George Berkeley – Três diálogos entre Hilas e Filonous, em oposição aos céticos e ateus. PRIMEIRO DIÁLOGO FILONOUS. Bom dia, Hilas. Não esperava encontrar-vos cá por fora tão de manhãzinha. HILAS. Na verdade, não é meu costume: mas tanto me absorveu cá certo problema, de que estivera a falar na passada noite, que, vendo que não conseguia cerrar olho, resolvi pôr-me de pé e vir dar um giro pelo jardim. F. Tanto melhor: para que saibais, amigo, de quantos inocentes e agradáveis prazeres em todas as madrugadas vos costumais privar. Há lá hora mais deliciosa em todo o dia, e estação de maior encanto em todo o ano? Este céu cor de púrpura; os silvestres, mas aprazíveis trinados dos passarinhos; as galas perfumadas das árvores e das flores; o benéfico influxo do sol que desponta, e mil outras formosuras, indizíveis, da natureza, tudo nos inspira um secreto arroubo; e as faculdades mentais, mais frescas e vivas em tal momento, ajustam-se às meditações a que nos faz prender a solidão de um jardim e uma manhã tranquila... Mas temo que vos importunasse, interrompendo-vos; pois parecíeis muito absorvido em qualquer coisa. H. Certo é que o estava; e ser-me-ia grato que me levásseis a bem o continuar a seguir pelo mesmo fio. Não digo com isto que eu deseje privar-me da boa companhia que me podereis fazer, já que o pensamento me corre mais fácil quando pratico com um amigo que quando estou sozinho; o que vos peço é que me deixeis comunicar-vos o que estava pensando. F. Mas com todo o gosto, Hilas! É o que vos teria pedido, se me não houvésseis tomado a dianteira. H. Pois ia eu pensando no destino dos que, em todos os tempos (quer porque aporfiam em se distinguir do vulgo, quer por qualquer vezo que se não explica), pretendem, ou não acreditar em coisa alguma, ou dar fé aos maiores desvarios que aí há no mundo. Mal é esse que ainda se poderia sofrer, se dos paradoxos e ceticismo de tais criaturas não redundassem prejuízos para o gênero humano. Mas eis aí o mais grave: é que os falhos de ócios para pensar em tais coisas, quando veem os que gastaram todo o seu tempo (ao que se é levado a supor) no empenho de alcançar o conhecimento professarem uma inteira ignorância de tudo, ou avançar noções que por inteiro repugnam aos claros princípios comumente aceitos, sentem-se tentados a pôr em dúvida ainda as verdades de maior importância, que haviam considerado até o momento como sendo sagradas e indiscutíveis. F. Concordo convosco - já quanto à tendência de• certos filósofos de fazerem alarde das suas dúvidas, já quanto aos conceitos fantásticos de alguns outros. E tanto ultimamente tenho ido avante nesta minha maneira de ver as coisas, que abandonei não poucas das sublimes teorias que havia tomado nas escolas deles, a fim de me reverter às opiniões do vulgo. E garanto-vos que, depois de tal revolta contra as noções metafísicas, e em favor dos claros ensinamentos da natureza e do senso comum, tenho achado o meu intelecto estranhamente esclarecido; e tanto, que bem facilmente compreendo agora muito do que me aparecia como mistério e enigma. H. Comprazo-me de verificar que não é verdade o que a vosso respeito alguns me disseram. F. E que foi, pode saber-se? H. Na prática que tivemos a noite passada, apresentaram-vos como alguém que quer dar como boa a mais extravagante opinião que pode ocorrer a um homem, a saber: que não existe substância material no mundo. F. Que não existe aquilo a que entre os filósofos se dá o nome de substância material- lá disso me persuado eu, e muito a sério; porém, se me levassem a ver de tal convicção qualquer absurdeza ou ceticismo, teria tanto motivo para renunciar a ela, decerto, como a que julgo ter agora para rejeitar a oposta. H. Quê! Pois pode haver coisa mais fantástica, mais repugnante ao senso comum, ou prova mais manifesta de ceticismo, do que a crença de que a matéria não tem existência? F. Devagar, bom Hilas, devagar! Que diríeis então se se provasse que vós, que abonais a opinião de que a matéria existe, tendes por aí mesmo muito mais ceticismo, e mantendes maior número de paradoxos, de noções repugnantes ao senso comum do que eu, que não creio em tal? H. Mais fácil vos seria fazer-me crer, digamos, na opinião de que a parte é maior que o todo, do que levar-me jamais a acreditar que eu, para evitar o absurdo e o ceticismo, me sentirei obrigado a abandonar um dia a minha convicção a tal respeito. F. Pois vejamos, amigo. Estais disposto a admitir como sendo válida aquela opinião que vier a mostrar-se, mediante exame, como mais no trilho do senso comum e como mais afastada do ceticismo? H. Da melhor vontade. Já que vos apetece provocar contenda sobre o que há de mais claro na natureza, ouvirei com gosto o que vos apraz dizer-me. F. Com licença, Hilas: que entendeis por cético? H. O que toda gente: entendo alguém que duvida de tudo. F. O que não duvida, por conseguinte, acerca de um ponto particular, pelo que tange a esse ponto não pode ser dito um cético. H. Com isso vou eu. F. Consiste o duvidar, porventura, em tomar a solução afirmativa ou a solução negativa de uma questão? H. Não; em nenhuma das coisas; para quem quer que perceba o falar inglês, duvidar significa uma suspensão entre as duas. F. Logo, do indivíduo que nega um ponto qualquer não se pode dizer que duvida dele - nem mais nem menos do que de quem o afirma com o mesmo grau de segurança. H. Assim é, de fato. F. Por conseguinte, ao primeiro, lá porque nega, não o teremos por mais cético do que ao segundo. H. Reconheço que sim. F. Como então, ó Hilas, vos ocorre pronunciar que sou eu um cético, só porque nego o que é por vós afirmado, ou seja, a existência da matéria? Já que, como quer que digais, sou tão peremptório na negação como vós o sois no afirmar. H. Tende mão, amigo, tende mão! Excedi-me um pouco na definição que propus; mas cumpre não fazer finca-pé demasiado nos passos em falso que ao discorrer nós damos. Disse, na verdade, ser cético o indivíduo que põe tudo em dúvida; cumpriria, porém, acrescentar o seguinte: ou o que nega a realidade e a verdade das coisas. F. Que coisas? Os princípios e os teoremas das ciências? Mas esses, como sabeis, são noções intelectuais universais, e portanto independentes da matéria; e a negação desta, por conseguinte, não implica a negação daqueles primeiros. H. Nisso concordo; mas não existem, Filonous, outras coisas? Vinde cá: que pensais da ação de não dar fé aos sentidos? Da de negar a existência das coisas sensíveis? Da de pretender que nada sabemos acerca delas? Pois isto não basta para chamar cético a um homem? F. Examinemos qual de nós, nesse caso, é o que nega a realidade das coisas sensíveis, ou professa maior ignorância a seu respeito; porque será esse, se vos bem entendo, o que deve ser considerado o maior cético? H. Aí está precisamente o que eu desejo. F. Que entendeis vós por coisas sensíveis? H. As que são percepcionadas pelos sentidos. Pois podíeis fantasiar que entendesse outra coisa? F. Perdoai-me, Hilas, o empenho de bem apreender todas as vossas noções, já que pode abreviar muito a nossa busca. Sofre i que vos faça uma pergunta mais. Só são percepcionadas pelos sentidos as coisas percepcionadas imediatamente? Ou podemos com propriedade chamar sensíveis as que são percepcionadas mediatamente, ou não sem a intervenção de quaisquer outras? H. Não alcanço bastante o que estais dizendo. F. Quando leio um livro, o que imediatamente percepciono são as letras; mas mediatamente, ou por meio delas, são-me sugeridas, digamos, a noção de Deus, ou a de virtude, ou a de verdade, etc., etc. Ora, de que as letras são coisas verdadeiramente sensíveis - coisas percepcionadas pelos nossos sentidos - não poderá haver dúvida: mas queria eu saber, Hilas, se considerais sensíveis as que as letras sugerem. H. Claro que nào. Seria absurdo considerar a Deus - ou à virtude - como coisas sensíveis: se bem que seja possível significá-los a ambos (ou sugeri-los à mente) por sinais sensíveis - com os quais, aliás, têm conexão que não é mais que arbitrária. F. Só, pois, considerais como coisas sensíveis, ao que está a parecer-me, as imediatamente percepcionáveis pelos sentidos. H. Nem menos. F. E não se seguirá desse fato que, se bem que veja uma parte do céu avermelhada, e a outra parte de cor azulada, e que a minha razão daí conclua, de maneira evidente, que haverá uma causa da diversidade das cores, no entanto essa causa não é coisa sensível, ou algo percepcionado pelo sentido da vista? H. Com efeito. F. Do mesmo modo, se bem que eu ouça variadíssimos sons, não se pode dizer que lhes ouça a causa! H. Não; não se pode. F. E quando, por meio do tato, percepciono uma coisa como quente ou pesada, não posso dizer com qualquer verdade - ou qualquer propriedade - que sinto a causa do calor ou do peso? H. Para prevenir outras perguntas do mesmo gênero, dir-vos-ei agora de uma vez por todas que tenho na conta de coisas sensíveis somente as percepcionadas pelos sentidos, e que os sentidos na verdade não percepcionam nada que não seja percepcionado de maneira imediata: pois não têm os sentidos o poder de inferir. A dedução de causas, ou de ocasiões, a partir de efeitos ou de aparências, somente percepcionadas pelos sentidos, é algo que inteiramente à razão compete. F. Por conseguinte, acordamos nisto: unicamente são coisas sensíveis as imediatamente percepcionadas pelos sentidos. Dir-me-eis agora se com o sentido da vista percepcionamos algo que não seja a luz, ou cores, ou figuras; ou algo, pelo ouvido, que não seja som; ou algo, pelo paladar, além de sabores; ou algo, pelo olfato, que não seja cheiro; e pelo tato, alguma coisa mais que qualidades tangíveis. H. Nada mais. F. Ao que parece, portanto, se acaso suprimirmos todas as qualidades sensíveis, nada de sensível nos ficará. H. Concedido. F. As coisas sensíveis, por conseguinte, não são mais que umas tantas qualidades sensíveis, ou então combinações de qualidades sensíveis. H. Isso mesmo. F. O calor é portanto uma coisa sensível. H. Decerto que é. F. Dar-se-á que a realidade das coisas sensíveis consiste no serem percepcionadas? Ou será ela qualquer coisa distinta do fato de serem percepcionadas, algo que não tenha relação com a mente? H. Existir é uma coisa; ser percepcionado é outra. F. Só falo a respeito das coisas sensíveis. E sobre estas, pergunto: por existência real das coisas sensíveis entendeis uma existência exterior à mente, e distinta do serem percepcionadas? H. Entendo uma existência real absoluta: distinta, pois, do serem percepcionadas, e até sem casta de relação alguma com isso de serem percepcionadas. F. Por consequência, no caso de o considerarem como coisa real, deverá o calor existir sem a mente? H. Sim, deverá. F. Ora, dizei-me: essa existência real absoluta, convirá ela de maneira igual a todos os graus de calor que sentimos, ou haverá razão para a atribuir a alguns, ao mesmo tempo que se nega a outros? E se há, dai-me a conhecer essa dita razão. H. Qualquer que seja o grau de calor que nós percepcionemos pelos sentidos, estejamos certos de que existe o mesmo naquele tal objeto que o ocasiona. F. Como assim? Tanto o maior como o que é somenos? H. Digo que a razão, evidentemente, só pode ser uma para ambos; são ambos percepcionados pelos sentidos; o grau mais elevado de calor, todavia, percepcionamo-lo de maneira que é mais sensível; e por conseguinte, se alguma diferença se nos depara aí, é que estamos mais certos do seu existir real do que da existência real do grau menor. F. Mas o grau de calor mais veemente e intenso, não será ele afinal uma grande dor? H. Não se pode negá-lo. F. E então uma coisa que não percepciona será acaso capaz de prazer e de dor? H. Não, decerto. F. E essa substância material em que credes - é ela uma existência completamente insensível, ou dotada de sentidos e de percepção? H. É insensível, sem sombra de dúvida. F. Ela não pode, por conseguinte, ser o sujeito de uma dor qualquer? H. Não pode. F. Nem, por isso mesmo, do maior calor que pode ser sentido: pois concordais que é uma dor, e uma dor não fraca. H. Sem dúvida. F. Que diremos, então, do objeto externo? É ou não é substância material? H. É substância material, com as qualidades sensíveis que lhe são inerentes. F. Mas como, nesse caso, pode nela existir um grande calor - pois que vós concordais em que o não pode haver em qualquer substância material? Desejaria realmente que me aclarásseis isto. H. Um momento, Filonous. Aventurei-me demais quando vos concedi, ainda há pouco, que um calor intenso é uma dor. A dor, ao que mais bem me parece, é algo distinto do calor - e antes a consequência, ou o efeito dele. F. Quando chegais ao fogo uma das vossas mãos, percepcionais uma simples sensação uniforme, ou sentis acaso duas sensações distintas? H. Uma só sensação, e simples. F. Não será o calor imediatamente percepcionado? H. É. F. E a dor? H. Também. F. Visto que ambas, pois, são imediatamente percepcionadas ao mesmo tempo, e visto que o fogo vos afeta aí com uma mesma simples e indecomponível ideia, cabe concluir que essa ideia é, simultaneamente, a dor e o calor imediatamente sentido; e, por conseguinte, que o calor intenso imediatamente sentido não se distingue em nada de certa dor. H. Assim parece, com efeito. F. Pensai bem amigo: podeis conceber uma sensação veemente que não seja acompanhada de prazer ou de dor? H. Não, não posso. F. Ou formar a ideia da dor sensível- ou do prazer - em geral, sem qualquer ideia particular de quente, de frio, de sabor, de cheiro, etc., etc.? H. Não, não creio que o possa. F. Portanto, não se deverá concluir que a dor sensível não é algo distinto dessas sensações ou ideias, quando são intensas? H. É isso inegável. E começo a suspeitar, em boa verdade, que um calor muito grande não pode existir senão numa mente que o percepciona. F. Como? Estaríeis então naquele estado cético, de juízo suspenso entre o afirmar e o negar? H. Não. Ao que suponho, posso ser positivo neste ponto. Um calor violentíssimo e doloroso não pode existir senão na mente. F. Portanto, em vosso juízo, não tem o calor existência real? H. Cumpre confessá-lo. F. É portanto certo que na natureza não há corpo algum realmente quente? H. Não neguei que nos corpos haja calor real. Digo tão só que nada existe que seja um calor real intenso. F. Mas não dissestes, ainda há pouco, que todos os seus graus são igualmente reais; e que, se diferença houvesse, seria então o grau elevado que deveria ser mais real do que o menor? H. É certo; mas é que não considerei naquele instante o fundamento que há para distinguir entre eles, e que agora enxergo com a clareza máxima. E digo o seguinte: o calor intenso não é outra coisa senão um modo particular de sensação dolorosa; e como seja que a dor só poderá oferecer-se em um ser capaz de percepções, cumpre concluir que um calor intenso não pode nunca realmente dar-se numa substância corpórea que não percepciona. F. Como distinguiremos, todavia, os graus de calor que só na mente existem - daqueles que ocorrem sem ser na mente? H. Não vejo aí dificuldade alguma. Sabeis muito bem que a mais pequenina dor só pode existir se percepcionada; portanto, todo grau de calor que for doloroso é tão só na mente que pode existir; dos outros graus, todavia, nada nos obriga a concluir o mesmo. F. Parece-me que admitistes, ainda há pouco, que um ser sem o dom de percepcionar não é mais capaz de prazer que de dor. H. Sim. Admiti-o. F. E a tepidez, ou um grau de calor que é menos forte do que o grau de calor que nos causa incômodo, não será um prazer? H. E daí? F. Não pode, portanto, existir sem mente; quer dizer, não pode existir numa substância impercepcionante, isto é, num corpo. H. Assim parece. F. Ora, desde que, pelo que nós aí vimos, tanto os graus de calor que não são dolorosos como os graus de calor que realmente o são só podem existir numa substância pensante, não caberá concluir que os corpos externos são absolutamente incapazes de qualquer calor? H. Repensando no caso, dou tento de que o agradável da tepidez não é fato afinal de tanta evidência como o de ser doloroso o calor intenso. F. Não pretendo que a tepidez seja um prazer tão grande como é grande o doloroso de um calor intenso; mas basta que me concedais que é um prazer pequenino para que resulte justificada a conclusão que eu tiro. H. Antes lhe chamaria uma indolência. Nada mais é que uma privação (ao que julgo) tanto de prazer como de dor. E que possa convir um estado desses a uma substância não-pensante, coisa é que espero que não contesteis.• F. Se vos decidis a contestar que a tepidez - ou um grau moderado de quentura - constitui de si um verdadeiro prazer, não sei de outro modo de vos levar a crê-lo senão o de apelar para os vossos sentidos. Porém, que pensais do frio? H. O mesmo que do calor. Um frio intenso é uma dor, porque o sentir frio muitíssimo grande é percepcionar uma grande incomodidade; não pode, por consequência, existir sem a mente; porém, um menor grau de frio pode existir sem ela, assim como um grau de calor menor. F. Nesse caso, quando o contato de certos corpos nos faz sentir calor moderado, devemos concluir que eles têm em si um grau moderado de quentura, ou uma tepidez; e daqueles com cujo contato sentimos um grau equivalente de frio - é lícito pensar que têm o frio em si. H. Com esse parecer vou eu. F. Poderá ser verdadeira a doutrina que leva um homem necessariamente a um absurdo? H. Decerto que não. F. Não é absurdo pensar que uma mesma coisa pode ser ao mesmo tempo fria e quente? H. Claro que é. F. Ora, supondo agora que uma das vossas mãos está bastante quente e que a outra está fria; e depois, que as mergulhais a ambas numa bacia de água, achando-se a água numa temperatura intermédia: não se dará que a água há de parecer fria a uma mão, e quente à outra? H. Com efeito. F. E não devemos então concluir, de absoluto acordo com os vossos princípios, que está realmente quente e realmente fria ao mesmo tempo? Isto é (segundo a concessão que me ali fizestes), acreditar num absurdo? H. Confesso que assim parece. F. Por conseguinte, os próprios princípios hão de ser falsos aí, pois conviestes em que um princípio que é verdadeiro não pode levar a conclusões absurdas. H. Mas poderá dar-se uma maior absurdeza que a de dizer que no fogo não há calor? F. Para tirar o ponto mais a claro: dizei-me se em dois casos perfeitamente idênticos não é o mesmo juízo que nos cumpre enunciar? H. É o que cumpre. F. Quando um alfinete vos pica um dedo, não lacera as fibras da vossa carne? H. Sim. F. E quando uma brasa vos queima um dedo, fará mais do que isso? H. Não. F. Mas nesse caso, assim como não ajuizais que está no alfinete a própria sensação que ele em vós ocasiona, ou qualquer coisa de semelhante à sensação - não deveis ajuizar como existente no fogo a sensação ocasionada pelo fogo, conformemente àquilo em que se assentou há pouco. H. Bem, já que há mister de que por aí eu passe, resolvo-me a ceder no que concerne a esse ponto, e vir ao convencimento de que o calor e o frio são não mais que sensações que em nossa mente existem; mas ficam-nos qualidades em bastante número para nos assegurar a realidade das coisas exteriores. F. Mas que diríeis, Hilas, se se comprovasse que com todas as qualidades sensíveis vem a ser o caso precisamente o mesmo, e que não podemos supô-las sem ser na mente, mais do que ao calor e do que ao frio? H. Então, de fato, teríeis feito qualquer coisa pelo vosso escopo; mas isso desespero eu de vos ver lograr. F. Bem; tratemos então de as examinar por ordem. Que pensais dos sabores? Existem sem a mente, ou não existem sem ela? H. Pois há aí criatura de verdadeiro bom senso que ouse pôr em dúvida o ser doce o açúcar, e o absinto, amargo? F. Ensinai-me, amigo. Um sabor doce, Hilas, é uma particular sorte de sensação agradável, ou de prazer. Pois não será? H. Sim,é. F. E o amargor uma espécie de dor, ou de desagrado? H. Nisso convenho. F. Se pois o açúcar e o absinto são substâncias corpóreas impensantes (ou seja: que têm existência fora da mente), como podem a doçura e o amargor - isto é: o prazer e o desagrado - ser convinháveis a um e a outro? H. Esperai, Filonous. Agora caí eu na conta do que me esteve a enganar todo este tempo. Perguntastes-me se o frio e o calor, se o sabor a amargo e o sabor a doce são sortes particulares de prazer e de dor; e ingenuamente respondi que sim. Em vez disso, deveria ter distinguido por esta forma: tais qualidades são prazeres e dores enquanto percepcionadas por nós outros; não, porém, enquanto existentes num objeto externo. Não devemos pois, de maneira absoluta, coligir que no fogo não há calor, ou inferir que no açúcar não há doçura, mas sim somente que o cálido e o doce, enquanto percepcionados por nós outros, não estão no fogo nem no açúcar. Que respondeis a isto? F. Que não vem nada a propósito. Discorremos tão só sobre as coisas sensíveis, que definistes assim: as que percepcionamos imediatamente pelos sentidos. Quaisquer que sejam, em vista disso, as outras qualidades de que venhais falar, de nenhuma delas farei cabedal, pois não pertencem ao ponto que discutimos. Na verdade, podeis pretender haver descoberto umas tantas qualidades que se não percepcionam, e que essas qualidades que não são sensíveis existem no açúcar ou então no fogo. Não alcanço, todavia, o uso que delas podereis fazer para o determinado propósito que é agora o vosso. Ora, dizei-me, uma vez ainda: convindes vós em que o calor e o frio, o amargor e o doce (entendendo por aí as qualidades que são percepcionadas pelos sentidos) não existem sem mente? H. Ao que vejo, de nada me serve o porfiar no caso, e decido por isso abrir mão do assunto pelo que toca às qualidades de que se tem tratado; se bem que confesse que me soa esquisito o dizer-se do açúcar que ele não é doce. F. Todavia, para mais bem vos afirmardes no que acabais de dizer, considerai no seguinte: aquilo que outrora parecia doce poderá ser amargoso a um paladar destemperado. E é manifesto que pessoas diversas percepcionam num manjar sabores diferentes: pois o que é delícia a um homem dá repugnância a outro. E como é que poderia suceder assim, se o sabor fosse inerente à iguaria? H. Confesso que o não estou vendo. F. Cumpre-nos agora considerar o olfato. E, quanto a este, estimaria conhecer se o que dos sabores está dito se não aplica também ao que é dos cheiros. Não são múltiplas sensações, agradáveis e desagradáveis? H. Decerto. F. Concebeis então a possibilidade de que existam num corpo impercepcionante? H. Não concebo. F. Ou podeis imaginar que o excremento e a imundície, de que se nutrem as alimárias sem discernimento ou escolha, dão a elas o cheiro que para nós outros têm? H. De maneira alguma. F. Achais pois possibilidade de não concluir sobre os cheiros - como das outras qualidades de que atrás se fez exame - que só podem existir numa substância percepcionante, quer dizer, na mente? . H. Assim me parece. F. E agora, pelo que respeita aos sons, que devemos pensar? Serão eles acidentes realmente inerentes ou não aos corpos externos? H. O que a mim se me afigura de perfeita evidência é que não são inerentes aos corpos sonoros: pois uma campainha, se a percutirmos no recipiente vazio de uma máquina pneumática, não emite de fato som algum. É o ar, por conseguinte, que releva considerar como o sujeito do som. F. Que razão, Hilas, vedes vós para isso? H. É que quando um movimento se produz no ar, percepcionamos um som mais ou menos grande em proporção do movimento do mesmo ar; mas sem um movimento qualquer do ar não ouvimos som absolutamente algum. F. Mas, ainda quando se conceda que não ouvimos sons quando se não dá no ar um movimento qualquer, não vejo, Hilas, como seja possível inferir daí que o próprio som é no ar que existe. H. É de fato o movimento do ar exterior que produz na mente a sensação de som. Porque, ao bater no tímpano do nosso ouvido, ocasiona aí uma vibração qualquer - a qual, pelos nervos auditivos, se comunica ao cérebro: e por este modo é afetada a alma daquela sensação a que se chama som. F. Pois quê? É então o som uma sensação? H. Digo eu que, enquanto percepcionado, é uma sensação particular na mente. F. E pode sem mente existir sensação? H. Não, decerto. F. Como é possível então que o som, sendo uma sensação, exista no ar, se por ar designais uma substância insensível, que existe sem mente? H. Cumpre que façamos distinção entre o som, enquanto percepcionado por qualquer de nós, e o som como realmente é em si próprio, ou então (o que dá na mesma) entre o som que imediatamente percepcionamos e o som que existe fora de nós. Aquele, sem dúvida nenhuma, é uma sorte particular de sensação; o segundo, porém, é um movimento vibratório ou ondulatório do ar. F. Julguei, Hilas, que obviara já a essa distinção por aquela resposta que vos dei há pouco quando quisestes introduzi-la num caso idêntico. Mas, para não repetir o que já foi dito: estais vós de fato perfeitamente seguro de que o som não passa de um movimento? H. Sim. Perfeitamente seguro. F. Por conseguinte, tudo que convém ao som real pode ser atribuído ao movimento? H. Pois decerto que pode. F. Fará sentido, por isso mesmo, falar de um movimento como de algo estrondoso, aprazível, agudo, grave... H. Ao que vejo, assentastes no arbítrio de me não perceber. Pois não será manifesto que todos tais acidentes, ou modos, pertencem não mais que ao som sensível, ou som na acepção comum da palavra, mas que de forma alguma convêm ao som no sentido filosófico e real do termo - o qual, como vos disse há pouco, é unicamente um movimento do ar? F. Visto isso, parece que existem duas sortes de sons: uma vulgar, que é a do som que se ouve; e outra filosófica e real. H. Pois é isso mesmo. F. E a última consiste em movimento? H. Afirmei que sim. F. Dizei-me, Hilas: a qual dos sentidos, em vosso parecer, pertence a ideia do movimento? Ao do ouvido? H. Não, evidentemente, mas ao da vista e ao do tato. F. Segue-se que, pelo vosso juízo, seria possível ver e tatear, mas não ouvir os tais sons reais? H. Tomai tento, Filonous: podeis muito bem, se vos dá prazer, fazer riso das opiniões que vos tenho dito: mas a verdade das coisas não variará por isso. Reconheço que as inferências a que sou levado me soam de maneira um pouco estranha; mas o falar do comum, como bem sabeis, é criado pelo vulgo e para uso dele; não deve por isso mover espanto se aquelas expressões que mais bem se adaptam às noções exatas e filosóficas nos parecem insólitas e sem cunhos nem cruzes. F. Pois a isso viestes? Afianço-vos que creio que alcancei bastante desde que adverti que se vos dá tão pouco de abandonar as frases e as opiniões do vulgo: pois é parte importante da nossa busca o apurar quais sejam as maneiras de ver que da estrada ordinária se desviam e que merecem ser tidas como as que mais repugnam ao comum sentimento do gênero humano. Mas podeis ver mais que um paradoxo filosófico no dizer-se que nunca se ouvem os sons reais, e que é por outros sentidos que deles temos ideia? E nada vos parece que haja aí que seja contrário à natureza das coisas, à verdade delas? H. Para falar com franqueza, não me está agradando. E depois das concessões que anteriormente vos fiz, posso agora conceder-vos que também os sons não têm existência senão na mente. F. E espero que não seja difícil que reconheçais o mesmo pelo que toca às cores. H. Perdão, Filonous: mas o caso das flores é já diverso. Há lá nada mais evidente do que o vermo-las nós nos objetos? F. Os objetos de que falais são, ao que suponho, substâncias corpóreas, que existem sem mente? H. Pois são. F. E têm cores verdadeiras e reais, que lhes são a elas inerentes? H. Tem cada um dos objetos visíveis aquela mesma cor que vemos nele. F. Como assim? Pois há coisa alguma visível afora as que percepcionamos pela vista? H. Não, não há. F. E percepcionamos pelos sentidos qualquer coisa que não seja percepcionada imediatamente? H. Quanto terei de repetir as mesmas coisas? Já disse que não. F. Tende paciência, meu bom Hilas; e dizei-me uma vez ainda: à exceção das qualidades sensíveis, existe de fato uma coisa qualquer imediatamente percepcionada pelos sentidos? Sei que conviestes em que não existe; gostaria que me informásseis, todavia, se continuais a pensar como pensáveis. H. Continuo. F. E quanto à vossa substância corpórea, é ela pois uma qualidade sensível, ou então um composto de qualidades sensíveis? H. Que pergunta a vossa! Quem pensou jamais que o pudesse ser? F. A razão que tive para vo-lo perguntar é que, ao dizerdes, ainda agora, que tem cada objeto visível aquela mesma cor que vemos nele, vós fizestes substâncias corpóreas de todos os objetos que são visíveis; e isto implica uma de duas: ou que as ditas corporais substâncias vêm a ser afinal qualidades sensíveis, ou que existe ainda uma qualquer coisa, além das mesmas qualidades sensíveis, a qual é percepcionada pela nossa vista; porém, como fora formalmente reconhecido entre nós que cumpria rejeitar esta última hipótese, e como continuais a pensar como então, é clara consequência que a substância corpórea em nada se distingue das qualidades sensíveis. H. Podeis tirar, Filonous, as consequências absurdas que vos der na gana, e fazer perplexidade das mais simples coisas: mas nunca me persuadireis de que perdi o siso. Percebo claríssimamente o que eu quero dizer. F. Só desejo, amigo, que mo façais perceber também a mim. Como mostrais repulsa, todavia, a que se examine a vossa noção de substância material, desisto de insistir sobre esse ponto. Somente vos peço que me façais saber se são as mesmas cores enxergadas por nós aquelas que existem nos objetos externos, ou se são outras. H. As mesmíssimas, claro está. F. Como assim? Pois o belo vermelho e a cor purpurina que daqui estamos contemplando nessas nuvens longínquas existem realmente nas mesmas nuvens? Concebeis que em si próprias tenham forma diversa da de um nevoeiro sombrio, ou da de um vapor? H. Devo confessar, Filonous, que as cores não existem realmente nas nuvens assim como aparecem à distância a que estão. São cores aparentes. F. Aparentes lhes chamais vós? E como distinguir, então, as cores aparentes das cores reais? H. Nada mais fácil. Devemos considerar como sendo aparentes aquelas que aparecem tão só a distância e que logo se dissipam quando estamos próximos. F. Cumpre ter como reais, suponho eu então, as que descobrimos de mais perto e por inspeção mais exata. H. Isso mesmo. F. É inspeção mais próxima e mais exata a que se faz com o auxílio do microscópio, ou aquela que se faz a olho nu? H. A microscópica, sem dúvida alguma. F. Mas o microscópio, muitas vezes, faz ver no objeto cores diferentes das que se percepcionam à vista desarmada. E se houvesse microscópios que ampliassem as coisas em quaisquer proporções que nós quiséssemos, tenhamos por certo que nenhum objeto, qualquer que fosse, observado por eles, nos havia de parecer com a mesma cor com que se nos dá a enxergar a olho nu. H. E que concluís daí? Não podeis arguir que nos vários objetos há realmente cores, lá porque podemos, por operações artificiais, alterá-las ou desvanecê-las. F. Ao que creio, pode concluir-se com evidência das vossas próprias concessões que todas as cores que a olho nu nós vemos são só aparentes como as das nuvens, pois se esvaecem quando observardes com inspeção mais minuciosa e; mais exata, como aquela que nos ministra um microscópio. Por isso pergunto (a fim de responder ao que vós dissestes no intuito de prevenir os meus quesitos) se o estado real e natural de um objeto o descobrimos nós de melhor maneira por visão fina e penetrante, ou se antes por uma vista de menor agudez? H. Pela mais penetrante, sem dúvida alguma. F. E não será de evidência, consoante a Dióptrica, que o microscópio torna a vista mais penetrante, e nos representa os objetos como nos apareceriam aos olhos se estes fossem dotados naturalmente de uma mais delicada sutileza? H. Assim é. F. A representação microscópica, por conseguinte, deverá ser tida como a que melhor apresenta a natureza real da coisa vista, aquilo que a coisa em si mesma é; e as cores percepcionadas por meio dela, como mais genuínas e mais reais que as que são percepcionadas por outra forma. H. Algo há, confesso, no que estais dizendo. F. Além disso, é não só possível, mas evidente, existirem animais cujos órgãos da vista estão organizados por natureza de tal maneira que podem percepcionar algumas coisas que, por serem de diminutíssimo tamanho, escapam de todo ao nosso exame. Que pensais vós desses animaizitos, inconcebivelmente pequenininhos, que só são percepcionados por meio de lentes? Suporemos que são todos completamente cegos? Ou, se admitirmos que têm o dom de ver, poderemos acaso fantasiar que não seja neles função da vista, como nos outros é, o preservar de perigos o seu corpo? E não é evidente, nesse caso, que lhes será possível enxergar partículas que são mais miudinhas que os seus próprios corpos - o que lhes dará de cada objeto uma aparência diversa da que os nossos sentidos nos dão a nós? Até os nossos olhos, aliás, nos não ministram sempre dos variados objetos uma mesma e única representação. Na icterícia, como se sabe, tudo se afigura como de cor amarela. Não será bem provável, por conseguinte, que os animais em cujos olhos nós discernimos uma estrutura muito diferente da que têm os nossos, e cujos corpos abundam de humores diversos, não vejam nas coisas as mesmas cores que nós outros? E não parece derivar-se de tudo isso que todas as cores são por igual aparentes, e que nenhuma daquelas que percepcionamos é de fato inerente ao objeto externo? H. Assim parece, com efeito. F. Ir-se-vos-á toda dúvida ao considerardes que, se as cores fossem propriedades reais, inerentes aos corpos externos, não deveriam admitir modificação alguma senão no caso de qualquer mudança que viesse a ocorrer nos próprios corpos: ora, não é óbvio que elas, pelo que aí dissemos, podem alterar-se ou desaparecer de todo por efeito do uso do microscópio, ou por qualquer mudança nos humores dos olhos, ou porque varie a distância entre o objeto e nós? Mais ainda: se as demais circunstâncias se mantiverem constantes, e só mudar a situação em que se encontram os objetos, exibirão só por isso colorações diferentes. O mesmo acontece quando olhamos para um objeto iluminado com luz mais ou menos forte. E quem não sabe que os mesmos corpos aparecem coloridos de diferente modo à luz de uma vela e à do pleno dia? Acrescentarei a isto a experiência de um prisma, que, separando os raios heterogêneos da luz, altera as cores dos objetos todos e faz aparecer o mais branco dos brancos como se fora a olho nu um vermelho ou um azul. E dizei-me agora se continuais da opinião de que os objetos têm todos uma cor real, uma cor verdadeira, a eles inerente; e desejaria, se pensais que eles a têm, que me dissésseis que distância e posição do objeto, que estrutura e formação peculiar dos olhos, que grau de iluminação e que espécie de luz se requerem para que determinemos a verdadeira cor, e a distingamos das cores que são só aparentes. H. Confesso-me inteiramente convicto de que todas as cores são por igual aparentes, que cor alguma de fato existe de real inerência num corpo externo, e que é de todo na luz que se encontra a cor. E confirma-me neste meu juízo o ser em proporção da quantidade de luz que as cores aparecem mais ou menos vivas; e, quando não há luz, não existe percepção de cor alguma. Ademais, se admitíssemos que há cores nos objetos externos, como seria possível percepcioná-las? Pois nenhum corpo externo pode afetar a mente sem que nos órgãos dos sentidos primeiramente atue. Ora, a ação dos corpos é só movimento, e o movimento comunica-se tão só por impulso. Um objeto longínquo, por conseguinte, não tem capacidade de atuar nos olhos nem de se tornar perceptível à nossa alma - nem ele, nem as propriedades que tem. De onde se segue com perfeita evidência que existe uma substância imediatamente contígua, a qual, operando nos olhos, dá ocasião à percepção das cores; e ei-la, aí está: tal substância é a luz. F. Que dizeis? É a luz uma substância, pois? H. Digo-vos, Filonous, que a luz externa nada mais é que uma substância sutil e transparente, cujas minúsculas partículas, agitadas por um movimento vivo, e refletidas por diversos modos das superfícies dos objetos para os nossos olhos, comunicam movimentos aos nervos ópticos; os quais, propagados até ao cérebro, causam nele impressões variadas: e estas estão ligadas às sensações do vermelho, do azul, do amarelo, etc., etc. F. A luz limita-se, ao que por aí parece, a fazer abalo nos nervos ópticos? H. Nem mais nem menos. F. E depois, por efeito de um movimento particular dos nervos, a mente é afetada por uma sensação, a qual é uma cor? H. Isso mesmo. F. E essas sensações... não têm existência sem a mente? H. Pois não têm. F. Como afirmais então que as cores estão na luz, já que entendeis pela palavra luz uma substância corpórea exterior à mente? H. As cores e a luz, enquanto imediatamente percepcionadas, concedo-vos que não podem existir sem ser na mente; em si mesmas, porém, só são movimentos e configurações variadas de partes insensíveis da matéria. F. As cores, portanto, no sentido vulgar, ou seja, como objetos imediatos da vista, podem convir unicamente a uma substância percepcionante? H. É o que eu digo. F. Pois bem. Já que abandonais as pretensões que tínheis por aquilo que concerne às qualidades sensíveis, que são só o que os homens consideram cores, podeis bem dizer o que vos der na gana sobre as cores invisíveis dos senhores filósofos. Não me toca a mim o discutir sobre elas; só quisera aconselhar-vos a refletir se, considerando a pesquisa a que procedemos os dois, é prudente afirmar que não são cores reais o vermelho e o azul que de fato vemos, mas que são pelo contrário verdadeiras cores umas certas figuras e movimentos incógnitos que nunca ninguém viu e que se não podem ver. Não são isso noções que repugna admitir, e sujeitas a tantas inferências absurdas como aquelas a que tivestes de renunciar a pouco, a respeito dos sons? H. Confesso francamente, Filonous, que não vale a pena resistir mais tempo. Cores, sons, sabores... - em suma: aquilo a que se chama qualidades segundas - não existem decerto fora da mente. Que tal confissão, todavia, não leve a supor que derrogo um nada na realidade da matéria ou do objeto externo, pois sei que esse juízo sobre as qualidades segundas numerosos filósofos o mantiveram já, ficando sem embargo o mais longe possível da negação da existência da matéria. Para melhor entendimento do que estou dizendo, deveis saber que as qualidades sensíveis têm sido divididas pelos ditos filósofos em qualidades primeiras e qualidades segundas. As primeiras são: a extensão, a figura, a solidez, o peso, o movimento, o repouso. E sobre estas sustentam eles que têm existência real nos corpos. As outras enumeramo-las anteriormente, ou sejam: todas aquelas qualidades sensíveis não incluídas entre as primeiras; e sobre estas o que dizem os filósofos é que não passam nunca de sensações ou ideias, que não têm existência senão na mente. Mas tudo isto o sabeis vós muito bem, tenho disso a certeza. Por minha parte, há muito tempo que me achava informado de que tal era a opinião de certos filósofos, mas não estava convencido da verdade de tal doutrina. F. Quer dizer: pelo que respeita à extensão e às figuras, mantendes vós a opinião, ainda, de que são inerentes a substâncias externas, a substâncias destituídas de pensamento? H. Mantenho. F. E se os argumentos contra as qualidades segundas fossem válidos também contra as primeiras? H. Relevar-me-ia pensar, se tal caso se desse, que outrossim estas últimas só na mente existem. F. Em vosso parecer, é a própria figura, é a própria extensão que os sentidos percepcionam o que existe realmente no objeto externo, ou seja, na substância material? H. É. F. E terão os outros animais as mesmas boas razões para pensarem o mesmo a respeito das figuras e das extensões que eles próprios vêm e que tateiam? H. Sem dúvida, se algum pensar eles têm, F. Ora, respondei-me, Hilas. Pensais que os sentidos foram dados aos animais para sua preservação e bem-estar na vida? Ou só os homens para esse fim os têm? H. Não ponho em dúvida, Filonous, que façam eles o mesmo ofício em todos os outros animais. F. E, se tal sucede, não cumprirá que os sentidos os habilitem a eles a percepcionarem os seus próprios membros e os corpos capazes de lhes causarem dano? H. Decerto que sim. F. Suporemos que um gusano, por conseguinte, é bicho que vê as suas próprias patas (e as coisas de grandeza igual à destas, ou menores ainda) como corpos de considerável dimensão; ao passo que a vós as mesmas coisas vos parecem apenas discerníveis, ou, quando muito, como só uns pontinhos que podeis enxergar. H. Não há aí negá-lo. F. E aos bichos menores do que o gusano, tais corpos parecerão maiores ainda? H. Parecerão. F. E assim, aquilo que com dificuldade vós lograis discernir, a outro animal extremamente miudinho poderá aparecer como uma montanha imensa. H. Tudo isso eu concedo. F. E poderá uma só e mesma coisa, em si própria e ao mesmo tempo, ser de diferentes dimensões? H. Pensá-lo seria absurdo. F. Segue-se daquilo que estabelecestes, porém, que tanto a extensão que percepcionais como a extensão percepcionada pelo gusano, assim como as percepcionadas pelos animais mais miúdos, são todas e cada uma delas a verdadeira extensão do pé do gusano. Pelos vossos princípios, por conseguinte, vos vedes impelido a uma conclusão absurda. H. Parece existir, com efeito, certa dificuldade neste ponto em que estamos. F. E não assentistes, além disso, em que se não pode mudar nenhuma real propriedade que seja inerente a qualquer objeto, sem haver mudanças na própria coisa? H. Assim fiz. F. Porém, consoante nos acercamos ou afastamos de um objeto, vai variando a sua extensão visível, até ser, a certa distância, dez ou cem vezes maior que a outra distância. Não se seguirá também neste caso que não é realmente inerente ao objeto? H. Confesso que não sei que pensar do caso. F. De pronto vos fixareis no vosso juízo acerca da qualidade de que se trata agora se vos aventurardes a pensar tão livremente como acerca do resto pensastes já. Pois não foi admitido como um bom argumento que nem o frio nem o calor tinham existência na água, pois que a uma das mãos parecia ela quente, ao passo que era fria para a outra mão? H. Com efeito, assim foi. F. E não será raciocinar pelo mesmo modo concluir que no objeto não há extensão nem figura, quando sucede a um dos olhos parecer ele pequeno, redondo, liso, e ao outro grande, desigual, anguloso? H. Seria o mesmo raciocínio, sem dúvida alguma. Mas poderá dar-se jamais um caso desse? F. Sempre que quiserdes tereis dele a experiência, mirando com um dos olhos a olho nu, e observando o outro por um microscópio. H. Não sei na verdade como defender este ponto; e, no entanto, repugna-me muito o abandonar a extensão, tão estranhas consequências me parece ver que do meu consentimento se seguiriam. F. Estranhas? Espero, depois das concessões que já tendes feito, que nada vos embaraçará porque seja estranho. Mas não seria por seu lado imensamente estranho que um raciocínio qualquer de caráter geral que abarca todas as outras qualidades sensíveis não incluísse outrossim a extensão? Se admitirmos que não pode nenhuma ideia, nem coisa alguma que se assemelhe a uma ideia, existir numa substância impercepcionante - com toda a segurança se concluirá daí que nenhuma figura ou modo da extensão, que seja percepcionável ou imaginável, Ou de que logremos alcançar qualquer ideia, pode ser realmente inerente à matéria; já não falando no particular embaraço que haveria em conceber que uma substância material, distinta da extensão e anterior a ela, fosse o substractum da extensão. Trate-se de qualquer das qualidades sensíveis - seja ela a cor, ou a figura, ou o som -, afigura-se como coisa impossível que ela possa existir no que a não percepciona. H. Por agora, tomo a decisão de abandonar este ponto; mas reservo-me o direito de a retratar mais tarde, se vier a descobrir algum passo em falso no percurso do caminho que me levou a ela. F. Direito é esse que se não poderá negar-vos. E visto que despachamos a figura e a extensão, é agora o movimento o que deverá seguir-se. Um movimento real num corpo externo poderá ser ao mesmo tempo muito lento e muito rápido? H. Não, não pode. F. A rapidez do movimento de qualquer corpo não estará acaso na razão inversa do tempo em que percorre um determinado espaço? Assim, um corpo que percorre uma milha em uma hora está animado de um movimento três vezes mais rápido do que se percorresse uma milha durante três horas. H. Concordo convosco. F. E não será verdade que o tempo é medido pela sucessão das ideias na nossa mente? H. Assim é. F. E não seria acaso coisa possível que as ideias se sucedessem na vossa mente duas vezes mais rápidas que na minha própria, ou na de algum espírito de outra espécie que nós? Admito que sim. F) A outra pessoa, por conseguinte, pode parecer que o mesmíssimo corpo realiza o percurso de certo espaço em metade do tempo que vos parece a vós. E para outra relação qualquer o mesmo raciocínio seria válido. Quer isto dizer: pelos vossos princípios (admitindo que os movimentos percepcionados existem ambos no próprio objeto), é possível que um só e mesmo corpo se mova realmente ao mesmo tempo com muita rapidez e muito vagar. Como se concilia isto com o senso comum, e com o que há pouco ainda me concedestes? H. Não tenho nada que vos opor. F. Passemos então à solidez. Quanto a tal palavra, de duas uma: ou não entendeis por ela uma qualidade sensível - e, nesse caso, está fora do nosso inquérito; ou, se por tal a entendeis, deve ser a dureza ou a resistência. Ora, tanto a primeira como a segunda são decerto relativas aos sentidos: sendo óbvio que o que a um animal parece duro poderá parecer mole a qualquer outro de membros mais sólidos e mais possantes. E não é verdade de menor evidência que a resistência que eu sinto não reside no objeto. H. A própria sensação de resistência, que é tudo o que imediatamente percepcionais, não deixo de reconhecer que não está no corpo: mas a causa da sensação - essa, sim. F. As causas das sensações, todavia, não são imediatamente percepcionadas, e diremos por isso que não são sensíveis. Ponto é este, cuidava eu, que ficara assente. H. Ficou, reconheço-o; e espero que perdoeis o meu enleio; mas é que não sei como desabraçar-me das minhas antigas opiniões. F. Para de vez vos tirardes desse enleio, considerai no seguinte: reconhecido que a extensão não existe sem mente, heis de admitir o mesmo pelo que respeita ao peso, à solidez, ao movimento, pois que todos pressupõem a extensão. Torna-se supérfluo, por conseguinte, investigar particularmente para cada um deles. Negando a extensão real, recusa-te ao mesmo tempo a esses todos. H. O que me espanta, Filonous, se o que dizeis é verdade, é que os filósofos que às qualidades segundas têm recusado toda a existência real - a atribuam no entanto às que se chamam primárias. Se não há entre elas diferença alguma, como se poderia explicar o fato? F. O explicar todas as opiniões que aos filósofos ocorrem não é obrigação que me incumba a mim. Mas, entre outras razões que se podem dar, parece provável que seja uma delas o associarem-se o prazer e o desprazer mais às secundárias do que às primárias. O calor e o frio, o sabor e o cheiro algo possuem de mais viva impressão no agrado e desagrado que nos oferecem, do que as ideias de extensão, de figura, de movimento, no seu modo de nos impressionarem. E como quer que seja bem visivelmente absurdo o sustentar a opinião de que a dor e o prazer podem existir numa substância impercepcionante, mais facilmente se desacostumam os homens da sua convicção na realidade externa das qualidades secundárias, ou segundas, que da crença na realidade das primárias. E caireis na conta, com efeito, de que se passa alguma coisa de semelhante a isto, se vos lembrardes da diferença que estabelecestes já entre um intenso calor e um calor suave, atribuindo a um uma existência real que vos não decidíeis a reconhecer ao outro. Mas não existe, afinal de contas, fundamento racional para distinguir desse modo, pois não há dúvida que uma sensação indiferente é tão verdadeiramente uma sensação como qualquer outra agradável ou desagradável; e não podemos, por conseguinte, supor que ela existe, mais do que as outras, num sujeito destituído de pensamento. H. Ocorre-me agora, Filonous, já ter ouvido distinguir algures entre a extensão absoluta e a extensão sensível. Ora, se bem que se reconheça que grande e pequeno só consistem na relação de outros corpos extensos com tais ou tais partes do nosso corpo, não sendo portanto realmente inerentes às próprias substâncias a que se reportam - nada nos obriga a pensar o mesmo por aquilo que se refere à extensão absoluta, que é algo abstraído de pequeno e de grande, desta ou daquela particular figura, desta ou daquela particular grandeza. O mesmo se diria do movimento; a rapidez ou lentidão com que se ele efetua são uma e outra inteiramente relativas à sucessão das ideias na nossa mente; porém, de que essas modificações do movimento não têm existência além da mental não caberá concluir que a não possa ter o movimento absoluto que daí se abstrai. F. Peço que me digais o que distingue um movimento, ou um pedaço de extensão, de qualquer outro? Não será algo sensível, como certo grau de rapidez ou de lentidão para o primeiro, ou certa grandeza ou certa figura particular para cada parte da extensão? H. Penso que sim. F. E portanto tais qualidades, uma vez despojadas das propriedades sensíveis, já não têm diferença específica e numérica, assim como dizem os escolásticos. H. Não, não têm. F. São, pois, a extensão em geral, o movimento em geral. H. Admitamo-lo. F. Porém, é uma máxima universalmente recebida que tudo que existe é particular. E nesse caso, como é que o movimento em geral ou a extensão em geral podem ter existência numa substância corpórea? H. Preciso de algum tempo, Filonous, para resolver a dificuldade. F. Por minha parte suponho possível resolvê-la prestes. Podereis dizer-me, sem dúvida alguma, se sois capaz de formar certa ideia. Ora, contento-me com reduzir a discussão a isto: se nos vossos pensamentos fordes capaz de formar, de maneira distinta, uma ideia abstrata do movimento ou da extensão, despojada de todos os modos sensíveis, tais como o rápido e o vagaroso, o grande e o pequeno, o redondo e o quadrado, e outros tais deste gênero, que reconhecemos não existirem senão na mente - concederei o ponto pelo que combateis. Mas se o não puderdes, não será razoável da vossa parte o continuar por mais tempo a insistir numa coisa da qual não tendes noção alguma. H. Confesso-vos com a maior franqueza que não posso formar tal ideia. F. Podereis, até, às ideias de extensão e de movimento separá-las das ideias dessas várias qualidades a que aqueles que as distinguem denominam segundas? H. Por quê? À extensão e ao movimento não será fácil considerá-los em si mesmos, e fazendo abstração, por conseguinte, de todas as demais qualidades sensíveis? Nesse caso, como tratam deles os matemáticos? F. Reconheço que não é difícil, Hilas, formar acerca de tais qualidades proposições gerais e raciocínios, sem fazer menção de quaisquer outras; e em tal sentido, por conseguinte, considerá-las ou tratá-las abstratamente. Mas como é que de ser possível pronunciar esta palavra movimento, por si mesma e só - se conclui que possa na minha mente formar a ideia de movimento com a exclusão da ideia de corpo? Ou como, lá porque é possível estabelecer teoremas acerca da extensão e das figuras, sem nenhuma menção de grande e pequeno, ou outro modo sensível ou qualidade - sai como consequência o ser possível que uma ideia abstrata da extensão, sem figura ou tamanho particular algum, ou sem ter alguma das qualidades sensíveis, possa ser formada distintamente, e distintamente apreendida pela nossa mente? Tratam os matemáticos da quantidade sem olharem às restantes qualidades sensíveis de que é naturalmente acompanhada por ser isso indiferente às demonstrações; quando, porém, põem de lado as palavras, e contemplam as ideias em si mesmas, estou convencido de que haveis de admitir que não têm eles a ideia pura, a ideia abstrata da extensão. H. Que dizeis, porém, do puro intelecto? Não é certo que as ideias abstratas podem ser formadas por tal faculdade? F. Pois que a formação de ideias abstratas a não posso fazer de todo em todo, não me será lícito fabricá-las pelo intelecto puro, qualquer que seja a faculdade humana que por estas duas palavras entendais. Além disso (sem inquirir sobre a natureza do intelecto puro e dos respectivos objetos espirituais: virtude, razão, divindade, e outros) o que parece manifesto é que as coisas sensíveis só são percepcionáveis pelos sentidos, ou então representáveis pela imaginação. A figura e a extensão, por conseguinte, percepcionadas originariamente pelos sentidos, não são pertencentes ao intelecto puro. Para alcançardes, porém, uma satisfação mais completa, buscai por experiência se vos será possível formardes a ideia de qualquer figura abstraindo das particularidades de dimensão, ou de outra qualquer das qualidades sensíveis. H. Ora, deixa-me pensar um pouco... Não, não vejo que o possa. F. E cuidais que exista na natureza o que implica contrariedade na concepção? H. Não, de nenhum modo. F. Sendo pois impossível, ainda para a mente, desligar as ideias de extensão e moção de todas as restantes qualidades sensíveis - não será de concluir que quando uma existe deverão existir necessariamente as outras? H. Assim parece. F. Os mesmos argumentos, por conseguinte, que admitistes como conclusivos contra as qualidades segundas, sê-lo-ão, outrossim, sem necessidade de mais, contra as qualidades a que se chama primeiras. Não vos parece, além disso, evidente, se quiserdes fiar-vos nos vossos sentidos, que as qualidades sensíveis coexistem todas, ou que lhes aparecem a eles como num mesmo sítio? Dá-se porventura alguma vez o apresentarem-nos eles um movimento ou figura despojado das demais qualidades sensíveis - visíveis e tangíveis? H. Bem. Inútil insistir sobre esse ponto. Eis-me disposto a confessar que cumpre (se não houve omissão, ou erro oculto, naquilo que dissemos até agora) que neguemos existência fora da mente a toda e qualquer qualidade sensível. O que eu temo é que tenha sido liberal demais naquelas primeiras concessões que fiz, ou que deixasse passar qualquer sofisma. Em suma: não tive tempo de refletir. F. Lá quanto a isso, Hilas, podeis tomar quanto tempo quiserdes para rever todo o decurso do nosso inquérito. Tendes plena liberdade para acudir com remédio a qualquer passo em falso se porventura o destes, ou aduzir tudo aquilo que acaso omitistes em favor da vossa opinião antiga. H. Considerável erro da minha parte, ao que me agora parece, foi o não distinguir suficientemente entre objeto e sensação. Ora, se não pode esta última existir sem mente, não se segue que o objeto também não possa. F. A que objeto aludis? Ao dos sentidos? H. A esse mesmo. F. É ele percepcionado imediatamente? H. Decerto. F. Fazei-me compreender que diferença existe entre o imediatamente percepcionado e a sensação. H. Sensação, quanto a mim, é um ato da mente percepcionante; além dele, há qualquer coisa percepcionada: e a esta qualquer coisa chamo eu o objeto. Por exemplo, há vermelho e amarelo nesta tulipa. E o ato de percepcionar estas duas cores existe em mim unicamente, e não na tulipa. F. De que tulipa estais vós falando? Daquela que vedes? H. Dessa própria. F. E que vedes vós além da cor, da figura, da extensão? H. Nada. F. O que pretendíeis dizer, ao que de aí se infere, é que as cores vermelha e amarela são coexistentes com a extensão. Não seria isto? H. Não só isso: mas que elas existem de fato sem ser na mente, em qualquer substância que não pensa. F. Que existem realmente as duas cores naquela tulipa que eu estou enxergando - é bem manifesto. Nem se nega que pode existir a tulipa de maneira independente da vossa mente, ou da minha mente; mas que um objeto imediato dos sentidos - isto é, uma ideia ou combinação de ideias - exista numa substância não pensante, ou seja, exterior a todas as mentes, é uma óbvia contradição em si. Nem posso fantasiar como tal se conclua daquilo que dissestes ainda há pouco, a saber: que a cor vermelha e a amarela existem na tulipa que vós vedes: pois que não pretendeis - não é assim? - ver a tal substância não pensante? H. Engenho tendes, Filonous, para desviar do assunto a discussão. F. Dou tento de que não estais disposto a deixar-vos conduzir por esta estrada. Pois revertamos à destrinça que aí fizestes: a de sensação e objeto. Se vos bem entendo, em cada percepção distinguis duas coisas: uma delas é uma ação da mente; e a outra não o é. H. Isso mesmo. F. E tal ação não pode existir em uma coisa que seja não pensante, nem pertencer a ela; aquela outra coisa, porém, implicada na percepção - essa pode. H. É o que eu cuido. F. De maneira que, se houvesse percepção sem ato da mente, seria possível que tal percepção existisse numa substância não pensante. H. Concedo-o. Mas é impossível tal percepção. F. Quando se diz da mente que ela é ativa? H. Quando produz, ou quando põe termo, ou quando dá modificação a qualquer coisa. F. Pode a mente produzir, ou descontinuar, ou modificar seja lá o que seja, a não ser por um ato da vontade? H. Não pode. F. A mente deve ser, por conseguinte, considerada ativa nas concepções, na medida em que se inclui nelas a volição. H. Com efeito. F. Ao colher esta flor sou eu ativo, porque o faço por um movimento da minha mão, que é uma consequência da volição; e o mesmo se a aproximo do meu nariz. Porém, realizar um destes atos é o mesmo que sentir um cheiro? H. Nãoé. F. Certamente que outrossim atuo, quando pelas narinas aspiro o ar; porque se aspiro assim, e não de outro modo, é por efeito da volição que tenho. A nada disso, todavia, se pode chamar sentir um cheiro; se o fosse, havia de suceder-me sentir um cheiro sempre que aspirasse por este modo. H. É verdade. F. O sentir um cheiro, pelo que se está vendo, é algo consequente a tudo isso. H. É. F. Porém, não vejo que a minha vontade esteja ademais metida em qualquer outra coisa. Qualquer outra coisa que porventura exista - que percepcione, por exemplo, tal particular perfume, ou perfume nenhum -, é isso independente da minha vontade, e aí sou eu inteiramente passivo. Sucede convosco de diverso modo, Hilas? H. Não. Exatamente assim. F. Por aquilo que à visão respeita, não estará acaso no vosso poder o abrir os olhos ou mantê-los fechados, voltá-los para este ou para aquele lugar? H. Sem dúvida. F. Mas depende igualmente do vosso querer, quando para esta flor olhais, percepcionar branco em vez de outra cor? Ou, ao dardes um lanço dos olhos abertos para a parte além do firmamento, podeis furtar-vos a ver o sol? Serão a luz e a obscuridade o efeito da volição? H. Não. F. Nesses casos, por conseguinte, sois vós inteiramente passivo? H. Tal sou. F. E dizei-me agora: o ver, Hilas, consiste no percepcionar a luz e as cores, ou no abrir e no volver dos olhos? H. No percepcionar. F. Portanto, já que sois inteiramente passivo na própria percepção da luz e das cores - que é daquela ação de que vós faláveis como de um ingrediente constante das sensações? E não decorre daquilo que já concedestes que a sensação de luz e a das cores, não incluindo em si nenhuma ação, pode, por isso mesmo, existir numa substância impercepcionante? E não é isto uma evidente contradição? H. Não sei que pensar do caso. F. Além disso, como distinguis o ativo e o passivo em cada uma das nossas percepções, devereis fazê-lo para a percepção da dor. Mas como é possível conceber que a dor, por tão pouco ativa que a queirais julgar, exista numa substância impercepcionante? Em suma: considerai este ponto, e dizei-me francamente se a luz e as cores - bem como os sabores, os sons, etc. - são ou não são igualmente paixões, ou sensações na alma. Podereis chamá-las objetos externos, e nada vos impede de lhes dar em palavras a existência substancial que vos agrade. Porém, examinai o vosso próprio pensar, e declarai-me, Hilas, se não é tudo como tenho dito. H. Reconheço, Filonous, que depois de uma observação exata daquilo que se passa na minha própria mente, nada mais descubro que ser um ente que pensa, afetado por um acervo de sensações variadas, e que não é concebível que a sensação exista em qualquer substância impercepcionante. Por outro lado, todavia, quando miro a outra luz as coisas sensíveis, considerando-as como modos ou qualidades, afigura-se-me como necessário que se suponha um substractum material, sem o que não se concebe a existência delas. F. Substractum material chamais vós a isso? E por qual dos sentidos apreendeis tal ser? H. Em si mesmo não é sensível; só os seus modos e qualidades são percepcionados pelos sentidos. F. Presumo, nesse caso, que será pela reflexão e pela razão que lograis a respectiva ideia. H. Não pretendo que tenha dele uma ideia conveniente positiva. Concluo porém que deverá existir, porque se não concebem qualidades sem que exista também o seu suporte. F. Parece, visto isso, que só cobrais dele uma noção relativa, ou que não concebeis por outro modo que não seja o de conceber as relações que ele tem com as qualidades sensíveis percepcionadas. H. Assim é. F. Sereis servido de me dar a saber, Hilas,em que consiste essa relação? H. Pois não está suficientemente expressa pela palavra substrato ou substância? F. Se assim é, indicaria a palavra substractum que ele se estende por debaixo das qualidades sensíveis, ou acidentes. H. Exatamente. F. E, por consequência, sob a extensão? H. Reconheço que sim. F. Logo, algo que por natureza é inteiramente distinto da extensão. H. Digo-vos que a extensão não passa de modo, e que a matéria é algo que suporta os modos. E não será de toda evidência, Filonous, que a coisa que é suportada é diferente daquela que está suportando? F. De maneira que qualquer coisa, que é distinta da extensão, e até exclusiva da extensão, é tida como o substractum da extensão? H. Justamente. F. E pode, Hilas, uma coisa estender-se sem extensão? Ou não está a ideia da extensão necessariamente inclusa na de estender-se? H. Está. F. Por conseguinte, tudo aquilo que vós supondes que se estende por debaixo de qualquer coisa deve ter em si certa extensão, distinta da extensão dessa outra coisa, por debaixo da qual se acha ela estendida. H. Deve. F. Quer dizer: cada uma das substâncias corporais, sendo o substrato daquela extensão, deve ter em si outra extensão, pela qual se qualifica como substrato; e assim sucessivamente, ao infinito. Pergunto se não será isto um absurdo, e contraditório com aquilo que concedestes há pouco, a saber: que o substractum é distinto da extensão, e outrossim exclusivo dela. H. Valha-nos Deus, Filonous, que me não entendeis! O que digo não é que a matéria se estende por debaixo da extensão, em sentido grosseiro e literal. Emprega-se a palavra substractum tão só para exprimir de maneira genérica a mesma coisa que substância. F. Bem. Examinemos pois, já que assim é, a relação implícita no termo substância. Não é ela o que subjaz aos acidentes? H. Nem mais nem menos. F. Mas, para que uma coisa subjaza a outra, ou para que uma coisa suporte outra coisa, não cumprirá que seja extensa? H. Pois cumprirá. F. E não estará sujeita esta nova hipótese à mesma absurdeza que a primeira? H. Vejo que continuais a tomar as coisas em sentido estrito e literal. Nisso, Filonous, nào há lisura. F. Mas notai: não imponho o significado aos vossos termos. Sois livre de os explicar como vos apeteça. Só rogo que por meio deles me exprimais qualquer coisa que se perceba. Ao que me dizíeis, a matéria suporta os acidentes, ou acha-se por debaixo dos acidentes. De que maneira? Assim como as pernas vos suportam o corpo? H. Não. Isso é o sentido literal. F. Pois dai-me vós a saber qualquer sentido - ou literal ou não literal - em que entendais essa palavra... Quanto tempo, Hilas, terei eu de esperar por uma resposta? H. Confesso que ignoro o que poderei dizer-vos. Em tempos, julguei possuir uma compreensão cabal do que se queria significar por esta frase: a substância suporta os acidentes. Agora, todavia, quanto mais atento, menos vejo. Em suma: creio que dela não percebo nada. F. Ao que parece, não fazeis pois a mais pequenina ideia - nem relativa, nem positiva - da matéria: nem sabeis o que em si mesma é, nem que relação tem ela com os acidentes. H. Reconheço que sim. F. E afirmastes, sem embargo de tudo, que não concebeis a existência real das qualidades e dos acidentes sem que concebais ao mesmo tempo um seu suporte material. H. Assim fiz, de fato. F. Ao conceberdes, pois, a existência real das qualidades, vós concebeis ao mesmíssimo tempo um algo que vos não é possível conceber? H. Era desacerto, confesso. Mas eis-me receoso, também agora, de que nos escapasse por aí algum sofisma. Dizei-me o que pensais do que vou dizer-vos. Ocorre-me que a origem do vosso erro é que tratais cada uma das qualidades sensíveis separadamente e em si mesma. Ora, convenho em que cada uma das qualidades sensíveis, por si SÓ, não pode subsistir senão na mente. Nem a cor pode subsistir sem a extensão, nem a figura sem alguma outra das qualidades sensíveis. Mas como seja que as qualidades unidas - ou misturadas - formam as coisas sensíveis completas, nada obsta à possibilidade de supormos nós que essas coisas existem sem ser na mente. F. Estais zombando, Hilas, ou muito má memória vos coube em sorte! Se bem que recenseamos todas as qualidades sensíveis com designá-las pelos seus nomes sucessivamente, uma por uma - os meus argumentos (ou as concessões que fizestes) não tenderam a provar que as qualidades segundas não subsistem cada uma por si só, de maneira isolada, senão que de todo não existem sem ser na mente. Na verdade, ao tratar da figura e do movimento, a conclusão a que nós chegamos é que não podiam existir sem ser na mente, por isso mesmo que não é possível, até só no pensar, separá-los de todas as qualidades segundas, concebendo-os como existindo por si próprios. Não foi esse, aliás, o único argumento de que então usamos. Todavia (para pospor tudo aquilo que até agora disse e para ter na conta de sem valor algum, se é que assim vos agrada), não se me dá de aventurar a questão inteira no resultado do lanço que vos vou propor. Se podeis conceber como sendo possível, de uma mistura ou combinação de qualidades, o ter ela existência sem ser na mente - conceder-vos-ei que realmente assim é. H. Se tudo se reduz a isso, em breve se decidirá o ponto. Que há aí de mais fácil do que conceber uma árvore, ou então uma casa, como tendo de fato existência por si, com inteira independência de qualquer mente, e não percepcionada por qualquer mente? Neste mesmo momento as concebo eu como tendo existência de tal maneira. F. Como dizeis, Hilas? Pois sois capaz de ver uma coisa que ao mesmo tempo não é vista por vós? H. Não, seria isso contraditório. F. E não é tão grande contradição como essa a de falar-se de conceber uma coisa que é ao mesmo tempo inconcebida? H. É. F. A árvore ou a casa em que vós pensais, então, é concebida por vós? H. Como poderia deixar de sê-lo? F. E o que é concebido está na mente? H. Sem nenhuma contestação possível; o que é concebido está na mente. F. Como, então, dizeis que lograstes conceber uma casa, ou uma árvore, como existindo fora de qualquer mente, independente de qualquer mente? H. Confesso que estava em erro; mas esperai; deixai-me considerar o que me levou a ele. Foi um engano que tem sua graça. Como pensava então numa árvore localizada em sítio solitário, onde não havia ninguém que a pudesse ver, parecia-me o mesmo, isso, que conceber uma árvore como existindo impercepcionada e impensada; e não reparei em que eu próprio, durante esse tempo a concebia. Mas agora vejo, com a maior clareza, que tudo aquilo que me é possível fazer é formar ideias na minha própria mente. Posso de fato, nos meus próprios pensares, conceber a ideia de certa árvore, de certa casa, de certa montanha: mas é tudo. O que está longíssimo de demonstrar que me seja possível concebê-los fora das mentes de todos os espíritos. F. Não tendes possibilidade, por conseguinte, de conceber que uma coisa corporal sensível tenha existência alguma sem ser numa mente. H. Reconheço-o. F. Sem embargo, quereis combater com verdadeiro ardor pela verdade daquilo que nem podeis conceber. H. Confesso-vos que não sei que pensar do caso; e todavia, sinto-me ainda com alguns escrúpulos. Pois não vejo coisas a distância? Não percepcionamos as estrelas e a lua, por exemplo, como muito longínquas? Não será isto manifesto aos nossos sentidos? F. E nos sonhos, não percepcionais esses mesmos objetos, ou outros que tais? H. Sim. F. E não têm também, nesse caso, a mesma aparência de que estão distantes? H. Pois têm. F. Não concluís, porém, daí, que essas tais aparições dos nossos sonhos têm qualquer existência sem ser na mente? H. De maneira alguma. F. Por conseguinte, da aparência dos objetos sensíveis, ou da maneira como se eles percepcionam, não há o direito de tirar a ilação de que eles têm existência sem ser na mente. H. Reconheço que sim. Mas não será que os sentidos então me iludem? F. De maneira alguma. Os sentidos ou a razão não nos informam nunca de que existe de fato, sem ser na mente, aquela ideia ou aquela coisa de que tendes percepção imediata. Pelos sentidos sabeis somente que estais sendo afetado por sensações: de luz, de cor, de som, etc., etc. E destas não dizeis vós que tenham existência sem ser na mente. H. É verdade; além disso, todavia, não pensais que a vista nos dá a sugestão de um algo de exterioridade e de distância? F. Quando nos acercamos de um objeto longínquo, mudam perpetuamente o tamanho visível e a figura dele, ou aparecem acaso como sempre os mesmos, a quaisquer distâncias? H; Estão sempre a mudar. F. Concluamos que a vista vos não sugere nem de nenhum modo vos faz saber que exista de fato, distanciado de vós, o objeto da imediata percepção que tendes, ou que ele será ainda percepcionado quando vós continuardes o vosso avanço: pois há, com efeito, uma série contínua de objetos visíveis, os quais uns aos outros se vão sucedendo, durante o transcurso da vossa marcha. H. É verdade que não; não deixo de saber, no entanto depois de ter visto um determinado objeto, que objeto percepcionarei um pouco mais tarde, depois de percorrida certa distância; não importa se é o mesmo, exatamente, ou não; há sempre uma ideia de distância que nos é sugerida neste caso. F. Meu bom Hilas: refleti um pouco sobre este ponto, e dizei-me depois se porventura existe, no presente lance, alguma coisa mais do que o seguinte: vós aprendestes, por experiência, a inferir, das ideias que atualmente percepcionais pela vista, quais outras ideias vos irão afetar (de acordo com a ordem da natureza) depois de uma sequência de movimento e de tempo. H. Feitas as contas, creio que é isso. F. Não será agora evidente que, se supusermos um cego de nascença que subitamente cobrasse a vista, não poderia a princípio ter experiência alguma do que pode pela vista ser sugerido? H. Assim é, com efeito. F. Não teria pois, em vosso parecer, noção alguma de distância associada às coisas que enxergasse; senão que as tomaria por uma nova série de sensações, existentes tão só na sua mente. H. É inegável. F. Mas, para tomar a coisa mais clara ainda: não é a distância, Hilas, uma linha tirada perpendicularmente ao olho? H. É... F. E uma linha situada desse modo pode ser percepcionada pela vista? H. Não pode. F. E não se colhe daí que a distância não pode ser percepcionada pela vista, propriamente e imediatamente? H. Parece que sim. F. E ademais: credes que as cores estão a distância? H. Cumpre reconhecer que só estão na mente. F. Porém, não será que as cores aparecem aos olhos como coexistindo no mesmo sítio com a extensão e as figuras? H. Aparecem. F. Então, como é que da vista podeis concluir que as figuras existem exteriormente, quando para as cores reconheceis que não, sendo em um e em outro caso precisamente a mesma a aparência sensível? H. Não sei que responda. F. Mas vá que admitíssemos que a distância é, em boa verdade e de maneira imediata, percepcionada pela nossa mente: nem assim seria lícito o concluirmos que ela existe fora da mesma mente. Tudo que se percepciona de maneira imediata, com efeito, vem a ser uma ideia: e como então admitir que uma ideia possa ter existência senão na mente? H. Supô-lo seria absurdo. Mas dizei-me, Filonous: poderemos percepcionar ou conhecer algo, a não ser as nossas ideias? F. Isso, no que toca à dedução racional das causas a partir dos efeitos respectivos, cai fora do âmbito do nosso inquérito; pelo que respeita, porém, aos sentidos, podereis muito bem dizer-me vós se acaso percepcionais alguma coisa que não seja percepcionada imediatamente; e agora vos pergunto eu se as coisas percepcionadas imediatamente serão algo mais que sensações ou ideias? Na verdade, por mais de uma vez, no decurso desta nossa prática, vos haveis declarado sobre estes pontos; mas dá-me a cuidar a vossa pergunta última que já vos apartastes do que então pensáveis. H. O que julgo, a falar com franqueza, é que existem objetos de duas classes: uma é a dos percepcionados diretamente, aos quais se chama também ideias; e a outra é a classe das coisas reais - ou objetos externos -, as quais percepcionamos por mediação das ideias, que são suas imagens e representações. Posto isto, incumbe-me de certo reconhecer que as ideias não têm existência sem ser na mente; porém. a outra classe de objetos - tem-na. Pesa-me que a destrinça me não ocorresse mais cedo; o vosso arrazoado, possivelmente, teria sido então cortado cerce. F. E os objetos externos de que vós falais - são eles percepcionados pelos sentidos, ou é outra faculdade a que os percepciona? H. São percepcionados pelos sentidos. F. Pois como? Existe algo percepcionado pelos sentidos que não seja percepcionado imediatamente? H. Sim, Filonous; de certa maneira, existe. Quando vejo, por exemplo, um retrato ou estátua de Júlio César, de certo modo posso eu dizer que estou a percepcionar o mesmo César (se bem que não imediatamente) pelos meus sentidos. F. Parece, pois, que considerais as nossas ideias - que são afinal a única coisa que percepcionamos imediatamente - como sendo retratos das coisas externas; e que por sua vez estas coisas externas são também percepcionadas pelos sentidos, na medida em que são conformes ou em que se assemelham às nossas ideias. H. É o que eu quis dizer. F. E da mesma maneira que Júlio César, se bem que invisível em si mesmo, é no entanto percepcionado pela vista - assim sucede que as coisas reais, posto que por si próprias imperceptíveis, são percepcionadas pelos sentidos. H. Exatamente assim. F. Dizei-me, Hilas: quando contemplais o retrato de César, vedes com os olhos alguma coisa mais do que certas cores e do que certas figuras, com uma tal simetria e composição do todo? H. Nada mais. F. E alguém que nada soubesse, absolutamente, de Júlio César não veria o mesmo? H. Veria. F. Por consequência, é ele possuidor do dom da vista. e do uso dela, em grau tão perfeito como o vosso? H. Convenho em que sim. F. E donde vem que o vosso próprio pensar se dirige para a pessoa do imperador romano, e se não dirige o dele? Não pode isto proceder das sensações - ou ideias dos sentidos - de que tendes nesse momento a percepção, por isso mesmo que concordais comigo em que lá por esse ponto lhe não levais vantagem. Será, ao que parece, por efeito da razão e da memória. Pois não será? H. Deve ser. F. O exemplo não prova, por conseguinte, que haja coisas percepcionadas pelos sentidos que não são percepcionadas imediatamente. E admito no entanto que se poderá dizer, em determinada acepção, que nós percepcionamos coisas sensíveis mediatamente pelos sentidos: e é quando sucede, graças a uma associação frequentemente ocorrida, que a percepção imediata das ideias, realizada por meio de um dos nossos sentidos, sugere à mente certas outras ideias, pertencentes talvez a um sentido diverso, que pelo hábito à primeira se associaram. Por exemplo: quando ouço uma sege passar na rua, o que percepciono imediatamente não é mais do que o som; porém, pela experiência que tenho tido já de que tal sorte de som está associada à sege, usa-se dizer que eu ouço a sege. É no entanto de perfeita evidência que falando de forma veraz e estrita nada se pode ouvir que não seja o som: e aí a sege não é, portanto, propriamente percepcionada pelo sentido, mas sim sugeri da consoante a experiência. De maneira análoga, nos casos em que é uso dizer que vemos uma barra de ferro aquecida ao rubro, tanto a solidez como o calor do ferro não são objetos do sentido da vista, mas sugeridos à imaginação pela figura e a cor, propriamente percepcionadas por aquele sentido. Em resumo: só são percepcionadas por qualquer sentido, de maneira atual e estritamente falando, as coisas que seriam percepcionadas por ele quando nos fosse conferido pela primeira vez. Quanto às outras coisas, é óbvio que são apenas sugeridas à mente por experiência que se fundamenta em percepções pretéritas. E agora, revertendo à comparação com o retrato de César: é bem manifesto, se nela fazeis insistência, que deveis admitir que os objetos reais, ou seja, os arquétipos das ideias que temos, não são percepcionados pelos nossos sentidos, mas por alguma íntima faculdade da alma, como a razão e a memória. Teria muito gosto de saber, portanto, quais os argumentos que tirais da razão em favor da existência do que chamais coisas reais, ou objetos materiais; ou se acaso conservais uma recordação qualquer de os ter visto outrora como são em si próprios; ou se ouvistes ou lestes de alguém que os visse. H. Dispusestes-vos, ao que vejo, a gracejar comigo; mas não será por tal modo que me fareis mudar de parecer. F. O meu único intuito é aprender de vós a maneira de chegarmos a ter conhecimento dessas ditas coisas materiais. Tudo que percepcionamos - ou é percepcionado imediatamente, ou é percepcionado mediatamente; ou o é por meio dos sentidos, ou pela razão e pela reflexão. Como excluístes, porém, os sentidos, dignai-vos de me declarar as razões que tendes para acreditar na existência dessas coisas, ou qual seja a espécie de intermediário de que podeis fazer uso para demonstrá-la - quer ao meu intelecto, quer ao vosso. H. Para falar com inteireza, Filonous, agora que pondero sobre este ponto, não acho boa razão que vos possa dar. Porém, o que se me afigura que vejo com nitidez bastante; no que a tais coisas respeita, é pelo menos a possibilidade de que de fato existam; e enquanto o supô-las me não parecer absurdo resolvo-me a manter-me nessa minha crença, até que aduzais quaisquer bons argumentos que me constranjam a passar para a crença oposta. F. Que dizeis? A tal estado chegamos, pois, que a existência dos objetos materiais, em vós, não passa afinal de pura crença, e que a vossa crença é unicamente fundada sobre a mera possibilidade de ela ser verdadeira? E esperais de mim as razões em contrário: porém, outro qualquer acharia razoável que a pessoa a quem a prova incumbe é aquela que sustenta uma afirmativa. E ao cabo di: contas, a tese que neste ponto em que agora vamos vos resolveis a manter sem razão alguma, já mais de uma vez, durante esta prática, vistes boas razões para renunciar a ela. Mas deixemos isso; passemos avante. Se bem vos entendo, vós afirmais que as nossas ideias não têm existência sem ser na mente; mas que elas são cópias - ou imagens, ou representações - de originais que existem sem ser na mente. H. É o que digo. F. Esses originais, portanto, são como coisas exteriores. H. Isso mesmo. F. Possuem tais coisas uma natureza estável, permanente, sem dependência da nossa sensibilidade, ou será que existem em mutabilidade perpétua, ao sabor dos movimentos do nosso corpo, e consoante suspendemos, ou exercemos, ou modificamos as faculdades de que somos dotados ou os órgãos dos sentidos? H. As coisas reais, como é bem manifesto, possuem uma natureza real fixa - uma natureza que se mantém idêntica apesar das modificações dos nossos próprios sentidos, ou das posições e dos movimentos dos nossos corpos - condições estas que podem ter influxo nas ideias existentes na nossa mente, mas a que seria absurdo atribuir efeitos nas coisas que existem sem ser na mente. F. Mas como é possível, nesse caso, que as coisas tão flutuantes e tão variáveis como nós sabemos que são as ideias - sejam cópias ou imagens de coisas fixas, de coisas constantes? Por outras palavras: desde que toda sorte de qualidades sensíveis, como o tamanho, a figura, o tom de cor, etc. (quero eu dizer: as ideias) se encontram de fato em mutabilidade contínua, por efeito das diversas alterações na distância, ou no ambiente, ou nos instrumentos da sensação, como admitir que seja possível, Hilas, que objetos materiais determinados possam ser representados de maneira exata por numerosas coisas que são distintas - cada uma das quais tão diversa das outras, tão dessemelhante a elas? Ou, se acaso o que pretendeis alegar é que uma só das ideias é que se assemelha à coisa, pergunto de que modo se poderá distinguir a cópia verdadeira das que o não são. H. Reconheço, Filonous, que me sinto perplexo. Não sei que dizer-vos. F. Mas não é tudo. Em si próprios, que são os objetos materiais: percepcionáveis ou impercepcionáveis? H. Propriamente e imediatamente, nada é percepcionável senão as ideias. Portanto, todas as coisas materiais são em si mesmas insensíveis, e só pelas ideias as percepcionamos. F. As ideias, portanto, são sensíveis; e os originais delas, ou arquétipos, são insensíveis. H. Isso mesmo. F. Mas como será que o que é sensível se assemelha àquilo que não é sensível? Pois poderá acaso assemelhar-se a uma cor uma coisa real em si mesma invisível? Ou a um som uma coisa que não é audível? Em resumo: poderá algo assemelhar-se a uma sensação ou ideia, a não ser outra sensação ou outra ideia? H. Devo confessá-lo: não creio que possa. F. É possível uma dúvida sobre este ponto? Não conheceis perfeitamente, Hilas, as vossas próprias ideias? H. Perfeitamente as conheço; o que não percepciono ou o que não conheço não pode fazer parte de uma ideia minha. F. Considerai-as, então; examinai-as bem: e dizei-,e depois se alguma coisa há nelas que possa ter existência sem ser na mente, ou se podeis conceber que o que se assemelha a elas possa ter existência sem ser na mente. H. Meditado o caso, acho impossível conceber ou entender como é que uma coisa que não é ideia pode ter semelhança com o que é ideia. E é evidentíssimo que nenhuma ideia pode ter existência senão na mente. F. Portanto, eis-vos compelido, pelos vossos princípios, a negar a realidade das coisas sensíveis, pois fazeis consistir a realidade delas numa existência absoluta exterior à mente. Quer dizer que sois cético - um rematado cético. Atingi pois o meu alvo, que era o de mostrar que os princípios que tínheis conduziam afinal ao ceticismo. H. De momento estou, se não posso dizer que convencido de todo, reduzido, pelo menos, a guardar silêncio. F. Desejaria eu saber que é o que mais quiséreis para chegardes enfim a uma convicção perfeita. Não fostes vós livre de vos explicar à vontade, por todos os modos? Houve na discussão qualquer passo em falso, de que alguém se aproveitasse, ou de que abusasse alguém? Alguém vos empeceu de vos retratar do já dito, ou de reforçar os argumentos que vos aprouvera aduzir como os mais apropriados para as intenções que tínheis? Não foram escutadas e examinadas por mim, com a máxima lealdade que imaginar se pode, toda sorte de alegações que vos ocorreu exprimir? E não ouvi eu, em suma, da vossa própria boca, em cada um dos pontos que entre nós se debateram, a confissão de que vos deixareis persuadir enfim? E se ainda agora vos parece entrever qualquer inadvertência nas concessões que fizestes, ou se mais um subterfúgio vos acudiu ao espírito, ou alguma nova destrinça, ou comentário, ou pretexto - por que o não aduz? H. Um pouco de paciência, Filonous. Estou tão aturdido de me ver no laço, e como que prisioneiro no labirinto a que os vossos argumentos me têm arrastado, que se não pode esperar que de um momento para outro descortine o caminho por onde lograrei sair. Preciso de tempo para circunvagar os olhos, e para dar tino de mim. F. Escutai... é o sino do colégio, creio eu. H. É; está-nos a chamar para as orações. F. Então vamo-nos, se assim vos apraz, e voltaremos a encontrar-nos amanhã de manhã, neste mesmo sítio. Entretanto, meditareis na conversação desta madrugada, procurareis descobrir nela qualquer sofisma, ou buscar meios novos de vos desvencilhar do enredo. H. Pois está combinado. SEGUNDO DIALOGO HILAS. Rogo-vos que me perdoeis, Filonous, de não comparecer mais cedo ao nosso encontro. Tanto me ocupei de manhã da nossa passada conversação, que não houve maneira de estar atento à hora, nem, na verdade, a qualquer outro caso. FILONOUS. Agrada-me que tomeis a coisa tanto a peito - na esperança de que, se houve qualquer erro nas concessões que fizestes, ou sofisma nas interferências que derivei delas, tereis agora a bondade de mos revelar. H. Pois posso assegurar-vos que mais nada fiz, desde que nos vimos, que procurar inadvertências e falácias, e que com essa intenção examinei por miúdo o seguimento inteiro da nossa prática: mas tudo em vão, afinal de contas: pois que as noções a que aí fui conduzido aparecem-me mais claras e mais evidentes em seguida ao exame a que procedi; e comprovo que à medida que mais nelas penso, mais inclinado me sinto a dar-lhes crédito. F. E não será prova de que são legítimas, procedentes da própria natureza das coisas, e em tudo conformes com a razão estreme? O que de semelhante existe entre a verdade e a beleza é que um exame rigoroso só lhes pode ser de vantagem, ao passo que o embeleco do disfarce e do erro não logra resistir a um olhar atento ou à inspeção que se lhes faça de muito ao perto. H. Confesso, Filonous, que muita coisa há de peso no que vós dissestes. E a verdade das estranhas conclusões que topamos não daria decerto a pessoa alguma mais inteiro contentamento do que me dá a mim - pelo menos no tempo em que estou abarcando a cadeia de raciocínios que a elas me levam. Mas mal deixo de pensar nestes últimos, logo se me afigura tão satisfatória, tão inteligível, tão natural a moderna maneira de explicar as coisas, que não vejo possibilidade de rejeitá-la. F. Ignoro a que maneira vos estais vós referindo. H. A de explicar as sensações, ou ideias. F. Em que consiste? H. Em supor que a alma tem residência em determinada parte do nosso cérebro, de onde os nervos se originam e de onde eles se estendem a todas as partes do nosso corpo; que os objetos externos, graças às diferentes impressões que fazem sobre os diversos órgãos dos sentidos, comunicam movimentos vibratórios aos nervos; e que estes, estando cheios pelos espíritos animais, os propagam até o cérebro, ou sede da alma - a qual, segundo as várias impressões, ou trilhas, que por esse modo são feitas no cérebro, é afetada de várias ideias. F. E a isso chamais vós uma explicação, Hilas, do modo como somos afetados pelas ideias? H. Por que não, Filonous? Tendes algo a objetar contra ela? F. Primeiro quisera eu saber se compreendo bem a vossa hipótese. Fazeis de umas trilhas no cérebro as causas ou ocasiões de nossas ideias. Ora, dizei-me: por cérebro, Hilas, entendeis algo que é sensível? H. E que outra coisa podia eu entender? F. As coisas que são sensíveis - são todas imediatamente percepcionáveis; as coisas imediatamente percepcionáveis - são ideias; e as ideias - existem tão só na mente. Em tudo isto, se me não engano, conviestes vós há muito tempo. H. Não o nego. F. Portanto, esse cérebro de que vós falastes, sendo, como é, uma coisa sensível, não tem existência senão na mente. Posto isto, gostaria de saber se achais razoável o supor-se aquilo que se aí supõe, a saber: que uma ideia - ou algo que só na mente existe - é que ocasiona todas as outras ideias. E assim pensando, como explicáveis a origem dessa primeira ideia, que é o próprio cérebro? H. Não explico a origem das nossas ideias pelo cérebro que é percepcionável pelos sentidos, e que não passa de uma combinação de ideias sensíveis: mas sim por outro cérebro, imaginado por mim. F. Mas não se dará que as coisas imaginadas possuem existência tão só na mente, assim como as coisas percepcionadas? H. Devo confessar que sim. F. Voltamos portanto ao mesmo ponto; e em todo este tempo, por conseguinte, estivestes a explicar as nossas ideias por certos movimentos ou impressões no cérebro, isto é, por certas alterações em uma ideia - ideia ou sensível ou imaginável, que é isso diferença que não importa ao caso. H. Começo a duvidar da minha hipótese. F. Além dos espíritos, tudo o que conhecemos ou concebemos são afinal as nossas ideias. Portanto, quando dizeis que todas as ideias são ocasionadas por impressões no cérebro - concebeis ou não esse mesmo cérebro? Se o concebeis - falais em ideias imprimidas em uma ideia que causa essa mesma ideia, o que é um absurdo. Se o não concebeis - falais ininteligivelmente, em vez de formar uma hipótese razoável. H. Ao que vejo agora, era tudo quanto disse um puro sonho. Nada há aí que se aproveite. F. Sim, não há por que vos ocupeis de tal hipótese; ao cabo de contas, essa maneira de explicar as coisas (como vós dizíeis) nunca satisfaria alguém de juízo. Que conexão poderá existir entre um movimento que nos nervos ocorre e as sensações de som ou de cor na mente? Ou como é possível que tais sensações sejam o efeito daquele movimento? H. Nunca dessa hipótese poderia eu pensar que fosse ela coisa de tão pouco préstimo como agora me parece que de fato é. F. Ora bem: estareis vós enfim convencido de que não há nada sensível com existência real, e de que sois por aí um rematado cético? H. É demasiado evidente para que o possa negar. F. Olhai! Não se cobrem os campos de verdura amena? Não há nos bosques e nas alamedas, nos riachos e nas fontes límpidas algo que acaricia e que transporta as almas? E à vista do imenso e profundo oceano, ou de um monte gigante que topeta as nuvens, ou de alguma sombria floresta antiga, não se enche o espírito de deleitoso horror? Até nos desertos e nas rochas nuas, não haverá uma rudeza que tem seu agrado? Que sincero júbilo o que sente o espírito ao contemplar as belezas naturais da Terra! Para conservar e renovar o vosso prazer com elas, não se estende acaso o velame da noite, em curso alternado, sobre a sua face, e não muda de vestimenta de uma estação para a outra? Como se ordenam os elementos em disposição harmônica! Quanta variedade e utilidade existem nos mais mínimos produtos que a natureza gera! Que delicadeza e beleza, que concordância de partes e adaptação recíproca, nos corpos dos animais e dos vegetais! Como esquisitamente se amoldam as coisas aos fins particulares de cada uma delas, e também à necessidade de constituírem entre si as partes antagônicas de um mesmo todo! E enquanto assim mutuamente se ajudam, e mutuamente se apoiam - como se realçam e como se esclarecem! E agora, Hilas, levantai o pensamento desta bola da Terra às lâmpadas gloriosas da alta abóboda dos céus. O movimento e a posição dos planetas - pois não são admiráveis de ordenação e harmonia? Esses globos, a que deram tão mal a designação de erráticos, já alguém observou que se desviassem do rumo, nas viagens no vácuo onde não há caminhos? Rodeando o Sol, não descrevem suas áreas proporcionalmente aos tempos? A tão fixas leis submeteu o Universo o Autor invisível da Natureza! Que radiosa a luz com que as estrelas brilham! E que rica e magnífica a profusão negligente que se diria que as lançou e as dispersou nos céus! E se agora recorrerdes ao telescópio - logo outras, num ponto, em multidões despontam, que sem ele não se enxergam. Parecem, daqui, muito pequenininhas e juntas; sabemos porém que numa visão mais próxima são orbes imensos a distâncias várias, mergulhando no abismo da imensidão do espaço. Depois, cumpre que a imaginação vos acuda em socorro. A fraqueza e estreiteza dos sentidos humanos não podem descrever os inumeráveis mundos que gravitam em torno dos fogaréus centrais, ou alcançar a energia de um cabal Intelecto que se manifesta nesses mundos por infinitas formas. Mas nem os sentidos nem a fantasia do homem são aptos a compreenderem a extensão sem limite, em sua gala esplendente. Por mais e por mais que o operoso espírito se aplique com o máximo das suas forças - sempre fica, ainda, um imensurável excesso, para além das possibilidades da apreensão mental. E no entanto, todos os inúmeros e vastos corpos que compõem essa máquina portentosa imensa por distantes e remotos que entre si se encontrem, ei-los encadeados em dependência mútua, em relacionação recíproca, por um secreto mecanismo e um divino artifício - e até a esta Terra em que nós outros estamos, a qual quase do espírito se me dissipou de todo, assim como perdida na multidão dos mundos. Pois o conjunto do sistema não é de fato imenso, não é ele belo e glorioso, além de toda possibilidade de imaginação e expressão? E que tratamento não merecem todos aqueles filósofos que pretendem negar o existir real a essas tão nobres e deleitosas cenas? Como se admitem congeminações de tal ordem, que nos levam a considerar como resplendor quimérico a beleza visível que a Criação ostenta? A falar com franqueza: podeis esperar que esse ceticismo vosso não seja considerado como extravagantemente absurdo por qualquer criatura de algum bom senso? H. Pensem os outros como eles quiserem; vós, porém, não tendes nada que me lançar em rosto. O que me consola no meio de tudo é que sois tão cético como eu próprio sou. F. Lá nisso, Hilas, peço eu licença para não estar de acordo. H. Pois como assim? Aceitastes as premissas de ponta a ponta, e negais agora a conclusão a que levam, deixando-me a mim a sustentar sozinho aqueles mesmos paradoxos a que me conduzistes? Não é justo isso, não! F. O que eu contesto é que esteja convosco nas noções que levam ao ceticismo. A realidade das coisas sensíveis dizíeis que consiste numa existência absoluta, exterior às mentes dos vários espíritos, ou distinta do serem percepcionadas. Se, porém, em tal noção de realidades insistirdes, tereis de negar às coisas sensíveis qualquer espécie de existência real; quer dizer: segundo a própria definição que destes, apresentar-vos-eis como sendo um cético. Mas eu nunca disse (e jamais pensei) que a realidade das coisas sensíveis devesse ser definida de tal maneira. Para mim é óbvio - em virtude de razões a que já destes assenso - que as que chamamos coisas sensíveis não podem existir a não ser numa mente, ou seja, num espírito. E de tudo isto concluo eu, não que não existem de existência real, mas sim (já que não dependem do meu pensamento, e que têm uma existência que é bem distinta do serem por mim próprio percepcionadas) que deve haver outra mente na qual existam. Tão certa como a existência do mundo sensível, por conseguinte, é a existência de um infinito e onipotente Espírito, que contém e suporta esse mesmo mundo. H. Quê? Mas isso, afinal, é o que eu mesmo sustento, e todos os cristãos comigo. Mais: é o que afirmam todos os que creem num Deus, e que ele todas as coisas compreende e conhece! F. Sim; mas a divergência está nisto: os homens acreditam, por via de regra, que todas as coisas são conhecidas por Deus, ou percepcionadas por Deus, pelo motivo de crerem na existência de um Deus; ao passo que eu, à diferença deles, tiro a conclusão de que Deus existe - de maneira imediata, necessariamente - do simples fato de que as coisas sensíveis devem ser percepcionadas pelo mesmo Deus. H. Mas se todos cremos uma mesma coisa, que importa a maneira como chegamos à crença? F. Mas é que não coincidimos, afinal de contas, em um mesmo parecer. Por isso os filósofos - se bem que reconheçam, sim, que todos os seres corpóreos são percepcionados por Deus - atribuem-lhes no entanto uma subsistência absoluta, distinta da percepção que deles tenha uma mente, qualquer que ela seja: e eu não faço tal coisa. Além disso, existe diferença entre dizer o seguinte: há um Deus, logo percepciona todas as coisas, e dizer: as coisas sensíveis têm existência real; e, se realmente existem, são percepcionadas por uma mente infinita, necessariamente: portanto, existe uma mente infinita, ou Deus. Ministra-nos isto uma demonstração direta, tirada imediatamente do mais evidente princípio, da existência de Deus. Por teólogos e filósofos foi amplamente provado, fora da possibilidade de qualquer controvérsia, que, dada a beleza e conveniência de todas as partes da Criação, a mesma Criação é obra de Deus. Mas, pospondo todo auxílio da astronomia e da filosofia natural, toda contemplação do travejamento das coisas, da sua ordem e ajustamento recíproco, isto de se poder demonstrar que a existência de um infinito espírito deve ser inferida necessariamente da simples existência do mundo sensível - digo que é vantagem que só logram ter os que fizeram esta simples reflexão: que o mundo sensível é o que percepcionamos, graças aos sentidos de que somos dotados; que os sentidos percepcionam tão somente ideias; e que nenhuma ideia, ou arquétipo de ideia, pode ter existência senão numa mente. Podeis pois agora, sem recorrer a laboriosas inquirições científicas, sem nenhum artifício de raciocínio sutil, ou aborrecida prolixidade de discursar. combater e confundir o mais vigoroso ateu. Todo esse amontoado de miseráveis recursos - como a eterna sucessão de causas e efeitos, completamente desprovidos de qualquer pensamento; ou concurso dos átomos, meramente fortuito; todas as barbáricas imaginações de um Vanini, de um Spinoza, de um Hobbes: em suma, o sistema inteiro do ateísmo - não o vemos arruinado da base ao ápice por esta simples reflexão sobre a contradição que existe em supormos que o todo do universo visível (ou até tão somente uma parte dele, ainda a mais rude, a mais informe que seja) pode ter existência sem ser na mente ê '? Que se restrinja qualquer desses fautores da impiedade à simples consideração do seu próprio pensar, e que busque se lhe é possível conceber que um rochedo, um deserto, um caos, uma simples mistura confusa de átomos - uma coisa qualquer, em suma, seja ela sensível ou imaginável - pode existir com independência de qualquer mente: e não será preciso que ele vá mais longe para que logo se convença da sua insânia. Que coisa mais bela pode aí haver que aventurar neste ponto toda a decisão do debate, e deixá-lo nas mãos do nosso adversário para que busque se lhe é possível conceber deveras, ainda que seja só em pensamento, aquilo que sustenta que é verdade em fato, e converter enfim em existência real o que é uma existência nocional? H. Há, sem dúvida alguma, algo favorabilíssimo à religião em tudo aquilo que sustentais. Mas não vos parece que se assemelha muito a certa noção que tem sido admitida por alguns modernos dos mais convincentes, a saber: que todas as coisas as vemos nós em Deus? F. Gostaria de conhecer essa opinião que dizeis. Querereis vós explicar-ma? H. Concebem eles que a alma não pode (sendo, como é, imaterial) unir-se com as coisas que são materiais, de maneira a percepcioná-las em si próprias; mas que tem a percepção delas graças à união com a substância de Deus, a qual, sendo espiritual, é puramente inteligível, ou capaz de ser o objeto imediato do pensamento de um ser espiritual. Além disso, a essência divina contém perfeições correspondentes a cada um dos seres criados, e que são próprias, por esse motivo, a exibi-los ou representá-los à nossa mente. F. Não compreendo como é que as ideias, sendo passivas e de todo inertes, resultam capazes de ser a essência, ou uma parte (ou algo semelhante a qualquer parte) da essência de Deus, ou da substância de Deus - que é um ser impassivo, indivisível, puramente ativo. Outras dificuldades e objeções existem, que de pronto se apresentam contra tal hipótese; todavia, só acrescentarei que ela está sujeita a todas as absurdezas das comuns hipóteses no fato de admitir que o mundo criado pode ter existência sem ser numa mente. Além disso, ela apresenta de peculiar o seguinte: pelo que respeita ao mundo material, não o faz servir a nenhum objetivo. Ora, se passa por ser argumento válido contra outras hipóteses nas ciências o de que supõem que a natureza ou a Sabedoria Divina realizam qualquer coisa que seja em vão, o que fazem por tediosos ou circuitosos métodos o que se poderia fazer por mais fáceis e curtos, que deveremos então pensar de uma hipótese onde o mundo inteiro foi feito em vão? H. Mas que dizeis vós, afinal de contas? Pois não preconizais também a doutrina de que todas as coisas são vistas em Deus? F. Dos homens, poucos pensam; mas todos têm, sem embargo disso, opiniões. Daí procede que as opiniões dos homens são tão superficiais e de tal maneira confusas. Nada admira que certas doutrinas, que entre si divergem consideravelmente, possam no entanto ser confundidas por aqueles que as veem sem a necessária atenção. Não me surpreenderia, por isso mesmo, que alguns imaginassem que me deixei arrastar pelo entusiasmo especulativo de Malebranche, se bem que na verdade esteja bem longe dele, Constrói ele a sua doutrina sobre as mais gerais e abstratas ideias, processo que por minha parte inteiramente condeno; e afirma um universo exterior e absoluto, coisa que nego. Diz que somos enganados pelos sentidos e que não temos conhecimento das naturezas reais e das verdadeiras formas dos seres extensos, ou das verdadeiras figuras: e sobre isso penso eu precisamente o contrário. De maneira que, vista a coisa no todo, nada pode haver mais fundamentalmente oposto do que os seus princípios e os meus princípios. Cumpre reconhecer que inteiramente aceito aquilo que está dito nas Escrituras: que em Deus vivemos, e que em Deus temos nós o nosso ser. Mas que vejamos as coisas na sua essência daquela maneira que já atrás dissestes - a isso estou longíssimo de dar meu crédito. Eis, em breves palavras, a opinião que tenho: só percepciono, como é bem manifesto, as minhas próprias ideias, e nenhuma ideia pode ter existência que não seja a existência numa qualquer mente. E não é menos óbvio que essas ditas ideias, ou ainda as coisas que percepciono (sejam as próprias ideias, sejam os seus arquétipos) existem com independência da minha mente: pois sei que não sou eu o seu autor, por isso que está fora da minha alçada o determinar consoante o meu próprio arbítrio de que ideias particulares serei eu afetado ao abrir os olhos ou os ouvidos. Devem pois existir em qualquer outra mente, da qual é vontade que se a mim exibam. As coisas percepcionadas imediatamente são para mim ideias ou sensações, dai-lhes vós o nome que vos aprouver. Porém, como é que uma ideia, ou uma sensação, pode existir em algo que não seja uma mente, ou ser produzida pelo que não seja uma mente? É inconcebível; e afirmar o que não é concebível o mesmo é que enunciar um despropósito. Pois não digo bem? H. Sem dúvida alguma. F. Mas, por outro lado, é muito concebível que possam estar num espírito, e que sejam produzidas pelo mesmo espírito: desde que isso, afinal de contas, é o que cotidianamente experiencio em mim mesmo, pois percepciono ideias que não têm conto, e pois que por um ato da minha própria vontade me é possível formar muitas sortes de ideias, se por imaginação as evoco: se bem que (cumpre reconhecê-lo) estas várias criações do fantasiar de imagens não são efetivamente tão distintas, tão fortes, tão vivas, tão duradouras, como as ideias percepcionadas pelos sentidos, às quais damos o nome de coisas reais? E tudo vem a disparar no seguinte: existe uma mente, sem dúvida alguma, que a todos os instantes me está afetando com as impressões sensíveis que percepciono. E da variedade e da ordem destas impressões sensíveis passo eu a concluir que o seu autor é sábio, poderoso, bom, além de toda compreensão possível. Advirta-se que não digo que vejo as coisas percepcionando-as naquilo que representa essas coisas na substância inteligível da Divindade. É isso uma tese que eu não entendo. Eis o que digo: todas as coisas que percepciono as conhece o intelecto de um infinito Espírito e as produz a vontade desse mesmo Espírito. Pois não é isto claríssimo e evidentíssimo? E que há aqui, à derradeira, senão o que a observação das nossas próprias mentes, e do que nelas se passa, não só nos autoriza a que concebamos, mas até nos obriga a reconhecer como certo? H. Creio que vos compreendo com a maior clareza; e confesso que a prova que da Divindade aduzis me parece não menos óbvia que surpreendente. Porém, uma vez concedido que seja de fato Deus a causa suprema de todas as coisas, não poderá haver terceira natureza, além dos espíritos e das ideias? Não poderemos admitir, para as nossas ideias, uma causa subordinada e limitada? Numa palavra: não poderá acaso, para isto que digo, existir ainda uma matéria? F. Quantas vezes me virá a ser forçoso o voltar a insistir nos mesmos pontos? Aceitais que todas as coisas que percepcionamos imediatamente pelos sentidos - não podem existir sem ser numa mente; ora, não há nada que os sentidos percepcionem que não seja percepcionado de maneira imediata; portanto, não há nada que seja sensível e que tenha existência sem ser na mente. A matéria, em que ainda insistis, suponho que será algo de inteligível; algo, creio eu, que pode ser descoberto pela razão, e não pelos sentidos, pois não é assim? H. Tal como dizeis. F. Ora, sede então servido de me fazer conhecer em qual raciocínio é que tem fundamento a vossa crença numa matéria; e que coisa vem a ser essa mesma matéria tomada no sentido em que a entendeis agora. H. Sinto-me afetado por diversas ideias, de que sei muito bem que não sou a causa; por outro lado, elas não são causas de si próprias; elas não se produzem umas às outras, e não são capazes de subsistir por si, pois que são seres inativos, precários, dependentes. Têm, por conseguinte, uma causa distinta de mim e delas: causa de que não pretendo saber mais nada senão que é a causa das minhas ideias. E a isso, seja lá o que seja, chamo eu matéria. F. Dizei-me, Hilas: será livre cada um de nós de mudar o significado corrente e próprio dos vocábulos usuais de qualquer idioma? Por exemplo: suponde que um viajante vos dizia que, em certo país, os homens passavam através do fogo sem sofrerem por isso o menor dano; e que, depois de ele ter dado as explicações necessárias, descobríeis que sinalava pelo termo fogo aquilo que para os outros se chama água; ou então que dizia, por exemplo, que há árvores que caminham com duas pernas, designando os homens pela palavra arvores. Parecer-vos-ia razoável que se procedesse assim? H. Não, decerto. Acharia isso perfeitamente absurdo, Sem dúvida alguma que no uso comum é que consiste a norma da propriedade da fala. Quem afeta exprimir-se com impropriedade de termos não faz mais que perverter a propriedade da língua, e nunca chegará a melhor resultado que o de ir prolongando e aumentando disputas onde não há divergências de opinião reais. F. E quanto à matéria? Na comum e corrente acepção da palavra, não significa ela uma substância extensa, sólida, impensante, inativa? H. Assim é, de fato. F. E não demonstramos com toda a evidência a impossibilidade de existir uma substância dessas? E ainda que concedêssemos que de fato existe, como é que o inativo pode ser Uma causa, e ser causa do pensamento o que é não pensante? Se assim vos agrada, podeis anexar à palavra matéria um sentido contrário ao vulgarmente aceito, e dizer-me portanto, em consequência disso, que entendeis por ela certo ser inextenso, pensante, ativo, que é o causador das ideias. Mas que será isso senão jogar com palavras, e cair nessa falta que condenastes há pouco, e com tanta justiça? Não vejo vício naquele raciocínio em que inferis dos fenômenos uma causa deles: mas nego que à causa que pela razão se deduz se possa propriamente chamar matéria. H. Algo há de verdadeiro no que aí me dissestes. Temo, todavia, que não entendêsseis bem o que tenho em mente. Não quero que de maneira alguma possais cuidar que nego que Deus, como infinito espírito, é a causa suprema de quanto existe. O que pretendo é que, em subordinação para com o Agente Supremo, há uma causa inferior e de natureza restrita, que concorre para a produção das ideias que temos, não por um ato de vontade ou de eficácia de teor espiritual, mas por aquela espécie de atuação que é bem pertença da matéria, a saber: o movimento. F. Vejo que recaís a cada instante no vosso velho e condenado conceito de uma substância móvel- e, portanto, extensa -, a qual existe sem ser na mente. Pois quê? Esquecestes de maneira completa o de que vos havíeis convencido no decorrer da prática, ou quereis que eu repita o que disse já? Em verdade, não é bom processo da vossa parte o voltar a supor que tem existência aquilo que tantas vezes reconhecestes não tê-la. Mas, para não insistir no que já tanto tratamos, pergunto-vos isto: não é verdade que as vossas ideias são perfeitamente passivas, de todo inertes, não incluindo em si nenhuma espécie de ação? H. São. F. E pelo que respeita às qualidades sensíveis, são elas alguma coisa a não ser ideias? H. Quantas vezes reconheci que são só ideias? F. E não é o movimento uma qualidade sensível? H. É. F. Por conseguinte, não é ação. H. Concedo-o. Com efeito, claríssimo é que, quando movo o dedo, mantém-se ele passivo; a minha vontade, porém, que produz o movimento, essa é ativa. F. Ora, desejo agora saber três coisas. Em primeiro lugar (e visto que já foi concedido que o movimento não é ação), se acaso concebeis ação que não seja volição; em segundo, se dizer alguma coisa quando se não concebe coisa alguma - não vem a ser um despropósito; e enfim, se, consideradas estas premissas, não percebeis que supor para as nossas ideias uma causa ativa que não seja espírito - é altamente absurdo e desarrazoado? H. Abro mão deste ponto, de todo em todo. No entanto, se bem que a matéria não possa ser causa, que impede que seja ela um instrumento, empregado pelo Agente Supremo na produção das nossas ideias? F. Dizeis vós instrumento. Pois bem: peço-vos que declareis quais poderão ser a figura, as molas, as rodas, o movimento desse dito instrumento? H. Coisas são essas que eu não pretendo determinar, Filonous; pois que tanto a substância como as suas qualidades me são inteiramente desconhecidas. F. Como assim? Então, sois de parecer que é constituído por partes incógnitas, que tem movimentos incógnitos, e que é de forma incógnita? H. Não creio que tenha forma ou movimento algum, por isso que já estou convencido de que não podem existir qualidades sensíveis numa substância impercepcionante. F. Mas que noção será possível formar de um instrumento destituído de qualidades sensíveis, e da própria extensão? H. Não pretendo possuir dele noção alguma. F. E que razão tendes para crer que ele exista - esse algo desconhecido, essa qualquer coisa inconcebível? Imaginais, porventura, que Deus não é capaz de atuar sem ser por ela ou achais pela vossa experiência que fazeis uso dessa qualquer coisa quando formais ideias na vossa mente? H. Estais sempre a me provocar acerca das razões da minha crença. Ora, dizei-me: que razão tendes vós para não crerdes nela? F. É para mim razão suficiente para não crer na existência de seja o que for a de não ter razões para nisso crer. Mas, não insistindo nas razões da crença, advirta-se que me não dais a conhecer, sequer, o que seja a coisa em que desejais que eu creia, por isso mesmo que declarais vós próprio que não tendes de tal coisa noção alguma. E deixai-me agora que vos peça, enfim, que considereis se será próprio de quem é filósofo e até de um homem de senso comum - a pretensão de se dar crença a uma suposta coisa de que se não sabe o quê nem o por que. H. Esperai, Filonous! Quando digo que a matéria é um instrumento, não deixo de dar sentido a este termo. É verdade que desconheço que espécie particular de instrumento seja; tenho, todavia, certa noção de instrumento em geral, que a ela aplico. F. E se se provasse que algo existe, ainda na mais geral noção de instrumento, quando tomada num sentido que não seja o de causa, que torna o emprego de tal noção inconciliável com os atributos da Divindade? H. Fazei-me vós ver que assim é de fato, e cederei neste ponto. F. Que entendeis pela natureza geral de instrumento, ou pela noção geral de instrumento? H. Aquilo que for comum a todos os instrumentos particulares: eis o que compõe a noção geral. F. Ora, não será comum a todos os instrumentos o só serem empregados para fazer as coisas que nos não é possível levar a efeito pelo mero ato das nossas vontades? Assim, por exemplo, nunca acudo a um instrumento para mover um dedo, porque o posso fazer pela só volição; não deixaria, porém, de recorrer a um instrumento, para separar uma parte de uma penedia, ou se me fosse necessário arrancar uma árvore. Sereis acaso deste mesmo parecer? Ou podereis porventura aduzir um exemplo em que se lance mão de um instrumento qualquer a fim de produzir um determinado efeito que depende diretamente daquele que atua? H. Reconheço que não posso. F. Então, como supor que um perfeitíssimo Espírito, de cuja vontade estão todas as coisas em dependência absoluta e imediata, necessite de um instrumento para poder operar, ou então que o empregue sem que dele precise? Afigura-se-me, pois, que vos vereis obrigado a ter como certo que o uso de um instrumento inativo e sem vida vem a ser algo que se não concilia com a infinita perfeição da Divindade: isto é - e pela própria confissão que fiz estes já -, tenho para mim que deveis ceder neste ponto. H. Não me ocorre agora que responder-vos. F. Porém, creio que vos cumpre reconhecer a verdade logo que vo-la demonstrem convenientemente. Nós outros estamos, com efeito - porque somos seres dotados só de poderes finitos -, forçados a servir-nos de instrumentos. E o fazer uso de quaisquer instrumentos mostra que o agente que a eles recorre é limitado pelas regras que lhe prescreveu outro, e que só pode atingir os seus próprios fins de determinada maneira e sob tais condições. Parece que claramente se deduz daqui a conclusão de que o supremo e ilimitado Agente se não serve de utensílio nem de instrumento algum. A vontade de um Espírito onipotente logo que se manifesta se põe por obra, sem mister da intervenção de quaisquer meios. Se os agentes inferiores a eles recorrem, não é porque tais instrumentos tenham real eficácia nem necessária aptidão para produzir um efeito, mas somente por obediência às leis naturais, ou condições previstas pela Primeira Causa, sendo que esta última se encontra acima de todas as limitações ou prescrições, quaisquer que elas sejam. H. Renuncio, visto isso, à tese de que a matéria é um instrumento. No entanto, não se entenda por esse fato que abandono desde já a sua existência: pois que, sem embargo do que já foi dito, pode ela ser ainda uma ocasião. F. Quantas formas tomará a vossa matéria? Ou quantas vezes ainda se terá de demonstrar que não existe, antes que vos resigneis a desabraçar-vos dela? Mas, para nada mais dizer sobre este assunto (se bem que pelas regras da discussão vos pudesse acoimar com cabal justiça por vos permitirdes modificar com tanta frequência o significado do termo principal), gostaria de alcançar o que pretendeis dizer ao afirmardes que a matéria é uma ocasião, tendo já negado que seja ela causa. E, depois de me haverdes dado a saber em que sentido entendeis ocasião, tende a bondade de me mostrar depois qual o motivo que vos induz a crer que há tal ocasião das nossas ideias. H. Quanto ao primeiro ponto, direi que entendo por ocasião um ser inativo e não pensante, em cuja presença excita Deus o aparecimento das ideias nas nossas mentes. F. E qual poderá ser a natureza desse ser inativo e não pensante? H. Da sua natureza não sei eu nada. F. Passai pois ao segundo ponto, e sede servido de me indicar uma razão qualquer para crermos na existência desse ser inativo, inpensante, incógnito. H. Quando vemos que as ideias se produzem nas mentes segundo uma maneira constante e ordenada, é natural pensarmos que deve haver para elas algumas ocasiões regulares e fixas, em presença das quais são excitadas. F. Reconheceis, pois, que só Deus é a causa das nossas ideias, e que produz as mesmas ideias em presença das ocasiões. H. É o meu parecer. F. As coisas que dizeis estão presentes a Deus; sem dúvida que as percepciona. H. Certamente; quando não, não poderiam ser para Ele uma ocasião de atuar. F. Sem querer insistir neste momento no sentido que assinais a tal hipótese, ou na maneira de dar resposta aos problemas perplexos e às dificuldades em que a mesma hipótese nos embaraça - só pergunto se a ordem e a regularidade que se observam na série das nossas ideias, ou então no curso da natureza, não são coisas suficientemente explicadas pela sabedoria e pelo poder de Deus; e se não seria derrogar nestes tais atributos o fazer a suposição de que Ele é influído, dirigido, ou advertido, para saber como e quando deverá atuar, por uma substância destituída de pensamento? E enfim, supondo que eu concedia o que sustentais, de nada vos serviria ao vosso intento, pois não é coisa fácil de conceber o como é que a existência absoluta ou externa de uma substância destituída de pensamento, distinta da percepção que dela temos, se poderia inferir do ser por mim admitido que tenham existência certas coisas que são percepcionadas pela mente de Deus, e que a Ele lhe servem de ocasião para produzir em nós as nossas ideias. H. Eis-me enleado e sem saber que pense. Agora, afigura-se-me que a noção de ocasião é tão falta de base como o restante. F. Caístes na conta, enfim, de que em todas as acepções da palavra matéria vos limitastes a supor uma não se sabe que coisa, sem nenhuma espécie de razão para isso, sem utilidade alguma? H. Confesso com toda a franqueza que estou menos apegado às minhas noções desde que foram examinadas com tanto apuro. Creio ainda, no entanto, que tenho certa percepção confusa de que existe qualquer coisa como matéria. F. De duas uma: percepcionais a existência da dita matéria - ou imediatamente, ou mediatamente. Se imediatamente, informai-me, Hilas, por qual dos sentidos a percepcionais. Se mediatamente, dai-me a saber por qual raciocínio é que vós inferis a sua existência daquilo que percepcionais imediatamente. Eis pelo que concerne à percepção da matéria. Pelo que à própria matéria diz respeito, pergunto se é ela objeto, ou se é substrato, ou se é causa, ou se é instrumento, ou se é ocasião? Já tendes pleiteado por cada uma destas, mudando de contínuo as vossas noções e fazendo aparecer a tal matéria ora de uma maneira e ora de outra. E tudo que sucessivamente apresentastes foi sendo desaprovado por vós próprio, e por vós próprio rejeitado. E se tendes algo novo que fazer valer, com muitíssimo gosto vo-lo ouvirei. H. Creio ter oferecido já quanto tinha a dizer sobre este assunto. Não sei que faça para encontrar outra coisa. F. E repugna-vos, apesar disso, o apartar-vos do antigo preconceito. Porém, para vo-lo fazer desamparar mais facilmente, desejaria que, além do que foi sugerido até agora, quisésseis examinar se vos será possível, admitida a conjetura de que a matéria existe, o conceber o como ela vos afetaria? Ou então, admitido o pressuposto de que não existe, se não é óbvio que devíeis ser afetado absolutamente pelas mesmas ideias que neste momento vos estão afetando, e se, por conseguinte, não teríeis para crer na sua existência exatamente as mesmas razões que podíeis ter atualmente? H. Reconheço ser possível, com efeito, que pudéssemos percepcionar as coisas todas exatamente da maneira que as percepcionamos, ainda que no mundo não houvesse matéria; e também que, se de fato a matéria tem existência, me não é dado conceber qual seja o modo por que produz as ideias nas nossas mentes. E confesso ainda que me convencestes de que não é possível o existir a matéria em algumas das precedentes acepções do termo. E, sem embargo, não posso acabar comigo que não suponha a existência de uma matéria, num sentido ou noutro. O que ela seja, todavia, não tenho a pretensão de o determinar. F. Não espero eu que logreis definir, de maneira exata, a natureza desse ser incógnito. Dizei-me somente se é ele substância; e, se o é, se supondes uma substância sem acidente; ou ainda, se ela tem acidentes ou qualidades, desejaria que me désseis a conhecer quais são as qualidades da matéria, ou, ao menos, que se pretende significar quando se pronuncia que a matéria lhes dá suporte. H. Já atrás discutimos sobre esses pontos. Nada mais sobre eles me caberá dizer; deixai-me porém declarar desde já, a fim de prevenir perguntas novas, que no momento atual pelo termo matéria não entendo uma substância nem um acidente nem um ser pensante nem um ser extenso, nem um instrumento nem uma ocasião: mas sim qualquer coisa inteiramente incógnita - algo distinto de tudo isso. F. Só incluís, pois, ao que parece, na vossa atual noção de matéria, a ideia geral e abstrata de entidade. H. Nada mais; a não ser que acrescento a tal ideia geral a negação de todas as coisas particulares, qualidades particulares ou ideias particulares, que são por mim percepcionadas, ou que eu imagino, ou que eu apreendo de qualquer maneira. F. E onde supondes que existe essa matéria? H. Oh, Filonous! Pensais que me meteis em grande aperto: porque, se vos disser que existe em qualquer lugar, logo inferireis que é na mente que existe, pois conviemos em que o lugar, ou a extensão, não tem existência senão na mente: porém, não me corro de confessar a minha ignorância. Não sei realmente onde a matéria existe: só estou certo de que não existe em nenhum lugar. Para vós, por conseguinte, só tenho uma resposta negativa; e nenhuma outra devereis esperar a todas as perguntas que me dirigirdes, de agora em diante, sobre a matéria. F. Já que não quereis declarar-me onde é que existe, dignai-vos esclarecer-me acerca do modo como vós supondes que ela existe, ou sobre o que entendeis pela sua existência. H. Ela não pensa, nem atua, nem é percepcionada, nem percepciona. F. Mas que há então de positivo na noção abstrata da sua existência? H. Depois de rigoroso exame, dou-me conta de que não tenho acerca deia nenhuma noção positiva ou significado. Já vos disse que não me vexo de confessar ignorância. Não sei que significa o existir da matéria, nem como existe. F. Continuai, meu bom Hilas, a representar esse papel de ingênuo, e dizei-me sinceramente se podeis formar uma ideia distinta de entidade considerada de maneira geral, prescindindo de todos os seres corporais e pensantes, de todas as coisas particulares quaisquer, e exclusiva deles. H. Esperai, deixai-me pensar por alguns momentos... Não, Filonous, confesso que não creio poder fazê-lo, Parece-me à primeira vista que tenho uma noção diluída e aérea da pura entidade abstratamente tomada; mas logo depois de uma atenção mais forçosa de todo em todo se me esvaiu de vista. Quanto mais penso sobre este assunto, mais me confirmo na resolução prudente de só dar respostas de teor negativo, e de não pretender no mais mínimo grau a uma concepção positiva sobre a matéria - sobre o seu onde, sobre o seu como, sobre a sua entidade... em suma: sobre seja o que for que pertença à matéria. F. Quando, por conseguinte, me falais da existência da matéria, não tendes na mente noção alguma. H. Nenhuma tenho. F. Dizei-me se o vosso caso não é o seguinte: a princípio, a crença numa substância material levou-vos à de que os objetos imediatos têm existência sem ser na mente; depois, os seus arquétipos; depois, as suas causas; depois, os instrumentos; depois, as ocasiões; e finalmente, qualquer coisa em geral - que, quando a interpretamos, se reduz a nada. Assim a matéria vai parar em nada. Que vos parece? Não será isso um fiel resumo de todo o itinerário por vós seguido? H. Seja lá como for, continuo nisto: o não sermos capazes de conceber uma coisa não é argumento contra a existência dela. F. Reconheço da melhor vontade que de uma causa, de um efeito, de uma operação, de um sinal ou de outra qualquer circunstância dada. se pode com razão inferir a existência de algo que não percepcionamos imediatamente, e que seria absurdo para qualquer pessoa o arguir contra a existência da dita coisa com o simples fundamento de que não tem da coisa uma noção direta e positiva: porém, quando nada disso de fato existe; quando nem a razão nem a revelação nos induzem a crer na existência desse algo; quando não temos dele nem uma noção relativa; quando tudo se reduz a uma mera abstração do ser-percepcionado e do percepcionar, do espírito e da ideia; em suma, quando aí não há par no servir de pretexto nem a mais inadequada e evanescente ideia - não concluirei, verdade seja, contra a realidade de qualquer noção, ou contra a existência de qualquer coisa, mas a minha inferência será somente de que não dizeis de fato coisa alguma, a de que empregais palavras sem nenhum intuito, sem nenhum desígnio ou significação qualquer. E deixo-vos o trabalho de tirar a limpo como é que uma algaravia deve ser tratada. H. Para ser franco convosco, Filonous, direi que os argumentos que me opusestes me parecem em si mesmos irrespondíveis; todavia, não produzem em mim tão grande efeito que me levem ao estado de convicção completa, àquele inteiro assentimento do espírito que é o companheiro natural da demonstração. Eis que me surpreendo a reincidir ainda no obscuro vislumbrar de um não sei quê - em suma, a matéria. F. Mas dizei-me se não sentis que há duas razões que deveriam concorrer para apartar de vós o menor escrúpulo. e para uma convicção inteira. Suponha-se um objeto qualquer visível, que foi colocado e exposto à luz o mais perfeitamente que imaginar se possa: ora, se acaso houver um defeito na vista, ou se não olharmos na direção em que está, não será distintamente percepcionado. De maneira análoga, suponde a demonstração mais bem fundada; suponde-a explicada com a maior nitidez: pois se houver uma catarata de preconceito, ou então um desvio na orientação do intelecto, poderemos esperar que de maneira súbita percebamos a verdade com cabal clareza, e lhe demos a intrêmula adesão que merece? Não, certamente: há mister de tempo e de certo esforço; deve ser despertada e bem retida a atenção por uma frequente repetição da mesma coisa - ora colocada a uma mesma luz, ora colocada a uma luz diferente. Já tive ensejo de vo-lo dizer, e creio que me cumpre repeti-lo e inculcá-lo: é licença inaceitável a que vós tomais ao pretenderdes sustentar não sabeis que coisa, por não sabeis que razão, para não sabeis que propósito... Em qual arte ou ciência, e em qual seita ou profissão podeis ver exemplos de um proceder análogo? Encontram-se acaso tão desarrazoados modos - tão abusados destituídos de qualquer fundamento, ainda na conversação mais ordinária e mais baixa? Talvez me digais, todavia, ainda que é afinal possível que a matéria exista, se bem que não saibais, ao mesmo tempo, o que significa isso de matéria, nem tampouco a sua existência. É na verdade surpreendente: e sobretudo o é por ser voluntário, já que para aí não ides pela menor razão: pois que daqui vos desafio a que mostreis na natureza, Hilas, uma coisa qualquer que haja mister da matéria para ser compreendida ou explicada. H. Não se pode manter a realidade das coisas sem se supor a existência da matéria. E não vos parece ser isto uma boa razão para que eu a defenda com tanto afinco? F. A realidade das coisas! Mas de que coisas? Das sensíveis, ou das inteligíveis? H. Das sensíveis. F. Da minha luva, por exemplo? H. Dela, ou então de qualquer outra coisa, entre as percepcionadas pelos sentidos. F. Mas (para nos fixarmos numa coisa particular) não é para mim uma prova suficiente da existência real desta minha luva - o vê-la eu, o tateá-la eu, o calçá-la eu? Ou, se não é isso bastante, como me será possível cobrar a certeza da realidade das coisas que aqui estou vendo, neste momento, neste lugar, por virtude da suposição de que certa coisa incógnita, que nunca vi e que não posso ver, existe consoante certa maneira incógnita, num lugar incógnito ou em nenhum lugar? Como é que a realidade suposta de um intangível pode ser a prova da existência do que é tangível? Ou a realidade do que é invisível demonstrar que existe qualquer visível? Ou, de maneira geral, a existência de um algo não perceptível ministrar a prova de que um perceptível existe? Explicai-me isto, não mais que só isto: e ficarei pensando, depois de o fazerdes, que para vós coisa alguma é demasiado difícil. H. Fico-me em confessar, em conclusão de tudo, que a existência da matéria é altamente improvável; porém, não vejo a sua impossibilidade absoluta e direta. F. Todavia, o mero reconhecimento de que ela é possível não lhe dá mais direito a reivindicar a existência que a uma montanha de ouro ou a um centauro. H. Reconheço que sim; mas ao menos não negais que ela seja possível; e tudo quanto é possível, como bem sabeis, pode existir atualmente. F. Mas é que nego que ela seja possível. Se me não engano, provei com evidência que não é possível, apoiado nas vossas próprias concessões. No significado que geralmente lhe dão, estará implícita na palavra matéria alguma coisa mais que uma substância extensa, impenetrável, suscetível de ser movida, dotada de certas figuras, e que tem existência sem ser na mente? E não reconhecestes repetidas vezes que havíeis achado razões manifestas para negar a possibilidade de tal substância? H. Sim; esse, todavia, é só um dos significados da palavra matéria. F. Porém, não será o único próprio, o genuíno, o recebido? E se se prova que nesse mesmo significado é que a dita matéria não é possível, não haverá porventura motivos sólidos para a termos na conta de absolutamente impossível? Se assim não fosse, como se poderia demonstrar jamais a impossibilidade de qualquer coisa? Aliás, como será possível, de qualquer maneira, dar uma prova de qualquer espécie a quem toma a liberdade de alterar a seu gosto a acepção que vulgarmente se dá aos termos? H. Julguei que seria lícito permitir-se aos filósofos um falar mais exato que o da gente do vulgo, e que os poderíamos considerar como não adstritos ao significado comum de cada termo. F. Mas notai que o sentido que mencionamos agora é o comumente admitido pelos próprios filósofos. Porém, não insistindo no caso: não vos deixaram tomar a palavra matéria em todos os significados que vos apeteceu ligar-lhe? E não usastes da permissão com a maior amplitude, mudando umas vezes a definição por completo, outras suprimindo ou metendo nela o que servia ao propósito que no momento tínheis ao avesso de todas as regras da boa razão e da boa lógica? E não é certo que esse método, volteador e iníquo, deu à nossa controvérsia desnecessária extensão, pois que a noção de matéria foi particularmente examinada em cada uma das acepções em que vos apeteceu tomá-la, e refutada depois em cada um dos casos, como vós próprio admitistes? E que mais será possível que se exija ainda, para provar que uma coisa é absolutamente impossível, do que a própria demonstração de ser ela impossível em cada um de todos os particulares sentidos que vós ou qualquer outro lhe podereis atribuir? H. Não me satisfaz por completo, todavia, a vossa prova da impossibilidade da matéria naquele último sentido que é o mais obscuro de todos, o mais abstrato e indefinido. F. E quando é que se demonstra ser uma coisa impossível? H. Quando se prova que uma contradição existe entre as ideias compreendidas na definição da coisa. F. Mas no caso onde não há ideias não se pode demonstrar a contradição entre ideias. H. Com efeito, assim é. F. Ora, nisso a que chamastes o sentido obscuro, o sentido indefinido da palavra matéria, é bem manifesto (pelo que vós dissestes) que se não acha inclusa nenhuma ideia, nenhum outro sentido a não ser um incógnito que é o mesmo que nada. Não tendes pois o menor direito de esperar que eu prove uma contradição de ideias aí onde não existe nenhuma ideia, ou a impossibilidade da matéria em um sentido incógnito, que é sentido nenhum. A minha missão era só provar que falando desse modo vós não dizíeis nada: e sentistes-vos impelido a confessar que assim é. Por conseguinte, em toda a série dos nossos variados sentidos, ficou bem demonstrado que, ou não dizíeis absolutamente nada, ou então, se alguma coisa na verdade dizíeis que era só um absurdo. Ora, se acaso tudo isto não é bastante para fazer a demonstração de que uma coisa é impossível - peço-vos que me digais o que poderia sê-lo. H. Reconheço que demonstrastes que a matéria é impossível; nem vejo agora que mais se poderia alegar para tentar ainda a defesa dela. Porém, ao mesmo tempo que renuncio a esta, suspeito de todas as outras noções que tenho. Pois que de seguro que nenhuma delas me parecia mais evidente que a de matéria: e eis que agora, sem embargo disso, me parece tão falsa e tão absurda como antes se me afigurava ser verdadeira. Porém, creio que este ponto, por agora, ficou suficientemente discutido. O resto do dia quero eu gastá-lo a passar em revista no meu espírito os diferentes pontos da conversação que tivemos; e muito gostaria de vos achar aqui, amanhã de manhã, pela mesma hora. F. Pois aqui mesmo esperarei por vós. TERCEIRO DIALOGO FILONOUS. Dizei-me, Hilas: essa meditação de ontem - que frutos teve? Confirmou-vos no estado de espírito com que daqui partistes? Ou achastes depois qualquer motivo para que mudásseis de opinião? HILAS. A minha opinião, a falar verdade, é que todas as opiniões são vãs e incertas. O que aprovamos hoje, amanhã condenamo-lo. Barafustamos muito sobre o conhecimento, gastamos a vida em busca dele, e afinal - ai de nós! - nada conhecemos durante todo o tempo, nem posso acreditar na possibilidade de conhecermos alguma coisa nesta nossa vida. As nossas faculdades são demasiado estreitas, e em exíguo número. A natureza, certamente, não fez os homens para a especulação. F. Como? Dizeis, Hilas, que é impossível conhecermos coisa alguma? H. Não há no mundo uma única coisa de que possamos conhecer a sua real natureza - em suma, o que é ela em si própria. F. Ao que dizeis, não conheço realmente o que seja o fogo, o que seja a água? H. Podeis conhecer, é verdade, que o fogo vos aparece como sendo quente, que a água vos aparece como sendo fluida; isto, porém, não é mais que terdes o conhecimento de que sensações se produzem na vossa mente quando se dá o contato do fogo e da água com os vossos órgãos dos sentidos. Mas quanto à sua constituição interna, à sua verdadeira e real natureza - nisso andais de todo às escuras. F. Não conheço, por conseguinte, que é real esta pedra sobre a qual me encontro, que é real essa árvore, que ante meus olhos vejo? H. Conhecer? Não, é impossível que as conheçais, vós ou algum homem vivo. Tudo que vós conheceis é que tendes tal ou tal ideia, tal aparência na vossa mente; mas que vem a ser esta mesma aparência em relação à árvore ou à pedra real? Digo-vos que a cor que percepcionais, assim como a figura e a dureza, não são as naturezas reais das coisas, nem têm com elas a menor parecença. A mesmíssima afirmação se poderá fazer de todas as coisas reais restantes, ou substâncias corpóreas que compõem o mundo. Nenhuma delas possui em si mesma algo que se possa dizer semelhante às qualidades sensíveis que percepcionamos. Não devemos, por conseguinte, pretender afirmar ou conhecer coisa alguma a respeito do que são em sua natureza própria. F. Mas decerto, Hilas, eu posso distinguir o ouro do ferro: e como poderia ser isto possível, se não conhecesse a nenhum dos dois? H. Acreditai-me, Filonous: unicamente podeis distinguir entre as várias ideias que vós próprio tendes. Credes que o amarelo, e que aquele certo peso, e que todas as restantes qualidades sensíveis existem realmente no pedaço de ouro? São só relativas aos vossos sentidos, e não existem absolutamente na natureza. E quando pretendeis fazer distinção entre as várias sortes de coisas reais, segundo as aparências na vossa mente, talvez que procedais com igual acerto ao de quem concluísse que dois homens que vê devem ser pertencentes a duas espécies diversas porque não têm vestimentas da mesma cor. F. Parece, por conseguinte, que as aparências das coisas nos transviam de todo. Em si mesmos, o manjar que eu como e os trajos que eu uso nada têm de semelhante ao que vejo e ao que sinto. H. Tal como dizeis. F. Mas não é estranho que todo o mundo se deixe iludir desse feitio, e que sejam todos de tal modo néscios que deem algum crédito aos seus sentidos? E no entanto... eu não sei como tal sucede, mas é fora de dúvida que os homens comem, e que bebem, e que dormem, e que exercem enfim as funções vitais com tanta comodidade e conveniência como se eles conhecessem realmente as coisas com que são obrigados a lidar na vida. H. Assim fazem com efeito. Mas a prática da vida, como sabeis, não tem exigências de exatidão de conhecimento especulativo. Por isso o vulgo conserva os seus erros, o que o não inibe do necessário expediente para se desembaraçar nos negócios da sua vida. Os que são filósofos, porém, atingem um conhecimento melhor das coisas. F. Quereis dizer que conhecem que não conhecem nada. H. É o cume e perfeição do conhecimento humano. F. Falastes a sério durante este tempo, Hilas? E estais sinceramente persuadido de que nada de real conheceis no mundo? Suponde que vos dispúnheis a escrever; não pediríeis pena, papel e tinta, como toda a gente? E não saberíeis o que então pedíeis? H. Quantas vezes terei de dizer-vos que não conheço a natureza real de coisa nenhuma no universo? É certo que posso, quando a ocasião se me ofereça, fazer uso de pena, de papel, de tinta. Mas o que venha a ser qualquer destas coisas na sua natureza verdadeira e própria - declaro positivamente que o não conheço. E a mesma afirmação é também verdadeira de todas as outras coisas corporais. E mais ainda: o que nós ignoramos não é tão somente a natureza verdadeira e real das coisas: ignoramos até a sua existência. Não se pode negar que percepciono aparências, que percepciono ideias: daí, todavia, não se pode concluir que existam corpos. Mais ainda: agora que penso sobre este caso, creio que me cumpre declarar ademais, em conformidade com as concessões que de princípio fiz, que é impossível que na natureza exista qualquer coisa real corpórea. F. Atordoais-me, Hilas! Que houve mais fantástico e estrambótico do que tais noções que sustentais agora? E não é verdade que sois conduzido a essas extravagâncias que estais dizendo pela crença numa substância material? É isso mesmo o que vos leva a sonhar com naturezas incógnitas em todas as coisas. Eis o que ocasiona a distinção que fazeis entre o que é realidade e o que aparência sensível. A isso deveis vós o ignorardes o que os demais homens conhecem na perfeição. E notai: não é tudo ainda: pois que não sois ignorante tão somente da verdadeira natureza de todas as coisas, senão que não sabeis, ainda por cima se alguma coisa real existe, ou se há verdadeiras naturezas quaisquer - já que a esses seres materiais em que credes lhes atribuís uma existência •exterior absoluta, em que supondes consistir a realidade deles. E como tendes de reconhecer que tal existência - ou não passa enfim de uma contradição em si, ou se reduz a nada, vedes-vos impelido a derrubar vós próprio essa hipótese de uma substância material que fizestes, e a negardes positivamente a existência real de todas as partes que compõem o universo. E desta forma vos achais mergulhado no ceticismo mais fundo e mais deplorável em que jamais um homem se viu cair. Vamos, Hilas: pois não é assim mesmo como vos estou dizendo? H. Concordo convosco: a substância material não era nada mais do que hipótese, aliás falsa e sem fundamento. Não quero gastar fôlego em defendê-la. Mas, qualquer que seja a hipótese que avanceis, ou qualquer que possa ser o sistema de coisas que queirais introduzir em seu lugar, não tenho dúvida de que a todas as luzes ele se nos apresenta como sendo errôneo. E permiti-me que vos interrogue a tal respeito. Quero eu dizer, consenti em que vos trate pelo vosso método: e garanto-vos que vos há de levar, através de perplexidades e de contradições, a este mesmo estado de ceticismo em que me encontro neste momento. F. Asseguro-vos, Hilas, que não pretendo construir nenhuma hipótese. Pertenço à casta da gente comum, bastante simples para acreditar nos sentidos e deixar as coisas como as encontra. Para falar simplesmente, é minha opinião que as coisas reais são aquelas mesmas que vejo e palpo, aquelas que percepciono pelos meus sentidos. A estas últimas sei eu que as conheço: e como comprovo que correspondem bem a todas as necessidades e fins da vida, não vejo motivo para andar solícito acerca de não se sabe que outros seres incógnitos. Um bom pedaço de pão sensível, por exemplo, daria ao meu estômago muito maior regalo do que dez mil vezes essa mesma porção daquele pão insensível, ininteligível, mas real, de que me tendes falado. Analogamente, opino que as cores existem nos objetos, assim como as restantes qualidades sensíveis. Não me é possível, para a minha vida, deixar de pensar que a neve é branca, e que o fogo é quente. É verdade que tendes - já que para vós a neve e o fogo vêm a dar certas substâncias externas, que não são percepcionadas e que não percepcionam - o direito de negar que a brancura e o calor sejam afecções inerentes a tais substâncias. Porém eu, que entendo por tais palavras as coisas que vejo e que pelo tato sinto, sou obrigado a pensar como os outros homens. E como acontece que não sou um cético no que diz respeito à natureza das coisas, não o sou também quanto à sua existência. Que suceda ser uma dada coisa realmente percepcionada pelos meus sentidos e ao mesmo tempo sem real existência - eis o que é para mim uma contradição manifesta, já que não é possível separar ou abstrair, ainda que seja em pensamento somente, a existência de uma coisa sensível do fato de ser ela percepcionada. A madeira, a pedra, o fogo, a água, a carne, o ferro, etc., etc., e as restantes coisas que nomeio e em que falo, são tudo coisas conhecidas por mim. E não as teria conhecido nunca se as não houvesse percepcionado pelos meus sentidos; e as coisas percepcionadas pelos sentidos são todas percepcionadas imediatamente - são ideias; e as ideias só podem existir na mente; a sua existência, por conseguinte, consiste no serem percepcionadas; e quando são atualmente percepcionadas, por isso mesmo não podemos duvidar da existência. Fora com o ceticismo, com o duvidar filosófico! Que brincadeira é essa, da parte de um filósofo, de questionar sobre a existência das coisas sensíveis até que seja provada pela veracidade de Deus, ou pretender que o nosso conhecimento sobre este ponto é falho de intuição ou demonstração! Poderia duvidar da minha própria existência com o mesmo direito com que pusesse em dúvida a existência das coisas que vejo e que palpo. H. Mais devagar, Filonous, mais devagar! Dizeis vós que não podeis conceber de que maneira é que as coisas sensíveis poderiam existir sem ser na mente. Não é isto verdade? F. Sim, é. H. Suponde que sois aniquilado. Não podeis conceber que continuem a existir as coisas percepcionadas pelos sentidos? F. Posso; mas cumpre que existam numa outra mente. Quando nego que os sensíveis existam sem ser na mente, não entendo em particular a minha mente, senão que toda e qualquer mente. As coisas têm - é bem manifesto - existência exterior à minha mente, pois acho pela experiência que não dependem dela. Há portanto outra mente na qual existem nos intervalos das percepções que tenho delas - assim como existiam antes de ser eu nascido e hão de continuar a existir, ainda, depois do meu suposto aniquilamento. E como a proposição é também verdadeira naquilo que diz respeito a todos os outros espíritos criados e finitos, segue-se necessariamente que há uma Mente onipresente e eterna, que conhece e compreende todas as coisas e no-las apresenta à vista de certa maneira, e de acordo com certas regras - regras essas por Ela própria instituídas, às quais nós outros damos o nome de leis da natureza. H. Respondei-me, Filonous: dar-se-á que todas as nossas ideias são seres perfeitamente inertes? Ou há atividade incluída nelas? F. São de todo inertes e passivas. H. E não é Deus um agente, um ser puramente ativo? F. Reconheço-o. H. Nenhuma ideia, por conseguinte, poderá jamais ser semelhante a Deus, ou representar a natureza de Deus. F. Decerto não pode. H. Pois que não tendes, por conseguinte, nenhuma ideia da mente de Deus, como podeis conceber possível que as coisas existam na sua mente? Ou, se podeis conceber a mente de Deus sem terdes dela nenhuma ideia, por que me não é permitido a mim o conceber a existência da matéria, apesar de não ter ideia dela? F. Pelo que concerne à primeira pergunta: reconheço, Hilas, não ter propriamente ideia de Deus, nem tampouco ideia de nenhum outro espírito, por isso que sendo estes, como são, ativos, não é possível que sejam representados por coisas que são perfeitamente inertes, tal como sucede com as nossas ideias. Mas sei que eu, que sou um espírito (quer dizer: uma substância pensante), existo tão de certeza como sei que existem as minhas ideias. E sei também o que pretendo dizer pela palavra eu e pela palavra me; e isto conheço-o de maneira imediata, intuitivamente, se bem que o não percepcione como percepciono um triângulo, ou então uma cor, ou então um som. A mente - ou espírito, ou alma - é esse algo indivisível e inextenso, que é o que pensa, que é o que percepciona, que é o que atua. Digo indivisivel porque é inextensa; e digo inextensa porque as coisas extensas, figuradas, móveis são em suma ideias; e aquela qualquer coisa que percepciona as ideias - e que pensa e que quer - é bem manifesto que não é uma ideia, nem se assemelha a uma ideia. As ideias, Hilas, são inativas e percepcionadas; e os espíritos são uma sorte de seres que em absoluto diferem do que são as ideias. Não digo por isso mesmo que a minha alma é uma ideia, ou semelhante a qualquer ideia. Mas se tomar em sentido amplo esta mesma palavra ideia, posso dizer que a minha alma me apresenta a mim certa ideia - quer dizer: uma imagem, ou semelhança - de Deus, se bem que na verdade extremamente inadequada. Com efeito, toda noção que da Divindade alcanço se obtém pela reflexão sobre a minha própria alma - intensificando-lhe as potências, eliminando-lhe as falhas. Tenho, por conseguinte, se bem que não, claro está, uma ideia inativa, ao menos no meu próprio íntimo uma como imagem da Divindade, a qual é ativa e é pensante. E ainda que a falar verdade a não percepciono pelos sentidos, formo dela no entanto qualquer noção, ou conheço-a pela reflexão e pelo raciocínio. Da minha própria mente e das minhas ideias o conhecimento que possuo é imediato; e por meio do conhecimento imediato destas logro apreender de maneira mediata a possibilidade da existência de outros espíritos, a de outras ideias. Além disso, da própria existência de mim mesmo, e da própria dependência que em mim descubro, e nas minhas ideias - por um ato de razão, e necessariamente -, tiro a inferência de que existem Deus e as coisas criadas na mente de Deus. Aí tendes vós quanto à primeira pergunta. Por aquilo que à segunda diz respeito, vós mesmo, ao que me quer parecer, lhe podeis já agora dar resposta. A matéria, com efeito, nem a percepcionais objetivamente (assim como vos sucede com uma existência inativa, ou seja, uma ideia), nem tampouco a conheceis (como vos conheceis a vós) graças a um ato de reflexão; nem a apreendeis de maneira mediata, por semelhança com aquelas ou convosco; nem a deduzis por um raciocínio a partir do que conheceis imediatamente. Pelo que o caso da matéria é completamente diverso do da Divindade. H. Dá-vos a vossa alma, ao que me aí dissestes, uma como que ideia ou imagem de Deus. Ao mesmo tempo, todavia, reconheceis que não tendes, a falar propriamente, ideia alguma da vossa alma. Além disso, afirmais que os espíritos são uma sorte de seres que diferem totalmente das ideias - e que não pode, por conseguinte, haver ideia que se assemelhe a um espírito. Portanto, não temos ideia de nenhum espírito. Ora, admitis, sem embargo disso, que existe uma substância espiritual, se bem que dela não tenhais ideia, ao passo que recusais ao mesmo tempo a possibilidade de uma substância material, porque não tendes dela noção ou ideia. Será este, acaso, um proceder correto? Para vos haverdes coerentemente, corre-vos a obrigação de admitir a matéria, ou então a de rejeitar o espírito. Que direis a isto? F. Em primeiro lugar, digo que não nego o existir da matéria simplesmente por não ter dela noção alguma, mas porque é incoerente essa noção de matéria; ou, por outras palavras: porque é contraditório que haja dela noção. Muitas coisas (quanto me é dado sabê-lo) podem existir das quais não tenho nem posso, nem nenhum homem tem nem pode ter qualquer ideia, tem nem pode ter qualquer noção. Mas ao menos devem ser possíveis, isto é: não deve haver nada de contraditório incluído na definição das ditas coisas. E digo ainda, em segundo lugar, que, apesar de crermos que existem coisas das quais não temos percepção alguma, não devemos todavia acreditar jamais na existência de uma coisa particular qualquer sem alguma razão para crer em tal: ora, o certo é que não tenho razão alguma para acreditar na existência da matéria. Não cobro dela intuição imediata; nem posso inferir de maneira mediata, das minhas sensações, ideias, noções, ações, paixões - uma substância impensante, impercepcionante, inativa: quer por meio de dedução provável, quer por consequência necessária. Ao passo que o meu próprio ser - ou seja, a alma, o princípio pensante, a mente -, conheço-o com evidência pela reflexão. Perdoe-me, Hilas, isto de repetir as mesmas coisas em respostas às mesmíssimas objeções. Na própria noção e definição da matéria se acham inconsequência e contradição patentes. O mesmo, porém, se não pode dizer da noção de espírito. Que existam ideias no que não percepciona, ou que sejam produzidas pelo que não atua - eis o que é decerto contraditório. Mas não há contradição no afirmarmos nós que uma coisa percepcionante é o sujeito de ideias, ou que uma coisa ativa é que é a causa delas. Concedo que não temos imediata prova, nem tampouco conhecimento demonstrativo do existir de outros espíritos finitos; mas não se segue daí que tais espíritos se achem de fato no mesmo pé em que estão as substâncias materiais: já que existe contradição em supor estas últimas e não existe contradição em supor aqueles; já que umas as não podemos inferir por nenhuma casta de argumento, e há probabilidade para a existência dos outros; e já que nós vemos sinais e efeitos que indicam distintos agentes finitos que têm semelhança com nós próprios, e não existe sinal ou sintoma algum que nos impulse a uma crença racional na matéria. Enfim, digo-vos que possuo uma noção de espírito, se bem que não tenha, estritamente falando, uma ideia dele. Não o percepciono como uma ideia, nem tampouco por meio de qualquer ideia; conheço-o, porém, pela reflexão. H. Sem embargo de tudo que aí dissestes, aquilo que a mim se me está antolhando é que pela vossa maneira de raciocinar no caso, e em consequência dos princípios que são os vossos, o que se deve concluir é que sois somente um sistema de ideias flutuantes, sem substância alguma que lhes dê suporte. Não são as palavras para se empregar sem sentido: e como a de substância espiritual não é uma expressão de mais sentido que a de substância material, tanto é uma de rejeitar como o é a outra. F. Quantas vezes deverei eu repetir que tenho consciência do meu próprio ser - que de fato o conheço; e que eu não sou as minhas ideias, senão que outra coisa, a saber: um princípio pensante e ativo, o qual percepciona, conhece, quer, e o qual opera sobre as ideias? Sei que eu - digo um, e o mesmo eu - percepciono a um tempo as cores e os sons; que uma cor não pode percepcionar um som, nem um som uma cor; que sou um princípio individual, portanto, e como tal distinto da cor e do som; e também distinto, pela mesma razão, das outras coisas sensíveis e ideias inertes. Mas não tenho consciência de maneira análoga da existência ou da essência da matéria. Pelo contrário: estou certo de que o contraditório não pode existir, e que a existência do ser material é algo que implica contradição. Além disso, sei muito bem o que quero eu dizer quando sustento que uma substância espiritual existe, suporte de ideias; ou, por outra: que um espírito conhece e percepciona as ideias. Não sei porém o que se pretende exprimir quando se afirma que uma substância impercepcionante contém em si e suporta ideias, ou então arquétipos das ditas ideias. Não há paridade, por conseguinte, a todas as luzes que os queiramos ver, entre o caso do espírito e o da matéria. H. Declaro-me satisfeito sobre este ponto. Mas pensais a sério, Filonous, que a existência das coisas sensíveis consiste tão só e exclusivamente no serem atualmente percepcionadas? Se assim é, como sucede que o gênero humano faz bem distinção entre aquilo e isto? Dir-vos-á o primeiro homem que interrogardes que ser percepcionado é uma coisa, ao passo que existir é outra coisa. F. Agrada-me o apelar para o senso comum para estabelecer a verdade da minha noção. Perguntai por exemplo ao jardineiro daqui por que julga que a cerejeira existe acolá, neste mesmo jardim: e dir-vos-á que acredita porque a vê e a palpa; numa palavra: porque ele a percepciona pelos sentidos. Perguntai-lhe depois por que está na crença de que não existe por aqui laranjeira alguma: e dir-vos-á que assim crê porque a não percepciona. Aquilo que percepciona pelos sentidos dá-lhe ele o nome de ser real, e diz que é, ou que existe, mas do que não é percepcionável declara ele que não tem existência. H. Sim, Filonous, admito que a existência de uma coisa sensível consiste em ser ela percepcionável; não, todavia, em ser atualmente percepcionada. F. E que há aí percepcionável senão uma ideia? E pode uma ideia existir sem ser atualmente percepcionada? Pontos são estes em que já concordamos, e de há muito tempo. H. Mas, por verdadeira que seja a opinião que tendes, não podeis negar que ela é perturbante e contrária ao senso comum dos homens. Ora, tentai perguntar ao jardineiro se a árvore existe fora da sua mente; que resposta pensa que vos daria ele? F. A mesma que eu; isto é: que existe fora da sua mente. Para um cristão, todavia, nada teria que o perturbasse o afirmar-lhe alguém que a árvore real, que existe fora da sua mente, é conhecida e compreendida pelo infinito espírito de Deus; isto é: que existe no espírito de Deus. Provavelmente, não acharia à primeira vista a prova direta e imediata disto, a saber: que a simples existência de certa árvore - ou de outra qualquer das coisas sensíveis - implica uma mente na qual exista. Mas ao próprio ponto não o poderá negar. A questão a debater entre os materialistas e mim não é se as coisas têm existência real fora da mente desta pessoa ou doutras, mas se têm existência absoluta, dintinta do serem percepcionadas por Deus, e exterior a toda e qualquer mente. É o que afirmaram, com efeito, alguns pagãos e alguns filósofos: porém, quem quer que tenha uma noção de Deus em conformidade com as Sagradas Escrituras será de diversa opinião. H. Mas, pelas noções que tendes, que diferença haverá entre as coisas reais e as quimeras formadas pela imaginação, ou então as visões de um sonho, já que estão todas, por igual, na mente? F. As ideias formadas pela imaginação são desbotadas e indistintas; além disso, dependem por inteiro da nossa vontade. Porém, as ideias percepcionadas pelos sentidos, isto é, as coisas reais, são mais claras e mais vivazes; e, sendo impressas na nossa mente por um espírito distinto de nós outros, não dependem assim do nosso querer. Não há portanto perigo algum de as confundirmos com as precedentes; e tampouco de confundi-las com as visões de um sonho - que são obscuras, irregulares, confusas. Afora isso, além de nunca serem as visões de um sonho de tanta vivacidade e tão naturais, como não estão ligadas umas às outras, e como se não integram numa série única com os sucessos anteriores e os subsequentes no desenvolvimento da nossa vida, é-nos fácil distingui-Ias das realidades. Em resumo: o método empregado no vosso sistema - qualquer que ele seja - de distinguir o que são coisas do que são quimeras será aplicável também no meu, como é bem evidente. Pois só são distinguíveis, ao que conjeturo, por qualquer diferença percepcionada, e não serei eu que vos queira privar de qualquer coisa que percepcioneis. H. Mas continuais sustentando, Filonous, que não há nada no mundo senão espíritos e ideias. O que soa a estrambótico, como havereis de convir! F. Reconheço que a palavra ideia, não sendo comumente empregada por coisa, soa a fora das marcas. A minha razão para me servir dela é que implica uma relação necessária com a mente; e usam-na agora comumente os filósofos para denotar os objetos imediatos do intelecto. Mas, por estranhamente que em palavras soe, nada há de incomum e de repulsivo naquilo que realmente a proposição significa, e que não passa disto: só há coisas percepcionantes e coisas percepcionadas; ou então: de necessidade todo ser impensante, pela própria natureza da sua existência, é percepcionado por alguma mente; se não por uma mente finita criada, decerto pela mente infinita de Deus, "no qual nós vivemos e nos movemos, e no qual nós temos o nosso ser". Pois será isto afirmação tão estranha como a de que não estão nos objetos as qualidades sensíveis, ou a da impossibilidade de nos certificarmos da existência das coisas, ou a de sermos incapazes de algo conhecer acerca das naturezas reais delas, se bem que as vejamos e que as tateemos, e que por todos os sentidos as percepcionemos? H. E não deveríamos concluir daí que não há causas físicas e corpóreas, senão que é um Espírito a causa imediata de todos os fenômenos da natureza? E pode haver nada mais mirabolante do que isto? F. Pode; porque é infinitamente mais de estranhar o sustentar-se que algo puramente inerte possui a capacidade de atuar sobre a mente, e que qualquer coisa que não percepciona é que é a causa das percepções. E ademais, o que a vós vos parece mirabolante (nem eu sei por que) é o que numa boa centena de passos nos afirmam as Sagradas Escrituras. Deus é apresentado nas Escrituras como sendo o único e imediato autor de todo o acervo daqueles efeitos que alguns pagãos e alguns filósofos têm o costume de atribuir à Natureza, à Matéria, ao Fado, ou a um princípio impensante da mesma ordem. Tão constantemente falam assim as Escrituras que não há mister de confirmá-lo com citações. H. Não vos dais conta, Filoríous, de que ao fazerdes de Deus o imediato autor de todos os movimentos da natureza - o tornais ao mesmo tempo o autor do assassínio, do sacrilégio, do adultério, e dos demais pecados igualmente atrozes. F. Em resposta a isso observarei, em primeiro lugar, que a imputabilidade do delito vem a ser a mesma - quer seja com um instrumento, quer seja sem ele que a pessoa pratique a sua ação. Portanto, se vós supuserdes que Deus atua por intermédio daquele instrumento (ou daquela ocasião) a que dais o nome de matéria, fazeis de Deus o autor do pecado tão verdadeiramente como o faço eu próprio, que o considero o imediato agente em todo o conjunto de operações que em geral se atribuem à natureza. Além disto, advertirei que o pecado, ou torpidade moral, não consiste na ação exterior e física, mas no desvio interno da vontade do agente que se afasta das leis da religião e razão. Toma-se manifesto ser isto assim em que o matar um inimigo numa batalha, ou o condenar legalmente um criminoso à morte, não é tido na conta de pecado, se bem que o ato exterior e físico seja o mesmo que no caso de um assassínio. Desde que o pecado, por conseguinte, não consiste no ato físico, o fazer de Deus a causa imediata de todas as ações desse mesmo gênero não é fazer de Deus o autor do pecado. Finalmente, eu não disse em ocasião alguma que considerava Deus como o agente único de todos os movimentos que se dão nos corpos. Neguei que haja agentes além dos espíritos, verdade seja: mas é inteiramente compatível isto com o admitir que entes pensantes e racionais, no que respeita à produção de movimentos, tenham o uso de poderes limitados, derivados de Deus em derradeira instância, mas colocados de maneira imediata sob a direção da vontade desses mesmos seres - o que é suficiente para lhes atribuir a eles a inteira responsabilidade de suas más ações. H. Mas a negação da matéria, Filonous? A negação da existência da substância corpórea? Aí está o ponto. Nunca me podereis persuadir a mim de que seja isso coisa que não repugne ao sentimento universal do gênero humano. Se a divergência que entre nós existe se pudesse decidir por votação, estou persuadido de que abandonaríeis o campo, sem esperar sequer pelo contar dos votos. F. Quisera que a vossa opinião e a minha fossem claramente expostas e submetidas ao juízo de homens de senso comum, reto e chão, sem os preconceitos de uma educação erudita. Heis de permitir-me que me apresente eu próprio como um homem que confia nos seus sentidos, que está convicto de que conhece as coisas que são vistas por ele e por ele palpadas, que não mantém dúvidas sobre a sua existência; e vós, pela vossa parte, mostrai-vos francamente com as vossas dúvidas, os vossos paradoxos, o vosso ceticismo no que respeita a vós próprio: e aquiescerei da melhor vontade àquilo que determinar uma pessoa qualquer. Que não há substância, a não ser o espírito, na qual as ideias possam ter existência - isso é para mim uma coisa evidente; e todos admitem que são ideias os objetos imediatamente percepcionados. Ninguém, por outro lado, pode negar que as qualidades sensíveis são objetos imediatamente percepcionados. É pois manifesto que somente o espírito pode ser o substractum de tais qualidades, substractum esse no qual existem, não como um modo ou propriedade, mas como uma coisa percepcionada naquilo que a percepciona. Nego que exista, por conseguinte, um substractum impensante dos objetos sensíveis, e que haja portanto, nessa mesma acepção, substância material. Porém, se pelas palavras substância material se entende somente um corpo sensível, o que é visto e apalpado (e a parte da humanidade que não filosofa, ousarei dizê-lo, não entende outra coisa), então estou mais certo do existir da matéria do que estais vós mesmo ou qualquer filósofo. Se há alguma coisa que à generalidade dos homens comunique aversão a estas doutrinas que esposo - não pode ser mais do que um mero equívoco: o de que nego a realidade das coisas sensíveis; mas como sois vós, e não eu, o verdadeiro culpado de tal parecer, segue-se que é de fato contra as vossas teorias, e não contra as minhas, que tal aversão vai dirigida. Tanto como estar certo da minha existência estou eu certo igualmente de que existem corpos, ou substâncias corpóreas (coisas que percepciono pelos meus sentidos, quero dizer, pelo termo); e sendo isto admitido, creio que a massa da humanidade se não ocupará mais de tal assunto, desinteressando-se do destino dessas naturezas incógnitas, dessas quididades filosóficas, pelas quais certos homens se apaixonaram tanto. H. Que direis vós ao seguinte? Pois que é pelos sentidos (segundo afirmais) que as pessoas conceituam da realidade das coisas, como pode suceder enganar-se um homem quando crê ser a Lua uma superfície plana e luminosa, tendo de diâmetro mais ou menos um pé; ou quando crê redonda uma torre quadrada, se é avistada a distância; ou que está dobrado ou curvado o remo cuja extremidade mergulha dentro da água? F. É que o erro não está nas ideias que atualmente percepciona, e sim nas inferências que derivou das suas presentes percepções. No caso do remo, o que pela vista imediatamente percepciona é sem dúvida alguma uma coisa dobrada: e quanto a isso não sai ele da verdade. Porém, se daí quiser concluir que depois de tirar o remo da água há de percepcionar nele a mesma dobra, ou que o remo lhe afetará o tato como as coisas dobradas costumam fazer - então cairá ele em erro. Analogamente, se inferir do que percepciona desde um certo sítio que no caso de avançar para a Lua ou para a torre continuará sendo afetado pelas mesmas ideias - igualmente cairá ele em erro. O seu engano, todavia, não reside naquilo que percepciona imediatamente e presentemente (seria em nós uma contradição manifesta o supormos que se poderia equivocar nesse ponto), senão que sim no juízo errôneo acerca das ideias que supõe associadas com aquelas que imediatamente percepcionou; ou ainda sobre as ideias que ela acaso imagina, consoante o que percepciona no momento presente, que em outras circunstâncias percepcionará. O caso é precisamente o mesmo que se dá com o sistema de Copérnico. Não percepcionamos o movimento da Terra: mas seria errôneo o concluir-se daí que, se estivéssemos separados da mesma Terra pela distância a que nos achamos dos demais planetas - não percepcionaríamos o seu mover-se. H. Compreendo o que aí dissestes, e considero-o como bastante plausível. Porém, permiti que vos faça pensar numa coisa. Em tempo, não estivestes tão capacitado de que a matéria existe como estais agora convencido de que não existe? F. É verdade. Mas eis a diferença: dantes a convicção fundava-se no preconceito, sem exame do caso; e agora é firmada, depois da pesquisa, em demonstração evidente. H. Ao cabo de contas, está-me cá a parecer que a nossa disputa é mais sobre palavras que sobre coisas. Concordamos na coisa, divergimos no nome. Somos afetados, como é bem manifesto, por ideias provenientes do exterior; e é não menos evidente que deverão existir - não digo arquétipos, mas quaisquer poderes de fora da mente que correspondam a tais ideias. E não podendo os poderes subsistir por si, cumpre supor-lhes, necessariamente, um sujeito. Esse sujeito é para mim matéria; para vós, espírito. Eis a diferença. F. Dizei-me, Hilas: esse ser dotado de tais poderes, ou esse sujeito de tais poderes, é acaso extenso? H. Não tem extensão; mas tem o poder de suscitar em nós a ideia da extensão. F. Portanto, é ele próprio inextenso. H. Admito que o seja. F. E não será ativo? H. Sem dúvida que sim. Como, se o não fosse, lhe poderíamos nós atribuir poderes? F. Agora, deixai-me fazer duas perguntas. Primeiramente: é procedimento que esteja de acordo com o uso dos filósofos e dos outros homens o designar por esse nome de matéria um ser que é inextenso e que é ativo? E depois: não vos parece ridiculamente absurdo o aplicar as palavras a torto e a direito, em contrário do uso comum da língua? H. Bem; não lhe chamemos então matéria, para vos fazer a vontade: mas sim uma terceira natureza, distinta da matéria e distinta do espírito. Porque, de fato, que razão existe para que lhe chameis espírito? Pois não é certo que na noção de espírito se encontra implícito que ele é pensante, assim como ativo e não extenso? F. A minha razão é a seguinte: possuo uma mente para ter noção, ou significado, naquilo que digo; mas não tenho noção alguma de uma ação distinta da volição, e não concebo que a volição exista em qualquer coisa que não seja um espírito; portanto, sempre que falo num ser ativo vejo-me obrigado a entender um espírito. É evidente, além disso, que um ser que em si mesmo não tem ideias não é capaz de mas comunicar a mim; e se acaso tem ele ideias, deve seguramente ser espírito. Para vo-lo explicar mais claramente ainda, se possível é; assim como vós, afirmo que, pois que somos afetados do exterior, devemos admitir que no exterior haja potências, em um ser distinto de nós mesmos. Até este ponto vamos nós de acordo. Mas aqui começa a divergência entre os dois sobre a espécie desse ser que tem potência. Eu sou de parecer que ele é espírito; vós sustentais que ele é matéria - ou então uma não sei qual (e posso ajuntar: uma não sabeis qual) terceira natureza. Eu demonstro desta forma que ele é espírito: dos efeitos que vejo que se produzem - tiro como consequência que existe ação; e de que há ações - que há volições; e, uma vez que é certo que as volições existem, cumpre que exista uma vontade. Ademais disso, as coisas que percepciono devem realmente ter existência (elas, ou os seus arquétipos) fora da minha própria mente: mas, sendo ideias - nem elas nem os seus arquétipos poderão existir sem ser um intelecto: há, por consequência, tal intelecto. Ora, vontade e intelecto constituem uma mente, constituem um espírito no sentido mais rigoroso de tais palavras. A causa poderosa das minhas ideias, por conseguinte, falando propriamente e a rigor - tem de ser um espírito. H. Suponde-vos chegado a uma claridade extrema, mal suspeitando que o que estais dizendo vos leva diretamente a uma contradição. Não é absurdo imaginar uma imperfeição em Deus? F. Sem dúvida. H. Sofrer dor é uma imperfeição. F. Com efeito. H. Não é verdade que outros seres nos afetam às vezes com dor e incômodo? F. É. H. E não dissestes que o ser é um espírito, e não é certo que esse espírito é Deus? F. Concedo-o. H. Mas afirmastes que todas as ideias que nós do exterior percepcionamos existem na mente que nos afeta. As ideias de mal-estar, por conseguinte, existem em Deus; por outras palavras: Deus sofre dor; há pois uma imperfeição na natureza divina, o que haveis de concordar que é de todo absurdo. Eis-vos pois apanhado numa contradição rematada. F. Não ponho em dúvida que Deus conhece ou tem entendimento de todas as coisas, que sabe entre outras o que seja a dor assim como toda sorte de sensação dolorosa, e o que é para as criaturas o sofrer a dor. Mas que Deus, além de conhecer as sensações dolorosas, e além de algumas vezes as causar em nós, seja ele próprio suscetível de sofrer as dores - isso positivamente o nego eu. Nós, espíritos limitados e dependentes, estamos sujeitos a impressões dos sentidos e aos efeitos que nos produz um agente exterior - os quais, realizando-se em contrário das nossas vontades, são às vezes dolorosos e desagradáveis. Mas Deus, que nenhum ser exterior pode jamais afetar; que nada percepciona pelos sentidos daquela maneira que sucede conosco; que tem um absoluto e independente querer; que é o causador de tudo; que não está arriscado a topar jamais em nenhuma contrariedade ou resistência - é bem evidente que nada pode sofrer, nem ser afetado por sensações penosas, nem até na verdade por sensações quaisquer. Achamo-nos, nós outros, encadeados a um corpo; quer dizer: temos percepções conexas com movimentos corpóreos. De acordo com as leis da natureza nossa, somos impressionados pelas alterações sobrevindas nos componentes nervosos do corpo sensível: o qual corpo sensível, se corretamente o encararmos, não é mais que um complexo de qualidades ou ideias que não têm existência que se distinga em algo do serem percepcionadas por uma mente; e por este feitio, o enlace das sensações com os movimentos corpóreos não é mais que a correspondência entre duas séries de ideias, ou coisas percepcionáveis de maneira imediata, consoante a ordem natural das coisas. Deus, porém, é um espírito isento de tais simpatias, de tais naturais conexões. Nenhuns movimentos corporais existem que acompanhem sensações de dor e de prazer que em sua mente se realizem. Conhecer tudo quanto é conhecível constitui sem dúvida uma perfeição; mas suportar, ou sofrer, ou sentir qualquer coisa pelos sentidos é ser imperfeito. O primeiro caso convém a Deus, mas não o segundo. Deus conhece, Deus tem ideias; as suas ideias, todavia, não lhe são levadas pelos sentidos, como sucede às nossas. O não fazerdes distinção alguma onde há uma diferença que é tão manifesta - leva-vos a imaginar que enxergais absurdeza onde não há de fato absurdeza alguma. H. Em tudo isso, todavia, não considerastes que está demonstrado que as quantidades de matéria existentes nos corpos são proporcionais aos respectivos pesos. A tal demonstração que se poderá opor? F. Vejamos primeiro como demonstrais esse ponto. H. Ponho como princípio que os momentos, ou seja, as quantidades de movimento dos corpos estão em razão direta e composta das velocidades que os animam e das quantidades de matéria que eles contêm. Segue-se daqui que, quando as velocidades são iguais, os momentos são diretamente proporcionais às quantidades de matéria de cada corpo. Mas mostra-nos a experiência que todos os corpos (desprezando as pequenas desigualdades que a resistência do ar introduz no caso) caem com igual velocidade; portanto, o movimento dos corpos que caem, e conseguintemente o peso deles, que é a causa ou o princípio de tal movimento, é proporcional à quantidade de matéria: que é o que me cumpria demonstrar. F. Põe como princípio evidente por si o de que a quantidade de movimento de qualquer corpo é proporcional à velocidade e à matéria: e servi-vos depois de tal princípio para provar determinada proposição, da qual inferis que a matéria existe. Não será isso argumentar em círculo? H. Na premissa só quero eu dizer que o movimento é proporcional à velocidade, juntamente com a extensão e a solidez. F. Porém, ainda no caso de admitirmos isso, não será lícito concluir daí a proporcionalidade entre o peso e a matéria, no sentido filosófico que à palavra dais, a não ser que tomeis como concedido que aquele substractum inteiramente incógnito (ou seja lá como lhe queirais chamar) é proporcional a essas qualidades sensíveis: pressuposto este que é uma petição de princípio. Que existem a grandeza e a solidez (ou a resistência) como algo percepcionado pelos sentidos, isso concedo-o da melhor vontade; e que o peso seja proporcional a tais qualidades é também uma coisa sobre que não disputo. Que, porém, tais qualidades sensíveis, enquanto por nós outros percepcionadas, ou que os poderes que produzem essas qualidades existam num substractum material, eis o que contesto e o que sustentais - e o que vós, Hilas, a despeito da demonstração que aí tentastes, não lograstes provar ainda. H. Não insistirei sobre este ponto. Mas cuidais que me persuadis, Filonous, de que a totalidade dos filósofos da natureza não fizeram em todo este tempo senão sonhar? Onde irão parar todas as hipóteses deles, todas as suas explicações sobre os fenômenos, as quais pressupõem que a matéria existe? F. Que entendeis vós por fenômenos? H. As aparências que percepciono pelos sentidos. F. E as aparências que percepcionamos pelos sentidos acaso não serão ideias? H. Já vos disse que o são, um centenar de vezes. F. Explicar os fenômenos significa mostrar, por conseguinte, como é que recebemos as ideias, de que maneira e consoante que ordem se imprimem elas nos nossos sentidos. Pois não será isto? H. Assim é, de fato. F. Pois bem: se puderdes provar que qualquer filósofo conseguiu realmente explicar jamais a produção de uma ideia na nossa mente graças ao auxílio da matéria - aceitarei para sempre a vossa doutrina, e passarei a tomar como írrito e nulo tudo quanto já disse em contrário dela; mas se tal não podeis, é inútil alegar a explicação dos fenômenos. Que num ser dotado de conhecimento e vontade haja o dom de produzir ou de exibir ideias, coisa é que facilmente se entende; mas que algo destituído de tais faculdades tenha em si a aptidão de produzir ideias, ou de afetar uma inteligência de qualquer maneira eis o que jamais conseguirei alcançar. Digo, pois, o seguinte: ainda no caso de se haver chegado a uma concepção positiva da matéria; ainda que conhecêssemos as qualidades dela e lográssemos de fato compreender-lhe a existência - bem longe a teríamos de nos explicar as coisas, por isso mesmo que é ela própria a mais inexplicável coisa deste mundo. Não se deve concluir daqui, todavia, que os filósofos da natureza não fizeram nada: pois que descobrem, observando e raciocinando sobre a conexão das ideias - leis e métodos que a natureza segue: o que é uma parte do conhecimento a um tempo útil e recreativa. H. Mas, enfim, suporemos que Deus quis enganar os homens? Pois imaginais que poderia ser seu intento o de induzir toda a gente a acreditar na matéria, se nada semelhante realmente houvesse? F. Não pretendeis, ao que me quer parecer, afirmar que cumpre que atribuamos a Deus, como seu autor, toda espécie de opinião epidêmica que do mero preconceito se originou, ou da paixão, ou da leviandade. Quando lhe atribuímos qualquer ditame, deve ser ou porque ele próprio no-lo descobriu a nós (pela revelação, sobrenaturalmente) ou porque se apresenta de tal modo óbvio às faculdades naturais que estruturou e nos deu, que se nos torna impossível recusar-lhe assenso. Mas onde a revelação, onde a evidência que nos compele a acreditarmos no existir da matéria? Mais ainda: onde está qualquer indício de que a matéria, considerada como distinta do que percepcionamos, seja tida como existente pelo gênero humano, ou sequer somente por alguém no mundo, a não ser apenas alguns filósofos, que aliás ignoram onde por aí vão dar? A pergunta que me acabais de fazer pressupõe que estes pontos foram tirados a limpo; tratai vós de os esclarecer primeiro, e então me obrigarei a responder de outro modo. Até lá, só vos direi o seguinte: não, não suponho de maneira alguma que haja Deus iludido a espécie humana. H. Mas a novidade, Filonous, a novidade! As novas opiniões é perigoso animá-las. Transtornam os espíritos das criaturas, e nunca se sabe onde poderão levar. F. Não me é possível imaginar o motivo por que é que a rejeição de determinada teoria, que não tem fundamento nem nos sentidos, nem na razão, nem na autoridade de Deus haverá de abalar a crença dos homens em opiniões fundamentadas em tudo isso. Que são perigosas as inovações no governo, na religião, e que devem ser contrariadas e descoroçoadas, isso de boa vontade o reconheço eu. Haverá porém uma razão idêntica para as contrariar no campo da filosofia? Fazer conhecer o que se desconhecia é uma inovação na ordem do conhecimento; e se fossem proibidas as inovações desse gênero, não se haveriam feito progressos de nota, nem nas artes, nem nas ciências. Isso, porém, de pleitear por novidades e por paradoxos, não é coisa que esteja no meu papel. Que as qualidades que percepcionamos não existem de fato nos objetos; que não devemos confiar e acreditar nos sentidos; que nos não é dado saber absolutamente nada acerca da natureza real das coisas, nem sequer o estar certo da existência delas; que as cores reais e os sons reais não passam de figuras desconhecidas e de movimentos de que se nada sabe; que em si mesmos os movimentos não são vagarosos nem rápidos; que existem nos corpos extensões absolutas, sem forma particular ou particular grandeza; que uma coisa estúpida, sem pensamento, inativa, pode exercer atuação sobre o que é espírito; que a mínima parcela de qualquer corpo contém partes extensas inumeráveis: isto sim, que são novidades, maneiras de ver verdadeiramente estranhas, contrárias ao juízo genuíno e incorrupto dos indivíduos que compõem a espécie humana; isto sim, que uma vez admitido como verdadeiro não pode deixar de enlear o espírito em dúvidas e dificuldades que não têm fim. E é contra isto, contra inovações deste gênero, que eu procuro defender o puro senso comum. Certo é que ao empreender tal coisa sou talvez obrigado a recorrer a rodeios, a maneiras de falar que não são comuns. Porém, quem bem compreender as noções que defendo verá que o que há nelas de mais singular se reduz afinal a tão só o seguinte: que há absoluta impossibilidade e contradição manifesta em supor a existência de um ser impensante sem ser percepcionado por uma mente. E se tal noção é estrambótica - é uma pura vergonha que o seja hoje, e num país de cristãos. H. Posponhamos as dificuldades das demais doutrinas. O vosso papel é o de defender a vossa. Ora, pode haver algo de maior evidência que ser certo que todas as coisas as mudais vós em ideias? Vós, que não tendes vergonha de me acusar de cético! É evidente; não há aí negá-lo. F. Compreendestes-me mal. Não é certo que mude as coisas em ideias, senão antes que as ideias as mudo eu em coisas: pois aos objetos imediatos de percepção, que para vós não passam de aparências das coisas, considero-os como as coisas reais. H. Coisas! Podeis pretender o que bem quiserdes; o incontestável, porém, é que nos deixais as formas vazias das coisas; não mais que o exterior, o que nos impressiona os sentidos. F. Isso a que chamais vazias formas, exterior das coisas, parecem-me a mim as próprias coisas. Nem são vazias e incompletas senão em consequência da suposição que fazeis de que é a matéria uma parte essencial de todas as coisas corporais. Ambos concordamos neste ponto: só se percepcionam as formas sensíveis; mas divergimos aqui: que vós considerais essas mesmas formas como sendo unicamente aparências vácuas, e eu as considero como as coisas reais. Em resumo: vós, Hilas, não vos fiais dos sentidos, e eu fio-me deles. H. Dizeis que vos fiais dos vossos sentidos; e parece que vos louvais de que estais com o vulgo pelo que diz respeito a esse ponto. Em vosso juízo, por conseguinte, a verdadeira natureza de cada coisa a descobrimos nós pelos sentidos. Se assim é, donde procedem as divergências? Por que não é sempre a mesma figura (e outro tanto se diria dos demais sensíveis) o que pelas várias maneiras se percepciona? Por que se emprega um microscópio quando se pretende descobrir com mais apuro a verdadeira natureza de certo corpo, se a podemos descobrir a olho nu? F. A falar com rigor, Hilas, o objeto que nós vemos não é o mesmo que tateamos; nem o que; percepcionamos pelo microscópio é o mesmo que percepcionamos a olho nu. Porém, se toda variação fosse considerada bastante para constituir nova espécie ou novo indivíduo, o número infindável e a confusão dos nomes tornaria a linguagem inteiramente impossível. Para evitar, por conseguinte, esse grave transtorno (assim como outros que facilmente se encontram com um nadinha de reflexão sobre este ponto), os homens combinam diversas ideias, que foram apreendidas por variados sentidos - ou pelo mesmo sentido em diferentes momentos, ou ainda em circunstâncias que são diversas, mas entre as quais se observou uma conexão natural pelo que toca à coexistência ou à sucessão -, as quais eles denotam com um único nome e consideram como sendo uma coisa única. Deste fato é que se deriva que, quando examino pelos outros sentidos certa coisa que anteriormente eu vi, não o faço para que mais bem conheça aquele mesmo objeto que percepcionei pela vista, pois que o objeto de um dos meus sentidos não é percepcionado pelos demais sentidos. E quando miro por um microscópio, não é para percepcionar de maneira mais clara o que já percepcionava pela simples vista, pois que o objeto percepcionado através dos vidros é de todo diferente daquele primeiro. O meu fim é somente, em qualquer dos casos, saber quais ideias estão entre si conexas; e quanto mais conhecemos a conexão das ideias, mais se diz que conhecemos a natureza das coisas. Que admira, por conseguinte, que as nossas ideias sejam assim variáveis, e que não sejam as mesmas, em circunstâncias diversas, as aparências que afetam os sentidos de um homem? Não se deve portanto concluir daqui que nos não devemos fiar dos nossos sentidos, ou que eles são contraditórios consigo próprios, nem tampouco contraditórios com qualquer outra coisa, a não ser que admitíssemos como verdade pura essa tal preconcebida noção que tendes de não sei que natureza que é real e estável, que é imperceptível e simples, e que seria designada por cada um dos nomes: preconceito que parece dever a origem a uma errada interpretação do falar dos homens, que se exprimem sobre as diferentes e distintas ideias como unidas numa coisa pela nossa mente. E dá isto motivo a que se gere em nós a suspeita de que erradas concepções dos filósofos podem ser imputadas a essa mesma fonte: já que se abalançam a construir sistemas, não tanto sobre noções como sobre só palavras, as quais são formadas pelo vulgar das gentes para comodidade e presteza do comum da vida, sem olhar às necessidades da especulação filosófica. H. Parece-me que compreendo o que pretendeis dizer. F. As ideias que pelos sentidos percepcionamos - na opinião que tendes - não são coisas reais; são apenas imagens, ou cópias das coisas. O que daqui caberia inferir é que o saber é apenas real na precisa medida em que as nossas ideias são fiéis representações dos originais respectivos. Porém, como esses supostos originais das ideias são em si mesmos desconhecidos - impossível se torna sabermos nós o quanta semelhança têm as ideias com eles, ou até se chegam a ter alguma. Impossível portanto o cobrar certeza de possuirmos jamais um conhecer real. Além disso, como sucede que as ideias perpetuamente variam, sem que mudem as coisas supostamente reais, temos de tirar como conclusão necessária que não podem ser todas fiéis cópias; ou que, se algumas o são, sem o serem outras, é impossível distinguir as infiéis das fiéis. O que nos abisma em incerteza muito mais funda ainda. Além disso, quando bem consideramos este ponto em questão, não logramos conceber como será que uma ideia (ou seja o que for que se assemelhe a uma ideia) pode existir em absoluto sem ser na mente; nem, por conseguinte, pela vossa maneira de ver as coisas, como há na natureza qualquer coisa real. E o resultado derradeiro a que tudo isto impulsa é que nos achamos lançados no mais cabal ceticismo, sem a mais pequenina esperança. E agora permiti-me que vos eu pergunte, em primeiro lugar, se a verdadeira origem de tal ceticismo não proveio do fato de terdes referido as ideias a certas substâncias absolutamente existentes, impercepcionadas, que estariam para as ideias como os originais para as cópias? Em segundo lugar, se estais acaso informado - por informação dos sentidos, ou por informação da razão - da existência real desses originais incógnitos? E, se não estais informado, se não será absurdeza o supor que eles existam? Em terceiro lugar, se vos parece de fato, bem examinado o problema, que se concebe ou se diz alguma coisa distinta quando se fala em existência absoluta e externa de quaisquer substâncias que não percepcionam? E por último, se, consideradas as premissas deste problema, não será o de seguirmos a natureza o mais avisado dos procedimentos, bem como o de nos fiarmos nos nossos sentidos; e, deixando de parte toda especulação ansiosa acerca de naturezas ou de substâncias incógnitas, admitirmos com o vulgo que as coisas reais são aquelas mesmas que se percepcionam? H. O papel de respondedor não me apetece agora. Prefiro saber o que me oporeis ao seguinte. Ora, dizei-me: os objetos que percepciona um homem não são perceptíveis de maneira análoga por todos os indivíduos que se acharem presentes? Se houvesse aqui uma centena de homens, veriam de certo o jardim como eu, e as flores, e as árvores; mas não seriam afetados da mesma maneira pelas diferentes ideias que na imaginação eu formo. Não estabelece isto uma diferença nítida entre os objetos da primeira e os da segunda espécie? F. Reconheço que sim. Não neguei nunca a diferença que existe entre os objetos dos sentidos e os da imaginação. Mas que inferir daí? Não quereis dizer que os objetos sensíveis existem sem serem percepcionados, lá porque muitas pessoas os percepcionam. H. Reconheço que esta objeção me não serve de nada. Conduziu-me, porém, a outra. Não é vossa opinião que pelos sentidos nós percepcionamos unicamente as ideias existentes na nossa mente? F. É. H. Mas a mesma ideia que tenho eu na mente não pode encontrar-se também na vossa, ou em outra qualquer. Não se segue então dos vossos princípios que não podem duas pessoas ver a mesma coisa? E não é isto um absurdo? F. Se aí a palavra mesma está tomada por vós na sua acepção vulgar, é certo que diferentes pessoas são capazes de percepcionar as mesmas coisas, sem haver nisso contradição com os meus princípios; ou; por outra: é certo que a mesma coisa, ou ideia, pode ter existência em diversas mentes. Dá-se aos vocábulos um significado arbitrário; e pois que se emprega essa palavra mesmo nos casos em que se não percepciona variedade ou diferença, e como não pretendo de maneira alguma alterar as percepções que os homens têm, segue-se que, dado que até hoje se tem dito sempre: vários indivíduos viram a mesma coisa, podemos continuar em ocasiões semelhantes a fazer emprego desta dita frase, sem faltarmos por aí à propriedade da língua nem tampouco nos desviarmos da verdade das coisas. Se, porém, empregarmos a palavra mesmo na acepção que lhe é dada pelos filósofos - os quais pretendem, como se sabe, a uma noção abstrata da identidade -, nesse caso, Hilas, será consoante as definições que eles atribuírem a tal noção (por isso que não chegaram ainda a acordo sobre o em que consiste, afinal de contas, essa tal filosófica identidade) que será possível ou não possível percepcionarem muitas pessoas a mesma coisa. Mas que aos filósofos lhes pareça bem o chamarem a uma coisa a mesma, ou não - afigura-se-me ser algo que bem pouco importa. Imaginemos vários homens que se acham juntos, dotados das mesmas capacidades mentais, donde resulta que os seus sentidos os afetam a todos de maneira idêntica; e suponhamo-los destituídos do dom da linguagem; coincidiriam, sem dúvida, nas percepções que tivessem. No entanto, seria possível que alguns desses homens, quando conhecessem o uso da fala, e atentando na uniformidade do que percepcionavam, preferissem chamar-lhes a mesma coisa; ao passo que outros, porque fizessem especialmente-reparo na diversidade das pessoas que percepcionavam, escolheriam a designação de diferentes coisas. Mas quem se não dá conta de que tal divergência não passaria afinal de uma questão de palavras - a saber: se ao que foi percepcionado por pessoas diferentes será lícito aplicar a palavra mesmo? Ou então, suponde uma casa, cujas paredes e frontaria se mantêm como dantes, ao passo que se demoliram os aposentos dela, outros se construindo no lugar dos que estavam; e que vós dizíeis que era a mesma casa, ao passo que eu afirmava que não era a mesma: deixaríamos por isso de estar de acordo no que pensássemos da casa considerada em si própria? E toda a diferença não consistiria num som? Se alegásseis que diferíamos nas noções que tínhamos, porque vós acrescentáveis à ideia da casa a ideia simples e abstrata de identidade, o que eu não fazia - respondia-vos que não sei que pretendeis dizer-nos com essa ideia abstrata de identidade, e que quisera que examinásseis o vosso pensar, a fim de vos assegurardes de que vos entendeis a vós mesmo... Então, Hilas? Que silêncio é esse? Não estareis acaso convencido ainda de que se pode discutir sobre o diverso e o idêntico sem que haja nas opiniões uma real divergência, se abstrairmos dos nomes? Notai ainda o seguinte: que se admita ou não o existir da matéria, o caso vem a ser precisamente o mesmo no que respeita ao ponto que se discute agora. Com efeito, os próprios materialistas concordam também em que aquilo que percepcionamos de maneira imediata - são as nossas ideias. Essa vossa objeção, por conseguinte (a de que não podem dois homens ver a mesma coisa), tanto vale contra eles como contra mim. H. Mas eles supõem um arquétipo externo, ao qual referem às diversas ideias: pelo que lhes é lícito afirmar de verdade que têm a percepção de uma mesma coisa. F. Mas (não mencionando agora sequer o fato de que já tínheis abandonado esses tais arquétipos) podeis ainda, pelos meus princípios, supor a existência de um arquétipo externo - externo, digo, à vossa própria mente, se bem que nos cumpra o supor-lhe existência na mente que abarca as coisas todas; e para o que exige a identidade serve isto tão bem como o existir de fora de qualquer mente. E vós próprio não direis, tenho disso a certeza, que é menos inteligível este meu modo de ver. H. Convencestes-me com a maior clareza de que se não topa dificuldade, afinal de contas, neste ponto de agora; ou de que, se de fato ela existe, existe igualmente para as duas teses. F. Ora, aquilo que por igual é válido contra duas opiniões contraditórias não pode ser prova contra qualquer das duas. H. Reconheço que sim. Mas, Filonous, ao considerar a substância do que vós aduzis ao dardes o combate ao ceticismo, vejo que não passa, afinal de contas, do seguinte: temos a certeza de que realmente vemos, de que ouvimos, de que tateamos; numa palavra: de que somos afetados por impressões sensíveis. F. E que necessidade há aí de qualquer outra coisa? Vejo esta cereja; sinto-a pelo tato; saboreio o seu gosto; e estou certo de que o nada não pode nunca ser visto, nem palpado, nem saboreado: a cereja, portanto, é real. Suprimi agora as sensações de moleza, de umidade, de vermelhidão e de acidez: suprimireis a cereja. Como não é um ser distinto das sensações - uma cereja, digo eu, é apenas um acervo de impressões sensíveis, ou de ideias percepcionadas pelos sentidos vários; ideias que são unidas numa coisa única (ou a que foi conferido um único nome) pela nossa mente, em virtude de observarmos que entre si se acompanham. Assim, quando o paladar tem em nós a impressão de um determinado sabor particular - a vista é impressionada por uma cor vermelha, o tato pela rotundidade e pela sensação de moleza, etc., etc. Posto isto, sempre que eu vejo, e tateio, e gosto, de umas tantas maneiras determinadas, tenho a certeza de que a cereja existe, ou de que ela é real; não sendo nada a realidade dela (em meu parecer) se nós abstrairmos das sensações. Se porém pela palavra cereja pretendeis significar uma natureza incógnita, uma natureza distinta destas qualidades sensíveis, e se acaso entendeis pela sua existência uma qualquer coisa que se diferencia do fato de ser ela percepcionada - então sustento que nem eu nem vós, nem outra pessoa, qualquer que ela seja, podemos ter a certeza de que a cereja existe. H. Mas que diríeis vós se eu agora aduzisse, contra o existir numa mente das coisas sensíveis, as mesmas razões que vós alegastes contra a possibilidade da sua existência em um substractum material? F. Quando me derdes as vossas razões, então ouvireis o que eu tenho a opor-lhes. H. É extensa a mente ou é inextensa? F. É inextensa, sem dúvida alguma. H. Dizeis que as coisas que percepcionais têm existência na vossa mente? F. Digo que sim. H. Por outro lado, não vos ouvi falar de impressões sensíveis? F. É bem possível. H. Pois agora explicai-me - ó Filonous! - como é que há lugar na vossa mente para que lá existam todas estas árvores, todas estas casas. Pois dar-se-á o caso de que as coisas extensas podem estar contidas no que é inextenso? e é imaginável que se façam impressões numa coisa destituída de solidez? Não direis que os objetos estão na vossa mente assim como os livros no vosso escritório; nem tampouco que as coisas se imprimem nela como a forma de um selo se imprime em cera. Em que sentido, por conseguinte, devemos nós entender tais expressões? Explicai-me isto, se vos é possível fazê-lo: e em seguida poderei eu responder a todas as perguntas que me fiz estes no que respeita à existência do meu substrato. F. Reparai bem: quando falo dos objetos existentes na mente, ou então como impressos nos nossos sentidos, releva que se não entendam as minhas frases no sentido grosseiro e literal, como ao dizer-se que um corpo está em determinado lugar, ou então que na cera se imprimiu um selo. Não pretendo mais que significar, com isso, que a mente os compreende e os percepciona; e que do exterior é que é ela afetada, quer dizer: por alguma existência distinta dela. Eis a maneira como dou solução a essa dificuldade que apresentastes; e gostaria de saber como terá ela préstimo, Hilas, para tornar inteligível a vossa tese de um substractum material impercepcionante. H. Não vejo não - se está nisso tudo -, a utilidade que dela posso eu tirar. Não haverá aí, todavia, um abuso de linguagem da vossa parte? F. De maneira alguma. Só fiz o autorizado pelo uso comum - o qual constitui, como vós sabeis, a regra do idioma: pois é correntíssimo entre os filósofos o falar dos objetos imediatos do intelecto como de coisas que existem nas nossas mentes. Aliás, nada há aí que não esteja conforme com o processo de analogia geral da linguagem, por isso que à maioria das operações mentais é costume designá-las por meio de termos que se foram tomar às coisas sensíveis, como sucede com compreender, com refletir, com discorrer, palavras que, aplicadas à mente, releva que não sejam tomadas nunca no seu significado original e grosseiro. H. Sinto-me satisfeito quanto a este ponto. No entanto, fica-nos ainda um considerável óbice, que não sei na verdade como lograreis superar. E é de tal monta que, ainda que resolvêsseis os outros todos, se não fordes capaz de dar saída a este não podereis alimentar a mais miúda esperança de me tornar um prosélito das vossas teses. F. Pois dai-me a saber que dificuldade é essa. H. A narrativa da criação das Escrituras parece-me de todo inconciliável com essas opiniões que defendeis. Fala-nos Moisés de uma Criação. Criação de quê? Criação de ideias? Não, certamente; mas criação de coisas - de coisas reais; criação de substâncias corporais e sólidas. Ponde os vossos princípios a concordar com isto, e talvez eu acabe por concordar convosco. F. A narrativa de Moisés faz menção do Sol, da Lua, das estrelas, da terra e do mar, das plantas e dos animais. Que todas estas coisas realmente existam, e que no início de tudo as tenha Deus criado, eis aí um asserto que eu não ponho em dúvida. Se entendeis por ideias fantasias da mente, não mais do que ficções - então aquelas coisas não são ideias; mas se, pelo contrário, significais por ideias os objetos imediatos do entendimento; se denotais por esse termo as coisas sensíveis que não podem existir impercepcionadas, fora da mente - então aquelas coisas são de fato ideias. Mas em suma: que lhes chameis ideias ou que lhes não chameis ideias é coisa afinal que bem pouco importa. A única diferença está aí num nome. Na conversação comum, os objetos dos nossos sentidos não costumam receber o nome de ideias, e sim o de coisas. Continuai, pois, a designá-los assim; e, contanto que lhes não atribuais aí uma existência exterior absoluta - por uma simples palavra não discutirei.convosco. Reconheço, por conseguinte, que a Criação foi de fato uma criação de coisas - de coisas reais. Não é isto contraditório com os meus princípios, como sai com evidência do que eu disse agora e como ainda sem isso vos pareceria óbvio se não houvésseis esquecido o que se dissera atrás. Mas, quanto às substâncias corporais e sólidas, o que eu desejo é que vos digneis mostrar-me onde faz delas Moisés qualquer menção; e se fossem acaso mencionadas por ele, ou por qualquer outro dos autores inspirados, a vós incumbiria ministrar a prova de que não foram tomadas na acepção vulgar de coisas que se apreendem pelos sentidos, mas sim no significado que lhe dão os filósofos, ou seja, no de matéria, de quididade incógnita, de existência absoluta. Desde o momento em que demonstreis estes pontos (mas só desde então), podereis trazer ao nosso debate o argumento da autoridade de Moisés. H. É vão discutir sobre tão clara coisa. Contento-me com remetê-la à vossa consciência. Não vos basta o existir certa peculiar discordância entre a narrativa de Moisés e as vossas teses? F. Se todas as interpretações possíveis do primeiro capítulo do Gênesis podem ser concebidas como tão compatíveis com os meus princípios como com quaisquer outros - essa peculiar discordância não existe de fato. Ora, não há interpretação alguma que se não possa conceber igualmente bem quando se tenham as crenças que eu próprio tenho. Com efeito, além dos espíritos, tudo que concebeis são afinal ideias; ora, a existência das ideias não a nego eu. Nem vós pretendeis, certamente, que as ideias existam sem ser no espírito. H. Dizei-me o sentido em que entendeis a coisa. F. Imagino que assistia à criação do mundo. Veria as coisas assumirem ser - isto é: tomarem-se perceptíveis - na ordem descrita pelo historiador sagrado. Cri sempre anteriormente na narrativa mosaica, e não acho agora alteração alguma nessa mesma maneira como nela cria. Quando se diz das coisas que elas começam a existir, ou então que acabam, isso não se entende pelo que respeita a Deus, e sim unicamente às criaturas. Deus conhece-os eternamente, aos objetos; ou então (o que tanto monta) têm na sua mente uma existência eterna; quando as coisas, porém, anteriormente imperceptíveis para as criaturas se tornaram enfim perceptíveis para elas, em virtude de um decreto da Divindade, diz-se então que principiaram a ter, para as mentes criadas, um existir relativo. Quando leio, por conseguinte, a narrativa mosaica da Criação, entendo que as partes de que se compõe o mundo se tornaram gradualmente perceptíveis para os espíritos finitos que são dotados das faculdades apropriadas; de maneira que aqueles que então existiam tiveram realmente essas percepções. Eis o sentido literal e óbvio que me sugerem as palavras da Escritura Santa - no qual se não inclui a menor menção, o menor pensamento de qualquer substractum, ou instrumento, ou ocasião, ou existência absoluta. E não duvido de que depois de exame se achará que a maioria da gente simples, dos homens ingênuos, que creem também na criação do mundo, não pensou em tais coisas mais do que eu próprio. Quanto ao sentido metafísico que na narrativa achais, a vós somente competirá dizê-lo. H. Mas, Filonous, parece não vos dardes conta de que atribuís assim às várias coisas criadas, quando do seu começo, uma existência não mais do que relativa, e portanto hipotética; quero eu dizer: dependente da suposição que vós aí fizestes de que havia homens para as percepcionarem, condição da atualidade de um absoluto existir, onde pudesse rematar a criação do mundo. Não é portanto completamente impossível, dentro da vossa tese, que a criação de criaturas inanimadas tivesse precedido a criação do homem? E não é isto contrário à narração mosaica? F. A isso respondo, em primeiro lugar, que podiam as coisas que Deus criou haver começado a ter existência nas mentes de outras inteligências criadas, que não as do homem. Portanto, não podereis provar contradição alguma entre a narrativa de Moisés e as minhas teses, a não ser que consigais demonstrar primeiro a não existência de espécie alguma de espíritos criados e finitos, anterior à existência do próprio homem. Em segundo lugar, se nós concebermos a criação do mundo do modo como conceberíamos que neste mesmo momento, em qualquer deserto e sem alguém presente, plantas e animais de toda sorte fossem produzidos por um poder invisível, direi que tal modo de a explicar ou pensar é de todo compatível com os meus princípios, pois que não nos obriga a abandonar coisa alguma, seja ela sensível ou imaginável; que esta interpretação se coaduna bem com as noções da humanidade naturais e incorruptas; que manifesta a dependência em que para com Deus estão as coisas; e que tem, por conseguinte, todos os bons efeitos que este importante artigo da nossa fé é capaz de exercer para nos tornar modestos, reconhecidos, obedientes a Deus. Além disso, digo que nesta ingênua concepção das coisas, se acaso a desenredarmos do que são só palavras, nenhuma noção poderá ser achada do que chamais atualidade de uma existência absoluta. É verdade que com estes termos podeis vós levantar uma polvo rosa, e prolongar o debate sem objetivo algum; mas peço-vos que olheis em perfeita calma para dentro do próprio pensamento vosso, e que me digais se não será de fato uma algaravia inútil e ininteligível. H. Não lhe associo, confesso, uma noção muito clara. Mas que direis vós ao seguinte: Fazeis consistir - pois não é assim? - a existência das coisas sensíveis no fato de estarem elas numa mente. Ora, não estão todas as coisas na mente de Deus, eternamente? E não devem, por conseguinte, existir de toda a eternidade, segundo vós? E como é que aquilo que era eterno pode ser criado num certo instante? Há lá nada mais claro, mais bem deduzido do que este argumento? F. Mas não sois também da opinião de que Deus, de toda a eternidade, conheceu todas as coisas? H. Sou. F. Portanto, tiveram sempre existência no intelecto divino. H. Reconheço que sim. F. Confessais por conseguinte que nada é novo, ou que nada começa a existir, com respeito à mente de Deus. Neste ponto concordamos os dois. H. Que faremos então da criação? F. Pois não poderemos considerá-la como tendo-se realizado unicamente com respeito aos espíritos finitos, de maneira que se pode dizer propriamente que as coisas, em relação a nós, começaram a existir - ou foram criadas - quando Deus decretou que se tornassem perceptíveis às criaturas dotadas de inteligência, pela ordem e modo que estabeleceu então, e a que chamamos "leis da natureza"? Podereis considerar a isto que digo - já que assim vos agrada - uma "existência relativa" ou "hipotética". Porém, desde que nos ministra tal existência o sentido mais natural e óbvio - e o mais literal - da história mosaica da Criação; desde que na verdade satisfaz, de fato, aos fins religiosos desse grande artigo de fé; numa palavra: desde que nenhum outro sentido ou interpretação qualquer vos é possível apontar em lugar dela, por que haveremos nós de a rejeitar? Para condescender, acaso, com a ridícula mania do ceticismo, que põe despropósito e ininteligibilidade em tudo? Por minha parte, estou certo de que não direis que é para glória de Deus. Pois que, ainda quando nós admitíssemos como coisa possível e concebível que o mundo corpóreo tem subsistência absoluta, extrínseca à mente do mesmo Deus, assim como às mentes dos espíritos criados, como poderia isso pôr em realce a imensidão e a onisciência da Divindade, ou a dependência imediata e necessária de todas as coisas para com ela? Mais ainda: não vos parece que seria, antes, uma derrogação a tais atributos? H. Ora, pelo que respeita a esse tal decreto em que Deus ordenou a perceptibilidade das coisas, não é evidente que de duas uma: ou Deus o executou desde todo o eterno - ou, então, desde um momento determinado do tempo começou a querer o que não quisera ainda de maneira atual ou efetiva, mas tão somente se propusera querer? Se for verdadeira a primeira hipótese, não teria podido haver Criação, ou começo da existência das coisas finitas; se o for a segunda, teremos de reconhecer que à Divindade alguma coisa nova lhe sobreveio - o que implica mudança: e esta argui uma imperfeição. F. Considerai bem no que estais fazendo. Pois não é óbvio que a objeção que alegais é algo que é válido de maneira igual contra todos os sentidos da Criação? Mais ainda: contra qualquer ato da Divindade que por meio das luzes naturais nos seja possível descobrir? De tais atos, nenhum poderá ser por nós concebido senão como efetuando-se no tempo, como sendo algo que tem princípio. É Deus um ser de transcendentes, de ilimitadas perfeições: e para espíritos finitos, por conseguinte, é a sua natureza incompreensível. Por isso, não é lícito esperar que qualquer homem, seja ele materialista ou imaterialista, possa ter noções exatamente justas pelo que diz respeito à Divindade e aos seus atributos e modos de ação. Se, portanto, quereis inferir algo contra o meu parecer, não devereis tirar a objeção do inadequado das nossas concepções acerca da natureza da Divindade (o que é inevitável em qualquer sistema), senão que sim da negação da matéria, acerca da qual eu não vi referência - direta ou indireta - naquilo que agora me objetastes. H. Reconheço que as dificuldades que vos incumbe esclarecer são só aquelas que se originam da não existência da matéria e que são peculiares a tal doutrina. Até esse ponto ides vós muito bem: mas não me posso decidir a crer que não haja aí contradição relevante entre as vossas teorias e a Criação - se bem que não enxergo, a falar verdade, onde ela se encontra. F. Mas que quereis vós então? Pois acaso não admito eu um duplo estado de todas as coisas, a saber: um etípico, ou natural, ao passo que o outro é arquetípico e eterno? Aquele primeiro foi criado no tempo; e este segundo desde todo o sempre que existiu no espírito de Deus. Não está isto de perfeito acordo com as noções correntes entre os teólogos? Ou é necessária qualquer coisa mais para podermos conceber a Criação? Supondes porém uma contradição relevante, se bem que não saibais onde é que ela está. Para dissipar de todo, no presente caso, a possibilidade de qualquer escrúpulo - repara i no seguinte. Ou não sois capaz de conceber a Criação em qualquer hipótese que se possa dar - e nesse caso não haverá motivo para que tenhais em má conta, ou para que chameis a juízo a minha particular opinião no assunto; ou sois de fato capaz de tal - e nesse caso, por que não concebê-la pelos meus princípios, que vos não privam de nada do que é concebível? Foi-vos deixado em todo o tempo o uso dos sentidos mais livre e amplo, bem como da imaginação e da razão. Tudo que anteriormente vos era dado apreender - imediata ou mediatamente - pelos sentidos, ou pelo raciocínio a partir dos sentidos; tudo que percepcionáveis, imagináveis, compreendíeis - tudo vos fica do mesmo modo. Por conseguinte, se a noção que tínheis da Criação, tomando como fundamento quaisquer outros princípios, era para vós inteligível - continuará a sê-lo pelos meus princípios; e se acaso o não é, tenho-a como não sendo noção alguma, e nada se perde com deitá-la à margem. E, na verdade, parece-me evidente que a suposição da matéria (ou seja, a de uma coisa que é de todo incógnita, e inconcebível de todo) não nos pode ajudar a conceber coisa alguma. E será desnecessário o demonstrar-vos que, se a hipótese de que a matéria existe não torna concebível a Criação, o ser inconcebível a Criação sem ela não é uma objeção contra o seu não existir. H. Quase me convencestes, confesso, neste ponto da Criação. F. Gostaria eu de saber por que não de todo. Existe contradição, dizeis vós, entre a história mosaica e o imaterialismo; todavia não descobristes ainda onde a contradição se encontra. Parece-vos razoável, meu caro Hilas? Pois é de esperar, realmente, que dê eu solução a uma dificuldade qualquer, continuando a ignorar que dificuldade seja? Porém (pondo tudo isso de parte, neste lance em que estamos), não nos poderíamos persuadir de que estais convencido de que não há afinal contradição alguma entre as opiniões aceitas pelos materialistas e os textos dos livros de inspiração divina? H. E estou, de fato. F. Quanto à parte histórica das Escrituras, devemos nós entendê-la num sentido simples - num sentido óbvio - ou num sentido metafísico e extraordinário? H. Sem dúvida alguma que no sentido simples. F. Ora, nos passos em que Moisés se refere às ervas, e à terra, e à água, etc., etc., como sendo coisas que Deus criou, não sois da opinião que os objetos sensíveis comumente designados por tais palavras são sugeridos a qualquer leitor que não tenha pretensões a ser filósofo? H. Não posso deixar de o acreditar. F. E não é certo que na doutrina dos materialistas se nega a existência real das ideias, ou coisas percepcionadas pelos sentidos? H. Isso reconheci eu já. F. Por conseguinte, a Criação, segundo eles, não foi a criação de coisas sensíveis, de mera existência relativa, mas sim a de umas naturezas desconhecidas que têm uma existência absoluta e em que poderia terminar a Criação. H. Com efeito. F. Torna-se evidente, por isso mesmo, que aqueles que afirmam a matéria destroem o sentido singelo e óbvio do relato de Moisés, com o qual as opiniões dos materialistas são de todo em todo incompatíveis; e em vez dele impingem-nos um não sei que, um algo igualmente ininteligível para eles próprios e para mim. H. Não vos posso contradizer aí. F. Fala-nos Moisés de uma Criação. Mas criação de quê? De quididades desconhecidas, de ocasiões, de substratos? Não, sem dúvida alguma; mas de coisas acessíveis aos sentidos. Cumpre que concilieis isto com as vossas teorias, se esperais que com elas me reconcilie eu próprio. H. Ao que estou vendo podeis atacar-me com as minhas próprias armas. F. E depois, pelo que toca à "existência absoluta": há nada mais inane do que tal noção? É algo tão abstrato e ininteligível, que francamente confessastes já que não sois capaz de a conceber, e muito menos de alguma coisa explicar por ela. Mas, dando de barato que a matéria existe, e que a noção de existência absoluta seja algo tão claro como a própria luz: soube-se acaso alguma vez que aumentasse a credibilidade da Criação? Mais ainda: não ministrou ela aos ateístas e aos infiéis de todos os séculos os mais plausíveis dos argumentos com que impugnaram a Criação? Que uma substância corpórea, com existência absoluta, sem as mentes dos espíritos, pudesse ter sido produzida do nada pela mera vontade de um Espírito, foi tido como tão fora de toda razão, como tão impossível, como tão absurdo, que não só os mais célebres entre os autores antigos, mas até modernos e cristãos, pensaram a matéria como coeterna com Deus. Enfeixai agora quanto fica dito, e julgai se o materialismo predispõe os homens a receberem a crença na criação das coisas. H. Reconheço que pendo para a negativa. Esta contradita quanto à Criação é a última das que podiam ocorrer-me ao espírito; e cumpre-me convir em que lhe destes resposta, de maneira tão satisfatória como a tudo mais. Só resta agora que logreis vencer uma inexplicável repugnância que encontro em mim a respeito das teses que defendeis. F. Quando um homem é impelido, sem que ele saiba por que, para certa solução de determinado problema, pensais possível que seja outra coisa senão o resultado do preconceito, o qual nunca deixa de ser companheiro das doutrinas velhas e radicadas? E não posso negar, a tal propósito, que a crença na realidade da matéria tem gozado de preferência sobre a opinião contrária no meio das pessoas instruídas. H. Parece que sim, confesso-o. F. Ora, para equilibrar esse peso do preconceito, lancemos no outro prato da balança as vantagens da crença no imaterialismo, tanto por aquilo que à religião concerne como pelo que diz respeito à ciência humana. A existência de um Deus e a incorruptibilidade da alma, esses dois grandes artigos da religião, não resultam provados com a mais clara evidência? Quando digo aí "a existência de um Deus", eu não pretendo significar com isso uma causa obscura e geral das coisas, da qual não temos concepção alguma - senão sim que Deus no sentido próprio de tal palavra: um ser cuja espiritualidade, onipresença, providência, onisciência, poder infinito, bondade são coisas tão bem manifestas como o é a existência dos objetos sensíveis, dos quais (sem embargo das argumentações falazes e dos afetados escrúpulos da gente cética) não temos mais razão para duvidar do que para duvidar da existência do nosso ser. Depois, por aquilo que concerne à ciência humana: no campo da filosofa natural, a que complicações, a que obscuridades, a que contradições impeliu os homens a crença na realidade da matéria! Já nada dizendo sobre as discussões inúmeras que se levantam acerca da sua extensão, continuidade, homogeneidade, peso, divisibilidade, etc. - não têm eles pretendido explicar as coisas pela ação de corpos sobre outros corpos, conformemente às leis do movimento? E, no entanto, está em sua mão o compreender de fato como é que um corpo pode mover outro corpo? E ainda, admitindo que a noção de coisa inerte não é fácil de conciliar com a noção de causa, e que não há outrossim dificuldade alguma em conceber de que maneira é que um acidente é suscetível de passar de um corpo a outro, puderam conseguir a produção mecânica de um corpo animal ou vegetal com o seu acervo de teorias forçadas e as suas extravagantes suposições? Por meio das leis do movimento podem eles acaso explicar os sons, os sabores, os cheiros, ou então o curso regular das coisas? Dizei-me se acaso pelos princípios físicos se explicou o concurso, o harmonioso plano das partes até mais inconsideráveis do universo? E, por outro lado, se abandonarmos a matéria e as causas corpóreas, para admitirmos a eficiência de uma Mente perfeita, não se tomam fáceis e inteligíveis todos os efeitos da natureza? Se os fenômenos são só ideias, notai bem que Deus é espírito, mas que a matéria, por seu lado, é um ser ininteligente e impercepcionante. Se revelam um poder ilimitado na sua causa - vede que Deus é ativo e onipotente, ao passo que a matéria é uma massa inerte. Se a ordem, a regularidade, a utilidade que neles se descobrem não podem ser admiradas em bastante grau - Deus é infinitamente sábio e previdente, e a matéria, pelo contrário, destituída de todo desígnio e de todo plano. Eis grandes vantagens pelo que respeita à física. Deixo de lado a consideração de que os homens, quando só concebem uma Divindade longínqua, propendem à negligência nas ações morais, ao passo que se tornariam muito mais cautelosos se acaso a considerassem como imediatamente presente e como tendo atuação sobre as suas mentes sem ser por intermédio da tal matéria, ou causas segundas e impensantes. Analogamente na metafísica. Quantas dificuldades sobre a entidade em abstrato, sobre as formas substanciais, sobre os princípios hilárquicos, sobre as naturezas plásticas, sobre as substâncias e os acidentes, sobre o princípio de individuação, sobre a possibilidade de a matéria pensar, sobre a origem das ideias, sobre como é possível a atuação recíproca de duas substâncias entre si independentes e com tão grande diferença desde uma à outra como são o espírito e a matéria - quantas dificuldades, ia eu dizendo, quantas perquisições que não têm fim acerca desses pontos e de mil outros análogos nos é dado evitar pela simples hipótese de que só há os espíritos e as ideias! A própria ciência da matemática se toma mais clara e consideravelmente mais fácil com só desembaraçarmos o seu caminho da existência absoluta das coisas extensas - já que; nela, os paradoxos que são mais perturbantes, as mais intrincadas das especulações são aquelas que tiram a sua origem da infinita divisibilidade da extensão finita - a qual depende daquele pressuposto. Que necessidades temos, porém de insistir nas ciências particulares? Pois não é a oposição de toda ciência - a mania dos antigos e modernos céticos - inteiramente construída sobre esse alicerce? E podeis aduzir um só argumento em contra da realidade das coisas corpóreas, ou a favor da profunda e confessada ignorância a respeito da natureza dessas mesmas coisas, que não suponha consistir a realidade delas na sua absoluta existência exterior? A essa hipótese é que devem seu peso aquelas objeções que é costume tirar da mudança de cor do pescoço de um pombo ou da aparência angulosa que tem o remo na água. Mas estas objeções, e outras análogas, todas imediatamente se desvanecem se nós desistirmos de manter a existência de originais absolutos e exteriores, e colocarmos nas ideias a realidade das coisas - ideias flutuantes e variáveis, sem dúvida alguma, mas que não variam, no entanto, ao acaso, e sim numa ordem fixa, que é a da natureza. Nisso, com efeito, consiste a constância e verdade das coisas, que nos dá a segurança no tráfego da vida, e que distingue aquilo que é real das visões irregulares da fantasia. H. Concordo com tudo o que acabais de dizer-me, e confesso que nada há que mais pudesse inclinar-me a adotar a doutrina que me tendes exposto do que as vantagens que vejo que lhe estão ligadas. Sou por natureza um preguiçoso, e o conhecimento ficaria simplificadíssimo. Quantas dúvidas, quantas hipóteses, quantos labirintos recreatórios, quantos terreiros de disputação poderiam de fato ser evitados pela simples noção do imaterialismo! F. Resta alguma coisa por fazer ainda? Prometestes (como estareis lembrado) adotar a opinião que depois de exame se revelasse como mais acorde com o senso comum e como mais distanciada do ceticismo. Ora; tal opinião (como já confessastes) é a que nega a matéria, ou existência absoluta das coisas corpóreas. Mas não é tudo ainda: demonstramos tal opinião por diferentes modos, demo-nos a considerá-la sob diversas luzes, seguimo-la através das consequências várias, desfizemos as objeções que lhe é possível opor. Pode haver maior prova de que é verdadeira? Ou será porventura coisa possível que tenha todas as marcas de uma opinião verdadeira, e que seja falsa? H. Por enquanto, declaro-me satisfeito sem a menor reserva. Mas que segurança me é possível ter de que continuarei de futuro a concordar convosco, a dar à vossa tese a mesma inteira anuência, e que não virá a surgir deste momento em diante qualquer outra objeção ou dificuldade nova, em que não pensei por agora? F. Dizei-me, Hilas: nos outros casos, demonstrado com evidência certo ponto, usais sobrestar na vossa adesão por causa das dificuldades e objeções possíveis a que ele porventura se achará exposto? Pois as dificuldades que são atinentes à doutrina das quantidades incomensuráveis, ou as relativas ao ângulo de contato, ou as que nos deparam as assíntotas das curvas são suficientes para vos fazer resistir às demonstrações da matemática? Ou deixais de crer na Providência Divina porque pode haver certas coisas que não vedes maneira de conciliar com ela? Se comporta dificuldades o imaterialismo, ele apoia-se ao mesmo tempo em provas diretas e evidentes. Mas da existência da matéria é que se nos não oferece nem a mínima prova, ao passo que se levantam em contrário dela objeções numerosas e insuperáveis... Onde se acham, todavia, as formidáveis dificuldades em que vós insistis? Ai de nós! Não sabeis o que são, nem onde é que elas estão, são algo que se poderá apresentar mais tarde, possivelmente. Se é isso um pretexto suficiente para vos impedir de dar um completo assenso, nunca o concedereis a proposição alguma, por muito liberta de exceções que ela seja, por muito claramente e muito solidamente que vos seja dada a demonstração respectiva. H. Convencestes-me, Filonous. F. Bem; e agora, a fim de vos armar contra objeções futuras, tende tão só em mente o seguinte: aquilo que vale de maneira igual contra duas opiniões contraditórias não pode provar contra nenhuma delas. Sempre que uma dificuldade vos ocorre ao espírito, experimentai se lhe podereis encontrar saída adentro da hipótese dos materialistas. Não vos iludais com palavras: sondai, sim, o vosso próprio pensar. E se lhe não virdes solução mais fácil por meio do auxílio do materialismo - ela não pode, evidentemente, ser uma objeção contra o imaterialismo. Se houvésseis procedido segundo esta regra, teríeis poupado, provavelmente, a abundância de trabalho de me fazer objeções; por isso que, de todas as dificuldades que vos ocorreu opor-me, desafio-vos a que me mostreis uma só que seja que possa ser explicada pela matéria; digo mais: uma que não seja mais ininteligível ainda com essa suposição do que sem supor a matéria, e cujo depoimento, por conseguinte, lhe não seja mais contrário do que favorável. Cumpre que considereis, em cada um dos casos, se com efeito a dificuldade procede aí da não existência da matéria. Se não procede poderíeis arguir contra a Providência Divina com a infinita divisibilidade da extensão, com o mesmo motivo que com tal dificuldade contra a verdade do imaterialismo. E se bem vos lembrardes, estou em crer que achareis que foi por vezes o caso (se é que sempre o não foi) na discussão que tivemos. Releva outrossim que tomeis cautela em não argumentar sobre petições de princípio. Tende-se a dizer que as substâncias incógnitas devem ser consideradas como coisas reais, mais do que as ideias das nossas mentes (quem, no entanto, dirá que essa substância impensante externa pode concorrer como causa ou instrumento para que se dê a produção das nossas ideias?). Ora, não é verdade que pensar assim pressupõe a existência de substâncias externas, e que isso de pressupor a existência delas é o mesmo que admitir o que está em dúvida? Deveis no entanto, acima de tudo, guardar-vos bem do vulgar sofisma a que se dá o nome de ignoratio elenchi. Não poucas vezes falastes vós como se de fato cuidásseis que o que eu sustentava era a não existência das coisas sensíveis, quando na verdade não há aí ninguém com mais plena convicção da existência delas, ao passo que sois vós quem duvida que existam; deveria antes dizer que quem positivamente as nega. Tudo que é visto, tateado, ouvido ou percepcionado pelos sentidos de qualquer maneira é um ser real pelos meus princípios: mas não pelos vossos. Lembrai-vos de que a matéria pela qual combateis é qualquer coisa desconhecida (se é que se lhe pode chamar "qualquer coisa"), de todo despojada de qualidades sensíveis, que não pode ser percepcionada pelos nossos sentidos nem tampouco apreendida pela nossa mente. Lembrai-vos, digo, que ela não é nunca um objeto que é duro ou mole, ou quente ou frio, ou azul ou branco, ou redondo ou quadrado, etc., etc. Pois todas estas coisas afirmo eu que existem. Nego porém que a sua existência se distinga do serem percepcionadas, ou que existam fora de uma mente qualquer. Pensai nestes pontos; atentai bem neles; tende-os sempre em vista. Se assim não fizerdes, não entendereis o problema; sem isso, as vossas objeções errarão sempre o alvo; e, em vez de acertarem nas opiniões que eu tenho, pode ser que se dirijam mas é para as vossas, como mais de uma vez sucedeu de fato. H. Devo reconhecer, Filonous, que nada se me afigura que contribuísse para me não permitir concordar convosco do que essa tal incompreensão do verdadeiro assunto, do que esse engano sobre a questão. O que supus à primeira vista foi que quando negáveis a matéria negáveis as coisas que se tateiam e veem; refletindo no caso, todavia, acho que não há motivo para se julgar tal coisa. Não vos parece, no entanto, que se poderia conservar a palavra matéria, aplicando-a para designar as coisas sensíveis? Cuido possível proceder desse modo sem nada se mudar na opinião que tendes: e seria esse o melhor processo de reconciliar com ela umas tantas pessoas, as quais sofreriam maior abalo com uma inovação nas palavras que nas opiniões. F. Da melhor vontade. Conservai pois essa palavra matéria, e aplicai-a aos objetos dos sentidos, se assim vos agrada: contanto que lhes não deis subsistência que se distinga do serem percepcionadas. Por causa de uma simples expressão não irei decerto discutir convosco. Matéria e substância material são palavras introduzidas pelos filósofos; e, usadas da forma como eles as usam, implicam uma espécie de independência, ou de uma subsistência que é algo distinto do serem percepcionadas por uma mente; mas as pessoas do vulgo não as empregaram nunca; ou, se acaso o fizeram foi só para significarem por meio delas os objetos imediatos dos sentidos. Poderemos crer, por conseguinte, que durante o tempo em que foram mantidos os nomes das coisas particulares, e mais alguns termos como sensível, substância, corpo tecido ou estojo, ou recheio das coisas, não é de esperar que a palavra matéria seja introduzi da na linguagem do vulgo. E parece que nas discussões filosóficas o melhor arbítrio seria evitá-la, já que coisa alguma, provavelmente, tem favorecido e reforçado mais a depravada tendência para o ateísmo do que o uso desse termo geral e confuso. H. Bem, Filonous: pois que me resolvi abandonar enfim a noção de uma substância que é exterior à mente - de uma substância impensante -, estou em que não deveis negar-me o direito de usar a meu gosto da palavra matéria, aplicando-a a uma coleção de qualidades sensíveis que não têm substância senão na mente. Reconheço de bom grado que em sentido estrito não existe outra substância senão o espírito. Mas tanto me acostumei à palavra matéria, que não atino maneira de me desfazer do termo. Isso de se dizer que não há matéria é ainda coisa que me produz engulhos. Diga-se porém: "não existe matéria, se por matéria se designa uma substância impensante, que tem existência sem ser na mente; mas se se entende por matéria uma coisa sensível, cujo ser consiste na percepção respectiva, então realmente a matéria existe": pois esta distinção dá à proposição outro jeito, e pouca dificuldade sentirão os homens em chegar a admitir as noções que tendes, se desta maneira lhas propuserem. Porque, ao cabo de contas, a controvérsia em torno da noção de matéria, no sentido estrito, dá-se exclusivamente entre vós e os filósofos - cujos princípios (deverei confessá-lo) estão longe de se apresentarem tão naturais como os vossos, ou tão de acordo com o senso comum, ou com a Sagrada Escritura. Os homens só desejam, ou só evitam as coisas naquela medida em que elas concorrem - ou em que parecem fazê-lo - para a sua felicidade ou para a sua miséria. Porém a felicidade ou a miséria, a alegria ou a tristeza, o prazer ou a dor - que têm que fazer com a existência absoluta, ou com as entidades incógnitas, abstraídas de toda relação com nós outros? É evidente que as coisas só logram interessar-nos enquanto agradáveis ou desagradáveis para nós; e só podem agradar-nos ou desagradar-nos uma vez que sejam percepcionadas. Portanto, para além disso não nos dizem respeito; para além, vós as deixais onde quer que se encontrem. Todavia, há na vossa doutrina qualquer coisa nova. Já não penso, claríssimo está, como pensam os filósofos; mas também não de todo como pensa o vulgo. A este respeito, desejaria conhecer a minha situação exata; mais precisamente: o que acrescentastes ou alterastes, nas minhas antigas opiniões. F. Não tenho pretensão alguma a ser um fautor de doutrinas novas. Só o de unificar é que é o meu esforço, e o de fazer ver a uma luz mais clara essa mesma verdade que se repartiu até hoje entre os homens do vulgo e os filósofos; opinando aqueles que as coisas reais são as que imediatamente percepcionamos, e sustentando estes que são ideias as coisas imediatamente percepcionadas - ideias que existem tão só na mente. Pois tratai de juntar estas duas noções, e tereis a substância do que eu afirmo. H. Durante muito tempo desconfiei dos sentidos. Ao que então me parecia, via todas as coisas como que a uma luz ofuscante, ou através de vidros que as deformavam. Mas eis que os vidros me foram tirados, e entra-me pelo intelecto uma nova luz. Muito claramente me convenço agora de que vejo todas as coisas em suas formas nativas, e já me não preocupa a sua natureza incógnita, a sua existência absoluta. Aqui tendes o estado em que ao presente me encontro - se bem que na verdade não compreenda ainda, de maneira completa, o percurso do caminho que me levou a ele. Vós edificais sobre os mesmos princípios de que se servem os acadêmicos e os cartesianos, e ainda outras seitas semelhantes a essas; e por longo tempo se me afigurou a mim que sustentáveis o ceticismo filosófico deles; no final, todavia, as conclusões a que vós chegais são diretamente opostas às suas. F. Reparai, Hilas, nessa fonte de além. Em coluna redonda, ergue-se o repuxo até certa altura; nesse nível fraciona-se e já recai sobre o tanque: mas tanto à subida como à descida se conforma a água com uma mesma lei, que vem a ser o princípio da gravitação. De maneira análoga, aqueles princípios que à primeira vista nos impelem o espírito para o ceticismo - quando levados até certo ponto reconduzem os homens ao senso comum.