíveis da parte da religião. 82. Alguns pensam que, embora os argumentos pró-existência de corpos não sejam demonstrativos, a Escritura Sagrada não deixa dúvida a um bom cristão sobre a existência real dos corpos e de eles serem mais do que simples ideias. Inúmeros fatos relata a Escritura, supondo evidentemente a realidade de madeira e pedra, montes e rios, cidades e corpos humanos. Respondo que nenhum escrito sagrado ou profano, onde se usem aqueles e análogos termos na acepção corrente, para formar sentido, sofre perigo de ser posto em dúvida por esta doutrina. Todas essas coisas existem, são corpos e substâncias corpóreas se tomadas no sentido vulgar, e estão de acordo com os meus princípios. A diferença entre coisas e ideias, realidade e quimeras ficou bem expressa (v. §§ 29, 30, 33, 36, etc.). Não me parece que a matéria dos filósofos ou a existência de objetos fora do espírito venham referidas na Escritura. 83. Repito: haja ou não coisas externas, todos concordam em que o uso adequado das palavras é exprimir as nossas concepções ou coisas somente enquanto conhecidas e percebidas por nós; de onde se segue que nas afirmações feitas nada há incompatível com o uso corrente e o significado da linguagem; e qualquer discurso permanece tal qual era se for inteligível. E tudo isto decorre tão claro das premissas que não vale a pena insistir. 84. Pode ainda alegar-se que o milagre perde muito do seu valor e importância pelos nossos princípios. Que pensar da vara de Moisés? Transformou-se realmente em serpente ou deu-se apenas uma mudança de ideias no espírito dos espectadores? Pode supor-se que o Salvador nas bodas de Caná impôs à vista, olfato e sabor dos convidados apenas a aparência ou a ideia de vinho? O mesmo se diga de qualquer milagre, consistente apenas, segundo esses princípios, em enganos ou ilusões de fantasia. Respondo que a vara se transformou em verdadeira serpente e a água em vinho verdadeiro. Não há contradição alguma, como se vê nos parágrafos 34 e 35. Esta questão do real e do imaginário foi tão explicada, tantas vezes referida, e as dificuldades tão facilmente respondidas conforme já fora dito, que seria ofender o leitor voltar a resumir a explicação. Apenas observarei que se os presentes à mesa vissem, cheirassem, saboreassem e bebessem vinho, com o efeito correspondente, eu não duvidaria da realidade; e assim o escrúpulo sobre a realidade dos milagres não tem lugar nos nossos mas nos vulgares princípios e, portanto, favorece e não contradiz o que ficou dito. 85. Tendo posto bem a claro as objeções e tendo-lhes dado toda a força e peso que pude, passo agora às consequências da nossa doutrina. Algumas aparecem à primeira vista; várias dificuldades e questões obscuras abundantemente especulativas ficam banidas totalmente da filosofia. "Se a substância corpórea é pensante", "se a matéria é infinitamente divisível" e "como opera no espírito", estes e outros problemas foram sempre entretenimento dos filósofos; mas por dependerem da existência da matéria não têm lugar segundo os nossos princípios. Muitas outras vantagens há para a religião e para a ciência, facilmente dedutíveis do que ficou dito, como se verá adiante com maior clareza. 86. Dos princípios alegados conclui-se poder o conhecimento humano reduzir-se naturalmente a dois domínios: o das ideias e o dos espíritos. Vamos tratar deles ordenadamente. Primeiro, quanto às ideias ou coisas não pensantes, O nosso conhecimento delas foi obscurecido e confundido, e caímos em erros perigosos, supondo dupla existência ao objeto dos sentidos - uma inteligível ou no espírito, outra real e fora do espírito, pensando assim as coisas não pensantes dotadas de natural subsistência própria, diferente de serem percebidas por espíritos. Isto que, se não erro, mostrei ser uma noção sem fundamento e absurda é a verdadeira raiz do ceticismo, porque, enquanto o homem pensa que as coisas reais subsistem fora do espírito e o seu conhecimento não é tanto real como acordável com coisas reais, segue-se que nunca pode estar certo de ter um conhecimento real. Como saber se as coisas percebidas estão conformes com as não percebidas e existentes fora do espírito? 87. Cor, figura, extensão, movimento e outras, consideradas apenas sensações no espírito, são perfeitamente conhecidas; nelas nada é impercebido. Mas consideradas notas ou imagens, referidas a coisas ou arquétipos exteriores ao espírito, arrastam-nos ao ceticismo. Temos as aparências, não a realidade das coisas. Que sejam extensão, figura, movimento ou alguma coisa real e absolutamente ou em si não podemos sabê-lo mas apenas a sua proporção ou relação com os nossos sentidos. Permanecendo iguais as coisas e variando as nossas ideias, não alcançamos determinar qual das ideias ou se alguma representa a verdadeira qualidade da coisa. E assim tudo quanto vemos, ouvimos e sentimos pode ser fantasma e quimera vã, e não se ajustar com as coisas reais da nossa rerum natura. Todo este ceticismo provém de supor uma diferença entre coisas e ideias e que as primeiras subsistem fora do espírito ou impercebidas. Fácil fora alongar este assunto e mostrar como os argumentos dos céticos dependeram sempre da suposição de objetos externos. 88. Supondo a existência real de seres impensantes, diferentes da de serem percebidos, não só nos é impossível conhecer-lhes a natureza mas até saber que existem. Por isso vemos filósofos duvidarem dos sentidos, duvidarem da existência do céu e da terra, do que veem ou sentem e até do seu próprio corpo. E depois desta sua faina e luta de pensamento, são forçados a reconhecer a dificuldade de alcançar conhecimento demonstrativo ou evidente da existência de coisas sensíveis. Mas esta dúvida radical perturbadora do espírito, causadora do ridículo dos filósofos aos olhos do mundo, desvanece-se, fixando nós o sentido das palavras e não nos divertindo com os termos "absoluto", "eterno", "existe" e outros de significação desconhecida. Posso duvidar tanto do meu ser como do das coisas atualmente percebidas pelos sentidos; e é contradição evidente que um objeto sensível seja imediatamente percebido pela vista ou pelo tato e ao mesmo tempo não exista na natureza, pois a verdadeira existência de um ser não pensante consiste em ser percebido. 89. Nada parece mais importante para construir um sistema de sólido e real conhecimento, à prova do ataque do ceticismo, do que principiar por distinguir claramente o sentido de coisa, realidade, existência. É vã toda discussão sobre a existência real de coisas ou qualquer pretensão a esse conhecimento sem ter fixado o sentido daquelas palavras. Coisa ou Ser é o termo mais geral; compreende duas espécies distintas e heterogêneas, que só têm comum o nome: espíritos e ideias; os primeiros são substâncias ativas e indivisíveis; as segundas, seres inertes, transitórios, dependentes, não subsistentes em si mas em espíritos ou substâncias espirituais. Compreendemos a nossa existência por intuição ou reflexão; a dos outros espíritos pela razão. Pode dizer-se termos algum conhecimento ou noção do nosso próprio espírito e seres ativos mas em estrito sentido não temos ideias deles. Semelhantemente, conhecemos e temos noção de relações entre coisas ou ideias, distintas das ideias ou coisas correlatas tanto quanto podemos perceber as últimas sem perceber as anteriores. A mim parece-me que ideias, espíritos e relações são na sua respectiva espécie o objeto do conhecimento humano e o sujeito do discurso; e que o termo ideia seria impropriamente aplicado a cada coisa conhecida ou de que temos noção. 90. As ideias impressas nos sentidos são coisas reais ou existem realmente; não o negamos, mas negamos que existam fora do espírito percipiente ou que sejam semelhanças de arquétipos exteriores ao espírito, pois uma sensação ou ideia consiste em ser percebida, e uma ideia só pode assemelhar-se a uma ideia. Insisto em que as ideias dos sentidos podem chamar-se externas quanto à origem, visto não serem geradas pelo espírito mas nele impressas por um Espírito diferente daquele que as percebe. Os objetos sensíveis também podem considerar-se "fora do espírito" em outro sentido, o de existirem em outro espírito; assim, quando fecho os olhos as coisas que vejo existem mas só pode ser em outro espírito. 91. Seria erro ver nestas afirmações a negação da realidade das coisas. É princípio aceito que extensão, movimento, em suma, todas as qualidades sensíveis não subsistentes por si precisam de um suporte, mas os objetos sensíveis são reconhecidamente apenas combinações dessas qualidades e, portanto, não podem subsistir por si. Nisto há concordância geral. Negando, pois, às coisas sensíveis existência, independente da substância do suporte onde podem existir, não nos afastamos da opinião comum da sua realidade nem somos culpados de inovação alguma. Toda a diferença consiste em não terem, segundo o nosso ver, os seres impensantes sensíveis existência diferente de serem percebidos e não poderem, portanto, existir senão em substâncias inextensas indivisíveis ou espíritos agentes e pensantes que as percebem; ao passo que os filósofos geralmente opinam que as qualidades sensíveis existentes em uma substância inerte, extensa, impensante, que chamam matéria, atribuindo-lhe subsistência natural, exterior aos seres pensantes ou diferente de ser percebida por qualquer espírito, até pelo eterno do Criador, onde supõem apenas ideias das substâncias por Ele criadas; se na verdade as supõem verdadeiramente criadas. 92. Como já mostramos, a doutrina da matéria ou substância corpórea foi verdadeiro pilar ou suporte do ceticismo e sobre a mesma base assentaram os sistema do ateísmo e da irreligião. Tão grande era a dificuldade de conceber a matéria produzida do Nada, que os mais célebres filósofos antigos, até os crentes em Deus, pensavam ser a matéria incriada e coe terna com Ele. Inútil dizer o grande apoio dado aos ateístas em todos os tempos pela substância material. Os seus monstruosos sistemas tanto e de tal modo dependem disso, que, se esta pedra do canto se remove, toda a fábrica há de cair pela base e perde todo valor, desde que se examinem particularmente os absurdos de cada seita miserável de ateístas. 93. Os ímpios e os profanos caem facilmente nestes sistemas acordes com suas inclinações, escarnecendo da substância imaterial e supondo a alma divisível e corruptível como o corpo; o que exclui da formação das coisas a liberdade, a inteligência e o fim; e em seu lugar dão como origem e raiz dos seres uma substância estúpida, não pensante, existente em si. É natural que eles deem ouvidos aos negadores da Providência ou da inspeção do Supremo Espírito nos negócios do mundo, atribuindo a série dos eventos ao cego acaso ou à necessidade fatal. Por outro lado, quando homens dos melhores princípios veem os inimigos da religião dar tão grande importância à matéria não pensante e pôr tão grande esforço e artifícios em reduzir tudo a ela, creio se alegrem de vê-los privados do seu grande apoio e expulsos da única fortaleza fora da qual epicúreos, hobbistas e outros não têm nem sombra de base mas fornecem o triunfo mais barato e fácil do mundo. 94. A existência da matéria ou corpos impercebidos não só foi o melhor suporte de ateístas e fatalistas, mas também do mesmo princípio depende a idolatria em suas várias formas. Se os homens considerassem que o Sol, a Lua, as estrelas e quaisquer objetos sensíveis não têm outra existência senão ser percebidos, nunca adorariam as próprias ideias mas dirigiriam a sua homenagem ao Eterno Espírito invisível, criador e conservador de tudo. 95. O mesmo princípio absurdo, misturado com os artigos da nossa fé, causou sérias dificuldades aos cristãos. Acerca da Ressurreição, por exemplo, quantos escrúpulos e objeções levantaram os socinianos e outros? Mas não depende o mais plausível de todos de ser um corpo o mesmo, não quanto à forma percebida pelos sentidos mas quanto à substância material, permanente sob várias formas? Suprima-se a substância material tão discutida na sua identidade, entenda-se por corpo o que qualquer pessoa compreende por esta palavra, isto é, o imediatamente visto e sentido, apenas constituído pela combinação de qualidades sensíveis ou ideias, e logo as objeções mais irrespondíveis se reduzem a nada. 96. Expulsa da natureza a matéria, varrem-se muitas noções ímpias e céticas, e um número incrível de disputas e enigmas, que foram espinhos no lado de teólogos e filósofos, e deram à humanidade tanta obra inútil que, se os nossos argumentos em contrário não forem demonstrativos (como a mim me parecem), estou certo de que todos os amigos do conhecimento, paz e religião têm razão para desejar que o fossem. 97. Além da existência externa dos objetos perceptíveis, outra grande fonte de erro e dificuldades para o conhecimento ideal é a doutrina das ideias abstratas, tal qual vimos na Introdução. As coisas mais claras do mundo, mais habituais e perfeitamente conhecidas, quando tratadas abstratamente parecem extraordinariamente difíceis e incompreensíveis. Tempo, lugar, movimento, em particular ou concreto, todos os compreendem; mas passando pela mão de um metafísico ficam abstratos e sutis demais para o entendimento do homem vulgar. Mandai um criado ir ter convosco em certo lugar e tempo e não terá de refletir sobre o sentido das palavras; concebendo em particular lugar e tempo, ou o movimento que não o leva lá, não tem a menor dificuldade; mas se o tempo for tomado com exclusão das ações e ideias particulares diferenciadoras, mera continuação de existência ou duração em abstrato, então, mesmo a um filósofo será difícil compreendê-lo. 98. Por mim, se tento formar ideia do tempo, abstraída da sucessão de ideias do meu espírito e em fluxão uniforme partilhada por todos os seres, perco-me em dificuldades inextricáveis. Não tenho a menor noção: apenas ouço a outrem dizer que é infinitamente divisível e falar nele de tal modo que me leva a ter pensamentos extravagantes da minha existência. Parece-me igualmente absurdo, segundo a doutrina impõe como conclusão, ou que se passem idades inúmeras sem um pensamento ou que ele se aniquila em cada momento da vida. Não sendo o tempo coisa alguma, abstraído da sucessão das nossas ideias, segue-se que a duração de um espírito finito deve medir-se pelo número de ideias ou ações sucessivas no mesmo espírito. Consequentemente: a alma pensa sempre. E na verdade não parece fácil tarefa tentar separar nos pensamentos ou abstrair a existência do espírito, da sua cogitação. 99. Semelhantemente, se tentamos abstrair a extensão e o movimento de outras qualidades, e considerá-los em si mesmos, perdemo-los de vista e caímos em grandes extravagâncias, provindas de abstração dupla: primeiro, crer possível abstrair a extensão das outras qualidades; segundo, supor que a entidade da extensão pode abstrair-se de ser percebida. Mas quem reflita, e se esforce por compreender o que diz, compreenderá, se não erro, que todas as qualidades sensíveis são igualmente sensações e igualmente reais; onde há a extensão há a cor, isto é, no espírito; e os respectivos arquétipos só podem existir em outro espírito; os objetos sensíveis nada mais são do que sensações combinadas, ligadas ou (se é lícito dizer assim) concretizadas em conjunto; nenhum pode existir impercebido. 100. O que faz um homem ser feliz ou um objeto bom, todos podem pensar sabê-lo. Mas formar a ideia abstrata de felicidade ou bondade, prescindindo no primeiro caso de todo prazer particular e, no segundo, de todo objeto bom, poucos poderão tentá-lo. Assim como um homem pode ser justo e virtuoso sem ideia precisa de justiça e de virtude. A opinião de que este e outros termos representem noções gerais, abstraídas de pessoas e ações particulares, parece ter tornado a moralidade muito difícil, e o seu estudo de fraco uso para a humanidade. Com efeito, a doutrina da abstração não tem contribuído pouco para arruinar a parte mais útil do conhecimento. 101. Os dois grandes domínios da ciência especulativa relacionados com as ideias sensíveis são a filosofia natural e a matemática. Farei algumas observações sobre cada uma. Primeiro sobre a filosofia natural. Aqui o cético triunfa. Todo o arsenal de argumentos aduzidos para depreciar as nossas faculdades e mostrar a ignorância e inferioridade humanas provém de sermos irremediavelmente cegos para a verdadeira natureza e realidade das coisas. Eles exageram e gostam de fazê-lo. Dizem-nos miseravelmente enganados pelos sentidos e entretidos somente com o aspecto exterior das coisas. A essência, qualidades internas e constituição do menor objeto escapam à nossa vista; em cada gota de água, em cada grão de areia, alguma coisa excede o poder da compreensão humana. Mas é evidente pelo que ficou dito a vacuidade desta queixa e a influência de falsos princípios, que nos levam a desprezar os nossos sentidos e a pensar ignorar tudo de coisas que perfeitamente compreendemos. 102. Induz-nos fortemente a supormo-nos ignorantes da natureza das coisas a opinião vulgar de ser cada uma causa de suas propriedades; ou de haver em cada objeto uma essência, fonte e condição das suas qualidades perceptíveis. Pretenderam alguns dar conta das aparências por qualidades ocultas, mas depois a maior parte decidiu-se por causas mecânicas, figura, movimento, peso e outras, de partículas insensíveis; mas, na verdade, nenhum agente ou causa eficiente senão o espírito, sendo evidente que o movimento, como todas as outras ideias, é absolutamente inerte (v. § 25). Daqui a inanidade de pretender explicar a produção de cores ou sons por figura, movimento, grandeza e outras. Assim as tentativas desta espécie nunca são satisfatórias. O que pode dizer-se em geral de exemplos onde uma ideia ou qualidade é dada como causa de outra. Inútil dizer quantas hipóteses e especulações são postas de parte, e quanto por esta doutrina se abrevia o estudo da natureza. 103. O grande princípio mecânico atual em voga é a atração. Se uma pedra cai na terra ou o mar se levanta para a Lua, esta explicação satisfaz a muitos. Mas em que nos esclarece dizer que isto se faz por atração? Significa a palavra uma como tendência de aproximação dos corpos em vez do impulso de uns para os outros? Mas o modo ou a ação é indeterminado, e pelo que sabemos tanto pode chamar-se "impulso" como "atração". Insisto: as partes do aço são perfeitamente coesas e isso explica-se por atração; mas neste como em outros exemplos não vejo se exprime alguma coisa além do efeito mesmo; quanto à maneira como a ação se produz ou à causa que a produz, não são sequer apontadas. 104. Na verdade, examinando e comparando vários fenômenos, observamos alguma semelhança e conformidade entre eles. Por exemplo, na queda de uma pedra, nas marés, na coesão, cristalização, etc., há semelhanças, em especial uma união ou aproximação mútua dos corpos. E assim tais fenômenos não surpreendem um homem que tenha observado cuidadosamente os efeitos da natureza. Isso apenas ocorre com o fora do comum, ou a coisa em si mesma fora do curso ordinário da nossa observação. Não se estranha a tendência dos corpos para o centro da Terra, porque o observamos constantemente; que semelhante gravitação os faça tender para o centro da Lua pode parecer singular e inexplicável, porque só o observamos nas marés; mas um filósofo, cujos pensamentos abrangem mais largo campo da natureza, tendo observado certa semelhança de aparências no céu e na terra e que inúmeros corpos revelam mútua tendência de aproximação, a que dá o nome genérico de "atração", tudo que possa reduzir-se-lhe ele considera-o justamente explicado. Assim, explica as marés pela atração da Lua sobre o globo terrestre, o que não lhe parece estranho ou anômalo, mas apenas exemplo particular de uma regra geral ou lei da natureza. 105. Portanto, considerada a diferença entre filósofos naturais e os outros homens, veremos que consiste não em conhecimento mais exato da causa eficiente produtora que só pode ser a vontade de um espírito; mas somente em compreensão mais larga, e consequente descoberta de analogias, harmonias, concordâncias, nas obras da natureza, e explicação do efeito particular, isto é, reduzido a regras gerais (v. § 62) baseadas na analogia e uniformidade dos efeitos naturais, e que são as mais gratas ao espírito e por ele procuradas; o que alarga a nossa perspectiva para lá do presente e próximo e nos dá capacidade de formular conjeturas muito prováveis sobre coisas que podem ter ocorrido a grande distância no tempo e no espaço, assim como de predizer o futuro; esta espécie de esforço pela onisciência é muito do gosto do espírito. 106. Mas deveríamos ser prudentes nestas coisas, porque podemos confiar demais nas analogias, e com prejuízo da verdade sentir aquela avidez que leva o espírito a ampliar o seu conhecimento em teoremas gerais. Por exemplo, no caso da gravitação ou atração mútua, por aparecer em muitos exemplos, logo alguns o consideraram universal; atrair e ser atraído teve-se por qualidade inerente a quaisquer corpos. Pelo contrário, é evidente não terem as estrelas fixas tendência para se aproximar; e tão longe ela está de ser essencial aos corpos, que em alguns exemplos parece observar-se o princípio contrário, como no crescimento vertical das plantas e na elasticidade do ar. Nada é necessário ou essencial no caso, mas tudo depende inteiramente da vontade do Espírito Dirigente, que dá a certos corpos a tendência de uns para os outros segundo várias leis, ao passo que conserva outros a distância fixa; e a alguns Ele dá uma tendência contrária, para voarem separadamente como Ele tem por conveniente. 107. Destas premissas creio podermos tirar as seguintes conclusões. Primeiro, que é evidentemente vão procurarem os filósofos uma causa natural eficiente distinta da mente ou espírito. Segundo, considerando que toda a Criação é obra de um Agente sábio e bom, os filósofos, parece, deveriam pensar (contra o que alguns fazem) na causa final das coisas; e não vejo razão por que apontar os vários fins a que se adaptam as coisas naturais e para que foram originariamente destinadas com inefável sabedoria não seja bom caminho para explicá-las, e ao mesmo tempo digno de um filósofo. Terceiro, das premissas não se conclui de modo algum que a história da natureza não deva estudar-se, ou não se façam observações e experiências úteis ao homem e que habilitam a atingir conclusões gerais; mas isso não resulta de hábitos ou relações entre as coisas mesmas mas da bondade de Deus e da sua benignidade para com o homem na administração do mundo (v. §§ 30 e 31). Quarto, por diligente observação de fenômenos no nosso ponto de vista podemos descobrir leis gerais da natureza e delas deduzir os outros fenômenos. Não digo demonstrar porque todas as deduções desse gênero dependem da hipótese da uniformidade no modo de operar do Autor da natureza e da constante observação dessas regras que tomamos por princípios; e é evidente que não podemos sabê-lo. 108. Os que dos fenômenos derivam regras gerais e depois deduzem fenômenos a partir das regras parece considerarem sinais e não causas. Um homem pode compreender bem sinais naturais sem conhecer a sua analogia nem poder dizer por que regra uma coisa é desta ou de outra maneira; e é bem possível escrever incorretamente com observação das regras gerais da gramática; também discutindo a partir das leis da natureza não é impossível generalizar demais a analogia e ser assim levado a erro. 109. Assim como ao ler livros um homem sensato procura fixar os pensamentos e como aplicá-los, de preferência a ocupar-se de notas gramaticais da linguagem, assim ao compulsar o livro da natureza parece abaixo da dignidade do espírito buscar uma exatidão, reduzindo cada fenômeno particular a regras ou mostrar como se segue delas. Visemos fim mais nobre: recrear e exaltar o espírito com o prospecto da beleza, ordem, extensão e variedade das coisas naturais; daí, por inferência justa, ampliar as nossas noções da grandeza, sabedoria e beneficência do Criador; e finalmente fazer das várias partes da Criação, quanto em nós cabe, servidoras do fim que lhes foi designado, a glória de Deus, a sustentação e bem-estar nosso. 110. A melhor chave para a referida analogia ou ciência natural será fácil reconhecê-la em um célebre tratado de mecânica, justamente admirado. No começo, tempo, espaço e movimento distinguem-se em absoluto e relativo, verdadeiro e aparente, matemático e vulgar, distinção largamente explicada pelo autor, que supõe a existência destas quantidades fora do espírito, e ordinariamente concebidas em relação com os objetos sensíveis, embora na sua natureza própria não tenham com eles relação alguma. 111. Quanto ao tempo, ali tomado em sentido absoluto ou abstrato, por duração ou continuidade da existência das coisas, nada tenho a acrescentar ao que já disse (v. §§ 97 e 98). Quanto ao repouso, o célebre autor admite um espaço absoluto, imperceptível aos sentidos, e em si mesmo similar e imóvel; e um espaço relativo, medida do primeiro, móvel, definível pela sua situação relativamente aos corpos sensíveis, tomado vulgarmente por espaço imóvel. Lugar define-se a parte do espaço ocupada por um corpo; e, conforme o espaço é absoluto ou relativo, assim é o lugar. Movimento absoluto chama-se à translação de um corpo de um lugar absoluto para outro lugar absoluto, e movimento relativo o de um lugar relativo para outro. E, como as partes do espaço absoluto não são sensíveis, somos forçados a recorrer às suas medidas sensíveis e a definir lugar e movimento em relação aos corpos considerados imóveis. Mas diz-se que em matéria filosófica devemos abstrair dos sentidos, pois talvez nenhum desses corpos aparentemente imóveis o esteja verdadeiramente, e a mesma coisa relativamente movida pode estar em repouso; como um só e o mesmo corpo pode estar em movimento e em repouso relativo ou até movido ao mesmo tempo por movimentos relativos contrários, conforme o seu lugar diversamente definido. Esta ambiguidade só se encontra no movimento aparente, não no verdadeiro ou absoluto que, portanto, deveria ser o único considerado em filosofia. Como dissemos, os movimentos absolutos distinguem-se dos relativos pelas seguintes propriedades: Primeiro, no movimento verdadeiro ou absoluto, todas as partes que conservam a mesma posição relativamente ao todo movem-se com o todo. Segundo, se o lugar é movido, o que nele estiver é movido; portanto, um corpo movendo-se em um lugar em movimento participa do movimento do lugar. Terceiro, o verdadeiro movimento não é produzido ou modificado senão por uma força aplicada ao corpo. Quarto, o verdadeiro movimento é sempre alterado por força impressa ao corpo movido. Quinto, no movimento circular simplesmente relativo não há força centrífuga, que entretanto no verdadeiro ou absoluto é proporcional à quantidade de movimento. 112. Confesso, não obstante, que não me parece possa haver outro movimento além do relativo; para conceber o movimento é preciso conceber pelo menos dois corpos à distância e em posição variáveis. Se houvesse um corpo só, não poderia mover-se. Isto parece evidente; a ideia que tenho de movimento inclui necessariamente a relação. 113. Mas, conquanto em cada movimento tenha de haver mais de um corpo, pode mover-se apenas um, aquele onde se aplica a força causadora da mudança de distância ou de situação. Porque, embora alguns definam movimento relativo para denominar o corpo movido que varia de distância a outro, quer a força causadora seja aplicada nele, quer não, e como movimento relativo é o percebido pelos sentidos e observado na vida diária, parece que todo homem sensato o conhece tão bem como o melhor filósofo. Ora, pergunto eu se neste sentido, quando alguém passeia na rua, poderá falar-se de movimento das pedras da calçada. Parece-me não ser de necessidade, embora o movimento implique a relação entre duas coisas, cada termo da relação seja denominado por ele. Como um homem pode pensar em alguma coisa que não pensa, assim um corpo pode ser movido para ou desde outro que nem por isso está em movimento. 114. Como o "lugar" é variamente definido, varia o movimento correlato. Em um navio um homem pode dizer-se imóvel em relação às bordas do navio e em movimento relativamente à terra; ou movendo-se para leste quanto às primeiras e para oeste quanto à segunda. Na vida corrente, ninguém pensa além da terra para definir o lugar de um corpo; e o que é imóvel neste sentido é assim considerado absolutamente. Mas os filósofos, de mais vasto pensamento e mais adequada noção do sistema das coisas, descobrem que a mesma terra é móvel. Para fixar as suas noções parece conceberem o mundo corpóreo como finito e os seus extremos imóveis o lugar pelo qual avaliamos os movimentos verdadeiros. Se examinarmos a nossa própria concepção, creio concluiremos serem todos os movimentos absolutos concebíveis enfim e somente movimentos relativos assim definidos. Como já observamos, movimento absoluto, exclusivo de toda relação externa, é incompreensível. E com esta espécie de movimento relativo todas as propriedades mencionadas, causas e efeitos atribuídos ao movimento absoluto vêm concordar, se não me engano. Quanto a não pertencer a força centrífuga ao movimento circular relativo, não vejo como isso pode concluir-se da experiência apresentada (v. Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, in Schol. Def. VIII). Porque a água do vaso no momento em que se diz ter o maior movimento relativo circular não tem, penso eu, movimento algum, como vamos ver. 115. Para afirmar que um corpo é movido, é preciso: primeiro, mudança de distância ou de situação relativamente a outro; segundo, aplicação da força causadora de mudança. Se uma destas condições falta, julgo incompatível com o sentido humano e a propriedade da linguagem dizer de um corpo que está em movimento. Concedo realmente podermos pensar de um corpo, vendo modificar-se a sua distância a outro corpo, que ele se move, embora não haja força aplicada (neste sentido pode haver movimento aparente), mas então nós imaginamos a força causadora da mudança de distância aplicada ao corpo considerado em movimento; isto mostra como podemos enganar-nos julgando em movimento o que não o está. 116. De onde se segue que a consideração do movimento não implica um espaço absoluto, diferente do percebido pelos sentidos e corpos correlatos. Pelos mesmos princípios já aplicados à demonstração de outros objetos sensíveis é claro não poder ele existir fora do espírito. E talvez, se bem inquirirmos, concluiremos não poder formar ideia de espaço puro, exclusivo de todos os corpos. Esta ideia, a mais abstrata, parece-me impossível. Quando provoco um movimento do meu corpo, se não há resistência digo que há espaço; se há resistência digo que há corpo; e na proporção da resistência maior ou menor digo que o espaço é menos ou mais puro. Assim, quando falo de espaço puro ou vazio não deve supor-se que a palavra "espaço" representa uma ideia distinta de ou concebível sem corpos e movimento. Na verdade tendemos a pensar cada substantivo como representando uma ideia distinta, separável de todas as outras; isso dá origem a inúmeros erros. Portanto, supondo aniquilado todo o mundo exceto o meu corpo, se digo que ficou apenas o espaço puro, isto significa que eu concebo possível às minhas pernas moverem-se em todos os sentidos sem a menor resistência; mas se também este fosse destruído não haveria nem movimentos nem espaço. Alguns pensarão que o sentido da vista lhes dá a ideia de espaço puro; mas já mostramos claramente que as ideias de espaço e distância não se obtêm por aquele sentido (v. o Ensaio sobre a Visão). 117. O exposto parece dar fim às dificuldades e discussões dos doutos sobre a natureza do espaço puro. Mas a principal vantagem é ficarmos livres do perigoso dilema a que julgaram reduzir-se a questão muitos que nela pensaram, isto é, pensar que ou o espaço real é Deus, ou além de Deus existe algo eterno, incriado, infinito, indivisível. Ambas estas noções são perniciosas e absurdas. Não poucos teólogos e filósofos de nome, perante a dificuldade de conceber quer limites quer aniquilação do espaço, concluíram que ele era divino. E alguns destes quiseram mostrar em particular a concordância dos atributos incomunicáveis de Deus com ele. Doutrina que, por indigna da Natureza Divina, não vejo como pode esclarecer-nos, enquanto aceitarmos as opiniões correntes. 118. Até aqui a filosofia natural. Vamos agora inquirir do outro ramo do conhecimento especulativo: a matemática. Celebrada ao máximo pela sua clareza e certeza demonstrativa, difícil de encontrar em outro campo, no entanto não pode supor-se livre de erros, se nos seus princípios se esconde algum erro secreto, comum aos professores dessa ciência e ao resto da humanidade. Embora os matemáticos deduzam os seus teoremas de um alto nível de evidência, os seus primeiros princípios são limitados pela consideração da quantidade; e não investigam das máximas transcendentes implícitas em cada ciência, pelo que cada uma delas, sem exceção da matemática, participa desses erros comuns. Não pode negar-se a veracidade desses princípios, nem a clareza e incontestabilidade da dedução efetuada; mas nós mantemos que pode haver máximas errôneas de extensão superior ao objeto da matemática, tacitamente admitidas no progresso desta ciência; e os maus efeitos desses erros implícitos difundem-se por todos os seus ramos. Para falar claro, desconfio que os matemáticos, como os outros homens, caem na doutrina errada das ideias gerais abstratas e da existência de objetos fora do espírito. 119. Pensou-se que a Aritmética tem por objeto as ideias abstratas de número. Supõe-se não fazer parte do conhecimento especulativo compreender-lhe as propriedades e relações mútuas. Esta opinião da pura e intelectual natureza dos números em abstrato deu-lhes alto valor entre os filósofos, que parece estimarem a finura invulgar e a elevação do pensamento. Deu-se grande apreço às mais fúteis especulações numéricas inúteis na prática mas divertidas; e por isso tanto infectaram certos espíritos que sonharam grandes mistérios envoltos nos números e quiseram por eles explicar coisas naturais. Mas, se refletirmos bem, e considerarmos o que fica dito, não faremos grande caso desses altos voos e abstrações e julgá-los-emos somente difficiles nugae; por inúteis na prática e sem beneficio para a vida. 120. Consideramos no parágrafo 13 a unidade em abstrato. Desse e da Introdução segue-se que não existe essa ideia. Mas, sendo o número uma "coleção de unidades", conclui-se não haver unidade em abstrato; não há ideias de número em abstrato significadas por nomes numerais e figuras. Portanto, as teorias da Aritmética, se são abstraídas de nomes e figuras e também do uso e da prática, assim como das coisas particulares enumeradas, pode supor-se nada terem com o objeto; donde se vê como toda a ciência dos números é subordinada à prática e como se toma vazia e pueril quando considerada mera especulação. 121. Contudo, havendo quem se fascine pela especiosa descoberta de verdades abstratas e gaste o seu tempo em teoremas aritméticos e problemas sem aplicação alguma, vale a pena considerar e expor a vaidade da pretensão. Claro no-lo mostra o exame da aritmética na infância e a observação do que os homens originariamente puseram no estudo desta ciência, e o fim visado. É natural pensar que os homens, a princípio por facilidade de memória e ajuda do cômputo, fizeram uso de tentos, ou, ao escrever, de simples traços, pontos ou coisa análoga, cada um deles para significar uma unidade, isto é, uma coisa de qualquer espécie que precisassem contar. Depois acharam mais simples substituir vários traços ou pontos por um só caráter. Por fim a notação dos árabes ou índios permitiu exprimir muito facilmente qualquer número por meio da repetição de poucos caracteres ou figuras, variando-lhes a posição. Isto parece ter-se feito à imitação da linguagem, tal a exata analogia entre a notação por símbolos e nomes, correspondendo os nove símbolos simples aos nove primeiros nomes numerais, e os lugares dos primeiros, às denominações dos segundos. De acordo com estas condições do valor simples e local dos símbolos criaram-se métodos de encontrar, pelos símbolos dados ou sinais das partes, quais e em que posição são próprios para indicar o todo, ou vice-versa. Tendo achado esses e observada a mesma regra de analogia, fácil é traduzi-los em palavras; assim os números ficam perfeitamente conhecidos; porque os números de coisas particulares dizem-se conhecidos quando sabemos o nome ou os símbolos (na disposição adequada) que lhes cabem, de acordo com a mesma analogia. E, conhecidos esses sinais, podemos por operações aritméticas saber os sinais de uma parte das somas parcelares por eles significadas; assim, computando em sinais (pela conexão entre eles e os diferentes conjuntos de coisas donde uma é tomada por unidade), podemos exatamente somar, dividir e proporcionar as coisas mesmas que pretendemos numerar. 122. Em Aritmética, portanto, não lidamos com as coisas, mas com sinais, considerados não como fim mas por nos dirigirem a ação relativamente às coisas para dispor delas seguramente. Como observamos quanto aos termos em geral (§ 19, Introd.), também aqui sucede pensarem-se os nomes numerais ou os caracteres significativos de ideias abstratas, por não sugerirem ao espírito ideias de coisas particulares. Não dissertarei agora sobre o assunto; apenas observo que, pelo que fica dito e é evidente, as coisas tidas por verdades abstratas e teoremas sobre números realmente não têm objeto distinto de coisas numeráveis particulares, exceção feita de nomes e caracteres originariamente apenas sinais, ou capazes de representar bem quaisquer coisas particulares que os homens necessitem contar. Segue-se que estudá-los por si mesmos seria tão sensato como se um homem, desprezando o verdadeiro uso e original utilidade da linguagem, perdesse o tempo em criticar palavras ou em raciocínios e controvérsias puramente verbais. 123. Passando do número à extensão, objeto da geometria, quando considerada relativa, a divisibilidade infinita da extensão finita, embora não exposta como axioma ou teorema nos elementos desta ciência, é no entanto admitida e pensada como tão inseparável e essencial aos princípios e demonstrações da geometria, que os matemáticos não admitem dúvida ou discussão a tal respeito. E como esta noção dá origem àqueles divertidos paradoxos geométricos diretamente repugnantes ao senso comum da humanidade e só admitidos com muita relutância por um espírito ainda não pervertido pela erudição, esta a razão principal da bela e extrema sutileza que torna o estudo da matemática tão difícil e fastidioso. Se pudermos mostrar que nenhuma extensão finita contém partes em número infinito ou é infinitamente divisível, teremos libertado a ciência da geometria de grande número de dificuldades e contradições, sempre até hoje consideradas um agravo à razão humana, e conseguido que a tarefa seja menos lenta e penosa do que tem sido. 124. Cada extensão finita particular pensável é uma ideia existente apenas no espírito, e, portanto, cada parte dela deve ser percebida. Logo, se não posso perceber inúmeras partes em uma extensão finita considerada, é certo não estarem aí contidas; mas é evidente que não posso distinguir partes inumeráveis em uma linha, superfície ou sólido particulares, percebidos pelos sentidos, ou figurados por mim no meu espírito. Concluo pois que não os contém. Nada mais claro para mim do que serem as extensões que tenho à vista apenas as minhas próprias ideias; e não menos clara a impossibilidade de dividir cada uma das minhas ideias em um número infinito de outras ideias, isto é, elas não são infinitamente divisíveis. Se por extensão finita se entende algo diverso de uma ideia finita, não sei o que seja e nada posso afirmar a tal respeito. Se os termos "extensão", "partes", etc., estão em sentido concebível, isto é, são ideias, então, dizer que extensão ou quantidade finita consiste em uma infinidade de partes é contradição tão manifesta, que todos a veem imediatamente; e nenhuma criatura dotada de razão poderá crê-lo se não for levada gradual e brandamente como um gentio convertido à crença na transubstanciação. Velhos e radicados preconceitos passam muita vez por princípios; proposições que tenham obtido crédito e força de princípio ficam, não só elas mas as que delas se deduzem, privilegiadas contra todo exame. E nenhum absurdo há tão grande que por este meio o espírito humano não possa admiti-la. 125. Os convictos da doutrina das ideias gerais abstratas podem convencer-se (pense-se o que se pensar das ideias dos sentidos) de que a extensão em abstrato é infinitamente divisível. Quem julga existirem os objetos sensíveis fora do espírito pode ser levado a admitir que uma linha de uma polegada contém inúmeras partes - existentes mas pequenas demais para poderem observar-se. Estes erros inserem-se tanto no espírito dos geômetras como no dos outros homens, com influência igual no raciocínio de uns e outros; não seria difícil mostrar como os argumentos da geometria para afirmar a infinita divisibilidade da extensão se fundam neles. Aqui observamos apenas por que estão os matemáticos tão aferrados a esta doutrina. 126. Observou-se antes que os teoremas e demonstrações da geometria se ligam com ideias universais (§ 15, Introd.) e explicou-se como deve entender-se isto; quer dizer, as linhas particulares e figuras incluídas no diagrama representam inúmeras outras de grandeza diferente. Por outras palavras, o geômetra abstrai da sua grandeza - sem isto implicar que ele forme uma ideia abstrata, mas apenas que ele não cura da grandeza particular, se é grande ou pequena, considerando-a apenas nula para a demonstração. Segue-se que uma linha de uma polegada pode considerar-se com dez mil partes, por ser tomada não em si mas universalmente. Universal apenas no significado por representar inúmeras linhas maiores que ela, e onde pode haver dez mil partes ou mais. Por esta forma as propriedades das linhas significadas transferem-se - por figura muito vulgar - para os sinais, e daí parecer erradamente pertencerem à sua natureza própria. 127. Não há tão grande número de partes, mas, como pode haver linha que contenha mais, diz-se que a linha de polegada contém partes em número ilimitado; o que é verdade, não tomando-a abstratamente, mas as coisas por ela significadas. Os homens, não fazendo esta distinção, vêm a supor que a linha traçada no papel contém partes inumeráveis. Não há tal coisa como a décima milésima parte de uma polegada; mas há em uma milha ou no diâmetro terrestre, que pode ser representado por aquela polegada. Se desenho um triângulo e tomo por exemplo um lado não superior a uma polegada como raio, considero-o dividido em dez mil ou cem mil partes ou mais; porque, embora a décima milésima parte desta linha considerada em si mesma seja nada, e possa desprezar-se sem erro nem inconveniente, as linhas traçadas podem representar grandes quantidades onde a décima milésima parte é muito considerável; por isso, para evitar grandes erros na prática, o raio deve tomar-se com dez mil partes ou mais. 128. Esta a razão clara por que é necessário à aplicação universal de um teorema falar de linhas traçadas no papel como se contivessem partes que realmente não contêm. Se bem examinarmos o caso, talvez compreendamos a impossibilidade de conceber uma linha de uma polegada, consistente ou divisível em mil partes, mas apenas uma linha muito maior representada pela primeira. Pensando que uma linha é infinitamente divisível, devemos pensá-la infinitamente grande. O que acabamos de notar parece a causa principal de supor necessária em geometria a divisibilidade infinita da extensão finita. 129. As contradições e absurdos vários decorrentes deste falso principio foram naturalmente considerados demonstrações em contrário. Mas não sei por que lógica julgaram-se inadmissíveis as demonstrações a posteriori contra proposições relativas à infinidade, como se não fosse impossível mesmo a um espírito infinito conciliar contradições. Como se o absurdo ou o repugnante pudesse ter conexão necessária com o verdadeiro ou derivar dele. Mas, a quem reflita, parecerá a fraqueza da pretensão uma ironia contra a preguiça do espírito, que prefere um ceticismo indolente ao trabalho de examinar severamente princípios sempre tomados por verdadeiros. 130. Por fim a especulação sobre o infinito foi tão longe e deu de si noções tão extraordinárias que provocaram não pequenos escrúpulos e discussões entre os geômetras atuais. Alguns e de grande nome, não contentes de dividir a linha finita em número infinito de partes, mantêm a divisibilidade de cada parte infinitesimal em infinidade de partes ou infinitesimais de segunda ordem, etc., ad infinitum! De modo que uma polegada deve conter não apenas um número infinito de partes mas uma infinidade de infinidade ad infinitum, de partes. Outros sustentam que todas as ordens de infinitesimais além da primeira são nulas; achando absurdo com razão imaginar uma quantidade positiva ou parte de extensão que mesmo infinitamente multiplicada nunca pode igualar a menor extensão dada. Nem parece menos absurdo pensar que o quadrado, o cubo ou outra potência de raiz positiva real seja nula; os defensores dos infinitesimais de primeira ordem e negadores das subsequentes não podem contestá-la. 131. Não temos, pois, razão de concluir que nenhum deles tem razão, e não há partes infinitamente pequenas ou um número infinito de partes em uma quantidade finita? Diz-se que aceitar esta doutrina seria destruir o alicerce da geometria; e aqueles grandes homens que elevaram a ciência tão alto apenas teriam construído castelos no ar. A isto se responde que tudo quanto na geometria é útil e benéfico à vida humana fica inabalável com os nossos princípios; esta ciência considerada prática recebe antes auxílio que prejuízo do que fica dito. Noutro lugar se porá isto a claro. Demais, alguns dos mais intrincados e sutis problemas da matemática especulativa podem suprimir-se sem prejuízo da verdade e sem dano da humanidade. Creio até bem para desejar que homens de grande talento e firme aplicação desviassem destes divertimentos o pensamento para aplicá-lo a coisas mais ligadas com a vida, ou de maior influência. 132. Se se alega que há teoremas indubitavelmente verdadeiros, descobertos por métodos onde se faz uso de infinitesimais que nunca existiriam se implicassem contradição, respondo que um cuidadoso exame mostrará não haver exemplo da necessidade de usar ou conceber partes infinitesimais de linhas finitas ou quantidades inferiores ao minimum sensibile; é evidente nunca se ter feito, porque é impossível. 133. Vê-se claro pelo que aleguei quantos erros numerosos e importantes resultam de falsos princípios antes impugnados, e ao mesmo tempo surgem em oposição os mais úteis princípios, de consequências altamente vantajosas para a filosofia como para a religião. Em particular, a matéria ou existência absoluta de objetos corpóreos mostrou ser onde os maiores e mais perniciosos inimigos de todo conhecimento, quer humano quer divino, puseram maior força e confiança. Decerto, se distinguindo a existência real de seres não pensantes do fato de serem percebidos e tomando-os como subsistentes por si fora do espírito, nada se explica na natureza, antes tudo se complica; se a hipótese da matéria é puramente precária, não fundada em qualquer razão; se as suas consequências não resistem ao exame livre e se lançam na obscura e geral afirmação de "infinitos seres incompreensíveis"; se a remoção desta matéria não arrasta a menor consequência má; se omitindo-a o mundo muito mais facilmente se concebe; se, finalmente, céticos e ateístas sempre fizeram silêncio sobre a hipótese de haver somente espíritos e ideias, e este esquema quadra perfeitamente com a razão e a religião; creio que podemos admiti-Ia e aceitá-la firmemente, ainda quando apresentada apenas como hipótese e julgando possível a existência da matéria; mas penso ter ficado demonstrado que não o é. 134. É certo que em consequência dos princípios anteriores muitas disputas e especulações consideradas não pequena parte da erudição se rejeitam por inúteis. Mas apesar do prejuízo que as nossas noções possam causar aos profundamente empenhados, e adiantados em estudos desta natureza, espero que outros não vejam neles motivo de desprazer pelos princípios e doutrinas aqui apresentados que tornam mais breve o estudo e muito mais claras, compendiosas e acessíveis do que antes as ciências humanas. 135. Tendo concluído o que a nosso ver se refere ao conhecimento de ideias, o método leva-nos a tratar de espíritos, em que o nosso conhecimento talvez não seja tão deficiente como se julga. A grande razão dada da nossa ignorância da natureza dos espíritos é não termos ideia deles. Mas não deve ter-se por defeito da compreensão humana não perceber a ideia de espírito, pois é manifestamente impossível havê-la. Isto, se não me engano, ficou demonstrado no parágrafo 27; acrescento que se mostrou ser o espírito a substância única ou suporte onde existem os seres não pensantes ou ideias. É absurdo ser uma ideia ou semelhante a uma ideia o suporte, a substância percipiente das ideias. 136. Talvez se diga, como já foi imaginado, que nos falta um sentido capaz de conhecer substâncias e de nos permitir conhecer a nossa alma como conhecemos um triângulo. Respondo que, se assim fosse, apenas recebíamos algumas novas sensações ou ideias sensíveis. Não creio que alguém possa entender os termos alma e substância como simples espécie particular de ideia ou sensação. Devemos pois concluir, tudo ponderado, não ser mais razoável considerar defectivas as nossas faculdades por não nos darem uma ideia de espírito ou substância ativa pensante do que lamentá-las por não compreenderem um quadrado redondo. 137. Muitas afirmações absurdas e heterodoxas e muito ceticismo sobre a natureza da alma provieram da opinião de julgar os espíritos cognoscíveis por uma ideia ou sensação. É mesmo provável ter esta opinião feito duvidar alguns de terem uma alma distinta do corpo por não terem podido achar em si a ideia dela. Assimilar uma ideia, inativa e só existente como percebida, a uma imagem de um agente subsistente por si, não precisa refutar-se; basta olhar ao significado dos termos. Talvez se diga que uma ideia não pode parecer-se com um espírito no pensar, agir, ou subsistir por si, mas a outros respeitos, sendo desnecessário à ideia ou imagem parecer-se em tudo com o original. 138. Respondo que, se não for assim, não pode representá-lo de outra forma. Suprimindo o poder de querer, pensar e perceber ideias, nada fica por onde uma ideia possa assemelhar-se a um espírito. Esta palavra significa o que pensa, quer e percebe. Nada mais. Se é impossível algum grau dessas faculdades ser representado em uma ideia, é evidente não haver ideia de um espírito. 139. Pode objetar-se que, se aos termos "alma", "espírito", "substância", não corresponde uma ideia, eles não têm sentido. Respondo: significam algo real que nem é ideia nem semelhante a uma ideia, mas percebe ideias, vontades e razões a respeito delas. O que sou, o que designo por "eu" é o mesmo que "alma" ou "substância espiritual"; se se chama a isto discussão de palavras e que se o significado imediato de outros termos se chama comumente "ideias", não há razão de proceder de outro modo com os nomes "espírito" ou "alma", respondo: todos os objetos não pensantes do espírito são inteiramente passivos e a sua existência só consiste em serem percebidos; ao passo que a existência do espírito, ser ativo, não consiste em ser percebido mas em pensar e perceber ideias. É necessário, para evitar equívocos ou confusão de naturezas diferentes e incompatíveis, distinguir entre espírito e ideia (v. § 27). 140. Em sentido lato podemos ter uma ideia, ou antes, uma noção de espírito, isto é, compreender o sentido do termo; de outro modo nada poderíamos afirmar ou negar a tal respeito; demais, como concebemos as ideias de outros espíritos por meio das nossas, supomo-las semelhantes; assim conhecemos outros espíritos por meio do nosso, que nesse sentido é imagem ou ideia deles; isto tem com outros espíritos a mesma relação que a cor azul ou o calor por mim percebidos têm com aquelas ideias percebidas por outrem. 141. Não se pense que quem afirma a imortalidade da alma a julgue indestrutível até pelo poder do seu Criador; apenas se nega essa possibilidade pelas leis ordinárias da natureza ou movimento. Quem afirma ser a alma simples flama vital ou sistema de espíritos animais considera-a perecível e corruptível como o corpo; nada mais facilmente dissipável do que esse ser, incapaz por natureza de sobreviver à ruína do tabernáculo que o encerra. Tal noção foi grata mente acarinhada pela pior parte da humanidade, como o mais eficaz antídoto contra todas as impressões de virtude e religião. Mas logo se viu que os corpos, de qualquer forma e contextura, são puras ideias passivas do espírito, mais heterogêneo e afastado delas do que a luz está da treva. Vimos que a alma é indivisível, incorpórea, inextensa, portanto incorruptível. Nada mais claro do que não poderem movimentos, mudanças, decadência, dissolução, a cada hora observáveis nos corpos naturais (o chamado curso da natureza), afetar uma substância ativa, simples; essa é indissolúvel pela força da natureza; isto é, a alma humana é naturalmente imortal. 142. Por tudo isto parece-me claro que as almas não são conhecidas como os objetos inativos e insensíveis, ou por via da ideia. Espíritos e ideias são tão diferentes, que ao dizermos "eles existem", "eles são conhecidos", tais expressões não têm significado comum às duas naturezas. Esperar, por multiplicação ou alargamento das nossas faculdades, chegar a conhecer um espírito como se conhece um triângulo parece tão absurdo como esperar ver um som. Digo isto por me parecer de interesse no esclarecimento de questões importantes e na prevenção de erros perigosos quanto à natureza da alma. Em sentido estrito não podemos dizer que temos ideia de um ser ativo ou de uma ação, mas somente uma noção. Tenho algum conhecimento ou noção do meu espírito e dos seus atos acerca de ideias tanto quanto sei ou entendo o significado destas palavras. Do que conheço tenho alguma noção. Não direi que os termos "ideia" e "noção" não possam equivaler-se, se o mundo quiser, mas a clareza e propriedade mandam distinguir coisas diferentes por diferentes nomes. Note-se ainda que de todas as relações, incluindo um ato do espírito, não podemos propriamente dizer que temos ideia mas antes uma noção de relações e hábitos entre coisas. Se no uso moderno o termo "ideia" se estende a espíritos, relações e atos, é assunto apenas verbal. 143. Cumpre acrescentar que a doutrina das ideias abstratas contribuiu muito para complicar e obscurecer as ciências mais particularmente ligadas com as coisas espirituais. Os homens supuseram poder formar noções abstratas das faculdades e atos do espírito e considerá-las, prescindindo não só do espírito mas dos respectivos objetos e efeitos. Daí um grande número de termos ambíguos, hipoteticamente representativos de noções abstratas, se introduziu na metafísica e na moral, provocando inúmeros mal-entendidos e discussões entre os doutos. 144. Nada parece ter contribuído mais para erros e controvérsias sobre as operações do espírito do que o uso de falar delas em termos provindos de ideias sensíveis. Por exemplo, chamar à vontade movimento da alma. Isto leva a imaginar a alma uma bola em movimento, impelida e determinada pelos objetos sensíveis tão necessariamente como pela pancada de uma raquete. Daqui escrúpulos sem fim e erros perigosos na moral. Estou certo que tudo pode esclarecer-se e surgir a verdade plena, uniforme, consistente, se os filósofos souberem concentrar-se e estar atentos ao verdadeiro significado. 145. Como claramente mostrei, só podemos saber da existência de outros espíritos pelas operações ou pelas ideias que eles excitam em nós. Percebo várias mudanças, movimentos e combinações de ideias, que me informam da existência de certos agentes particulares, como eu, que os acompanham e concorrem para a sua produção. O meu conhecimento de outros espíritos não é pois imediato, como o das minhas ideias; depende da intervenção de ideias, por mim referidas a agentes ou espíritos diferentes de mim, como efeitos ou sinais concomitantes. 146. Mas, embora muitas coisas nos convençam da sua produção por agentes humanos, ninguém ignora que as chamadas obras da natureza, isto é, a maior parte das nossas sensações e ideias, não são produzidas pela vontade humana nem dependentes dela. Há pois algum outro Espírito que as causa, visto não poderem subsistir por si (v. § 29). Mas, consideradas atentamente a ordem, a regularidade, a concatenação das coisas naturais, a surpreendente magnificência, beleza e perfeição das maiores partes da Criação, o requintado traço das menores, a exata harmonia e correspondência do todo e principalmente as nunca bastante admiradas leis do prazer e dor, os apetites e paixões dos animais; considerando tudo isto e meditando no sentido e valor dos atributos Único, Eterno, Infinitamente Sábio, Bom e Perfeito, claramente perceberemos que pertencem àquele Espírito "que tudo realiza em tudo" e "por quem tudo existe". 147. Assim é evidente conhecermos Deus imediatamente como outro espírito, distinto de nós. Podemos afirmar que a sua existência é mais evidente que a dos homens, porque os efeitos da natureza são infinitamente mais numerosos e consideráveis que os dos agentes humanos. Nenhum sinal revela um homem ou efeito por ele produzido que não revele mais fortemente o ser de um Espírito, autor da natureza. Porque é evidente que em relação a outras pessoas a vontade só tem por objeto o movimento corpóreo; mas que esse movimento seja acompanhado por uma ideia ou a excite no espírito de outro, depende inteiramente da vontade do Criador. Só Ele, "que tudo sustenta com o verbo do seu poder", mantém a correlação entre espíritos, capacitando-os para perceberem a existência uns dos outros. E esta pura e clara luz tudo ilumina e permanece invisível. 148. Parece ser geral desagrado do rebanho não pensante não poderem ver Deus. Se pudéssemos vê-lo - dizem - como vemos um homem, acreditaríamos que Ele é, e obedecer-lhe-íamos. Mas basta abrir os olhos para ver o Soberano Senhor de todas as coisas, mais claramente do que outra criatura. Não por visão direta e imediata (como alguns quereriam), ou ver coisas corpóreas, não em si mesmas mas vendo aquilo que as representa na essência de Deus, doutrina que confesso não compreender. Vou explicar-me. Um espírito humano ou pessoa não se percebe pelos sentidos, não é uma ideia. Quando vemos a cor, tamanho, figura e movimentos de um homem só percebemos sensações ou ideias do nosso espírito; e sendo revelados à nossa vista em várias coleções distintas, mostram-nos a existência de espíritos finitos e criados, como nós. Donde se conclui não vermos um homem - se por homem entendemos o que se move, percebe, pensa e vive, como nós - mas apenas certa coleção de ideias que nos leva a pensar na existência de um princípio distinto de pensamento e movimento, semelhante a nós, que o acompanha e é representado por ele. Do mesmo modo vemos Deus. Só há uma diferença. Ao passo que um conjunto finito de ideias denota um espírito humano particular, para qualquer lado que olhemos vemos sempre e em toda a parte indícios da divindade. Tudo quanto vemos, ouvimos, sentimos ou percebemos de qualquer modo pelos sentidos é sinal ou efeito do poder de Deus; como é a nossa percepção dos verdadeiros movimentos produzidos pelo homem. 149. Parece, pois, evidente a uma simples reflexão a existência de Deus ou um Espírito intimamente presente ao nosso, onde produz toda a variedade de ideias ou sensações experimentadas, e de quem dependemos absolutamente, em suma, "em quem vivemos, nos movemos e somos". Triste exemplo de estupidez e descuido é que esta grande verdade, óbvia ao espírito, seja compreendida pela razão de tão poucos homens, apesar de rodeados de claras manifestações da divindade e cegos diante delas, como se os cegasse o excesso de luz. 150. Mas - dir-se-á - nada se deve à Natureza, e tudo há de atribuir-se a operação imediata e única de Deus? Respondo: Se por Natureza se entendem apenas as séries de efeitos e sensações do nosso espírito, segundo leis fixas e gerais, é claro não poder a Natureza produzir absolutamente nada; se por "Natureza" se entende algum ser diferente de Deus e das leis naturais, confesso que o sentido da palavra me é ininteligível. "Natureza", neste sentido, é vã quimera de pagãos desconhecedores da onipresença e infinita perfeição de Deus. Mas é estranho aceitarem-na cristãos, crentes na Escritura Sagrada, onde sempre se atribui à imediata ação de Deus o que os filósofos pagãos atribuem à Natureza. "O Senhor causa a ascensão dos vapores; faz relâmpagos com chuva; arranca o vento dos seus tesouros" (Jeremias, 10, 13). "Volve em manhã a sombra da morte e faz o dia escuro como noite." (Amós, 5, 8.) "Visita a terra e torna-a branda com chuva; abençoa a sementeira e coroa o ano com a Sua bondade; e os pastos revestem-se de rebanhos e os vales cobrem-se de trigo." (V. Salmo 65.) Apesar desta constante linguagem, não sei que aversão nos impede de crer que Deus guie tão de perto os nossos negócios. Preferiríamos supô-lo bem longe, dando-lhe um substituto cego e não pensante, embora (como diz São Paulo) "Ele não esteja longe de cada um de nós". 151. Bem sei que a lentidão e método gradual nas coisas da natureza não parece terem por causa a mão do Onipotente. Além disso, monstros, abortos, frutos inutilizados em flor, chuva a regar o deserto, misérias da vida humana, etc., são argumentos contra a ação e superintendência imediatas de um Espírito infinitamente sábio e bom. Em grande parte, a resposta à objeção está no parágrafo 62. Visivelmente os referidos métodos da natureza são absolutamente necessários para operar pelas regras mais simples e gerais, segundo o modo mais firme e consequente; o que revela a sabedoria e bondade de Deus. E talo artifício desta poderosa máquina da natureza, que, enquanto os movimentos e fenômenos atingem os nossos sentidos, a mão operante no todo é imperceptível aos homens de carne e sangue. "Em verdade", diz o profeta, "Tu és o Deus oculto”. (Isaías, 45, 15.) Mas, embora Ele se esconda aos olhos dos sensuais e preguiçosos que não querem pensar, nada é mais legível para um espírito imparcial e atento do que a presença íntima de um Espírito onisciente que modela, regula e sustenta o sistema dos seres. Resulta claro do já dito que operar de acordo com leis gerais estabeleci das é tão necessário para guiar-nos na vida e revelar-nos os segredos da natureza, que sem isso a riqueza e medida do pensamento e toda a sagacidade e plano humanos de nada serviriam. Seria até impossível haver tais faculdades no espírito (v. S 31). Quer dizer, esta consideração contrabalança abundantemente qualquer inconveniente particular. 152. Devemos considerar que os defeitos da natureza não são sem préstimo por constituírem uma espécie de variedade e aumentarem a beleza do resto da Criação, como as sombras de uma pintura acentuam o brilho das partes iluminadas. Deveríamos examinar bem se a perda de sementes e embriões, a destruição de plantas e animais antes da plena maturidade pode julgar-se imprudência do Autor da natureza ou pelo contrário um preconceito contraído pela nossa familiaridade com impotentes e limitados mortais. No homem, o manejo hábil de coisas que só com muito esforço e indústria pode buscar-se, chama-se sabedoria; mas ao Criador a máquina inexplicavelmente fina de um animal ou vegetal custa-lhe menos do que produzir um seixo. Nada mais evidente do que bastar-lhe para tudo um fiat ou ato da sua vontade. E assim a esplêndida profusão de coisas naturais não significa fraqueza ou prodigalidade no Agente, senão que é argumento da riqueza do seu poder. 153. Quanto à mistura de dor e inutilidade no mundo, segundo as leis da natureza e as ações dos espíritos finitos e imperfeitos, é no estado atual indispensavelmente necessária ao nosso bem-estar. Mas a nossa visão é próxima demais. Por exemplo, a ideia de uma dor particular chama-mos-lhe mal. Entretanto, se ampliarmos a visão até abranger os vários fins, conexões e dependências das coisas, as ocasiões e proporções em que nos afetam a dor e o prazer, a natureza da liberdade humana e o nosso fim no mundo, teremos de reconhecer, nas coisas que em si mesmas parece serem o mal, a natureza do bem, quando consideradas no conjunto do sistema dos seres. 154. É, pois, manifesto a qualquer pessoa refletida que só a falta de atenção e capacidade compreensiva explica a existência de ateus ou maniqueus. Almas pequenas e inconscientes podem ridiculizar a obra da Providência, sem capacidade de compreendê-la ou de fazer esforços para isso; mas os dotados de justeza e extensão de pensamento e habituados a refletir não se cansam de admirar os divinos traços de sabedoria e bondade, transparentes na economia da natureza. Mas que verdade há de tão claro fulgor no espírito que por aversão do pensamento e voluntário fechar dos olhos não possamos evitar vê-la? Será, pois, de estranhar que a generalidade dos homens sempre atentos aos negócios ou ao prazer, e pouco afeitos a fixar ou abrir os olhos da alma, não tenham a convicção, a evidência do Ser de Deus, como devia esperar-se de criaturas racionais? 155. Mais de estranhar é haver homens bastante estúpidos e negligentes, para não estarem, nessa negligência, convencidos de tão evidente e importante verdade; e é de recear que muitos, de qualidades e lazeres, habitantes de países cristãos, meramente por supina e horrível negligência caiam no ateísmo; pois é impossível a uma alma penetrada e iluminada pelo verdadeiro sentido da onipresença, divindade e justiça do Espírito onipotente persistir sem remorso na violação das Suas leis. Por isso precisamos em primeiro lugar atender e meditar esses pontos importantes; assim poderemos adquirir a convicção de que "os olhos do Senhor estão em toda a parte vendo o mal e o bem; de que Ele está conosco e nos guarda onde quer que sejamos e nos dá o pão e o vestido"; de que está presente e consciente no nosso mais Íntimo pensar; de que estamos na Sua mais absoluta e imediata dependência. A visão clara destas grandes verdades só pode levar-nos o coração a uma circunspecta ansiedade e sagrado temor, que é o mais forte incentivo à virtude e a melhor defesa contra o vício. 156. Porque afinal o que tem o primeiro lugar nos nossos estudos é a consideração de Deus e do nosso dever. Promover isto era o principal objetivo dos meus trabalhos, que julgarei inúteis e sem efeito se pelo que disse não inspirar aos meus leitores um sentido piedoso da presença de Deus; e tendo mostrado quanto são falsas e vãs aquelas estéreis especulações, objeto principal dos doutos, dispô-los o melhor possível à reverência e aceitação das verdades salutares do Evangelho; conhecê-las e praticá-las é a mais alta perfeição da natureza humana.